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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020 1 O impacto da fotografia cinematográfica: análise do filme Birdie de Heloísa Passos 1 Kezi Santos de OLIVEIRA 2 Carolin Overhoff FERREIRA 3 Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP RESUMO Este artigo visa compreender o papel e a importância da fotografia cinematográfica na obra audiovisual. Partindo do ponto de vista de que esse trabalho não seja exclusivamente técnico, mas também criativo, será feito um levantamento dos estudos já existentes sobre a função da direção de fotografia no cinema em geral. Depois, passará para o recorte brasileiro, atentando-se à presença de profissionais mulheres no meio, dado que assim como em outros países a função do diretor de fotografia é vista demasiadamente como masculina. Posto isso, o trabalho analisará o curta-metragem Birdie (2015) de uma renomada diretora de fotografia brasileira, Heloísa Passos, para observar o impacto da fotografia no filme e como esse instrumento contribui para a narrativa do audiovisual através de recursos técnicos e estéticos. PALAVRAS CHAVE: Fotografia Cinematográfica; Recorte brasileiro; Mulheres; Heloísa Passos; Birdie. Introdução O cinema é uma arte coletiva. Para a realização da obra, o filme, é necessário o trabalho de muitas pessoas. No geral, os profissionais são divididos em grupos como de direção, montagem, arte, fotografia, som e produção. Apesar de a direção ser considerada o pilar da criação, todas as funções contribuem e interferem no resultado da obra. O diretor de fotografia Edgar Moura apresenta o problema dos créditos quando afirma em seu livro que “no sucesso, a nossa contribuição deixa de ser coletiva e passa a ser individual. Os créditos e as entrevistas serão sempre do diretor” (MOURA, 2001, p. 245- 246). Como se sabe, a arte cinematográfica se expressa através de imagens em movimento (e sons) para representar uma história desejada, seja ficcional ou não. Ao 1 Trabalho apresentado no IJ04 Comunicação Audiovisual, da Intercom Júnior XVI Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Estudante de Graduação do 5° termo do curso de História da Arte da UNIFESP, e-mail: [email protected]. 3 Orientadora do trabalho. Professora do curso de História da Arte da UNIFESP, e-mail: [email protected].

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O impacto da fotografia cinematográfica: análise do filme Birdie de Heloísa

Passos1

Kezi Santos de OLIVEIRA2

Carolin Overhoff FERREIRA3

Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP

RESUMO

Este artigo visa compreender o papel e a importância da fotografia cinematográfica na

obra audiovisual. Partindo do ponto de vista de que esse trabalho não seja exclusivamente

técnico, mas também criativo, será feito um levantamento dos estudos já existentes sobre

a função da direção de fotografia no cinema em geral. Depois, passará para o recorte

brasileiro, atentando-se à presença de profissionais mulheres no meio, dado que assim

como em outros países a função do diretor de fotografia é vista demasiadamente como

masculina. Posto isso, o trabalho analisará o curta-metragem Birdie (2015) de uma

renomada diretora de fotografia brasileira, Heloísa Passos, para observar o impacto da

fotografia no filme e como esse instrumento contribui para a narrativa do audiovisual

através de recursos técnicos e estéticos.

PALAVRAS – CHAVE: Fotografia Cinematográfica; Recorte brasileiro; Mulheres;

Heloísa Passos; Birdie.

Introdução

O cinema é uma arte coletiva. Para a realização da obra, o filme, é necessário o

trabalho de muitas pessoas. No geral, os profissionais são divididos em grupos como de

direção, montagem, arte, fotografia, som e produção. Apesar de a direção ser considerada

o pilar da criação, todas as funções contribuem e interferem no resultado da obra. O

diretor de fotografia Edgar Moura apresenta o problema dos créditos quando afirma em

seu livro que “no sucesso, a nossa contribuição deixa de ser coletiva e passa a ser

individual. Os créditos e as entrevistas serão sempre do diretor” (MOURA, 2001, p. 245-

246).

Como se sabe, a arte cinematográfica se expressa através de imagens em

movimento (e sons) para representar uma história desejada, seja ficcional ou não. Ao

1 Trabalho apresentado no IJ04 – Comunicação Audiovisual, da Intercom Júnior – XVI Jornada de Iniciação Científica

em Comunicação, evento componente do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Estudante de Graduação do 5° termo do curso de História da Arte da UNIFESP, e-mail: [email protected]. 3 Orientadora do trabalho. Professora do curso de História da Arte da UNIFESP, e-mail: [email protected].

