SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA · Revista do Liv1·o, n.• li, do Instituto Nacionll.l...
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BIBLIOTECA DE DIVU~GAÇAO CULTURAL Slt~IE A-XXV
ANTÓNIO HOUAISS
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA
LÍNGUA
UNISTltRIO DA EDUCAÇAO' CULTURA STITUTO NACIONAL DO LIVRO
SUGESTõES PARA UMA POLíTICA DA LíNGUA
DO AUTOR
Tentativa ele elesm·ição elo sistema vocálico elo po1·t1t01tês culto na á1·ea dita carioca, Rio de Janeiro, 1959.
Introdução ao texto m•ltico das 1lf emó1·ias póstwn~as de Brás Cubas, de Machado de Assis, suplemento n.• 1 da. Revista do Liv1·o, n.• li, do Instituto Nacionll.l do Livro, Rio de Janeiro, 1959.
Critica avulsa, Rio de Janeiro, Salvador, 1960. Seu poetas e um problema, Rio de Janeiro, 1960.
Organização
Anais do Primei1·o Cong1·esso B1·asileiro de Língua Falacla no Teatro (Salvador, setembro de 1956) , Rio de Janeiro, 1959.
Anais do Simpósio de Filologia Rom.â.nica da Fact<ldacle Nacional ele Filosofia (Rio de Janei1·o, 1958), Rio ele Janeiro, (no prelo ) .
Anais do P•·irnei!'O Cono•·esso Brasilei1·o de Dialectologia e Etnografia (Põrto Alegre, 1958), Rio de Janeiro (em preparação).
Preparação textual
Obras de L ima Barreto, São Paulo, Editõra Brasiliense, 1956 (em 17 volumes, em colaboração com Francisco de Assis Barbosa e M. Cavalcanti Proença).
"O texto dos poemas", in Gonç~lves Dias, poesias e prosa escolhicla, Rio ele Janeiro, Editõra José Aguilar Ltda., 1959.
Antologia
Silva Alvarenga, poesia, "Coleção Nossos Clássicos", Ri() de Janeiro, Livraria Agir E'ditõra, 1958.
Alugusto dos Anjos, 110esias, "Coleção Nossos Clássicos", Rio de Janeiro, Livraria Agir EditOra, 1~60.
Tradução
O neg1·o na lite1·atu1·a b1·asilei1·a, de Rllymond S. Sayers, Rio de Janeiro, EditOra O Cruzeiro, 1958.
Do latim ao port1~0ttês, de Edwin B. Wllliams, Rlo ele J a n eiro, Instituto Nacional do Livro (no prelo).
BIBLIOTECA DE DIVULGAÇÃO CULTURAL SÉRIE A-XXV
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA
LÍNGUA ·
POR
ANTôNIO HOUAISS
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA I NSTITUTO N.A:CIONAL DO LIVRO RIO DE JANEIRO 1 960
Desta edição de Sugestões para uma política da língua foram tirados, fora de comércio, dez exemplares especiais em papel de linho
W esterpost.
Neste livro, reúne o autor escritos, éditos ou inéditos, de vária época, que procuram ter um denominador comum, consentâneo com o títul.o. Mas é desnecessário ressaltar que se apresentam em nível de divulgação, razão por que todo aparato mais elaborado foi pôsto de lado, inclusive o bibliográfico. Para resguardar-se de alagáveis inc.oerêooias, bem como para justificar-se de algumas repetições que seria menos expedito evitar, refundinrdo o rnaterial ora impresso, o autor sotopôs às diversas unidades a data' de sua elaboração.
Embora escritos de circunstância, têm eventualmente algo a favor de si: o empenho com que nêles se postula a t.omada de consciência de umas quantas pro""'idências ou medidas que devem ser quanto antes postas em ação entre nós, para bem da nação, da língua e da pesquisa cient·ífica histórico-cultural. E, se lhes falta exposição sistemática, ver-se-lhes-á com facilidade, em se querendo, o espírito sistemático de que provêm.
SôBRE A L1NGUA DO TEATRO
Deverá realizar-se, de 5 a 11 de setembro do corrente ano, em Salvador, no quadro das comemorações do decenário da Universidade da :Bahia, o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro - ao qual devemos todos aspirar o melhor sucesso, pelo simples fato de que seus resultados poderão ter projeções consideráveis sôbre a relativa estabilidade e generalidade com que se apresenta no território nacional illOssa língua comum e nacional - o português.
Sinal dos tempos e apesar de todos os tropeços de nossa conjuntura, a idéia partiu, louvàvelmente, do grupo social mais interessado diretamente na questão da padronização - e, ao diz~r grupo social, fá-lo-ia melhor se delimitasse mais ainda com dizer grupo profissional, o do teatro. Que o impulso inicial foi generoso, prova-o -também o fato de que se endereçou, como devia, aos nossos lingüistas, filólogos e gramáticos. Obtido, logo a seguir, o apoio oficial do Ministério da Educação e da Universidade da Bahia, graças ao qual os problemas contingentes de numerários foram desde o início superados, já nesta altura se tomam as providências mais imediatas
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para que o congresso possa oferecer resultados ~nimadores e úteis ao país. Neste momento mesmo, procede-se aos convites para que contemos, juntamente com os brasileiros, com diversos congressistas estrangeiros, filólogos, lingüistas e especialistas de teatro, portuguêses, espanhóis, franceses e italianos.
No grupo promotor e executivo estão diversos brasileiros a cujo entusiasmo se pode creditar, por antecipação, esforços não pequenos para que um ·certo número de objetivos seja alcançado neste primeiro congresso. Parecerá, no particular, ·um truísmo afirmar que o objetivo mínimo deverá ser o de sancionar, com sua autoridade coletiva, as bases de nossa fonologia culta, para que todos os atôres . - e com êles os diretores e professôres de dicção - possam eliminar, espontânea e progressivamente, as diferenças de pronúncia dialectal que, por vêzes, muitas vêzes, enfeiam - por sua assimetria - as representações na cena teatral brasileira. Ora, ao que parece, as bases de nossa fonologia culta já estão, de fato, estabelecidas, na obra de eminentes tratadistas e compendiadores, em que sobressaem os nomes de FRANco DE
SÁ e ANTENOR NASCENTES. Nesse particular, aliás, a comissão promotora agiria bem se desde já designasse um grupo de trabalho para a tarefa específica de apresentar uma exposição sistemática das pesquisas e recomendações encontradas naqueles autores e outros, a fim de que ficasse
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por antecipação assegurada a possibilidade de o mínimo objetivo do congresso ser atingido.
As condições do Brasil são de fato inéditas tna história quanto ao problema de padronização de uma língua falada para fins cultos. Sorrios uma nação com caracteres, digamos, naturais de unidade dificilmente comparável a outras. Podese mesmo afirmar que estamos em condições de adotar uma política lingüística que não tenha semelhança com nenhuma outra à face da terra, porque as coordenadas de nossa problemática são muito mais simples. 11: que as minorias lingüísticas que possuímos, do nosso passado pré-cabrahno assim como das levas migratórias modernas, não revelam traços de expansão, antes pelo contrário, trazem a marca patente da regressão. Para isso, muito contribuiu o fato, no passado, de que as diversas línguas e falares, já indíg~nas, já africanos, não haviam atingido um estágio literário, que iria possibilitar uma eventual concorrência com o português. Além disso, dêsses falares, excluindo-se a língua geral da catequese, também adotada para fins de língua comum até certo momento do século XVIII, nenhum apresentava a relativa universalidade no território que teve, por exemplo, o guarani, no Paraguai, ou o quíchua, na Bolívia. De outro lado, a própria expansão colonizadora e o incremento demográfico se fêz com tendências espontâneamente unificadoras em favor do português, de modo que
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já nos inícios do século XIX não só era êle nossa Hngua comum e nacional, mas, por sua possibilidade de ser conservado por via escrita, era também a que se destinava melhor às necessidades de transmissão da cultura e das comunicações econômicas. E a própria colonização assim como os movimentos migratórios internos tenderam sempre a favorecer o quadro relativamente unitário com que o português se apresenta no Brasil.
. Ora, uma das questões básicas do congresso será a da aceitação, sem repulsa por parte da maioria dos congressistas, de um padrão local de pronúncia do português do Brasil que possa servir para o resto do país. Não se trata, está claro, de adotar em bloco êsse padrão local e querer impô-lo ao resto do país, o que seria !inglória e estéril. Trata-se, antes de mais nada, de saber, dentre as frações cultas do país, qual aquela que apresenta caracteres mais consentâneos com a fonologia da língua, ao mesmo tempo lmais universais den,tro do território 1brasileirm Não é sem razão que a escolha girará em tôrno de dois ou três centros cultos principais do país, um dos quais é certamente a cidade do Rio de Janeiro e a chamada área fluminense, os outros dois podendo ser São Paulo e Salvador. Não há desprimor nenhum em omitir os demais. Não seria até inútil relembrar que, se o problema da padronização se tivesse colocado no passado, talvez Salvador, antes talvez o Recife, talvez São
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Paulo devessem ser os centros padrões. Mas nas condições atuais, precisamente porque nesse atual 'há o acúmulo de tôda uma história política coletiva, o Rio de Janeiro, nominalmente a cidade do Rio de Janeiro, será sem dúvida a base local por excelência. Militam para isso diversos fatôres, que não é mister recapitular em sua totalidade; mas lembremos, pelo menos, o fato notório de que é ainda o centro cultural mais importante do país, com mais contínua tradição, é o centro político há mais tempo (e êsse fator é capital) e é, mais do que tudo, uma zona cuja pronúncia culta tende, mais do que qualquer outra, a ser a expressão média das pronúncias regionais e locais brasileiras - para cuja explicação não será somenos levar em linha de conta a circunstância de que esta cidade vem sendo, dentre tôdas, a mais povoada de brasileiros de todos os pontos 1do país. São Paulo, por exemplo, graças ao :ímpeto econômico que vem tendo nas últimas décadas, já superou o Rio sob quase todos os aspectos. Mas não há negar que sua pronúncia média culta continua a revelar os traços de uma dialectação localista, ao contrário da carioca, em que se poderia vislumbrar uma tendência univer,salista dentro do Brasil, pelas razões acima enunciadas. O falar culto carioca, dessa forma, é, provàvelmente, o que mais eqüidistante se acha -usando certa nomenclatura mais ou menos consagrada na nossa incipiente dialectologia - do
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nortista, do nor.destino, do oriental, do sulista e do sertanejo.
