Sujeito pneumático no imaginário da cibercultura

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Este trabalho oferece uma análise inicial de uma das metáforas mais correntes do discurso contemporâneo sobre a cibercultura: a imagem do anjo do ciberespaço. Ao comparar o cibernauta com um anjo que navega pelo empíreo do ciberespaço, autores como Lévy e Benedikt contribuem para uma mistificação do potencial “espiritual” das novas tecnologias, deslocando assim o problema da materialidade técnica para uma espécie de afirmação do sublime tecnológico.

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    Mdia e religio

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    A tecnoreligio e o sujeito pneumtico no imaginrio da cibercultura

    Ano 11, n 21, 2 semestre de 2004

    A tecnoreligio e o sujeitoA tecnoreligio e o sujeitoA tecnoreligio e o sujeitoA tecnoreligio e o sujeitoA tecnoreligio e o sujeitopneumtico no imaginriopneumtico no imaginriopneumtico no imaginriopneumtico no imaginriopneumtico no imaginrio

    da ciberculturada ciberculturada ciberculturada ciberculturada ciberculturaErick Felinto*

    RESUMOEste trabalho oferece uma anlise inicial de uma das metforas maiscorrentes do discurso contemporneo sobre a cibercultura: a imagemdo anjo do ciberespao. Ao comparar o cibernauta com um anjoque navega pelo empreo do ciberespao, autores como Lvy eBenedikt contribuem para uma mistificao do potencial espiritualdas novas tecnologias, deslocando assim o problema da materialidadetcnica para uma espcie de afirmao do sublime tecnolgico.Palavras-chave: ciberespao, anjo, imaginrio tecnolgico,cibercultura

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    Yet I am the necessary Angel of the earth,since, in my sight, you see the earth again, clearedof its stiff and stubborn, man-locked set, and, in

    my hearing, you hear its tragic drone(Wallace Stevens, Angel Surrounded by Paysans, 496)

    Ein jeder Engel ist schrecklich(Rainer Maria Rilke, Duineser Elegien, 443)

    A los intelectuales ciberculturales que nodesisten del pensamiento crtico

    (Andoni Alonso e Iaki Arzoz, da dedicatriade La Nueva Ciudad de Dios)

    A histria da racionalidade ocidental marcadapor seu embate, furioso e constante, contra o mito e aimaginao, tidos como produtos de uma irracionali-dade desvairada. A razo, o progresso e a cincia afir-maram, sob o influxo das poderosas foras damodernizao, sua superioridade sobre essas ex-presses de uma infncia da humanidade. Superadasas fantasias irresponsveis do imaginrio mtico, acincia e a tecnologia viriam, assim, decretar a vitriafinal da razo no apogeu da modernidade. Mas ahistria tomou um rumo inesperado e, como bemadverte Michel Maffesoli, o misterioso passou a seratuante justamente naquilo que parece querer exclu-lo! Sejanas prticas da vida cotidiana ou nos arcanos do processo deconhecimento, tal o retorno do recalcado, o fictcio perfura oreal, tornando-o singularmente mais atraente (1984: 65).

    O misterioso, o mtico e o imaginrio retornaram,portanto, no seio dos domnios onde precisamente

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    no poderiam ou deveriam penetrar: nos discursossobre a cincia e a tecnologia. Como um fantasmaque insiste em voltar e revelar uma fala que foireprimida (Cf. Hetherington, 2001), como umrevenant espantoso, o mito desgua incessantementenas represas da tecnocincia contempornea.Fantasma que, de fato, seduz ao mesmo tempo emque assusta. No cerne de narrativas contemporneasque defendem a supremacia da cincia e o poder semlimites da tecnologia, o imaginrio vem constituiruma fala parasitria corroendo a razo e promovendoo mistrio e o mtico. Difcil no se surpreenderdiante dessa inesperada aliana. Ela no fantasiade uns poucos sonhadores apaixonados por cenriospr-modernos, mas proposta de cientistas e scholarsnas mais diversas reas do conhecimento. Em obrasque vo da crtica literria fsica, passando pelafilosofia e pela biologia, o imaginrio mtico seexprime com um vigor inesperado. O que dizer, pois,de um livro como The physics of immortality (1995),do respeitado fsico Frank J. Tippler, onde se propeestabelecer profundas relaes entre a cosmologiamoderna e as tradicionais vises religiosas sobre adivindade e a ressurreio dos mortos? Ou do libelodo igualmente respeitado hebrasta Richard EliottFriedman, The disappearance of God (1995), no qualse sugere uma nova forma de religio universal, mistoparadoxal de cincia, misticismo e nietzscheanismo?A lista pode continuar, passando pelo espantosopanfleto de Harold Bloom, Omens of millennium(1996), em que a experincia esttica e a crticaliterria se transformam no fundamento para a