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introduzir o livro, os autores Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété apontam a interessante

ideia de que “estamos cercados por um dilúvio de imagens, seu número é tão grande,

estão presentes tão ‘naturalmente’, são tão fáceis de consumir que nos esquecemos de que

são o produto de múltiplas manipulações, complexas, às vezes muito elaboradas”

(VANOYE e GOLIOT- LÉTÉ, 2012, p.13).

Conforme as divisões dentro da produção, o responsável por capturar e muitas

vezes idealizar essas imagens manipuladas é o diretor(a) de fotografia. Certamente, esse

técnico e artista tem ajuda de outros profissionais, pois tem responsabilidade sobre a

equipe de câmera, formada por assistentes, eletricistas e maquinistas. Mas, o trabalho do

autor das imagens é vigorosamente atribuído como uma ocupação somente técnica. O

diretor de fotografia Blain Brown em seu livro sobre a cinematografia diz que “é

importante que a análise da direção de fotografia vá além dos aspectos meramente

técnicos da fotografia cinematográfica” (BROWN, 2012, p. 16).

Com isso, chega-se à necessidade de uma abordagem estética da fotografia

cinematográfica, considerando, como Jacques Aumont (2006) afirma em A estética do

filme, que esse modo de abordar o cinema o considera como arte e estuda os filmes como

expressões artísticas. Sobre as perguntas a serem feitas para os filmes, Francis Vanoye e

Anne Goliot-Lété (2012) indicam que essas questões devem ser centradas no “como” e

não no “por que”. Por conseguinte, será preciso uma análise das imagens, pensando como

elas comunicam a história idealizada no roteiro, observando que utilizam de dados

técnicos para expressar e ressaltar emoções na fotografia através de diferentes

enquadramentos e trabalhos com iluminação, mantendo diálogos com a história da

pintura, da fotografia e do próprio cinema.

Para tratar dessa preocupação, ou seja, para melhor compreender a participação

da fotografia no produto, filme, o recorte neste texto se debruça sobre o cinema nacional,

visando contribuir na formação de conhecimento sobre a direção de fotografia brasileira

e contemporânea. Aqui, como em outros países, essa função é fortemente atribuída a

homens, embora existam diversas mulheres de destaque que ocupam a profissão no

Brasil. Consequentemente, mesmo com algumas raras exceções, muitos estudos

cinematográficos além de seguirem o “método” dos estudos sobre a direção, quando se

voltam para a direção de fotografia, aparecem seguidamente nomes masculinos. Por isso,

este artigo se volta para a produção de uma estimada diretora de fotografia brasileira,

Heloísa Passos. Especificamente, para a análise de um curta-metragem chamado Birdie

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(2015), em que é bastante notória a contribuição da fotografia cinematográfica para a

narrativa do filme da qual essa diretora de fotografia também foi diretora.

A metodologia empregada consistiu, primeiramente, na realização de uma revisão

bibliográfica sobre a função e o papel da direção de fotografia no cinema, tanto de estudos

voltados mais para a parte técnica – em manuais de cinematografia –, como estudos mais

teóricos, históricos e críticos, inclusive, textos relevantes escritos por diretores e diretoras

de fotografia. Após isso, foi feita a decupagem, através de screenshots das imagens, de

sequências específicas do filme Birdie para a posterior descrição e a análise das imagens,

seguiu-se então o método proposto por Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (2012) no

livro Ensaio sobre a análise fílmica, que se baseia em uma “desconstrução” do objeto

fílmico, ou seja, em decompô-lo (decupagem) em seus elementos constitutivos (visual,

fílmico, sonoro e audiovisual). No estudo de caso foi focado, sobretudo, na parte visual,

que inclui a descrição de planos, ângulos, cores, movimentos, foco, moldura e iluminação,

para fazer compreender as escolhas estéticas. Além de estabelecer associações e elos com

outras expressões artísticas, como, por exemplo, com a pintura. A etapa seguinte foi a

chamada “reconstrução” em que se dá a interpretação do que fora observado e levantado,

fundamentada na bibliografia estudada, considerando os contextos das sequências e

relacionando, sobretudo, com o roteiro do filme.

Para tal, este artigo está divido em três seções e as considerações finais. A primeira

apresenta de modo geral alguns estudos que discorrem sobre a função do diretor de

fotografia e o impacto da fotografia cinematográfica na produção audiovisual. A segunda

expõe o levantamento feito sobre o cinema brasileiro, considerando a presença de homens

e mulheres no cargo e seu estudo em pesquisas. A última compreende, de fato, a análise

das imagens do curta-metragem Birdie e como elas contribuem para a narrativa do filme,

e, por fim, as considerações finais.