Admitindo, assim, que partamos de uma base carioca ou fluminense, ainda aí será mister distinguir o padrão culto do padrão popular. Essa discriminação não é nem odiosa nem arbitrária, mas é expressão do esfôrço que fazem as coletividades e os indivíduos por darem ao seu instrumento de comunicação um auditório mais amplo. ~' assim, nos meios cultivados que se irá encontrar aquêle padrão desejável, padrão que não poucos homens cultos, entre nós, já realizam, e de que são belos exemplos vários atôres que se apresentam nas nossas cenas teatrais e mais de um locutor de nossa radiodifusão. O que se verifica, desde logo, porém, é que muito justamente certos traços localistas cariocas são expungidos de sua pronúncia padrão, traços êsses que são os que precisamente mais discrepam dentro da fonologia da língua e mais isolados parecem estar nos nossos eventuais mapas dialectológicos. :E; o caso de certos /r/, de certo j t/ e de certo / d/ em determinadas posições intervocálicas.
Colateral com o que se vem denominando nestas linhas objetivo mínimo do congresso, é o desejo de coleta de abundante material dialectológico do Brasil. No respeito, estamos ainda tremendamente atrasados. Com exceção de uns poucos trabalhos - modêlo dos quais continua sendo o admirável O dialeto caipira, de AMADEU
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AMARAL -, os estudos dialectológicos no Brasil são poucos e de valor muito contestável. Nossa limitação culhual, de um lado, a extensão do país, de outro, são as principais razões dêsse atraso. Mas o congresso, nos seus objetivos temáticos, inclui uma seção que se destina, precisamente, a ser pioneira de um futuro congresso de dialectologia brasileira, quando apela para os brasileiros de todos os pontos do território nacional no sentido de enviarem suas observações, estudos ou apontamentos sôbre "aspectos da diferenciação regional e social da língua: descrição, total ou parcial, de falares, urbanos ou rurais; vocabulários regionais ou profissionais". A questão não é - escusa lembrá-lo - nem bizantina nem precJce; e, no seu bôjo, há como mérito fundamental o fato de ser seu estudo um eluci-dário a mais da nossa formação nacional unitária
Com limitar o congresso à "língua falada no teatro" não se teve, está claro, em vista dizer que a língua falada no teatro é necessàriamente diferente da língua falada em outr'os meios artísticos ou que fazem da palavra instrumento pwfissional - cinema, magistério, parlamento. Não se tendo em vista semelhante limitação, automàticamente se teve em vista admitir que as conclusões a que se chegasse serviriam também para
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os outros casos. E de fato é assim. Mas não há negar que a urgência maior se manifesta exatamente no meio teatral, e tanto isso é verdade que foi sentida primeiro exatamente nesse meio. E que o teatro brasileiro vive pela primeira vez sua grande crise de crescimento quantitativo e qualitativo no que toca ao jôgo de cena, à sua realização viva, in concreto. E, por uma feliz decorrência de nossa estrutura essencialmente unitária mas ao mesmo tempo culturalmente pobre, os atôres que se apresentam ao público não são provenientes de uma s6 região, Estado ou cidade. Se o cinema brasileiro, via de regra, apelando para o cotidiano atual, não postulou ainda o problema de uma dicção que seja tanto quanto possível intemporal ou inespacial, irá de futuro fazê-lo também, e então a mesJTla urgência sentida pelo teatro irá dar-se com êle. Como, com efeito, representar peças de SHAKESPEARE de modo que não se veja por trás de um Otelo um cearense, de uma Desdêmona uma gaúcha, de uma Julieta uma paulista? Como, de fato, fazer que a ilusão da realidade não seja quebrada pela assimetria de pronúncias regionais? Até agora, que se · saiba, s6 há duas direções: ou bem peças dêsse tipo se representam por atôres de uma s6 proveniência lingüística regional para um auditório dessa mesma proveniência (quando não há a ruptura da ilusão da realidade por assimetria) ou bem - como é o caso de nossa situação
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nacional - se obtém um padrão de pronúncia que seja sem traços gritantes de regionalismo, ainda que os atôres provenham de quaisquer pontos do território nacional. Escusa dizer que ambas as direções podem coexistir, mas que a segunda tem possibilidades muito mais amplas e gerais, dentro do país, do que a primeira. ~ nessa convicção, aliás, que certos empresáriosatôn!s 'têm impôsto, tpor vêzes, sua pronúncia pessoal a todo seu grupo de trabalho, de uma forma, não raro, arbitrária. O padrão culto aspira, por conseguinte, não a uma classificação social, não a uma discriminação de classe ou grupo que se considere superior, como é o caso, por exemplo, do inglês de Oxford, mas a uma média de compreensibilidade geral, como é o caso do King's English da radiodifusão inglêsa, cuja viabilidade como padrão geral do império britânico é incontestável, questão de tempo. Vem à baila também o exemplo do francês da Comédie Française, corn base no francês da ilha de França, embor~ o padrão teatral tenha sido tão precocemente adotado e com caracteres tão profissionalizados que tenda, hoje em dia, a ser superado pelo dos meics universitários da mesma ilha de França. O fato, contudo, é que as dificuldades de padronização nesses países de velha cultura, em que os dialetos e falares têm uma tradição multissecular, é maior do que entre nós, apesar de serem de cultura média muito superior à nossa. Não obstante, os
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resultados são animadores, razão por que podemos antecipar o mesmo para nós .
• Limitou-se, por conseguinte, o congresso à c1íngua falada no teatro" por ser mais agudo o problema nesse meio, nunca, porém, sem o ânimo subjacente de depois propor os resultados a que se chegar como padrão para todos os outros usos cultos da língua. Subjacente, por conseguinte, aos objetivos do congresso está a intenção de ser pura e simplesmente "primeiro congresso brasileiro de língua falada culta", mas "culta" não em sentido classificatório ou discriminativo, e sim no sentido de "instrumento de comunicação para auditórios mais amplos, universais", dentro da universalidade da língua comum e nacional, é óbvio.
Que os observadores não se deixem, portanto, iludir com o designativo restrito do congresso.
Quanto à data, seria de convir que é ela um pouco precipitada. Com efeito, para uma coleta rica e profusa de colaborações - comunicações, teses, moções, motivações, problemas, exposições, vocabulários, monografias de quaisquer tipos -seria o caso de dar maior tempo, com persistente apêlo a todos os colaboradores eventuais, congressistas ou não congressistas. Foi, entretanto, premida por diversas conveniências que a comissão executiva sacrificou um pouco o tempo desejável, no pressuposto de que as questões de que o congresso será objeto vivem tão intensamente na preocupação de um sem-número de brasileiros
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por êste , Brasil a fora que não será de admirar venha a ter poucos efeitos negativos a exigüidade de tempo. Aqui, seria então o caso de frisar, com todo o rigor, o fato de que todos os brasileiros, de qualquer profissão, de qualquer instrução, especializada ou não, podem dar sua achega ao congresso, enviando observações relacionadas com os falares locais, com os vocabulários profissionais, regionais. Basta uma simples leitura do prospecto do congresso, que já foi, aliás, tornado público em diversos órgãos da imprensa brasileira, para se compreender aquela possibilidade. E de fato a comissão executiva espera dêsse tipo de colaboração material de importância considerável.
Ainda com relação à data de convocação do congresso, não há como silenciar duas outras circunstâncias. De um lado, as comemorações do decenário da Universidade da Bahia, comemorações cujo luzimento será maior se contarem com um congresso dêsse tipo. De outro lado, o concurso de congressistas estrangeiros especializados é indispensável nesse gênero de atividade, porque trará, para um largo círculo de interessados brasileiros, uma experiência e uma sabedoria de enorme utilidade para o nosso meio e para o aprofundamento de múltiplos aspectos de nossos estudos. Ora, como a generalidade dêsses congressistas estrangeiros é de professôres universitários, não se podia retardar a convocação do congresso, pois de outra forma só poderíamos contar com
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êles nas grandes férias do próximo ano letivo no hemisfério norte, entre julho e setembro de 1957. Não havia, pois, como vacilar.