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    proposio de um gnosticismo renovado que,segundo Bloom, j estaria mesmo na base das grandestradies religiosas norte-americanas; ou ento ocurioso La structure absolue (1965), do filsofoRaymond Abellio, ex-aluno dos clebres seminriosde Alexandre Kojve, agora convertido em gnstico,proponente de uma filosofia onde a fenomenologiade Husserl se encontra com a mstica judaica e comas tradies religiosas da ndia.

    No campo do discurso cientfico, essa integrao doracional e do mtico grande sonho de todo romantismo foi denunciada com rigor e clareza pela epistemlogaDominique Terr-Fornacciari. O fenmeno daaproximao, entre cincia e mstica, ali definido comoas npcias de Apolo e Dioniso, descrito como apenetrao de vetores de irracionalidade, envolvendodimenses retricas, tericas e polticas (1991: 12). Essaparadoxal aliana entre razo e imaginao responsvelpela produo de libelos em favor da sacralizao dacincia ou da cientifizao do sagrado, como no casodos populares livros de Fritjoff Capra. E, se j quisermosnos limitar ao horizonte especfico da cibercultura, oensaio-fico de Andoni Alonso e Iaki Arzoz, Lanueva ciudad de Dios, registra e critica o surgimento deum impulso e de um discurso tecno-hermticos naliteratura cibercultural contempornea (2002). Deforma mais tradicional e comprometida com o discursoacadmico, Erik Davis tambm mapeia, em seu Techgnosis(1998), o vasto conjunto das imagens e metforasreligiosas que assolam as atuais ciberutopias.

    Neste trabalho, segundo a conciso aqui exigida,pretendo limitar-me a somente alguns aspectos do

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    complexo e intrigante fenmeno da tecnoreligio. Emespecial, dedico-me anlise do que sugiro nomearcomo o sujeito pneumtico do imaginrio cibercultural.O termo, que sem dvida ir soar divertido aos nossosouvidos, tem origem gnstica, e sua escolha no infundada. Nos primeiros tempos da difuso docristianismo nas regies orientais do vasto ImprioRomano, ir florescer um conjunto de seitas sincrticascombinando idias crists, neoplatonismo e as religiesde mistrios pags. Esse conjunto de seitas designadogenericamente como gnosticismo, j que todas sebaseavam fundamentalmente na idia da posse de umconhecimento secreto (gnosis) como forma de salvaoespiritual. O gnosticismo foi largamente estudado porfilsofos e historiadores da religio como um dosfenmenos mais intrigantes do mundo antigo (e, qui,tambm, sob certos aspectos, do moderno)1. Osgnsticos tinham horror matria e criam a necessidadeda superao do corpo fsico, no qual a verdadeiraessncia do homem estaria aprisionada uma idia quelembra o clssico calembour platnico entre as palavrassoma (corpo) e sema (priso). Essa superao dos limitescorporais poderia ser realizada por uma categoria espe-cial de sujeitos, no interior das prticas religiosas dognosticismo. Como explica Guillermo Fraile:

    Os gnsticos tinham a pretensoaristocrtica de elevar-se por cima do vulgo.Dividiam os homens em materiais (choicum),psquicos ou animais e pneumticos ou espirituais.Os ltimos participam de uma natureza deordem superior, qual corresponde umconhecimento mais elevado que o da f

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    (gnosis, pistis sophia), inacessvel ao comum doshomens e reservado a uma minoriaprivilegiada (1960: 92).

