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SUPER-HERÓIS EM MOVIMENTO: ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS E MEMÓRIA COSTA, R.S. (1); ORRICO, E. G. D. (2) 1. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Memória Social [email protected] 2. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Memória Social [email protected] RESUMO Adaptações cinematográficas de historias em quadrinhos não são algo recente, entretanto nunca foram produzidas em tamanha quantidade e aceitação como na atualidade. Dentre as diversas adaptações de histórias em quadrinhos lançadas nos últimos anos, destacam-se as de narrativas de super-heróis. Os super-heróis foram personagens criados na linguagem das historias em quadrinhos em 1938 e possuem especificidades que lhes são próprias. Este artigo analisa o processo de adaptação das narrativas quadrinisticas de super-heróis para a linguagem cinematográfica, em especial os filmes da produtora Marvel Studios, objetivando compreender seu papel na construção de memórias sobre as histórias em quadrinhos. Ambas as materialidades de linguagem são admitidas como gêneros discursivos na concepção de Mikhail Bakhtin, que compreende os gêneros como formas relativamente estáveis de enunciados criados socialmente por meio de uma tradição discursiva sendo compreendidos como representantes das vozes de uma época. O conceito de adaptação se pautará em Stam, onde a adaptação é vista como um processo resultante do diálogo entre diferentes vozes sociais que agenciam diferentes textualidades. Pela análise de fragmentos de ambos os gêneros, baseada em Cirne, Vanoye e Goliot-Lété, compreende-se como a memória de gênero é retomada e reconstruída no processo de adaptação em novos espaços discursivo- ideológicos na contemporaneidade. Palavras-chave: Memória Social. Histórias em Quadrinhos. Cinema. II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

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SUPER-HERÓIS EM MOVIMENTO: ADAPTAÇÕES

CINEMATOGRÁFICAS E MEMÓRIA

COSTA, R.S. (1); ORRICO, E. G. D. (2)

1. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Memória

Social

[email protected]

2. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Memória

Social

[email protected]

RESUMOAdaptações cinematográficas de historias em quadrinhos não são algo recente, entretanto nunca foram produzidas em tamanha quantidade e aceitação como na atualidade. Dentre as diversas adaptações de histórias em quadrinhos lançadas nos últimos anos, destacam-se as de narrativas de super-heróis. Os super-heróis foram personagens criados na linguagem das historias em quadrinhos em 1938 e possuem especificidades que lhes são próprias. Este artigo analisa o processo de adaptação das narrativas quadrinisticas de super-heróis para a linguagem cinematográfica, em especial os filmes da produtora Marvel Studios, objetivando compreender seu papel na construção de memórias sobre as histórias em quadrinhos. Ambas as materialidades de linguagem são admitidas como gêneros discursivos na concepção de Mikhail Bakhtin, que compreende os gêneros como formas relativamente estáveis de enunciados criados socialmente por meio de uma tradição discursiva sendo compreendidos como representantes das vozes de uma época. O conceito de adaptação se pautará em Stam, onde a adaptação é vista como um processo resultante do diálogo entre diferentes vozes sociais que agenciam diferentes textualidades. Pela análise de fragmentos de ambos os gêneros, baseada em Cirne, Vanoye e Goliot-Lété, compreende-se como a memória de gênero é retomada e reconstruída no processo de adaptação em novos espaços discursivo-ideológicos na contemporaneidade.

Palavras-chave: Memória Social. Histórias em Quadrinhos. Cinema.

II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades

Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

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Histórias em quadrinhos e cinema. Duas formas de expressão artísticas, consideradas,

ambas, como fruto da indústria cultural de massa de finais do século XIX. Porém, esse não

é o único elemento em comum entre as histórias em quadrinhos e o cinema. Tanto uma

como a outra podem ser enquadradas, segundo Guimarães (1999?), na categoria de Arte

Visual, que “engloba aquelas formas de expressão em que o espectador, para apreciá-las,

usa principalmente o sentido da visão”. O espectador sofre nas artes visuais, uma

estimulação essencialmente visual.

Outras formas de expressão, como a pintura, a escultura, o teatro, também podem ser

incluídas nessa categoria. Mas nos limitaremos somente às histórias em quadrinhos e ao

cinema neste trabalho. Não apenas pelas semelhanças acima descritas, mas porque, além

delas, essas linguagens trabalham em sua composição com diversos outros elementos em

comum como, ademais, poderíamos dizer que desde o surgimento elas andam de mãos

dadas.

