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BIBLIOTECA DE CULTURAL A-XXV ANTÓNIO HOUAISS SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA UNISTltRIO DA EDUCAÇAO' CULTURA STITUTO NACIONAL DO LIVRO

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BIBLIOTECA DE DIVU~GAÇAO CULTURAL Slt~IE A-XXV

ANTÓNIO HOUAISS

SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA

LÍNGUA

UNISTltRIO DA EDUCAÇAO' CULTURA STITUTO NACIONAL DO LIVRO

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SUGESTõES PARA UMA POLíTICA DA LíNGUA

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DO AUTOR

Tentativa ele elesm·ição elo sistema vocálico elo po1·t1t01tês culto na á1·ea dita carioca, Rio de Janeiro, 1959.

Introdução ao texto m•ltico das 1lf emó1·ias póstwn~as de Brás Cubas, de Machado de Assis, suplemento n.• 1 da. Revista do Liv1·o, n.• li, do Instituto Nacionll.l do Livro, Rio de Janeiro, 1959.

Critica avulsa, Rio de Janeiro, Salvador, 1960. Seu poetas e um problema, Rio de Janeiro, 1960.

Organização

Anais do Primei1·o Cong1·esso B1·asileiro de Língua Falacla no Teatro (Salvador, setembro de 1956) , Rio de Janeiro, 1959.

Anais do Simpósio de Filologia Rom.â.nica da Fact<ldacle Nacional ele Filosofia (Rio de Janei1·o, 1958), Rio ele Janeiro, (no prelo ) .

Anais do P•·irnei!'O Cono•·esso Brasilei1·o de Dialectologia e Etnografia (Põrto Alegre, 1958), Rio de Janeiro (em preparação).

Preparação textual

Obras de L ima Barreto, São Paulo, Editõra Brasiliense, 1956 (em 17 volumes, em colaboração com Francisco de Assis Barbosa e M. Cavalcanti Proença).

"O texto dos poemas", in Gonç~lves Dias, poesias e prosa escolhicla, Rio ele Janeiro, Editõra José Aguilar Ltda., 1959.

Antologia

Silva Alvarenga, poesia, "Coleção Nossos Clássicos", Ri() de Janeiro, Livraria Agir E'ditõra, 1958.

Alugusto dos Anjos, 110esias, "Coleção Nossos Clássicos", Rio de Janeiro, Livraria Agir EditOra, 1~60.

Tradução

O neg1·o na lite1·atu1·a b1·asilei1·a, de Rllymond S. Sayers, Rio de Janeiro, EditOra O Cruzeiro, 1958.

Do latim ao port1~0ttês, de Edwin B. Wllliams, Rlo ele J a n eiro, Instituto Nacional do Livro (no prelo).

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BIBLIOTECA DE DIVULGAÇÃO CULTURAL SÉRIE A-XXV

SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA

LÍNGUA ·

POR

ANTôNIO HOUAISS

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA I NSTITUTO N.A:CIONAL DO LIVRO RIO DE JANEIRO 1 960

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Desta edição de Sugestões para uma política da língua foram tirados, fora de comércio, dez exemplares especiais em papel de linho

W esterpost.

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Neste livro, reúne o autor escri­tos, éditos ou inéditos, de vária época, que procuram ter um denominador comum, consentâneo com o títul.o. Mas é desnecessário ressaltar que se apre­sentam em nível de divulgação, razão por que todo aparato mais elaborado foi pôsto de lado, inclusive o biblio­gráfico. Para resguardar-se de alagá­veis inc.oerêooias, bem como para justificar-se de algumas repetições que seria menos expedito evitar, refundin­rdo o rnaterial ora impresso, o autor sotopôs às diversas unidades a data' de sua elaboração.

Embora escritos de circunstância, têm eventualmente algo a favor de si: o empenho com que nêles se postula a t.omada de consciência de umas quantas pro""'idências ou medidas que devem ser quanto antes postas em ação entre nós, para bem da nação, da língua e da pesquisa cient·ífica histórico-cultural. E, se lhes falta ex­posição sistemática, ver-se-lhes-á com facilidade, em se querendo, o espírito sistemático de que provêm.

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SôBRE A L1NGUA DO TEATRO

Deverá realizar-se, de 5 a 11 de setembro do corrente ano, em Salvador, no quadro das comemorações do decenário da Universidade da :Bahia, o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro - ao qual devemos todos aspirar o melhor sucesso, pelo simples fato de que seus resultados poderão ter projeções consi­deráveis sôbre a relativa estabilidade e genera­lidade com que se apresenta no território nacional illOssa língua comum e nacional - o português.

Sinal dos tempos e apesar de todos os trope­ços de nossa conjuntura, a idéia partiu, louvàvel­mente, do grupo social mais interessado direta­mente na questão da padronização - e, ao diz~r grupo social, fá-lo-ia melhor se delimitasse mais ainda com dizer grupo profissional, o do teatro. Que o impulso inicial foi generoso, prova-o -também o fato de que se endereçou, como devia, aos nossos lingüistas, filólogos e gramáticos. Obtido, logo a seguir, o apoio oficial do Minis­tério da Educação e da Universidade da Bahia, graças ao qual os problemas contingentes de nu­merários foram desde o início superados, já nesta altura se tomam as providências mais imediatas

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para que o congresso possa oferecer resultados ~nimadores e úteis ao país. Neste momento mesmo, procede-se aos convites para que conte­mos, juntamente com os brasileiros, com diversos congressistas estrangeiros, filólogos, lingüistas e especialistas de teatro, portuguêses, espanhóis, franceses e italianos.

No grupo promotor e executivo estão diver­sos brasileiros a cujo entusiasmo se pode creditar, por antecipação, esforços não pequenos para que um ·certo número de objetivos seja alcançado neste primeiro congresso. Parecerá, no particular, ·um truísmo afirmar que o objetivo mínimo deverá ser o de sancionar, com sua autoridade coletiva, as bases de nossa fonologia culta, para que todos os atôres . - e com êles os diretores e professôres de dicção - possam eliminar, espontânea e pro­gressivamente, as diferenças de pronúncia dialec­tal que, por vêzes, muitas vêzes, enfeiam - por sua assimetria - as representações na cena teatral brasileira. Ora, ao que parece, as bases de nossa fonologia culta já estão, de fato, estabelecidas, na obra de eminentes tratadistas e compendiado­res, em que sobressaem os nomes de FRANco DE

SÁ e ANTENOR NASCENTES. Nesse particular, aliás, a comissão promotora agiria bem se desde já designasse um grupo de trabalho para a tarefa específica de apresentar uma exposição sistemá­tica das pesquisas e recomendações encontradas naqueles autores e outros, a fim de que ficasse

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por antecipação assegurada a possibilidade de o mínimo objetivo do congresso ser atingido.

As condições do Brasil são de fato inéditas tna história quanto ao problema de padronização de uma língua falada para fins cultos. Sorrios uma nação com caracteres, digamos, naturais de unidade dificilmente comparável a outras. Pode­se mesmo afirmar que estamos em condições de adotar uma política lingüística que não tenha semelhança com nenhuma outra à face da terra, porque as coordenadas de nossa problemática são muito mais simples. 11: que as minorias lingüís­ticas que possuímos, do nosso passado pré-cabra­hno assim como das levas migratórias modernas, não revelam traços de expansão, antes pelo con­trário, trazem a marca patente da regressão. Para isso, muito contribuiu o fato, no passado, de que as diversas línguas e falares, já indíg~nas, já africanos, não haviam atingido um estágio lite­rário, que iria possibilitar uma eventual concor­rência com o português. Além disso, dêsses falares, excluindo-se a língua geral da catequese, também adotada para fins de língua comum até certo momento do século XVIII, nenhum apre­sentava a relativa universalidade no território que teve, por exemplo, o guarani, no Paraguai, ou o quíchua, na Bolívia. De outro lado, a própria expansão colonizadora e o incremento demográ­fico se fêz com tendências espontâneamente unificadoras em favor do português, de modo que

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já nos inícios do século XIX não só era êle nossa Hngua comum e nacional, mas, por sua possibi­lidade de ser conservado por via escrita, era também a que se destinava melhor às necessida­des de transmissão da cultura e das comunicações econômicas. E a própria colonização assim como os movimentos migratórios internos tenderam sempre a favorecer o quadro relativamente unitá­rio com que o português se apresenta no Brasil.

. Ora, uma das questões básicas do congresso será a da aceitação, sem repulsa por parte da maioria dos congressistas, de um padrão local de pronúncia do português do Brasil que possa servir para o resto do país. Não se trata, está claro, de adotar em bloco êsse padrão local e querer impô-lo ao resto do país, o que seria !inglória e estéril. Trata-se, antes de mais nada, de saber, dentre as frações cultas do país, qual aquela que apresenta caracteres mais consentâ­neos com a fonologia da língua, ao mesmo tempo lmais universais den,tro do território 1brasileirm Não é sem razão que a escolha girará em tôrno de dois ou três centros cultos principais do país, um dos quais é certamente a cidade do Rio de Janeiro e a chamada área fluminense, os outros dois podendo ser São Paulo e Salvador. Não há desprimor nenhum em omitir os demais. Não seria até inútil relembrar que, se o problema da padronização se tivesse colocado no passado, talvez Salvador, antes talvez o Recife, talvez São

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Paulo devessem ser os centros padrões. Mas nas condições atuais, precisamente porque nesse atual 'há o acúmulo de tôda uma história política co­letiva, o Rio de Janeiro, nominalmente a cidade do Rio de Janeiro, será sem dúvida a base local por excelência. Militam para isso diversos fatôres, que não é mister recapitular em sua totalidade; mas lembremos, pelo menos, o fato notório de que é ainda o centro cultural mais importante do país, com mais contínua tradição, é o centro político há mais tempo (e êsse fator é capital) e é, mais do que tudo, uma zona cuja pronúncia culta tende, mais do que qualquer outra, a ser a expressão média das pronúncias regionais e locais brasileiras - para cuja explicação não será somenos levar em linha de conta a circunstância de que esta cidade vem sendo, dentre tôdas, a mais povoada de brasileiros de todos os pontos 1do país. São Paulo, por exemplo, graças ao :ímpeto econômico que vem tendo nas últimas dé­cadas, já superou o Rio sob quase todos os aspectos. Mas não há negar que sua pronúncia média culta continua a revelar os traços de uma dialectação localista, ao contrário da carioca, em que se poderia vislumbrar uma tendência univer­,salista dentro do Brasil, pelas razões acima enunciadas. O falar culto carioca, dessa forma, é, provàvelmente, o que mais eqüidistante se acha -usando certa nomenclatura mais ou menos con­sagrada na nossa incipiente dialectologia - do

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nortista, do nor.destino, do oriental, do sulista e do sertanejo.

Admitindo, assim, que partamos de uma base carioca ou fluminense, ainda aí será mister dis­tinguir o padrão culto do padrão popular. Essa discriminação não é nem odiosa nem arbitrária, mas é expressão do esfôrço que fazem as coleti­vidades e os indivíduos por darem ao seu instru­mento de comunicação um auditório mais amplo. ~' assim, nos meios cultivados que se irá encon­trar aquêle padrão desejável, padrão que não poucos homens cultos, entre nós, já realizam, e de que são belos exemplos vários atôres que se apresentam nas nossas cenas teatrais e mais de um locutor de nossa radiodifusão. O que se verifica, desde logo, porém, é que muito justa­mente certos traços localistas cariocas são expun­gidos de sua pronúncia padrão, traços êsses que são os que precisamente mais discrepam dentro da fonologia da língua e mais isolados parecem estar nos nossos eventuais mapas dialectológicos. :E; o caso de certos /r/, de certo j t/ e de certo / d/ em determinadas posições intervocálicas.

Colateral com o que se vem denominando nestas linhas objetivo mínimo do congresso, é o desejo de coleta de abundante material dialecto­lógico do Brasil. No respeito, estamos ainda tre­mendamente atrasados. Com exceção de uns poucos trabalhos - modêlo dos quais continua sendo o admirável O dialeto caipira, de AMADEU

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AMARAL -, os estudos dialectológicos no Brasil são poucos e de valor muito contestável. Nossa limitação culhual, de um lado, a extensão do país, de outro, são as principais razões dêsse atraso. Mas o congresso, nos seus objetivos te­máticos, inclui uma seção que se destina, preci­samente, a ser pioneira de um futuro congresso de dialectologia brasileira, quando apela para os brasileiros de todos os pontos do território na­cional no sentido de enviarem suas observações, estudos ou apontamentos sôbre "aspectos da di­ferenciação regional e social da língua: descrição, total ou parcial, de falares, urbanos ou rurais; vocabulários regionais ou profissionais". A questão não é - escusa lembrá-lo - nem bizan­tina nem precJce; e, no seu bôjo, há como mérito fundamental o fato de ser seu estudo um eluci­-dário a mais da nossa formação nacional unitária

Com limitar o congresso à "língua falada no teatro" não se teve, está claro, em vista dizer que a língua falada no teatro é necessàriamente diferente da língua falada em outr'os meios artís­ticos ou que fazem da palavra instrumento pw­fissional - cinema, magistério, parlamento. Não se tendo em vista semelhante limitação, automà­ticamente se teve em vista admitir que as con­clusões a que se chegasse serviriam também para

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os outros casos. E de fato é assim. Mas não há negar que a urgência maior se manifesta exatamente no meio teatral, e tanto isso é verdade que foi sentida primeiro exatamente nesse meio. E que o teatro brasileiro vive pela primeira vez sua grande crise de crescimento quantitativo e qualitativo no que toca ao jôgo de cena, à sua realização viva, in concreto. E, por uma feliz decorrência de nossa estrutura essencialmente unitária mas ao mesmo tempo culturalmente pobre, os atôres que se apresentam ao público não são provenientes de uma s6 região, Estado ou cidade. Se o cinema brasileiro, via de regra, apelando para o cotidiano atual, não postulou ainda o problema de uma dicção que seja tanto quanto possível intemporal ou inespacial, irá de futuro fazê-lo também, e então a mesJTla urgência sentida pelo teatro irá dar-se com êle. Como, com efeito, representar peças de SHAKESPEARE de modo que não se veja por trás de um Otelo um cearense, de uma Desdêmona uma gaúcha, de uma Julieta uma paulista? Como, de fato, fazer que a ilusão da realidade não seja quebrada pela assimetria de pronúncias regionais? Até agora, que se · saiba, s6 há duas direções: ou bem peças dêsse tipo se representam por atôres de uma s6 proveniência lingüística regional para um audi­tório dessa mesma proveniência (quando não há a ruptura da ilusão da realidade por assimetria) ou bem - como é o caso de nossa situação

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nacional - se obtém um padrão de pronúncia que seja sem traços gritantes de regionalismo, ainda que os atôres provenham de quaisquer pontos do território nacional. Escusa dizer que ambas as direções podem coexistir, mas que a segunda tem possibilidades muito mais amplas e gerais, dentro do país, do que a primeira. ~ nessa convicção, aliás, que certos empresários­atôn!s 'têm impôsto, tpor vêzes, sua pronúncia pessoal a todo seu grupo de trabalho, de uma forma, não raro, arbitrária. O padrão culto aspira, por conseguinte, não a uma classificação social, não a uma discriminação de classe ou grupo que se considere superior, como é o caso, por exemplo, do inglês de Oxford, mas a uma média de com­preensibilidade geral, como é o caso do King's English da radiodifusão inglêsa, cuja viabilidade como padrão geral do império britânico é incon­testável, questão de tempo. Vem à baila também o exemplo do francês da Comédie Française, corn base no francês da ilha de França, embor~ o padrão teatral tenha sido tão precocemente ado­tado e com caracteres tão profissionalizados que tenda, hoje em dia, a ser superado pelo dos meics universitários da mesma ilha de França. O fato, contudo, é que as dificuldades de padronização nesses países de velha cultura, em que os dialetos e falares têm uma tradição multissecular, é maior do que entre nós, apesar de serem de cultura média muito superior à nossa. Não obstante, os

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resultados são animadores, razão por que pode­mos antecipar o mesmo para nós .

• Limitou-se, por conseguinte, o congresso à c1íngua falada no teatro" por ser mais agudo o problema nesse meio, nunca, porém, sem o ânimo subjacente de depois propor os resultados a que se chegar como padrão para todos os outros usos cultos da língua. Subjacente, por conseguin­te, aos objetivos do congresso está a intenção de ser pura e simplesmente "primeiro congresso brasileiro de língua falada culta", mas "culta" não em sentido classificatório ou discriminativo, e sim no sentido de "instrumento de comunicação para auditórios mais amplos, universais", dentro da universalidade da língua comum e nacional, é óbvio.

Que os observadores não se deixem, portanto, iludir com o designativo restrito do congresso.

Quanto à data, seria de convir que é ela um pouco precipitada. Com efeito, para uma coleta rica e profusa de colaborações - comunicações, teses, moções, motivações, problemas, exposições, vocabulários, monografias de quaisquer tipos -seria o caso de dar maior tempo, com persistente apêlo a todos os colaboradores eventuais, con­gressistas ou não congressistas. Foi, entretanto, premida por diversas conveniências que a comis­são executiva sacrificou um pouco o tempo dese­jável, no pressuposto de que as questões de que o congresso será objeto vivem tão intensamente na preocupação de um sem-número de brasileiros

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por êste , Brasil a fora que não será de admirar venha a ter poucos efeitos negativos a exigüidade de tempo. Aqui, seria então o caso de frisar, com todo o rigor, o fato de que todos os brasileiros, de qualquer profissão, de qualquer instrução, especializada ou não, podem dar sua achega ao congresso, enviando observações relacionadas com os falares locais, com os vocabulários profissionais, regionais. Basta uma simples leitura do prospecto do congresso, que já foi, aliás, tornado público em diversos órgãos da imprensa brasileira, para se compreender aquela possibilidade. E de fato a comissão executiva espera dêsse tipo de colabora­ção material de importância considerável.

Ainda com relação à data de convocação do congresso, não há como silenciar duas outras circunstâncias. De um lado, as comemorações do decenário da Universidade da Bahia, comemora­ções cujo luzimento será maior se contarem com um congresso dêsse tipo. De outro lado, o con­curso de congressistas estrangeiros especializados é indispensável nesse gênero de atividade, porque trará, para um largo círculo de interessados bra­sileiros, uma experiência e uma sabedoria de enorme utilidade para o nosso meio e para o apro­fundamento de múltiplos aspectos de nossos es­tudos. Ora, como a generalidade dêsses congres­sistas estrangeiros é de professôres universitários, não se podia retardar a convocação do congresso, pois de outra forma só poderíamos contar com

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êles nas grandes férias do próximo ano letivo no hemisfério norte, entre julho e setembro de 1957. Não havia, pois, como vacilar.

A designação do congresso comporta ainda um pequeno esclarecimento, de tipo não secundá­rio. Trata-se de língua "falada", vale dizer, o problema fundamental é o relacionado com a pro­núncia em cena. Mas nas condições das civiliza­ções históricas - e o eixo da historicidade continua ~endo a existência ou não da escrita -, é quase .impossível dissociar a língua falada da língua escri~a, sobretudo em casos como o presente, em que se lida com língua comum e nacional. Dessa forma, não era possível excluir de um primeiro congresso uns quantos temas não tanto de inter­pretação teatral, mas de criação teatral, concer­nentes à língua. No Brasil - e também em Portu­gal, quiçá em menor grau - atravessa-se um momento crítico para as chamadas fórmulas de tratamento. lt observação que pertence ao campo da sociologia lingüística ou da lingüística socioló­gica o fato de que certos torneios de tratamento, inicialmente indiretos, tendem a generalizar-se, em detrimento dos outros, dos diretos, numa unificação que reflete em grau maior ou menor o atenuamento das discriminações ou diferenciações das classes e grupos sociais. É expressão, na lú1gua, das relações democráticas em sociedade. Para indivíduos da geração do autor destas linhas, e para os que antecedem à sua, nas nossas condi-

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ções urbanas do Rio de Janeiro, por exemplo, é palpável e evolução que tem tido o "você", incon­cebível, há poucos anos, com a generalidade com que se vem impondo no rádio e na televisão a todos os ouvintes e espectadores, sobretudo na técnica lingüística da propaganda. Agora mesmo, dentre outras degustações que tem provocado a representação de O macaco da vizinha pelo exce­lente grupo do Tablado, não poucos têm sido os que estranharam a maneira "inusitadamente" ceri­!IDoniosa com que os interlocutores se tratam, questão perfeitamente documentada nos nossos romances de costumes e nas nossas peças teatrais de costume. Para a criação "atual", nas condições urbanas do Rio, por exemplo, é um tropêço não pequeno para o autor a questão do tratamento entre os interlocutores de diferentes camadas sociais - e maior ainda, para a "ilusão da realida­de", questões como a de saber se uma declaração de amor se faz, num tratamente de "você", com fórmulas como "eu a amo", "eu lhe amo", "en amo você", "eu amo a você" ou "eu te amo" ...

Não entremos, porém, em pormenores, bas­tando-nos saber que tais pormenores só poderão ter uma solução racional e aceitável se forem enquadrados num conjunto de aspectos orgânicos, cujo estudo e discussão - e fixação - cabem exatamente aos congressistas.

(1956)

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A PROPÓSITO DE NOSSA LlNGUA FALADA

Quando MÁRio DE ANDRADE - com o seu poder de influência e polarização - se aplicou à realização do Primeiro Congresso N acionai de Língua Cantada, que transcorreu em São Paulo faz duas décadas, estava por certo consciente de que iria inaugurar um novo período no estudo da nossa língua.

~ que o problema da língua cantada postu­lava o da língua falada, que nas condições do mundo moderno - mesmo num país de baixo índice de alfabetização como era (e ainda é) o nosso- não se dissocia do da língua escrita, embo­ra cada uma apresente seus caracteres particu­lares.

Em verdade, desde pelo menos o venerando lexicógrafo e gramático pernambucano ANTÔNIO DE MoRAlS SILvA, pelos inícios do século XIX, o estudo gramatical entre nós da nossa língua escri­ta já principiara, e continua até hoje, havendo propiciado o aparecimento de nomes dos mais expressivos, tais modernamente o de M. SAID ALI e o de ÁLVARO F. DE SousA DA SILVEIRA.

A coleta do material folclórico expresso lin­güisticamente, inerente à visão do romantismo,

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gerou, pouco depois daquele pioneiro, a preocupa­ção da língua falada e suas diferenciações, mas só tardiamente aparecem trabalhos de certa monta no particular, em que sobreleva sempre o de AMADEU AMARAL sôbre o chamado dialeto caipira, e junto ao qüal cabem os nomes de ANTENOR NAScENTES, MÁRio MARROQUIM, CLÓVIS MoNTEIRo e poucos outros.

Os Anais do Primeiro Congresso N acionai de Língua Cantada refletem, nas contribuições que lhe foram submetidas, êsse novo aspecto - novo entre nós - do estudo da língua, o falado. Dessa maneira, a iniciativa de MÁRIO DE ANDRADE de­veria vir a ter inevitável conseqüência - a reali­zação de um congresso de língua falada, neces­sidade a que procurou corresponder o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, que se realizou em setembro passado em Salvador, graças ao patrocínio inteligente e fecundo do reitor magnífico da Universidade da Bahia, pro­fessor EncARD SANTos.

A idéia de um congresso dessa natureza nasceu no meio teatral carioca - e possivelmente paulista também - não apenas em atôres, mas em autores, diretores, homens ligados a outras técnicas teatrais - e ocorre-me, no respeito, citar que foram ToMÁS SANTA RosA, AGOSTINHO ÜLAVO, ANTÔNIO CALADO, se não me equivoco MARTIM GoNÇALVES e outros, que a sugeriram ao professor CELSo FERREIRA DA CuNHA, já então diretor da Bi-

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blioteca Nacional, figura notabilizada no nosso meio e fora de nossas fronteiras por seus estudos ligados ao medievalismo de nossa língua e hoje, por certo, dos maiores conhecedores do português onde quer que onde.

E que a idéia surgisse entre gente de teatro mostra bem quanto foi ela determinada pelo próprio progresso do teatro no Brasil, contempo­râneamente, e quanto a vai penetrando a cons­ciência dos problemas técnicos relacionados com a arte de representar.

O fato é que um ensejo se apresentava aos iestudiosos do português de encetarem de forma sistemática aquela tarefa, que, no dizer dos prin­cipais lingüistas modernos, é a condição para um cabal conhecimento de uma língua- a sua dialec­tologia. Esta, por meio de um atlas lingüístico tão minucioso e preciso quanto possível, pode oferecer os materiais e as funções dos instrumentos de comunicação na sua infinita variedade e inte­;rinfluência, para subseqüente interpretação e compreensão, com o que a natureza do instru­mento poderá ser iluminada e apreendida na sua quase total intimidade estática e dinâmica.

1!: que, graças à dialectologia, o caráter emi­nentemente social de uma língua fica patente, mais patente do que nunca. E, com êsse caráter, o de que a língua tem seu destino estreitamente ligado à política - no amplo e nobre sentido desta palavra, escusa dizê-lo - e o de que, assim,

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a práxis social do instrumento de comunicação reflete os estados de uma sociedade, sua dinâmi­ca, passada e presente e não raro sua dinâmica em potência. E, por conseguinte, o estudo de uma língua, nessa direção, pode oferecer possibi­lidades normativas para uma gramaticalização mais atual e moral, e menos dogmática, arbitrária, bizantina e "classificada"; e pode oferecer também subsídios incomparàvelmente importantes para a !história em geral, e das instituições, e das forma­ções regionais, e das expansões demográficas, e da unificação econômica - da nação, em suma, como um todo, já que um dos três componentes funda­mentais de uma nação, a relativa unidade de :reação e comportamento psicológicos coletivos comuns, se traduz por uma progressiva tendência à unificação do instrumento de comunicação, a língua.

Quando os homens de teatro propuseram, pura e simplesmente, aos homens que estudam a língua que êstes "fixassem" a que deveria ser universalmente adotada no Brasil em bôca de cena, para fins não regionalistas, talvez não supusessem a magnitude do problema com que êstes teriam de se defrontar. Para os homens de teatro, a questão era aparentemente simples: queriam que os atôres pudessem exprimir-se, todos, numa mesma língua com o mesmo sabor "nacional", de modo que por trás de um elenco composto, por exemplo, de um gaúcho, mais uma cearense, mais

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um paulista, mais uma pernambucana, etc., pudes­sem os espectadores admitir um Júlio César, uma Desdêmona, um Pier Gynt, uma grã-fina carioca dos nossos dias, uma Moreninha fluminense do século XIX, um Pedro Álvares Cabral, um Camões ou um Castro Alves, sem quebra da "ilusão de realidade", isto é, sem que a língua, com um traço regional discrepante da comunidade lin­güística falada na bôca de cena, "lembrasse" aos espectadores que Romeu não era Romeu, mas um alagoano de ainda há pouco, Júlio César um mato-grossense de nossos dias. . . O desejo dos homens de teatro fundamentava-se, aliás, no pressuposto de que países civilizados, como a França, a Alemanha, Itália, já haviam atingido aquela unidade de falar em bôca de cena, não obstante a larga diversidade de falares regionais que apresentam.

Para os estudiosos da língua, porém, havia uma realidade científica que cumpria respeitar a todo transe: a língua falada no teatro não pode ter sua fonologia - para ater-nos ao problema capital em causa - fixada ao arbítrio do mais agradável, bonito ou que "portasse" melhor -"portar" aí é adaptação do francês porter, no sentido de maior raio de audibilidade para um fonema, verbo que, nesse sentido, parece divulga­do entre o meio teah·al brasileiro. ~sse critério esteticista ou impressionista não poderia ser se­guido, sob pena de se chegar a uma "média" que

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não COlTespondesse a nenhuma das realidades fa­ladas no Brasil, no passado ou no presente. De outro lado, porém, cumpria evitar, também a todo transe, o perigo dos pruridos de orgulho re­gional - já que um gaúcho acha "horrível", ou "engraçado", ou "curioso", ou "pitoresco" o falar de um não gaúcho - e o que se diz do gaúcho dir-se-á de qualquer outro brasileiro de qualquer outra região mais ou menos caracterizada.

Graças ao prestígio e operosidade do professor CELSO FERREIRA DA CuNHA, de par com uma ge­nerosa equipe de colaboradores desinteressados e seus amigos e amigos do problema que se tinha pela frente - professôres SERAFIM DA SILVA NETO, HERON DE ALENCAR, ANTÔNIO J. CHEDIAK, MARTIM GoNÇALVES, CARLos HENRIQUE DA RocHA LIMA, NELSON Rossi e outros - o Primeiro Congresso Bra­sileiro de Língua Falada no Teatro pôde instalar-se a 5 de setembro passado, com o concurso de mais de oitenta congressistas, dentre os quais eminente.s estrangeiros como os professôres PlERRE FouCHÉ, LÉoN BoURDON, I. S. RÉvAH, ÜCTAVIAN NA.."'DRIS, MAURICE MôLHo, franceses; ÁLVARO JÚLIO DA CosTA PIMPÃO, Luís FILIPE LINDLEY CINTRA, portuguêses; EuGENIO AsENSIO, espanhol, e W ALTER RELA, uruguaio. E, embora o lapso de tempo que intermediou entre a idéia inicial e a realização, o congresso pôde ter uma substância, uma atividade fecundas, chegando a resultados satisfatórios para o estágio de conhecimentos pre-

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sentes sôbre a problemática, e acordes, quero crer, com o grau de desenvolvimento da unifica­ção lingüística, que, de certa data para agora, se processa no país. Foram oito dias de trabalho !intensivo, com reuniões matinais, vesperais, no­turnas e sôbre-noturnas.

A finalidade fundamental, a razão de ser por excelência do congresso, são hoje as suas normas para o português falado no teatro brasileiro culto, ou .erudito, ou de âmbito universalista. E mesmo que, por resolução aprovada em sessão plenária, essas normas só devam ser tornadas públicas jun­tamente com os Anais do congresso, cuja circula­ção deverá ocorrer por fevereiro-março do ano próximo, alguns comentários a respeito das mesmas podem ser feitos.

Concordou-se que, na expressão teatral de âmbito universalista, devem ser resguardadas, nas il'ealizações fônicas, as variantes afetivas e as variantes individuais - desde que umas e outras 1não sejam atentatórias das normas preconizadas. Concordou-se, ainda, que, na interpretação de personagens de nítida côr local, devem os .atôres pronunciar com a devida adequação re­gional e social. Concordou-se, implicitamente, que, dado o prestígio de que o teatro goza nas coletividades que o possuem, seu ideal lingüístico, se tornado efetivo, nas suas linhas essenciais passa a ser o ideal lingüístico de tôdas as pro­fissões que. fazem da palavra o instrumento por

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excelência de sua eficácia, vale dizer, homens do rádio, da televisão, e, mais, professôres, parla­mentares, em suma, todos aquêles cuja comuni­cação e expressão queiram ter o maior alcance dentro do Brasil e da língua portuguêsa. E no exame objetivo da fonologia no Brasil, o congres­so, prudentemente, não querendo, com sua eventual autoridade, encampar fatos ainda não elucidados, preferiu silenciar, até posterior conheci­mento maior, o que também fêz com relação a certos fonemas que certos hábitos teatrais supõem mais "portantes", quando não parece, entretanto, haver maior fundamento nisso do que uma questão de psicologia ou de deformação profissional, a que não será, quiçá, estranha certa influência pregressa de portuguêses e atual de estrangeiros nas realizações teatrais brasileiras contemporâneas.

A dialectologia estava presente, como disse­mos acima, no Primeiro Congresso N acionai de Língua Cantada; mais presente estêve no Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro. E essa presença, no último caso, se marcou pela comunicação do professor Luís FILIPE LINDLEY CINTRA - que falou com a autoridade de quem é, hoje em dia, um dos maiores lingüistas portu­guêses, não obstante sua juventude, e de quem é um dos inquiridores e responsáveis do Atlas, a ser breve publicado, Lingüístico da Península Ibérica; pela comunicação do professor I. S. RÉVAH1 a respeito da evolução da pronúncia do

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português, em Portugal e no Brasil, . do século XVI aos nossos dias; pela monografia do professor ANTÔNIO J. CHEDIAK sôbre o linguajar do Es­praiado, localidade próxima a Três Corações, no sul de Minas; e - sem esgotar - pela modesta contribuição que expressamente preparei para o congresso, uma "tentativa de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita cariocá'.

Mas, decorrência dessa dupla presença em ambos os congressos, há urna desejada terceira presença, de corpo inteiro. ~ que foi aprovada, por unanimidade, urna resolução no sentido de que todos os esforços sejam empreendidos para que seja convocado, para setembro de 1958, em Pôrto Alegre, o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia e Etnografia. Da realização dêsse certame, sobretudo se preparado carinhosamente e com a necessária anterioridade, é de esperar um avanço ponderável nos estudos do nosso ins­trumento de comunicação. :f:sse avanço é já hoje imperativo - e ouso ainda aqui, apesar de já me haver alongado demasiadamente, expor-lhe as razões.

~ ponto pacífico - sobretudo para os que encaram os fatos sociais corno complexos de inte­rações em que os homens são, não raro, agentes inconscientes .e pacientes conscientes (além dos combinatórios outros possíveis) - é ponto pa­cífico que das pelo menos três mil línguas que se falam à superfície da terra, mais de duas mil

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e oitocentas estão em franca crise de existência - isso sem falar nos seus dialetos, o que permi­tiria multiplicar o número das unidades por cin­qüenta, provàvelmente. O passado e o presente literário (de certo valor geral para a humanidade) de não mais de quarenta línguas e o fato de que pouco mais de vinte são faladas por mais ·de dez milhões de indivíduos cada uma são, digamos, as coordenadas do futuro lingüístico da humani­dade. Mas o imperativo da dinâmica lingüística humana é - ou parece veementemente - que tendemos para "um mundo só", em que os ins­trumentos de comun\<;ação sejam comuns a grandes extensões territoriais, demográficas e cul­turais, na medida em que progrida a interdepen­dência econômica, material e moral dos homens de tôdas as latitudes e longitudes. Visto dêsse ângulo, o prurido nacional por uma política lin­güística imperialista pouco poderia fazer. Mas o fato é que o ritmo de nossa progressão demográ­fica, a margem dessa progressão no nosso ecúme­no, cuja potencialidade atinge, segundo estimativas prudentíssimas, meio bilião e, segundo outras es­timativas, mais de um bilião de indivíduos, a par com uma valorização muito expressiva do con­teúdo de nossas obras literárias, que se diversifi­cam em títulos e se ampliam na sua audiência -tudo isso garante para a língua portuguêsa, graças sobretudo ao Brasil, uma posição segura entre as grandes línguas futuras da humanidade.