A designação do congresso comporta ainda um pequeno esclarecimento, de tipo não secundário. Trata-se de língua "falada", vale dizer, o problema fundamental é o relacionado com a pronúncia em cena. Mas nas condições das civilizações históricas - e o eixo da historicidade continua ~endo a existência ou não da escrita -, é quase .impossível dissociar a língua falada da língua escri~a, sobretudo em casos como o presente, em que se lida com língua comum e nacional. Dessa forma, não era possível excluir de um primeiro congresso uns quantos temas não tanto de interpretação teatral, mas de criação teatral, concernentes à língua. No Brasil - e também em Portugal, quiçá em menor grau - atravessa-se um momento crítico para as chamadas fórmulas de tratamento. lt observação que pertence ao campo da sociologia lingüística ou da lingüística sociológica o fato de que certos torneios de tratamento, inicialmente indiretos, tendem a generalizar-se, em detrimento dos outros, dos diretos, numa unificação que reflete em grau maior ou menor o atenuamento das discriminações ou diferenciações das classes e grupos sociais. É expressão, na lú1gua, das relações democráticas em sociedade. Para indivíduos da geração do autor destas linhas, e para os que antecedem à sua, nas nossas condi-
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ções urbanas do Rio de Janeiro, por exemplo, é palpável e evolução que tem tido o "você", inconcebível, há poucos anos, com a generalidade com que se vem impondo no rádio e na televisão a todos os ouvintes e espectadores, sobretudo na técnica lingüística da propaganda. Agora mesmo, dentre outras degustações que tem provocado a representação de O macaco da vizinha pelo excelente grupo do Tablado, não poucos têm sido os que estranharam a maneira "inusitadamente" ceri!IDoniosa com que os interlocutores se tratam, questão perfeitamente documentada nos nossos romances de costumes e nas nossas peças teatrais de costume. Para a criação "atual", nas condições urbanas do Rio, por exemplo, é um tropêço não pequeno para o autor a questão do tratamento entre os interlocutores de diferentes camadas sociais - e maior ainda, para a "ilusão da realidade", questões como a de saber se uma declaração de amor se faz, num tratamente de "você", com fórmulas como "eu a amo", "eu lhe amo", "en amo você", "eu amo a você" ou "eu te amo" ...
Não entremos, porém, em pormenores, bastando-nos saber que tais pormenores só poderão ter uma solução racional e aceitável se forem enquadrados num conjunto de aspectos orgânicos, cujo estudo e discussão - e fixação - cabem exatamente aos congressistas.
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A PROPÓSITO DE NOSSA LlNGUA FALADA
Quando MÁRio DE ANDRADE - com o seu poder de influência e polarização - se aplicou à realização do Primeiro Congresso N acionai de Língua Cantada, que transcorreu em São Paulo faz duas décadas, estava por certo consciente de que iria inaugurar um novo período no estudo da nossa língua.
~ que o problema da língua cantada postulava o da língua falada, que nas condições do mundo moderno - mesmo num país de baixo índice de alfabetização como era (e ainda é) o nosso- não se dissocia do da língua escrita, embora cada uma apresente seus caracteres particulares.
Em verdade, desde pelo menos o venerando lexicógrafo e gramático pernambucano ANTÔNIO DE MoRAlS SILvA, pelos inícios do século XIX, o estudo gramatical entre nós da nossa língua escrita já principiara, e continua até hoje, havendo propiciado o aparecimento de nomes dos mais expressivos, tais modernamente o de M. SAID ALI e o de ÁLVARO F. DE SousA DA SILVEIRA.
A coleta do material folclórico expresso lingüisticamente, inerente à visão do romantismo,
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gerou, pouco depois daquele pioneiro, a preocupação da língua falada e suas diferenciações, mas só tardiamente aparecem trabalhos de certa monta no particular, em que sobreleva sempre o de AMADEU AMARAL sôbre o chamado dialeto caipira, e junto ao qüal cabem os nomes de ANTENOR NAScENTES, MÁRio MARROQUIM, CLÓVIS MoNTEIRo e poucos outros.
Os Anais do Primeiro Congresso N acionai de Língua Cantada refletem, nas contribuições que lhe foram submetidas, êsse novo aspecto - novo entre nós - do estudo da língua, o falado. Dessa maneira, a iniciativa de MÁRIO DE ANDRADE deveria vir a ter inevitável conseqüência - a realização de um congresso de língua falada, necessidade a que procurou corresponder o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, que se realizou em setembro passado em Salvador, graças ao patrocínio inteligente e fecundo do reitor magnífico da Universidade da Bahia, professor EncARD SANTos.
A idéia de um congresso dessa natureza nasceu no meio teatral carioca - e possivelmente paulista também - não apenas em atôres, mas em autores, diretores, homens ligados a outras técnicas teatrais - e ocorre-me, no respeito, citar que foram ToMÁS SANTA RosA, AGOSTINHO ÜLAVO, ANTÔNIO CALADO, se não me equivoco MARTIM GoNÇALVES e outros, que a sugeriram ao professor CELSo FERREIRA DA CuNHA, já então diretor da Bi-
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blioteca Nacional, figura notabilizada no nosso meio e fora de nossas fronteiras por seus estudos ligados ao medievalismo de nossa língua e hoje, por certo, dos maiores conhecedores do português onde quer que onde.
E que a idéia surgisse entre gente de teatro mostra bem quanto foi ela determinada pelo próprio progresso do teatro no Brasil, contemporâneamente, e quanto a vai penetrando a consciência dos problemas técnicos relacionados com a arte de representar.
O fato é que um ensejo se apresentava aos iestudiosos do português de encetarem de forma sistemática aquela tarefa, que, no dizer dos principais lingüistas modernos, é a condição para um cabal conhecimento de uma língua- a sua dialectologia. Esta, por meio de um atlas lingüístico tão minucioso e preciso quanto possível, pode oferecer os materiais e as funções dos instrumentos de comunicação na sua infinita variedade e inte;rinfluência, para subseqüente interpretação e compreensão, com o que a natureza do instrumento poderá ser iluminada e apreendida na sua quase total intimidade estática e dinâmica.
1!: que, graças à dialectologia, o caráter eminentemente social de uma língua fica patente, mais patente do que nunca. E, com êsse caráter, o de que a língua tem seu destino estreitamente ligado à política - no amplo e nobre sentido desta palavra, escusa dizê-lo - e o de que, assim,
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a práxis social do instrumento de comunicação reflete os estados de uma sociedade, sua dinâmica, passada e presente e não raro sua dinâmica em potência. E, por conseguinte, o estudo de uma língua, nessa direção, pode oferecer possibilidades normativas para uma gramaticalização mais atual e moral, e menos dogmática, arbitrária, bizantina e "classificada"; e pode oferecer também subsídios incomparàvelmente importantes para a !história em geral, e das instituições, e das formações regionais, e das expansões demográficas, e da unificação econômica - da nação, em suma, como um todo, já que um dos três componentes fundamentais de uma nação, a relativa unidade de :reação e comportamento psicológicos coletivos comuns, se traduz por uma progressiva tendência à unificação do instrumento de comunicação, a língua.
Quando os homens de teatro propuseram, pura e simplesmente, aos homens que estudam a língua que êstes "fixassem" a que deveria ser universalmente adotada no Brasil em bôca de cena, para fins não regionalistas, talvez não supusessem a magnitude do problema com que êstes teriam de se defrontar. Para os homens de teatro, a questão era aparentemente simples: queriam que os atôres pudessem exprimir-se, todos, numa mesma língua com o mesmo sabor "nacional", de modo que por trás de um elenco composto, por exemplo, de um gaúcho, mais uma cearense, mais
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um paulista, mais uma pernambucana, etc., pudessem os espectadores admitir um Júlio César, uma Desdêmona, um Pier Gynt, uma grã-fina carioca dos nossos dias, uma Moreninha fluminense do século XIX, um Pedro Álvares Cabral, um Camões ou um Castro Alves, sem quebra da "ilusão de realidade", isto é, sem que a língua, com um traço regional discrepante da comunidade lingüística falada na bôca de cena, "lembrasse" aos espectadores que Romeu não era Romeu, mas um alagoano de ainda há pouco, Júlio César um mato-grossense de nossos dias. . . O desejo dos homens de teatro fundamentava-se, aliás, no pressuposto de que países civilizados, como a França, a Alemanha, Itália, já haviam atingido aquela unidade de falar em bôca de cena, não obstante a larga diversidade de falares regionais que apresentam.
Para os estudiosos da língua, porém, havia uma realidade científica que cumpria respeitar a todo transe: a língua falada no teatro não pode ter sua fonologia - para ater-nos ao problema capital em causa - fixada ao arbítrio do mais agradável, bonito ou que "portasse" melhor -"portar" aí é adaptação do francês porter, no sentido de maior raio de audibilidade para um fonema, verbo que, nesse sentido, parece divulgado entre o meio teah·al brasileiro. ~sse critério esteticista ou impressionista não poderia ser seguido, sob pena de se chegar a uma "média" que
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não COlTespondesse a nenhuma das realidades faladas no Brasil, no passado ou no presente. De outro lado, porém, cumpria evitar, também a todo transe, o perigo dos pruridos de orgulho regional - já que um gaúcho acha "horrível", ou "engraçado", ou "curioso", ou "pitoresco" o falar de um não gaúcho - e o que se diz do gaúcho dir-se-á de qualquer outro brasileiro de qualquer outra região mais ou menos caracterizada.