    A aproximao entre gnose, tecnocincia ecibercultura tambm foi sugerida, anteriormente, porestudiosos das mais diversas linhagens intelectuais,como o socilogo Hermnio Martins ou o j mencionadocrtico cultural Erik Davis. Para este ltimo, a tecnognosepode ser definida como a histria secreta dos impulsosmsticos que continuam a impulsionar e sustentar a obsesso domundo ocidental com a tecnologia, e especialmente com suastecnolologias de comunicao (1998: 2). Para o primeiro,certas tendncias do pensamento cibercultural (porexemplo, o projeto tecnofeminista deo ciborgue deDonna Haraway) retomam o sonho gnstico detranscender a dispora dos seres (1996: 191).

    Nesse sentido, torna-se possvel falar em umareligio da tecnologia, como faz o historiadorDavid Noble (1999), mas, de maneira ainda maisexpressiva, em uma tecnoreligiosidade prpria daimaginao da cibercultura. Um culto com seusprprios sacerdotes, doutrinas e objetos de adorao.Figura central desse culto religioso a representaode uma forma de subjetividade liberta dos limitesdo corpo, em ltima instncia, um self quase divinoe de natureza espiritual (pneuma) anloga dosdetentores da pistis sophia gnstica. Na literaturacibercultural, essa subjetividade aparecefreqentemente traduzida com a metfora do anjo. assim que Nicole Stenger, por exemplo, imagina onavegante do ciberespao: todos ns nos tornaremosanjos, e pela eternidade! Anjos altamente instveis,

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    hermafroditas, inesquecveis em termos de uma memriacomputadorizada (1992: 52). O ciberespao , ento,caracterizado como territrio sagrado (Stengers,1992: 54), novo den (Benedikt, 1992: 13) ou NovaJerusalm Celestial (Wertheim, 1999: 18 e ss.) ondevagam livremente os corpos anglicos dosinternautas conectados em rede:

    Meu corpo anglico no mundo virtualexprime minha contribuio para a intelignciacoletiva, ou minha postura singular em relaoao saber comum. Ora, esse corpo anglicono atinge jamais a extenso completa domundo virtual que o contm e que como oAnjo do coletivo (Lvy, 1998: 93).

    A passagem certamente to hermtica quantoas metforas que emprega: tanto no sentido de serintrincada, obscura (ou em ltima instnciaincompreensvel), como no sentido de ser tributriade uma gnose nos mesmos moldes daquela tributriado lendrio Hermes Trismegisto, inventor deinumerveis tecnologias espirituais e materiais.

    Um dos traos mais comuns do uso de metforascomo a do anjo sua impreciso. Essa indefiniono uma qualidade acidental, mas revela, na verdade,uma prtica retrica tpica de certos discursosciberculturais e tambm dos discursos esotricosou religiosos. Na descrio de realidades numinosas,pode-se atuar apenas por aproximao tateante eanalogias vagas. O objeto a ser apresentado semprese subtrai aos poderes, necessariamente limitados, dalinguagem humana. John Perry Barlow, por exemplo,utiliza a figura do anjo para definir qualquer entidade

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    informacional (Cf. Zaleski, 1997: 39), metfora quede fato no parece esclarecer grandemente o conceito,mas que possui sem dvida grande fora potica esugere os grandes poderes da informao2.

    Na antiga cultura hebraica, a figura do anjo apareciacomo uma espcie de enviado ou mesmo como umaspecto visvel da divindade. Na verdade, a palavrahebraica mlach, derivada da raiz laach, delegar,enviar, significava simplesmente mensageiro.3Friedman nota que muitas narrativas bblicas quemencionam a ao de anjos confundem momentos emque o anjo fala por Deus com momentos onde o prprioDeus parece se manifestar diretamente. Essa confusose desfaz, segundo Friedman, se aceitarmos a idia deque os anjos no so criaturas independentes de Deus,mas so antes concebidas como expresses da presenade Deus (1995: 12)4. Tambm nossos anjos ciberes-paciais podem ser encarados como uma forma de apre-sentao do divino, ou pelo menos como expressesde um desejo de divinizao. A subjetividade pneu-mtica no se contenta em cumprir o papel demensageira da grande divindade informacional, elaalmeja tornar-se um anlogo do divino. Eis o sonho dePierre Lvy: por que no tentar constituir intelectuais coletivoscapazes de atingir a liberdade divina? (1998: 100).