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Não podendo antecipar em que sentido os homens de amanhã saberão lidar com o conheci­mento do passado, mas na certeza de que o sa­berão melhor do que os homens do presente, não é um dever não apenas nacional - oficial e privado - · mas humano tudo fazer a fim de que os nossos descendentes não venham a lamentar a ignorância em que os deixamos de nossa realidade atual, sôbre um patrimônio tão importante quanto é a nossa língua comum?

(1956)

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PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE LlNGUA FALADA NO TEATRO

Como já é do conhecimento público, realizou­se em setembro do ano passado, promovido pela Universidade da Bahia e no qufdro das comemo­:rações do decenário de sua criação, o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, que visava, por iniciativa de diversas pessoas influentes dos meios teatrais, notadamente o múl­tiplo e onipresente em coisas de teatro ToMÁs SANTA RosA, cuja perda será sempre sentida nesse como em outros meios artísticos e profis­sionais, ao estabelecimento de um padrão de pro­núncia que pudesse ser adotado de norte a sul, de leste a oeste do país, sem quebra de "ilusão da realidade".

Graças à operosidade do atual diretor geral d.a Biblioteca N acionai do Rio de Janeiro CElSO FERREmA DA CuNHA, e à adesão de um largo grupo de filólogos e lingüistas, graças à generosa visão da magnitude da tarefa que se tinha em vista :comprovada pela assistência contínua e inteli­gente do reitor magnífico da Universidade da Bahia, assim como pelos Ministérios, da Educação e Cultura e das Relações Exteriores, nas pessoas

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dos ministros CLÓVIS SALGADO e J osf CARLos l>E MACEDO SoARES, o congresso pôde realizar-se em tempo assaz reduzido, contando com o concurso de cêrca de oitenta congressistas, dentre os quais um grupo notável de estrangeiros, nominalmente os professôres franceses PIERRE FoucuÉ, da Sor­bona, e diretor do seu Instituto de Fonética, LÉON BoURDON, também da Sorbona, e diretor do Instituto de Estudos Luso-Brasileiros da ve­neranda Universidade de Paris, I. S. RÉvAH, ÜCTAVIAN NANnrus, MAURICE MÔLI-IO; dos portu­guêses, ÁLvARo JúLIO DA CosTA PIMPÃo, da Universidade de Coimbra, e Luis FILIPE LINDLEY CINTRA, da de Lisboa; do espanhol EuGENIO AsENSIO, do Instituto Espanhol de Portugal, do uruguaio W ALTER RELA.

As suas atividades, realizadas na cidade do Salvador, foram particularmente fecundas, mercê de um trabalho intensivo que se alongou por oito dias, com sessões matutinas, vespertinas e no­turnas, em média de três por dia, havendo-os mesmo com cinco.

A finalidade fundamental do congresso foi realizada, com notável unidade, senão unanimi­dade, de vistas, e são hoje as normas do Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, que deverão ser tornadas públicas, em breve, com os seus Anais, cuja preparação prossegue a passos rápidos, malgra,do as muitas dificuldades gráficas que se opõem a isso, mas que serão superadas

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pela eficiência técnica de nossa Imprensa Na­cional, cujos gráficos estão dispostos a tudo fazer por apresentar trabalho de alto padrão. Com a publicação dos Anais em ampla tiragem e · das normas em separata de número maior de exempla­res, o último ato do congresso terá sido cumprido. Aos homens de teatro brasileiros caberá, depois, ver, na prática, em que grau e até que ponto poderão e deverão seguir as normas preconizadas, normas que se caracterizam, precisamente, pela lflmpla flexibilidade concedida aos atôres em bôca de cena na realização fônica dos seus papéis, proscrevendo, entretanto, quantos traços de nossas pronúncias regionais podem ser, sem va­cilação, reputados rusticismos e regionalismos de cursos restrito ou gravemente atentários da tradi­ção fônica da língua.

Foram, aliás, êsses os grandes problemas discutidos para a fixação das normas, com traba~ lhos sôbre a história da pronúncia do pmtuguês e sôbre a sua dialectologia. f: assim que o pro­fessor Luís FILIPE LINDLEY CINTRA - que falou com a autoridade de quem é hoje em dia um dos maiores lingüistas portuguêses e de quem é um dos inquiridores e responsáveis do Atlas Lingüís­tico da Península Ibérica - pôde apresentar as primícias de sua obra dialectológica ligada a êsse Atlas; o professor I. S. RÉvAH, que antecipou os resultados de seu esh1do sôbre a evolução da

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pronúncia do português, em Portugal e no Brasil, do século XVI aos nossos dias; do professor .ANTÔNIO J. CHEDIAK, que forneceu uma monogra­fia sôbre um falar brasileiro do sul de Minas, assim ·como uma contribuição minha, intitulada "tentativa de descrição do sistema fonético do português culto na área dita cariocà'.

Com a publicação dos Anais, dissemos, esta­rá cumprido o último ato do congresso, mas dois votos deverão ser objeto de realização em futuro próximo: um é o vocabulário ortoépico da língua portuguêsa segundo o padrão brasileiro, e outro é o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia.

O primeiro dêsses votos - ao que estou infor­mado - é já objeto de realização por parte de um grupo de congressistas, com o que disporão os centros de ensino de todo o Brasil assim como quaisquer cidadãos que façam uso da língua ins­trumental como profissionalmente - atôres, homens do rádio, da televisão, professôres, parlamentares - de um livro que lhes poderá dirimir quantas dúvidas possam ter a respeito da boa pronúncia brasileira.

O segundo dêsses votos, de outro lado, já está também sendo encarado com muita seriedade, sendo de esperar que os podêres públicos dêem o melhor de sua atenção e apoio a fim de que se possa reunir em Pôrto Alegre, sob o patrocínio da Universidade do Rio Grande do Sul, que, dessa

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forma, dará, com sua congênere da Bahia, uma lição de como cada universidade brasileira poderá colaborar ao vivo na solução de nossos problemas culturais, além da tarefa de formação de profis­sionais idôneos e capazes.

( 1957)

3

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DIALECTOLOGIA E ETNOGRAFIA

Vai o Brasil aos poucos criando a aparelha­gem científica necessária para enfrentar os pro­blemas fundamentais de seu desenvolvimento. Além de centros já mundialmente conhecidos de pesquisa, como o Instituto Oswaldo Cruz, de Manguinhos, o Museu Nacional, o Museu Goeldi, o Instituto Agronômico do Norte e muitos outros, criou-se em boa hora o Conselho N acionai de Pesquisas, com diversas ramificações - em que os estudos físicos têm predominância justificável, embora imperdoável, se exclusiva. Estamos, porém, na expectativa de que êsse importante órgão se decida a enveredar por outros campos do conhecimento, nominalmente o das chamadas ciências sociais. ·

Aqui, porém, no campo das ciências sociais, parece lavrar entre nós um cisma, que deve, desde o início, ser contra-regrado, sob pena de em breve cairmos numa disputa bizantina, consistente em saber se certas disciplinas e o estudo e pesquisas correspondentes são "humanidades" ou "ciências sociais". Sem mêdo de incidirmos em empirismo ou ecletismo, ou mesmo em pragmatismo ime­diatista, parece bastar-nos o conceito de que a

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realidade física e social brasileira, de sua base às suas formas mais elaboradas e "desinteressadas" ou "gratuitas", deve ser objetivamente estudada e aprofundada. A soma de conhecimentos que daí advier será necessàriamerite útil ao desenvolvi­mento e ao progresso brasileiro. E êste é o ponto que deve ser sublinhado, a fim de que se integre na mentalidade do brasileiro comum, que verá com respeito e dará o devido estímulo a tôdas as formas de conhecimento.

Não é, destarte, sem certo receio que vemos - num movimento pendular compreensível mas injustificável - certos esforços no sentido de criar a mentalidade factual física entre n6s, com em­penho visível de erradicar de nosso meio a heran­ça de uma tradição humanista. Esta deve ser alimentada e incrementada, impregnando-se dos avanços modernos e científicos que a têm caracte­rizado no mundo contemporâneo, nos principais centros culturais da humanidade.

Agora mesmo o ]omal do Comé1·cio acolheu em suas páginas, nas edições de 16 e de 17 de abril corrente, com o realce que merecia, o noti­ciário relativo à criação do Centro Latino-Ameri­cano de Pesquisas de Ciências Sociais, de âmbito intergovernamental, cuja sede será o Rio de Janeiro, centro que se complementa com a Facul­dade de Ciências Sociais, de integração semelhan­te, que terá por sede a capital chilena, Santiago. Sem querermos nem remotamente antecipar-nos

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quanto ao programa de pesquisas que se propõe a levar a cabo o centro referido, cujos esforços nos merecerão a reverência devida, ocorre-nos, contudo, esperar que os aspectos fundamentais do problema lingüístico brasileiro sejam nêle levados em consideração, e em alta consideração. E, dado o caráter latino-americano do mesmo, ocioso é frisar que deveria inserir-se na linha de suas cogitações não apenas o problema lingüístico bra­sileiro, mas o latino-americano em geral, com as características nacionais ou regionais específicas da extensa área geográfica dominada pelo conceito genérico do latino-americano.

~ que o estudo científico do instrumento de comunicação - no nosso caso concreto, a língua portuguêsa feiçoada às nossas características na­reionais - está cada vez mais na dependência de pesquisas de campo, graças às quais se poderá levar a bom têrmo, num futuro que esperamos !não seja remoto, o Atlas Lingüístico do Brasil, tmelhor, o Atlas Dialectol6gico Brasileiro.

Embora o ecúmeno brasileiro seja dos menos -diferenciados do mundo do ponto de vista lin­güístico, malgrado a enorme miscigenação que :nêle se operou de etnias e de línguas, essa mera observação não basta ao conhecimento profundo que desejamos de nossa realidade atual e, decor­Jrentemente, passada, isto é, histórica. Cumpre-nos penetrar o processo de nossa unificação lingüísti-

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ca, compreendê-lo em sua essência, devassá-lo na sua intimidade, no passado e no presente. E que a língua portuguêsa, a longo prazo, se revelou o _instrumento (fique bem claro, instrumento como instrumento) fundamental de nossa unificação. E êsse caráter unificador, que exerceu no passado, exerce-o com mais razão no presente e o fará .mais ainda no futuro. O estudo aprofundado dêsse instrumento é pois indispensável para essa unidade e um meio para reafirmá-la, estruturá-la, consolidá-la e mesmo universalizá-la (em têrmos, bem entendido, pau-brasileiros e não impe­rialistas ) .

E noção que se sedimenta cada vez m;J.is em lingüística e em psicologia que uma língua re­flete, no seu sistema de sistemas e na progressão dêste, o progressivo avanço da psique coletiva no conhecimento da realidade objetiva. Um par­ticular põe de manifesto, imediatamente, êsse fenômeno: é o da expansão quantitativa, para não dizermos também qualitativa, do vocabulário, podendo-se quase estabelecer uma relação ime­diata entre o grau de universalização de uma Jíngua e o acervo de seu vocabulário, razão por que, não sem motivo, é hoje em dia, ainda, a língua inglêsa a que revela maior número de palavras.

Admitido o pressuposto de que uma língua é tanto mais cabal para seus fins instrumentais de

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comunicação e de expressão quanto mais rica fôr de recursos, não é difícil admitir uma noção complementar - a de que o seu domínio por um indivíduo, qualquer que seja êle, c01-responde via de regra a uma soma sensivelmente maior de elementos psíquicos com que possa antenar-se com o seu meio vital. Decorrência como que natural dessas premissas é a convicção de que o conhecimento aprofundado de uma língua comum nacional é um dos fatôres fundamentais da valo­rização de cada indivíduo da coletividade. Dentro dessa ordem de considerações, o conhecimento exaustivo de uma língua naquelas condições se insere programàticamente mesmo como um dos deveres do Estado e dos podêres públicos -quando êstes efetivamente se empenham em realizar obra de alcance nacional.

O estudo de uma língua, porém, não se faz já hoje em dia dentro dos conceitos gramatica­lizados do passado, com as noções por vêzes man­darinas de correção e êrro, sancionadas pelo prestígio de uma côrte ou de uma academia ... Com o advento da lingüística como ciência e, dentro desta, da dialectologia a complementar a noção de historicidade que já penetrara o seu método, ficou patente que o conhecimento por assim dizer integral de uma língua não é possível senão quando essa língua é objeto de uma pene­tração científica na sua evolução no tempo e na

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sua diferenciação no espaço. Mas essa penetra­ção científica depende, por sua vez, da colaterali­dade e reciprocidade do esh1do da língua no tempo e no espaço, de tal modo que um aspecto não se desenvolve satisfatoriamente senão quando o outro aspecto apresenta um desenvolvimento paralelo.

Mas se- um- dos aspectos dêsse estudo se pôde realizar graças à pesquisa individual ou à de equipe em centros de estudo localizados nos grandes meios urbanos, o outro aspecto, o dialec­tológico, pressupõe condições especialíssimas de realização, em que avultam não só as técnicas profissionais dos pesquisadores nomádicos, mas também os meios materiais para a coleta dos dados. Complementarmente, a pesquisa dialec­tológica foi positivando uma intuição comum aos homens: a de que, em extensas secções do voca­bulário de uma língua, o estudo das palavras se tornava cerebrino e falso se desacompanhado qo estudo das coisas que designavam: criava-se, dêsse modo, o método adequado dos W orter und Sachen, como o designaram os seus pioneiros, o das "palavras e coisas", como já está generaliza­do em língua portuguêsa. Foi o caminho automá­tico de enlace da pesquisa dialectológica com a pesquisa etnográfica, já hoje não se concebendo uma sem a outra, quando em trabalho de campü.

Se em certos particulares do estudo da nossa língua comum o Brasil pode gabar-se de apre-

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sentar resultados tão altos quanto os de Portugal, no setor importantíssimo da dialectologia e da etnografia Portugal está na vanguarda, já agora, o que lhe irá eventualmente permitir retomar a hegemonia dêsses estudos. Entretanto, Portugal mesmo, por seus mais eminentes lingüistas e etnógrafos, reconhece que, na dinâmica dos estu­dos presentes, é impossível haver o aprofunda­mento do objeto do conhecimento com assimetria regional dêsse conhecimento.

Com a próxima publicação do Atlas Lingüísti­co da Península Ibérica, Portugal e também a Espanha completam o levantamento dialectológi­co e etnográfico da Europa, de vez que eram os dois últimos países de que se esperava, naquele continente, uma pesquisa (e sua publicação) de tal natureza. Cumpriria, ao ensejo, lembrar que a França, por exemplo, já encetou o seu segundo Atlas, e que nos Estados Unidos da América, na União Soviética, em suma, até mesmo em va­lriados pontos outros da Ásia e da África e da Oceania, vão avançadas pesquisas de tal teor ou <Os preparativos que as possibilitem não só com segurança, mas também para breve tempo.

Com respeito especificamente ao português rdo Brasil, ocorreria lembrar que de há muito se vem fazendo sentir a necessidade imperativa de uma pesquisa exaustiva e exata do nosso domínio dialectológico e etnográfico. Com efeito, o Pri-

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meiro Congresso de Língua Nacional Cantada, malgrado seu objetivo aparentemente limitado, já em 1936, em São Paulo, se viu como que im­possibilitado de chegar a conclusões definitivas sôbre tão urgente problema de normalização, por falta de levantamentos e pesquisas dialetais idôneos; e o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, agora mesmo, em se­tembro de 1956, em Salvador, aprovava moção unânime em que urgia a convocação de um Pri­lllleiro Congresso Brasileiro de Dialectologia, apelando veementemente para os podêres públi­-cos no sentido de encorajarem e possibilitarem a realização dêsse certame, verdadeira encruzilhada J:>ara as pesquisas científicas em matéria de lingüística e etnografia no Brasil. Com isso não :se fazia senão coincidir com um voto do Con­gresso Internacional de Lingüistas, reunido na Haia, em 1928, em que se instou junto ao govêrno tbrasileiro, dentre outros, para que tomasse a si ·a tarefa de patrocinar o empreendimento dos tra­balhos necessários ao Atlas Lingüístico do Brasil, para o estabelecimento do Atlas Lingüístico do Mundo. E, embora tardiamente, o nosso govêrno aceitou inscrever como um dos objetivos perma­!Ilentes do Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa a organização do nosso atlas lingüístico, 1Sem, porém, propiciar meios materiais para tão avultada emprêsa.

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Pode-se, nesta conformidade, asseverar que, se há aí um aspecto relevante para o conheci­mento humano em geral, é êle ainda mais urgente no que se refere a nós mesmos, brasileiros, que teremos assim a chave de um perfeito conhe­cimento de nossa língua na sua feição típica bra­sileira e nas modalidades regionais, locais, urbanas ou rurais, chave, também, para uma política lin­güística consciente e lúcida quanto aos múltiplos problemas de expansão cultural, de unificação nacional -e de valorização político-social de nossa coletividade.

Para os espíritos sequiosos de resultados objetivamente mensuráveis, semelhante pesquisa e sua descrição têm vários outros alcances, alguns dos quais poderemos apenas aflorar aqui. Denh·e êsses, merece referência em primeiro plano o quadro da vida agrária, na sua autenticidade essencial, quadro graças ao qual as tarefas de !l'acionaHzação do nosso meio rural, através de uma política e de uma legislação agrária que consubstanciem a reforma de que tanto necessita o Brasil no caminho do seu desen~olvimento, se poderá levar a cabo com conhecimento das par­ticularidades institucionais, instrumentais, morais, afetivas e sentimentais das diversas regiões bra­sileiras, com seus usos e costumes, ora favoráveis, ora desfavoráveis a tais e quais medidas que teOricamente forem preconizadas para a melhor execução da reforma agrária.

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Nas condições objetivas do Brasil contem· porâneo, o rádio, o cinema, a televisão, o avião vão sendo fatôres de precipitação da nossa unifi­cação lingüística. Nesse ponto, no Brasil, assisti­mos, pioneiramente, ao processo geral que se verifica na humanidade contemporânea tôda inteira, de suceder, a uma infinidade de línguas altamente dialectalizadas, umas poucas línguas de cultura, com o domínio de amplas áreas geográ­ficas densamente povoadas, línguas dentre as quais (mas sem esgotar a relação) se ressaltam, inelutàvelmente, por um futuro mais ou menos longo, o inglês, o espanhol, o chinês, o russo, o árabe e o português, êste graças essencialmente ao potencial brasileiro - de que não é lícito du­vidar, por maiores que possam ser as restrições cépticas. No caso concreto brasileiro, as referên­cias dialectais esparsas de algumas décadas atrás já não são, muitas vêzes, confirmadas pela obser­vação hodierna, o que reflete bem quanto se acelera a unificação referida. Isso, que é obviamente um bem no sentido de nossa unidade, é contudo um fenômeno de transcendência, que deve ser urgentemente focalizado e caracterizado na sua realidade viva em mudança, a fim de que o conhecimento desta nossa língua comum que se forja dia a dia dentro de nossas fronteiras não venha a apresentar de futuro enigmas que jamais possamos elucidar. E que os fatos lingüísticos, quaisquer que sejam êles, devem repercutir no

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sistema de sistemas que é uma língua, criando, se não caracterizados agora, sobretudo para uma língua comum nacional de cultura, futuras difi­culdades instransponíveis à tarefa científica de ,sua penetração objetiva. Estamos assistindo, na dinâmica social brasileira, a complexos fenômenos lingüísticos que continuam ou subvertem tendên­cias profundas da deriva ou das derivas da língua portuguêsa no Brasil. Alguns dêsses fenômenos se vêm revelando - digamos assim - recessivos, isto é, contra-regráveis pela disseminação da cultura; outros, porém, parecem dominantes e tendem a incorporar-se em definitivo ao sistema de sistemas do português do Brasil. Pergun­tar-se-á, então, com tôda a procedência: como .'Vislumbrar, com a necessária antecipação, uns e outros, a fim de que possamos preconizar uma política lingüística consciente no plano da normali­zação, da padronização, da gramaticalização, do ensino, da correção das pronúncias, da ortologia, da logoaudiometria, senão mercê das revelações e ensinamentos que se depreenderão do nosso Atlas Lingüístico e Etnográfico? A realidade nua e crua é que, malgrado o número ponderável de estudos gramaticais e filológicos que já podemos ostentar, não sabemos efetivamente o que é e como é a língua portuguêsa, sobretudo no Brasil, ·e assistimos estarrecidos ao divórcio crescente entre a disciplina gramatical canônica e a criação literária viva.

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A lição depreendida pelos dois congressos brasileiros apontados linhas acima - o Primeiro Congresso de Língua Nacional Cantada, realiza­do em São Paulo, em 1936, e o Primeiro Con­gresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, em Salvador, em setembro do ano passado -autoriza-nos a supor que nenhum caminho é mais indicado para o levantamento colegiado dos pro­blemas que se relacionam com a dialectologia e a etnografia brasileiras do que o da realização de um congresso específico naqueles mesmos lmoldes. Nesse sentido, pois, o Jornal do Comércio não vacila em recomendar ao exame das autori­dades brasileiras, legislativas e executivas, a opor­tunidade de corresponderem ao voto proferido unânimemente no segundo dos dois congressos referidos, a saber, o de patrocinarem, veemente­mente, a realização de um Primeiro Congresso Brasileiro de Diahictologia e Etnografia. A idéia, que já está lançada desde então, está fecundando a mente e o devotamento de diversos estudiosos, havendo sido escolhida, inclusive, a cidade de Pôrto Alegre para a sua realização. Tenta-se, no IJllOmento, articulá-lo para setembro de 1958. O govêrno brasileiro agiria com funda consciência dos problemas culturais e científicos nacionais se não vacilasse em desde já emprestar seu decidido apoio àquela realização. ~ que, pela experiência anterior, com um mínimo de despesas, se pode proceder ao congraçamento de estudiosos estran-

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geiros e nacionais, com a representação universa­lista necessária a tais estudos, em cuja oportuni­dade se poderá proceder à discussão e exame não apenas do problema metodológico, mas também à análise e interpretação de achegas preciosas de vária natureza que sem dúvida serão trazidas ao plenário de tal congresso. A experiência anterior, ademais, ao contrário do que muito espírito derro­tista poderia alegar, revela que o estudioso bra­sileiro já está possuído da mentalidade colegiada indispensável para a discussão e o planejamento de uma tarefa coletiva de tal envergadura.

Seria, outrossim, num congresso dêsse tipo que poderiam ser examinadas as possibilidades de a pesquisa em causa ser levada a têrmo com a colaboração de entidades e organizações nacionais que funcionam efetivamente, tal como, entre outras, mas sem querer esgotar nem de leve a lista, a Campanha Nacional de Mobilização contra o Analfabetismo, o Instituto Brasileiro de Geogra­fia e Estatística, a estrutura dos corpos do exérci­to nacional e de um modo geral das nossas fôrças armadas, bem como da Igréja, assim como de entidades privadas várias cujo concurso poderia ser pôsto a serviço de um tentame de verdadeiro alcance nacional.

O Jornal do Comé1'cio, ao lançar êste apêlo por suas colunas, abre-as também à discussão dos interessados, que poderão trazer seu ponto de vista, favorável ou desfavorável. E se reserva,

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outrossim, a oportunidade de voltar à questão, para novos esclarecimentos, reiterando aos podêres públicos sua convicção de que não se pode dila­pidar o ensejo que ora se oferece de realizar o primeiro "retrato do Brasil", em corpo inteiro, real, sem retoques, sem ilusões, mas retrato que poderá dar a medida de quanto é necessário para a vitalização do retratado - que é apenas isto: o Brasil.

o o o

O Jornal do Com-ércio- empenhado de forma construtiva em debater aspectos da problemática cultural brasileira e dêles participar - encetou na sua edição dominical de 28 de abril passado, sob o título "Dialectologia e Etnografia", um inquérito em que pôs em evidência não só a opor­tunidade de se enfrentarem entre nós as merlidas preliminares ao levantamento de nosso Atlas Lingüístico e Etnográfico, mas também a con­veniência de essas medidas serem levadas a bom têrmo no mais curto prazo possível.

Diversas condições fundamentais já se acham preenchidas para que se possa coroar de bom êxito êsse importante tentame: contamos, já nesta altura de nosso desenvolvimento histórico, com maturidade cultural e compreensão coletiva para o alcance da tarefa; dispomos de diversas orga­nizações de âmbito e estrutura federativa que, funcionando eficazmente, podem emprestar sua

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por fim mas não só, o relativo atraso material, moral, intelectt,~al e instrumental de grande parte das populações dessa extensão territorial. Ora, enquanto a pesquisa dialectológica e etnográfica nos principais países europeus se fêz na base audi­tiva, por meio de um só inquiridor-coletor, no máximo dois, pelo menos para grandes áreas, às vêzes para um país só - essa metodologia se manifesta, de pronto, absolutamente inadequada às condições brasileiras, ainda que os inquiridores­coletores, de ouvidos bitolados, coordenados entre si na suas percepções e experimentados num programa-guia fixo nos seus fins e meios, se de­dicassem apenas a uma região natural ou a uma unidade da federação. A realidade é que dentro da concepção do inquiridor-coletor único não po­deremos, tão cedo e talvez nunca, desincumbir­nos dêsse dever cultural nacional e humano. Entretanto, a ninguém escapa que a conveniência de um só inquiridor-coletor decorria principal­mente da necessidade de uma só percepção audi­tiva como instrumento de aferição: era, pois, sobretudo o problema de um rigoroso estabeleci­mento de isoglossas que determinava a coleta fonética por um só inquiridor. Com as técnica­modernas de gravação por meio de aparelhagem portátil êsse aspecto pode, a rigor, ser considerado superado, pois a avaliação e caracterização do& fonemas poderá ser, com muito maior rigor, feita no centro coordenador da pesquisa dialectológica

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e etnográfica. Para os demais aspectos da coleta, o que parece relevantemente importar é o ques­tionário lingüístico-etnográfico, que possa orientar, com precisão mas com flexibilidade também, o inquiridor, os inquiridores, nos diversos pontos do território nacional

A experiência de Portugal, no particular, é bem ilustrativa. S6 em data recente pôde o pro­fessor Luís FILIPE LINDLEY CINTRA dar por ter­minada a sua tarefa de coletar os elementos para o Atlas Lingüístico da Península Ibérica no que toca aos dialectos portuguêses, após anos contínuos de esforços. Mas o professor MANUEL DE PAIVA BoLÉo dá-nos, eventualmente, uma direção pros­pectiva da tarefa, por meio do inquérito por cor­respondência, inquérito que - fique claro desde logo - não pode dar senão elementos indicativos, jamais conclusivos, precisos e exaustivos. Cogita­se, porém, com todo o cabimento do recurso a uma modalidade afim do inquérito por corres­pondência para fins prospectivos, como preliminar técnica para o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia e Etnografia. O professor PAIVA BoLÉo recorreu, essencialmente, para o seu in­quérito aos integrantes do clero português, como destinatários-inforrnadores. Nas nossas condições, fôrça é reconhecer que o recurso ao clero do Brasil não é o mais indicado - pelo menos exclu­sivamente - pelo simples fato de que é êle muito pouco numeroso na extensão do nosso território e

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AN'l'ÔN!O HOUAlSS

uma fração ponderável de seus integrantes é constituída de estrangeiros, vale dizer, de aloglo­tas - o que de pronto invalida a legitimidade de tais informadores. O informador ide~l - a pre­sumir a possibilidade de um só, pois a tendência atual é reconhecer a conveniência de pelo menos dois, um do sexo masculino e outro do sexo fe­minino, quando não de mais, segundo as idades também e as profissões - o informador ideal deve ser natural da localidade sôbre a qual infor­ma e, se possível, deve também jamais ter estado fora do seu torrão natal, a fim de que suas infor­mações sejam "puras", não miscigenadas, tanto quanto aos fatos lingüísticos quanto aos etnográ­ficos; idealmente também deve ser pouco cultura­lizado, se possível iletrado, para que a "segunda natureza" da mensagem escrita não deforme a autenticidade do seu depoimento.

O professor SERAFIM DA SILvA N~rro - cate­.drático de língua portuguêsa e de filologia ro­mânica da Pontifícia Universidade Católica e filólogo patrício conhecido por seus trabalhos, vários dos quais voltados para o nosso problema .dialectológico -, depondo sôbre o problema da formação do inquiridor-coletor, propende a reco­nhecer que a pesquisa dialectológica-etnográfica ideal deveria ser feita, para a área mais extensa possível com iguais características lingüísticas básicas, para uma unidade lingüística nacional em suma, por um só inquiridor, que deveria ter

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excepcionais qualidades pessoais e de formação. Reconhece, porém, que o inquiridor-coletor ideal não pode ser usado na problemática dialectoló­gico-etnográfica brasileira, ainda que dispondo de meios instrumentais e materiais os mais per­feitos para a sua coleta, tais como aparelhos de gravação e um questionário-guia rico de sugestões e lembretes. Um homem nessas condições deve­ria, a par de tais características e recursos, ter uma longevidade mínima de. . . duzentos anos. Decorrentemente, aceita como inevitável a ne­cessidade de procedermos à pesquisa de campo no Brasil por meio de muitas dezenas de inquirido­res-coletores, se satisfeitas certas garantias de unificação de meios e fins. A singularidade aceita que se oponha a multiplicidade, com o fim de compensar as eventuais deficiências decorrentes das diferenças pessoais dos inquiridores-coletores pela massa de informações obtidas. E preconiza, destarte, depois de organizado um questionário mínimo prévio, o adestramento maciço de infor­madores-inquiridores. Advogando, de outro lado, a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia e Etnografia para setembro de 1958, em Pôrto Alegre, sugere, entretanto, que se pro­ceda à realização de um colóquio - ou vários, consoante forem os resultados obtidos - nesta capital, lembrando nomes que poderiam partici­par dêsse debate prévio de forma fecunda e útil, sem pretensões a esgotar lista e desculpando-se de

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eventual omissão, por ventura até imperdoável. E os nomes que lhe ocorrem são os dos senhores CELSo FERREIRA DA CuNHA, SiLVIo ELIA, MANUEL DIEGUES JúNIOR, EDISON CARNEIRO, .ARTUR CÉSAR FERREIRA REis, DARCI RIBEIRO, Luis .AGUIAR DA CosTA PINTO, além de representantes de organi­zações culturais como o I. B. G. E., a Biblioteca Central do Exército, o Museu Nacional, o Museu do 1ndio, o · Serviço N acionai de Proteção aos índios, a Casa de Rui Barbosa, as academias de filologia e de letras.

Aproxima-se o dia do nosso próximo recen­seamento decenaJ, que deverá ocorrer, se tudo fôr de acôrdo com os planos, a 1.0 de julho de 1960. Iremos, de novo, ter o levantamento individuado de certos aspectos característicos de nossa civili­zação. De novo, iremos ter dados relevantes para o estudo de nossa demografia, das suas grandes tendências, de sua expansão, de suas recessões e de suas conexões com o nosso desenvolvimento econômico. De novo, iremos ter dados expressi­vos sôbre o desenvolvimento de nossa produção e consumo, sôbre o desenvolvimento de nossas di­versas áreas ecumênicas. De novo, enfim, iremos aparelhar-nos daqueles índices que podem per­mitir, aos Estados modernos, uma política de

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desenvolvimento consentânea com os grandes in­terêsses coletivos.

Na medida em que um Estado se interessa, de fato, por suas populações; na medida em que êsse interêsse se diversifica, indo além da mera preocupação de polícia (no sentido restrito de aparelho de contenção), para o de justiça e de amparo e estímulo social e cultural; na medida, em suma, em · que o Estado moderno procura conseguir de cada membro do corpo social um status que seja consentâneo com o máximo rendi­mento de suas potencialidades humanas, para sua felicidade individual e para sua melhor eficácia dentro do mesmo corpo social, na medida disso tudo o aparelho de suas estatísticas se torna mais amplo, diversificado também, representativo e respeculativo. Em breve, s·ob as rubricas clássicas de estatística demográgica, econômica e social, o que se esconde é uma omnímoda indagação, que vai do indivíduo para a coletividade, do nascituro para o morto, do zero econômico individual para a emprêsa monopolística, do fato instrumental puro (como a língua) para o conteúdo aparente­mente puro (!) como o crime passional, das áreas assimetricamente desenvolvidas mas em atraso para as ditas hi.pertrofiadas no seu desenvol­vimento.

As considerações anteriores visam, é claro, dar uma idéia sumária de que aqui no Brasil, também, nossas estatísticas estão evoluindo dentro

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daquele esquema. De fato, a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística é, no res­peito, o marco miliar fundamental da relativa modernidade do nosso Estado, ou, pelo menos, oa relativa capacidade de nosso Estado de moder­nizar-se. E o mesmo Instituto vem fazendo obra sob muitíssimos aspectos louvável. Se, por vêze:s, os dados não são de tôda a confiança, isso deve ser ]evado antes à conta do atraso do meio, pms uma relação e}j:iste inalienável: os dados estatístl· cós são tanto mais exatos, potencialmente, quanto mais desenvolvidos técnica, científica, moral e culturalmente é o meio de que promanam; o Instituto, por vêzes, será vítima da incompreensão de certos ·manipuladores dos seus dados, mas serão antes êsses manipuladores críticos os alienados do meio - indivíduos que, nostàlgicamente, vivem meios que não o brasileiro.

A inter-relação dialética entre a exatidão do~ dados estatísticos e o avanço do meio de que são expressão é, assim, ponto pacífico, pois de fato a exatidão aumenta na medida em que o meio avança e o meio, por sua vez, pode avançar na medida em que se faça a co,rreta aplicação prá­tica dos dados obtidos. ~ que, com efeito, os dados estatísticos e tôdas as suas configurações tabelares, percentuais, relacionais e o que mais fôr só tem valor como elementos para, como dados para, como ser-para.

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As características da pesquisa estatística no Brasil, de tôdas as formas (demográficas, econô­micas, e financeiras, culturais, sociais), são funda­mentalmente alienígenas. f: que, por ora, não tivemos ainda a coragem de enfrentar a pro­blemática brasileira em têrmos de o "petróleo é nosso" - têrmos que, apesar da aparência pilhé­rica, são imperativos, a esta altura do nosso desen­volvimento. f: que, nas nossas condições sociais, devemos obter dados daquelas formas que possam permitir uma lúcida política social - mesmo que esta seja, para certas classes, suicidas. A tecno­logia em que vivemos, no Estado em que vivemos, não é, necessàriamente, um despistamento de classe. Pode-o, está claro, ser, mas pode permitir, também, um processo autogênico em que, a partir de certas fases, outras tenham que necessària­mente ser atingidas. f: o que se verifica, por exemplo, com o empastamento já atingido, para certo tipo de problema muito nosso (qual é o da educação), por certos estudos com êle relaciona­dos, estudos que, apesar de tudo, foram desen­volvidos ao amparo e aós cuidados do próprio Estado.