Graças ao prestígio e operosidade do professor CELSO FERREIRA DA CuNHA, de par com uma generosa equipe de colaboradores desinteressados e seus amigos e amigos do problema que se tinha pela frente - professôres SERAFIM DA SILVA NETO, HERON DE ALENCAR, ANTÔNIO J. CHEDIAK, MARTIM GoNÇALVES, CARLos HENRIQUE DA RocHA LIMA, NELSON Rossi e outros - o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro pôde instalar-se a 5 de setembro passado, com o concurso de mais de oitenta congressistas, dentre os quais eminente.s estrangeiros como os professôres PlERRE FouCHÉ, LÉoN BoURDON, I. S. RÉvAH, ÜCTAVIAN NA.."'DRIS, MAURICE MôLHo, franceses; ÁLVARO JÚLIO DA CosTA PIMPÃO, Luís FILIPE LINDLEY CINTRA, portuguêses; EuGENIO AsENSIO, espanhol, e W ALTER RELA, uruguaio. E, embora o lapso de tempo que intermediou entre a idéia inicial e a realização, o congresso pôde ter uma substância, uma atividade fecundas, chegando a resultados satisfatórios para o estágio de conhecimentos pre-
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sentes sôbre a problemática, e acordes, quero crer, com o grau de desenvolvimento da unificação lingüística, que, de certa data para agora, se processa no país. Foram oito dias de trabalho !intensivo, com reuniões matinais, vesperais, noturnas e sôbre-noturnas.
A finalidade fundamental, a razão de ser por excelência do congresso, são hoje as suas normas para o português falado no teatro brasileiro culto, ou .erudito, ou de âmbito universalista. E mesmo que, por resolução aprovada em sessão plenária, essas normas só devam ser tornadas públicas juntamente com os Anais do congresso, cuja circulação deverá ocorrer por fevereiro-março do ano próximo, alguns comentários a respeito das mesmas podem ser feitos.
Concordou-se que, na expressão teatral de âmbito universalista, devem ser resguardadas, nas il'ealizações fônicas, as variantes afetivas e as variantes individuais - desde que umas e outras 1não sejam atentatórias das normas preconizadas. Concordou-se, ainda, que, na interpretação de personagens de nítida côr local, devem os .atôres pronunciar com a devida adequação regional e social. Concordou-se, implicitamente, que, dado o prestígio de que o teatro goza nas coletividades que o possuem, seu ideal lingüístico, se tornado efetivo, nas suas linhas essenciais passa a ser o ideal lingüístico de tôdas as profissões que. fazem da palavra o instrumento por
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excelência de sua eficácia, vale dizer, homens do rádio, da televisão, e, mais, professôres, parlamentares, em suma, todos aquêles cuja comunicação e expressão queiram ter o maior alcance dentro do Brasil e da língua portuguêsa. E no exame objetivo da fonologia no Brasil, o congresso, prudentemente, não querendo, com sua eventual autoridade, encampar fatos ainda não elucidados, preferiu silenciar, até posterior conhecimento maior, o que também fêz com relação a certos fonemas que certos hábitos teatrais supõem mais "portantes", quando não parece, entretanto, haver maior fundamento nisso do que uma questão de psicologia ou de deformação profissional, a que não será, quiçá, estranha certa influência pregressa de portuguêses e atual de estrangeiros nas realizações teatrais brasileiras contemporâneas.
A dialectologia estava presente, como dissemos acima, no Primeiro Congresso N acionai de Língua Cantada; mais presente estêve no Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro. E essa presença, no último caso, se marcou pela comunicação do professor Luís FILIPE LINDLEY CINTRA - que falou com a autoridade de quem é, hoje em dia, um dos maiores lingüistas portuguêses, não obstante sua juventude, e de quem é um dos inquiridores e responsáveis do Atlas, a ser breve publicado, Lingüístico da Península Ibérica; pela comunicação do professor I. S. RÉVAH1 a respeito da evolução da pronúncia do
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português, em Portugal e no Brasil, . do século XVI aos nossos dias; pela monografia do professor ANTÔNIO J. CHEDIAK sôbre o linguajar do Espraiado, localidade próxima a Três Corações, no sul de Minas; e - sem esgotar - pela modesta contribuição que expressamente preparei para o congresso, uma "tentativa de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita cariocá'.
Mas, decorrência dessa dupla presença em ambos os congressos, há urna desejada terceira presença, de corpo inteiro. ~ que foi aprovada, por unanimidade, urna resolução no sentido de que todos os esforços sejam empreendidos para que seja convocado, para setembro de 1958, em Pôrto Alegre, o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia e Etnografia. Da realização dêsse certame, sobretudo se preparado carinhosamente e com a necessária anterioridade, é de esperar um avanço ponderável nos estudos do nosso instrumento de comunicação. :f:sse avanço é já hoje imperativo - e ouso ainda aqui, apesar de já me haver alongado demasiadamente, expor-lhe as razões.
~ ponto pacífico - sobretudo para os que encaram os fatos sociais corno complexos de interações em que os homens são, não raro, agentes inconscientes .e pacientes conscientes (além dos combinatórios outros possíveis) - é ponto pacífico que das pelo menos três mil línguas que se falam à superfície da terra, mais de duas mil
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e oitocentas estão em franca crise de existência - isso sem falar nos seus dialetos, o que permitiria multiplicar o número das unidades por cinqüenta, provàvelmente. O passado e o presente literário (de certo valor geral para a humanidade) de não mais de quarenta línguas e o fato de que pouco mais de vinte são faladas por mais ·de dez milhões de indivíduos cada uma são, digamos, as coordenadas do futuro lingüístico da humanidade. Mas o imperativo da dinâmica lingüística humana é - ou parece veementemente - que tendemos para "um mundo só", em que os instrumentos de comun\<;ação sejam comuns a grandes extensões territoriais, demográficas e culturais, na medida em que progrida a interdependência econômica, material e moral dos homens de tôdas as latitudes e longitudes. Visto dêsse ângulo, o prurido nacional por uma política lingüística imperialista pouco poderia fazer. Mas o fato é que o ritmo de nossa progressão demográfica, a margem dessa progressão no nosso ecúmeno, cuja potencialidade atinge, segundo estimativas prudentíssimas, meio bilião e, segundo outras estimativas, mais de um bilião de indivíduos, a par com uma valorização muito expressiva do conteúdo de nossas obras literárias, que se diversificam em títulos e se ampliam na sua audiência -tudo isso garante para a língua portuguêsa, graças sobretudo ao Brasil, uma posição segura entre as grandes línguas futuras da humanidade.
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Não podendo antecipar em que sentido os homens de amanhã saberão lidar com o conhecimento do passado, mas na certeza de que o saberão melhor do que os homens do presente, não é um dever não apenas nacional - oficial e privado - · mas humano tudo fazer a fim de que os nossos descendentes não venham a lamentar a ignorância em que os deixamos de nossa realidade atual, sôbre um patrimônio tão importante quanto é a nossa língua comum?
(1956)
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE LlNGUA FALADA NO TEATRO
Como já é do conhecimento público, realizouse em setembro do ano passado, promovido pela Universidade da Bahia e no qufdro das comemo:rações do decenário de sua criação, o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, que visava, por iniciativa de diversas pessoas influentes dos meios teatrais, notadamente o múltiplo e onipresente em coisas de teatro ToMÁs SANTA RosA, cuja perda será sempre sentida nesse como em outros meios artísticos e profissionais, ao estabelecimento de um padrão de pronúncia que pudesse ser adotado de norte a sul, de leste a oeste do país, sem quebra de "ilusão da realidade".
Graças à operosidade do atual diretor geral d.a Biblioteca N acionai do Rio de Janeiro CElSO FERREmA DA CuNHA, e à adesão de um largo grupo de filólogos e lingüistas, graças à generosa visão da magnitude da tarefa que se tinha em vista :comprovada pela assistência contínua e inteligente do reitor magnífico da Universidade da Bahia, assim como pelos Ministérios, da Educação e Cultura e das Relações Exteriores, nas pessoas
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dos ministros CLÓVIS SALGADO e J osf CARLos l>E MACEDO SoARES, o congresso pôde realizar-se em tempo assaz reduzido, contando com o concurso de cêrca de oitenta congressistas, dentre os quais um grupo notável de estrangeiros, nominalmente os professôres franceses PIERRE FoucuÉ, da Sorbona, e diretor do seu Instituto de Fonética, LÉON BoURDON, também da Sorbona, e diretor do Instituto de Estudos Luso-Brasileiros da veneranda Universidade de Paris, I. S. RÉvAH, ÜCTAVIAN NANnrus, MAURICE MÔLI-IO; dos portuguêses, ÁLvARo JúLIO DA CosTA PIMPÃo, da Universidade de Coimbra, e Luis FILIPE LINDLEY CINTRA, da de Lisboa; do espanhol EuGENIO AsENSIO, do Instituto Espanhol de Portugal, do uruguaio W ALTER RELA.
As suas atividades, realizadas na cidade do Salvador, foram particularmente fecundas, mercê de um trabalho intensivo que se alongou por oito dias, com sessões matutinas, vespertinas e noturnas, em média de três por dia, havendo-os mesmo com cinco.
A finalidade fundamental do congresso foi realizada, com notável unidade, senão unanimidade, de vistas, e são hoje as normas do Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, que deverão ser tornadas públicas, em breve, com os seus Anais, cuja preparação prossegue a passos rápidos, malgra,do as muitas dificuldades gráficas que se opõem a isso, mas que serão superadas
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pela eficiência técnica de nossa Imprensa Nacional, cujos gráficos estão dispostos a tudo fazer por apresentar trabalho de alto padrão. Com a publicação dos Anais em ampla tiragem e · das normas em separata de número maior de exemplares, o último ato do congresso terá sido cumprido. Aos homens de teatro brasileiros caberá, depois, ver, na prática, em que grau e até que ponto poderão e deverão seguir as normas preconizadas, normas que se caracterizam, precisamente, pela lflmpla flexibilidade concedida aos atôres em bôca de cena na realização fônica dos seus papéis, proscrevendo, entretanto, quantos traços de nossas pronúncias regionais podem ser, sem vacilação, reputados rusticismos e regionalismos de cursos restrito ou gravemente atentários da tradição fônica da língua.