A função da direção de fotografia e o seu impacto na obra

Ao falar sobre a direção de fotografia no cinema em geral, existem algumas

considerações a serem elencadas. Primeiro, sobre a relação entre os membros da equipe

cinematográfica e de suas respectivas funções. O estadunidense Blain Brown diz que “o

DF [diretor de fotografia] é o principal responsável por dar ao diretor o que ele quer e

também por alcançar o estilo fotográfico determinado.” (BROWN, 2012, p. 289) A

concepção do fotógrafo brasileiro Edgar Moura não é muito diferente:

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“a relação técnica entre o diretor e o fotógrafo é esta: o diretor escolhe, o fotógrafo

melhora o que foi escolhido pelo diretor. Melhora em termos de enquadramentos, de

movimentos de câmera e outros componentes visuais” (MOURA, 2001, p. 249).

Já o ponto de vista de Ricardo Aronovich, reconhecido diretor de fotografia

argentino, ao falar sobre essa relação e as decisões sobre a composição da imagem, é que:

Mas em geral os diretores – salvo algumas exceções [...] – não

conhecem ou não se interessam suficientemente pela fotografia, e por

isso não são capazes de exigir com precisão o estilo de imagem que lhes

convém. (ARONOVICH, 2004, p. 72-73)

André Reis Martins (2004), em sua dissertação A luz no cinema também utiliza de

alguns exemplos na história do cinema4 para mostrar como a relação entre o diretor do

filme e o diretor de fotografia é muitas vezes “complexa” e merece ser considerada para

entender o processo e o resultado da obra fílmica. Pois, afinal, existem diferentes tipos de

diretores (alguns que “limitam mais” e outros que dão mais liberdade de escolha para o

diretor de fotografia).

A segunda consideração é que as funções exercidas por essa parte da equipe

cinematográfica podem variar de acordo com o país situado. O brasileiro Edgar Moura

(2001) explica essa questão em seu livro citando alguns países. Por exemplo, na

Inglaterra, a escolha de câmeras e lentes é entre o diretor e o operador de câmera, ficando

a responsabilidade da iluminação do filme sobre o fotógrafo.

Porém, ao mencionar o caso brasileiro, Edgar Moura define “quem resolve o que

será a imagem, e isso incluindo luz e câmera, é o diretor de fotografia” (MOURA, 2001,

p. 211). Mas que, além disso, para resolver e formar as imagens, não depende somente de

um conhecimento científico sobre os equipamentos, é preciso saber de arte. Pois o diretor

de fotografia deve ter como objetivo criar um conceito geral para a fotografia do filme

que dependerá de dados abstratos e artísticos. Edgar Moura (2001) explica isso melhor

quando afirma que os diretores de fotografia navegam entre ciência e arte.

Nesse navegar gera o interessante encontro entre o saber técnico com o artístico

para colaborar na forma de contar e mostrar a narrativa. Sobre isso, o diretor de fotografia

Jorge Monclar afirma que “o profissional que fica atrás das câmeras captando imagens é

o principal colaborador que quem necessita delas para narrar a sua história audiovisual”

4 Um desses exemplos é o caso da fotografia inovadora de Cidadão Kane (1941), principalmente pelo aspecto da

profundidade de campo, que foi aclamada e gerou problemas quanto aos créditos. A discussão foi gerada entre Gregg

Toland, o diretor de fotografia, e Orson Welles, o diretor.

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(MONCLAR, 1999, p. 9). Segundo Blain Brown, “muitos requisitos aparentemente

mecânicos podem ser usados como formas de expressão visual” (BROWN, 2012, p. xiii)

e explica como que através da utilização de ferramentas visuais, como luz e cor, a textura,

o movimento, a ambientação e o ponto de vista, é possível adicionar camadas extras de

significado ao conteúdo da história.

Evidentemente, existem inúmeros fatores que permitem que a fotografia de uma

obra seja totalmente diferente de outra, como roteiro, sets, horários, equipamentos como

câmeras e lentes, dentre muitos outros motivos. No entanto, se um mesmo filme tivesse

que ter suas imagens capturadas por diversos fotógrafos, considerando que todos os

elementos da produção fossem o mesmo, os resultados poderiam ser muito diferentes.

Isso porque existem formas de se fazer diferenciadas, uma questão que talvez não seja

tão notória.

Ao falar de seu processo, Edgar Moura afirma que “quando leio o roteiro de um

filme. Vejo imagens.” (MOURA, 2001, p. 221) Ou seja, ele vê determinadas imagens

que, obviamente, não serão vistas da mesma forma por outro (a) fotógrafo (a). Nesse

sentido, também poderiam existir semelhanças entre filmes fotografados pelo mesmo

artista.

