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Súmula 619-STJ – Márcio André Lopes Cavalcante | 1 Súmula 619-STJ Márcio André Lopes Cavalcante DIREITO CIVIL OCUPAÇÃO INDEVIDA DE BEM PÚBLICO Súmula 619-STJ: A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias. STJ. Corte Especial. Aprovada em 24/10/2018, DJe 30/10/2018. Imagine a seguinte situação: No Distrito Federal ainda há alguns terrenos, especialmente em locais mais afastados, que pertencem ao Governo do Distrito Federal e que estão sem edificação ou utilização. Em outras palavras, são áreas de terra sem nada construído ainda. A maioria desses imóveis está em nome da Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP. A TERRACAP é uma empresa pública que pertence ao DF e tem por objetivo executar as atividades imobiliárias de interesse do Distrito Federal. Imagine que um grupo de pessoas “sem casa” invade um imóvel da TERRACAP. Neste lugar, que era apenas um terreno plano, sem qualquer edificação, estes invasores constroem 10 casas, onde passam a morar com as suas famílias. Além disso, fazem também galinheiros e outras benfeitorias, além de plantações de milho, mandioca, feijão, cana e frutas. Esses particulares permanecem no local por mais de 20 anos. A TERRACAP, então, finalmente, decide ingressar com uma ação reivindicatória contra os “invasores”. A partir dessa situação, podemos fazer algumas perguntas: Se os ocupantes da área alegarem, em sua defesa, a existência de usucapião (Súmula 237-STF), este argumento poderá ser acolhido pelo juízo? NÃO. Isso porque o imóvel pertence ao poder público (empresa pública). Trata-se, portanto, de bem público e os bens públicos não estão sujeitos a usucapião, conforme preveem os arts. 183, § 3º e 191, parágrafo único, da CF/88 e o art. 102 do Código Civil. Segundo o art. 98 do Código Civil: Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Se fôssemos levar em consideração a redação literal do art. 98 do CC, este imóvel não poderia ser considerado como bem público, considerando que a TERRACAP é uma empresa pública (pessoa jurídica de direito privado). No entanto, a doutrina defende que também deve ser considerado bem público aquele pertencente à pessoa jurídica de direito privado que seja prestadora de serviço público quando este bem estiver vinculado à prestação dessa atividade. Nesse sentido: CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 391. Esta orientação é acolhida pela jurisprudência, conforme aconteceu quando o STF reconheceu que os bens dos Correios (empresa pública federal) são impenhoráveis: Os bens, as rendas e os serviços da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos são impenhoráveis e a execução deve observar o regime de precatórios. STF. 1ª Turma. RE 393032 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 27/10/2009.

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Súmula 619-STJ Márcio André Lopes Cavalcante

DIREITO CIVIL

OCUPAÇÃO INDEVIDA DE BEM PÚBLICO

Súmula 619-STJ: A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias.

STJ. Corte Especial. Aprovada em 24/10/2018, DJe 30/10/2018.

Imagine a seguinte situação: No Distrito Federal ainda há alguns terrenos, especialmente em locais mais afastados, que pertencem ao Governo do Distrito Federal e que estão sem edificação ou utilização. Em outras palavras, são áreas de terra sem nada construído ainda. A maioria desses imóveis está em nome da Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP. A TERRACAP é uma empresa pública que pertence ao DF e tem por objetivo executar as atividades imobiliárias de interesse do Distrito Federal. Imagine que um grupo de pessoas “sem casa” invade um imóvel da TERRACAP. Neste lugar, que era apenas um terreno plano, sem qualquer edificação, estes invasores constroem 10 casas, onde passam a morar com as suas famílias. Além disso, fazem também galinheiros e outras benfeitorias, além de plantações de milho, mandioca, feijão, cana e frutas. Esses particulares permanecem no local por mais de 20 anos. A TERRACAP, então, finalmente, decide ingressar com uma ação reivindicatória contra os “invasores”. A partir dessa situação, podemos fazer algumas perguntas: Se os ocupantes da área alegarem, em sua defesa, a existência de usucapião (Súmula 237-STF), este argumento poderá ser acolhido pelo juízo? NÃO. Isso porque o imóvel pertence ao poder público (empresa pública). Trata-se, portanto, de bem público e os bens públicos não estão sujeitos a usucapião, conforme preveem os arts. 183, § 3º e 191, parágrafo único, da CF/88 e o art. 102 do Código Civil. Segundo o art. 98 do Código Civil:

Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

Se fôssemos levar em consideração a redação literal do art. 98 do CC, este imóvel não poderia ser considerado como bem público, considerando que a TERRACAP é uma empresa pública (pessoa jurídica de direito privado). No entanto, a doutrina defende que também deve ser considerado bem público aquele pertencente à pessoa jurídica de direito privado que seja prestadora de serviço público quando este bem estiver vinculado à prestação dessa atividade. Nesse sentido: CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 391. Esta orientação é acolhida pela jurisprudência, conforme aconteceu quando o STF reconheceu que os bens dos Correios (empresa pública federal) são impenhoráveis:

Os bens, as rendas e os serviços da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos são impenhoráveis e a execução deve observar o regime de precatórios. STF. 1ª Turma. RE 393032 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 27/10/2009.