Foram, aliás, êsses os grandes problemas discutidos para a fixação das normas, com traba~ lhos sôbre a história da pronúncia do pmtuguês e sôbre a sua dialectologia. f: assim que o professor Luís FILIPE LINDLEY CINTRA - que falou com a autoridade de quem é hoje em dia um dos maiores lingüistas portuguêses e de quem é um dos inquiridores e responsáveis do Atlas Lingüístico da Península Ibérica - pôde apresentar as primícias de sua obra dialectológica ligada a êsse Atlas; o professor I. S. RÉvAH, que antecipou os resultados de seu esh1do sôbre a evolução da
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pronúncia do português, em Portugal e no Brasil, do século XVI aos nossos dias; do professor .ANTÔNIO J. CHEDIAK, que forneceu uma monografia sôbre um falar brasileiro do sul de Minas, assim ·como uma contribuição minha, intitulada "tentativa de descrição do sistema fonético do português culto na área dita cariocà'.
Com a publicação dos Anais, dissemos, estará cumprido o último ato do congresso, mas dois votos deverão ser objeto de realização em futuro próximo: um é o vocabulário ortoépico da língua portuguêsa segundo o padrão brasileiro, e outro é o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia.
O primeiro dêsses votos - ao que estou informado - é já objeto de realização por parte de um grupo de congressistas, com o que disporão os centros de ensino de todo o Brasil assim como quaisquer cidadãos que façam uso da língua instrumental como profissionalmente - atôres, homens do rádio, da televisão, professôres, parlamentares - de um livro que lhes poderá dirimir quantas dúvidas possam ter a respeito da boa pronúncia brasileira.
O segundo dêsses votos, de outro lado, já está também sendo encarado com muita seriedade, sendo de esperar que os podêres públicos dêem o melhor de sua atenção e apoio a fim de que se possa reunir em Pôrto Alegre, sob o patrocínio da Universidade do Rio Grande do Sul, que, dessa
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forma, dará, com sua congênere da Bahia, uma lição de como cada universidade brasileira poderá colaborar ao vivo na solução de nossos problemas culturais, além da tarefa de formação de profissionais idôneos e capazes.
( 1957)
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DIALECTOLOGIA E ETNOGRAFIA
Vai o Brasil aos poucos criando a aparelhagem científica necessária para enfrentar os problemas fundamentais de seu desenvolvimento. Além de centros já mundialmente conhecidos de pesquisa, como o Instituto Oswaldo Cruz, de Manguinhos, o Museu Nacional, o Museu Goeldi, o Instituto Agronômico do Norte e muitos outros, criou-se em boa hora o Conselho N acionai de Pesquisas, com diversas ramificações - em que os estudos físicos têm predominância justificável, embora imperdoável, se exclusiva. Estamos, porém, na expectativa de que êsse importante órgão se decida a enveredar por outros campos do conhecimento, nominalmente o das chamadas ciências sociais. ·
Aqui, porém, no campo das ciências sociais, parece lavrar entre nós um cisma, que deve, desde o início, ser contra-regrado, sob pena de em breve cairmos numa disputa bizantina, consistente em saber se certas disciplinas e o estudo e pesquisas correspondentes são "humanidades" ou "ciências sociais". Sem mêdo de incidirmos em empirismo ou ecletismo, ou mesmo em pragmatismo imediatista, parece bastar-nos o conceito de que a
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realidade física e social brasileira, de sua base às suas formas mais elaboradas e "desinteressadas" ou "gratuitas", deve ser objetivamente estudada e aprofundada. A soma de conhecimentos que daí advier será necessàriamerite útil ao desenvolvimento e ao progresso brasileiro. E êste é o ponto que deve ser sublinhado, a fim de que se integre na mentalidade do brasileiro comum, que verá com respeito e dará o devido estímulo a tôdas as formas de conhecimento.
Não é, destarte, sem certo receio que vemos - num movimento pendular compreensível mas injustificável - certos esforços no sentido de criar a mentalidade factual física entre n6s, com empenho visível de erradicar de nosso meio a herança de uma tradição humanista. Esta deve ser alimentada e incrementada, impregnando-se dos avanços modernos e científicos que a têm caracterizado no mundo contemporâneo, nos principais centros culturais da humanidade.
Agora mesmo o ]omal do Comé1·cio acolheu em suas páginas, nas edições de 16 e de 17 de abril corrente, com o realce que merecia, o noticiário relativo à criação do Centro Latino-Americano de Pesquisas de Ciências Sociais, de âmbito intergovernamental, cuja sede será o Rio de Janeiro, centro que se complementa com a Faculdade de Ciências Sociais, de integração semelhante, que terá por sede a capital chilena, Santiago. Sem querermos nem remotamente antecipar-nos
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quanto ao programa de pesquisas que se propõe a levar a cabo o centro referido, cujos esforços nos merecerão a reverência devida, ocorre-nos, contudo, esperar que os aspectos fundamentais do problema lingüístico brasileiro sejam nêle levados em consideração, e em alta consideração. E, dado o caráter latino-americano do mesmo, ocioso é frisar que deveria inserir-se na linha de suas cogitações não apenas o problema lingüístico brasileiro, mas o latino-americano em geral, com as características nacionais ou regionais específicas da extensa área geográfica dominada pelo conceito genérico do latino-americano.
~ que o estudo científico do instrumento de comunicação - no nosso caso concreto, a língua portuguêsa feiçoada às nossas características nareionais - está cada vez mais na dependência de pesquisas de campo, graças às quais se poderá levar a bom têrmo, num futuro que esperamos !não seja remoto, o Atlas Lingüístico do Brasil, tmelhor, o Atlas Dialectol6gico Brasileiro.
Embora o ecúmeno brasileiro seja dos menos -diferenciados do mundo do ponto de vista lingüístico, malgrado a enorme miscigenação que :nêle se operou de etnias e de línguas, essa mera observação não basta ao conhecimento profundo que desejamos de nossa realidade atual e, decorJrentemente, passada, isto é, histórica. Cumpre-nos penetrar o processo de nossa unificação lingüísti-
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ca, compreendê-lo em sua essência, devassá-lo na sua intimidade, no passado e no presente. E que a língua portuguêsa, a longo prazo, se revelou o _instrumento (fique bem claro, instrumento como instrumento) fundamental de nossa unificação. E êsse caráter unificador, que exerceu no passado, exerce-o com mais razão no presente e o fará .mais ainda no futuro. O estudo aprofundado dêsse instrumento é pois indispensável para essa unidade e um meio para reafirmá-la, estruturá-la, consolidá-la e mesmo universalizá-la (em têrmos, bem entendido, pau-brasileiros e não imperialistas ) .
E noção que se sedimenta cada vez m;J.is em lingüística e em psicologia que uma língua reflete, no seu sistema de sistemas e na progressão dêste, o progressivo avanço da psique coletiva no conhecimento da realidade objetiva. Um particular põe de manifesto, imediatamente, êsse fenômeno: é o da expansão quantitativa, para não dizermos também qualitativa, do vocabulário, podendo-se quase estabelecer uma relação imediata entre o grau de universalização de uma Jíngua e o acervo de seu vocabulário, razão por que, não sem motivo, é hoje em dia, ainda, a língua inglêsa a que revela maior número de palavras.
Admitido o pressuposto de que uma língua é tanto mais cabal para seus fins instrumentais de
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comunicação e de expressão quanto mais rica fôr de recursos, não é difícil admitir uma noção complementar - a de que o seu domínio por um indivíduo, qualquer que seja êle, c01-responde via de regra a uma soma sensivelmente maior de elementos psíquicos com que possa antenar-se com o seu meio vital. Decorrência como que natural dessas premissas é a convicção de que o conhecimento aprofundado de uma língua comum nacional é um dos fatôres fundamentais da valorização de cada indivíduo da coletividade. Dentro dessa ordem de considerações, o conhecimento exaustivo de uma língua naquelas condições se insere programàticamente mesmo como um dos deveres do Estado e dos podêres públicos -quando êstes efetivamente se empenham em realizar obra de alcance nacional.
O estudo de uma língua, porém, não se faz já hoje em dia dentro dos conceitos gramaticalizados do passado, com as noções por vêzes mandarinas de correção e êrro, sancionadas pelo prestígio de uma côrte ou de uma academia ... Com o advento da lingüística como ciência e, dentro desta, da dialectologia a complementar a noção de historicidade que já penetrara o seu método, ficou patente que o conhecimento por assim dizer integral de uma língua não é possível senão quando essa língua é objeto de uma penetração científica na sua evolução no tempo e na
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sua diferenciação no espaço. Mas essa penetração científica depende, por sua vez, da colateralidade e reciprocidade do esh1do da língua no tempo e no espaço, de tal modo que um aspecto não se desenvolve satisfatoriamente senão quando o outro aspecto apresenta um desenvolvimento paralelo.