Não somente são consideradas produtos da indústria cultural como o surgimento de ambas

é creditado, por convenção, ao ano de 1895. No caso das histórias em quadrinhos, a

escolha do ano ocorre – por convenção norte-americana, visto que no Brasil o italiano

naturalizado brasileiro Ângelo Agostini publicava quadrinhos na imprensa brasileira desde

1864 – em decorrência da publicação do personagem Mickey Dungan, mais conhecido por

Yellow Kid no jornal New York World de Joseph Pulitzer (FERREIRA 1999).

No caso da linguagem cinematográfica, a escolha se dá em virtude da projeção do filme A

Saída dos Operários da Fábrica Lumière para os integrantes da Sociétè D’Encouragement

pour L’Industrie Nationale pelos irmãos Louis e Auguste Lumière em 22 de março (KEMP,

2001, p. 8).

Nos vinte anos seguintes as histórias em quadrinhos e o cinema começaram a ser

fortemente difundidas pelo mundo. No caso das histórias em quadrinhos especialmente nas

tiras publicadas nos suplementos dos jornais da imprensa escrita com apoio dos syndicates,

que eram grandes organizações voltadas para o propósito de distribuir as histórias em

quadrinhos pelo mais variados jornais das empresas jornalísticas, além de contratarem e

manterem artistas (VERGUEIRO, 1998, p. 127).

Em relação ao cinema, nos anos seguintes após a exibição do filme dos irmãos Lumière,

começaram a ser “assistidos por grandes plateias (...) nos principais países da Europa, nos

Estados Unidos, no Canadá, na Índia, na China, na Turquia, no México, no Brasil, na

Argentina e na Austrália, já apoiada por uma indústria consistente em muitos desses

lugares” (KEMP, 2011, p. 8).

Compreendidas como linguagens ambas podem ser entendidas como um meio pelo qual os

sujeitos sociais podem constituir contextos e estabelecer variadas formas de relações

sociais, visto que é por meio da linguagem que construímos valores, visões de mundo,

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preconceitos. A linguagem é o instrumento pelo qual as culturas humanas constroem

narrativas e discursos que orientam suas ações (COSTA; ORRICO, 2009; FERREIRA;

ORRICO, 2002).

Ao escreverem acerca do cinema – mas podemos incluir também às histórias em

quadrinhos – Vanoye e Goliot-Lété (2011) atestam que uma expressão artística, como o

cinema ou as histórias em quadrinhos, podem ser instrumentos para a análise de uma

sociedade. Porém, qualquer obra analisada sempre falará do presente, do aqui e agora de

seu contexto de produção, da época em que foi produzida. E o caso de ser um

documentário, ou uma obra da mais absurda ficção, não modifica o fato de que ela “fala” do

presente. Ela será um produto da época que não escapará às vozes sociais de desse

período, por mais que tente nele não ser inserida.

Porém, ao mesmo tempo que cada obra representa seu contexto de produção, ela não é

criada do “nada”, não surge espotâneamente em um tempo e espaço como algo único. Por

mais original, inovadora que seja uma obra, seu discurso assimila, retoma e utiliza como

base de enunciação discursos anteriores, produzidos em contextos sócio-históricos

anteriores. Além disso, cada obra pertencerá a uma linguagem específica, trará

características, elementos, discursos dessa linguagem.

Desse modo, acreditamos que as histórias em quadrinhos e o cinema podem ser inseridas

como gêneros discursivos de acordo com a concepção elaborada por Mikhail Bakhtin,

pensador russo do início do século XX.

Antes de discorremos sobre o que seriam os gêneros discursivos para Bakhtin é importante

compreendermos sua noção de enunciado. Para Bakhtin (1997) os enunciados eram a

unidade da comunicação discursiva. A comunicação ocorreria por sequências de enunciado

visto ser esse o meio pelo qual os sujeitos produzem sentidos que se relacionam entre si

para constituir o mundo no qual vivem. Para Bakhtin o enunciado é a unidade porque faz

parte de sua constituição uma resposta ao enunciado produzido anteriormente. Tal resposta

será um novo enunciado e assim sucessivamente.

O receptor de um enunciado, não seria um sujeito passivo, que apenas receberia uma

informação, pelo contrário, o enunciado seria sempre único, proferido somente uma vez,

onde o sujeito constituiria determinado sentido e produziria, posteriormente, uma atitude

responsiva ativa, ou seja, o receptor poderá concordar ou discordar em diferentes graus,

completar, adaptar, o que acaba por repercutir na formulação do enunciado seguinte e

assim sucessivamente (BAKHTIN, 1997, p. 290).

Podemos entender que cada história em quadrinhos lida ou produção cinematográfica

assistida será sempre um enunciado único e que produzirá enunciados resposta únicos em

um determinado espaço e tempo.