As razões determinantes da necessidade de que cada comunidade lingüística possa ter sua fisionomia caracterizada exaustivamente são de vária natureza. A técnica de apreensão dessa

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fisionomia lingüística é chamada dialectologia, cujos resultados só se tornam válidos se expostos em forma de atlas. O atlas lingüístico de uma comunidade lingüística é, por conseguinte, aquêle registro mercê do qual todos os aspectos e par­ticularidades dessa comunidade lingüística possam ser descritos, sistematizados, analisados. Haverá, entretanto, nessa tarefa, alguma vantagem, algum alcance de índole prática, operativa - ou se trata de. mera erudição estéril, sem nenhum valor imediato?

E ponto pacífico que o psiquismo humano só se alça à categoria de fenômeno sui generis dentro da evolução natural a partir do momento em que, 'O animal, hominizando-se, é capaz de sair da es­treita esfera do espaço vital limitado às sensações e consegue entrar nos atos de abstração, graças à qual todo o conhecimento deixa de ser empírico e pode aspirar às formas sistemáticas, generaliza­claras e organizadoras. Essa hominização é mar­cada pelo advento da linguagem, que é a um tempo expressão e instrumento daquela capaci­dade psíquica de abstração. Por êsse motivo, o fenômeno lingüístico se eleva à categoria de fonte e de meio de conhecimento, graças ao qual a tradição, a transmissão de saber e a ação humana se podem fazer atuantes e efetivos. Se a lingua­gem é isso, é, porém, algo mais ainda do que ~sso, do ponto de vista das comunidades nacional­mente organizadas. Uma comunidade nacional -

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SUGESTÕES PARA UMA POÚTICA DA ÚNGUA 63

salvo os casos incidentais de multilingüismo intra limitibus (que terá sido não um fator favorável à unidade nacional, antes terá sido um fator desfa­vorável, apesar do qual a unidade nacional se pôde forjar, mercê de sacrifícios coletivos maiores) - uma comunidade nacional é tanto mais efeti­va, tanto mais consolidada, tanto mais estável e tanto mais capaz de progresso, quanto maiores características de unidade falada e escrita - vale dizer, também, pensada - apresentar. O fenôme­no do Estado, como elemento unificador por ex­celência, como instrumento de interêsses comuns que se consolidam, tem por conseguinte que se basear sempre na possibilidade de unificação lingüística, como instrumento eficaz de sua ação. As línguas, entretanto, desde que expostas às suas 'tendências internas pura e simplesmente, não tendem à unificação, senão que à diferenciação.

~ por êsse motivo fundamental, pois, que na política nacional de todos os Estados conscientes de seus fins se inscreve como uma das diretrizes fundamentais . de sua existência a consecução de uma língua comum nacional - o que se consegue através da intensiva culturalização dos seus na­cionais. Essa culturalização, entretanto, no passado se podia exercer graças ao poder coercitivo do centro (mesmo que periférico) político, ou reconômico, ou cultural. A vocação democrática das estruturas estatais modernas não pode, porém, exercer-se coercitivamente sôbre as regiões lin-

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güísticas de tendências diferenciadoras, de tendên­cias eventualmente emancipadoras. Tem, ao .contrário, que fundar-se em interêsses comuns que a diferenciem das demais unidades nacionais lingülsticamente caracterizadas. Só mercê dessa unidade nacional lingülsticamente caracterizada é que se poderá entrar na concorrência internacional com vistas a um lugar ao sol da humanidade presente e futura, para a qual, com visos de tôda possibilidade, se prevêem umas poucas .línguas comuns, que sotoporão um sem número de línguas politicamente menos estáveis.

Urge, destarte, que o Brasil enverede pelo caminho dos estudos objetivos de suas diferenças dialectais, a fim de que se possa não apenas cuidar de sua unidade lingüística, para que não se lhe agrave a diferenciação e para que se con­solide sua unidade. Uma política lingüística dessa natureza tem que ser feita na base do conheci­mento pleno da realidade lingüística. ~ com igual pensamento que todos os Estados modernos vêm não apenas aceitando os estudos dialectológi­cos, mas estimulando-os e amparando-os. ~ que, ademais de metodologia de conhecimento da na­tureza humana na sua conexão com o psiquismo humano, a dialectologia é, também, o meio graças aos quais as linhas da política lingüística podem ser realistamente seguidas, sem coerções mais violentas e sem eleições de padrões lingüísticos. arbitrários. Os padrões lingüísticos arbitrários,

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precisamente porque arbitrários, tendem a divor­ciar progressivamente as camadas falantes das camadas letradas ou culturalizadas, divórcio que é obstáculo para a disseminação da cultura, obstáculo para a unidade nacional, obstáculo para a ação concertada e coerente das coletividades nacionais, obstáculo, enfim, ao progresso nacional.

Precisamente porque a caracterização na­cional depende tão estreitamente de sua fisiono­mia lingüística, a dialectologia é, hoje em dia, uma técnica de conhecimento que não se exaure apenas nos limites de uma nação, com seu territó­rio. Aspira à universalidade, para melhor entender as diferentes nacionalidades, as vocações culturais extranacionais e mesmo humanas, indiscriminada­mente. Decorrência dêsse conceito firmado sem a menor sombra de dúvida no espírito das cole­tividades cultas do mundo inteiro, a dialectologia é hoje em dia campo de ação decidida de todos os Raíses interessados em subsistir como unidade nacional do fuhuo, qualquer que seja êsse futuro. Por isso, é de ver que a Europa tôda inteira, grandes seções do mundo asiático, africano e mesmo oceânico podem orgulhar-se de possuir sua caracterização lingüística em atlas próprios. No parti~ular, a América latina é um dos pontos mais retardatários do mundo e, dentro da Amé­rica latina, o Brasil, pela complexidade que re­veste a pesquisa dialectológica na extensão do seu imenso território.

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A técnica de pesquisa dialectológica supõe a coleta das características lingüísticas de um núme­il'O de localidades - quantas mais, melhor -, características fonéticas, morfológicas, sintácticas, vocabulares, paremiológicas. Mercê da coleta dessas características, que podem ascender a mi­lhares, senão que a dezenas de milhares, é que se levantam os mapas lingüísticos. Semelhante coleta, a cuja análise e sistematização se procede após o levantamento de um "grande número" de dados, supõe não apenas aptidões pessoais, espí­rito de sacrifício e devoção, mas também uma preparação especializada excepcional. Acresce, ainda, que no terreno vocabular não pode ela ser feita sem associação às coisas designadas, o que vincula essa técnica umbilicalmente à da etno­grafia. Nessa associação, por exemplo, hábitos, .costumes, crenças, trajes, métodos de trabalho agrícola, artesanal, artístico, tudo isso tem de ser levantado - propiciando campo essencial para quaisquer medidas tendentes à eficácia dos méto­dos de ensino, da erradicação de tradições espúrias ou nocivas e à implantação de atitudes adequadas ao progresso, à saúde, ao bem-estar e à produ­tividade.

Duvidar da necessidade de emprêsa seme­lhante para o Brasil contemporâneo é prova ou de ignorância do que seja uma realidade científica com seu alcance operativo e factivo ou de vocação passadista. E supor que tarefa tão imen~a possa

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ser produto de elucubração de gabinete é desco­nhecer o quanto a realidade é por vêzes contrária à gratuidade de suposições e convicções. Para que, prudentemente, se estime a magnitude da tarefa que o Brasil tem pela frente nesse parti­cular, é preciso que se compreenda que, na extensão dos oito e meio milhões de quilômeh·os quadrados de nosso território, talvez venhamos a despender mais de meio século de trabalho para a mera fase de coleta e análise. Quanto mais tarde principiarmos, tanto mais tarde poderemos colhêr os frutos que dessa fisionomia poderão advir para o progresso material, moral, cultural, social, sanitário, intelectual dos brasileiros.

Desnecessário, quanto à nossa História, res­saltar, de outro lado, as luzes que dêsses estudos advêm para o conhecimento de nossa formação, a penetração e expansão territorial, as migrações internas, a ação recíproca dos ·centros urbanos ~ da periferia rural.

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Realizada numa extensão geográfica enorme com tão íntimas e necessárias vinculações huma­nas, graças ao que é o território brasileiro um dos ecúmenos relativamente menos diferenciados do mundo do ponto de vista lingüístico - da uni­dade nacional é possível afirmar ser ela uma vo­cação coletiva que dia a dia se aperfeiçoa e con-

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solida. O instrumento fundamental dessa unifica­ção foi, é e será a nossa língua comum. O estudo aprofundado desta é, por conseguinte, um impe­Tativo dessa unidade e um meio para reafirmá-la, estruturá-la e universalizá-la.

Cientificamente, é de todo o ponto verossímil dizer que a língua reflete, no seu sistema de sistemas e na expansão dêste, o progressivo avanço de nossa psique coletiva no conhecimento de nossa realidade objetiva, condição precípua para que possamos pôr a esta a serviço do interêsse nacional, compreendido como o somatório da valorização humana de cada brasileiro. Torna-se, assim, um dos fatôres fundamentais da valoriza­ção do homem brasileiro o seu domínio tanto quanto possível completo de seu instrumento de comunicação - de sua língua, em suma.

Não menos importante, porém, nesta ordem de idéias, é o princípio de que o conhecimento de uma língua não se faz integralmente possível senão quando essa língua é objeto de uma pene­tração científica} na sua evolução no tempo e na sua diferenciação no espaço. Mas essa penetração científica depende, por sua vez, da colateralidade e reciprocidade do estudo da língua no tempo e no espaço, de tal modo que um aspecto não se desenvolve satisfatoliamente senão quando o outro aspecto apresenta um desenvolVimento pa­ralelo. Portugal, nesse respeito, continua - fôrça é reconhecê-lo - na vanguarda dêsses estudos,

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no que tange à nossa comum língua portuguêsa, rapresentando inclusive, neste momento, um fator de avanço ponderável, em relação ao Brasil, com o término do levantamento lingüístico, dialecto16-gico e etnográfico de sua diferenciação no espaço, dentro de suas fronteiras européias, e com sua próxima descrição e caracterização objetiva, para breve publicação, no monumental Atlas Lingüísti­co da Península Ibérica.

Com a publicação dêsse Atlas, Portugal e também a Espanha completam o levantamento dialectológico e etnográfico da Europa, de vez que eram os dois últimos países de que se espera­va uma pesquisa, e sua publicação, de tal natu­reza. Cumpriria, ao ensejo, lembrar que a França, por exemplo, já encetou o seu segundo Atlas; e que nos Estados Unidos da América, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em suma, até mesmo em variados pontos outros da Ásia e da África, vão avançadas, quando não ultimadas, pesquisas de tal envergadura e natureza.

Diversos pronunciamentos das mais altas autoridades cientificas, em geral, e dialectológi­cas e etnográficas, em particular, ressaltam a in­,comparável significação para o conhecimento do fenômeno lingüístico que é o levantamento de um atlas de tal teor. :!!: nesse sentido que a obser­vação de CHARLEs N ODIER ( 1780-1844), grande literato e grande dialectólogo francês, se erige à

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categoria de apoftegma que a ciência contempo­rânea confirma:

r en conclus même quelque chose de plus absolu, ce qu' on appellera, si l' on veut, un paradoxe, et cela m'est égal: c'est que tout homme qui n'a pas soigneusement exploré les patois de sa langue ne la sait encore qu'à demi.

Com respe1to, especificamente, ao português do Brasil, ocorreria lembrar que de há muito se vem fazendo sentir a necessidade imperativa de uma pesquisa exaustiva e exata do nosso domínio dialectológico e etnográfico. Com efeito, o Pri­meiro Congresso de Língua Nacional Cantada, malgrado seu objetivo aparentemente limitado, já em 1936, em São Paulo, se viu como que impos­sibilitado de chegar a conclusões definitivas sôbre tão urgente problema de normalização, por falta de levantamentos e pesquisas dialectais idôneos; e o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Fala­da no Teatro, agora mesmo, em 1956, em Salvador, aprovou moção unânime em que urgia a convo­cação de um Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia, apelando veementemente para os Podêres Públicos no sentido de encorajarem e possibilitarem a realização dêsse certame, verda­deira encruzilhada para as pesquisas científicas em matéria de Lingüística e Etnografia no Brasil.

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Com isso, não se fazia senão coincidir com um voto do Congresso Internacional de Lingüistas, reunido na Haia, em 1928, em que se instava junto ao Govêrno brasileiro, dentre outros, para que tomasse a si a tarefa de patrocinar o empreen­dimento dos trabalhos necessários ao Atlas Lin­güístico do Brasil, para o estabelecimento do Atlas Lingüístico do Mundo. E, embora tar­diamente, o nosso Govêrno aceitou inscrever como um dos objetivos permanentes do Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa a organização do nosso atlas lingüístico, sem, porém, propiciar meios materiais para tão avultada emprêsa. Pode-se, nesta conformidade, asseverar que, se há aí um asphcto relevante para o conhecimento ~umano em geral, é êle ainda maior no que se Tefere a nós mesmos, brasileiros, que teremos assim a chave de um perfeito conhecimento de nossa língua na sua feição típica brasileira e nas ·suas modalidades regionais, locais, rurais ou urba~ nas, chave, também, para uma política lingüística ·consciente e lúcida quanto aos múltiplos proble­mas de expansão cultural, de unificação nacional e de valorização político-social de nossa unidade :coletiva.

Nas condições objetivas do Brasil contempo­râneo, o rádio, o cinema, a televisão, o avião vão sendo fatôres de precipitação de nossa unificação lingüística. As referências dialectais de algumas décadas atrás já não são, muitas vêzes, confirma-

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das pela observação hodierna, o que reflete bem quanto se acelera aquela unificação. Isso, que é obviamente um bem no sentido da nossa unidade, é, contudo, um fenômeno de transcendente im­portância, que deve ser urgentemente focalizado e caracterizado na sua realidade viva em mudança, a fim de que o conhecimento desta nossa língua comum que se forja dia a dia dentro de nossas fronteiras não venha a apresentar enigmas que talvez jamais possamos elucidar. ~ que os fatos lingüísticos, quaisquer que sejam êles, devem repercutir no sistema de sistemas que é uma Jingua, criando, se não caracterizados agora, futu­>ras dificuldades intransponíveis para a tarefa <Científica de penetração objetiva de nossa reali­dade lingüística, realidade lingüística de capital importância não apenas para o Brasil, mas para a humanidade mesma tôda inteira, visto que é certo que num futuro não remoto será ela o instrumento de comunicação de uma coletividade em expansão das mais numerosas e das mais ricas de suostân­cia. Estamos assistindo, na dinâmica social bra­sileira, a complexos fenômenos lingüísticos que continuam ou subvertem tendências profundas da deriva ou das derivas da língua portuguêsa no Brasil; alguns dêsses fenômenos se vêm revelando IJ.'ecessivos - digamos assim -, isto é, contra­regráveis pela disseminação da cultura; outros, porém, parecem dominantes e tendem a incorpo­rar-se em definitivo ao sistema de sistemas do

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português do Brasil. Como vislumbrar, com a antecipação necessária, uns e outros, a fim de que possamos preconizar uma política lingüística cons­ciente no plano da normalização, da padronização, do ensino, da correção das pronúncias, da ortolo­gia, senão mercê das revelações e ensinamentos que se depreenderão do nosso Atlas Lingüístico e Etnográfico? A realidade nua e crua é que, malgrado o número ponderável de estudos gra­maticais, não sabemos efetivamente o que é e como é a língua portuguêsa, sobretudo no Brasil, e assistimos estarrecidos ao divórcio crescente entre a disciplina gramatical canônica e a criação literária viva.

(1957)

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SôBRE A "LíNGUA BRASILEIRA"

A questão da "língua brasileira" desde o ro­mantismo vem repontando, com fases de recesso, jlla ordem do dia da intelectualidade brasileira. Presenciamos, neste momento, a uma fase aguda dá questão, com pronunciamentos mais ou menos autorizados em favor da sua "existência" : são ensaístas, beletristas, · filólogos, sociólogos, críticos e o mais - não raro confundindo posições - que •postulam, justificam, militam por, asseguram a existência da "língua brasileira".

O momento é, por conseguinte, oportuno para um balanço do problema. Procurei fazê-lo de forma tanto quanto possível impessoal, presumindo duas fases: numa primeira, procederia à inquiri­ção de uns quantos partidários representativos de uma posição, numa segunda, de uns quantos re­presentativos da outra. Circunstâncias de ordem individual facilitaram-me um contacto com os par­tidários da inexistência da "língua brasileira", razão por que iniciei com êles, esperando, em próxima inquirição, proceder de igual conformi­dade com os partidários da existência da "língua brasileira".

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O método seguido foi simples: numa espécie ·de mesa-redonda, reuni três representantes cons­cientes da posição que ao longo dêste se afirma, procedemos a um diálogo livre, em que fui levan­tando objeções e alegações, dando ensejo a que fôssem elas rebatidas ou controvertidas. O ma­terial foi colhido em gravador magnético, os chamados magnetofones, e ato contínuo foi redi­gido na forma por que é agora apresentado ao público. Dei, naturalmente, alguns rápidos reto­ques, procurando, contudo, guardar o sabor es­pontâneo das intervenções coloquiais, ainda que intervenções coloquiais marcadas por um esfôrço de formulação dialética, embora repontem traços permanentes de afetivismo nessa formulação - o que é natural.

Seria lógico que procurasse o depoimento de personalidades cuja opinião fôsse valiosa para o debate. Isso me foi fácil, porque dentre meus amigos pessoais se inscrevem algumas dessas personalidades, encerrando-se a dificuldade, a rigor, na limitação numérica. Muitos outros, com igual responsabilidade e merecimento, poderiam, pois, ter sido escolhidos, e o não terem sido con­vidados se deve exclusivamente a questões de ordem prática e de exeqüibilidade imediata. Os depoentes, já agora, merecem uma rápida apre­.sentação: são os professôres CELso F~IRA DA

CUNHA, SERAFIM DA SILvA NETO e SiLvro EDMUN­

DO ELIA, todos apenas ingressados na casa qua-

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ll'entona, todos, por conseguinte, igualmente jovens mas igualmente maduros, todos com um curriculum uitae muito vinculado com os aspectos técnicos da questão, todos com pronunciamentos escritos sôbre o problema, todos na militância do magistério. O professor CELso FERREIRA DA CUNHA é catedrático de língua portuguêsa do Colégio Pedro li e da Faculdade N acionai de Filosofia, o professor SERAFIM DA Sn.vA NETo o é de filo­logia românica da mesma Faculdade N acionai de Filosofia, e o professor SiLvio EDMUNDO ELIA, da Pontifícia Universidade Católica e do Instituto de Educação - além, para todos, de outros esta­belecimentos de ensino. Escusa evitar lembrar a larga produção intelectual dos três, em que se inscrevem trabalhos específicos sôbre a questão e sôbre o português do Brasil, de um modo geral ou particular.

As linhas a seguir representam, por conse­guinte, a letra de fôrma do diálogo tal como ocorreu - tendo sido, isso não obstante, submeti­das à aprovação dos três depoentes, que estão em tudo conforme com o que vai dito, embora pu­dessem muito mais ter dito, se não ocorresse a necessidade imperativa de limitação oo espaço e do tempo.

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- E minha intenção fazer um inquérito, com relativa profundidade, sôbre dois assuntos de ca­pital interêsse para o empastamento do problema da cultura brasileira: em primeiro lugar, o da existência da "língua ·brasileira"; em segundo lugar, o da existência da literatura brasileira, sôbre a qual, a rigor, não pode haver controvérsia, mas que de qualquer modo tem sido associada àquela. A pergunta que me permito formular de início aos depoentes deve ser precedida de uma indicação metodológica: é meu desejo, no inte­rêsse do inquérito, assumir o papel de opositor das idéias dos depoentes, numa posição de advo­gado do diabo, ainda que, não raro, essa posição possa não traduzir convicções pessoais minhas, porque - creio poder antecipar - as mesmas coincidirão, em suas grandes e pequenas linhas, com as dos depoentes. A primeira pergunta que se coloca é, pura e simplesmente, a seguinte: reconhecem os .depoentes a existência da língua brasileira? O professor SERAFIM DA SILvA NETO se dispõe a iniciar as respostas.

- Como posso reconhecer a existência de uma coisa que não existe? O problema da língua brasileira é até, a meu ver, um problema supera­do. Não pode haver dúvida, lingül.sticamente falando, de que nós usamos, nas nossas comuni­cações, da língua portuguêsa, de uma variedade da língua portuguêsa, a qual, naturalmente, se fragmenta numa série de variedades, de acôrdo

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língua nova; o que houve sempre foi um patriotis­mo mal entendido, a querer colocar nacionalis­tamente um problema que, assim nacionalista­mente colocado, está mal colocado. E, aliás, êle não é do Brasil apenas. Também na América inglêsa e na América espanhola, lugares em que se acreditou falar uma língua norte-americana, ou uma língua argentina, boliviana, mexicana, chilena, e quantas mais, também aí o problema foi sempre de. natureza política de mal entendido naciona­lismo. No mais, estou de acôrdo com as palavras do professor SÍLviO ELIA, que colocou a questão com clareza.

- Volto-me, por conseguinte, ao professor SiLVIO ELIA, já agora solicitando-lhe se possível uma resposta ao problema objetivo que lhe vou propor. No plano, digamos, dialetal, não há dúvida de que grosso modo o conjunto de dialetos brasileiros difere do conjunto dos dialetos portu­guêses - ainda que uma análise particularizada dos fenômenos de cada um dos dialetos brasi­leiros, cuja descrição minudente ainda está por fazer-se, revele coincidência com particularidades dos diversos falares portuguêses - o que postula, até, um problema de história da língua muito interessante, mas que não vem agora a pêlo. O que eu quero, essencialmente, dizer, é isto: o princípio fundamental da unidade da língua está no fato de que a comunicação universalista, tanto em Portugal quanto no Brasil, é a mesma.

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Trata-se, por conseguinte, de uma língua que nos é comum. Pergunto, entretanto: o fato de poder­IDos adotar - inelutàvelmente - dois padrões de pronúncia diferentes, um para o português con­tinental, outro para o português do Brasil, já não :postula, de por si, a eventualidade da admissão ,de uma língua diferenciada entre o Brasil e Portugal?

- Creio que não, porque a questão da pro­núncia não esgota a questão lingüística. Hoje se costuma dizer, um tanto exageradamente, que a língua é uma fonna, não uma substância. O problema da pronúncia é mais um problema de substância, embora, de fato, seja conexo com o sistema fonológico. Entretanto, do ponto de vista propriamente gramatical - que é aquêle que mais se discute e que é, de fato, aquêle que dá forma ou informa o problema lingüístico -do ponto de vista gramatical, repito, a forma lingüística brasileira é a mesma forma lingüístiéa portuguêsa. Quero dizer que, naquilo que me parece essencial, que é o problema da gramática, o problema do certo e do errado, dêsse ponto de vista, a forma que nós usamos é estrutural­mente a mesma que a de Portugal. Evidente­lmente, as divergências que existem não compro­metem o todo do sistema.

- De maneira que a sua resposta admite não só a existência de divergência e de diferenciações no plano da pronúncia, mas também no plano

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da gramática. Dividindo a gramática naquela sua tríplice divisão tradicional, em fonética, morfo­logia e sintaxe, o professor SÍLVIO ELIA distingue pronúncia e fonética propriamente dita, encon­trando, apesar de tudo, um enlace muito estreito entre as duas ordens de fatos, mas reconhecendo que as bases fonológicas da língua continuam a ser mais ou menos iguais entre o Brasil e Portugal, !ainda que as realizações fonéticas discrepem entre o português comum do Brasil e o porh1guês comum de Portugal. Pergunto, então, se não po­deríamos estender a questão a têrmos aproxima­tivamente iguais, admitindo que existem diferen­ças não apenas na pronúncia, mas até na fonética, \Ila morfologia, na sintaxe, diferenças que, contudo, rsão minoritárias em face das igualdades? Em .suma, a quantidade diferenciadora teria chegado a ponto de estabelecer aquêle hiato que autori­zasse a reconhecer a existência de duas línguas diferentes? Com a palavra, professor SERAFIM DA

Sn.vA NETo. - Não, creio que não. Em primeiro lugar,

retomando algumas de suas considerações de há pouco, devo recordar que, quando se fala em 'Unidade, evidentemente se está a pensar num padrão, evidentemente se está a pensar na língua escrita, e não nas variedades faladas, nas línguas faladas, porque essas são muito grandes em tôdas as partes. Neste particular até, apesar de sua diferenciação, a língua portuguêsa é muito menos

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fragmentada em dialetos do que a italiana, por exemplo. Trata-se de uma coisa óbvia, mas muitos parecem esquecer-se disto: a língua falada varia de acôrdo com os indivíduos, as classes sociais; de um modo geral, há tantas línguas faladas quantos são os indivíduos que falam. Ora, para o instrumento superior de expressão, há a língua padrão, e é com referência a essa que julgamos que se trata do mesmo português, quer em Portugal, quer no Brasil. Permita-me ser talvez um pouco prolixo, mas o que sucede é o seguinte: temos hoje em dia duas capitais da língua portuguêsa: o Rio de Janeiro e Lisboa. E o que sucede é que, como dois poderosos cére­bros, Portugal e Brasil criam suas formas lin­güísticas, mas tudo se passa adentro da mesma língua, não importando que no Brasil chamemos "aeromoça" ao que em Portugal, com menos gôsto segundo me parece, se chama "hospedeira", porque tanto ~'aeromoça" como "hospedeira" são formações do patrimônio comum da língua por­tuguêsa, pouco importando que aqui se chame, numa expressão mais sintética, "caneta-tinteiro" ao que lá se diz "caneta de tinta permanente". O que se deve frisar é que os dois poderosos 'Cérebros pensantes criaram coisas diferentes com o mesmo material, com o mesmo estoque, com o mesmo repertório fonemático, corno é hoje uso dizer no que toca a fonemas. O que sucede, muitas vêzes, é que o português do Brasil mante-

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ve um padrão mais conservador do que o de Portugal. Os portuguêses avançaram mais, ino­varam mais na língua a partir do século XVIII, do que os brasileiros cultos. Nós guardamos mui­tas expressões que já são antigas em Portugal, en­quanto Portugal, em muitos ~asos, seguindo o pro­gresso europeu, adotou novos têrmos. Por exemplo: mantemos a velha palavra "sorvete", enquanto em Portugal, adotando-se a nova fórmu­la italiana do alimento e decalcando o italiano gelato, se chama "gelado". Outras vêzes, guarda­mos um têrmo que em Portugal ficou regionali­zado, criando-se um novo para uso padrão. Por exemplo, mantivemos "barbante", que só no norte tde Portugal é conhecido, enquanto em Lisboa se usa de "fio" ou ãlgo parecido. Isso não nos autoriza a falar em língua nova, embora o português do Brasil tenha suas características próprias. Não vejo, assim, nenhuma vantagem cultural e mesmo política em criar, em adotar um nome - língua brasileira - para uma realida­de que não existe.

- A intervenção do professor SERAFIM DA

SILVA NETO é muito interessante, mas eu gostaria de frisar que o problema vocabular deveríamos, de certo modo, distanciar de nossas cogitações, por ora, porque é incontestável que, no plano da língua padrão, as diferenças que existem no respeito entre Portugal e Brasil se atêm sobretudo a objetos de uso cotidiano ou ligados a coisas

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típicas, em número de tal modo reduzido para as necessidades da expressão universalista, que não podem comprometer a unidade lingüística. O vocabulário da língua padrão, a ter um traço caracterizador fundamental, tem-no no fato de servir para exprimir sobretudo noções abstratas e genéricas, e nesses casos é êle realmente comum ao Brasil e a Portugal. Dêsse modo, qualquer discussão que tenha como base exemplos tais como os abonados pelo professor SERAFIM DA

SILVA NETo, por mais curiosos e interessantes que sejam, e o são, não nos pode levar à conclusão ela ,existência de uma língua brasileira. Conduzir­lllOs-ia, ao contrário, levado às suas conseqüências o raciocínio, a . várias línguas dentro do que supomos ser a unidade lingüística portuguêsa, pois o critério diferenciador seria o vocabulário tregionalista, que é notoriamente particularista. A abundantificação de exemplos dêsse tipo tem valor, mas valor circunstancial, que poderá ensejar. a universalização de conceitos ou noções, quando universalizáveis, quando necessários à expressão universalista na língua. Por êsse motivo, preferi­ria que nos ativéssemos a um problema algo mais complexo, que tento formular,. com vistas ao professor CELso CuNHA, especiahnente, já que deveremos esgotar os capítulos - digamos assim - relativos à fonética, · à morfologia e à sintaxe, para só então cogitarmos eventualmente do voca­bulário. Ora, no plano da fonética preocupa

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muito o professor CELSO CuNHA, na linha de vários estudiosos, dentre os quais o professor I. S. RÉvAH, tal como vimos de sua intervenção no Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Fa­lada no Teatro, em Salvador, setembro de 1956, :1 circunstância de que há duas tendências, de profunda fôrça divergente, na fonética das duas modalidades que vimos considerando, a portuguê­sa padrão e a brasileira padrão, isto é, dos meios cul.tos cariocas. Nas duas derivas - digamos assim - da pronúncia culta portuguêsa ·e da pronúncia culta brasileira, o vocalismo se apre­senta com caracteres que tendem a discrepar progressivamente. Refiro-me à nitidez e ao arredondamento de certas vogais átonas, sobre­tudo as pretônicas, no português do Brasil, contra o manifesto obscurecimento de que são elas objeto em Portugal. ~sse obscurecimento leva a criar estmturas silábicas que inclusive estão repercutin­do nas próprias tendências de poetar, sobretudo dos poetas mais espontâneos, que menos se sub­metem à tradição escrita, os mais sensíveis, os mais telúricos, os mais românticos no sentido técn~co, a tal ponto que se pode ver uma discre­pância na métrica mesma dos poetas eruditos, entre brasileiros e portuguêses. 1!: o caso de lembrar - com as reservas que o asserto com­porta - os conceitos que a êsse respeito já GoNÇALVES VIANA tecia sôbre a leitura de versos rde Os Lusíadas, os quais, segundo a pronúncia

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padrão lisboeta, poderiam ser versos de pés que­brados. Essa consideração me leva à suspeita de que, ainda que não tenhamos uma língua bra­sileira diferente da língua portuguêsa, se êsses fatos da deriva não forem retroagidos, poderemos vir a ter um sistema fonético substancialmente, ,estruturalmente diferenciado. E mais: enquanto o vocalismo no Brasil tende a se apresentar mais conservador, ou pelo menos mais acorde com a tradição padrão, o vocalismo de Portugal tende, de fato, a romper com o da tradição da língua, a tal ponto que, a ter nome novo, antes deveria ter o português de Portugal que o do Brasil. Nesse sentido, pois, gostaria de ouvir-lhes a opinião, principiando com a do professor CELso CUNHA.