Mas se- um- dos aspectos dêsse estudo se pôde realizar graças à pesquisa individual ou à de equipe em centros de estudo localizados nos grandes meios urbanos, o outro aspecto, o dialectológico, pressupõe condições especialíssimas de realização, em que avultam não só as técnicas profissionais dos pesquisadores nomádicos, mas também os meios materiais para a coleta dos dados. Complementarmente, a pesquisa dialectológica foi positivando uma intuição comum aos homens: a de que, em extensas secções do vocabulário de uma língua, o estudo das palavras se tornava cerebrino e falso se desacompanhado qo estudo das coisas que designavam: criava-se, dêsse modo, o método adequado dos W orter und Sachen, como o designaram os seus pioneiros, o das "palavras e coisas", como já está generalizado em língua portuguêsa. Foi o caminho automático de enlace da pesquisa dialectológica com a pesquisa etnográfica, já hoje não se concebendo uma sem a outra, quando em trabalho de campü.
Se em certos particulares do estudo da nossa língua comum o Brasil pode gabar-se de apre-
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sentar resultados tão altos quanto os de Portugal, no setor importantíssimo da dialectologia e da etnografia Portugal está na vanguarda, já agora, o que lhe irá eventualmente permitir retomar a hegemonia dêsses estudos. Entretanto, Portugal mesmo, por seus mais eminentes lingüistas e etnógrafos, reconhece que, na dinâmica dos estudos presentes, é impossível haver o aprofundamento do objeto do conhecimento com assimetria regional dêsse conhecimento.
Com a próxima publicação do Atlas Lingüístico da Península Ibérica, Portugal e também a Espanha completam o levantamento dialectológico e etnográfico da Europa, de vez que eram os dois últimos países de que se esperava, naquele continente, uma pesquisa (e sua publicação) de tal natureza. Cumpriria, ao ensejo, lembrar que a França, por exemplo, já encetou o seu segundo Atlas, e que nos Estados Unidos da América, na União Soviética, em suma, até mesmo em valriados pontos outros da Ásia e da África e da Oceania, vão avançadas pesquisas de tal teor ou <Os preparativos que as possibilitem não só com segurança, mas também para breve tempo.
Com respeito especificamente ao português rdo Brasil, ocorreria lembrar que de há muito se vem fazendo sentir a necessidade imperativa de uma pesquisa exaustiva e exata do nosso domínio dialectológico e etnográfico. Com efeito, o Pri-
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meiro Congresso de Língua Nacional Cantada, malgrado seu objetivo aparentemente limitado, já em 1936, em São Paulo, se viu como que impossibilitado de chegar a conclusões definitivas sôbre tão urgente problema de normalização, por falta de levantamentos e pesquisas dialetais idôneos; e o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, agora mesmo, em setembro de 1956, em Salvador, aprovava moção unânime em que urgia a convocação de um Prilllleiro Congresso Brasileiro de Dialectologia, apelando veementemente para os podêres públi-cos no sentido de encorajarem e possibilitarem a realização dêsse certame, verdadeira encruzilhada J:>ara as pesquisas científicas em matéria de lingüística e etnografia no Brasil. Com isso não :se fazia senão coincidir com um voto do Congresso Internacional de Lingüistas, reunido na Haia, em 1928, em que se instou junto ao govêrno tbrasileiro, dentre outros, para que tomasse a si ·a tarefa de patrocinar o empreendimento dos trabalhos necessários ao Atlas Lingüístico do Brasil, para o estabelecimento do Atlas Lingüístico do Mundo. E, embora tardiamente, o nosso govêrno aceitou inscrever como um dos objetivos perma!Ilentes do Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa a organização do nosso atlas lingüístico, 1Sem, porém, propiciar meios materiais para tão avultada emprêsa.
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Pode-se, nesta conformidade, asseverar que, se há aí um aspecto relevante para o conhecimento humano em geral, é êle ainda mais urgente no que se refere a nós mesmos, brasileiros, que teremos assim a chave de um perfeito conhecimento de nossa língua na sua feição típica brasileira e nas modalidades regionais, locais, urbanas ou rurais, chave, também, para uma política lingüística consciente e lúcida quanto aos múltiplos problemas de expansão cultural, de unificação nacional -e de valorização político-social de nossa coletividade.
Para os espíritos sequiosos de resultados objetivamente mensuráveis, semelhante pesquisa e sua descrição têm vários outros alcances, alguns dos quais poderemos apenas aflorar aqui. Denh·e êsses, merece referência em primeiro plano o quadro da vida agrária, na sua autenticidade essencial, quadro graças ao qual as tarefas de !l'acionaHzação do nosso meio rural, através de uma política e de uma legislação agrária que consubstanciem a reforma de que tanto necessita o Brasil no caminho do seu desen~olvimento, se poderá levar a cabo com conhecimento das particularidades institucionais, instrumentais, morais, afetivas e sentimentais das diversas regiões brasileiras, com seus usos e costumes, ora favoráveis, ora desfavoráveis a tais e quais medidas que teOricamente forem preconizadas para a melhor execução da reforma agrária.
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Nas condições objetivas do Brasil contem· porâneo, o rádio, o cinema, a televisão, o avião vão sendo fatôres de precipitação da nossa unificação lingüística. Nesse ponto, no Brasil, assistimos, pioneiramente, ao processo geral que se verifica na humanidade contemporânea tôda inteira, de suceder, a uma infinidade de línguas altamente dialectalizadas, umas poucas línguas de cultura, com o domínio de amplas áreas geográficas densamente povoadas, línguas dentre as quais (mas sem esgotar a relação) se ressaltam, inelutàvelmente, por um futuro mais ou menos longo, o inglês, o espanhol, o chinês, o russo, o árabe e o português, êste graças essencialmente ao potencial brasileiro - de que não é lícito duvidar, por maiores que possam ser as restrições cépticas. No caso concreto brasileiro, as referências dialectais esparsas de algumas décadas atrás já não são, muitas vêzes, confirmadas pela observação hodierna, o que reflete bem quanto se acelera a unificação referida. Isso, que é obviamente um bem no sentido de nossa unidade, é contudo um fenômeno de transcendência, que deve ser urgentemente focalizado e caracterizado na sua realidade viva em mudança, a fim de que o conhecimento desta nossa língua comum que se forja dia a dia dentro de nossas fronteiras não venha a apresentar de futuro enigmas que jamais possamos elucidar. E que os fatos lingüísticos, quaisquer que sejam êles, devem repercutir no
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sistema de sistemas que é uma língua, criando, se não caracterizados agora, sobretudo para uma língua comum nacional de cultura, futuras dificuldades instransponíveis à tarefa científica de ,sua penetração objetiva. Estamos assistindo, na dinâmica social brasileira, a complexos fenômenos lingüísticos que continuam ou subvertem tendências profundas da deriva ou das derivas da língua portuguêsa no Brasil. Alguns dêsses fenômenos se vêm revelando - digamos assim - recessivos, isto é, contra-regráveis pela disseminação da cultura; outros, porém, parecem dominantes e tendem a incorporar-se em definitivo ao sistema de sistemas do português do Brasil. Perguntar-se-á, então, com tôda a procedência: como .'Vislumbrar, com a necessária antecipação, uns e outros, a fim de que possamos preconizar uma política lingüística consciente no plano da normalização, da padronização, da gramaticalização, do ensino, da correção das pronúncias, da ortologia, da logoaudiometria, senão mercê das revelações e ensinamentos que se depreenderão do nosso Atlas Lingüístico e Etnográfico? A realidade nua e crua é que, malgrado o número ponderável de estudos gramaticais e filológicos que já podemos ostentar, não sabemos efetivamente o que é e como é a língua portuguêsa, sobretudo no Brasil, ·e assistimos estarrecidos ao divórcio crescente entre a disciplina gramatical canônica e a criação literária viva.
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A lição depreendida pelos dois congressos brasileiros apontados linhas acima - o Primeiro Congresso de Língua Nacional Cantada, realizado em São Paulo, em 1936, e o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, em Salvador, em setembro do ano passado -autoriza-nos a supor que nenhum caminho é mais indicado para o levantamento colegiado dos problemas que se relacionam com a dialectologia e a etnografia brasileiras do que o da realização de um congresso específico naqueles mesmos lmoldes. Nesse sentido, pois, o Jornal do Comércio não vacila em recomendar ao exame das autoridades brasileiras, legislativas e executivas, a oportunidade de corresponderem ao voto proferido unânimemente no segundo dos dois congressos referidos, a saber, o de patrocinarem, veementemente, a realização de um Primeiro Congresso Brasileiro de Diahictologia e Etnografia. A idéia, que já está lançada desde então, está fecundando a mente e o devotamento de diversos estudiosos, havendo sido escolhida, inclusive, a cidade de Pôrto Alegre para a sua realização. Tenta-se, no IJllOmento, articulá-lo para setembro de 1958. O govêrno brasileiro agiria com funda consciência dos problemas culturais e científicos nacionais se não vacilasse em desde já emprestar seu decidido apoio àquela realização. ~ que, pela experiência anterior, com um mínimo de despesas, se pode proceder ao congraçamento de estudiosos estran-
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geiros e nacionais, com a representação universalista necessária a tais estudos, em cuja oportunidade se poderá proceder à discussão e exame não apenas do problema metodológico, mas também à análise e interpretação de achegas preciosas de vária natureza que sem dúvida serão trazidas ao plenário de tal congresso. A experiência anterior, ademais, ao contrário do que muito espírito derrotista poderia alegar, revela que o estudioso brasileiro já está possuído da mentalidade colegiada indispensável para a discussão e o planejamento de uma tarefa coletiva de tal envergadura.