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Porém, se cada enunciado é formulado por enunciados construídos anteriormente, podemos

dizer que esses enunciados possuem características em comum, que são utilizadas e

retomadas na produção do novo enunciado. A esse conjunto de elementos semelhantes que

cada enunciado possui, poderíamos intitulá-lo de gênero discursivo, ou seja, um gênero

seria um conjunto de enunciando com características semelhantes que tomam por base

uma memória enunciativa na produção dos novos enunciados que farão parte de um gênero

específico.

No interior do gênero, o enunciado será produzido com um propósito específico para um

grupo específico, que perceberá seu “acabamento específico” para gerar uma resposta e

produzir novos enunciados, pois Não é possível produzir um enunciado que não faça

referência a um outro enunciado do mesmo gênero” (CLOT, 2006, p. 224).

Para isso, cada enunciado seguirá as “regras” relativas ao gênero discursivo ao qual

pertence e no interior do qual foi produzido. Assim Bakhtin caracteriza os diferentes

gêneros do discurso “como tipos relativamente estáveis de enunciados ou formas

relativamente estáveis e normativas do enunciado” (RODRIGUES, 2005, p. 63).

A escolha que um sujeito faz na utilização de um gênero discursivo em particular, seria,

assim, determinada “em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação

verbal, das necessidades de uma temática (...), do conjunto constituído dos parceiros, etc.”

(BAKHTIN, 1997, p. 301). Os gêneros do discurso são, desse modo, construídos para

esferas sociais específicas e escolhidos por sujeitos pertencentes a essas esferas, em

determinada situação de interação.

Por outro lado, os gêneros não seriam fixos, imutáveis. As histórias em quadrinhos e o

cinema, por exemplo, não surgiram do nada – ambas são frutos de uma tradição imagética e

avanços tecnológicos ao longo dos anos – e nem se mantiveram inalterados deste o

surgimento, pelo contrário, sofrem constantes transformações na linguagem, na estética,

nos suportes, nas formas narrativas.

Por cada gênero possuir especificidades que lhes são próprias, podendo ser mais simples

ou mais complexos, usados em situações específicas, Bakhtin subdivide os gêneros em dois

tipos: gêneros primários (simples) e gêneros secundários (complexos). Bakhtin (1997)

compreendia os gêneros primários como os gêneros simples do discurso, visto que se

apresentam em situações de comunicação mais “simples” e diretamente ligada ao cotidiano

social. Seriam as conversas entre sujeitos no dia-a-dia, as cartas, diários, bilhetes, etc. Os

gêneros secundários seriam “complexos”, pois “aparecem em circunstâncias de uma

comunicação cultural mais complexa” (BAKHTIN, 1997, p. 281). Nesse contexto

pertenceriam os discursos teatrais, literários, científicos, políticos e ideológicos e,

incluiríamos, quadrinísticos e cinematográficos.

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Uma das principais características dos gêneros secundários é a agregação de um ou mais

gênero primário em sua produção. A partir de sua incorporação ao gênero secundário, o

gênero primário sofre um processo que o modifica, fazendo-o perder “sua relação imediata

com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios” (BAKHTIN, 1997).

Bakhtin cita como exemplo a inclusão de um gênero primário, como o diálogo cotidiano em

uma narrativa romanesca e afirma que, a partir dessa inclusão, esse gênero primário passa

a fazer parte da realidade do gênero secundário do romance literário.

Desse modo, a formação de “novos” e diferentes gêneros, sejam primários ou secundários,

está diretamente ligada a ações humanas, a diversas situações sociais de interação verbal

que surgem e se estabilizam – mesmo que relativamente – no cotidiano.

A linguagem das histórias em quadrinhos e do cinema podem ser compreendidas como

gêneros discursivas secundários, construídos por meio de uma tradição imagética e fruto de

processos sócio-históricos do final do século XIX. Além disso, ambos os gêneros abarcam

elementos do que Bakhtin intitula como plurilinguismo. Bakhtin adota esse termo ao analisar

e compreender o romance como um gênero discursivo secundário.

Para Bakhtin (1988, p. 73), o plurilinguismo seria “tipos de unidades estilísticas” de

composição nas quais o conjunto romanesco se decompõe”, ou seja o romance seria um

gênero que agregaria em sua composição várias unidades de diversas estilísticas como,por

exemplo: a narrativa direta e literária do autor: abarcando todas as suas variedades

multiformes; estilizações de diversas formas de narrativas tradicionais orais, como o diálogo

cotidiano, que são denominadas de skaz; estilizações de diversas formas de narrativas

escrita e semiliterárias tradicionais como as cartas, os diários, dentre outras, pertencentes

aos gêneros primários do discurso; outras formas literárias de gêneros primários ou

secundários como escritos morais, filosóficos,científicos, retóricos, etc; discursos de

personagens estilisticamente individualizados.