    A figura mtica da subjetividade pneumticacarrega consigo uma srie de mitos ancilares, todosde algum modo conectados idia da superao doslimites impostos pelo corpo e da divinizao dainteligncia em rede. Um dos mais interessantes oque se pode definir como mito da comunicao to-tal. Anjos incorpreos vagando pelo ciberespao no

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    encontram barreira alguma para estabelecer conexes ecomunicar-se. Quando nos comunicamos atravs docomputador, imagina Stewart Brand, nos relacionamoscomo anjos (...) como essas inteligncias incorporais de grandeintimidade (apud Dery, 1996: 56). A intimidade possibili-tada por essa forma de comunicao angelical se apresen-ta, de fato, como absoluta. Ela implica o desaparecimentodas prprias fronteiras do ego, no sentido de resultar emuma entidade prxima do que Lvy denominainteligncia coletiva. Nesse sentido, o mito pe emjogo tambm a prpria noo de mediao, j que o idealda comunicao total envolve o desaparecimento domeio. Imediatez, instantaneidade, intimidade: eis aspalavras de ordem da mitologia da comunicao total.Aquilo que imediato de natureza espiritual. Sem omeio, sem a dureza da matria, os anjos ciberespaciaispasseiam livremente pelos virtualmente infinitos domniosda rede. Se compartilharmos da tese de Bolter e Grusin,nossa cultura tecnolgica sofre do fascnio pelo tema daimediao. E, mais que nunca, graas s novastecnologias digitais, a hipermediao equivale imediao. Desejamos desfazermo-nos de nossos meiosno ato mesmo de multiplic-los incessantemente: a lgicada imediao dita que o prprio meio deve desaparecer e deixar-nos em presena da coisa representada (2002: 9).

    Mas ser que o mito da comunicao total ainda podeser visto como uma real expresso do desejo comunica-cional? Comunicao implica alteridade, a relao coma diferena e a manuteno de certa distncia. As fanta-sias da comunicao angelical conduzem ao desapareci-mento das identidades definidas e, em ltima instncia, prpria noo de singularidade. Como nos antigos gran-

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    des sonhos de unidade mstica, a inteligncia coletivapode apenas dissipar toda alteridade num mar absolutode indiferena. Os msticos descreveram essa experinciado desaparecimento de si e da vivncia do uno: nocheoscura del alma, em San Juan de la Cruz, bernichts, emngelus Silesius. E no existe linguagem apropriada paradescrev-la, pois incomunicvel. A unidade absolutano permite o discurso; pelo contrrio, abole-o, j queno todo no existe a necessidade (ou possibilidade) dedizer coisa alguma. O anjo, mediador entre Deus e ohomem, tambm nasce desse desejo de imediao, poisno possui identidade prpria, pois pode ser entendidocomo manifestao da prpria divindade: mdia imediata.Ele certamente transmite algo, mas trata-se de um algoimperativo, que pouco d margem resposta ou ao di-logo. O anjo expresso de uma voz absoluta, e, nessesentido, ele anula a possibilidade da comunicao paraimpor uma palavra total, nica, final. A iluso da comu-nicao total presente na tecnocultura contempornea tambm denunciada por Lucien Sfez em outros termos:

    Em um universo onde tudo comunica,sem que se saiba a origem da emisso, semque se possa determinar quem fala, seja omundo tcnico ou ns mesmos, nesseuniverso sem hierarquias, exceto asemaranhadas, no qual a base o cimo, acomunicao morre por excesso decomunicao e se acaba numa interminvelagonia de espirais. a isso que nomeiocomo tautismo, neologismo que contraiautismo e tautologia, embora evocando atotalidade, o totalitarismo (1988: 32-33).