Com a tese de Rogério Luiz Silva de Oliveira, Memória e criação na direção de

fotografia, é possível se ater, ainda mais, à ideia de que a função da direção de fotografia

é expressa também artisticamente e que para isso, como explica o autor, o/a artista utiliza

(conscientemente ou não) da faculdade denominada memória, ou seja, de sua formação

social e cultural (OLIVEIRA, 2016).

Bem como, Rogério Luiz destaca a importância de considerar o processo autoral

de cada artista, suas particularidades e singularidades. Como faz tratando dos diretores de

fotografia brasileiros muito prestigiados: Edgar Brazil, Dib Lutfi e Walter Carvalho. Até

mesmo de pensar sobre como a diferença de tempo e época da produção pode afetar no

processo e resultado do filme, sobretudo, por causa das inovações de materiais e

equipamentos.

Através das questões apresentadas, é possível perceber o quanto a direção de

fotografia é uma função importante para a concepção da obra fílmica e, por causa disso,

deve ser notada e investigada pelos estudos cinematográficos. A bibliografia brasileira,

além de alguns trabalhos teóricos, possui um trabalho, que é o catálogo Luz em

Movimento, com diversos artigos a respeito, resultado da Mostra “Luz em Movimento –

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A Fotografia no Cinema Brasileiro”, realizada pela Caixa Cultural do Rio de Janeiro em

2007.

Com a função de aproximar o público à fotografia no cinema brasileiro, além do

reconhecimento dos diretores de fotografia, uma das justificativas utilizadas para a

elaboração da mostra foi que os modos de “narrar” e “organizar” a história do cinema

brasileiro, as definições historiográficas (como “ciclos regionais”, a Vera Cruz, o Cinema

Novo, o Cinema Marginal etc.) não priorizam uma visão estética e que o recorte estético

fotográfico é, infelizmente, pouco explorado. (KAUFMAN e ADES, 2007)

O recorte brasileiro: diretores e diretoras de fotografia

No Brasil, mesmo que se comparado aos estudos sobre a direção no cinema essa

preocupação em termos de quantidade ainda seja menor, já existem estudos e

pesquisadores interessados na importância da direção de fotografia. A começar pela

realização de um dicionário de fotógrafos cinematográficos elaborado pelo pesquisador e

escritor Antonio Leão da Silva Neto em 2010.

Conjuntamente, existem trabalhos escritos pelos próprios profissionais, como 50

anos: Luz, câmera e ação de Edgar Moura (2001); a tese de Rogério Luiz (2016) Memória

e Criação na Direção de Fotografia e o artigo “Mulheres atrás das câmeras: a presença

feminina na direção de fotografia de longas-metragens ficcionais brasileiros” de Marina

Tedesco (2016). Além do livro A Luz Imagem de Walter Carvalho, organizado por

Angélica Coutinho, Breno Lira Gomes, Carla Barbosa (2014), que reúne reflexões e

textos do próprio diretor de fotografia.

Todos esses textos são de grande relevância e possuem contribuições

diferenciadas para o estudo da Direção de Fotografia. Entretanto, existe a problemática –

que se manifesta também em outras artes –: o reduzido número de profissionais mulheres

não só na função, mas, também, nos estudos. Durante a pesquisa, encontrou-se um

comentário do cineasta e ensaísta Paulo Augusto Gomes sobre a pouca quantidade de

mulheres no dicionário de Antonio Neto (18 mulheres5 entre o total de 470 profissionais

da fotografia) na apresentação. Ele afirma:

Essa é uma tendência que deverá sofrer gradativa alteração, uma vez

que os novos equipamentos, menos pesados e mais portáteis, facilitam

5 São elas: Rosa Berardo, Ana Lúcia Braga, Maritza Caneca, Andrea Capella, Kátia Coelho, Lisiane Cohen, Kika

Cunha, Janice D’ávila, Ella Durst, Sofia Frederico, Raquel Gerber, Paula Gaitán, Jane Malaquias, Maria Amélia

Palhares, Heloísa Passos, Tânia Quaresma, Fernanda Riscalli, Marilia Rocha.

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o trabalho feminino, permitindo maior agilidade. Nossa época é

marcada por uma democratização da atividade cinematográfica, que só

pode ser benéfica e atraente. (NETO, 2010, p.12-13)

Afirmação que parece ser problemática, pois não aparenta considerar os

problemas socioculturais acerca do espaço da mulher na sociedade que é responsável pelo

número pequeno. Apesar disso, avanços começam aparecer como a formação do Coletivo

de Diretoras de Fotografia do Brasil em 20166 e que está contribuindo para o

reconhecimento dessas artistas e profissionais.