- Em verdade, o que diz meu caro inquiridor parece ser o fato mais grave. de quantos até agora consideramos. Em realidade, tudo o que tem sido lembrado até agora como elemento caracte~ rístico da "língua brasileira" me parece de valor secundário. Quer dizer, o vocabulário, a sintaxe e mesmo certos fenômenos de ordem fonética, que variam naturalmente de região para região, em suma, os argumentos dos defensores da suposta "língua brasileira" são, como disse, fatos de ordem secundária, porque se verificam do ponto

·de vista da diferenciação geográfica ou da dife­renciação social, noutros têrrnos, da diferenciação individual. Quando se argumenta com tais fatos,

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lembrando que êles aparecem e~ Portugal e no Brasil, em ilhas lingüísticas de lá ou de cá, o pro­blema da unidade não me parece estar sendo bem considerado, a unidade não está a periclitar, já que na unidade, dentro de certas estruturas comuns e padrão, está implícita a necessária noção de diversidade. Entretanto, as tendências divergentes do vocalismo e do consonantismo, de Portugal em relação ao Brasil - e vice-versa, é óbvio, segundo se coloque o observador -, podem vir a ter repercussões graves, repito. Sabemos que no século XVI, segundo o testemunho do próprio FERNÃO ó'OuvEIRA, o português falava descansa­damente. Ora, ~ partir do século XVIII, por [razões ainda não suficientemente apuradas, o português de Portugal passou a ser uma língua de .elocução mais rápida, não só em relação ao por­ltuguês do Brasil, senão que também ao espanhol, por exemplo. Isso quer dizer que o vocalísmo do 'Português quinhentista e seiscentista era mais ní­itido, e isso a métrica dos poetas do tempo nos ajuda a comprovar. Mas o que se observa hoje é exatamente o obscurecimento das vogais em tôrno da tônica, noutros têrmos, salvo a tônica, as vogais portuguêsas ou são indistintas ou tendem para a indistinção, são fracamente pronunciadas. Em contrapartida, o português de Portugal possui um consonantismo tenso, para usar de um têrmo do gôsto do meu amigo HouAISs. :E:sse estado de coisas me permite remontar a uma das supostas

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causas para a diferença de estrutura de certas línguas indo-européias, evidenciadas desde os co­meços dos estudos da gramática comparada, quando do nascimento do método comparativo na lingüística: uma língua houve que alterou o seu vocalismo mas conservou quase intacto o seu consonantismo primitivo, o sânscrito, enquanto, de outro lado, o grego, o latim, o germânico haviam mantido o vocalismo e alterado o consonantismo -do que decorreram estruturas lingüísticas geneti­camente filiadas a um tronco comum, mas estru­turalmente muito diferenciadas. O fenômeno, no momento presente, é algo parecido. :ftsse é o fato que me parece mais grave - embora, dentro de nossas preocupações presentes, seja uma gravi­dade não atual, mas futura, pois que, do ponto de vista padrão, continuamos a guiar-nos, em Portugal e no Brasil, pelo vocalismo e pelo con­sonantismo tais como fixados pela tradição culta escrita. Mas o fato é que o português do Brasil, apoiando-se no vocalismo e tendo-o sensivelmente assemelhável ao do espanhol, enquanto apresenta um consonantismo algo relaxado, num relaxa­mento que pode provocar evoluções que não sabe­mos a que ponto podem chegar, êsse fato é que me parece grave e complexo. Do ponto de vista dos que, reconhecendo a unidade lingüística presente, não vêem senão vantagens na sua manu­tenção, graças a uma política lingüística cons­ciente seria possível aconselhar no ensino, quer

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no Brasil, quer em Portugal, que houvesse uma atenção maior na p_ronúncia, em Portugal das vo­gais, no Brasil das consoantes. Ora, isso não é um fato que venha a forçar a realidade fenomenal, sob a alegação de que apenas sabemos o que se está passando em profundidade. Quando do Piimeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, em Salvador, em setembro de 1956, o professor AN­TÔNIO HouAISS, nas suas considerações sôbre a pro­nJ].ncia culta do Rio de Janeiro, lembrou o fato, que me parece da mais alta importância, de que, há cêrca de duas décadas, dificilmente uma pessoa das dasses humildes do Rio de Janeiro pronunciava o _...,. e o -s finais, fato que ainda se observa em vastas zonas do interior do país, onde o ensino ainda não se fêz sentir no grau que era de dese­jar. Ora, hoje em dia, o que se observa, talvez também pela influência do rádio, da televisão, de certos padrões eleitos pelo povo, pela dissemina­ção das escolas no Distrito Federal, é que há uma preponderância sensível de pessoas humildes que pronunciam com nitidez - até com certa tensão - essas consoantes finais. Como se pode de­preender dêsse exemplo, há aí um problema de escolarização; como creio que interessa ao país ter uma unidade lingüística - unidade em têrmos relativos, repito, isto é, dos meios cultos que pas­saram pelas escolas, devendo-se prever que num futuro mais ou menos próximo todos os brasileiros venham a passar pelas escolas -, não há dúvida

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de que, graças a uma política lingüística cons­ciente, poderemos recuperar certas formas do nosso conwnantismo, para voltarmos às minhas cogitações iniciais. Em verdade, os que preten­demos uma certa unidade lingüística, almejamos que o país a mantenha através da unidade políti­ca, econômica, cultural, em suma, nacional; no nacional, a língua é uma das formas. Por isso, entre os que se inscrevem no ponto de vista da unidade lingüística estão aquêles que querem es­tudar a realidade brasileira, a realidade lingüísti­,ca brasileira. É curioso lembrar, entretanto, que os que propendem para a língua brasileira não tenham até agora trazido uma contribuição para os estudos dialectol6gicos do país. Não conheço, a êsse respeito, nenhum trabalho que não seja de ordem geral, teorética, em que os autores vêem ,do seu gabinete, no Rio de Janeiro ou num centro urbano, o Brasil com seus oito e meio milhões de quilômetros quadrados e seus sessenta milhões de habitantes. O pouco que temos de trabalhos sérios de dialectologia, de trabalhos que visam a apreciar a realidade, êsses foram todos êles feitos por pessoas que pelo menos não têm a preocupa­ção de considerar que o Brasil se diminui com ter uma língua com o nome de portuguêsa já que o Brasil é um país de cultura portuguêsa e um país que foi descoberto no auge de uma nação que, pequena embora, naquele tempo era a maior nação do mundo, uma vez que havia des-

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coberto a metade do mundo conhecido. - A sua contribuição é muito útil ao nosso

diálogo. Sugere, logo, que passemos aos argu­mentos ·principais dos neobrasileiristas - aos quais espero que os três professôres aqui presentes respondam. São dois êsses argumentos principais. Um é de analogia histórica, outro se relaciona com a situação _ presente dos dois países em causa. Vamos discutir o primeiro. A analogia histórica é consabida, mas eu me permito recapitulá-la, pela ordem: partem os neobrasileiristas, honestamente, da convicção de que - assim como no mundo românico, depois de difundida a cultura romana ou latina e depois do esfacelamento da unidade política do Império Romano, se verificou, pos­sivelmente com pruridos diferenciadores ante­:riores, uma diferenciação progressiva na România, em conseqüência da qual, num lapso de tempo .relativamente curto, o grande falar relativamente unificado que aí havia anteriormente, se fragmen­tou, de tal modo que, em breve, puderam emergir, brotar, em regiões diferentes, diferentes línguas em formas altamente dialectalizadas e poste­riormente unificadas - do mesmo modo, aproxi­mativamente, deve ocorrer o fenômeno de formação da língua brasileira para com a língua portuguêsa. De maneira que partem do pressu­posto de que, graças à circunstância de estarmos geogràficamente tão distantes quanto o estamos de Portugal, numa distância incomparàvelmente

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maior do que a que existia entre os diversos fu­turos membros da România, graças a essa circuns­tância em primeiro lugar; graças ao habitat, ao meio, à ecologia, à miscigena.ção diferentes, em segundo lugar; graças, por fim, à independência política em terceiro lugar, graças a tudo isso, se no primeiro caso houve diferenciação; neste segundo as razões são ainda maiores. E reconhe­cendo que isso seja uma tendência, digamos, fatal da história, perguntam por que atermo-nos, passadistamente, à conservação de uma língua uni­ficada com Portugal, conservação que eventual­mente violenta o aprendizado, por impor maneiras não vivas de falar, de escrever, de pensar, quando deveríamos ir, ao contrário, à frente dessa ten­dência, para criar, ainda que lentamente, uma entidade, que já de si está hoje em dia diferen­ciada, que é legitimamente a língua brasileira, isto é, uma língua que, derivada da língua por­tuguêsa, é já agora apenas um instrumento comurri de comunicação de todos os brasileiros nas nossas coordenadas geográficas. Acho que êsse é um argumento de analogia histórica cujo vício não IJlle permito antecipar, preferindo, ao contrário, ·ouvir a opinião de cada um dos três. Vejamos o professor CELSO CUNHA.

- Sôbre o assunto creio que o professor SERAFIM DA SILvA NETo poderá particularmente ·dissertar, pois está procedendo a estudos especiais, além dos que já tornou públicos. Apenas gostarei

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de antecipar algumas de suas idéias, que são, aliás, as dos romanistas mais atuais. Em primeiro .lugar, essa diferenciação, colocada em têrmos de uma quarta proporcional - assim como do latim saíram as línguas românicas, também do portu­guês · sai (ou saiu, ou sairá) a língua brasileira, o brasileiro - pressupõe considerar a evolução histórica como fenômeno, senão estático, ou menos l:lbsolutamente repetitivo. Depois, os estudos mo­demos têm demonstrado que a coisa se passou de modo bem distinto: a diferenciação latina já era uma diferenciação itálica, ao mesmo tempo que cada região do orbe latino foi conquistada e colonizada em épocas diferentes por colonos provindos de regiões diferentes da Itália. Ora, por exemplo, verificamos que os colonos itálicos do sul levaram certos hábitos que aparecem :ilhados em certas regiões da România, enquanto certas ligações aparentemente ilógicas, como a do português com o gascão, passam a ser mais claras a essa· interpretação possível. Digo possível, porque êsses estudos da colonização romana são .relativamente novos, quanto às suas conexões com a filologia e a lingüística, são trabalhos da ·escola de BERTOLDI e de outros italianos, com es­tudos sôbre a emigração dos sicilianos e de povos do sul da Itália, do centro e mesmo do norte, tudo, em suma, relativamente moderno. Ora, o que se pode desde já verificar é que a coloniza­ção portuguêsa foi feita de modo diferente.

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Devemos a alguns estudiosos esclarecimentos novos nesse sentido. O professor SERAFIM DA Sn..vA NETo fêz, há pouco tempo, uma bela con­ferência na Universidade de Lisboa, diante de mestres portuguêses que haviam proposto outras soluções, e mostrou que a emigração de portuguê­ses não foi feita para o Brasil apenas partindo do sul de Portugal e das ilhas, mas principalmente do :norte, que era ao tempo a zona mais populosa. De uma maneira geral, podemos dizer que vieram portuguêses de tôdas as partes, portuguêses que, formando uma superestrutura lingüística aqui na América, tenderam a unificar sua diversidade de falares portuguêses numa espécie de língua franca no território que colonizavam. Isso me enseja ·considerar que é um defeito metodológico pre­sumir, também, para a expansão do português no Brasil uma forma lingüística igual, pois sabe­mos que uma região como o Rio Grande do Sul, por exemplo, só foi realmente povoada no século XVIII e povoada por um processo diferente. Lembremos ainda que a colonização no Brasil central, na Bahia, no Rio de Janeiro e em vários outros pontos do atual território nacional foi feita por homens apenas, donde apresentarem mesti­çagem maior do que a que vai processar-se no sul do país, em que a colonização foi feita quase tôda ela na base de casais e a miscigenação ficou relativamente insignificante em relação às regiões que referi antes. Não contesto, por conseguinte,

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que haja honestidade cultural e intelectual da parte dos que sustentam a existência da língua brasileira: quanto a isso, não há a menor dúvida. Mas o problema não pode ser colocado nas bases em que o querem. Um dêles, por exemplo, diz, essencialmente, que o Brasil é um pais soberano - logo, deve ter uma língua própria. Acho que êsse argumento não tem valor cientifico, pura e simplesmente. Pode comover e impressionar, mas esboroa-se ante uma simples verificação do se­guinte tipo. A língua - qualquer língua - não é um bem cuja propriedade esteja regulada em 'código. A língua é um bem que, como diziam os homens do Renascimento, quanto mais vulgariza­do é maior; pertence, por conseguinte, a todos quantos a falam, é tanto nossa quanto dos portu­guêses. Mas insisto com o inquiridor em que o professor SERAFIM DA Sn..vA NETO se manifeste a êste respe_ito, já que, como disse, tem trabalhos e estudos especiais que o habilitam a um pTonun­ciamento com maior soma de ponderações.

- Permito-me apenas relembrar ao professor SERAFIM DA SILVA NETO, pela ordem, que o pro­blema em pauta é ainda a analogia histórica, cuja ·enunciação me dispenso de recapitular.

- O fato é que p ucas palavras tenho que acrescentar às que já foram, no particular, ditas pelo meu colega CE:r.so CuNHA. Só desejo lembrar que êsse símile, que êsse argumento de semelhan­ça com o latiu; é um argumento totalmente falso,

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como êle já o demonstrou. Em verdade, é um argumento antigo, que de vez em quando é tra­zido de novo à baila. Ainda há pouco tempo era o nosso grande escritor, respeitável sob outros aspectos, MoNTEmo LOBATO, quem o trazia à cena; um pouco antes, por 1909, era o conde de AFoNso CELSo quem aflorava essa comparação. Creio, no entanto, que ela pela primeira vez foi invocada por JosÉ DE ALENCAR, no p.ost scriptum rde Iracema. Que eu saiba, foi o primeiro a vir com essa comparação, a qual, como muito bem diz o professor CELSO CUNHA, é completamente !inadequada, porque, dentre outras razões ademais das que já referiu, o Império Romano se esface­lou lingüisticamente pela desvinculação cultural. Não foi a distância ·geográfica de Roma que transformou o latim falado na Hispânia em línguas 1diferentes, não foi a distância geográfica, repito, foi a distância cultural. Ora, não estamos no mesmo caso, porque o Brasil, graças a Deus, mantém suas instituições culturais vivas, e as mantém não estàticamente, mas dinâmicamente, porque, como há pouco se disse, invocando o nosso colega ANTÔNIO HouAISS, a influência da escoiari­zação tem sido crescente. Portanto, o panorama brasileiro em relação a Portugal é totalmente di­ferente do panorama da Península Ibérica em :relação ao Império Romano. Na Península Ibéri­ca, naqueles idos, se chegou a uma tal barbárie, que as mesmas elites não sabiam mais escrever, não

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tinham instrução alguma. No Brasil não se trata disso, o fenômeno é até inverso. Mesmo com relação a Portugal não estamos separados. Há contactos, há profunda interpenetração das duas culturas, da cultura brasileha descendente e da cultura raiz, da cultura fonte. Quero acrescentar, a propósito, ainda uma consideração. Há tempos, um homem muito sábio, cujo nome por sinal de respeito não pronuncio, grande sociólogo, homem ad)llirável, repito, chasqueava, zombava - creio que hoje já não pensa assim - da língua dos doutôres, considerando que essa não era a lingua do Brasil, que essa era uma língua artificial. Entretanto, ela é que é a lingua do Brasil, não a língua das massas ainda desprovidas de qualquer instrução, massas, por conseguinte, ainda não integradas no complexo nacional como participan­tes ativos. A língua do Brasil é a língua dos seus homens cultos, a língua padrão, a língua que se ensina nas escolas e que se procura manter num grau de certa fixidez, como há pouco dizia o professQr CELSO CUNHA, para poder ter um âmbi­to de comunicação mais geral, lembrando um problema que não é totalmente nosso, qne é também de Portugal, o qual de fato, a partir do século XVIII, se afasta mais do padrão do que o português do Brasil. Quanto ao argumento de que existe um relativo distanciamento entre a língua falada e a língua escrita, culta, padrão, lembremos gue em tôda parte é assim: a lingua

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escrita é normativa, tem os seus princípios. O menino italiano que fala um dos seus dialetos vai aprender o italiano na escola, italiano que é substancialmente diferente do seu dialeto napo­litano, siciliano, genovês ou o que fôr. A língua escrita é assim, as suas normas não podem ser as da língua falada: língua falada é uma coisa, língua escrita é outra, embora vinculadas por um d eno­minador comum.

- Resta-nos ouvir o professor SiLVIo ELIA a respeito do mesmo problema.

- Quanto à analogia histórica a que se re­feriu o professor ANTÔNIO HouAiss, quero ainda acrescentar algumas considerações. Os que me precederam se detiveram com bastante fundamen­tação nos problemas das condições históricas e sociais, mostrando que, não sendo elas as mesmas, não podem evidentemente gerar conseqüências também idênticas. Creio que êsse aspecto ficou suficientemente esclarecido, de modo que me · permitirei ater-me apenas ao seguinte: o velho argumento de que o brasileiro sairá do português assim como o português saiu do latim representa um tipo de explicação prêso a uma mentalidade histórica, característica da segunda metade do século XIX. üs fatos estão aí, os fatos quase sempre são os mesmos, são imutáveis, mas as interpretações variam de acôrdo com a mentalida­de da época. No século passado, como disse, o princípio geral de explicação em tôdas as ciências

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era o evolucionismo - tudo evoluía de acôrdo com aquêle princípio conhecido do homogêneo inde­finido para o heterogêneo definido. Temos, daí, o princípio da fragmentação, da divisão, da mul­tiplicação - tudo teria de evoluir no caminho ·da diferenciação, fatalmente, de modo que, coeren­•temente, se aplicava o determinismo do mundo natural a um domínio onde êle não é pertinente, isto é, aos fatos de cultura, ao mundo cultural. Dêsse modo, tratava-se do assunto como se tra­tasse também de leis físicas. Por conseguinte, o brasileiro teria fatalmente de sair do português, assim como o português saíra do latim, por uma evolução fatal, conforme com condições intrínse­cas do latim. Ora, sabemos que isso não é verdade. O evolucionismo pode ter as suas razões dentro do mundo da natureza, dentro do mundo maturai como lei natural. Mas não podemos aplicá-lo de maneira, por assim dizer, mecânica ao mundo dos fatos culturais, como se fazia no século XIX, com as doutrinas do próprio evolu­cionismo ou a lei dos três estados do positivismo, ou mesmo a própria dialética marxista - quer dizer, na base do passado se tinha sempre a ilusão de que se poderia traçar as linhas do futuro. Sabemos que os fatos desmentem isso, o que, creio, CHESTERTON pôde afirmar desta forma: a única lei histórica que existe é a lei do imprevis­to. De modo que, diante dêsse fato, o que temos de verificar é que a base filosófica dessa inter-

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pretação já foi superada e a ciência hoje caminha noutro sentido, mesmo dentro da explicação lingüística - a que nos cabe aqui examinar. A explicação lingüística não t€lm hoje em dia aquêle rigor determinista que, por exemplo, encontramos nos filólogos positivistas, nos neogramáticos. Hoje, a neolingüística tem uma outra largueza de hori­zontes. Acrescento ainda o seguinte: tem-se fa­lado muito na fragmentação, mas não se tem vista que, ao lado disso, como já observou JESPERSEN,

existe a unificação. Ter-se-á observado, entre os neobrasileiristas, que o espanhol se estendeu a vários domínios fora do território europeu? Teria o Império Romano - como observou JESPERSEN

- a extensão que tem hoje o domínio lingüístico espanhol? E o domínio da língua inglêsa no mundo? Temos a impressão de que há fragmen­tação, de que há atomização, mas se observamos o que se passa colateralmente, por clara fôrça de fatôres culturais, o que se vê é expansão e unifi. cação de uma língua padrão a outros domínios. De modo que a realidade, ao contrário, desmente a teoria, que não estava certa. Eis o que me ·parece se poderia acrescentar ...

- E que creio de grande importância. No início destas três últimas intervenções, uma de 'cada um dos inquiridos, propusemos o problema da analogia histórica, sôbre o qual cada um se pronunciou. O parecer do professor SiLVIo ELIA coroou, creio, o tratamento da matéria, parecer

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que tomo a liberdade de tomar como tanto mais válido quanto, permitindo frontal divergência quanto às implicações e formulações filosóficas sôbre a interpretação do fenômeno histórico, tem a seu favor os elementos factuais, a saber, que as circunstâncias históricas no momento presente não são de modo nenhum comparáveis às que condicionaram o aparecimento das línguas ro­mânicas. Estamos, ao que tudo leva a crer, ao contrário, em face de um mundo que, a apresen­tar uma característica lingüística geral, essa é a de que a unificação sobreleva - e de muito - à diferenciação. :f:sse fato é de tal maneira ponde­rável que, a haver - repitamo-lo - um fenômeno geral, no respeito, na terra, êsse deve ser o do desaparecimento d e dialetos e línguas em favor da expansão de grandes unidades lingüísticas de cultura. E isto é tão sensível que certos filósofos, certos historiadores, certos teóricos admitem, per­feitamente, uma precipitação de tal processo, de maneira que num lapso de tempo relativamente cmto a humanidade venha a contar - em conse­qüência de ditames econômicos, demográficos, espirituais - com um número incomparàvelmente menor de línguas. Ora, exatamente no momento em que essa deriva geral parece afirmar-se é que a recidiva da língua brasileira ocorre - e ocorre, já agora, com visos filosóficos ou teóricos, como se êsse ponto de vista fôsse favorecido pela história mesma. Isto pôsto, já agora podemos

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passar para o segundo argumento, o que se po­deria denominar argumento cultural - forçando um pouco a riota. Reconhecem os neobrasileiris· tas - no que eu, pessoalmente, estou longe de divergir, antes pelo contrário - que o Brasil, por suas circunstâncias histórico-sociais, pelo seu ter­ritório, por sua demografia, pelo conjunto de seus caracteres materiais e espirituais, por tudo o que se lhe possa ver em prospecção, é um país eminen­temente voltado para o futuro - e mais, com um presente já consideràvelmente atuante e impor­tante no cenário mundial. Complementando essa verificação, acham os neobrasileiristas que seria ·um passadismo retrógrado, nocivo ao avanço cul­tural que se nos impõe sob todos os aspectos, que nos detivéssemos a espelhar-nos numa cultu­ra que, aos seus olhos, lhes parece saudosista e que já teria dado os seus frutos à humanidade, incapaz, por conseguinte - mas "por conseguinte"· mesmo? - de dar novos frutos. :f:sse enlace da cultura brasileira com a cultura portuguêsa, que se facilita pela unidade lingüística compulsória, seria, portanto, maléfico à cultura brasileira, por atar-nos a um passado histórico em lugar de volver-nos às perspectivas do presente e sobretudo do futuro. Creio que me fiz claro; gostaria, pois, que cada um dos inquiridos se externasse a êsse respeito. Principiemos com o professor SERAFIM

DA SILVA NETO.

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- As pessoas que assim pensam estão, pelo menos num ponto, que é importante para a questão, muito mal informadas. Porque a reali­dade me parece muito diversa, muito diferente, no que se refere a Portugal e à cultura portuguêsa. Portugal, ao contrário, é um país voltado para o futuro, um país moderno. Essa é a realidade que quem vê pode compreender. Sob o ponto de vista do progresso material, há naquele país, hoje em dia, wna preocupação enorme com o futuro, ll'azão por que se empenham em trabalhos impor­tantes de base material. O maior número de pessoas que cursam o ensino superior, fazem-no no Instituto Superior Técnico, de engenharia, cujo exame de admissão é dos mais difíceis, dos mais rigorosos. É nah1ral que em Portugal não haja a febre, a ânsia, a fúria de progresso que se vê no Brasil, ou pelo menos em certos pontos do Brasil, mas não há diferença tão flagrante, tão notória, como dizem tais pessoas, que segura­mente não estão bem informadas. Afinal de contas, se o Brasil fôsse assim tão modemo e Portugal tão antiguado, um se completaria no outro, do ponto de vista cultural. Mas êsse não é o caso, repito, pois se Portugal não nos deu fôrmas de cultura, mas a própria dinâmica cultural, essa .dinâmica continuou, entretanto, viva em Portugal também: de sorte que, a falar em dinâmica, hoje temos duas, a brasileira e a portuguêsa, de igual raiz. E se a brasileira vem tomando maior im-

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pulso, maior velocidade, p'Orque o território, a população, as necessidades, os anseios são maiores, nem por isso estará menos longe da verdade quem supuser que em Portugal essa dinâmica desapa­receu, ficando o país com os olhos voltados para o passado, num sebastianismo extemporâneo. Creio que se enfrentará mal o problema quando :não se considerar o fundamental; e o fundamen­tal parece-me que é o seguinte: o Brasil tem uma cultura de base portuguêsa - cultura no sentido de conjunto de hábitos, costumes, usos, idéias, vezos, práticas, recebidos dos antepassados e pra­ticados consuetudinàriamente. Essa cultura de raiz portuguêsa é que define o Brasil, é que de­fine a cultura brasileira. Tanto é assim que os .elementos estrangeiros, os colonos que vieram depois - italianos, alemães, japoneses - só se tornam nacionais brasileiros na proporção que adotam essas formas culturais. Essas formas cul­turais luso-descendentes é que definem o Brasil; é que determinam o Brasil. Pessoalmente, gosta­rei ainda de frisar um pouto, que a mim me pa­rece extremamente importante: o nacionalismo, no Brasil, não pode consistir na separação de Portu­gal, separação cultural; pelo contrário, o Brasil se desnaciona1izaria na proporção que se fôsse isolando de Portugal. :11: eyidente que uma aproxi­mação maior não implica, de modo nenhum, em afetar a nossa soberania política, o que, aliás, não está nem nunca estêve em jôgo, nem implica na

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alienação de nossa independência cultural, já que não quer dizer o abandono das florescências novas que da dinâmica portuguêsa repontaram e repon­tam com a dinâmica brasileira no Brasil.

- Consideremos a posição do professor SiLVIO ELIA.

- Sabemos todos que um dos problemas mais difíceis da lingüística geral é o das causas das transformações lingüísticas. Dêsse modo, con­siderações com intuitos de aplicação lingüística que se fazem na base de alegações do tipo -Portugal é um país voltado para o passado e o Brasil é um país voltado para o futuro - pare­cem-me um pouco ou um muito irrelevantes. Na base de tal raciocínio, querer assegurar que a língua fatalmente divergirá cá e lá é estar ligan­do o problema das transformações lingüísticas a uma causa, que entretanto não está apurada o que seja, aqtúlo que o professor SERAFIM DA SILVA NETO denominou dinâmica cultural. Real­mente, o que será essa dinâmica cultural? O têrmo é muito amplo, muito geral: que fatos con­cretos pode êle comportar? O problema é assim ·dificultado, fantasiado mesmo; creio que se avança demais, quando se quer ligar uma coisa a outra - a língua brasileira à cultura brasileira. Ninguém poderá, com convicção, com funda­mentação, dizer que a língua padrão vai divergir em Portugal e no Brasil por causa de uma tendên­cia, por causa de uma perspectiva da alma por-

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tuguêsa em relação ao passado e da alma brasi­leira em relação ao futuro. Não quero, de outro lado, dizer que isso não possa ter suas conse­qüências. Mas até que ponto, realmente, essas conseqüências alterarão o que me parece funda­mental - o sistema da língua? Ademais, quero aqui lembrar um fato histórico, de um passado muito recente. Sabemos que uma das revoluções mais consideráveis da história foi a revolução comunista da Rússia. Pois bem, a doutrina co­munista, como sabemos, liga os fenômenos sociais aos fenômenos de classe. Houve um filólogo tusso afamado, MARR, que disse que o novo re­gime, o regime comunista, caminharia para uma nova língua, língua de uma nova classe - já que a língua é uma superestrutura e, cmoo superes­trutura, não poderia ser a mesma do antigo regime e do novo, da classe operária e da bur­guesia. Pois bem : o papa - se nos pudéssemos exprimir assim - do comunismo fulminou essa doutrina do lingüista MARR, doutrina que está hoje em dia em desgraça. Em última análise, disse STÁLINE que a velha língua nacional, a dos czares, seria a mesma língua nacional da Rússia comunista. Se isso pôde acontecer, teve de acon­tecer, num país que engendrou uma revolução que abre uma nova era na história - e não entro na apreciação dêsse fato -, quê dizer quando a relação que há entre Portugal e o Brasil nãq é absolutamente essa? Não vejo, realmente, ne-

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nhuma consistência nessa afirmação. Não a apa­drinharia, porque não saberia trocá-la em miúdos, quando me dissessem: "Muito bem: é a dinâmica cultural, uma voltada para o passado, outra vol­.tada para o futuro. Agora faça o favor de descer a fatos lingüísticos, expondo isso tudo no concre­to" - eu me sentiria embaraçado, porque não sa­beria ligar uma coisa à outra. Se êsses que assim afirmam têm provas do alegado, gostaria bastante que as trouxessem para o debate.

- Vejamos o professor CELso CUNHA. - Bem, perfilho as opiniões do professor

SÍLVIO ELIA. Acrescento que essa dinâmica cul­tural como base de uma nova língua, como base de diferenciação lingüística, se firmada apenas no progresso material, ainda não teve sua ação apu­rada nem verificada. Os Estados Unidos da Amé­·rica, com o maior avanço material dos tempos modernos, não se diferenciaram lingül.sticamente da Inglaterra. E devemos considerar que, de :certo modo, a situação dêsses países contribuiria para a diferenciação, já que não possuem acade­mias de letras, ou equivalentes, com pronun­ciamentos normativos sôbre a língua padrão. Mas, em contraposição, na Inglaterra como na França, para só citar êsses dois países, a defesa da língua ·como que é feita pelas camadas mais populares. Ouve-se normalmente num e noutro país dizerem os indivíduos dessas camadas que isso não é francês, que aquilo não é inglês, num constante

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combate à inovação. Noutros têrmos, as inova­ções, quando levados ao plano consciente, são re­fugadas por tôdas as classes sociais, em tudo o que é povo. Ademais, perfilho também a opinião do professor SERAFIM DA SILvA NETO quanto a considerar Portugal um país estagnado. Somente quem não conheça Portugal pode dizer isso. Seria longo enunciar provas em contrário, bastando lembrar ao lado de sua atividade material os avanços que tem feito nas ciências históricas, ~SOciais, culturais em geral. Não se trata de asseve­rar que as características do nosso incremento ma­terial sejam comparáveis ou iguais às de Portugal, coisa, aliás, que não creio fundamental para o debate. O que se passa entre nós, com relação a Portugal, suspeito que decorre da larga difusão que teve entre nós um ensaio do professor FmE­

LINO DE FIGUEIREDO, intitulado Depois de Eça de Queirós. Nos meios ligados aos estudos ou ao conhecimento das letras, mas ligados por vínculos superficiais à evolução do pensamento português, houve, creio que por causa do título do ensaio, a rerrônea suposição de que depois do grande ro­mancista a literatura portuguêsa estivesse morta; não foi sem espanto, por conseguinte, que vieram a saber, depois, que essa literatura morta contava com um FERNANDO PEssoA, quer dizer, um grande gênio literário, português. A verdade é que Por­tugal conta com uma literatura pujante, muito desconhecida entre nós, salvo nos meios universi-

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tários, mas em verdade mal conhecida sobretudo pelos nossos críticos literários. Um MIGUEL ToRGA, um JosÉ RÉGIO, por exemplo, honrariam qualquer literatura contemporânea, são grandes em Portu­gal, sê-lo-iam no Brasil e onde quer que seja. E na pesquisa científica não vale a pena estar citando nomes, basta que lembremos as figuras portuguê­sas que participaram do último Colóquio de Es­tudos Luso-Brasileiros, de Lisboa. Incidente­mente, permita-se que eu faça um pequeno comen­tário em tôrno dos estudos científicos lingüísticos, pois que a êsse respeito lavra ainda uma tão la­mentável confusão, que nunca será demais levan­tar a voz contra ela. Num projeto do govêrno, para que, por meio de instituição adequada, viessem êles a ser incrementados no Brasil, em função da realidade lingüística brasileira, uma autoridade, chamada a opinar por injunções de suas funções, de suas altas funções, considerou tais estudos bizantinices, sem interêsse para o fu­turo do Brasil, país dinâmicamente voltado para o futuro. . . :E: uma concepção de ciência que consegue separar os campos do conhecimento em compartimentos tão estanques que chega à con­clusão graciosa de que se pode avançar num dêles com absoluta ignorância de outros ou dos demais. A ciência, no fundo, é uma só e o enlace das diversas disciplinas de especialização é tão mais estreito do que alguns pensam, que não constitui surprêsa para quem estuda ver uma pes-

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quisa pura feita num sentido e numa direção ter aplicações teóricas e práticas inesperadas, em .campos aparentemente dissociados. Dizer que os estudos lingüísticos são bizantinos é o mesmo que dizer que os sputniks não têm significação cien­tífica ou só têm significação bélica... Um dêsses bizantinos, por exemplo, o padre RoussELOT, fun­dador dos estudos experimentais de fonética, es­pecialista, em última análise, de pronúncias, foi quem localizou o canhão Berta, que atirava sôbre Paris as suas cargas mortíferas, permitindo a sua destruição; eis um exemplo de aplicação bélica inesperada, mas provinda de estudos bizantinos ... Outro bizantino, o foneticista, ainda, português, doutor ARMANDO DE LACERDA, tendo descoberto um aparelho a que deu nome de cromógrafo, destinado ao registro preciso da voz humana, viu seu inven­to ter uma aplicação para a obtenção de .. . elec­trocardiogramas, mas com tal economia e eficácia que o resultado era obtido por custo da ordem de 10 centavos de cruzeiros. . . Com isso quero lem­brar que os problemas do Brasil não são apenas as verminoses, a paralisia infantil, a malária, como se alegou; além de muitos outros, incluem-se também os lingüísticos, que dentre outros bene­fícios podem oferecer o de ensinar a pensar, fazer pensar, pensar pura e simplesmente - o que sempre é uma condição para que os homens se compreendam e compreendam os seus problemas, individuais e sociais. Mas êsses exemplos foram

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aqui invocados apenas para lembrar que a ordem de estudos a que nos dedicamos, sem pretender ser mais importante do que as outras, não o é porém, menos, e também para reivindicar, para ela, a posição que merece, no Brasil de hoje e de amanhã.

- Creio, com sua resposta, culminando as duas anteriores, que a questão da assimetria ou diferenciação culhual existente entre o Brasil e Portugal, invocada para justificativa de uma língua brasileira, fica, assim, colocada nos têrmos em que o deve ser. Desculpo-me, porém, com dizer que ainda não esgotamos os pontos mínimos que me propus submeter-lhes. Não se pode negar que os brasileiros cultos, quando ainda não amarrados à escola do purismo clássico e se não possuídos do que eu poderia denominar de um espírito hi­perlusófico, tendem a sentir que a língua portu­guêsa não é propriedade também sua enq!lanto não declararem independência ou morte com re­lação às formas e fórmulas de criação endógenas, isto é, brasileiras, dessa mesma língua. Na reali­dade, o que eu quero insinuar é que um grande número, um número crescente de brasileiros cul­turalizados, sente que se exerce uma coerção gramatical, que os p1incípios da canônica grama­tical, como digo, são excessivamente rígidos e por yêzes por demais arbitrários ou distanciados de certas tendências profundas das mais generaliza­das formas e fómmlas de expressão do pensa-

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mento comum entre brasileiros, mesmo cultos, quando falam e quando escrevem algo espontâ­neamente. Tudo leva a crer que essa coerção gramatical é algo bizantina - agora emprego a palavra deliberada e pensadamente -, porque, se a língua nos é propriedade comum, a realidade é que a canônica gramatical parece ser de mais difícil assimilação por parte dos brasileiros que dos portuguêses, como se êstes, de fato, conti­nuassem sócios proprietários e nós apenas sócios de participação de lucros. . . Será, em verdade, que a língua portuguêsa, para continuar com a imagem, continua sendo propriedade dos portu­guêses e empréstimo para os brasileiros? Vejamos, professor SERAFIM DA SILVA NETO.

- Nem continua nem nunca foi. A língua portuguêsa pertence a todos que a falam. Todos somos sócios nessa grande sociedade cultural. Se houver um chinês que fale bem o português, também êle é. dono. O professor TEISSIER, por exemplo, o professor RÉVAH, que são franceses, qne falam bem o português, que são, aliás, grandes estudiosos de seus fenômenos, também têm uma cota; também são donos. Como dono, também, é o professor BoxER, norte-americano, pelos mesmos motivos. É uma propriedade que custa um pouco, porque é preciso aprender o português, que não é fácil. Mas, uma vez aprendida, a língua é pro­priedade de quem a fala. Por isso, os brasileiros são tão proprietários quanto os portuguêses, dessa

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língua que nos é comum. Tive até ocas1ao de dizer em Lisboa - e o meu caro amigo CELSo CuNHA deve ter ouvido - que a língua portuguêsa é hoje propriedade comum sobretudo de brasi· leiros e portuguêses, que têm maior número de cotas. E que a língua portuguêsa tem duas cabe­ças, tem duas capitais, Rio de Janeiro e Lisboa. Isso é uma coisa evidente. Agora, o problema do ensino da língua é outro, um pouco diferente. Com o muito respeito que os nossos colegas merecem, o fato é que o ensino da língua é mal feito, por uma série de motivos que não vamos aqui tentar dizer. Com algumas exceções muito honrosas - quero sempre citar as exceções, porque não desejo que os colegas fiquem ofendidos comigo - como a do nosso RocHA LIMA, que é prefaciada por mim, como a do MÁRio DE SousA LIMA, como a do SAID ALI (que já morreu, mas que também pode ficar ofendido comigo, no outro mundo), que são excelentes, com algumns exceções as gramáticas brasileiras são mal codifi­cadas, são mal feitas. Têm realmente regras bi­zantinas. Mas aí a culpa não é de Portugal nem do Brasil, a culpa é que ou não temos ainda bons gramáticos ou os bons gramáticos não escre­vem gramática. Em suma, o que é precis;> é estimular uma melhora no ensino da língua, um aperfeiçoamento nesse ensino . . .

- O professor CELSO CUNHA parece que tem alguma achega a dar a êsse respeito.