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    Outro mito-apndice do imaginrio do anjociberespacial a fantasia da mobilidade total. Imersoem um mundo sem fronteiras, sem limites, ociberanjo desfruta da mais absoluta liberdade demovimentos. Como subjetividade pneumtica, podedeslocar-se ou estender-se vontade; pode atmesmo almejar a ubiqidade. Na verdade, no setrata apenas de mobilidade, seno da possibilidadede modelar o espao circundante. Como assinalaMargaret Morse, no imaginrio do ciberespao e dasubjetividade digital, reside uma resposta aocomando: D-me um outro mundo! (1998: 183). Ecom um sentido evidente de assombro, Morse narrasua primeira experincia de realidade virtual como adescoberta de um espao responsivo. O espao digi-tal responde aos comandos do anjo, seu mover-se um modelar daquilo que o cerca. Como descreveMarcos Novak, o ciberespao um habitat para aimaginao (1992: 225). o cu etreo e fludicoprprio morada dos anjos.

    A mitologia angelical, que de formas diversas estevedesde sempre presente nas mais variadas tradiesreligiosas, parece fortalecer-se em pocas de crise aguda.Essa, pelo menos, a tese de Harold Bloom, que encaraa figura angelical como um sinal do milnio (Omens ofmillennium), como algo que se manifesta nos horizontesdo sonho, da morte e da crise. Neste agudo momentode grandes transformaes e agonias culturais, amitologia dos anjos ressurge com fora total, ainda quemuitas vezes de forma corrompida pela cultura popu-lar. Para Bloom, a figura autntica do anjo no podeser reduzida imagem do simples guardio propalada

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    pela cultura massiva; ele deve ser, antes, o portador demensagens profticas e profundas vises (1996: 42).Nesse sentido, a metfora do anjo ciberespacial talvezpudesse ser encarada como uma expresso (digital)desse autntico significado (um significado gnstico,como destaca Bloom) do smbolo angelical. Ele aponta,no mbito das fantasias tecnoreligiosas, para oaspecto visionrio atribudo a tecnologias como a dociberespao (Lieb, 1998: 65). Mas mesmo nesse sentido,o novo anjo acaba sendo apenas um mulo bastardodo original. Ele mais sintoma, aspecto de um processode mistificao ou fetichizao do tecnolgico do quemensageiro proftico que revela a essncia dotecnolgico. No revelao, mera informao.

    A viso trazida pela figura da subjetividadepneumtica do ciberespao, pelo corpo anglico ouinteligncia plural de Lvy, parece traduzir um profundoanseio da cultura contempornea por uma forma deespao mental coletivo, expresso, por exemplo, nocrescente interesse por fenmenos paranormais efices que lidam com tais temas. Como afirma Mar-garet Wertheim, um dos grandes apelos do ciberespao o deoferecer uma arena coletiva imaterial no aps a morte, mas noaqui e agora da terra (1999: 234). Mas a pretenso finaldas imagens que freqentemente povoam os entusiastasdiscursos sobre o ciberespao aponta para expectativasde transcendncia do aqui e agora, de superao docorpo e dos limites espao-temporais por ele imposto.Essa expectativa fundamenta-se, assim, nos princpiosde desmaterializao corprea e extenso da cons-cincia (chegando mesmo, como vimos, ao rompimentodas fronteiras da conscincia individual). De fato, a

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    maior parte dos cibermitos, seno todos eles, parecemarticular-se em torno do tradicional par corpo/espritoou substncia extensa e substncia pensante, naterminologia cartesiana. A um horror da materialidadetipicamente gnstico, soma-se o desejo da expansoinfinita ou do rompimento dos limites a prazerosaconfuso de fronteiras, como define Donna Haraway(2000: 42). Esse imaginrio impede pensar o importanteimpacto material das tecnologias no ambiente culturale nos processos de acoplagem entre organismo emquina, impacto explorado por teorias como a dasmaterialidades da comunicao (Cf. Gumbrecht &Pfeiffer, 1994). A tecnologia imaginada como algoprogressivamente invisvel, imaterial e espiritual, emlugar de ser pensada na sua concretude num ambientede sujeitos igualmente materiais. Tal imaginrioenfraquece, assim, qualquer perspectiva que reconheae celebre a finitude humana como uma condio do ser humano,e que entenda a vida humana como embebida em um mundomaterial de grande complexidade, do qual dependemoscontinuamente para nossa sobrevivncia (Hayles, 1999: 5).