Seria, outrossim, num congresso dêsse tipo que poderiam ser examinadas as possibilidades de a pesquisa em causa ser levada a têrmo com a colaboração de entidades e organizações nacionais que funcionam efetivamente, tal como, entre outras, mas sem querer esgotar nem de leve a lista, a Campanha Nacional de Mobilização contra o Analfabetismo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a estrutura dos corpos do exército nacional e de um modo geral das nossas fôrças armadas, bem como da Igréja, assim como de entidades privadas várias cujo concurso poderia ser pôsto a serviço de um tentame de verdadeiro alcance nacional.
O Jornal do Comé1'cio, ao lançar êste apêlo por suas colunas, abre-as também à discussão dos interessados, que poderão trazer seu ponto de vista, favorável ou desfavorável. E se reserva,
iUGESTÔES PARA U}.{A POLÍTICA DA Lf.NGUA 51
outrossim, a oportunidade de voltar à questão, para novos esclarecimentos, reiterando aos podêres públicos sua convicção de que não se pode dilapidar o ensejo que ora se oferece de realizar o primeiro "retrato do Brasil", em corpo inteiro, real, sem retoques, sem ilusões, mas retrato que poderá dar a medida de quanto é necessário para a vitalização do retratado - que é apenas isto: o Brasil.
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O Jornal do Com-ércio- empenhado de forma construtiva em debater aspectos da problemática cultural brasileira e dêles participar - encetou na sua edição dominical de 28 de abril passado, sob o título "Dialectologia e Etnografia", um inquérito em que pôs em evidência não só a oportunidade de se enfrentarem entre nós as merlidas preliminares ao levantamento de nosso Atlas Lingüístico e Etnográfico, mas também a conveniência de essas medidas serem levadas a bom têrmo no mais curto prazo possível.
Diversas condições fundamentais já se acham preenchidas para que se possa coroar de bom êxito êsse importante tentame: contamos, já nesta altura de nosso desenvolvimento histórico, com maturidade cultural e compreensão coletiva para o alcance da tarefa; dispomos de diversas organizações de âmbito e estrutura federativa que, funcionando eficazmente, podem emprestar sua
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por fim mas não só, o relativo atraso material, moral, intelectt,~al e instrumental de grande parte das populações dessa extensão territorial. Ora, enquanto a pesquisa dialectológica e etnográfica nos principais países europeus se fêz na base auditiva, por meio de um só inquiridor-coletor, no máximo dois, pelo menos para grandes áreas, às vêzes para um país só - essa metodologia se manifesta, de pronto, absolutamente inadequada às condições brasileiras, ainda que os inquiridorescoletores, de ouvidos bitolados, coordenados entre si na suas percepções e experimentados num programa-guia fixo nos seus fins e meios, se dedicassem apenas a uma região natural ou a uma unidade da federação. A realidade é que dentro da concepção do inquiridor-coletor único não poderemos, tão cedo e talvez nunca, desincumbirnos dêsse dever cultural nacional e humano. Entretanto, a ninguém escapa que a conveniência de um só inquiridor-coletor decorria principalmente da necessidade de uma só percepção auditiva como instrumento de aferição: era, pois, sobretudo o problema de um rigoroso estabelecimento de isoglossas que determinava a coleta fonética por um só inquiridor. Com as técnicamodernas de gravação por meio de aparelhagem portátil êsse aspecto pode, a rigor, ser considerado superado, pois a avaliação e caracterização do& fonemas poderá ser, com muito maior rigor, feita no centro coordenador da pesquisa dialectológica
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e etnográfica. Para os demais aspectos da coleta, o que parece relevantemente importar é o questionário lingüístico-etnográfico, que possa orientar, com precisão mas com flexibilidade também, o inquiridor, os inquiridores, nos diversos pontos do território nacional
A experiência de Portugal, no particular, é bem ilustrativa. S6 em data recente pôde o professor Luís FILIPE LINDLEY CINTRA dar por terminada a sua tarefa de coletar os elementos para o Atlas Lingüístico da Península Ibérica no que toca aos dialectos portuguêses, após anos contínuos de esforços. Mas o professor MANUEL DE PAIVA BoLÉo dá-nos, eventualmente, uma direção prospectiva da tarefa, por meio do inquérito por correspondência, inquérito que - fique claro desde logo - não pode dar senão elementos indicativos, jamais conclusivos, precisos e exaustivos. Cogitase, porém, com todo o cabimento do recurso a uma modalidade afim do inquérito por correspondência para fins prospectivos, como preliminar técnica para o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia e Etnografia. O professor PAIVA BoLÉo recorreu, essencialmente, para o seu inquérito aos integrantes do clero português, como destinatários-inforrnadores. Nas nossas condições, fôrça é reconhecer que o recurso ao clero do Brasil não é o mais indicado - pelo menos exclusivamente - pelo simples fato de que é êle muito pouco numeroso na extensão do nosso território e
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uma fração ponderável de seus integrantes é constituída de estrangeiros, vale dizer, de aloglotas - o que de pronto invalida a legitimidade de tais informadores. O informador ide~l - a presumir a possibilidade de um só, pois a tendência atual é reconhecer a conveniência de pelo menos dois, um do sexo masculino e outro do sexo feminino, quando não de mais, segundo as idades também e as profissões - o informador ideal deve ser natural da localidade sôbre a qual informa e, se possível, deve também jamais ter estado fora do seu torrão natal, a fim de que suas informações sejam "puras", não miscigenadas, tanto quanto aos fatos lingüísticos quanto aos etnográficos; idealmente também deve ser pouco culturalizado, se possível iletrado, para que a "segunda natureza" da mensagem escrita não deforme a autenticidade do seu depoimento.
O professor SERAFIM DA SILvA N~rro - cate.drático de língua portuguêsa e de filologia românica da Pontifícia Universidade Católica e filólogo patrício conhecido por seus trabalhos, vários dos quais voltados para o nosso problema .dialectológico -, depondo sôbre o problema da formação do inquiridor-coletor, propende a reconhecer que a pesquisa dialectológica-etnográfica ideal deveria ser feita, para a área mais extensa possível com iguais características lingüísticas básicas, para uma unidade lingüística nacional em suma, por um só inquiridor, que deveria ter
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excepcionais qualidades pessoais e de formação. Reconhece, porém, que o inquiridor-coletor ideal não pode ser usado na problemática dialectológico-etnográfica brasileira, ainda que dispondo de meios instrumentais e materiais os mais perfeitos para a sua coleta, tais como aparelhos de gravação e um questionário-guia rico de sugestões e lembretes. Um homem nessas condições deveria, a par de tais características e recursos, ter uma longevidade mínima de. . . duzentos anos. Decorrentemente, aceita como inevitável a necessidade de procedermos à pesquisa de campo no Brasil por meio de muitas dezenas de inquiridores-coletores, se satisfeitas certas garantias de unificação de meios e fins. A singularidade aceita que se oponha a multiplicidade, com o fim de compensar as eventuais deficiências decorrentes das diferenças pessoais dos inquiridores-coletores pela massa de informações obtidas. E preconiza, destarte, depois de organizado um questionário mínimo prévio, o adestramento maciço de informadores-inquiridores. Advogando, de outro lado, a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia e Etnografia para setembro de 1958, em Pôrto Alegre, sugere, entretanto, que se proceda à realização de um colóquio - ou vários, consoante forem os resultados obtidos - nesta capital, lembrando nomes que poderiam participar dêsse debate prévio de forma fecunda e útil, sem pretensões a esgotar lista e desculpando-se de
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eventual omissão, por ventura até imperdoável. E os nomes que lhe ocorrem são os dos senhores CELSo FERREIRA DA CuNHA, SiLVIo ELIA, MANUEL DIEGUES JúNIOR, EDISON CARNEIRO, .ARTUR CÉSAR FERREIRA REis, DARCI RIBEIRO, Luis .AGUIAR DA CosTA PINTO, além de representantes de organizações culturais como o I. B. G. E., a Biblioteca Central do Exército, o Museu Nacional, o Museu do 1ndio, o · Serviço N acionai de Proteção aos índios, a Casa de Rui Barbosa, as academias de filologia e de letras.
Aproxima-se o dia do nosso próximo recenseamento decenaJ, que deverá ocorrer, se tudo fôr de acôrdo com os planos, a 1.0 de julho de 1960. Iremos, de novo, ter o levantamento individuado de certos aspectos característicos de nossa civilização. De novo, iremos ter dados relevantes para o estudo de nossa demografia, das suas grandes tendências, de sua expansão, de suas recessões e de suas conexões com o nosso desenvolvimento econômico. De novo, iremos ter dados expressivos sôbre o desenvolvimento de nossa produção e consumo, sôbre o desenvolvimento de nossas diversas áreas ecumênicas. De novo, enfim, iremos aparelhar-nos daqueles índices que podem permitir, aos Estados modernos, uma política de
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desenvolvimento consentânea com os grandes interêsses coletivos.
Na medida em que um Estado se interessa, de fato, por suas populações; na medida em que êsse interêsse se diversifica, indo além da mera preocupação de polícia (no sentido restrito de aparelho de contenção), para o de justiça e de amparo e estímulo social e cultural; na medida, em suma, em · que o Estado moderno procura conseguir de cada membro do corpo social um status que seja consentâneo com o máximo rendimento de suas potencialidades humanas, para sua felicidade individual e para sua melhor eficácia dentro do mesmo corpo social, na medida disso tudo o aparelho de suas estatísticas se torna mais amplo, diversificado também, representativo e respeculativo. Em breve, s·ob as rubricas clássicas de estatística demográgica, econômica e social, o que se esconde é uma omnímoda indagação, que vai do indivíduo para a coletividade, do nascituro para o morto, do zero econômico individual para a emprêsa monopolística, do fato instrumental puro (como a língua) para o conteúdo aparentemente puro (!) como o crime passional, das áreas assimetricamente desenvolvidas mas em atraso para as ditas hi.pertrofiadas no seu desenvolvimento.