Marina Tedesco (2016), pesquisadora e diretora de fotografia, evidencia em seu

artigo como essa função dentro do cinema é predominantemente ocupada por homens e

como é vista como um trabalho masculino, desde seu enraizamento através da utilização

da palavra cameraman para denominar o/a profissional da direção de fotografia. Além de

falar a respeito das atitudes machistas dentro dos sets que afetam de alguma maneira à

permanência das diretoras de fotografia.

Tedesco (2016) fala do caso brasileiro e menciona as pioneiras nas equipes de

fotografia no Brasil no âmbito de longas-metragens ficcionais, que são as diretoras de

fotografia Márcia Lara em 1984 e Kátia Coelho (que permanece atuante) em 1990, e a

assistente de câmera Luelane Corrêa em 1981. Agora, segundo os dados e filmografia

apresentados pelo dicionário de Antonio Leão (2010), que considera curtas e longas, de

ficção e de não ficção, as pioneiras foram: Tânia Quaresma (hoje atua como diretora) em

1972 com o curta-metragem Gastarbeit e Ella Durst (hoje fotógrafa de moda) em 1972

com o filme Cinco Patamares que dirigiu e fotografou com Chico Botelho.

Em relação aos estudos, a dificuldade em encontrar a presença feminina nos

trabalhos já existentes é ainda maior. Como por exemplo, no catálogo Luz em movimento.

Dentre todos os 32 filmes citados, nenhum tem a direção de fotografia assinada por

alguma artista. Nas considerações finais do artigo da diretora de fotografia Marina

Tedesco (2016), ela afirma que uma das funções da pesquisa e do seu texto é a de

estimular mais estudos sobre essas profissionais do presente e do passado.

Por isso e por outros fatores, chega-se à renomada diretora de fotografia Heloísa

Passos. Antonio Neto, ao falar sobre a fotógrafa em seu livro, afirma que “Heloísa hoje é

das mais competentes e ativas profissionais do Cinema Brasileiro.” (NETO, 2010, p. 109)

6 O coletivo tem um site https://www.dafb.com.br/quem-somos que também considera, além de diretoras de fotografia,

outras funções que formam a equipe de fotografia, como assistentes de câmera, operadoras, maquinistas, eletricistas,

cinegrafistas, coloristas e entre outras funções. Acesso em: 05 fev. 2020.

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Passos é membra da ABC (Associação Brasileira de Cinematografia7) e além de diretora

de fotografia, também é diretora. Ela realizou trabalhos nacionais e internacionais, curtas-

metragens e longas-metragens entre ficcionais e não ficcionais.

Em um dos periódicos da reconhecida revista norte-americana American

Cinematographer8 (2007), a diretora Heloísa Passos é referenciada pela contribuição no

documentário estadunidense Send a Bullet/Manda Bala (2007), com direção de Jason

Kohn. Passos foi responsável pela cinematografia do filme e recebeu o Prêmio de

Excelência em Cinematografia no Sundance Film Festival de 2007. No ano de 2015,

Heloísa Passos participou como cineasta e diretora de fotografia de dois documentários

para o projeto internacional Field of Vision9 da First Look Media10. Um dos filmes que

produziu e fotografou foi o filme que escolhemos para análise: Birdie.

Análise da fotografia no filme Birdie de Heloísa Passos

A obra audiovisual Birdie é um curta-metragem do ano de 2015, dirigido e

fotografado por Heloísa Passos. O filme apresenta a história de Anderson Bernardes

Carneiro, um vendedor ambulante de frutas e legumes, com a ideia de acompanhá-lo em

um dia de sua vida, que começa pela manhã e se encerra à noite. “Birdie”, como é seu

apelido, é um homem negro que vive e trabalha no Rio de Janeiro. Além disso, ele tem

dois cachorros, Pipoca e Bel, sendo o companheirismo com eles um dos elementos mais

bem considerados na narrativa.

A escolha de determinados planos e de diferentes modos de compor a fotografia

cinematográfica, a estratégia visual, como Gustavo Mercado (2011) define as decisões

em relação a materiais, formatos, objetivas e iluminação, podem ressaltar questões

relevantes para a história. Estudar filmes através dos seus planos é recorrente, pois, como

o diretor de fotografia Joseph V. Mascelli afirma em seu livro sobre cinematografia “cada

plano deve representar uma parte da história da melhor forma possível.” (MASCELLI,