    Na retrica peculiar desses discursos ciberutpicos,o sujeito alegremente se despoja do corpo para vivenciara fantasia de um poder sem limites. Anlogo do divino,ele constri e reconstri mundos a seu bel prazer. Deque outro modo entender o acento extraordinariamentegnstico das palavras de William Covino?

    Entro na Net teclando o exato cdigo re-querido por meu software de transmisso, ematerializo as partes desse imenso corpo ciber-espacial atravs de cdigos adicionais. Assim,ao teclar ukanaix.cc.ukans.edu para acesso ao

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    domnio hipertextual da Internet conhecidocomo World Wide Web, eu imito o poderinvocatrio do adepto medieval, trazendo luzo mundo virtual (apud Lieb, 1998: 69)

    Demiurgo tecnolgico, o sujeito pneumtico talvezconstitua uma das mais paradoxais conseqncias dodeclnio da interioridade na cultura contempornea.Reao radical ao enfraquecimento ou fragmentaoda subjetividade, que deseja desesperadamente reterpelo menos uma fantasia de agncia. Nesse sentido,como sugere Francisco Rdiger, o discurso da liberdadeidentitria na internet e da multiplicidade dos eus na redepode em realidade constituir expresso disfarada de um desejode individualidade ainda mais poderoso e solipsista. (2002:esp. 112-134) Numa perspectiva bastante sombria, osujeito coletivo das redes seria assim um eu absoluto,que deseja constituir-se em oposio mesmo sexpresses da alteridade. Esse sujeito muitas vezeslimita-se a ratificar o mesmo, no sentido em que, comoconclui um estudo de etnografia da internet citadopor Rdiger, os internautas, em sua maioria, no conseguemabrir-se ao outro (Rdiger, 2002: 127). Quando lidospor meio de um rigoroso processo de desmitologizao,certos discursos do imaginrio cibercultural expressam,desse modo, um lado menos evidente (mas, qui,mais autntico) das prticas de socializao virtual:as fantasias de poder de um sujeito adestrado nasvivncias tradicionais do mundo capitalista.

    A gnose se constitua numa religiosidade elitista,prtica inicitica reservada a uns poucos privilegiados,os homens pneumticos. Os sonhos da ciberutopiatambm apontam freqentemente para um impulso de

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    excluso. A aptido tecnolgica, o acesso aos instru-mentos informticos, a familiaridade com o mundo datcnica e a capacidade de visualizar o futuro constituemos traos necessrios de uma nova casta de sujeitopneumticos. A tecnoreligio constitui, assim, o reinoperigoso onde, segundo David Noble, a empresatecnolgica desviada das finalidades humanas e mundanasque deveriam guiar seu extraordinrio potencial para tornar-seuma forma de irracionalismo totalitarista. (1999: 6) Nessecontexto, a figura do sujeito pneumtico uma fanta-sia que devemos combater impiedosamente. O ima-ginrio, a metfora, a analogia podem tanto constituirinstrumentos de compreenso e liberao como prisesnas quais nos acomodamos em permanecer no mundodos devaneios egocntricos. Como diz Margaret Wer-theim, como um subconjunto da imaginao cientfica, aciberimaginao est se tornando uma poderosa fora namodelagem de nosso mundo, e faramos bem se nos mantivssemosresolutamente atentos ao seu funcionamento (1999: 257).

