SUPLEMENTO - esla.edu.pt€¦ · É um romance partitura. Como a música, ... é ela a viajante, a...

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SUPLEMENTO L (…)

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SUPLEMENTO L (…)

02

À conversa com Iolanda Antunes

Qual o filme que mais a marcou?

O Apocalipse Now do Francis Ford Coppola,

pela reflexão filosófica sobre a guerra e a

condição humana, pela grandeza pictórica

dos seus planos, pelo diálogo que estabelece

com a história do cinema…mas eu já escrevi

sobre isto para o jornal da escola.

Que livro lhe deu mais prazer ler?

Do Tolstói, Sandor Marai, Stefen Zweig,

António Lobo Antunes, Orhan Pamuk, exis-

tem vários, pelo que seria impossível dizer

apenas um.

Tem alguma viagem de sonho?

Adoraria ir à Índia, encanta-me a estranheza

e o exotismo das suas tradições, a riqueza da

sua diversidade étnica e religiosa, os filmes

do Satyagit Ray, a dança clássica indiana…

E um sonho que ainda não realizou?

Existem alguns que não realizei, mas como

ainda não morri, talvez a vida me surpreen-

da.

Uma preocupação sobre os dias de ho-

je...

É difícil, num mundo globalizado, isolar

apenas uma preocupação uma vez que elas

estão ligadas. Mas talvez a questão da guer-

ra e dos refugiados seja aquela que mais me

inquieta. O expatriamento, a mendicância, a

falta de uma verdadeira integração nos paí-

ses de acolhimento, o facto de serem vistos

como uma ameaça, tudo isto me causa pesar.

Tem um estilo de música favorito?

Eu sei que vai parecer um bocadinho pedan-

te, mas o estilo de música que mais gosto de

ouvir é Ópera. Aprecio muito a sua riqueza

tonal, a amplitude das suas narrativas. Adoro

as árias de Puccini cantadas pelo José Cura

ou o trabalho da Cecilia Bartoli.

O que faz nos seus tempos livres?

Para além de tentar estar com as pessoas que

gosto, leio e vejo cinema. Música, ouço sem-

pre.

Em jeito de homenagem à coordenadora

do 100comentários, a equipa-

penumbra do jornal escolar preparou este suple-

mento, que designou por “L”, como forma de

tributo à autora, ao Livro e à Literatura.

Pretende-se, acima de tudo, dar a conhecer o livro

“Dor de ser quase dor sem fim”, vencedor do pré-

mio Vergílio Ferreira 2016 e a escritora que está

por detrás da obra.

As opiniões acerca da obra estão propositadamen-

te assinadas por pseudónimos, com o intuito de

convidar a homenageada e os leitores a desvendar

a identidade dos “críticos literários”.

Esperamos que se divirtam com o desafio!

A equipa-penumbra

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Que livro recomendaria a um jovem

do ensino secundário?

Pergunta difícil…cada aluno é um mundo,

com os seus gostos, capacidades, idiossin-

crasias, já recomendei Tolstói Orhan Pamuk

ou Dostoiévski a alunos meus que gostaram

de ler estes autores, mas talvez o livro que

reúna mais consenso seja o Sidaharta de

Herman Hess.

Sabemos que António Lobo Antunes é

um dos seus escritores de referên-

cia. Porquê?

Porque é um autor com uma lucidez clarivi-

dente e desencantada quando se trata de re-

fletir sobre o sentir dos portugueses. Adoro a

sua construção literária, cheia de coros, a

densidade psicológica das suas personagens,

a proximidade, às nossas vidas, das suas nar-

rativas.

Se pudesse ir viver noutro país, que

país escolheria?

A Itália. Penso que nenhum outro país do

mundo me agrada tanto por causa da sua lín-

gua, da sua História, da sua música, gastro-

nomia…

Porque escolheu ser professora?

Embora me sinta, hoje, profundamente de-

sencantada com a profissão, penso que não

foi uma escolha, foi um chamamento e, de

facto, durante muitos anos, fui verdadeira-

mente feliz nesta profissão. Era muito grati-

ficante ver os meus alunos crescer em huma-

nidade e sabedoria, contribuir para a sua for-

mação.

Dois aspetos que considera apelativos

na sua profissão?

Costumava ser a disponibilidade e afetivida-

de dos alunos e a simpatia dos colegas.

Quem ocupa o seu coração?

Nisso, o meu coração não difere do das ou-

tras pessoas: família, amigos, alguns alu-

nos…

Já está a escrever outro livro?

Não. Ainda estou desgostosa com o modo de

funcionamento do mundo editorial e com a

comercialização dos livros, que não dão hi-

pótese aos autores que não são apadrinhados

por gente conhecida.

SUPLEMENTO L

A equipa agradece

a disponibilidade para

responder

às questões

que foram colocadas.

04

Apresentação do livro de Iolanda Antunes

P rimeiro que tudo o título: esse misté-

rio de ser quase, de ser sem fim.