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Além disso, no caso da TERRACAP, o STJ, há muito tempo, consolidou o entendimento de que seus bens são públicos, considerando que eram bens do Distrito Federal e que foram transferidos à NOVACAP e depois para a TERRACAP a fim de serem administrados descentralizadamente. Logo, permaneceram com a mesma característica:

Os imóveis administrados pela Companhia Imobiliária de Brasília (TERRACAP) são públicos. STJ. 4ª Turma. AgRg no AREsp 762.197/DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 01/09/2016.

Desse modo, os ocupantes terão que realmente deixar o imóvel. No entanto, indaga-se: eles poderão pedir indenização ao Poder Público pelas acessões e benfeitorias que fizeram no imóvel (exs: as casas, os galinheiros, as plantações etc.)? Eles poderão se valer do direito de retenção, permanecendo no imóvel enquanto o Poder Público não pagar a indenização devida? NÃO. Vamos entender com calma os argumentos do STJ: O legislador brasileiro, ao adotar a teoria objetiva de Ihering, definiu a posse como o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade:

Art. 1.196 do CC. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

O art. 1.219 do CC reconheceu, ao possuidor de boa-fé, o direito à indenização pelas benfeitorias úteis e necessárias, além do direito de retenção:

Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

Apesar de o art. 1.219 do CC mencionar apenas “benfeitorias”, a doutrina majoritária e o STJ entendem que o direito de retenção abrange também as acessões (como é o caso de uma casa construída em um terreno). Nesse sentido: STJ. 3ª Turma. Resp 1.316.895/SP, julgado em 11/06/2013. Foi o entendimento consagrado na I Jornada de Direito Civil do CJF/STF:

Enunciado 81: O direito de retenção previsto no art. 1.219 do CC, decorrente da realização de benfeitorias necessárias e úteis, também se aplica às acessões (construções e plantações) nas mesmas circunstâncias.

Aliás, o Código Civil possui um dispositivo semelhante para os casos de construções. Veja:

Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização. Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.

Mesmo o possuidor de má-fé tem direito à indenização pelas benfeitorias necessárias, não tendo, contudo, direito de retenção:

Art. 1.220. Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias.

E por que os ocupantes do imóvel público não terão direito? Porque o art. 1.219 e demais dispositivos acima transcritos são inaplicáveis aos imóveis públicos. Tais dispositivos não se aplicam ao caso porque os imóveis públicos não admitem a posse privada, mas apenas a mera detenção.

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O art. 1.196 do CC (veja a redação novamente acima) define o possuidor como aquele que tem, de fato, o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade. Com se sabe, o particular jamais exerce poderes de propriedade sobre o imóvel público porque o imóvel público não pode ser usucapido. O particular, portanto, não poderá ser considerado possuidor de área pública. O nome jurídico da sua relação com o bem público é “detenção”. Assim, o particular que invade um bem público é considerado mero detentor. A mera detenção é um instituto jurídico de natureza precária e que é mais restrito que a posse. Assim, não se confere ao mero detentor os mesmos direitos do possuidor. A doutrina e a jurisprudência entendem que a posse privada do bem público não se coaduna (não se harmoniza) com os princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público. Veja dois precedentes do STJ que retratam bem este entendimento:

(...) 2. Posse é o direito reconhecido a quem se comporta como proprietário. Posse e propriedade, portanto, são institutos que caminham juntos, não havendo de se reconhecer a posse a quem, por proibição legal, não possa ser proprietário ou não possa gozar de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. 3. A ocupação de área pública, quando irregular, não pode ser reconhecida como posse, mas como mera detenção. 4. Se o direito de retenção ou de indenização pelas acessões realizadas depende da configuração da posse, não se pode, ante a consideração da inexistência desta, admitir o surgimento daqueles direitos, do que resulta na inexistência do dever de se indenizar as benfeitorias úteis e necessárias. (...) STJ. 2ª Turma. REsp 863.939/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 04/11/2008.

Configurada a ocupação indevida de bem público, não há falar em posse, mas em mera detenção, de natureza precária, o que afasta direitos típicos de posseiro. STJ. 2ª Turma. REsp 1762597/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 16/10/2018.