    O estudo disso que poderamos definir como umimaginrio tecnolgico deve constituir o primeiropasso na elaborao de uma viso mais perspectivadada tecnologia em nosso mundo de espantosas e rpidastransformaes. Como lembra Lucien Sfez, as metforasno so nada sem os contextos polticos e metafsicos que elasdefendem. Tampouco esqueamos que elas no passam deinstrumentos, desmesuradamente glorificados pelos efeitos damoda (1988: 26). A crtica da metfora do anjo ciber-espacial e do sujeito incorporal revelam a face gnsticado que chamei do modelo de subjetividade pneumtica.Essa subjetividade, na forma como imaginada pelasfantasias ciberculturais, no representa necessariamente

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    um processo de libertao identitria ou um exercciode criatividade ilimitada por parte dos indivduos.Como adverte Anne Balsamo, a eliminao daslimitaes corporais no implica que as pessoas iro exercera liberdade de ser qualquer outro tipo de corpo que no aqueledo qual elas j desfrutam ou aquele que desejam. (2002: 496)A subjetividade pneumtica menos expresso de umaesttica do ser livremente do que manifestao de umquerer dirigido a determinado objetivo. Um querer que,em ltima instncia, nsia de totalidade e domnio.

    O anjo do imaginrio cibercultural , portanto, umanjo cado desejoso de criar seu prprio mundo para assimpoder contornar as recusas que este lhe impe.Diferentemente do Angelus novus da alegoria de Benjaminnas Teses sobre o conceito de histria, o anjo ciberespacial nodeseja redimir as runas do passado ou recuperar a histriados vencidos. Ele s consegue ter a viso de um futuroutpico, dominado pelos mitos do fim da histria e pelaidia de um novo paraso virtual, onde nossa grande tarefano ser mais adorar a divindade, mas cri-la5.

    Abordando o tema da metfora anglica na ciber-cultura, Reinhold Esterbauer disseca as semelhanase diferenas entre os anjos da tradio religiosa(pensados com base nas teses da Summa theologica deAquino) e suas novas verses digitais. Dentre as dife-renas, talvez a mais importante seja o esvaziamentodo anjo, que deixa de ser portador de uma mensagemsignificante para tornar-se mero transmissor de infor-mao. Com os novos meios, chegamos ao ponto em que (...)os contedos se volatilizam e anjos vazios entram em atividadecomo mensageiros que no encontram receptores nem para a suainformao, muito menos ouvintes para seu discurso. (2001:

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    150) So anjos solipsistas, imersos em si mesmos eincapazes de enfrentar a alteridade. So, enfim, ossujeitos ideais de uma religio em que a criatura torna-se a divindade do criador.

    Notas1A lista extensa. Entre os maiores estudiosos da antigagnose contam-se Elaine Pagels e Hans Jonas. Sobre oimpacto da gnose na cultura do Ocidente, em suas dimensessociais, polticas ou epistemolgicas, podemos citar as obrasde Eric Voegelin, Giacomo Marramao e Hans Blumenberg.2 Um cibernauta assim aproxima hermetismo, figuras anglicase cibercultura: As cincias ocultas visavam cooperar com asforas anglicas, de modo a promover o conhecimento. Osanjos das cincias ocultas eram os cavaleiros doRosicrucianismo, ao passo que os anjos do ciberespao soos magos da informtica. A estria de Christian Rosenkreutz,a cidade de Cristianpolis e o tema do ciberespao esto,portanto, intimamente ligados. Mihalache, Adrian,Cyberspace as utopia, disponvel em http://www.spark-online.com/january01/discourse/mihalache.html.3 Cf. o lxico hebreu-caldaico de Gesenius: Gesenius He-brew and Chaldee Lexicon. Baker Books: Grand Rapids, 1993.4 curioso notar como Harold Bloom, cujas reflexes sobreos seres angelicais sero descritas adiante em detalhe,corrobora essa perspectiva: Eu notei que, freqentemente,eles [os anjos] so substitutos do redator [bblico] para ousadasaparies do prprio Deus diante de homens (1996: 45).5 Cf. a declarao de Arthur C. Clarck: A histria chegar aum fim...Pode ser que nosso papel no planeta no seja adorara Deus mas cri-lo (apud Dery, 1996: 30).

    Referncias bibliografias:ABELLIO, Raymond. La structure absolue: essai dephnomnologie gntique. Paris: Gallimard, 1984.

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    Erick Felinto coordenador da Ps-Graduao emComunicao Social da UERJ, onde integra ainda

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