Desse modo, ambas as linguagens com as quais trabalhamos podem ser categorizadas,

assim como o romance, como plurilinguísticas. Porém, cada uma possui especificidades que

as diferem uma da outra e de demais linguagens imagéticas.

No caso das histórias em quadrinhos, o sentido é construído no agenciamento dos diversos

elementos, signos e símbolos que compõe cada quadrinho – como o texto, a imagem, as

onomatopéias, os balões, etc. – em relação ao desencadeamento sequêncial cujos

elementos “congelados” no tempo e no espaço, será sempre relacional (CIRNE, 2000, p.

29). A narrativa, por meio desses “cortes gráficos” entre os quadros, é construída – o

movimento, o timing, o tempo e espaço – mentalmente pelo leitor.

No cinema, cuja linguagem pode ser compreendida como um produto histórico-social do

encontro entre o teatro, vaudeville, music hall, pintura e avanço tecnológico (CARRIÈRE,

2006, p. 11), o corte também é elemento de suma importância. No cinema o corte engloba

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uma sequência temporal de planos – que diferentemente das HQs não pode ir na

“velocidade” que o espectador deseja – e de como os elementos – imagens, cores, som, etc.

- estão dispostos no interior desses planos. Esses elementos são inseridos em um conjunto

e contexto específicos, transmitindo informação e tornando-se dotados de significação pelo

sujeito espectador (BERNARDET apud BRASIL, 2011).

Em cada linguagem elementos do pluriliguismo se apresentam por meios diferentes, como,

por exemplo, o skaz, ou seja, a fala cotidiana – um gênero primário inserido na diegese

narrativa de um gênero secundário. Nas histórias em quadrinhos ele será representado por

diálogos escrito no interior dos balões, enquanto no cinema ele será apresentado por meio

da imagem, do movimento e, principalmente do som.

Até aqui compreendemos um pouco melhor que as histórias em quadrinhos e o cinema são

gêneros discursivos secundários e que cada uma dessas linguagens possuem elementos

próprios. Assim sendo, podemos compreender que um processo de adaptação entre essas

linguagens possuirá problemáticas próprias relacionadas a cada uma, trabalhando com

tradições e memória tanto de uma quanto de outra em “novos espaços discursivo-

ideológicos” (OLIVEIRA, 2008).

O processo de adaptação pode ser compreendido como possuidor de uma

“intertextualidade”, o resultado dialógico de diversas “vozes” sociais em um novo contexto

de produção (BAKHTIN, 1997; STAM, 2006). Nesse processo haveria uma “interminável

permutação de textualidades, ao invés da ‘fidelidade’ de um texto posterior a um modelo

anterior” (STAM, 2006, p. 21).

Uma adaptação, entendida desse modo, nunca seria “fiel” às narrativas fonte, pois além do

dito anteriormente, nenhum enunciado surgirá de modo espontâneo, mas de enunciados

proferidos anteriormente que são retomados e reconstruídos. “O ‘original’ sempre se revela

parcialmente ‘copiado’ de algo anterior” (STAM, 2006, p. 22).

Para esse trabalho selecionamos histórias em quadrinhos de super-heróis que foram

adaptadas para o cinema. Mas o porquê da escolha das narrativas desses personagens,

visto que os quadrinhos são uma linguagem em si com adaptações cinematográficas dos

mais variados gêneros? Essa escolha não foi aleatória.

Como falamos anteriormente as histórias em quadrinhos se difundiram no início do século

XX em todo o mundo por meio das tiras de jornais e o auxílio dos syndicates. Porém outro

fato foi de extrema importância para a difusão das histórias em quadrinhos, em especial do

formato em revista – comics: a criação dos super-heróis em 1938 com a publicação do

personagem Superman na revista Action Comics número 1.

Primeiramente, juntamente a publicações que viriam posteriormente, esses personagens

ajudaram a consolidar o formato de publicação de quadrinhos em revista com histórias

inéditas e não republicações do que já havia sido apresentado em jornais. Segundo, e mais

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importante, foi que as publicações de super-heróis geraram um fato inédito até então: a

criação do primeiro gênero surgido na linguagem quadrinística: o dos super-heróis.

Vergueiro (2004) enfatiza que os gêneros de aventura, ação, ficção científica, policial,

“tiveram sua origem em outras fontes de criação artística, representação literária ou mesmo

narrativa oral e não nas histórias em quadrinhos propriamente ditas”, sendo que, com o

decorrer do tempo, o gênero dos super-heróis foi o “que realmente representou as histórias

em quadrinhos no imaginário popular, tornando-se sua marca registrada e a forma como são

mais rapidamente identificadas no mundo inteiro”; foram “a mais criativa contribuição das

histórias em quadrinhos para a narrativa contemporânea” (VERGUEIRO, 2004). A criação

dos super-heróis fez os quadrinhos atingiram níveis de venda altíssimos, muitas vezes

chegando a um milhão de exemplares por título (FEIJÓ, 1984).