Desde o início, o desafio de sugerir

sem indicar, de invocar sem aprisionar, possi-

bilidades múltiplas de significado, que se

adensam na capa – a tela que nos prende o

olhar e inicia a viagem - até que, de capítulo

em capítulo, página a página, se percebe que a

dor é vida exacerbada, a própria condição im-

prescindível para viver.

Deste belo romance que vai entrelaçando for-

mas literárias tão diferentes como a carta, o

diário, o monólogo ou a entrevista, poder-se-á

dizer que é um livro de um vermelho vivo que

incendeia. Aquele vermelho que é a cor do

sangue, dos cravos e da paixão, um magma

líquido do qual escorrem possibilidades múlti-

plas de significação, mesmo quando se debru-

ça sobre algo aparentemente insignificante.

É um romance partitura. Como a música, dá-

se em cada som e faz das palavras notas.

É tela de cinema, onde se recolhe o passado

que um pequeno filme afetuosamente guardou.

A dimensão da sua escrita é pictórica e musi-

cal. Faz-se de referências que encenam litera-

riamente o tormento da recordação, o desejo, a

melancolia e a perda.

Inês Carpinteiro é a protagonista. Definida

pelas outras personagens como uma “Rainha

da Pátria da Melancolia” que tinha a obsessão

dos livros, é ela a viajante, a essência de que

se constrói o próprio caminho. Professora e

escritora, umas vezes, deslumbrada pela vida,

outras vezes, angustiada, defraudada e triste,

que nos cativa, comove e enternece, à medida

que se vai insurgindo contra a banalidade de

existir num dia a dia duro e feio. Daí a inquie-

tação existencial e histórica, ao longo de todo

o romance, que recorre a imagens de um quo-

tidiano que não consegue mais do que iludir a

felicidade.

SUPLEMENTO L

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SUPLEMENTO L António, Nuno e Pedro, são as personagens

masculinas que tanto permanecem na vida de

Inês como dela se ausentam. Muito diferentes

entre si, são eles que ora lhe concedem a dádi-

va do amor, ora a deprivam cruelmente dele.

Portugal, enquanto personagem coletiva, per-

mite edificar as categorias de espaço e tempo.

À medida que se vai humanizando, surge co-

mo um país marcado pelo sonho, por aquela

imaterialidade anterior ao próprio silêncio que,

ao longo do romance, nos leva pelo Oceano

Atlântico até Angola e Moçambique, desde o

25 de abril até ao presente.

Enquanto escritora, Inês descobre que escrever

é a própria condição para o viver, a busca de

um lugar para existir, em que a palavra se tor-

na paixão, caminho e guia. É procurar enten-

der, sentir em toda a intensidade algo que ja-

mais se entenderá a não ser que seja escrito.

Abordando temas como existência e liberdade,

linguagem e realidade, o Eu e o mundo, a an-

gústia, a saudade, o amor e o dilaceramento,

Dor de ser quase, Dor sem fim integra o sofri-

mento como condição humana. Trata-se de um

livro que se estrutura num momento de dor,

narra-o, lamenta-o. A dor, tal como a beleza e

o êxtase, é matéria prima da vida.

Biblioteca da ESLA, 2 de novembro de 2016.

Ana Gonçalves

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O primeiro romance de Iolanda

Antunes transporta-nos para

uma imagem de Portugal cria-

da pela geração da década de setenta e

foi sendo escrito a diferentes vozes.

O primeiro passo é dado pela persona-

gem principal, Inês, que se expõe, since-

ra, simples e amargurada ao seu amigo

Carlos.

Os personagens perfilam-se com uma

magnífica cadência ao longo do texto e

completam a imagem que a Inês pensa

que têm sobre ela.

O pai podia ter sido inventado. (De)

Escrito pela própria Inês à custa das ima-

gens ouvidas e lidas sobre a guerra colo-

nial.

O Nuno, a Madalena, o Pedro, a aluna, a

vizinha mostram uma Inês triste, difícil de

entender e sempre cheia de citações e

músicas.

Quando fala, Inês mostra-se ultrajada e

perdida por lhe faltarem marido e filhos

e os sonhos prometidos, mas acaba por

se encontrar nas palavras que escreve.

Um “quase” surge nas suas relações pes-

soais à semelhança do verso de Mário de

Sá Carneiro que prende o título do livro.

Um adiamento e uma nova esperança

alternam na obra e acabamos por nos

sentir fortemente amarrados nesta se-

quência de acontecimentos.

Leitura imprescindível.

Mariana Noronha

Opinião dos “críticos literários”

Rafael Nobre

Fotografia selecionada pela

equipa do suplemento por

considerá-la uma boa de-

finição de amor.

Às vezes, o amor

é um lugar estranho...

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SUPLEMENTO L

Q uer saber o que penso da obra de

Inês Carpinteiro? A Inês está an-

gustiada, afirma-se “órfã” de um Deus mudo

que a não quer amar, não responde aos seus

pedidos e parece divertir-se com o destino de

desassossego, desespero e melancolia que tra-

çou para a sua vida. Mas sabe, ela é teatral,

obstinada e desafiadora, “não sabe resignar-

se”!