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- De fato, essa questão de propriedade lin­güística, da prop1iedade da língua, de Hngua própria, etc., tem sido sempre lembrada não só no Brasil, mas também nos diversos países da América espanhola, em relação ao espanhol, e nos Estados Unidos da América, em relação ao inglês. Trata-se de um equívoco, mas equívoco em que laboram, no nosso caso, brasileiros e portuguêses. No caso, devemos culpar a todos que colaboram para essa incompreensão. São os portuguêses a se arvorarem em proprietários exclusivos da língua e a se permitirem ditar a norma inflexível por que se devem pautar aquêles que entendem a re-1ceberam de empréstimo, são os brasileiros a quererem fugir ao padrão coercitivo, a anelarem uma língua particular, baseados no raciocínio simplista de que, sendo uma nação soberana, o Brasil dever ter uma língua própria. A propósito dessa questão de língua própria ou de emprésti­mo, originada pelo sentimento de nacionalismo · transportado para o campo da ciência da lingua­gem e pelo esquecimento de que uma língua é uma norma, um contrato social entre o falante -e escrevente - e o ouvinte - e legente -, únicos ou múltiplos, que não pertence particula1mente a ninguém mas à coletividade que nela se exprime, porque nela pensa e sente, vale repetirmos aqui ou recordarmos aqui mais ou menos o raciocínio do malogrado filólogo espanhol AMADO ALoNso, com respeito a incompreensões idênticas relativas ao

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inglês e ao castelhano falados e escritos em terras de América. Diz êle, se não me falha a memória, o seguinte: Essa idéia de língua própria provém de uma confusão. Os bens anotados no registro de propriedade são próprios de uns quando não o são dos demais: uma casa, um campo, também êsse relógio. Para poderem ser de minha pro­priedade, êsses objetos têm de não ser da pro­priedade dos outros. Mas a língua não é dessa casta de bens; ao contrário, pertence àqueles que são maiores quando mais comunicados, como diziam os homens do Renascimento. Uma língua é própria de uma nação, quando é a que as crianças aprendem dos seus pais, a que os cona­cionais empregam em sua vida de relação e a que os seus poetas e prosadores elaboram e cultivam esteticamente, para as suas produções de alta cul­tura. Se assim é, a língua de um país é bem próprio, absolutamente próprio dêsse país, não importando que em outros países as crianças aprendam a falar na mesma língua e os homens se entendam com ela, os escritores a trabalhem em suas criações culturais. E se não se quer atender ao fato de que uma língua vive em perpétua for­mação, motivo por que é própria e obra de quantos a falam como língua natural, e se pensa que os inglêses, portuguêses, espanhóis receberam de seus antepassados a língua em propriedade como por herança legítima, ao passo que os americanos

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a recebem de mãos alheias, em caráter de mero usufruto, também se erra. A atual geração de inglêses (e no caso, aqui, de portuguêses) e os seus pais a receberam da geração anterior, e por isso o inglês (e o português) era a sua lí.ngua própria e natural. E a geração anterior da mais antiga, e assim sem solução possível de continuida­de. E o mesmo sem a menor sombra de diferença fizeram os norte-americanos (e os brasileiros), até que cheguem inglêses e norte-americanos (e por-1tuguêses e brasileiros) a uma geração de ante­passados que lhes seja comum. Dessa geração de inglêses (e de portuguêses), que falavam o inglês (e o português) como língua , própria, uns ficaram na Inglaterra (e Portugal) e outros foram para a América. Será que os colonizadores teriam perdido a pTopriedade da língua por se haverem expatriado ou acaso seus filhos, nascidos em terras americanas, falavam uma língua que, sendo a dos. seus pais, não lhes era mais própria, porque a sua propriedade a tiveram registrada os que perma­neceram na Inglaterra (e Portugal)? E os filhos dos primeiros mestiços, os crioulos, não falavam também uma língua própria. se falavam a língua dos seus pais? Assim se chega à evidência de que para a geração atual de americanos, o inglês, o espanhol, o português são línguas tão próprias, exatamente tão próprias, sem mais nem menos, do que para os inglêses, portuguêses, espanhóis.

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- Poderia o professor SILVIO ELIA agregar .algumas considerações às já feitas, sôbre essa questão de propriedade da língua?

- Já que os meus dois colegas falaram e o hábito tem sido uma manifestação" tríplice, não vou deixar de aqui também dizer algo. Essa referência que o professor CELSO CUNHA acaba de fazer a AMADo ALoNso me parece, realmente, luminosa, e até já a tinha aproveitado também, em parte, no meu livro O problema da língua brasileira. De fato, a língua própria é aquela que AMADO ALONSO definiu, aquela que recebemos de nossos pais, que as crianças falam, que os poetas usam, que os go­vernos aplicam, de modo que a língua do Brasil é tão própria de nós, brasileiros, quanto a língua de Portugal é própria dos portuguêses. Quanto à questão das inovações lingüísticas, que, se não :me engano, dão margem à controvérsia de saber se aceitáveis quando geradas em Portugal e ina­ceitáveis quando no Brasil, creio que há uma con­ceituação de JoÃo RrnEmo bastante elucidativa, quando diz que a língua do Brasil é essencial­mente a mesma língua de Portugal, a língua portu­guêsa, mas livre nos seus próprios movimentos. Evidentemente o que se cria no Brasil é !ão legi­·timo quanto o que se cria em Portugal. Os filó­logos devem, exatamente, estudar essas inovações, e cabem aos institutos de cultura - por exemplo, a escola, o livro, a rádio, e outras agremiações -contribuírem no sentido da unificação, para que

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essas inovações não se convertam em fraturas, Isso é que me parece importante. Mas em si mesmas, são tão legítimas as de Portugal, é claro, quanto são as do Brasil. :t;: o que queria acrescentar.

- Somos, pois, todos unânimes em reconhe­cer que as diferenciações existentes entre o por­tuguês do Brasil e o de Portugal, bem como as diferenciações dialetais dentro do português do Brasil ou dentro do português de Portugal, não são bastantes para quebrar a unidade lingüística ·comum, que por sua própria natureza é diversifi­cada regional, social, individualmente (quaisquer que sejam as línguas comuns existentes à super­fície da terra). As diversificações dêsse tipo se sobrepõe um ideal cultural lingüístico comum. :E:sse ideal, no caso de nossa língua, apresenta a peculiaridade de ter hoje em dia duas capitais, Lisboa ou o eixo Lisboa~Coimbra, Rio de Janeiro .ou eixo Rio de Janeiro-São Paulo, ambos com amplificação cada vez maior, não importa. O fato é que essas capitais de cultura, de língua comum, tendem a se tornar cada vez maiores, em lugar de tenderem a diminuir, pelo mesmo processo de unificação a que nos referimos anteriormente. De maneira que, se na situação contemporânea se pode dizer que uma língua tem uma capital cita­dina (ou duas), nada nos autoriza a não supor que num futuro relativamente breve venhamos a ter uma (ou duas) região extensíssima como ca-

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pital da língua. O fato é que, com isso, conti­nuamos sem elucidar certos aspectos relacionados com a noção do certo e do errado, da gramática padrão, da canônica gramatical, em suma. Re­torno à pergunta que já formulei de se a canô­nica gramatical geralmente imposta no Brasil pelos profissionais do estudo e do ensino da língua não violenta bizantinamente a consciência dos brasileiros que querem aceder ao padrão literário, quando postula - para concretizar num exemplo que sirva meramente de esquema para o raciocínio - "eu tenho-lhe dito dia e noite tal fato", com um traço-de-união em "tenho-lhe", em lugar de aceitar lisa e simplesmente a grafação "eu tenho lhe dito", cuja contrapartida fônica, digamos natural, é sem o traço-de-união. O exemplo, repito, serve de esquema para o raciocínio, porque, infelizmente, poderia ser multiplicado, temo que por muito ... Vejam que, com êsse exemplo, não estou sugerindo uma argüição gratuita, porque êle tem por trás de si o fato fundamental - muito sensível ao pro­fessor PIERRE FoucHÉ - de lindar com a melodia e o ritmo da língua. Ora, impor êsse cânon, essa canônica, que é tipicamente portuguêsa - no duplo sentido, literário e falado - aos brasileiros não será um daqueles casos de bizantinice grama­tical, ou crêem, ao contrário, meus queridos de­poentes, que aí estaríamos ante uma brecha po­tencial da estrutura comum da língua padrão? Ao professor CELSO CUNHA, para iniciar.

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- Bem, o exemplo lembrado pelo inquiridor é curioso, no seu aspecto genérico, porque nos leva a uma diferença um tanto sensível entre o por­tuguês culto falado no Brasil e em Portugal, diferença que incide sôbre a própria tonicidade e semitonicidade de certos monossílabos. Sabemos que o problema não é só português, e o mal tem sido êsse de colocar em oposição a situação das palavras átonas em Portugal e no Brasil. Trata-se de um fenômeno de ordem românica. A atonifica­ção dos monossílabos átonos é um processo fre­qüente nas línguas românicas; além disso, o pro­blema nos leva à conceituação de enclíticos, de :proclíticos, de palavras de apoio frásico. Em verdade, parece que por princípio não há proclí­ticos: as palavras assim são de fato enclíticas; como, porém, tomamos como ponto de referência o verbo na frase, então dizemos que é ela proclí­tica ou enclítica em relação a êsse verbo. Mas em realidade, do ponto de vista fonético, a questão· parece outra. Numa frase, tomada como esquema, do tipo "espero que se faça isto", o "se" nada tem que ver, fonêticamente, com o "faça" - o que faria o "se" ser denominado proclítico -, :mas, sim, êle se prende ao "que". O fato é tanto tmais digno de realce quanto alguns filólogos pres­sentiram empl.ricamente o fenômeno - digo em­pl.ricamente, porque viram que a reunião de dois monossílabos átonos determinava o encorpamento ·do conjunto. As palavras que servem de apoio

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frásico, isto é, aqu.elas sôbre as quais uma pala­vra átona poder "deitar-se" ou com as quais formar conjunto, êsses monossílabos do tipo de "que", de "se", têm dado margem a numerosos tra­balhos dos romanistas. .E mesmo os chamados foneticistas experimentais têm estudado com 1cuidado tais monossílabos. Ora, no que se re­fere ao Brasil, mesmo sem usarmos de aparelhos apropriados, tem-se notado que os chamados mo­nossílabo's átonos não -são, entre nós, tão átonos quanto em Portugal. Dentre outras razões, algumas são sensíveis para explicar o fato: o nosso silabismo é mais nítido do que em Portugal, a cadência é mais lenta, o vocalismo, como já vimos nesta discussão, mais arredondado ou mais proferido. Em conseqüência, em "eu tenho lhe dito" da pronúncia brasileira, o "lhe" não é pro­priamente uma palavra átona, mas antes uma semitônica ou semi-átona, como quiserem. Ora, uma palavra semitônica tem naturalmente maior autonomia fonética, maior mutabilidade de posi­ção, do que urna palavra átona na frase. ~sses monossílabos, quand~ pronomes, são geralmente complementos de verbos, essenciais, por conse­guinte, à significação da frase. Se o seu obscure­tcimento na pronúncia fôr excessivo, pode pro­vocar inclusive a quebra de sentido da frase. Daí a necessidade de virem êles em uma posição de­tetminada, digamos, a posição normal das línguas

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românicas, que vem a ser a do pronome enclítico ao verbo, pelo menos como colocação preponde­rante. Ora, no português do Brasil há uma mu­tabilidade maior. Daí essa famosa questão da colocação dos pronomes, que tem feito gastar tanta tinta dos professôres de português. Mas o fato é que, qualquer que seja á sua explicação, o fenômeno não é dos que incidam sôbre a estru­tura unitária do português comum. Não ignora­mos, por exemplo, que em latim havia uma muta­bilidade muito maior na frase, desd,e que a palavra, quer fonética, quer morfológica, quer funcionalmente indicava claramente sua relação para com as demais, podendo, em conseqüência, !mudar de lugar no todo fraseológico com maior facilidade do que naquelas línguas, como o francês, pobres do ponto de vista mórfico, em que o lugar da palavra na frase supre aquelas relações, para não prejudicar o próprio entendimento do contexto. · Voltando, pois, ao esquema tomado como exemplo pelo nosso inquiridor, não me parece que êsse fato seja grave, do ponto de vista de suas reper­cussões na estrutura unitária do português padrão. De todos os modos, tais esquemas como muitos outros devem ser objeto de estudos aprofundados, porque não sabemos se em tôda a extensão do português falado no Brasil êles ocorrem. Só um atlas lingüístico é que nos diria quais as tendên­cias, qual a ordem preferida em certas regiões em

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opos1çao a outras. Porque, hoje, também, não se aceita que a colocação, mesmo em latim, fôsse puramente arbitrária, como ensinavam os antigos professôres dessa língua. Os estudos de MAROUZEAU e de outros mais vieram mostrar que a realidade era algo diferente dessa afirmativa um t anto gratuita, fundada em aparência falaz.

- Com a palavra o professor SÍLvio ELIA. - As declarações do professor CELSO CuNHA

sao de todo pertinentes. Creio que admitirmos como boa sintaxe as construções do tipo "tenho lhe dito" nada fere aquela unidade lingüística que queremos preservar entre as duas grandes nações de língua portuguêsa. Trata-se de uma questão ligada à pronúncia, ao ritmo da frase, onde evi­dentemente sempre se observaram, se afirmaram divergências. Com prender à colocação das pa­lavras, não raro, essas razões fonéticas apontadas pelo meu colega, se passa para razões estilísticas, onde a liberdade é muito grande. Isso mostra que não se está pi'opriamente dentro do que poderia ser chamado o sistema gramatical da língua. f: uma das poss'bilidade> da língua, exatamente, cujas realizações tomam tais ou quais aspectos no Brasil e tais ou quais aspectos em Portugal, sem contar com tais ou quais aspectos neste, naquele, num terceiro, num quarto autor. O sistema morfo­lógico, que tem sido sempre considerado como a cidadela da língua, tal como o faziam os compa-

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ratistas, o sistema morfol6gico não está sendo atingido com essas variações de colocação. Não vejo gravidade no fato, por conseguinte.

- Já que o professor SÍLVIO ELIA traz à cola­ção a questão morfol6gica, quero agora, a título de mero cotejo de esquemas, ver o ponto de vista dos meus ' inquiridos para um fato comparável, por sua relativa universalidade no português fala­do do Brasil, falado sobretudo no co1oquialismo espontâneo de nossas camadas rurais e populares citadinas não culturalizadas. A realidade viva, cuja universalidade, repito, fica na dependência de verificação por meio de um atlas lingüístico, presume que a flexão verbal tenha sofrido tre­menda redução, do esquema "eu corto, (tu), você, o senhor corta, êle corta, n6s corta, êles corta", a saber, "corto/corta". Na base dessa realidade- e tomo a liberdade de frisar que, se bem compreendi­das até suas últimas conseqüências certas reivin­dicações neobrasileiristas, não é ela tão fantástica quanto parece - na base dessa realidade seria possível, atesta-o o estado atual do francês, erguer um edifício morfol6gico coerente para o "brasi­leiro". Poderia isso representar um progresso? Vejo que o professor SERAFIM DA Sn.vA NETO está insofrido por responder ...

- Claro que significaria um evidente retro­cesso. Pois então n6s, que temos uma tradição culta, apreciável, que temos uma grande literatu-

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ra, vamos abandonar esSa tradição, que se entron­ca numa tradição culta, a da literatura portuguê­sa, para adotar como novo padrão os falares rurais do Brasil, que a meu ver são crioulos ou semi­ICrioulos? Então vamos adotar um tipo lingüístico cuja morfologia é reduzida a frangalhos, reduzida a fragmentos, língua pobre, língua inculta, rude, e vamos tentar transformar essa língua num novo ideal lingüístico? Isso seria um absurdo!

· - Professor CELSO CuNHA : .. - Seria mesmo necessário mudar o ideal es­

tético de tôda uma coletividade: E, como lembrou o professor SERAFIM DA SILvA NETo, hoje temos urna literatura de importância não só nacional, mas com pretensões justificadas mesmo a gozar de valor internacional. E vemos mesmo o bom êxito de traduções de autores brasileiros em outras línguas. Lembro-me, aqui, da opinião que me externou recentemente em Madrid o professor DÁMASO ALoNso: a literatura brasileira é hoje urna literatura que conta, juntamente com a inglê­sa, com uma poesia das mais importantes do mundo contemporâneo. Há fundamentos ou vantagens de qualquer natureza para trabalharmos pela ruptura com êsse passado tão presente?

- Vejamos, agora, a opinião do professor SÍLVIO ELIA.

- Quero simplesmente manifestar minha con­cordância com os colegas, reportando-me, aliás,

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às minhas afirmações anteriores. No caso verten­te, estamos ante fatos de flexão, fatos de morfo­logia, fatos que dizem respeito ao sistema grama­tical, por conseguinte. :E:sse empobrecimento, com a adoção de maneiras de falar crioulo, de lingua­gem simplificada poique traduz um psiquismo rudimentar, isso seria um retrocesso, uma atitude que viria prejudicar a língua portuguêsa do Brasil e que talvez, ainda assim, não viria a criar a "língua brasileirà'.

- Bem. Creio que, já agora, posso encerrar a conversa que desejei manter a respeito da "língua brasileira" com os meus caros entrevista­dos. Em face das considerações expendidas, pa­rece que atingimos uma compreensão comum, com a clareza mínima desejável. Creio que pode­mos conclJJ.ir, em caráter, digamos, de unanimismo, ressaltando, dentre outras que se esboçam ao longo da conversa, as seguintes teses fundamentais:

1.0 ) a língua falada no Brasil é essencial­mente a língua portuguêsa;

2.0 ) a língua escrita no Brasil é essencial­mente a língua padrão, culta, comum para o pensamento universalista;

3.0 ) essa língua apresenta, como é intrínse­co a quaisquer sistemas lingüísticos, possibilidades variáveis e estilísticas, nacionais, regionais, sociais e individuais, que são vàriamente usadas no Brasil e em Portugal, nas suas regiões, pelas suas

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camadas sociais e pelos seus escritores e indivíduos falantes;

4. 0 ) os fatos dialetais merecem estudo e pesquisa profundos, sendo sobretudo urgentes no Brasil, pelo atraso que no respeito há entre nós; devem estar na base mesma de qualquer evolução lingüística, mas por sua própria situação poderão (e deverão) esboroar-se, esfumar-se, na medida em que se consolidar a unificação da língua comum, na marcha paralela com o avanço cultural do meio a que serve de instrumento de comu­nicação;

5.0 ) no grau de elaboração cultural que atingiu êsse instrumento de comunicação, com duas literaturas altamente significativas vinculadas pelo denominador comum instrumental, êle não pode ser melhorado senão mercê de seu uso eficaz como instrumento de comunicação universalista, quaisquer que venham a ser as derivações,' va­riações ou evolução do conteúdo de cultura ou de culturas de que é expressão e vetor;

6. 0 ) a codificação, a canônica gramatical (e seu ensino) é possível de críticas, por pretender a uma fixidez, de um lado, e a uma exclusão de variedades e possibilidades, de outro lado, mas nesse caso o defeito não é do instrumento, mas .dos que estão encarregados de ensiná-lo;

7.0 ) não parece haver razões ponderáveis, já :nacionais, já culturais, já mesmo patrióticas, já de

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quaisquer naturezas, que militem em favor de seu abandono, com tôdas as suas virtudes conhe­cidas e outras potenciais, em favor de um outro, calcado sôbre dieletalismo cuja generalidade está por ser apurada, mas cuja característica é sua pobreza, de vária natureza, em correlação com a limitação cultural de que é expressão.

(1958)

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SôBRE A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA

I

O Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação e Cultura, acaba, nesta cidade e neste ano, de publicar, sob o título Enciclopédia brasileira, introdução, diretrizes, normas gerais, um volume de 186 páginas, sob muitos aspectos precioso salvo pormenores insignificantes, dentre os quais ressaltaria a inoportuna fotogra­fia do presidente da república e a do ministro da Educação e CUltura, que ocorreriam melhor, a ocorrer, no primeiro tomo da Enciclopédia pro­priamente dito. E isso vai observado por quem, embora sendo objeto de discriminação arbitrária, );lá quase cinco anos, nas suas modestas funções, por prepostos como êle do poder público, nem por isso deixou de emprestar seu mais decidido apoio, na sua ordem de pequenez, ao advento do atual govêmo e continua a crer que, ante as perspectivas imediatas, é êste o que melhor traduz e pode realizar as aspirações mínimas do nosso povo. Mas _isso pouco ou quase nada tem que ver com o objetivo destas linhas - que é o de contribuir, eventualmente, com algumas idéias,

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para a solução do problema da averbação na Enciclopédia brasileira.

O senhor EURÍALo CANABRAVA, no artigo in­trodutório do volume, "Diretrizes da Enciclopédia brasileira", reconhece que a tarefa que se tem pela frente deve renunciar à pretensão "à obra perfeita, que ainda não estamos em condições de realizar" ( p. 15), ressaltando, logo em seguida, a "necessidade de estabelecer normas claras não somente para inclusões, como também para omissões", vale dizer, inclusões e omissões de dados, fatos, idéias, pessoas, lugares, objetos, coisas, em suma, bits na nomenclatura documenta­lístico-cibernética. Baste-nos, neste respeito, con­siderar que num pequeno tomo de cem páginas quaisquer, mais ou menos tensas de conhecimentos e noções, um pesquisador de bits poderá encon­trar até cem mil, quando não mais, informações. Ora, ainda que os bits coincidam, nos verbetes enunciadores respectivos, na proporção de 99%, de · obra em obra daquelas dimensões - quaisquer que sejam os assuntos tratados -, é fácil de imaginar que, ràpidamente, se chegaria a uma enciclopé­dia de porte chinês tradicional, o que quer dizer obra impublicável, pelo custo e pela dispersão e redundância de plano e de informação. Destarte, aquêle princípio diretor é, creio, fundamentalmen­te justo e necessário, sem dúvida uma das condi­ções, quando não a principal, para o bom êxito do tentame.

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No "Plano geral da Enciclopédia brasileira", a p. 31, encontra-se a seguinte disposição:

Número de verbetes de cada classe. - A quantidade de verbetes não seria variável nas duas enciclopédias [a menor, de publicação dentro do atual qüinqüênio presidencial, e a maior, que se alongará pelos anos futuros, como tem de ser], mantendo-se em ambas mais ou menos a mesma estrutura, forma e pontos básicos. A primeira representaria uma síntese de conhecimentos e a segunda, bem mais ,extensa, rica e desenvolvida, seria de maior valor cultural, portanto. Devido ao tempo transcorrido entre a publicação das duas, verificar-se-á, evidentemente, a inclusão de novos assuntos, motivada pelas om1ssoes que, inevitàvelmente, ocorrem na primeira, apesar do maior cuidado no preparo do seu texto.

Como ordem de grandeza, podemos admitir quantidade arbitrária de 250.000 verbetes para cada uma das duas enci­clopédias, variando a segunda, como já foi dito, na forma muito mais extensa e atualizada.

Retenhamos essa ordem de grandeza: 250.000 verbetes. Consideremos, de outro lado, sem pre-

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tender nem de leve esgotar todos os aspectos da questão, os seguintes pontos de referência:

I) o Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa, de LAUDELINO FREIRE, com a colabo­ração do professor J. L. DE CAMPos, contém cêrca de 209.000 verbetes, exclusivamente definidos do ponto de vista dos usos lingüísticos; isto é, cada vocábulo é acompanhado de tantas definições quantas forem as suas funções lógico-gramaticais, ou os seus matizes ou valores semânticos, inclusi­ve os das linguagens especializadas, vale dizer, das artes, das religiões, das ciências, das filoso­fias, das artesanias, das profissões, sendo que na definição dêsses usos particulares os vocábulos em causa não esgotam - nem o pretendem - os aspectos técnicos senão superficiais envolvidos em cada um. Ora, é ponto pacífico que o Grande e novíssimo dicionário é já hoje, embora ainda dos mais ricos quantitativamente, omisso de um número considerável de vocábulos, cuja aver­bação poderia fazer ascender seus verbetes para a ordem de grandeza de 250.000 unidades. Con­sidere-se, contudo, que êsse número seria repre­sentado essencialmente pela soma dos verbetes atuais (em que se incluem regionalismos conti­nentais portuguêses, brasileirismos, alguns africa­nismos, asisticismos e oceanicismos, já acolhidos, eventual ou extensivamente, em obras literárias, científicas ou dialectológicas), mais os verbetes provindos do avanço do conhecimento científico,

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com a terminologia e nomenclatura decorrente, do incremento das técnicas e da coleta de novos vocábulos regionais. No momento, porém, em que já se anuncia a publicação, para breve futuro, do Atlas lingüístico da Península Ibérica e em que se pensa enfrentar, de forma sistemática, a pes­quisa dialectológica e etnográfica brasileira, é certo que a ordem de grandeza de 250.000 unida­des empalidece, não sendo exagerado supor que, num curto lapso de tempo, venhamos a poder averbar, lingii.isticamente, para mais de 300.000 unidades;

II) o W ebster' s Biographical Dictionary, na sua mais recente edição ( 1953), por sua vez, tomado como base de uma nômina onomástica, oferece cêrca de 40.000 verbetes. f: verdade que êsse onomástico é preferencial no que tange ao mundo anglo-saxônico, podendo, pois, sofrer um corte sensível nesse setor; em contraposição, · o mundo luso-brasileiro, muito pobremente nêle representado, contra-regrará aquêle corte, deven­do-se, assim, admitir como base a possibiHdade de um quantitativo de verbetes onomásticos da ordem de 40.000 unidades averbáveis na Enciclo­pédia bmsileira (o que a rigor é excessivo, como se verá de cotejos adiante estabelecidos);

III) o W ebster' s Geographical Dictionary (edição de 1949), ainda, tomado como base da nômina toponímica, oferece, por sua vez, cêrca de 40.000 verbetes. f: verdade que essa toponí-

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mia é preferencial no que tange ao mundo anglo­saxônico, particularmente ao território dos Esta­dos Unidos da América, podendo, pois, nesse particular, sofrer corte sensível; mas o mesmo ra­ciocínio feito supra cabe aqui também, sendo, pois, lícito admitir como base a possibilidade de um quantitativo de verbetes toponírnicos da ordem de 40.000 unidades averbáveis na Enciclopédia brasileira (o que a rigor é excessivo, como se verá adiante).

Sem discutir as omissões já existentes, no corpo dos dicionários em português, quanto à imensa nomenclatura dos "reinos" animal, vegetal e mineral, já no seu aspecto popular, já no seu aspecto científico, é admissível supor que inclu­sões pouco discriminadas poderiam fazer montar o número de verbetes da futura Enciclopédia bra­.sileira para a ordem de grandeza de 40.000 unida­des. Para só lembrar o caso da Enciclopédia universal ilustrada europeoamericana, a chamada Espasa-Calpe, anotemos que o "proemio" ( vol. 1 A-ACD) se gaba de que "figurarán en nuestra obra, debidamente clasificados, con toda la sinoní­mia técnica y denominación vulgar, los géneros botánicos completos hasta el día, constituyendo un caudal de más de 20,000 artictilos nuevos y 50,000 voces diferentes, con su breve y completa

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descripción de caracteres" ( p. VII). f: verdade que, no caso vertente, embora possa semelhante tipo de enciclopédia prestar incontestáveis servi­ços, é ela - pelo plano (difícil de depreender, seja logo dito por amor da objetividade) e sobre­tudo pela massa indefinida de achegas e inclu­sões - quase informe, servindo de modêlo, por seus dez tomos de apêndices e seus oito de suple­mentos aos primitivos setenta, de como não se Çleve pretender enciclopedizar nos tempos presen­tes. Em oposição a êsse tipo de enciclopédia, ergue-se a famosa Brit:annica. Esta, na sua edição de 1951, consegue encerrar tôda a matéria enci­clopedizada em vinte e três volumes, com um vi­gésimo quarto de índices e atlas. Nos vinte e três volumes de texto, há tão-somente 41.000 ver­betes alfabetizados ou articles, que se desdobram, ;remissiva e alfabeticamente, no vigésimo quarto, num extenso vocabulário com · um mínimo de 70 unidades por coluna, seja 350 por página, seja, em 507 páginas, 177.437 unidades, a que se deve acrescentar 100 unidades por coluna toponímica, seja, 500 por página, seja, em 59 páginas, 29.500 topônimos o que, tudo, totaliza 206.937 "informa­ções" brutas, isto é, remetidas para "informações" líquidas. (Trata-se. em tudo isso, de um cálculo mínimo, a que procedi por mera aproximação, mas a figura global não deve estar muito alterada, a ponto de invalidar os dados para a argumenta­ção. :n:sse número de topônimos deve ser levado

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em linha de conta como eventualmente possível na Enciclopédia brasileira, contra o referido se­gundo o ·w ebster acima citado).

Temos, assim, por duas vias, dois números de base; de um lado, 400.000, não desdobráveis em vocabulários indiciadores, de outro lado, 41.000, desdobráveis em vocabulários indiciadores com um mínimo de 177.000 ou 207.000 unidades re­missivas, cumulativas, cuja inter-remissão se faz (ou se deve fazer, pois há lacunas) nos articles propriamente ditos. O número de 250.000 ver­betes, prospectivamente admitido no plano geral da Enciclopédia brasileira, é bem verdade que como "quantidade arbitrária", pode, dêsse modo, ficar muito aquém das necessidades mínimas ou muito além delas.

Mas consideremos ainda êsse número de base adotado pelos planejadores. São 250.000 unida­des distribuídas entre 1) verbetes-monografias, 2) . verbetes de expansão, 3) verbetes ilustrativos, 4) verbetes de definição e 5) verbetes de remissão. As definições que dêsses verbetes dá o volume introdutório do plano, pp. 32-34, são claras para o estágio presente dos trabalhos. Vejamos, porém, algumas ilações que se podem fazer da discrimi­nação acima dos verbetes. Os verbetes de re­missão devem "conter apenas os títulos, os subtítulos e as referências ao verbete ou aos ver­betes onde serão encontradas informações que lhe são correlatas". Servem, assim, "para facilitar

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a procura, evitando-se os índices gerais, comu­mente utilizados para essa pesquisa". A atermo­nos a essa definição, sobretudo no que ela encerra de categórico, com referir os "índices gerais", po-

- deremos, de novo, estabelecer certa aproximação do plano de averbação da Enciclopédia brasileira com a Encyclopaedia Britannica, já que a primeira encerraria 250.000 verbetes no corpo dos volumes e a segunda encerra 41.000 no cmpo dos volumes ·e, pelos nossos cálculos, 177.000 ou 207.000 no índice, seja, na hipótese maior, 247.000 unidades.

Cabe perguntar, destarte, quantos verbetes de :remissão, prospectivamente, admitem, a mero título estimativo, os planejadores da Enciclopédia brasileira; se o número fôr aproximativamente igual ao da Britannica, estaremos em face, no par­ticular, de uma estrutura relativamente afim, com a diferença de colocação dos verbetes de remissão, no primeiro caso, no texto, no corpo enciclopédi­co, no segundo caso, em posição extratextual, final. O argumento em favor da inclusão dos verbetes de remissão no corpo enciclopédico é feito sob a invocação do nome de MÁRio DE ANDRADE, cujas razões são dadas a p. 33 e que nos dispensamos de transcrever, rogando, entre­tanto, releitura da passagem. As razões de MÁRio DE ANDRADE, contudo, podem ser ou não ser vá­lidas, ocorrendo, porém, uma objeção capitalís­sima, a saber: semelhante critério de ínclusão dos verbetes de remissão no corpo enciclopédico

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acarretará um impedimento, tanto na versão pe­quena da Enciclopédia brasileira, em seis volu­mes, quanto na grande, em trinta e seis, de dar por arrematado e publicável qualquer volume antes de arrematados todos os outros, pois que, mesmo que ·o recenseamento seja totalmente feito, mesmo que a hierarquização desses verbetes, sua classificação, sua enumeração de títulos sejam esgotados, atendendo a que se poderá admitir, sempre, no correr dos trabalhos, até o último momento, omissões involuntárias ou lacunas, sempre penderá a hipótese de inclusão de novos verbetes de remissão. Ou então iremos cair na falta de uniformidade, com verbetes realmente remissivos e outros, que acaso devessem ser dessa natureza, definidos, mas eventualmente definidos em contradição com os de monografia ou os de expansão; ou então, com isso, incidiremos no "plano" da Espasa-Calpe - o que seria o mal maior, pelo vulto que o tentame involuntàriamente· iria assumindo. Tenho para mim, pois, que a ,localização dos verbetes de remissão deve ser re­pensada maduramente, inclusive com a idéia de, por acaso, constituírem êles o primeiro tomo da Enciclopédia brasileira, embora elaborado in fine (como teria de ser), mas primeiro tomo destina­do, quiçá, a subsanar parte dos inconvenientes -pequenos, em verdade - do estado psicológico do consulente, em face do recurso baldado a mais de um volume, antes de encontrar o local desejado:

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neste particular, aliás, o grande mal das enciclo­pédias são os apêndices e os suplementos, êsses, sim, desesperadores, a qualquer tipo, grau de cultura, fome de saber do consulente.

Mas, a meu modestíssimo ver, a pedra de toque da extensão da Enciclopédia brasileira, da sua relativa uniformidade, da sua eventual execução feliz, estará na justa ponderação do ver­bete de definição. O volume que ora apreciamos conceitua-o assim ( p. 33) :

Como o próprio nome indica, nestes verbetes se procurará definir o uso dos símbolos verbais, esclarecendo o sentido das palavras ou conceitos.

Evidentemente, em .grande número de casos, êstes verbetes poderão conter apenas uma ou duas fráses, admitindo-se, entretanto, casos especiais que exijam maior número de linhas. Na hipótese da enciclopédia de 6 volumes, pode ser li­mitado a 10 linhas. :ltste espaço, na en­ciclopédia de 36 volumes, será dilatado até 60 linhas no máximo.