Esse foi um dos principais motivos para escolhermos trabalhar com as adaptações

cinematográficas desses personagens. O segundo é a quantidade e a grande aceitação que

as adaptações cinematográficas de super-heróis estão tendo em todo mundo. Embora

sempre tenham sido feitas adaptações esporádicas dos super-heróis nunca ocorreu um

“fenômeno” como na atualidade. Transformando-as em algo que poderíamos chamar de um

“novo gênero” no cinema, o de “filmes de super-heróis”.

Embora esteja sendo produzidos filmes de personagens das mais diversas editoras – a

trilogia Batman, da editora DC Comics, foi, provavelmente, a mais bem sucedida no mais

variados aspectos – o projeto da editora Marvel Comics é relevante pois cria um projeto para

anos de adaptações.

A partir de 2008, a Marvel Comics, analisando o sucesso de filmes inspirados em seus

super-heróis, como Homem-Aranha – lançado pela Sony Pictures – e X-Men – lançado pela

Twentith Century Fox – dentre outros, resolve lançar com sua própria produtora de filmes –

a Marvel Studios – uma serie de filmes adaptados dos seus personagens das HQs, com um

maior controle sobre todo o processo de adaptação.

O maior diferencial dessas adaptaçoes, entretanto, foi a estrutura adotada pela Marvel

Studios. As histórias em quadrinhos de super-heróis, desde os anos 1940, apresentavam

uma estrutura baseada nas revistas pulp, onde uma narrativa não tinha um final em uma

edição específica, mas continuava na seguinte. Nas próximas décadas esse conceito foi

expandido.

As editoras de quadrinhos – em especial a DC comics e a Marvel comics – criaram um

“universo” de super-heróis, onde cada pesonagem, ou grupo de personagens, tinham

publicações proprias. Porém as narrativas começaram a não somente continuar na edição

posterior do mesmo personagem, como tinham relação com todas as outras revistas do

mesmo “universo”, ou seja, uma historia do Capitão América poderia continuar em uma

edicão do Homem de Ferro e essa em uma do Hulk. Desse modo, além da liberdade de

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criar histórias mais “amplas”, essa estratégia fazia os leitores comprarem as ediçoes de

todos os personagens que compõem o “universo” de personagens da editora.

No cinema, essa estratégia jamais havia sido tentada. Embora varios filmes possuam suas

“franquias” – continuaçoes – elas não se relacionavam entre si. O risco de tal tentativa seria

provavelmente em virtude do alto custo, visto que produzir uma obra cinematográfica é

muito mais caro do que produzir uma revista em quadrinhos. Na “primeira fase” do projeto

da Marvel Studios foram produzidos cinco filmes interligados - O Incrível Hulk (2008);

Homem de Ferro (2008); Homem de Ferro 2 (2010); Thor (2011); Capitão América, O

Primeiro Vingador (2011) - com o objetivo de um sexto filme, Os Vingadores, que reuniria

todos os outros personagens e daria um desfecho “momentaneo” a narrativa – até o inicio

da produçao de uma “segunda fase”.

A estratégia foi extremamente arriscada, visto que “se algum dos filmes supracitados

naufragasse nos cinemas havia o risco de todo o restante do plano da Marvel ir por água

abaixo, e a empresa dificilmente se recuperaria de tamanho revés econômico” (CALLARI;

ZAGO; LOPES, 2012, p. 11). O projeto funcionou e em 2011 foi lançando o filme dos

Vingadores – que veio a se tornar uma das maiores bilheterias do cinema, garantindo a

produção de uma “segunda fase” para o projeto que seguirá pela próxima década.

Desse modo, nosso objetivo é analisar que discursos estão sendo (re)construídos nesse

processo adapdativo, que memórias da tradição do gênero quadrinístico – conjutamente ao

gênero cinematográfico – estão sendo utilizadas como base e como estão sendo

apresentadas em novos contextos de produção.

Entretanto, ao falarmos de uma obra cinematográfica adaptada de quadrinhos de super-

heróis, surgem probemas específicos. Quando falamos da adaptação de um romance ou de

uma peça teatral, por exemplo, ela trabalhará com um enunciado que poderíamos chamar

de “fechado”, ou seja, de uma obra com início, meio e fim. No caso de um filme como esse

não há um “texto-fonte”, a adaptação se torna extremamente seletiva, ela será uma escolha

de mais de cinquenta anos de diversas narrativas desses personagens para um novo

contexto discursivo ideológico.