Quer que fale dos seus amores? À medida

que li as cartas e os excertos de entrevistas,

constatei que todas as personagens têm algo a

dizer sobre Inês, e o puzzle compõe-se e o

enigma desvenda-se. Para mim, Inês é uma

esteta. Ama o belo, ama o amor como se de

uma pintura, ou partitura, se tratasse.

(Foi assim com todos os seus amores! Aque-

les que a autora diz que têm história!)

Nuno, Pedro, Carlos (e António) foram (são)

rasgos de brilho e alegria, de infância e de

amor. São pedaços da sua vida. É verdade que

nem todos “ouviam a mesma canção”, contu-

do, de alguma forma, todos a amaram.

Se gostei de ler o livro…? Claro que sim,

meu senhor. É um olhar feminino sobre a

complexidade da vida, do amor e de forma

mais abrangente sobre as relações (e ralações)

humanas. Ainda lhe digo: se isto não fosse

literatura e a Inês não fosse “burra e teimosa”

haveria de perceber que, às vezes, os amores

são mesmo “como os táxis – perde-se um,

apanha-se outro”. E pode ser que seja esse o

“automóvel último modelo” que a leve

“triunfante” pela vida. (Mas isto seria matéria

para um novo romance).

Maria Dias

R essoam-me na alma fragmentos de Inês

Carpinteiro, raramente desvelada nas

múltiplas personagens que apenas afloram

uma máscara desta persona, ao mesmo tempo

frágil, ao mesmo tempo doce porque a tragé-

dia a escolheu ou porque se tornou inevitável

no coro grego pressagiador das histórias ime-

moráveis. A dor de ser quase é uma dor pró-

pria da melancolia, pois nada mais nos resta

no império existencial do que aspirar à vene-

ração de saber escrever, de saber romancear,

de saber poetizar e, enquanto tudo permane-

cer igual, o altar dos deuses é preenchido pela

leitura daqueles que o sabem fazer magistral-

mente, por aqueles que criam romances que

permanecem para lá do tempo de uma estação

primaveril. A dor sem fim deixa de existir

momentaneamente porque há livros que nos

permitem esta evasão metafórica e substanci-

al da dor de ser quase.

Este é um desses livros.

Bárbara

SUPLEMENTO L Uma descrição do tempo da

liberdade possível depois

da revolução de Abril ou outra coisa? Este

livro deixou-me preso ao anseio da incomple-

tude. Vê-se onde se começa mas não onde

se acaba. O último ponto não me parece ser

o final. As narrativas que aqui se entrecruzam

são múltiplas, tal como as vozes. Completam-

se e ecoam-se. Seria mais fácil interpretá-lo

como uma autobiografia. Depende também

da sua evolução e do que lhe ficou em certos

períodos da sua vida. É certo que muitas par-

ticularidades da autora terão sido repercuti-

das nas vozes, dúvidas e anseios de uma

Inês. Mas talvez não o seja. Não seria justo

se o fosse; nem para as personagens, nem

para a autora.

Inês intitula-se rainha da pátria da melancolia;

vive numa aparente estagnação social. Tudo

o que esperava, o que podia ser, tudo o que

deveria existir, mas nunca o foi. Abordam-se

promessas de uma sociedade pós-

revolucionária a quem se pedem responsabili-

dades. Das epístolas retiram-se augúrios e

anseios; repetem-se parágrafos como eco

introspetivo. Estas pro(ana)lepses forçam-nos

ao manuseio das páginas (já li isto antes) e

do pensamento. São os parêntesis funda-

mentais. Estas recordações não são uma cró-

nica, mas sim uma moldura que enquadra a

narrativa. E apercebo-me de que o significado

das memórias se relaciona, enfim, com a sua

relação com o mundo, a orientação da sua

vida pessoal balizada pelas preocupações, o

vazio ante si ou o anseio por um futuro que

tarda em chegar. Onde está a luz?

E nestes anseios, nestas memórias, Inês

quase se transforma na voz de uma geração,

que se resigna com um quase fim, que se

rende à implacabilidade do tempo, que se

conforma com os sonhos que não materiali-

zou, vindo a admitir ser mesmo órfã de Deus.

O dilema estará na ausência da esperança?

Ou no espaço que permeia o que existe e o

que deveria existir? O pensamento oscila em

permanência. Parece-me um caminho, por

um lado, em direção a um valor novo; uma

cultura moderna que ressuscita e se molda

pelos pensadores muitas vezes aludidos, pe-

las obras de arte visitadas, pelos sons que

orbitam a escrita. Mas, por outro lado, um va-

lor não absoluto de Deus, pouco relativo e,

por isso, precário.

Justifica-se plenamente o quase do título, o

adiamento permanente de uma ou várias pro-

messas. Mas é uma obra que integra mais de

uma década de trabalho e, por isso mesmo, o

reflexo do impacto de uma maturação pesso-

al em permanente conflito.

Marquês de Xá