Ora, como a definição não deixa margem a dúvida, tais verbetes são os preferentemente lingüísticos, isto é, os dos dicionários da língua, o que nos leva, de novo, a cotejos, seja com a Encyclopaedia Britannica, em face do The Pocket

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Oxford Dictionary of current English ( Oxford, 1942), deliberadamente escolhido por ser de bôlso e "corrente", isso para maior fôrça de argumenta­ção e por ser o de que disponho à mão, tomando, ainda ao acaso, como critério de cotejo as averba­ções numa e noutro, entre do e dog (na primeira coluna, os verbetes do dicionário, denteados os subverbetes, uns e outros seguidos ou não da palavra "não" entre parênteses, para indicar que não constam da averbação da enciclopédia) :

dol do2 (não) do3 (não)

do4 (não) do-nothing (não) doing (não)

doat (não) Dobbin (não) docile (não)

docility (não) dockl (não) dock2 (não) dock3

dockyard (não ) docker (não)

docket doctor

Doctor's Common doctoral (não ) doctorate (não) doctress (não ) doctrine (não)

do doab Dobbie, Sir James

Johnstone Dobs Ferry Dobell, Bertram Dobell, Sydney Thompson Dobeln Doberan Dobereiner, Johan

Wolfgang Dõblin, Alfred Dõbrentei, Gabor Dobrici Dobruzhoffer, Martin Dobrovsky, Joseph Dobruja Dobsina Dobson, Frank Dobson, Henry Austin Dobson, William Dobson-fly docetae dochmiac

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142 ANTÔNIO HOUAISS

doctrinaire doctrinarism (não) doctrinal (não)

document documentary (não) documentation (não)

dodderl dodder2 (não) doddered (não) dodecagon (não)

dodecagonal (não) dodecahedr­dodecasyllab- (não) dodge (não )

dodger (não) dodgy (não)

dodo doe (não) doP.s ( nllo) doff (não) dog

dock docket docket docks dock warrant dockvards and naval

bases doctor Doctor' s Common doctrinaires document dodder Dodds, Alfred Amédée dodecahedron Dodecanese Dodge Citv Dogson, Charles

Lutwidge dodo Dodona Dods. Marcus Dodslev, Robert Dodsworth. Roger Dodwell, Henry dog

e agora, ao acaso, entre sor e "sos" (mas não "sot"):

-sor (não) sorcerv (não)

sorcerer (não) sorC'eress (não)

sordid (não) sore (nllo) sorites ~;orra ( nllo) sorrel

Sordello sordino, sordoni, sordnn Sorel, A~tnes Sorel. A lhert Sorel. Charles SorP.l sorrrhum Soria Sorfa

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 143

sorrow (não) sorrowful ( 11ão)

sorry (não) sorrily (não)

sorriness (não ) sort (não) sorti e (não) sortition (não) -sory (não) SOS (não) sostenuto

sorites Sormovo Soroca Sorolla y Bastida,

Joaquin sororate sororities sorrel Sorrento Sorsogon Sosigenes Sosithens Sosnowiec sostenuto

e por fim entre "tac" (mas não "tad"):

tach (não) tacit (não)

taciturn (não) taciturnity (não)

tack tackle (não) tacky (não) tact (não)

tactful (não) tactless (não )

tactics tactical (não) tactician (não)

tactile (não) tactual (não) tactility (não) tactually (não)

Tacanan tacheometry Tachienlu Tachnid fly tachometer tach.ylite Tacitus, Cornelius Tacitus, Marcus Claudius tack Tacna Tacna-Arica Question Tacoma tactical formations tactics

Seria o caso de indagar a que omissões o cotejo não nos levaria se, em lugar do Oxford

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de bôlso referido, se tomasse o célebre Murmy, com seus cêrca de 450.000 vocábulos!

O critério de exclusão da Encyclopaedia tBritannica, destarte, parece-nos "claro". Mas a "clareza", fôrça é recorlhecer, decorre fundamen­talmente do fato de que a dicionarização em língua inglêsa e da língua inglêsa, quando não :reputável perfeita, se aproxima, na medida do possível, da perfeição, o que de pronto dá o barêmio de inclusões.

Mas aqui impor-se-ia uma nova consideração: o Instituto N acionai do Livro, além de sua seção da Enciclopédia Brasileira, conta, se não me equivoco, com a do Dicionário da Língua, não sei se "brasileira" - isto é, digamos a partir de 1 500, ou mais extensivamente Dicionári.o brasi­leiro da língua portuguêsa, o que o alargaria, conforme o critério que presidisse à sua elabora­ção, aos primeiros documentos escritos em por­tuguês, quando não aos primeiros vocábulos portuguêses encontráveis em meio ao latim no­tarial e bárbaro.

Quererão os planejadores da Enciclopédia brasileira enveredar pela obra pioneira do dicioná­rio da língua, ou quererão, ao contrário, deixar o dicionário em mãos dos lingüistas, filólogos, lexicógrafos?

Admitamos, como base de trabalho, as duas hipóteses seguintes : a) a Enciclopédia será, t ambém, filológica e lingüística - faremos algumas

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ressalvas quanto aos conceitos aí expressos; b) a Enciclopédia não será, também, filol6gica e lin­güística. Que num certo sentido ela, prospecti­vamente, terá elementos de filologia e lingüística é 6bvio e 16gico, tanto assim, aliás, que o volume que ora examinamos, dentre outras passagens, o ;refere expll.citamente no "Plano geral da Enciclo­pédia brasileira", a p. 34, nos "campos de conhe­cimento", distribuídos em nove classes, a primeira das quais é "filologia e lingüística". Mas no outro sentido, no de encerradora de unidades-verbetes cujo conteúdo se endereçar especialmente ao "signo" ( êste é o vocábulo usado algures no vo­lume) lingüístico como elementos estruturados no sistema de sistemas do português, isto é, de novo, aos usos e potências e significações gerais ou de conhecimento particular de grau não definida­mente científico nessa direção, que é típica do dicionário da língua, nessa direção parece pre­tender também enveredar a Enciclopédia, quando acolhe, a p. 44, como vimos, não s6 os verbetes de remissão (que obviamente apresentam também uma finalidade extradicionário), mas principal­mente os verbetes de definição, que expressamen­te são conceituados, a p. 33, e cuja citação já foi feita supra, verbetes típicos de dicionário.

Primeira hipótese

Entretanto, cumpre-nos examinar, agora, a primeira hip6tese de trabalho: a Enciclopédia

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.será, também, filológica e lingüística - o que vale dizer, como vimos, que encerrará, ademais de verbetes relacionados com as ciências e técnicas filológicas e lingüísticas, verbetes relacionados com os vocábulos da língua extensivamente. A per­gunta que ocorre é a seguinte: se o teto, arbi­tràriamente embora, fixado para o número de verbetes é de cêrca de 250.000 unidades, como conciliá-lo com a possibilidade de incorporar cêrca de 240.000 vocábulos, no mínimo, da língua na Enciclopédia? A preliminar óbvia é de que .cada vocál:;ulo não constituirá um verbete, nem mesmo verbete de remissão, como o previram os planejadores, ao reconhecerem que se impunha um critério de exclusão, mas de exclusão de vo­cabulário da língua comum, inclusive. Noutros têrmos, impõe-se criar ou consolidar uma siste­mática tal que um sem número de vocábulos possa ser encerrado em um ou dois verbetes apenas da Enciclopédia, já que nesta hipótese de ttrabalho, nem que seja implicitamente, todo o extensivo vocabulário da língua deve constar da Enciclopédia .

.Admitamos um processo de combinação de tantas variáveis vocabulares seletivas já definidas ou por definir isoladamente, mais uma constante, da fórmula VC, que pode, por exemplo, corres­ponder a "adjetivo qualificativo qualquer + su­fixo - mente", êste o C da fórmula, que será de­finido uma única vez num verbete, com a extensão

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 147

compreensiva de tôdas as particularidades dos derivados, na base de sua significação adjetiva. Digamos, assim, por mera suposição, que o por­tuguês possui 25.000 adjetivos qualificativos, a que correspondem, potencial ou realmente, 25.000 advérbios em -mente; os 50.000 vocábulos, como, vimos, serão (ou poderão ser) averbados em 25.000 + 1 verbetes, desde que, no roteiro prévio de consulta, haja clara e expressa menção dessa circunstância. Num certo sentido, êsse processo pode ser estabelecido, por exemplo, para os subs­tantivos em -ção regularmente formados de verbos da primeira ou da terceira conjugação, do esquema "conjugar(r)+ção" ou "parti(r)+ção", mas não em "agir:ação'' ou "ação:agir", nem em "instruir: instrução", já que não formados "regu­larmente", segundo estamos figurando (outras "regularidades" menores poderão ser estabeleci­.cidas .. . ) . Neste caso, teremos para uns 11.000 verbos - estimativamente -, em lugar de 22.000 verbetes, apenas 11.000+1. Outro exemplo, mais particular, poderia ser invocado com "adjetivo qualificativo oxítono terminado em -l + -izar = verbo", ou "verbo do tipo anterior + -dor,, como fórmula de alguns substantivos de agentes.

Tal critério, que parece razoável, tem contra si, se em definições excessivamente gerais, o risco (que de certo modo é um mérito, mas não enci­clopédico) de apresentar como "existentes" no acervo da língua uma série de palavras "poten-

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,c1a1s , tais, por hipótese, na ordem dos três últimos esquemas formulados, as seguintes séries de exemplo: a) cantação, paração, dançação, cansação, faltação; ouvição, sentição, fugição, calção, provição, rição; b) azulizar, tafulizar, ca­balizar (de "cabal"), fielizar, cruelizar; c) azuli­zador, tafulizador, cabalizador, fielizador, crueli­zador. . . Escusa, entretanto, entrar em maiores pormenores, se êste fôr o objetivo dos planejado­res: não apenas com sufixos (-menta, -tor, -douro, -vel, -il, etc.), mas também com pre­fixos ( re-, ante-, pré-, contra-, anti-, meta-, dia-, ana-, etc. ) os esquemas estruturais podem ser, em operação relativamente factível por qual­quer médio conl1ecedor da língua, estabelecidos, e com isso um número não pequeno de verbetes poderá ser excluído do acervo da averbação enciclopédica. Fica esta, porém, com um lastro dicionário ainda ponderável, pois que essas re­duções não poderão, em um vocabulário da ordem de 250.000 unidades, ser superiores a - estimati­vamente para mais, dentro do conceito de "regula­ridade" acima referido - 40.000 vocábulos. Esta­mos ainda em que é excessivo o saldo de 210.000, mais a onomástica, mais a toponímia, mais, possi­velmente, os intitulativos (da ordem presumível de 5.000, entre as principais obras literárias, artís­ticas, científicas, instituições, museus, palácios, que quiçá mereçam guarida em verbetes autônomos,

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA JNGUA Í4Q

ainda que verbetes de rem1ssao, e.g., "Ermitage, Museu do - ver Leningradl?]·

Impende, ainda, nesta oportunidade, exami­nar um aspecto da averbação de vocabulário da língua numa enciclopédia, quando não se trata da segunda hipótese que abaixo examinaremos. 1t que a mistura de verbetes relacionados com os dicionários da língua mais os enciclopédicos pro­priamente ditos suscitará novas dúvidas que assaltarão a mente dos planejadores - o problema já não da averbação enciclopédica, mas o da averbação dicionária tout cottrl, que aqui não pretendemos aflorar, antecipando, tão-somente, dentre muitíssimas ouh·as, as seguintes coordena­das da questão:

a) por famílias de palavras do ponto de vista morfológico?;

b) por "áreas semânticas" ou analógicas?; c) da histbricidade da língua, isto é, com os

vocábulos arcaicos?; · d) da potencialidade viva da língua, isto é,

com aquêles vocábulos para os quais não haja abonações literárias ou documentais escritas, entretanto "sentidos" como "reais"?;

e) sem datação ou com datação da entrada ou documentação na língua?;

f) com abonações de uso e de "autoridades"?; g) em face dos arcaicos, com que forma ou

formas?;

lO

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h) como tratar os sincretismos modernos, tipo "aspecto: aspeto", "muxirão, muxirom, muti­tão, mutirom, mutirum, mbutirão, mbuxi­rum, etc."?;

i) e os dialetais?; j ) e, dêstes, os ultramarinos (do nosso ponto

de vista)? Segunda hipótese Vejamos, agora, a segunda hipótese de tra­

balho: a Enciclopédia não será, também, filoló­gica e lingüística, no sentido extensivo da hipótese anterior, noutros têrmos, a filologia, lingüística e ramos e divisões e conexões entrarão apenas como formas de conhecimento. Quais, com essa ampla · poda preliminar de verbetes, os vocábulos da língua que merecerão figurar como verbetes da Enciclopédia (já que todo verbete é vocabular, já que a enciclopédia inteira será, fundamental­mente, um acervo de mensagens e informações com base essencialmente nos signos lingüísticos, mas seletivos, tão secundá1ia é, relativamente, a função das "ilustrações" ).

Viria, liminannente, a pêlo lembrar o dilema de RAYMOND QUENEAU, modernamente, na sua Présentation de l'Encyclopédie de la Pléiade, Paris, Gallimard ( 1956), embora o plano seja es­truturalmente diferente, pois não se trata de enciclopédia alfabética, mas temática. Entretanto, o problema da seleção vocabular se lhe apresenta quase igualmente, já que, nos "índices gerais" e

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA ÚNGUA 151

particulares da mesma, cumpre saber o que indi­ciar. A pp. 8-9 diz êle:

rD'abord les mots. Un lecteur peut être gêné par la rencontre de périhélie, anastomose, stiophoide, du moins, c'est rce que peut supposer l' éditeur; et lui-même, ce lecteur idéal, il avouera vo­lontiers qu'il les ignore. Par contre, on supposera connus les mots parallélépipe­de, antibiotique, radar, quoique la con­naissance réelle qui se cache derriere chacun de ces mots soit souvent assez :mince. Ou se trouve la limite? Elle est difficile à determiner. I-Iexagone, électron, cellule: on est censé savoir ce que c'est; ellipsoide, méson, gene: c'est déjà moins, clair; simplexe, sp'in, néoténie: on sort du langage courant.

A citação não visa, senão, a dois objetivos: lembrar que RAYMOND QuENEAU, para um pro­blema bem mais simples, já que o da indiciação e eventualmente o de grau de contensão do voca­bulário dos verbetes, também teve de lutar com "omissões e inclusões", e lembrar, porém, também, que tôda a exemplificação dubitativa foi feita ení tôrno de substantivos.

O cotejo supra feito entre o Oxford de bôlso e a Encyclopaedia Britannica, embora dê algumas

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indicações, parece-me que, se exaustivamente acabado, nos revelaria apenas um método de se­leção de verbetes provàvelmente precário para os fins da futura Enciclopédia brasileira; mas dos 41.000 verbetes-articles da Britannica, ao simples exame, ressalta que a grande maioria - segura­mente mais de 65% - é de verbetes que em por­tuguês (salvo certos concretistas) seriam escritos com iniciais maiúsculas, nomes próprios, em

· suma; em contraposição, freqüentes são os com letra minúscula de que decorrem no índice ( vol. 24) muitos dos substantivos comuns a êles reme­tidos, mas, repitamos, palavras da língua comum que decorrem do tratamento enciclopédico de verbetes no corpo da Britannica.

De novo caímos num círculo vicioso apa­rente: quais os vocábulos do dicionário, do vo­cabulário da língua comum que merecem, a priori, guarida, em forma de verbete, no corpo da Enciclopédia, dentro da premissa desta · segunda hipótese de trabalho[

Estabelecer, sôbre essa base, categorias de­finitivas e inevogáveis, sem possibilidade de eventuais exceções para êste ou aquêle caso sin­gular, parece uma temeridade, ousaria dizer mais, parece negação de qualquer prudência científica. Por exemplo: admitamos como nã"o averbáveis as preposições ou as locuções prepositivas vemá­culas, bem como as latinas e as gregas como tais usadas em português, seja, "a, ante, até, após, com,

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 153

contra, etc.", "in, aprud, cum, inter, etc.:', "catá, aná, diá, etc.". O princípio pode, evidentemente, ser estabelecido como regra que comporte, even­tualmente, exceções em forma de verbetes, e.g., "in, preposição latina, em, usada em bibliologia e bibliografia ou afins, para indicar onde se estam­pa artigo ou colaboração ou estudo, anteriormente :referido, anteposta às vêzes a periódicos e obras de autoria coletiva" (convenho em que o exemplo é tão secundário que não mereceria o verbete, sobretudo como está redigido, já que as abre­viações, abreviaturas, signos convencionais e sím­bolos afins deverão ocupar na Enciclopédia um lugar prévio adequado). Por · exemplo outro: admitamos que os adjetivos qualificativos em geral venham a ser averbados; isso não impedirá que, eventualmente, se averbe, e.g., "potencial" ou "real", como remissivos (se houver verbetes de remissão, tal como o admitem 0s planeja dores) de "ser" ou do verbete de lógica, filosofia, gnoseo- · logia ou o que fôr em que aquêles "modos" ocor­rerem, já que "potencialidade" ou "realidade" podem não necessàriamente ocorrer averbados.

Já agora, cremos, se tomaria operação exe­qüível, dentro desta segunda hipótese, estabele­cer, na base de alguns princípios gerais, as exclusões do dicionário, do vocabulário, possíveis, ressalvadas as exceções antes admitidas como subprincípio ou ~mesmo pré-princípio, que no di-

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154 A N T Ô N I O H O U A I S S

tame de organicidade de um verbete-monografia poderia haver determinação de n verbete de ex­tensão, alguns dos quais fôssem "aparentes" exce­ções dos princípios de exclusão, ou então por conveniência de remissão, em verbetes de remis­são (se constarem do corpo enciclopédico, senão, no índice geral, ab initio ou in fine).

Ensaiemos algumas indicações gerais para princípios de exclusão:

1. 0 ) as palavras ditas relacionais: a) as preposições e locuções prepo~

sitivas; b) as conjunções e locuções conjun-

tivas; _ c) as chamadas partículas ou locuções

equivalentes;

2 . 0 ) as palavras ditas modificativas: a) os advérbios e locuções adverbiais; b) os adjetivos (qualificativos);

3.0 ) as palavras ditas determinativas ou substitutivas:

a)' os adjetivos determinativos ou pro­nomes adjuntos;

b) os pronomes, ou pronomes absolu­tos (.pessoais, demonstrativos, pos­_sessivos, etc.);

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 155

4.0 ) as palavras interjetivas; 5.0 ) os verbos (mas não os "verbos" subs­

tantivados, é óbvio, pois êstes ficarão na fluh1ação abaixo admitida);

6.0 ) alguns substantivos.

Que substantivos, meu critiquinho? (O cri­tiquinho é o autor mesmo destas linhas ... )

Ora, é nos substantivos que se encerra, efeti­vamente, o grande problema seletivo e exclusivo - no quadro desta segunda hipótese de trabalho.

Permita-se-me novamente um cotejo operati­vo. Tomando como base - sem nenhum critério !indicativo de valor - o Melzi (Il No1Yissimo Melzi, dizionario italiano in due parli, linguistica-scienti­fica, XXXIV edizione, ampliata, riveduta e 1aggiomata, Antonio Vallardi editore, Milano, 1953), consignemos. que no volume "lingüístico" (o primeiro), numa letra tomada ao acaso, seja "C", seja até "cac" (mas não "cad"), há os se­guintes substantivos (segundo a própria defini­ção do dicionário, excluídos os subverbetes): c, caaba, cab, cábala, cabaletta, cabalista, caba­site, caberu, cabila, cabina, cablogramma, cabo­taggio, cabriolet, cacadubbi, cacaiola, cacao, ca­casenno, cacata, cacatoa, cacatoio, cacazibetto, cacca, caccabaldole, cacchione, caccia, cacciabron­zina, cacciatorpediniere, cacciavite, cacciu, caccitt.­co, cacco_la, cacolone, cacherella, cachessia, cachi,

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cachinno, caciaia, cacico, cacio, caciola, cacodila­to, cacofonia, cactacee, cactee, cacto, cactus, ca­cume, seja, 47 substantivos, enquanto o "científico" dá os seguintes (não citados os "enciclopédicos" tout court, isto é, topônimos, antropônimos, ono­másticos, intitulativos, os de letra maiúscula inicial, em suma) : c, cabili, cabo (como espanholismo), 10acao. Instrutivo, por exemplo, é a comparação do tratamento de "cacao" em cada um dos dois volumes do Melzi. A Encyclopaedia Britannica 1consigna, do início da letra "G" até "gal" (mas não "gam") os seguintes substantivos comuns (ou "comunizados" no vocabulário da língua inglêsa): g, gabardine, gabbro, gabelle, gaberdine, gable, glablet, gage, gaine, galago, galangal, gale, galena, galeopithecus, galium, gallas, galleon, galley gallfly, gallicanism, galliformes, gallinule, gallium, gall rnidge, gallon, galloway, galls, galop, galvani­zed iron and steel, galvanized wire, galvanorneter. No Oxf.ord de bôlso, contra êsses 31 verbetes subs­tantivos comuns (o critério de "comum" aí é dis­cutível, mas o recenseador-critiquinho é o mesmo), há os seguintes (em que, com "id." entre parên­teses após vocábulos, indico os que coincidem com a Encyclopaedia): g ( id.) , gab, gabble, gabelle ( id.), gaberdine ( id.) gabi.an ( gabigonade), gable (id.), gaby, gad-fly, gadget, gadoid, gaffl, gafF, gaffer, gag, gage1 ( id.), gage2, gaiety, gain, gait. gaiter, gala, galantine, galanty-show, galaxy, galbanum, gale1, gale2 ( id.) , galeeny, galilee, ga-

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 157

lingale, gaW, gall2, gall3, gallant ( gallantry), galleon ( id), gallioon, gallery, galley ( id.), ( gal­licism), galigaskiris, galliot, gallipot, gallon ( id.), galleon ( id. ) , gallioon, gallery, galley ( id.), ( gal­lows, gdlop ( id.), galosh, galvanism ( galvanist, galvanization, galvarr.ometer - id. -), seja 49 ver­betes substantivos que, com os subverbetes subs-

. tantivos, montam a 57, dos quais 12 se represen­tam na Britannica.

Reiteremos, pois, que dentro desta segunda hipótese de trabalho, apenas "alguns" substanti­vos devem figurar na enciclopédia. Qual, porém, o padrão informador da seleção dêsses "alguns" é o problema que subsiste. Creio que, nesta altu­:ra, as achegas lingüísticas para as exclusões chegam a seu têrmo, cabendo, agora, em processo de confluência, uma operação inversa: do acervo vocabular total, nesta hipótese, se chegou a um núcleo, o acervo vocabular substantivo, cuja redu­ção é não apenas temerária, audaciosa e precária, · mas sobretudo apriorística, se baseada em catego­rias ou grupos mais ou menos amplos. O método seletivo-exclusivo parece, já agora, dever ser o de determinar as inclusões: a) quais os substantivos que encerram substância enciclopédica "monográ­fica", para serem objeto de verbetes-monografias, do tipo, digamos (a escolha é arbitrária) "quí­mica, física, história natural, sociologia, antropo­logia, geografia, geologia, filosofia, matemática, estatística, cibernética, arte, culinária, indumentá-

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ria, locomoção, comunicação, psicologia, medici­na, biologia, direito, etc."; b) dêsses, quais os que geram verbetes de expansão e quais seriam a cada caso êstes, e.g. (ainda a escolha é arbitrária), "alcalóides, ácidos; acústica, dinâmica; mineralo­gia, zoologia, botânica; relações humanas, classes; antropometria, raças; antropogeografia, ecologia, fitogeografia, zoogeografia; ontologia, gnoseologia; topologia, análise diferencial, integral, combinató­ria; demografia, zoografia; robots, circuitos aber­tos, circuitos fechados, informação, estrutura, sis­tema; pintura, escultura, arquitetura; dietética, dieta; plumagem, chapelaria, sapataria, alfaiataria; meios de transporte, terrestres, marítimos, aéreos; linguagem, semáforos, telecomunicações, diacrono­comunicação; sincronocomunicação; psiquiatria, psicanálise, reflexologia; terapêutica, cirurgia; fi­siologia, histologia; direito privado, direito público, direito internacional; etc. etc. Autogênicamente, os verbetes de categoria mais restrita quanto ao con­teúdo ou extensão iriam sendo "brotados" do de­senvolvimento dos verbetes da categoria imedia­tamente superior.

Pode acontecer que o esquema geral aqui apresentado se revele desanimaaor aos olhos dos planejadores da Enciclopédia, que desejariam, talvez, após o recenseamento geral dos vocábulos dicionarizáveis e enciclopedizáveis, fixar, ato con­tínuo, suas categorias, isto é, êste será de mono- · grafia, aquêle de expansão (relacionada com os

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verbetes de monografia a, g, x e por isso mesmo dividido em três partes, admitamos "antropologia", "direito", "sociologia"), aquêle outro de ilustração (relacionado com tais de monografia e tais de expansão), aquêle outro mais de definição ( re­lacionado com tais de monografia, tais de expan­são, tais de ilustração), aquêles, por fim, de remissão (relacionados com tais e quais das ca­tegorias anteriores). Que o critério seria falso se vê do último item da suposição: predeterminar os verbetes de remissão (onde quer que fôssem colocados, no corpo, ab initio ou in fine da Enci­clopédia) seria compelir os redatores dos verbetes ·de categorias superiores a "empregar" estas mas não aquelas palavras-chaves, o que parece, em matéria de nomenclatura e terminologia científica ou empírica, muito difícil, senão impossível, já que_ seria induzir uma "direção" necessária, do ponto de vista ideológico, à redação dêsses verbe­tes superiores.

Infelizmente, que eu saiba, dada a pobreza de pesquisas estatísticas no campo da língua por­tuguêsa, não se pode desde já estimar o número de substantivos dela. Entretanto, não deve êle ser de ordem desencorajadora pelo vulto e magni­tude. Em condições muito precárias para vali­dade da amostragem, tomando o Vocabulário ortoeráfico brasileiro da língua portugu~sa, orga­nizado por MANUEL DA CuNHA PEREIRA, colabora­ção de Luis PEIXOTo GoMES Fn.Ho, supervisão de

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AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, 2.6

,edição, revista e aumentada, Rio, 1954, como base, podemos depreender a relação seguinte (a pri­meira coluna é de número das páginas; a segunda, de coluna da página; a terceira, de substantivos nela encontrados, e a quarta, de verbetes totais) :

60 - 1 21 (51) 69- 3 39 (58) 82 - 2 29 (41)

113- 4 32 (54) 149 - 2 38 (48) 177- 1 44 (55} 217- 3 35 (42} 268- 1 15 (49) 280 - 4 30 (54) 295- 2 39 (56) 314- 3 40 (53} 337 - 1 34 (53} 358 - 4 29 (51) 415 - 1 21 (41) 446 - 2 41 (56) 518- 3 38 (51)

TOTAL 555 813

A algo valerem, êsses números (precários, re­pitamos, pois o campo de amostragem é dema­siado restrito) dão uma relação segundo a qual, sôbre 300.000 vocábulos idealmente considerados em "português", teríamos 204.000 substantivos. Entretanto, êsses mesmos números, se reduzidos aos "substantivos "exclusivamente, isto é, àquelas palavras que só são substantivos (não se incluindo

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SUCJ!:STÔEi PARA UMA POÚTICA DA xJNcUA 161

nelas nem "sábio", nem "prêto", nem "branco", nem "sindicalista", em suma, as que nos voc.abu­lários aparecem como "adj. e s.", mas só as que aparecem como "s."), se reduzem pràticamente à metade, 100.000, inclusive dialectalismos, regiona- · lismos, vulgarismos, provincianismos e afins.

Cremos, então, que seria factível recensear todos os substantivos dos principais dicionários e vocabulários da língua; uma vez feito isso - se­gundo normas pràticamente já adotadas pelos planejadores da Enciclopédia e adotadas, ao que compreendi, com rara perfeição- recensear-se-iam, em fichas distintivas cromàticamente (ou segundo outro qualquer padrão diferencia dor), os subs­tantivos comuns, em português, de suas quantas enciclopédias de base, seja, a italiana ( Treccani), a Britannica, o Larousse. As coincidências já seriam de si um têrmo de referência capital para a seleção e hierarquização dos verbetes enciclo­pedizáveis, coincidências que poderiam ser forta­lecidas com igual operação para com alguns voca­bulários científicos especializados que, modernos, ~abarcassem em guase plenitude os "campos de 'Conhecimento" (salvo os "diversos") do planeja­mento da Enciclopédia Brasileira.

Ainda um ponto: o vocabulário limitado aos substantivos encerra um problema quase insolú­vel. Na exemplificação tirada à Brítannica, supm,

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aparece um elemento indicativo da dificuldade, o verbete dado, ave lá classificada, descrita e acompanhada de um bico de pena ilustrativo. É o problema da relação "palavras: coisas". O campo denominativo, intitulativo, designativo em­pírico dá, em tôdas as línguas de cultura (e mesmo IJlas outras, quando de certa extensão), para a mesma "coisa" considerada como una, una natu­ralisticamente falando, na chamada designação vulgar, três, quatro, oito, dez, vinte, duzentos "substantivos", consoante sejam levadas em conta as diferenças vocabulares ou as va1iantes do mesmo vocábulo. Como eleger em casos tais? A averbação de tôdas as diferenças essenciais seria excelente; mas êsse ideal, liminarmente, no que tange ao português, mais, ao português do Brasil sobretudo, não pode nem pàlidamente ser resolvi­do, pelo simples fato de que a coleta no parti­cular parece estar ainda na sua pré-história - a fase histórica será erguida pela dialectologia bra­sileira de campo, que a miopia oficial ainda não quis estimular (pois só com a assistência oficial será possível levá-la, não direi a cabo, mas a meio). Que fazer? Incorporar tão-somente o vocábulo "comum" da língua para a "coisa" e nêle reunir, na medida do conhecido, os regionais, como já o tenta, em escala .Obviamente tímida, o Pequeno dicionário brasileiro da língua portugu~sa, da Editôra Civilização Brasileira, e remissivamente (no corpo ou no "índice geral"? ab initio ou in

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fine?) fazer os diferentes vocábulos indicar o ((" , comum.

Ao esbocejelhar estas linhas, escusa realçá-lo, tivemos o mais sincero desejo de cooperar com os planejadores da Enciclopédia brasileira, se mais não fôr, suscitando problemas e dúvidas, muitas, senão tôdas, das quais já terão assaltado a gene­rosa mente dêles. Mas é precisamente por confiar na sua dedicação, é precisamente por compreen­,der-lhes o espírito científico, que reputei justo permitir-me a discussão que me permiti, desva­liosa, vá, mas sincera, que algumas luzes poderá trazer ao debate a que todos os brasileiros deve­riam dar o seu melhor. Por isso, é minha intenção, em breve oportunidade, tecer algumas considera­ções sôbre outros aspectos do magnífico planeja­mento da Enciclopédia brasileira, pelo qual todos os brasileiros devem rejubilar-se.

li

Sob o título - Enciclopédia bmsileira, intro­dução, diretrizes, normas gerais - o Instituto Na­dona! do Livro, do Ministério da Educação e Cultura, ·publicou, não faz muito, neste ano, um volume de 186 páginas, por muitas razões impor­tante - dentre muitas porque é, digamos, o pórtico

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dêsse instrtm1ento de informação de que todos os brasileiros - e os estrangeiros também - estamos desejosos sôbre essa realidade tão complexa, tão original que se chama Brasil.

O <ítulo define claramente a finalidade do volume. E êste constitui-se de a) uma apresen­tação, pelo diretor do Instituto Nacional do Livro ( p. 9) ; b) um artigo "Diretrizes da Enci­clopédia brasileira", do senhor EURÍALO CANABP.A-

. VA (p. 13) ; c) de outro, "Introdução ao planeja­mento da Enciclopédia", do senhor PAULO DE

AssiS RIBEIRo ( p. 23); d) de "Plano geral da Enciclopédia" ( p. 29); e) de "Normas regimentais de funcionamento", com o texto de uma norma (pp. 55 e 57, respectivamente); f) de ''Normas administrativas e de contrôle", com o texto de oito ( pp. 63, e 65, 68, 77, 85, 93, 107 e 113, respectiva­mente); g) de "Normas técnicas básicas", com o texto de nove (pp. 121, e 123, 128, 134, 140, 147, 153, 158, 164 e 171, respectivamente).

Sôbre o capeamento já tive a oportunidade de louvar-lhe a excepcional felicidade de con­cepção, do rico de sugestivo e de execução, em recensão que fiz para a Revista de filologia, desta Capital, sôbre o livro do senhor Wn..soN MARTINS, A pala1.YT'a escrita, São Paulo, Anhembi, 1957, cuja capa acredito tenha sido a "fonte" de inspiração da do presente volume, com a diferença ftmda­mental de que esta vale não apenas pela idéia, mas por tudo. Outra, porém, é a questão de saber

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se o capeamento em aprêço poderá ser o dos fu­turos volumes da Enciclopédia brasileira, da pe­quena e da grande, que talvez peçam algo mais discreto e neutro. ~ questão que deve ser madurada.

Sôbre um grave problema particular suscitado pelos próprios planejadores da Enciclopédia bra­sileira neste volume - e possivelmente ao longo das reuniões de planejamento -, o das inclusões é omissões de verbetes, escrevi pequeno ensaio "Sôbre o problema da averbação enciclopédica", de forma crítica construtiva (creio eu), sugerindo algumas controvérsias que suponho fundamentais ,e apontando - quem sabe? - algumas direções eventualmente válidas, pois a rigor se cuida, nesse particular, do problema capital, central, nodal, do planejamento enciclopédico, daquilo que encerra de substantivo, de substância mesma. O ensainho em causa deverá aparecer no próximo número ( 6) da Revista do Livro, do Instituto Nacional do Livro.

Nesse ensainho, uma das poucas discrepâncias frontais que me permiti foi quanto à inserção da fotografia do presidente da república e da do mi­nistro da Educação e Cultura; é que, malgrado a importância prospectiva do volume, é êle, entre­tanto, não mais do que um planejamento, parte de um; fotografias como essas, a parecerem, devem aparecer no, digamos, definitivo, jamais no instru­mental ou intermediário dêsse definitivo. Sei que

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isso, talvez, desonere os responsáveis da Enciclo­pédia de as incluírem na dita propriamente dita; mas a hipótese mais normal é a de que, quando aparecer o primeiro volume da Enciclopédia, da grande ou da pequena, já outros talvez sejam os planejadores ou alguns dos, talvez outro o presi­dente da república e o ministro da Educação -temos pela frente mais de cinco anos, por certo, antes de que venha à luz o primeiro volume da pequena. O precedente atual valerá como razão dobrada para a inserção de fotos então.

Na ''Explicação necessária" (p. 9) - que no índice se dá com o nome de "Apresentação do diretor do I. N. L." ( .. . ) -o senhor JosÉ RENATO SANTOS PEREIRA toca em dois aspectos do proble­ma, que merecem reparo.

Um, muito en passant, é o relacionado com a distribuição do trabalho redatorial das comis­sões de especialistas "nos vários campos do co­tnhecimento humano" (p. 10), às quais a comissão central cometerá "os elementos básicos para o tra­lho de elaboração de verbetes e monografias re­ferentes às 26 letras de que se compõe o nosso Alfabeto, na sua natural ordem seqüencial de A a Z" (ibidem). Sem disputar quanto aos aspectos lmenos exatos dessa formulação, queremos deixar de manifesto nosso receio de que a ordem de tra­balho seja efetivamente essa, pois as "futuras co­missões de especialistas", ainda que reduzidas, deveriam já ter tido pronunciamentos, prévios, por

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vêzes decisivos, sôbre não poucos aspectos do pla­nejamento, que se me afigura algo tão interin­fluente, que não seria demasiado supor fases de interdependência dos tipos seguintes: a) prospec­ção de cada "campo de conhecimento", com indicações de verbetes-monografia basilares e não poucos de extensão, por grupos de especialistas de cada "campo"; b) prospecção pela comissão central, integrada de um representante de cada "grupo de especialistas", do conjunto de indica­ções obtidas em ( a) ; c ) retômo às comissões de especialistas do plano prospectivo conjunto elabo­rado em ( b); d) plano executivp quase analítico de cada comissão de especialistas, na base do plano prospectivo conjunto, sobretudo para os "campos" estreitamente conexos ou onde se veri­ficassem conexões ou vinculações; e) plano exe­cutivo da Enciclopédia - tudo isso no que se refere ao problema nodal da substância dos ver­betes. O plano executivo assim obtido seria, pa­rece-me, não só mais realista, ma!s exeqüível e mais ponderado, mas também permitiria disposi­ções mais rígidas e objetivos mais definidos, não apenas quanto às diretrizes do planejamento, mas também quanto ao planejamento do planejamento.