Essas narrativas passaram pelas mais variadas mudanças nessas últimas décadas, os

personagens sofreram reformulações, foram adaptados para novos contextos variadas

vezes. Dessa forma, a adaptação retomará variadas “vozes” em um novo contexto

ideológico, trabalhando com diversos outras vozes contemporâneas, ou seja, com novos

enunciados, e a linguagem do cinema deve estar aberta “a todos os tipos de simbolismo e

energias literárias e imagísticas, a todas as representações coletivas, correntes ideológicas,

tendências estéticas e ao infinito jogo de influências no cinema, nas outras artes e na cultura

em geral” (STAM, 2008, p. 24).

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Entendendo que os super-heróis sofrem há décadas um constante processo de

reconstrução (COSTA, 2007, p. 131) e entendendo-os como mitos da cultura de massa

(ELIADE, 2004) podemos observar inicialmente como algo relevante nessas adaptações a

seleção dos personagens escolhidos. Bakhtin (1998, p. 119) chamava a atenção para a

importância dos personagens no contexto narrativo de uma obra, uma vez que a fala e

personalidade dos personagens podem refratar a intenção do autor e funcionam como uma

“segunda linguagem”, são utilizados pelo autor como pontos de vista dos mais varidos

discursos, representando “vozes sociais” que trabalham com uma memória de gênero, onde

remetem a enunciados de determinada época e suas contradições e conflitos.

Para analisar uma obra quadrinística ou cinematográfica, Cirne (1972) e Vanoye e Goliot-

Lété (2011), respectivamente, acreditam que essas análises devem ser efetutuadas por

meio de fragmentos que compõem o todo das narrativas. Deve-se obeservar como esses

fragmentos articulam os diferentes elementos sígnicos que constroem sentido – e memória

– às narrativas e, posteriormente, como esses elementos e os possíveis significados são

transmitidos de um gênero para outro.

Em relaçao às histórias em quadrinhos Cirne (1972) propõe três níveris de leitura: leitura

simbólica, de caráter textual; leitura estrutural, relativa à imagem e leitura criativa, que

compreende a linguagem quadrinística como o conjunto que a compreende.

As duas primeiras seriam mais de caráter “pedagógico” (CIRNE, 1972) enquanto que a de

maior relevância seria a estrutural visto que ela analisa o “todo complexo” da linguagem dos

quadrinhos, ou seja, a união entre texto, imagem, e os demais símbolos. Somente assim,

poderemos ler ideologicamente os quadrinhos, construindo sentido. A

imagem, o texto, os símbolos e signos característicos da linguagem quadrinística devem ser

lidos de forma amalgamada no interior da estrutura seqüencial e dos “cortes-gráficos” dessa

linguagem.

Porém, para uma completa leitura criativa dos quadrinhos, talvez somente o entendimento

da estrutura discursiva desse meio não seja inteiramente suficiente. Como enfatiza Geertz

(2004, p. 148) não podemos entender “objetos estéticos como mero encadeamento de

formas puras”. É necessário, conjuntamente a sua forma estrutural, lermos os quadrinhos

em sua historicidade para compreendermos o porquê de estarmos lendo determinado

discurso em determinada linguagem,em que condições de produção ele surgiu, o que tornou

possível o seu surgimento e desenvolvimento.

No caso do cinema, Vannoye e Goliot-Lété (2011) lançam propostas de análise

estabelecidas por Michel Marie: numeração de planos, duração em segundos da cena;

elementos visuais representados; escala de planos, profundidade de campo e objetiva

utilizada; movimentos de atores e demais elementos e da câmera; passagens de plano,

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cortes e efeitos; música, diálogos, ruídos, intensidade, ruptura sonora e, por último, relação

entre som/imagem da cena.

Vejamos um exemplo de uma cena do filme Capitão América de 2011. Nos quadrinhos, o

Capitão América foi um personagem criado em 1941 por Joe Simon e Jack Kirby por um

pedido do presidente norte-americano Franklin Roosevelt que vendo o sucesso dos super-

heróis nas HQs pediu a criação de um persoangem que representasse aos Estados Unidos.

O Capitão América foi criado com o intuito de representar o espírito da América, sua

ideologia.

Em sua origem ele era um franzino jovem patriota chamado Steve Rogers que almejava

lutar pelo seu país na guerra, mas o seu físico fraco o tornava inapto para o serviço militar.

Entretanto um general, admirando o espírito patriota do jovem, propõe-lhe participar como

cobaia de um projeto ultra-secreto do governo americano de Roosevelt intitulado de

Operação Renascimento.