2010, p. 63) O diretor e fotógrafo Gustavo Mercado também faz referência à importância

dos planos quando diz que ela “fornece uma exploração profunda e discursiva de um dos

elementos fundamentais da linguagem visual do cinema – o plano.” (MERCADO, 2011,

7 A associação foi fundada em 2000 com o objetivo de reunir os profissionais da direção de fotografia e para a troca de

informações técnicas e artísticas entre esses. Ver mais em: https://abcine.org.br/site/abc/. Acesso em: 05 fev. 2020. 8 A revista é uma das mais influentes sobre o pensamento e estudos da importância da cinematografia. Ver mais em:

https://ascmag.com/. Acesso em: 02 mar. 2020. 9 Unidade documental norte-americana. Ver mais em:https://www.fieldofvision.org/. Acesso em: 16 jan. 2020. 10 Ver mais sobre a empresa de mídia, lançada em 2013, em: https://firstlook.media/. Acesso em: 16 jan. 2020.

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p. XIV) De fato, o livro apresenta um estudo detalhado dos diversos planos e sempre

considera a iluminação ao final de cada apresentação, e nesse sentido, a análise da

fotografia de Birdie também admite essa relevância.

Existe um plano interessante de destacar porque se repete muitas vezes ao longo

do filme. Enquadra o carrinho empurrado por Birdie através de um plano de ângulo amplo

que deixa as frutas ou verduras em primeiro plano e mostra o protagonista em segundo

plano, dando assim destaque aos produtos que ele vende para se manter, conforme vemos

nas figuras 1 e 2 abaixo:

Fig. 1 – Plano médio do carrinho com frutas. Fig. 2 – Plano médio do carrinho com verduras.

Fonte: Field of Vision, 2015.

Os planos realçam a mercadoria de Anderson que ele leva em seu carrinho para

vender pelas ruas da cidade. Compreende-se melhor essa escolha estética quando

ouvimos Gustavo Mercado ao falar sobre a divisão da composição na imagem

cinematográfica:

Cada objeto incluído em um quadro carrega um peso visual. Tamanho,

cores, brilho e posicionamento de um objeto podem afetar a percepção

do público em relação ao peso visual relativo, tornando possível criar

composições que parecem balanceadas [...] ou não balanceadas.

(MERCADO, 2011, p. 8)

Desse modo, podemos dizer que o peso visual nas imagens está nos produtos, pois

além de estarem localizados no primeiro plano, ocupam parte significativa do quadro e

destacam-se por suas cores, amarelo e verde, e o brilho sobre elas. O estadunidense Blain

Brown diz que o diretor de fotografia “é um artista que lida com as cores em um nível

pictórico e emocional” (BROWN, 2012, p. 234), e na qual esse artista pode realizar

mudanças através de elementos como matiz, valor, croma e temperatura de cores.

Por meio da escolha da disposição da câmera, que dá mais ênfase e imponência às

frutas e verduras e que torna a composição focada não no protagonista, mas na atividade

que exerce através da carga que transporta, as imagens trazem de certa maneira uma ideia

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de fartura. Esse pensamento se reforça quando se estabelece um diálogo visual com as

pinturas de natureza-morta, tradição que surgiu no século XVI nos Países Baixos quando

o comércio ultramarino trouxe novos alimentos. Esse tipo de iconografia foi importado

para o Brasil Colonial, como podemos confirmar na figura 3. Pintores estrangeiros

criaram um imaginário do esplendor tropical e de uberdade alimentar do território

dominado.

Fig. 3 – Albert Eckhout, Bananas, goiaba e outras frutas, 164?. Óleo sobre tela, 91 cm x 91 cm.

Nationalmuseet, Copenhague, Dinamarca11.

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2017.

Izabel Maria dos Santos em sua monografia sobre o pintor holandês Albert

Eckhout e o Novo Mundo: Transformação ou Manutenção de Imaginários? Explica bem

a função que essas obras tinham quando afirma que:

Objetivo este de fazer propaganda das riquezas da região sob domínio

da gloriosa Companhia das Índias Ocidentais, Albert Eckhout pintou

diferentes telas e nelas deixou transparecer a riqueza e fertilidade

daquelas terras. (SANTOS, 2010, p.20)

Com essa aproximação entre a escolha do ângulo e a pintura de Eckhout, que

buscava representar a fartura brasileira, a fotografia do filme afirma que existe algum tipo

de riqueza e beleza no cotidiano de Birdie e que vão além do fato de que ele seja pobre.

É uma tentativa de oferecer imagens contrárias às da miséria de quem vive na rua, embora

possa ser considerado paradoxal essa comparação ou ressignificação do imaginário

europeu.