Mas os invasores estavam de boa-fé... Se o imóvel é público, não interessa a discussão sobre a existência ou não de boa-fé. Isso porque a detenção, mesmo que de boa-fé, não gera indenização por acessões e benfeitorias. Não havendo direito à indenização, por consequência, também não existe direito de retenção. As realizações feitas no imóvel nem geram benefício ao Poder Público Vale ressaltar que, juridicamente, os argumentos acima expostos já seriam suficientes para afastar o direito à indenização e à retenção por parte dos detentores. Ressalte-se, no entanto, que alguns julgados do STJ mencionam ainda outro aspecto: as construções feitas pelos invasores (exs: casas, barracos, galinheiros etc.), não geram qualquer utilidade para o poder público, que terá, ainda, que demolir tudo a fim de permitir que o imóvel seja utilizado para a finalidade ao qual estava prevista (ex: construção de uma repartição pública, de uma praça etc). Assim, seria incoerente impor à Administração a obrigação de indenizar por construções feitas irregularmente no imóvel público, considerando que tais obras não terão qualquer utilidade para o poder público e, ao contrário, gerarão gastos de recursos do erário para a sua demolição. Alguns Ministros chegam a afirmar nos votos que “a indenização, na hipótese, é devida pelo invasor, não pelo Poder Público.” (Min. Herman Benjamin). Mas o Poder Público foi omisso e permitiu que os invasores ficassem anos no local... “O imóvel público é indisponível, de modo que eventual omissão dos governos implica responsabilidade de seus agentes, nunca vantagem de indivíduos às custas da coletividade. Invasores de áreas públicas não podem ser considerados sócios ou beneficiários da omissão, do descaso e da inércia daqueles que deveriam zelar pela integridade do patrimônio coletivo. (...)

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Entender de modo diverso é atribuir à detenção efeitos próprios da posse, o que enfraquece a dominialidade pública, destrói as premissas básicas do Princípio da Boa-Fé Objetiva, estimula invasões e construções ilegais, e legitima, com a garantia de indenização, a apropriação privada do espaço público. (...) Saliente-se que o Estado pode – e deve – amparar aqueles que não têm casa própria, seja com a construção de habitações dignas a preços módicos, seja com a doação pura e simples de residência às pessoas que não podem por elas pagar. É para isso que existem as Políticas Públicas de Habitação federais, estaduais e municipais. O que não se mostra razoável é torcer as normas que regram a posse e a propriedade para atingir tais objetivos sociais e, com isso, acabar por dar tratamento idêntico a todos os que se encontram na mesma situação de ocupantes ilegais daquilo que pertence à comunidade e às gerações futuras – ricos e pobres.” (Min. Herman Benjamin, no Resp 945.055/DF). Conclusões • A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária. • A mera detenção não confere ao detentor os mesmos direitos do possuidor. • A mera detenção não gera direito de retenção ou de indenização por acessões e benfeitorias realizadas no bem público. SITUAÇÕES PECULIARES Existem duas situações peculiares que podem gerar confusão com o tema tratado na Súmula 619, mas que são ligeiramente diferentes. A fim de que você tenha um conhecimento completo sobre o assunto, passo a tratar delas agora. 1) Particular pode ajuizar ação possessória tendo como objeto bem público de uso comum do povo Imagine a seguinte situação hipotética: A empresa “XX” começou a construir uma indústria em um terreno localizado na área rural do Município. Ocorre que a obra avançou sobre uma rua que liga uma comunidade de 12 casas com a avenida principal. Em outras palavras, parte da indústria em construção está invadindo a via de acesso para as casas dos moradores locais. Diante disso, os moradores ajuizaram ação de reintegração de posse contra a empresa alegando que a rua que está sendo invadida representa uma servidão de passagem que dá acesso aos loteamentos há mais de 20 anos. A ré alegou, dentre outros argumentos, que a estrada objeto da controvérsia é bem público municipal de uso comum, não podendo sua proteção possessória ser requerida por particulares. Isso porque os particulares não detêm a posse dos bens públicos, mas sim a mera detenção, que não pode ser tutelada por ações possessórias. A tese da empresa foi acolhida pelo STJ? Não. O STJ decidiu que:

Particulares podem sim ajuizar ação possessória para resguardar o livre exercício do uso de via municipal (bem público de uso comum do povo) instituída como servidão de passagem. STJ. 3ª Turma. REsp 1.582.176-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/9/2016 (Info 590).