O outro aspecto que merece reparo, na "Explicação necessária" ou "Apresentação do di­retor do I. N. L." é o fato consumado da estru­turação alfabética da Enciclopédia. Sei que é matéria passada em julgado, pois que aprovada

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pelas autoridades superiores. Mas ainda assim caberia justificá-la. Ainda que a muitos possa ter parecido ponto pacífico a. necessidade de que sua estrutura fôsse alfabética, creio serem tais e tantas as vantagens também apresentadas pela estruturação temática, que me pergunto se a co­missão central levou em linha de conta um e outro tipos, antes de sugerir o assentamento do adotado. E, se levou, teria sido sumamente útil à opinião ·pública interessada ter recebido uma justificativa, para ficar mais convencida das razões que infor­maram o critério adotado. A relativa autonomia de elaboração temática nas suas partes essenciais é, sob muitos aspectos, uma garantia de viabili­dade para o trabalho coletivo, mormente quando ainda assaltam dúvidas quanto a uma feliz coorde­nação de trabalhos dessa monta entre nós.

Nas "Diretrizes da Enciclopédia brãSTieira" (p. 14), com a responsabilidade da assinatura do senhor EURÍALo CANABRAVA, fixam-se os padrões mais gerais e extensivos das características da fu­tura Enciclopédia, condensados desta maneira (pp. 15-16):

1) renúncia à obra perfeita, que ainda não estamos em condições de realizar;

2) necessidade de estabelecer nor­mas claras não somente para inclusões, como também para omissões;

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3) especial relevância dada à téc­IIlica e metodologia do conhecimento, em prejuízo da acumulação de dados esta­tísticos que não se organizam em sistema;

4) demonstração das interconexões das diferentes disciplinas e da unidade orgânica do conhecimento positivo;

5) sentido corajosamente prospecti­vo da obra a realizar, sem compromissos paralisadores com o inventário retrospec­tivo das teorias e escolas.

A quem se tenha detido na consultação da Encyclopédie Française contemporânea, em parte malograda na sua unidade relativa de grau de aprofundamento de conhecimento pela intercor­rência da última guerra, não escapará que as di­~etrizes dela, implícitas ou explícitas, inspiram a da Brasileira; e ninguém deixará de saudar se­melhante coincidência como altamente promis- . sora, ainda que, para realizar aquêles objetivos, a Française tenha compreendido que a melhor via e ra a da estruturação temática. Agora, vendo o plano da EnGyclopédie de la Pléiade, da editôra Gallimard, de Paris, também temática, pergunto­me se êste tipo de estruturação não decorre da necessidade contemporânea, em que mais do que nunca se almeja - tamanha é a aparente disper­são do "conhecimento positivo" - pôr clara a diretriz ( 4) supra referiaa, a saber, a "demonstra-

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ção das interconexões das diferentes disciplinas e da unidade orgânica do conhecimento positivo", e pergunto-me também se êsse tipo de estrutura­ção temática não decorre da sua, digamos, maior viabilidade. Tenho para mim que ambas as atuantes estiveram presentes ao espírito dos orga­nizadores das duas enciclopédias temáticas cita­das, que, isso não obstante, discrepam em muitos pontos, como é lógico. O exemplo contemporâneo da Soviética e pouco anterior da Italiana milita >em favor da hipótese ·de que as enciclopédias alfabéticas, embora mais difíceis de elaborar (quando boas) , são de melhor e mais fácil utili­zação coletiva, segundo a variedade de formação e de grau de conhecimento dos consulentes. Mas estas parecem ser, também, tão mais onerosas como investimento de capital, de mão (ou cabeça) de obra e de técnica, que, creio, s6 organizações estatais bem assistidas ou entidades privadas for­temente consolidadas podem levá-las a cabo e mantê-las, a exemplo do que ocorre com a Encyclopaedia Britannica. :E:ste pormenor parece ser um desafio ao Estado brasileiro, pois nada será mais melancólico do que a suspensão a meio do ingente tentame - que, entretanto, desde o nascedouro, vem sofrendo de fundas dificuldades, por relativo desamparo material. Teria valido ser mais prudente . e não nos lançarmos à tarefa, quando parece não haver ainda maturidade diri-

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gente para compreender-lhe o alcance além da aura eleitoralista qne proviesse de sua ·publicação?

Escusa ressaltar, das diretrizes, que a de !llÚinero (1), "renúncia à obra perfeita", é óbvia, tão óbvia que deveria estar subjacente; os plane­jadores, porém, foram perspicazes, ao inscrevê-la liminarmente. Cortaram cerce fuhrras críticas irrazoadas e criaram crédito, junto aos colaborado­res, para reclamarem cumprimento de prazos, ,cujos diferimentos serão não raro pedidos, para aperfeiçoar ainda a matéria... Nem tampouco eu lhes iria atribuir a ingênua veleidade de supor que êles cressem em "obra perfeita". De fato, oponencialmente, repitamos, souberam criar o crédito compulsório junto às comissões de espe­cialistas e ao corpo redatorial e de pesquisa, que não poderão alegar descumprimentos de prazo, ;repitamos, a pretêxto (o acento circunflexo é por !minha conta) de fazer "obra perfeita". Pruden­cial, sintomático, o princípio desautoriza, entre- · tanto, eventuais reveses em perspectiva, se aquela fôr a justificativa - a tarefa perfeita.

Não parece, porém, clara, ou pelo menos feliz na sua formulação, a diretriz número ( 3). Os "dados estatísticos que não se acumulam em sis­tema" são, de fato, desprezíveis. Contudo, não se cogita, muitas vêzes, de "dados estatísticos" apenas, mas de "dados" em geral, se bem com­preendi; e ao contrário os "dados estatísticos", se efetivamente lidados com critérios estatísticos, de-

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verão, não direi acumular-se, mas organizar-se em sistema, ainda que sistemas abertos, êstes, mais do que quaisquer fechados, capazes de mostrar as potencialidades prospectivas de um processo. Um particular, com efeito, caberia - pois palavra puxa palavra - estudar, quanto aos "dados esta­-tísticos": é o que se refere aos topônimos (cidades, portos, países ... ) e a emprêsas e instituições cuja 1eficácia ou importância se aferem por dados nu­mericos ou quantitativos, indicadores de trânsitos qualitativos. Nesse ponto, o envelhecimento pre­coce das enciclopédias e dos dicionários espe­cializados é tão flagrante, pelo menos para certas áreas de grande desenvolvimento no mundo, que não seria somenos que os planejadores da Enci­clopédia desde já cometessem à Escola de Esta­tística, sob muitos aspectos notável, que funciona nesta capital, a tarefa de estudar normas indica­tivas de que se pudesse depreender uma progres­são histórica, em situações normais de desenvolvi­mento. Aí, a historicidade parece ser indispensá­vel na maioria dos casos, para que se possa de­preender algo de organizado.

O segundo capítulo das "Diretrizes" ( p. 16) insiste no caráter prospectivo da Brasileira, opo?do, por assim dizer, o "sentido eminentemente tradi­donalista das enciclopédias" (ibidem), de pro­vável "orientação humanista" (ibidem), ao sen­tido "eminentemente prospectivo" ( p. 18). Não seria eu capaz de debater ou impugnar essa di-

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retriz, que a Fmnçaise, mais do que qualquer outra dentre as que conheço, deseja realizar. O que me pergunto é o que numa das reuniões de planejadores alguém perguntou: fazer tabula rasa das conquistas e aquisições do passado? E per­gunto mais: já que conquistas e aquisição do passado foram, não raro, subtraídas da circulação das idéias presentes, embora sem atribuição his­tórica insistam por sua vitalidade em repontar no presente, não seria mais prudente, para dar es­pecial relêvo ao "sentido eminentemente pros­pectivo" da Brasileira, procurar sistemàticamente no passado, ainda que de ontem ou de dez mil anos, êsse lado prospectivo, com o rigor da atri­buição histórica devida e justa? O apoftegma de WHITEHEAD, invocado pelo senhor EURiALo CA­

NABRAVA, "referindo-se à lógica, de que a ciência está perdida quando ela não esquece os seus fun­dadores" ( p. 16) vale menos que outro que dis­sesse que a ciência está perdida quando não re­conhece a sua inserção na práxis social, que é um combinatório dialético da sua própria história dentro da história. Noutros têrmos, o conheci­mento positivo é tão orgânico nas suas partes ou disciplinas atuais quanto na sua formação histó­:rica e situação presente e prospectiva. Qualquer enciclopédia não imbuída de historicidade, de historicidade orgânica, é fadada, me parece, in limine, a ser um preceituário morto de regras

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aparentemente prospectivas, 'mas provàvelmente desmentíveis em curto lapso de tempo.

Ponto capital a meu ver magnlficamente for­mulado pelo senhor EUIÚALo CANABRAVA é o rela­tivo ao equilíbrio de formulação dos verbetes, sobretudo no que tange à fundamentação matemá­tica das questões científicas ( p. 14), Os verbetes­monografia, mais do que quaisquer outros, se destinar~o a dar "painéis sintéticos", ainda que extensos, históricos e prosp'ectivos, do conheci­llllento, em linguagem tal, que uma relativa auto­suficiência se realize dentro dêsses painéis, auto­suficiência relativa em que tôdas as conexões sejam apenas afloradas explicitamente e remetidas para os locais da extensão especializada ou parti­cularizada; em verbetes de extensão provàvelmen­te é que se inserirão aspectos mais tecnificados da exposição, verbetes em que, por isso mesmo, mais do que em quaisquer outros, a calibração do grau de aprofundamento e de "esoterismo" deverá !Ser contra-regrada.

A "Introdução ao planejamento da Enciclo-· pédia" ( p. 23) é estampada sob a responsabili­-dade da assinatura do senhor PAULO DE AssiS RIBEIRo. ~ quase certo que não se encontraria entre nós pessoa mais indicada para semelhante planejamento. Ainda assim, permitir-me-ei algu­mas observações, na certeza de que a rigidez do planejamento prospectivo ou do planejamento executivo é verdadeiramente "rígida" se prevê em

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sua organicidade a possibilidade, sempre, de pro­tcessos reversivos e corretivos, para maior eficácia das atividades intermediárias à realização das "atividades-fins [,] que no caso são, essencial­mente, a redação e preparo dos verbetes e respec­tivas ilustrações" ( p. 24).

Já no correr destas linhas e no ensainho que a Revista do Lit/ro citada acolheu para publicar, levantei dúvidas quanto à eficácia do planeja­mento independentemente da constituição ou ante­riormente ao funcionamento dos "grupos de es­pecialistas" ( p. 23), que me parecem ser as "comissões de especialistas" referidas alhures no volume. :E: que em última análise o planejamento caracteriza-se "pela unidade de tratamento dos vários assuntos, pela sistemática observada no desenvolvimento dos mesmos, e sua hierarquiza­ção racional e adequada dentro de um plano geral preestabelecido ... " (ibidem); por isso mesmo, deveria, antes de mais nada, saber que unidades; com que qualidades, e em que quantidades iria planejar, prospectivamente é claro. Enciclopédia, é claro também, significa mensagens verbais do segundo sistema de sinalização e, pois, também, adjutoriamente, mensagens visuais objetivas icóni­cas ou simb6licas - as ilustrações - com uma suma dos conhecimentos humanos organizados em livros ou volumes, segundo certo tipo de estrutu­ração. A estruturação adotada o foi por verbetes e êstes ordenados alfabeticamente - são as uni-

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dades enciclopédicas. As qualidades destas uni­,dades são discriminadas e definidas no "Plano geral" ( p. 29) e em normas subseqüentes ( verbe­tes-monografia, verbetes de expansão, verbete ilus­trativo, verbete de definição, verbete de remissão) e a quantidade dêstes "arbitrária de 250.000 ver­betes para cada uma das duas enciclopé­dias" ( p. 31).

Ora, ao que se depreende da "Introdução ao planejamento da 'Enciclopédia" e em seguida do "Plano geral", arbitrária foi a quantidade de 250.000 verbetes em geral, o que, ipso facto, levou a quantidades arbitrárias os diversos tipos de ver­betes, tomando arbitrário, de um modo geral, o planejamento, no que de substancial - já que a diferença de quantidade de verbetes de remissão, mínimos no tamanho, e verbetes-monografia, má­ximos, tanto pode permitir um pressuposto de trabalho de sessenta quanto de seis anos, para 5eis e trinta e seis volumes como para três vêzes êsses números. Mas não apenas isso: tanto pode permitir que se lide, durante os trabalhos, com 500.000 ou 1.000.000 de verbetes, como pode per­tmitir 100.000 ou 200.000. De novo, creio eu, o crivo prospectivo dos verbetes deveria ter sido tanto quanto possível estimado previamente - o que acredito perfeitamente factível, tal como tentei esboçar, a título de sugestão, no artigo que a Revista do Livro acolheu, dispensando-me, por isso, de reiterar as idéias lá expostas - artigo já

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agora perfectível num sem número de particufa­res. Leio, com efeito, in fine do volume que uma equipe numerosa, composta de vinte e uma pessoas, "já l·evantou cêrca de 80.000 verbetes [? - ver­betes mesmo ou cabeças de verbetes?], comple­tando, assim, a letra A, cujos respectivos cartões estão sendo perfurados para proceder-se ao pri­meiro levantamento estatístico que irá orientar os trabalhos de prosseguimento do recenseamento" ( p. 180). E li, no noticiário jornalístico que envolveu êsse acontecimento, que êsses 80.000 verbetes (ou cabeças de verbete) representavam um quinto, no máximo, dos trabalhos prévios de recenseamento, seja, completos, 400.000 unidades. O que nem sequer dá uma remota idéia da magni­tude da tarefa, que é mais ampla ainda - abar­cando o vocabulário integral, ou quase, da lín­gua -, como se depreende, seguramente, de "dois aspectos singulares entre as normas administrativas e de contrôle" (p. 24), a saber: "às possibilidades· . que decorrem da mecanização prevista no recen­seamento dos verbetes, a qual irá permitir, além de grande eficiência nos trabalhos de organização dos fichários, de revisão de inclusões e hierarquização dos verbetes, pelas Comissões especializadas, e de contrôle e elaboração das redações e dos volumes de serviço nos vários setores da Enciclopédia, um completo estudo estatístico de nossa língua, s6bre vários aspectos até então não ensaiados para outro idioma" (ibidem; o grifo é meu).

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Isso tudo é louvabilíssimo, e ninguém poderá deixar de rejubilar-se no Brasil ante essa perspec­tiva; mas também é, por certo, multiplicar a ordem de magnitude da tarefa - como acredito deixei entrever no ensainho a que me reporto mais uma vez. Passemos, entretanto, a algumas obser­vações particulares, sob pena de nos tomarmos ilegíveis pela extensão e monotonia.

Ouso insistir, a mais do que ousei no ensainho citado, sôbre a conveniência de ser reexaminado o problema da inserção dos verbetes de remissão ( p. 33) no corpo enciclopédico. Ouso também ponderar, mais uma vez, que não será útil nem factível depreender, através do recenseamento, quais devam ser todos os verbetes de remissão, mas, ao contrário, "levantá-los" após cada verbe­te-monografia, cada verbete de expansão, cada verbete de ilustração, e, eventualmente, cada ver­bete de definição (onde poderão ocorrer cargas sinonímicas ) .

Na norma 32-1/1 (p. 86), preconiza-se a :adoção dos símbolos fonéticos da Associação Fo­nética Internacional, para a transcrição entre pa­rênteses da pronúncia do têrmo que exprime o verbete geral. Impõe-se, já agora, norma especial que precise quais os símbolos particularmente adotados daquele sistema, na consolidação de um tipo de alfabeto fonético para a pronúncia bra­sileira - e qual será esta. Esperemos que a indi-­cada pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Língua

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Falada no l'eatro, realizado em Salvador, Bahia, em setembro de 1956, cujos anais estão em fim de preparo na Imprensa Nacional. A inclusão entre parênteses parece ser cqntra-indicada, de­vendo-o ser entre colchêtes, segundo tendência já pràticamente universalizada na transcrição foné­tica dentro de contextos ortográficÔs; opositiva­mente, os colchêtes recomendados para as etimo­logias deverão ser substituídos por parênteses. Embora difícil, por que excetuar os verbetes biográficos da regra da transcrição fonética? O W ebster' s Biographical Dictionary faz a transcri­ção e o faz, no que p'Osso julgar, bem.

As abreviações e abreviaturas ( p. 94) mere­cem revisão e consolidação. Algumas discrepam dos hábitos mais universais:

1) atendendo a que há diversas abreviações terminadas em vogal (o que é inovação moderna, que vai de encontro à tradição da língua, que só possuía uma, 'a.' e 'aa.', por 'assinado, a' e 'assinados, as', tôdas as demais terminando por ·consoante ou vogal superposta), por que "ag." para 'agôsto' e todos os demais meses h·iliterais, salvo 'maio', que não é abreviado?;

2) o uso das maiúsculas não parece norma­lizado, nem no geral, nem nas abreviações e abre­viaturas; destarte, "An." para "Anais" e "an." para "anual" é puro capricho; "Ativ." para "atividade" e "atual." para "atualidade"; pior, porém, "A. C."

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como "antes de Cristo" (não se adota 'd. C.', 'dep'Ois de Cristo', pois se encampa "A. D." por "anno Domini" como "no ano do Senhor"); mas o fato é que 'A. C.' é também 'anno Christi', pelo que melhor seria 'a. C.' para 'antes de Cristo'; a distinção permitiria, na cronologia islâmica, "A. H.'' como "anno Haegirae" e 'a. H'. como 'antes da Hégira'; "D. D.'' não é tão conveniente quanto 'DD.' para 'digníssimo'; mas o fato é que seriam desprezíveis, como inoportunas, as abreviações áulicas, cortesãs, palacianas e cerimoniosas no corpo da Enciclopédia;

3) há excessivo uso de abreviaturas de forma muito paronímica, muito próxima, às vêzes distinguidas pelo uso arbitrário das maiúsculas apenas: "util." e "Util."; seria mais razoável um sistema orgânico abreviante conjunto; e que dizer d.e "m." e "mm.'' e quejandos para a metrologia, em frontal recusa de convenções internacionais e de lei nacional?

Que se me desculpe lembrar aspectos urgentes .de normalização:

1) normas indicativas de corpos gráficos (não absolutos, relativos), pois os verbetes exten­sos contarão, provàvelmente, necessàriamente, ,seções mais importante~, seções menos importantes, corpos de bibliografia, devendo, pois, haver indi­'cação lateral de corpos, se três, maior, médio e menor, se dois, maior e menor;

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2) normas de correlação entre o material dactilográfico e o material tipogràficamente pre­figurado;

3) por conseguinte, norma de emprêgo dos gêneros tipográficos ( versais, versal-'Versalete, ver­salete, grifo, negrito, êstes também com versa!, versalete, etc.)

4) normas de emprêgo de realces materiais outros: aspas simples, aspas dúplices, travessões, colchêtes, parênteses;

5) normas de citação, referenciação e remis­são (refiro-me ao aspecto gráfico e normativo da seqüencia das unidades, não ao sistema de refe­rê~cia-remissão e inter-referenciação de verbetes, já bem previsto) ;

6) normas para as legendas das ilustrações, consoante sua natureza (originais, fontes, dimen­sões, natureza);

7) normas para tradução, transcrição e trans- · !iteração;

8) normas bibliográficas e elementos de citações.

o o o

Desnecessário insistir sôbre a importância do volume. Estão de parabéns a Seção da Enciclopé­dia Brasileira, o Instituto Nacional do Livro, o Ministério da Educação e Cultura, o govêmo da república. E o compromisso está lançado -

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recuar, agora, será uma tristeza e mesmo uma ca­pitulação. Parabéns especiais merece a com1ssao central, em que me permito realçar as pessoas do senhor EUIÚALo CANABRAVA e do senhor PAULO DE Assis RmErno, bem como o senhor JosÉ RENATO SANTOS PEREIRA, diretor do Instituto Nacional do Livro. Tocar para a frente, com vontade de acertar, é o que esperamos todos os brasileiros, pois boa vontade de acertar é mani­festa neste primeiro contacto da Enciclopédia brasileira com o seu público, em que me incluo como insignificante parcela individual, entretanto ·desejoso dP poder consultar, antes de morrer, pelo menos a Enciclopédia brasileira mirim, enquanto a açu não vem, pois que a esta fá-lo-ão os meus filhos, melhor, os filhos dos meus coetâneos, pois que me esqueci de que não os tenho ...

( 1957)

Post scriptum - A parte li supra, dividida em dois artigos, apareceu no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, sob os títulos de "A Enciclo­pédia brasileira" e "Ainda a Enciclopédia brasi­leira", nos dias 11 e 18 de agôsto de 1957. No comentário sôbre os padrões mais gerais e mcten­sivos das características da futura Enciclopédia, .citados de uma parte do volume coment~do, parte

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SUGESTÕES PARA tJMA POL TICA DA LfNGUA JS:l

de que era responsável signatário o senhor EURÍALO CANABRAVA, diretor, no demais, da emprêsa, li d número 3 tal como ocorre supra, quando no texto original em verdade se diz "em prejuízo da acumu­lação de dados estáticos que não se organizam em sistema": a palavra por mim ora grifada no meú estudo foi lida - como se pode ainda ver, pois que mantive o êrro - estatísticos, o que desfigurou e ilegitimou parte, mínima, de minha argumentação. Na base dêsse êrro ou lapso, o senhor CANABRAVA

"respondeu" ao meu trabalho, com um artigo "A propósito da Enciclopédia brasileira", pelo Diário .de Notícias, de 2 de novembro de 1957, alegando defender a parte que lhe cabia nas críticas que eu fizera ao planejamento. O meu "êrro" lhe ense­jou não só a "correção" mas também a fuga à substância de tôdas as demais críticas, feitas, aliás, com ânimo construtivo, como se depreende de sua leitura.

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ARQUIVOS úO BRASlL

Na extensão do território brasileiro, há reser­vas, amontoados, depósitos e acervos arquivais que urge salvar - como passo preliminar, para depois classificar, sistematizar e, eventualmente, editorar, já por catálogos de unidade discrimina­das e resenhadas, já pela estampação da íntegra de peças da maior importância para a historiogra­fia, para o estudo da evolução lingüística e para o de todos os ramos de saber em que a historici­dade é, senão a chave, pelo menos uma das chaves da inteligência, compreensão e até ação eficaz presente.

Diàriamente se obtêm provas de que tais conjuntos não são, nem de longe, despiciendos. Ninguém deve ignorar, por exemplo, que o ma­terial arquivai da cidade de Cuiabá deve encerrar preciosas indicações sôbre a expansão territorial luso-brasileira no coração do continente sul-ame­ricano. Não chega a constituir surprêsa o fato de que, em data relativamente recente, se tenha "achado" no arquivo estadual de Belém do Pará um precioso apógrafo das Cartas Chilenas. Nem é por acaso que a Universidade da Califórnia, dos Estados Unidos da América, se tenha interessado

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capitalmente por um arquivo municipal, o da cidade de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, conseguindo autorização para microfilmá-lo total­mente. Em contraposição, depoimentos esparsos, fidedignos, afloram de vez em quando pela im­prensa, pela voz dos leigos mas imbuídos inter­namente de espírito científico, pela voz dos espe­cialistas, denunciando a situação calamitosa em que se acham tais reservas, não apenas nos pontos mais afastados da civilização, mas até em capitais estaduais. Raros são os arquivos que - para exemplificar não exaustivamente - se apresentam como o Municipal de São Paulo, o Nacional (em que, não obstante, tanto há ainda por recuperar, sistematizar e mesmo identificar), e, eventual­mente, o Estadual de Pernambuco. É quase certo que os mais cuidados, ao crivo de exigências científicas mesmo discretas e prudentes, muito deixariam por desejar.

Não desconheçamos que à Biblioteca Na­cional do Rio de Janeiro legalmente cabe a tarefa de coordenar a ação de guarda e salvação - com as diversas operações aí implícitas - dos arquivos brasileiros, onde quer que estejam dentro do ter­ritório nacional. Não ignoremos, porém, que à a:nesma Biblioteca N acionai, na limitação de seus recursos, cabe a tarefa de prioritàriamente con­vergir sua melhor atenção para si mesma, a fim de que o precioso acervo bibliográfico e de vária natureza que encerra seja legado às gerações vin-

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douras em condições de inadulterabilidade e de manuseabilidade, tarefa que a sua atual direção procura cumprir com acendrada lucidez e paixão.

Não nos esqueçamos, por fim - já que é uma das coordenadas fundamentais para qualquer consideração sôbre o problema dos arquivos bra­sileiros - de que a produção dos suportes ma­teriais da escrita (papel, tinta, elementos mecâni­cos em geral) e dos seus afins se fazia - e se ·faz ainda - nas características da c~vilização, não apenas ocidental, mas mundial, que visam as condições mesológicas tradicionalmente ecumêni­cas; e de que, nos trópicos, essa produção e seus ;produtos sofrem um impacto brutal diversificador, acarretando, se os cuidados não forem tresdobra­dos, deperecimento precoce das peças, pela ação da umidade, dos parasitas e de quantos males conexos, na construção, no mobiliário, nos mate­riais em geral de guarda e proteção.

A situação brasileira, no particular, lembra a dos Estados Unidos da América no correr do século XIX, já a partir de 1810, quando uma Comissão do Congresso reconheceu os papéis públicos "in a state of great disorder and expo­sure; and in a situation neither safe nor hono­rable to the nation". A tal ponto as coisas chegaram naquela hoje grande nação, com incên­dios e perdas sucessivas tais, que o presidente RuTHEFORD B. HAYES, após os trabalhos de uma comissão altamente idônea designada para reco-

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nJendar providências a respeito, inseriu nas suas mensagens anuais, de 1878 e de 1879, o grito de .alarma em favor dos acervos arquivais norte­americanos. E püde-se dizer que a partir de então se incrementou a "consciência arquivológi­ca." dêsse país, a exemplo do que já faziam a Grã-Bretanha, a França, a Espanha e Portugal, de forma menos ou mais eficaz, mas satisfatória. O fato, entretanto, é que somente a partir de 1933 principiaram os Estados Unidos da Amér.íca a conshuir próprios adequados à guarda sistemá­tica dos arquivos do país em condições alta e, digamos, definitivamente satisfatórias.

Os depósitos arquivais brasileiros se distri­buem nas seguintes categorias .principais: a) çomarcais, b) distritais, c) municipais, d) esta­·duais e e) federais - na conformidade, aliás, da .divisão político-administrativa do país. A essas •categorias há que juntar os acervos a) privados familiares - urbanos ou rurais -, b) os eclesiásti- · cos, nas diversas escalas da hierarquia e da orga­nização da Religião Católica, em que têm especial importância os conventuais, monacais e canônicos em geral, c) os pios e beneficentes, laicos ou ll'eligiosos, d) os das emprêsas comerciais, agríco­las, industriais e de serviços privados, autárquicos ou para-estatais, e) os cartoriais, notariais e tabe­liães, e f) eventualmente os museológicos.

País de fraca tradição cultural em seu con­junto, mas com uma fração culta que se esforça

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por superar suas limitações conjunturais, o Brasil beneficiou-se, entretanto, de um passado colonial municipalmente bem estruturado, de um período imperial centralizado rico de preocupação na­cional e por conseguinte unificadora - o que, em última análise, gerou uma sistemática de registro gráfico que poderia vir a ser preciosa como fonte para a interpretação da minúcia histórica e, também, da conspecção histórica da evolução bra­sileira. Entretanto, circunstâncias ligadas ao próprio desenvolvimento demográfico, econômico, social fizeram que, no grande surto de vária na­tureza que acompanhou o advento da república, não tivessem sido volvidas as atenções e cuidados que os acervos arquivais teriam desde sempre me­recido, ainda que por mera rotina tradicionalista; só essa ruptura relativa explica, por exemplo, que um espírito de escol, por prurido moralizante acaso mal adequado à situação, determinasse a des­truição de acervo arquivai possivelmente insubs­tituível para a historiografia de um dos aspectos capitais da formação brasileira.

Com o fluxo dos anos, o fato é que o proble­ma arquivai brasileiro se agrava: relembremos que a ação do tempo nos trópiC'os, os locais mal adaptados aos fins de guarda, o despreparo espe­cífico dos guardiães, o desconhecimento genera­lizado do valor dos acervos, a falta de preparação espiritual dos eventuais consulentes e vicissitudes outras de teor equivalente, tudo vem dilapidando

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êsse precioso legado, que tanto encerra, no seu bôjo, de ilustração, ensinamento e elucidação, para a formação histórica brasileira diretamente e para a evolução de Portugal quase diretamente.

Das categorias arquivais consideradas, há .conjuntos, em diversos pontos do território na­cional, em que a guarda, o acesso, a pesquisa e a editoração se fazem de forma satisfatória. No pólo oposto, porém, há conjuntos que estão em vias de franco deperecimento, comprometendo, quiçá de forma irremediável, a documentação não apenas histórica stricto sensu, senão que lingüísti­ca, etnológica, cultural em geral.

O problema de salvação como primeira fase, d.e organização local tecnicamente assistida como segunda, de esh·uturação nacional como terceira, para uma quarta fase de editoração de catálogos e peças exemplares, se apresenta, destarte, como questão que desafia o brasileiro culto e consciente de nossos dias, aos quais, por sem dúvida, se associam solidàriamente os portuguêses e esh·an­geiros identificados nos mesmos ideais de cul­tura.

É nessa ordem de idéias, pois, que caberia a) serem tomadas, com a brevidade possível, medidas tendentes a propiciar o máximo de atenção a todos os acervos arquivais do Brasil, assistindo, na :hierarquia polÍit:ico-administrativa, tôdas as ins­tâncias e escalões, já com recursos materiais, já com ajuda técnica e de pessoal especializado

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formador; b) que os governos estaduais brasi­leiros se unissem em campanha cooperativa para êsse mesmo fim; c) que as municipalidades brasi­leiras inscrevessem nas suas imediatas cogitações êsse mesmo fim, tomando, ato contínuo, providên­cias quanto à zelosa guarda de peças e seu não extravio ou deperecimento; e d) que os estudiosos brasileiros, portuguêses e estrangeiros, identifica­dos nos mesmos ideais culturais, se aplicassem no 'Sentido de elaborarem monografias de natureza arqueográfica ligadas aos problemas de eficaz aproveitamento dos acervos arquivais brasileiros, sobretudo no que tange aos séculos XVI a XIX, 'inclusive.

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UM PROJET9 DE LEI

Trata-se de um projeto de lei, segundo o qual o poder legislativo autoriza o poder executivo a criar o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, como órgão de prospecção, planeja­mento e divulgação em matéria de história, antro­pologia cultural, etnografia, sociologia, ciência política, filologia, lingüística, dialectologia e ciências históricas, sociais, culturais, afins. auxi­liares ou conexas.

Nos têrmos constitucionais, o amparo é dever do Estado, inscrevendo-se entre os instrumentos adequados à execução dessa política o estimulo às instituições de pesquisa científica, cuja criação ficou delegada à lei ordinária, na conformidade do Art. 174 e seu parágrafo único da Constituição Federal. Nos seus têrmos, ainda, se imprime ca­ráter preferencial, na criação dêsses institutos de pesquisa, à sua conexão com os estabelecimentos de ensino superior. A sabedoria do texto consti­tucional, entretanto, intuindo eventual conveniên­cia de que tais institutos de pesquisa pudessem ser .estruturados com certa autonomia em relação aos centros de ensino superior, deixou à clarivi­dência dos podêres legislativo e executivo tal pos-

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sibilidade. Mas no caso vertente, como se verá, visa-se, outrossim, ao estímulo à criação de institu­tos de pesquisa dentro das organizações universi­tárias brasileiras, como colaboradores e coopera­dores autônomos na tarefa geral de prospecção da vária e rica substância de nossa história polí­tica, social e cultural. Com o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais e seus institutos, e com a colaboração ordenada e planejada dos institutos de pesquisas históricas, sociais e cultu­rais, já existentes, quer nos quadros universitários, quer fora dêles, quer em âmbito federal, quer em âmbito estadual ou municipal, o que se objetiva é incrementar tais pesquisas no país, dando à nação o instrumento de que estava necessitada para tal fim, a saber, a contrapartida, no plano das ciências históricas, sociais e culturais, do que é, para o plano das ciências exatas, o Conselho Nacional de Pesquisas, cujos frutos já se vêm revelando tão benéficos ao Brasil, ainda que tão brutalmente !l'eduzido nos seus recursos e disponibilidades financeiras.

É que, precisamente, as chamadas ciências históricas, sociais, culturais, políticas, não se exaurem no plano universitário, ainda que acom­panhadas de institutos próprios de pesquisa, nem se podem desenvolver plenamente nos currículos do ensino superior, sob pena de eventualmente os tumultuarem. Seja, de novo, exemplo o benemé­:rito Conselho Nacional de Pe~>qui~!lS~ gue, para as

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SUGESTÔEII PARA UMA POiiTICA I

DA LlNGUA 19S

ciências exatas, tem realizado obra de tamanho alcance nacional, inclusive com o concurso univer­sitário, em articulação tal que beneficia a um tempo a universidade e a pesquisa, em proveito recíproco e sobretudo em proveito nacional. Fir­ma-se, destarte, a conveniência de que tais pes­quisas se possam efetuar em atividades de fins especulativos, pioneiros e pragmáticos, sem o intuito imediato da preparação profissional espe­cializada, mas ao contrário como ideal de conhe­cimento de campos de atividade cuja essência, aspectos e particularidades devam ser devassados por intermédio de profissionais já especializados e na plenitude de conhecimentos e de técnicas. Nessa conformidade - não é ocioso reafirmá-lo -estabeleça-se estruturahnente um processo de be­nefício recíproco entre os estudos universitários, a pesquisa privada, individual ou colegiada, e a pesquisa amparada pelo Estado, cada um condi­cionando os progressos e avanços científicos, técni­cos e cognitivos do outro. Para lembrar um, tão-somente, dentre vários outros casos que abo­;nariam o asserto, que se leve em consideração o trabalho meritório, sob muitos títulos, executado, no campo da historiografia brasileira, pelo Insti­tuto Histórico e Geográfico Brasileiro e pelos seus ,congêneres dos Estados da Federação, que, esti­mulados sob a zelosa inspiração cultural de dom Pedro II, cumpriram obra relevante para os quadros nacionais, mas já hoje vêem grande parte

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rde sua ação dificultada pelas múltiplas questões de caráter complexo que só uma penetração pla­nejada e colegiada com recursos materiais e pessoais poderá superar.