Outra questão com que a cinematografia do curta-metragem se preocupa são os

companheiros de Anderson, seus cachorros. As figuras 4, 5 e 6 abaixo mostram como

Heloísa Passos evidencia através de recorrentes close-ups a presença dos animais e como

são tratados com carinho e bem cuidados pelo dono que faz questão de lhes oferecer um

11 Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra24495/bananas-goiaba-e-outras-frutas. Acesso em: 26

mar. 2020.

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lugar seguro abaixo do carrinho durante suas andanças, lava-os com frequência e brinca

com eles. O que o diretor Gustavo Mercado diz sobre a escolha desse plano é que

“a proximidade e a intimidade de um close-up permitem que o público entre em contato

com um personagem (e uma história) em um nível emocional que ajudou a transformar o

cinema na forma artística mais popular do mundo” (MERCADO, 2011, p.35).

Fig. 4 - Close-up de Bel. Fig. 5 –Close-up de Pipoca. Fig. 6 – Plano com câmera em altura baixa.

Fonte: Field of Vision, 2015.

Essa intimidade é mostrada até chegar ao ponto de a fotografia, como na figura 6,

utilizar o que Blain Brown define como “doggie-cam” (BROWN, 2012, p. 35), ou seja,

quando a câmera está localizada pelo ponto de vista de um cachorro em sua altura. A

sequência é disposta de muito movimento, a câmera se desloca como se realmente fosse

o corpo e olhar de um cachorro. A direção de fotografia utiliza desse recurso técnico para

tentar expressar como é a empolgação dos companheiros de Birdie e, sobretudo, como

essa relação é tão sincera e mútua entre Anderson e os seus animais.

Na sequência de planos (figuras 7-9), o filme apresenta outro aspecto do cotidiano

de Birdie, seu enorme empenho de força física para trabalhar e sobreviver:

Fig. 7 – Plano Geral de perfil. Fig. 8 – Close na ação de Birdie. Fig. 9 – Close na expressão de Birdie.

Fonte: Field of Vision, 2015.

A sucessão das imagens acima começa com um plano geral, que destaca a

velocidade de Birdie comparada aos outros automóveis, para chegar também em close-

ups. De acordo com Mercado (2011, p.35), “a característica mais importante de um close-

up é que ele permite que o público veja as nuances do comportamento e da emoção de

um personagem (especialmente quando a expressão facial é importante).” Neste caso, a

expressão facial, posterior a figura 8 que ressalta o vigor, é essencial para reforçar esse

aspecto do esforço de Anderson para viver.

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Heloísa Passos também usa de outros recursos cinematográficos além de closes

para dar ênfase a partes da narrativa. Edgar Moura (2001, p. 433) diz que “uma fotografia

bem composta conduz o olhar para o seu centro de interesse.” E nesse caso, a fotografia

utiliza do recurso da moldura, como o diretor de fotografia Joseph V. explica: “as

molduras contém a ação e evita que os olhos do espectador escapem da tela.”

(MASCELLI, 2010, p. 267), Passos dá ênfase na ação de Birdie arrumando as verduras

que irá vender, e principalmente no seu carrinho que ocupa o centro da imagem, através

de um elemento disposto na locação:

Fig. 10 – Plano americano com moldura.

Fonte: Field of Vision, 2015.

Além das análises dos planos, o estudo das sequências também se faz relevante na

obra audiovisual. Acerca disso Harris Watts (1999, p. 35) afirma que “uma sequência é

um parágrafo visual, um agrupamento de tomadas que registram um evento ou

compartilham uma ideia do filme pronto.” A última sequência do filme Birdie mostra-se

bastante significativa e parece considerar um dos princípios cinematográficos para

compô-la, isso é, como diz Mascelli (2010, p. 247), “sempre se esforce por preservar a

unidade de estilo do começo ao fim de uma sequência.” Neste caso, essa unidade é

atingida através da iluminação.

Fig. 11 – Plano próximo Fig. 12 – Plano médio Fig. 13 – Plano americano Fig. 14 – Plano próximo

Fig.15 – Plano geral (cidade) Fig. 16 – Plano geral Fig. 17 – Plano médio Fig.18 – Plano final do filme

Fonte: Field of Vision, 2015.

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Essa parte final do filme é igualmente o final do dia de Birdie. Agora é noite, e os

planos são marcados por um trabalho de iluminação, chiaroscuro, bastante elaborado,

dando mais emoção ao curta-metragem. De acordo com Blain Brown, “um dos objetivos

da boa iluminação é o ‘clima e tom: conteúdo emocional’.” (BROWN, 2012, p. 104)

Moura (2001), por sua vez, afirma que para a formação de futuros fotógrafos é necessário

o estudo de pintores. Aronovich (2004, p. 100) também diz que “a criação do diretor de

fotografia enquanto autor da imagem artística, graças ao claro-escuro, é subordinada às

mesmas leis que as demais artes figurativas.” Novamente, como já vimos em relação à

natureza morta, existe aqui um diálogo com a tradição europeia de pinturas do

Renascimento e Barroco. Esta vez, o modo como a luz é construída na sequência se

assemelha muito com pinturas de artistas como as do holandês Rembrandt (1606-1669)

de quem reproduzimos A parábola do homem rico.