Realmente, o STJ possui inúmeros julgados afirmando que a ocupação irregular de bem público dominical não caracteriza posse, mas mera detenção, hipótese que afasta o reconhecimento de direitos em favor do particular com base em alegada boa-fé. Assim, por exemplo, se o particular invade um bem público que não é utilizado para nada (ex: um terreno baldio), a jurisprudência entende que ele não é considerado possuidor, mas mero detentor. Nesse sentido é a Súmula 619-STJ. Logo, o invasor não poderá invocar a proteção possessória contra o Poder Público. Esse entendimento, porém, não se aplica para o caso de um particular que está defendendo seu direito de usar um bem público de uso comum do povo. Aqui a situação é diferente.

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No caso de bens públicos de uso comum do povo, podemos sim falar em posse e o particular poderá defendê-la em juízo. Desse modo, podemos concluir que: • o ordenamento jurídico não permite que o particular que ocupa um bem público possa pedir proteção possessória contra o Poder Público, considerando que a sua relação com o bem configura mera detenção; • é possível, no entanto, que particulares exerçam proteção possessória para garantir seu direito de utilizar bens de uso comum do povo, como é o caso, por exemplo, da tutela possessória para assegurar o direito de uso de uma via pública. 2) Particular que ocupa bem público dominical poderá ajuizar ações possessórias para defender a sua permanência no local? Imagine a seguinte situação hipotética: João mora em uma chácara há 20 anos. Ele ajuizou ação de reintegração de posse contra Pedro alegando que o requerido invadiu metade do terreno em que vive. O Distrito Federal pediu a sua intervenção no feito alegando que a chácara em que João mora pertence ao Poder Público, em nome de quem está registrada. Trata-se, portanto, de bem público e, sendo assim, não pode ser objeto de proteção possessória por parte do particular. Isso porque o particular que ocupa um bem público não tem a posse deste imóvel, mas sim a mera detenção. A tese do Distrito Federal foi acolhida pelo STJ? NÃO. O STJ entendeu que:

É possível o manejo de interditos possessórios em litígio entre particulares sobre bem público dominical. STJ. 4ª Turma. REsp 1.296.964-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/10/2016 (Info 594).

A jurisprudência sempre entendeu que se o particular ocupa um bem público, não se pode falar, neste caso, em posse, havendo mera detenção. Nesse mesmo sentido é a Súmula 619-STJ. Em suma, o ocupante de bem público é considerado mero detentor da coisa e, por conseguinte, não há que se falar em proteção possessória nem em indenização por benfeitorias ou acessões realizadas, por configurar desvio de finalidade (interesse particular em detrimento do interesse público), além de violação aos princípios da indisponibilidade do patrimônio público e da supremacia do interesse público. Em razão disso, é juridicamente impossível que um particular que esteja ocupando irregularmente um bem público ajuíze ação de reintegração ou de manutenção de posse contra o Poder Público, por exemplo. Ocorre que o STJ, no REsp 1.296.964-DF, disse que essa posição (invasor como mero detentor) possui uma exceção: se dois particulares estão litigando sobre a ocupação de um bem público, o STJ passou a entender que, neste caso, é possível que, entre eles, sejam propostas ações possessórias (reintegração, manutenção, interdito proibitório). Assim, é cabível o ajuizamento de ações possessórias por parte de invasor de terra pública, desde que contra outros particulares. Existem decisões das duas Turmas do STJ nesse sentido: STJ. 3ª Turma. REsp 1.484.304-DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/3/2016 (Info 579). STJ. 4ª Turma. REsp 1.296.964-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/10/2016 (Info 594). Duas situações Importante destacar mais uma vez que são duas situações que devem ter tratamentos diferentes:

1) particular invade imóvel público e deseja proteção possessória em face do

PODER PÚBLICO:

2) particular invade imóvel público e deseja proteção possessória em face de outro

PARTICULAR:

Não terá direito à proteção possessória. Não poderá exercer interditos possessórios porque, perante o Poder Público, ele exerce mera detenção.

Terá direito, em tese, à proteção possessória. É possível o manejo de interditos possessórios em litígio entre particulares sobre bem público dominical, pois entre ambos a disputa será relativa à posse.

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Voltando ao exemplo dado. O argumento invocado pelo Distrito Federal não poderá ser acolhido e o juiz decidirá qual dos dois particulares têm a posse: João ou Pedro. No entanto, se o DF ajuizar uma ação possessória contra João, este poderá invocar que tinha a posse e pedir indenização ou a retenção das benfeitorias realizadas no local? Não. Isso porque, conforme vimos acima, se o litígio for contra o Poder Público, a ocupação de área pública pelo particular será considerada mera detenção, que não gera direitos de indenização ou retenção, não havendo proteção possessória ao particular, neste caso. Assim, o particular tem apenas detenção em relação ao Poder Público, não se cogitando de proteção possessória.