O projeto visava transformar um homem comum em um ser dotado de força, agilidade e

inteligência fora do comum através do soro do supersoldado desenvolvido pelos cientistas

americanos. Era a busca pelo ser perfeito. O jovem Rogers aceita a proposta e se submete

ao processo. A experiência é um sucesso, mas há um espião nazista entre os cientistas que

mata o criador do projeto, Dr. Reinstein. Rogers tira a vida do espião ao jogá-lo sobre uma

rede de alta tensão. Surge, desse modo, o Capitão América. Seu maior inimigo seria o

Caveira Vermelha, indivíduo que ficara com habilidades sobre-humanas, mas com o rosto

deformado, ao ser utilizado como cobaia pelos nazistas com uma variante do soro do

supersoldado.

O uniforme do Capitão América possui as cores da bandeira norte-americana com uma

grande estrela branca em seu peito. Sua arma é um escudo – também com as cores da

bandeira – que segundo Soares (1977, p. 101) serve como uma insinuação simbólica de

que o Capitão e os Estados Unidos só atacam para se defender.

Em sua edição de estréia a capa da revista Captain América número 1 mostra Adolf Hitler

sendo atingido por um poderoso soco do Capitão América.

Descrição de cena do filme Capitão América (2011):

A cena possui 2min.53s. e começa com o Capitão América e um militar conversando em

uma sala pequena que aparenta ser um camarim. O militar discute a participação do

Capitão América como garoto propaganda do exército dos Estados Unidos em

apresentações em teatros e filmes:

Capitão América: não sei se consigo fazer isso.

Militar: Não tem nada de mais, é só vender alguns bônus, bônus compram balas, balas

matam nazistas, “pou”, você é um herói americano.

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Capitão América: Não foi assim que eu imaginei chegar lá.

Militar: O senador tem bastante influência, se cooperar conosco daqui a pouco vai operar

seu próprio pelotão. Pegue o escudo, vai.

Descrição da cena: o ambiente muda para um palco. O Capitão está com o uniforme e um

escudo retangular com as cores da bandeira norte-americana. Atrás dele, no palco várias

dançarinas cantam e dançam. Na plateia aparecem militares, crianças e políticos. O Capitão

América lê um papel preso atrás do escudo para a plateia:

Capitão América: Nem todos podemos invadir uma praia ou destruir um tanque, mas todos

podemos lutar de um jeito. Bônus de defesa, cada um que você compra é uma bala no cano

da arma do seu irmão.

Descrição da cena: A plateia aplaude, os políticos fazem expressões de satisfação com a

atuação do Capitão e a reação da platéia e o Capitão América continua o seu discurso:

Capitão América: Nós todos sabemos que isso tem a ver com ganhar a guerra. E não

podemos fazer isso sem munição, bandagens, tanques e barracas. É aí que você entra,

cada bônus que você compra vai ajudar a proteger alguém que você ama.

Descrição da cena: Nesse momento a câmera foca em um ator interpretando Hitler que

aparece sorrateiramente atrás das dançarinas. Posteriormente a câmera foca em crianças

da plateia que gritam: cuidado, atrás de você! Nesse momento a câmera volta a focar no

Capitão América e quando Hitler chega perto para ataca-lo o Capitão América desfere um

forte soco e nocauteia Hitler, os aplausos são gerais. A cena repete a imagem do soco no

personagem vestido de Hitler com o nome de várias cidades norte-americanas,

demonstrando que a apresentação ocorre em todo o país. Posteriormente aparecem cenas

de várias crianças comprando e lendo uma revista em quadrinhos do Capitão América, uma

reprodução da original lançada em 1941 onde ele atingia Hitler na capa. Depois a cena

apresenta filmes em preto e branco do Capitão América como garoto propaganda do

exército.

A escolha dessa cena se deveu a fatos relevantes para nosso trabalho. Ao aplicarmos uma

análise apenas imagética, ela nos mostra uma reprodução ao uniforme, escudo – ainda

triangular – do personagem, as cores da bandeira norte-americanas, além da ambientação

da segunda-guerra.

Em relação ao conjunto – imagem, som, diálogos, etc. – podemos dizer que essa cena

trabalha com uma memória da própria história do personagem e das histórias em

quadrinhos de super-heróis publicadas em 1941. Em especial a primeira revista do Capitão

América.

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Ilustração 1: Capa de Captain America, n. 1 de 1941

Fonte: Souza (2000)

Em 1941 o personagem Capitão América foi usado como propaganda norte-americana. Não

só a capa já o mostrava atacando Hitler – com forte teor ideológico – como ela era

distribuída em plena guerra aos soldados norte-americanos, que recebiam juntamente aos

seus suprimentos essenciais revistas de super-heróis – principalmente do Capitão América -

para levantar a moral, debochar dos inimigos e, desse modo, fortalecer ainda mais nas

mentes da tropa a ideologia norte-americana (A MÁQUINA, 2004).