Fig.19 – Rembrandt Harmenszoon van Rijn, A parábola do homem rico, 1627. Óleo sobre tela, 31,90 x

42,50 cm. Gemäldegalerie, Staatliche Museen zu Berlin, Germany12.

Fonte: Gemäldegalerie der Staatlichen Museen zu Berlin, 2020.

Além disso, as imagens parecem considerar alguns elementos que são tidos como

princípios da cinematografia. Na figura 11, Birdie está em segundo plano e a iluminação

quase não o deixa ver, a não ser os seus olhos. De acordo com os profissionais da área, se

trata de “uma prática comum utilizar um brilho nos olhos para evitar um olhar sem vida

(olhos sem um ponto brilhante)” (MERCADO, 2011, p. 35) ou que “a função do ataque,

que é fazer brilhar os olhos [...]. Sem olhos, sem alma. Como as esculturas” (MOURA,

2001, p.60). Assim, a fotografia considera Birdie como um ser com vida, mesmo que ele

esteja invisível para a maioria das pessoas, que o ignoram.

12Disponível em: http://www.smb-digital.de/eMuseumPlus?service=ExternalInterface&module-

collection&objectId=868235&viewType=detailView. Acesso em: 26 mar. 2020.

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Outra ideia é a de que “um dos objetivos primordiais da boa direção e da boa

filmagem é fazer os elementos visuais reforçarem os elementos narrativos” (BROWN,

2012, p. 26). Isto acontece no curta-metragem também através da iluminação. Segundo a

narrativa do filme e como Birdie diz em uma sequência anterior, as pessoas só o enxergam

quando está com o seu carrinho cheio, ao contrário, não.

Na sequência final, a iluminação quase não paira sobre Anderson (figuras 12,13 e

14), e considerando que “os olhos se dirigem primeiramente para a parte iluminada da

cena” (WATTS, 1999, p. 91), ela prioriza e se concentra no carrinho e nos produtos com

uma luz dura. Isto contradiz sua fala anterior e reforça visualmente a sua posição e fala

na própria sequência. Birdie afirma que mesmo com essas pessoas que não o enxergam

(a mídia, a crítica e a burguesia), ele irá conquistar o seu espaço, eles querendo ou não.

Em outras palavras, a iluminação da fotografia que destaca os produtos, confirma que

mesmo Anderson estando com o carrinho cheio, as pessoas não o enxergam, o interesse

está nas mercadorias e só nelas.

Considerações Finais

É sabido que a narrativa de um filme depende em termos estéticos muito de sua

direção de fotografia. No entanto, ela costuma ser atribuída ao diretor e não ao diretor de

fotografia. Tanto para filmes de ficção ou de não ficção, como é o caso de Birdie. Através

de seus recursos técnicos, juntamente do repertório cultural e social, a fotografia

cinematográfica interfere profundamente no significado do filme, proporcionando o

universo imagético à história proposta pelo roteiro. Sendo assim, ela deve receber um

olhar mais atento e que a considere como parte de um processo não meramente técnico,

mas também, artístico e criativo. Com a função de impactar, de criar uma visão, através

das imagens, sobre o mundo, ela pode estabelecer, por exemplo, diálogos com a história

da pintura e do próprio cinema.

Diante do recorte sobre o caso brasileiro e ao escolher uma diretora que

anteriormente trabalhava sobretudo como diretora de fotografia, o que se confirma para

mais é o quanto ainda se faz necessário pesquisas cinematográficas voltadas para as

diversas funções pelas quais a arte cinematográfica é composta. Deveria haver uma maior

atenção ao fato de que a fotografia de cinema depende de um outro profissional – ou como

no caso aqui abordado, de uma profissional mulher – e contemplar isso nesses estudos

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que costumam ser orientados quase exclusivamente à direção, isto é, as pesquisas

atribuem os créditos do resultado de todo o filme à direção. De maneira específica, Birdie

é um entre outros filmes em que a fotografia, elaborada por Heloísa Passos, afeta de

maneira evidente o curta-metragem, dirigido também por ela. A comparação deste filme

com outros filmes nos quais ela “apenas” fez a fotografia, revelará o forte impacto que a

cinematografia possui no audiovisual.

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