Parece, assim, ponto pacífico que o crescen­te, inevitável e necessário relêvo do Estado na órbita dos interêsses gerais, tal como pôsto de manifesto na Constituição Federal, acentua a ne­cessidade de sistematizar a pesquisa prospectiva e colegiada das disciplinas históricas, sociais, cul­turais, políticas, pesquisa que já não pode, senão com fundo prejuízo nacional, ficar relegada à de­voção e ao espírito de sacrifício do pesquisador individual. Urge, ao contrário, estimulá-lo, com a perspectiva de que sua atividade individual possa inserir-se num plano global de pesquisas concomitantes por companheiros de igual devoção e espírito de sacrifício - o que, ipso facto, leva o Estado à sua função de planejador prospectivo, nesse como em outros campos em que igual satu­ração da atividade individual esbarra com aparen­te inércia dos podêres constituídos.

Reconhecendo, entretanto, que os supremos ~nterêsses nacionais se identificam com as pesqui­sas mais independentes livres de quais~uer injun­ções extracientíficas, não seria de boa etica cons­titucional preconizar a criação de um órgão de planejamento e prospecção de pesquisas dessa natureza que ficasse subordinaªo, no seu funciona­mento, a ditames ou imperativos alheios aos seus

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SUGESTÕES l>ARA UMA POr.f:ricA DA LÍNGUA 195

fins precípuos. Foi, nesta conformidade, com tal determinação subjacente, que se feiçoou o anexo projeto de lei, cuja finalidade essencial é dar plena e ilimitada expansão às pesquisas históricas, sociais, !culturais e políticas no Brasil.

A urgência da criação de semelhante órgão, aliás, se faz sentir a todos os respeitos. Lembre­mos, entretanto, um aspecto particular, que por seu excepcional relêvo pode bem ilustrar a assertiva. Na extensão do território brasileiro, há :reservas, amontoados, depósitos e acervos arqui­vais que importa veementemente salvar, salvação que é mero passo preliminar para outros, quais os d.e classificar, sistematizar e, eventualmente, edi­torar, já por catálogos de unidades discriminadas e resenhadas, já pela estampação da íntegra de peças de maior importância para a historiografia, o estudo da evolução lingüística e todos os ramos do saber em que a historicidade é, senão a chave, pelo menos uma das chaves da inteligência, com~ preensão e até ação eficaz presente. Provas de que tais conjuntos não são, nem remotamente, des­piciendos, vêm à luz diàriamente. Ninguém ignora, por exemplo, que o material arquivai da cidade de Cuiabá deve encerrar preciosas indicações sôbre a expansão territorial brasileira no coração do continente. Não chega a constituir surprêsa o fato de que, em data recente, se tenha "achado" \un precioso apógrafo das Cartas Chilenas no arquivo estadual do Pará. Nem é por acaso que a

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Universidade da Califórnia, dos Estados Unidos da América, se tenha interessado por um arquivo municipal, o da cidade de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, conseguindo autorização para microfilmá-lo. Em contraposição, depoimentos esparsos, fidedignos por sua coincidência, afloram de vez em quando pela imprensa da Capital Fe­deral e dos Estados, denunciando a situação em que se acham tais acervos arquivais ao longo do território nacional, mesmo em capitais estaduais ou cidades mais prósperas.

A situação brasileira, no particular, lembra a dos Estados Unidos da América, no correr do sécuJ.o passado, quando, já a partir de 1810, uma Comissão do Congresso daquele país reconheceu os papéis . públicos "in a state of great disorder and exposure; and in a situation neither safe nor :honorable to the nation". A tal ponto as coisas chegaram naquela hoje grande nação, com incên­dios e perdas sucessivas tais, que o presidente RurHEFORD B. HAYES, após trabalhos de uma Co­missão altamente idônea designada para recomen­dar providências a respeito, inseriu nas suas men­sagens anuais de 1878 e 1879 o grito de alarma em favor dos acervos arquivais norte-americanos. E pode-se dizer que a partir de então se incre­mentou a "consciência arquivológica" dêsse país, a exemplo do que já faziam a Grã-Bretanha, a França, a Espanha, Portugal, de forma mais ou menos satisfatória.

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Outros muitos aspectos - qual, por exemplo, o do levantamento do atlas lingüístico e etnográ­fico brasileiro, que demandará largos anos de intensa coleta e análise rigorosamente planejada tanto em escala regional quanto em âmbito na­cional - outros muitos aspectos relevantes do incluso projeto de lei deixo, neste ensejo, de expli­citar, por estar certo de que todos os brasileiros patrioticamente compartilham dos conceitos aqui resumidamente expendidos.

CAPÍTULO I

Dos fins e da compet~ncia do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais.

Art. 1.0 • É criado o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, que terá por fina­lidade planejar, promover e estimular o desenvol­vimento das pesquisas históricas, sociais, culturais · e políticas no país.

§ 1.0 O Conselho Federal é pessoa jurídica subordinada direta e imediatamente ao Presidente da República, terá sede na Capital e gozará de autonomia técnico-científica, administrativa e fi­nanceira, nos têrmos da presente lei.

§ 2.0 Sempre que necessário, o Conselho Federal entrará em entendimento com as autori­dades federais, estaduais e :nunicipais, bem como

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com entidades públicas e subvencionadas, a fim de obter seu apoio e cooperação, assim como exercer suas pesquisas.

§ 3.0 O Conselho Federal será representado por seu presidente ou pelos diretores de institutos, conforme fôr o fôro, em juízo e fora dêle, ativa e passivamente.

Art. 2.0 Serão órgãos consultivos do Conse­lho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais as ep.tidades de caráter científico e reconhecido valor que, para tal fim, receberem o voto da maioria dos membros da sua Sessão Plenária.

Parágrafo único. A forma de cooperação dos órgãos consultivos a que se refere êste artigo será estabelecida no regulamento de que trata o art. 32 desta Lei.

Art. 3.° Compete precl.puamente ao Conselho Federal:

a) promover investigações e pesquisas his­tóricas e sociais, por iniciativa própria ou em colaboração com outras instituições do país ou do exterior;

b) estimular a realização de pesquisas his­tóricas e sociais em outras instituições oficiais ou particulares, concedendo-lhes os recursos neces­sários, sob a forma de auxílios especiais, para aquisição de material, contrato e remuneração de pessoal e para quaisquer outras providências con­dizentes com os objetivos colimados;

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c) promover e auxiliar a formação e o aperfeiçoamento de pesquisadores e técnicos, organizando ou cooperando na organização de cursos especializados, sob a orientação de profes­sôres nacionais ou estrangeiros, concedendo bolsas de estudo ou de pesquisa e promovendo estágios em instituições científicas e de pesquisa histórica ou social no país ou no exterior;

d) cooperar com o Conselho N acionai de Pesquisas, as universidades e os institutos de ensino superior do país no desenvolvimento da pesquisa histórica e social e na formaçãc,> de pes­quisadores;

e) entrar em entendimentos com as insti­tuições que desenvolverem pesquisas históricas e sociais, federais, estaduais ou municipais, a fim de articular-lhes as atividades para melhor apro­veitamento de esfôrço e recursos;

f) manter-se em contacto com instituições nacionais e estrangeiras para intercâmbio de . documentação histórica e social e para participa­ção em reuniões e congressos, promovidos no país ou no exterior, no estudo de temas de interêsses colimados pelo Conselho Federal;

g) emitir pareceres e prestar informações sôbre assuntos pertinentes às suas atividades, que sejam solicitados por órgãos oficiais;

h) sugerir aos poderes competentes quais­quer providências que considere necessárias para a realização dos seus objetivos.

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§ 1.0 Para cada exercício financeiro, o Con­selho Federal estabelecerá um plano básico de trabalho e preverá, para a sua execução, a dis­criminação dos recursos necessários.

§ 2.0 Nos casos previstos nas alíneas b, c, d dêste artigo, o Conselho Federal acompanhará a realização das correspondentes atividades a cargo das instihlições a que conceder auxílio financeiro, .sem que isso, no entanto, importe em interferência tnas ·questões internas dessas instituições ou em suas investigações científicas.

§ 3.0 O Conselho Federal promoverá, em 'cooperação com as universidades do país, com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com instituições oficiais ou privadas com que entrar em entendimento, a pesquisa necessária ao estabelecimento de mapas etnográficos e lingüísti­cos brasileiros, bem como, em entendimento com o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e instituições congêneres, o levantamento de acervos factuais e materiais de nossa civiliza­ção material, assim como o tombamento dos arqui­vos e acervos arquivais brasileiros, federais, esta~ duais, municipais e ouh·os, classificando-os, re­ferendando-os, resenhando-os e publicando-lhes os .catálogos ou colaborando com material e pessoal nessas tarefas.

§ 4.0 Para efeitos desta lei, o Conselho Fe­deral promoverá prioritàriamente conferências na-

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danais de especialistas com o fim de fixar sistemas internacionais de descrição, classificação e notação adaptados às características nacionais, ou criará sistemas brasileiros para êsse fim.

§ 5.0 O Conselho Federal será o órgão con­sultivo do Govêrno nas questões relacionadâs com a transferência de arquivos e bibliotecas federais que devam ser removidos para a futura Capital Federal.

Art. 4.0 Os documentos públicos federais, es­taduais e municipais, assim como os de quaisquer instituições ou órgãos do Estado ou subvenciona­dos pelo Estado, serão desclassificados dez anos após sua emissão ou datação original, salvo aquê­les sôbre os quais o Conselho de Segurança Nacional determinar maior prazo.

§ 1.0 Os documentos privados que, após a morte de seus autores ou detentores, forem postos no mercado, terão como adquirente privilegiado o Estado, retribuídos no justo valor, a parecer do Conselho Federal ou a critério de comissão arbitral, se fôr o caso, nomeada de comum acôrdo entre os herdeiros e o Conselho Federal.

§ 2. 0 Todos aquêles que tentarem retirar ou retirarem do território nacional documentos públi­cos ou mesmo privados sôbre os quais o Conselho Federal tiver feito declaração prévia de adquiren­te privilegiado serão objeto de ação legal e sujeitos· a penas ou multas que a lei fixará.

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CAPÍTULO li

Da organizaçã.o do Conselho Federal

Art. 5.0 - O Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais terá a seguinte organização:

a) Sessão Plenária b) Divisão Científica e Cultural c) Divisão Administrativa d) Institutos Art. 6.0 - A Sessão Plenária, órgão soberano

de orientação das atividades do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, será constituída dos seguintes membros, todos brasileiros:

. a) 2 (dois) membros de livre escolha do Presidente da República, que exercerão as funções , respectivamente, de presidente e de vice-presi­dente do Conselho Federal, funções em comissão e de que serão demissíveis ad nutum; _

h) 7 (sete) membros escolhidos pelo Go­vêrno como representantes, respectivamente, dos Ministérios da Agricultura, da Educação e Cul­tura, das Relações Exteriores, do Trabalho, Indús­tria e Comércio, da Justiça e Negócios Interiores, da Saúde, e do Estado Maior das Fôrças Armadas;

c) 10 (dez) membros no mínimo e 20 (vinte) no máximo como representantes de órgãos e instituições científicas e culturais do país, de

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SUGESTÕES PARA -UMA POLÍTICA DÁ LÍNGUA 203

estudos históricos e sociais, de universidades e de entidades afins;

d) 5 (cinco) membros como representantes da Universidade do Brasil, 2 (dois) como do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e 2 (dois) do Conselho Nacional de Pesquisas;

e) dos diretores dos institutos integrantes do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais.

§ 1.0 - Os membros da Sessão Plenária do , Conselho Federal terão a escolha confirmada por decreto global do Presidente da República, exerce­rão mandato por três anos, que poderá ser reno­vado, e sua função será considerada de alta relevância.

§ 2.0 - A renovaç.:i'ío e o preenchimento de vagas dos membros a que se referem as alíneas a e b ficam a critério do Govêrno.

§ 3.0 - No caso da representação prevista na alínea c, o Conselho Federal manterá uma re-· lação de órgãos e institutos científicos e culturais do país que se possam representar em Sessão Plenária, procurando, a cada renovação trienal, reservar pelo menos um têrço dessa representação para fins de rodízio dos representantes de tais órgãos e instituições. ,

§ 4.0 - Em todos os casos em que a escolha

dos membros da Sessão Plenária do Conselho Federal não se faça pelo Presidente da Repúbli­ca ou pelo Govêrno, o Conselho Federal organi-

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zará uma lista com os nomes das personalidades indicadas, especificac;:ão dos 6rgãos e instituições a que pertencem, em número duplo do que deve ser renovado ou completado, para opção do Pre­sidente da República.

§ 5.0 - Para a constituição inicial da Sessão Plenária do Conselho Federal, o Presidente da República escolherá livremente os ~embros a que se refere a alínea c dêste artigo .

. Art. 7.0 - O presidente do Conselho Federal de Pesquisas Hist6ricas e Sociais exercerá a dire­ção do Conselho Federal e velará pela execução das resoluções da Sessão Plenária por parte das Divisões e dos Institutos.

§ 1.0 - Em seus impedimentos eventuais, ou em suas faltas, o presidente será substituído pelo vice-presidente.

§ 2.0 - O Conselho Federal contará co~ 1 (um) consultor jurídico e o presidente com 1 (um) a 3 (três) assistentes, um dos quais será designado para exercer as funções de secretário de Sessão Plenária.

§ 3.0 - As Sessões Plenárias serão, ordinà­

riamente, uma vez ao ano, podendo, a juízo do presidente do Conselho Federal ou a solicitação de um têrço dos integrantes da Sessão Plenária, ser convocadas extraordinàriamente.

§ 4.0 - Na Sessão Plenária ordinária, que

será preparada durante todo o ano anterior pela Divisão Científica e Cultural, serão planejadas as

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 205

pesquisas do ano futuro e balanceadas as realiza­ções anteriores.

Art. 8.0 - A Divisão Científica e Cultural ficará encarregada de elaborar projetos de pes-

' quisas geral ou regional relacionados com os objetivos do Conselho Federal, por motivação ou sem ela dos Institutos, mas em estreito e perma­nente contacto com os mesmos, e terá, a critério da Sessão Plenária, os setores necessários ao atendimento e desenvolvimento de suas atividades.

§ 1.0 - A direção da Divisão Científica e Cultural será exercida por um diretor-geral e a de cada setor, por um diretor de planejamento, de livre designação do presidente do Conselho Federal.

§ 2.0 - Para efeitos da elaboração dos pro­jetos de pesquisas geral ou regional previstos neste artigo, poderá ainda a Sessão Plenária mo­tivar o presidente do Conselho Federal a requi- · sitar, na forma da legislação em vigor, ou con­tratar pessoal científico e técnico especializado, nacional ou estrangeiro, de comprovada idoneida­de, bem como constituir comissões consultivas ad hoc.

Art. 9.0 - A Divisão Administrativa terá a séu cargo os serviços de administração e contabilidade.

Parágrafo único - A direção da Divisão Administrativa será exercida por um diretor-geral, que será assistido por dois ·chefes de setor e por

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servidores públicos, requisitados na forma da le­gislação em vigor.

Art. 10.0 - Os serviços de planejamento da Divisão Científica e Cultural, bem como os de administração da Divisão Administrativa, fun­cionarão na Capital Federal, onde se realizarão ordinária ou extraordinàriamente as sessões pie-nárias.

· § 1.0 - O presidente do Conselho Federal poderá, entretanto, convocar Sessões Plenárias para serem realizadas em qualquer localidade do país.

§ 2.0 - Serão considerados de caráter reser­vado os arquivos do Conselho Federal, bem como seus projetos e estudos, enquanto não forem tor­nados públicos por órgão competente do Conse­lho Federal, não podendo fazer uso dêles anteci­padamente os que e~tiverem ligados, direta ou indiretamente, a tais arquivos, projetos e estudos.

§ 3.0 - A editoração de esh1dos e resultados de estudos do Conselho Federal e de seus insti­tutos será sempre feita sob a menção de "Obras do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais", com imediata referência ao Instituto em que tiver sido elaborado o trabalho, se um só, sem l·eferência aos institutos, se forem dois ou mais, o que constará de parte preliminar da publicação, bem como a indicação de pesquisador, ou do diretor de pesquisas e seus colaboradores, os quais,

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todos, com se engajarem a serviço do Conselho Federal e de seus Institutos, e com receberem a assistência material, intelectual e de vária nature­za de que necessitarem, abrem mão dos direitos autorais, por si e seus herdeiros, sem prejuízo, porém, de poderem reelaborar, condensar, glosar, didatizar a matéria de cuja elaboração tiverem sido autores, responsáveis, corresponsáveis, pesqui­sadores, diretos ou indiretos.

Art. 11 - A Sessão Plenária ordinária, ou qualquer extraordinária, deve;á, funcionar sempre, em primeira convocação, com um quorum de três quintos e, em segunda convocação, vinte e quatro horas depois da primeira pelo menos, de metade de seus membros, sendo suas resoluções tomadas por votação, em simples maioria.

§ 1.0 - Os membros das Sessões Plenárias não perceberão, por sessão, gratificação de pre­sença, mas os que não residirem no local onde se realizarem as sessões perceberão ajuda de custas e diárias para as despesas de viagem e de estada.

§ 2.0 - Para os membros que forem servido­res públicos, civis ou militares, as sessões plenárias do Conselho Federal terão preferência sôbre suas funções ordinárias, sem prejuízo dos vencimentos e demais vantagens do cargo ou pôsto efetivo.

§ 3.0 - Os membros que forem servidores públicos, civis ou militares, e que faltarem a duas sessões ordinárias consecutivas do Conselho Fe-

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deral serão automàticamente exonerados de suas funções, devendo o presidente do Conselho Federal providenciar a sua substituição na forma desta lei.

CAPÍTuLo III

Dos institutos do Conselho Federal

Art. 12 - Para a realização dos seus objeti­vos, o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais poderá manter até 23 (vinte e três) Institutos, preferentemente nas capitais dos Esta­dos e no Distrito Federal, os quais o Poder Executi­vo é autorizado a criar gradativamente por decre­to, doze dos quais deverão ter prioridade e são os seguintes :

a) Instituto José V eríssimo de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Belém, capital do Estado do Pará;

b) Instituto Capistrauo de Abreu de Pesqui­sas Históricas e Sociais, com sede em Fortaleza, capital do Estado do Ceará;

c) Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede no Recife, capital do Estado de Pernambuco;

d) Instituto Nina Rodrigues de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Salvador, capital do Estado da Bahia;

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e) Instituto Euclides da Cunha de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Campos, Estado do Rio de Janeiro;

f) Instituto Rui Barbosa de Pesquisas His­tóricas e Sociais, com sede na cidade do Rio de Janeiro, ora Capital Federal;

g) Instituto Carnões, para pesquisas filoló­gicas e lingüísticas, com sede na Capital Federal;

h) Instituto Duque de Caxias de Pesquisas Históricas Militares, com sede na cidade do Rio de Janeiro, ora Capital Federal;

i) Instituto Washington Luís de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em São Paulo, ca­pital .do Estado de São Paulo;

j) Instituto Bento Gonçalves de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Pôrto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul;

k) Instituto Tiradentes de Pesquisas Histó­ricas e Sociais, com sede em Belo Horizente, ca­pital do Estado de Minas Gerais;

l) Instituto Couto de Magalhães de Pesqui­sas Históricas e Sociais, com sede em Goiânia, capital do Estado de Goiás.

§ 1.0 - O atual Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, com sede no Recife, capital do Estado de Pernambuco, será ampliado na confor­midade da presente Lei em Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Históricas e Sociais.

§ 2.0 - A atual Casa de Rui Barbosa, sem prejuízo do que lhe compete no que tange à

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pessoa e à obra de Rui Barbosa, será ampliada na .conformidade da presente Lei em Instituto Rui Barbosa de Pesquisas Históricas e Sociais.

§ 3.0 - O Conselho Federal, em Sessão Ple­nária, definirá a jurisdição regional de cada insti­tuto para os trabalhos de pesquisa, jurisdição que poderá ser diminuída na medida em que forem sendo criados os institutos de que trata a pre­sente Lei.

· Art. 13 - Cada Instituto será dirigid9 por um diretor, designado, pelo Presidente da República, em comissão, de lista tríplice que lhe fôr subme­tida pelo Conselho Federal, e contará com dois secretários gerais, designados em comissão, de lista sêxtupla que lhe fôr submetida pelo Conse­aho Federal.

§ 1.0 - Diretor e secre~rios gerais a que se refere êste artigo deverão ser domiciliados e residentes na cidade que fôr sede do Instituto em causa.

§ 2.0 - A primeira designação a que se re­fere êste artigo ficará a critério exClusivo do Presidente da República, guardado o disposto no parágrafo anterior. ·

Art. 14 - Cada Instituto se subdividirá em centros de pesquisas, tantos quantos forem neces­sários à execução dos projetos e na conformidade dos campos do conhecimento, disciplinas, matérias ou ciências históricas, sociais, políticas, culturais,

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 211

centros que poderão eventualmente constituir-se pelo período de determinada pesquisa.

§ 1.0 - Cada instihlto manterá permanente-mente os seguintes centros:

a) centro de preparação de pessoal; b) centro de pesquisas etnográficas; c) centro de pesquisas dialectológicas; d) centro de sistematização de arquivos e

documentação histórica; e) centro de editoração. § 2. 0 - O centro de preparação de pessoal a

que se refere o parágrafo anterior poderá, em acôrdo com universidade local, gozar de mandato universitário, na preparação de pes~oal de pesqui­sa, que uma vez formado será de engajamento preferencial nos Institutos do Conselho Federal.

§ 3.0 - O centro de sistematização pe arqui­vos e documentação histórica deverá, dentre outros objetivos que possa ter, zelar pela assistência ao . tombamento, classificação, referenciação, resenha­ção dos arquivos públicos, federais, estaduais, municipais e outros, mercê de acordos com as autoridades competentes e mercê do sistema defi­nido como resultado do que é previsto no § 4.0

do art. 3. 0 desta Lei. § 4.0 - O centro de editoração se encarrega­

rá da publicação de um boletim trimestral e da preparação final de originais de obras resultantes da pesquisa regionalizada, segundo características

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gráficas que serão fixadas, em âmbito nacional, por Sessão Plenária do Conselho Federal.

Art. 15 - O Conselho Federal, em Sessão Plenária, cento e vinte dias após sua instalação, proporá ao Presidente de República um projeto de regulamento dos institutos do Conselho Fede­ral de Pesquisas Históricas e Sociais, regulamento em que se fixarão, com a minúcia desejável, os aspectos essenciais das pesquisas que a longo prazo deverão ser realizadas no Brasil no âmbito de sua competência.

CAPÍTuLO IV

Do patrimônio e da sua utilização

Art. 16 - O patrimônio do Conselho Federal será formado:

a) pelos bens e direitos que lhe forem doados ou por êle adquiridos, distinguindo os bens patrimoniais doados aos Institutos individualmente ou por êlt:)s adquiridos;

·b) pelos saldos de rendas próprias ou de !recursos orçamentários, quando transferidos para a conta patrimonial.

Art. 17 - A aquisição de bens patrimoniais por parte de Conselho Federal independe de .aprovação do Govêrno Federal, mas a alienação

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 213

dêsses bens somente poderá ser efetuada depois de autorizada em lei.

Art. 18 - Os bens e direitos pertencentes ao Conselho Federal somente poderão ser utilizados para a realização dos objetivos próprios à sua finalidade, na forma desta Lei, que permitem, porém, a inversão de um e de outro para a obten­ção de rendas destinadas ao mesmo fim.

CAPÍTULO v Dos recursos e da sua especificação

Art. 19 - Os recursos para a manutenção dos serviços do Conselho Federal de Pesquisas Histó­ricas e Sociais e de seus Institutos, conservação, renovação e ampliação de suas instalações, bem .como de realização de seus objetivos e fins, serão provenientes de:

a) dotações orçamentárias que lhe forem atribuídas pela União;

b) dotações, a título de subvenção, que lhe atribuírem Unidades da Federação e Municípios;

c) doações, legados e outras rendas que, a êsse título, receber de pessoas físicas ou jurídicas;

d) renda de aplicação de bens patrimoniais; e) retribuição de atividades remuneradas

dos laboratórios e quaisquer outros serviços; f) taxas e emolumentos;

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g) receita proveniente de sua editoração; h) produto da venda de material inservível

ou da alienação de elementos patrimoniais; i) produto de créditos especiais abertos

em lei. Art. 20 - A dotação correspondente a cada

exercício financeiro constará do orçamento da União, com título próprio, destacado de cota na­cional prevista no Art. 169 da Constituição Fe­deral, para ser entregue ao Conselho Federal, sob forma de auxílio, em cotas semestrais antecipadas e que serão depositadas para movimentação, em conta corrente de instituição oficial de crédito.

§ 1.0 - O Conselho Federal, em Sessão Ple­nária, deliberará sôbre a distribuição dos recursos concedidos e examinará, para a devida comprova­ção, as demonstrações · das despesas efetUadas, podendo o presidente do Conselho Federal adiantar aos Institutos cotas-partes que não tota­lizem mais de cinqüenta por cento dos recursos distribuíveis, ad 1'eferendum da Sessão Plenária.

§ 2.0 - A movimentação de fundos será feita, no Conselho Federal, mediante a assinatura conjunta do presidente e do diretor da Divisão Administrativa.

§ 3.0 - Cota-parte da renda global anual do Conselho Federal será fixada para cada Instituto, na proporção das pesquisas, nacionais ou regionais, que êste dever realizar no exercício, independen­temente da renda global particular que cada Insti-

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tuto puder vir a ter para cada exercício, prove­niente de subvenção de Unidade da Federação, de Municípios ou de pessoas físicas ou jurídicas que com êle entrarem em entendimento direto para pesquisa de particular interêsse estadual ou municipal;

§ 4.0 - Cada Instituto, por seu diretor, pres­tará contas em Sessão Plenária do Conselho Fede­ral da aplicação dos fundos que lhe forem distri­buídos pelo mesmo, juntando os comprovantes idôneos das despesas efetuadas, bem como uma demonstração da aplicação de outros fundos que receber de outras fontes.

CAPÍTULO VI

Do regime financeiro do Conselho Federal

Art. 21 - O regime financeiro do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais e de seus institutos obedecerá aos seguintes preceitos:

a) o exercício financeiro coincidirá com o ano civil;

b) a proposta de orçamento será organizada e justificada com a indicação das propostas par­ticulares de cada instituto e com a indicação dos trabalhos correspondentes, de âmbito nacional e de âmbito regional;

c) os saldos de cada exercício serão lan­çados no fundo pah·imonial ou em fundos espe-

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ciais, na conformidade do que, no respeito, deli­berar o Conselho Federal, que deverá ter em conta a possibilidade da criação de um fundo de reserva nacional e de fundos de reserva para cada Instituto, que poderão ser aplicados em projetos especiais de âmbito nacional ou de âmbito juris­dicional, respectivamente;

d) durante o exercício financeiro poderão ser abertos créditos adicionais, de caráter nacional ou de caráter regional, desde que as necessidades dos serviços o exijam e haja recursos disponíveis.

Parágrafo único - A proposta orçamentária, organizada pelo Conselho Federal, será submetida à aprovação do Presidente da República.

Art. 22 - A prestação anual de contas ao Presidente da República será feita até o último dia do mês de março, enquanto a prestação de contas ao Presidente do Conselho Federal por parte dos diretores dos institutos o será até o último dia do mês de janeiro; e a prestação global anual de contas, bem como a dos Institutos, constará, além de outros, dos seguintes elementos:

a) balanço patrimonial; b) balanço econômico; c) balanço financeiro; d) quadro comparativo entre a receita es­

timada e a receita realizada; e) quadro comparativo entre a despesa fi­

xada e a despesa realizada.

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§ 1.0 - A prestação de contas referente às dotações orçamentárias será apresentada ao Tri­bunal de Contas até o último dia útil do mês de abril.

§ 2.0 - Também até o último dia útil do mês de abril o Conselho Federal apresentará seus balanços à Contadoria da República, para que sejam publicados juntamente com balanços gerais da União.

CAPÍTULo VII

D.o fundo nacional de pesquisas históricas e sociais e outms fundos

Art. 24 - É instituído o fundo nacional de pesquisas históricas e sociais.

Parágrafo único - Serão incorporados ao fundo de que trata êste artigo os créditos especial­mente concedidos para êsse fim, os saldos das dotações orçamentárias e quaisquer outras rendas e receitas eventuais.

Art. 25 -- O Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais e seus Institutos poderão re­ceber doações com finalidades determinadas, se integradas nos seus objetivos e fins, ou sem fina­lidades expressas.

Parágrafo único - As doações com finalida­de determinada que os Institutos receberem não

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poderão ser levadas em conta pelo Conselho Federal, quando da fixação da cota parte a que se :refere o § 3.0 do art. 20 desta lei.

CAPÍTULO VIII

Disposições gerais e transitórias

Art. 26 - O Conselho Federal aprovará em Sessão Plenária seu regimento interno e um padrão de regimento interno para os seus Institutos, que organizarão, nessa conformidade, o seu regimento interno, ad referendum de Sessão Plenária do Con­selho Federal, regimentos internos que estabele­cerão as normas gerais para desempenho de seus encargos; e o Conselho Federal elaborará, para aprovação pelo Govêrno, o projeto de regulamen­tação desta Lei.

Parágrafo único - O regulamento disporá sôbre a estrutura das divisões e setores do Con­selho Federal e sôbre a estrutura dos Institutos, sôbre os requisitos e condições para a concessão de auxílios destinados à realização de cursos ou pesquisas e, ainda, sôbre as formas de admissão, o regime de trabalho do tempo integral e de pa­gamentos, as atribuições de vantagens e deveres do pessoal, atendidas as seguintes disposições:

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a) O Conselho Federal praticará, sob sua exclusiva responsabilidade, todos os atos peculiares ao seu funcionamento;

_b) as condições gerais de requisição, desig­;nação, licenciamento, demissão, aposentadoria dos ·Servidores públicos, lotados no Conselho Federal e seus Institutos, são as estabelecidas na legisla­ção federal, enquanto para os servidores estaduais o são as estabelecidas na legislação estadual;

c) o Conselho Federal poderá admitir, in­clusive nos Institutos, pessoal não caracterizado como permanente ou extranumerário, para melhor consecução de suas finalidades.

Art. 27 - Os interêsses do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais serão atendidos, em juízo, no Distrito Federal, por seu consultor jurídico e, nos Estados, pelo Procurador Seccional da República.

Art. 28 - São isentos de impostos e taxas os aparelhos, instrumentos, utensílios de laboratório e quaisquer outros materiais que o Conselho Fe­deral importar, para si ou para os Institutos, na execução dos seus serviços, e o respectivo desem­baraço alfandegário far-se-á mediante simples re­quisição ao chefe da repartição competente, acompanhado de prova de aquisição do material importado.

Art. 29 - Anualmente, até o último dia do mês de abril, o presidente do Conselho Federal apresentará ao Presidente da República relatório

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das atividades do Conselho Federal no exercício anterior.

Parágrafo único - Anualmente, até o último dia do mês de fevereiro, o diretor de cada Insti­tuto apresentará ao presidente do Conselho Fe­deral o relatório das atividades do instituto no exercício anterior.

Art. 30 - Para as atividades iniciais do Con­selho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, inclusive a instalação e organização de seus ser­viçôs na Capital Federal e de pelb menos cinco Institutos, exclusive os já existentes que serão ampliados, é o Poder Executivo autorizado a abrir crédito especial de Cr$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de cruzeiro's).

Art. 31 - A presente lei será regulamentada dentro dos 120 (cento e vinte) dias de sua publicação.

Art. 32 - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(1957)

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lNDICE

Introdução o o o o o o o o o .. o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 7 Sôbre a língua do teatro o o o o o o o o o o o o o o o o o 9 A propósito de nossa língua falada o o o o o o o 22 Primeiro Congresso Brasileiro de Língua

Falada no Teatro o o o o o o o o o o o o o o o o o o 33 Dialectologia e Etnografia o o o o o o o o o o o o o o 38 Sôbre a "Língua Brasileira" o o o o o o o o o o o o o o 7 4 Sôbre a Enciclopédia Brasileira o o o o o o o o o 130 Arquivos do Brasil o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 184 Um projeto de lei o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 191

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BIBLIOTECA DE DIVULGAÇÃO CULTURAL

SflRIE A

VOLUMES PUBLICADOS: I- Augusto Meyer - Prêto & Branco. li - Ruggero Jacobbi - A Expressão Dramática.

III - Ant6nio Rangel Bandeira - Da Liberdade de Criação Artística.

IV- Aires da Mata Machado Filho - Falar, Ler e Escrever.

V - Waltensir Dut1·a e Fausto Cunha - Biogra­fia Crítica das Letras Mineiras.

VI - Sylvio de Vasconcellos - VILA RICA. For­mação e Desenvolvimento. Residências.

VII- Octavio Mello Alvarenga - Mitos & Valores. VIII - Paulo R6nai - Como Aprendi o Português

e Outras Aventuras. IX - Celso Brant - Bach, o Quinto Evangelista. X - Brito Broca - Horas de Leitura.

XI - Edison Carneiro - A Sabedoria Popular. XII - Eduardo Frieira - O Brasileiro não é Triste.

XIII - Oswaldino Marques - A Seta e o Alvo. XIV- Euri co Nogueira França- Música do Brasil. XV - Francisco de Assis Barbosa - Achados do

Vento. XVI- M. Cavalcanti P r oença - No Têrmo de

Cuiabá. XVII - Paulo R6nai - Encontros com o Brasil.

XVIII - M iéqio Táti - Estudos e Notas Críticas. XIX - Eugêni o Gomes - Visões e Revisões. XX - Coutinho Cavalcanti - Um Projeto de Re­

forma Agrária. XXI - Lu~s Cosme - Música, Sempre Música.

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XXII- Renato de Mendonça e da Gente.

Retratos da Terra

XXIII - Cassiano Ricardo - O Homem Cordial e outros pequenos estudos brasileiros.

XXIV- Josué Montello - Caminho da Fonte - Es-tudos de literatura.

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* 11:STE LIVRO FOI COMPOSTO E IMPRESSO

NAS OFICINAS DA EMPR:II::SA GRAFICA DA

"REVISTA DOS TRIBUNAIS" S. A., À RUA

CONDE DE SARZEDAS, 38, SÃO PAULO,

EM 1960.

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PREÇO: Cr$ 30,0