A cena do filme adapta a imagem do uniforme, escudo e outros elementos, mas atualiza o

discurso ao atual contexto, visto que um personagem com tal teor ideológico não seria mais

tão bem aceito nem pelos norte-americanos – como a reformulação do personagem na

época da Guerra do Vietnã demonstrou. Desse modo, o filme trablha com a memória “real”

de uso ideológio do personagem na diegese do filme, onde o mesmo é usando na narrativa

fílmica como um garoto propaganda do governo norte-americano e a própria imagem da

revista de 1941 aparece no filme. Ele atingindo Hitler no teatro é uma reconstrução direta da

capa de 1941.

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Ilustração 2: Capitão América atinge Hitler em cena do filme de 2011

Fonte: Dial (2011-?)

Os diálogos de certa forma são satíricos a esse uso do personagem em 1941 e remetem a

fatos reais como o ataque à Normandia, quando o Capitão diz que: Nem todos podemos

invadir uma praia ou destruir um tanque, mas todos podemos lutar de um jeito. A cena é

mostrada de forma exagerada e satírica, retrabalhando uma memória da própria história dos

quadrinhos de super-heróis, da segunda guerra mundial, de uma tradição desses

personagens e do próprio cinema de guerra, com as cenas em preto e branco que procuram

reproduzir esse gênero de filme. O cinema de guerra, assim como as histórias em

quadrinhos de super-heróis da época, era usado “como veículo de idéias políticas,

econômicas e sociais” e eram “a arma mais poderosa para convencer um povo em guerra

acerca daqueles princípios indiscutíveis que tornam inevitável a vitória e que permanecem

sintetizados na absoluta superioridade técnica e moral sobre o inimigo” (ESPAÑA, 20-?).

Para Cirne (1982, p. 37), ideológica e politicamente heróis como o Capitão América “são a

própria segurança armada dos Estados Unidos, ao nível individual pequeno burguês, a partir

de um maniqueísmo interessante enquanto modelo ideológico” (CIRNE, 1982, p. 37).

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Ilustração 3: crianças e soldados leem uma reprodução da revista Captain America 1 de 1941 no

contexto do filme de 2011

Fonte: Dial (2011-?)

CONCLUSÃO

Vimos que as histórias em quadrinhos e o cinema são gêneros discursivos secundários e

plurilinguísticos, surgidos em finais do século XIX em um contexto de estabelecimento da

indústria cultural e de uma cultura de massa. Ambas têm como base uma tradição de

narrativas por meio da utilização de imagens. Tanto a linguagem das histórias em

quadrinhos como do cinema possuem a imagem como um de seus principais elementos,

entretanto o sentido somente pode ser criado ao agenciarmos diversos outros signos aliados

à imagem no processo de leitura das narrativas.

Os super-heróis foram personagens de suma importância para uma maior difusão das

histórias em quadrinhos ao redor do mundo e os primeiros personagens criados

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especificamente nessa forma de arte. Embora tenham sido constantemente adaptados ao

cinema, tal fato nunca havia ocorrido na intensidade atual.

Por meio de um fragmento do filme, Capitão América – O Primeiro Vingador, observamos

como o mesmo trabalha com uma memória dos quadrinhos de super-heróis e do contexto

de produção em que surgiram.

Desse modo, as adaptações cinematográficas de quadrinhos de super-heróis podem ser

vistas como enunciados pertencentes ao gênero discursivo cinematográfico que trabalha

tendo por base uma memória de gênero desses personagens. Como adaptação de diversas

histórias em quadrinhos produzidas nas últimas décadas, os filmes trabalham com uma

“intertextualidade”, onde buscam reconstruir um texto-fonte – no nosso caso, “textos-fonte” –

em um novo contexto.

Fortalecem, desse modo, o estabelecimento de adaptações de super-heróis no cinema e

apresenta-se como parte importante na criação de algo que, talvez, possamos intitular de

um “novo gênero no cinema”, o de “filmes de super-heróis” – assim como os de western,

horror, ação, etc. – que trabalham com uma memória de gênero oriunda dos quadrinhos

adaptados em uma reconstrução para outra linguagem.

Os super-heróis, como mitos da contemporaneidade (ELIADE, 2005), sofrem um constante

processo de construção e reconstrução para que possam continuar realizando suas funções

no imaginário. Os filmes da Marvel Studios, desse modo, assumem um papel de

reconstrução de mitos do século XX para uma nova linguagem, cuja narrativa é perpassada

pelas mais variadas vozes e cujos mais variados sentidos podem ser construídos.

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