As considerações anteriores visam, é claro, dar uma idéia sumária de que aqui no Brasil, também, nossas estatísticas estão evoluindo dentro
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daquele esquema. De fato, a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística é, no respeito, o marco miliar fundamental da relativa modernidade do nosso Estado, ou, pelo menos, oa relativa capacidade de nosso Estado de modernizar-se. E o mesmo Instituto vem fazendo obra sob muitíssimos aspectos louvável. Se, por vêze:s, os dados não são de tôda a confiança, isso deve ser ]evado antes à conta do atraso do meio, pms uma relação e}j:iste inalienável: os dados estatístl· cós são tanto mais exatos, potencialmente, quanto mais desenvolvidos técnica, científica, moral e culturalmente é o meio de que promanam; o Instituto, por vêzes, será vítima da incompreensão de certos ·manipuladores dos seus dados, mas serão antes êsses manipuladores críticos os alienados do meio - indivíduos que, nostàlgicamente, vivem meios que não o brasileiro.
A inter-relação dialética entre a exatidão do~ dados estatísticos e o avanço do meio de que são expressão é, assim, ponto pacífico, pois de fato a exatidão aumenta na medida em que o meio avança e o meio, por sua vez, pode avançar na medida em que se faça a co,rreta aplicação prática dos dados obtidos. ~ que, com efeito, os dados estatísticos e tôdas as suas configurações tabelares, percentuais, relacionais e o que mais fôr só tem valor como elementos para, como dados para, como ser-para.
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As características da pesquisa estatística no Brasil, de tôdas as formas (demográficas, econômicas, e financeiras, culturais, sociais), são fundamentalmente alienígenas. f: que, por ora, não tivemos ainda a coragem de enfrentar a problemática brasileira em têrmos de o "petróleo é nosso" - têrmos que, apesar da aparência pilhérica, são imperativos, a esta altura do nosso desenvolvimento. f: que, nas nossas condições sociais, devemos obter dados daquelas formas que possam permitir uma lúcida política social - mesmo que esta seja, para certas classes, suicidas. A tecnologia em que vivemos, no Estado em que vivemos, não é, necessàriamente, um despistamento de classe. Pode-o, está claro, ser, mas pode permitir, também, um processo autogênico em que, a partir de certas fases, outras tenham que necessàriamente ser atingidas. f: o que se verifica, por exemplo, com o empastamento já atingido, para certo tipo de problema muito nosso (qual é o da educação), por certos estudos com êle relacionados, estudos que, apesar de tudo, foram desenvolvidos ao amparo e aós cuidados do próprio Estado.
As razões determinantes da necessidade de que cada comunidade lingüística possa ter sua fisionomia caracterizada exaustivamente são de vária natureza. A técnica de apreensão dessa
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fisionomia lingüística é chamada dialectologia, cujos resultados só se tornam válidos se expostos em forma de atlas. O atlas lingüístico de uma comunidade lingüística é, por conseguinte, aquêle registro mercê do qual todos os aspectos e particularidades dessa comunidade lingüística possam ser descritos, sistematizados, analisados. Haverá, entretanto, nessa tarefa, alguma vantagem, algum alcance de índole prática, operativa - ou se trata de. mera erudição estéril, sem nenhum valor imediato?
E ponto pacífico que o psiquismo humano só se alça à categoria de fenômeno sui generis dentro da evolução natural a partir do momento em que, 'O animal, hominizando-se, é capaz de sair da estreita esfera do espaço vital limitado às sensações e consegue entrar nos atos de abstração, graças à qual todo o conhecimento deixa de ser empírico e pode aspirar às formas sistemáticas, generalizaclaras e organizadoras. Essa hominização é marcada pelo advento da linguagem, que é a um tempo expressão e instrumento daquela capacidade psíquica de abstração. Por êsse motivo, o fenômeno lingüístico se eleva à categoria de fonte e de meio de conhecimento, graças ao qual a tradição, a transmissão de saber e a ação humana se podem fazer atuantes e efetivos. Se a linguagem é isso, é, porém, algo mais ainda do que ~sso, do ponto de vista das comunidades nacionalmente organizadas. Uma comunidade nacional -
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salvo os casos incidentais de multilingüismo intra limitibus (que terá sido não um fator favorável à unidade nacional, antes terá sido um fator desfavorável, apesar do qual a unidade nacional se pôde forjar, mercê de sacrifícios coletivos maiores) - uma comunidade nacional é tanto mais efetiva, tanto mais consolidada, tanto mais estável e tanto mais capaz de progresso, quanto maiores características de unidade falada e escrita - vale dizer, também, pensada - apresentar. O fenômeno do Estado, como elemento unificador por excelência, como instrumento de interêsses comuns que se consolidam, tem por conseguinte que se basear sempre na possibilidade de unificação lingüística, como instrumento eficaz de sua ação. As línguas, entretanto, desde que expostas às suas 'tendências internas pura e simplesmente, não tendem à unificação, senão que à diferenciação.
~ por êsse motivo fundamental, pois, que na política nacional de todos os Estados conscientes de seus fins se inscreve como uma das diretrizes fundamentais . de sua existência a consecução de uma língua comum nacional - o que se consegue através da intensiva culturalização dos seus nacionais. Essa culturalização, entretanto, no passado se podia exercer graças ao poder coercitivo do centro (mesmo que periférico) político, ou reconômico, ou cultural. A vocação democrática das estruturas estatais modernas não pode, porém, exercer-se coercitivamente sôbre as regiões lin-
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güísticas de tendências diferenciadoras, de tendências eventualmente emancipadoras. Tem, ao .contrário, que fundar-se em interêsses comuns que a diferenciem das demais unidades nacionais lingülsticamente caracterizadas. Só mercê dessa unidade nacional lingülsticamente caracterizada é que se poderá entrar na concorrência internacional com vistas a um lugar ao sol da humanidade presente e futura, para a qual, com visos de tôda possibilidade, se prevêem umas poucas .línguas comuns, que sotoporão um sem número de línguas politicamente menos estáveis.
Urge, destarte, que o Brasil enverede pelo caminho dos estudos objetivos de suas diferenças dialectais, a fim de que se possa não apenas cuidar de sua unidade lingüística, para que não se lhe agrave a diferenciação e para que se consolide sua unidade. Uma política lingüística dessa natureza tem que ser feita na base do conhecimento pleno da realidade lingüística. ~ com igual pensamento que todos os Estados modernos vêm não apenas aceitando os estudos dialectológicos, mas estimulando-os e amparando-os. ~ que, ademais de metodologia de conhecimento da natureza humana na sua conexão com o psiquismo humano, a dialectologia é, também, o meio graças aos quais as linhas da política lingüística podem ser realistamente seguidas, sem coerções mais violentas e sem eleições de padrões lingüísticos. arbitrários. Os padrões lingüísticos arbitrários,
SUGESTÕES PARA UMA POL TICA DA LÍNGUA 65
precisamente porque arbitrários, tendem a divorciar progressivamente as camadas falantes das camadas letradas ou culturalizadas, divórcio que é obstáculo para a disseminação da cultura, obstáculo para a unidade nacional, obstáculo para a ação concertada e coerente das coletividades nacionais, obstáculo, enfim, ao progresso nacional.
Precisamente porque a caracterização nacional depende tão estreitamente de sua fisionomia lingüística, a dialectologia é, hoje em dia, uma técnica de conhecimento que não se exaure apenas nos limites de uma nação, com seu território. Aspira à universalidade, para melhor entender as diferentes nacionalidades, as vocações culturais extranacionais e mesmo humanas, indiscriminadamente. Decorrência dêsse conceito firmado sem a menor sombra de dúvida no espírito das coletividades cultas do mundo inteiro, a dialectologia é hoje em dia campo de ação decidida de todos os Raíses interessados em subsistir como unidade nacional do fuhuo, qualquer que seja êsse futuro. Por isso, é de ver que a Europa tôda inteira, grandes seções do mundo asiático, africano e mesmo oceânico podem orgulhar-se de possuir sua caracterização lingüística em atlas próprios. No parti~ular, a América latina é um dos pontos mais retardatários do mundo e, dentro da América latina, o Brasil, pela complexidade que reveste a pesquisa dialectológica na extensão do seu imenso território.
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A técnica de pesquisa dialectológica supõe a coleta das características lingüísticas de um númeil'O de localidades - quantas mais, melhor -, características fonéticas, morfológicas, sintácticas, vocabulares, paremiológicas. Mercê da coleta dessas características, que podem ascender a milhares, senão que a dezenas de milhares, é que se levantam os mapas lingüísticos. Semelhante coleta, a cuja análise e sistematização se procede após o levantamento de um "grande número" de dados, supõe não apenas aptidões pessoais, espírito de sacrifício e devoção, mas também uma preparação especializada excepcional. Acresce, ainda, que no terreno vocabular não pode ela ser feita sem associação às coisas designadas, o que vincula essa técnica umbilicalmente à da etnografia. Nessa associação, por exemplo, hábitos, .costumes, crenças, trajes, métodos de trabalho agrícola, artesanal, artístico, tudo isso tem de ser levantado - propiciando campo essencial para quaisquer medidas tendentes à eficácia dos métodos de ensino, da erradicação de tradições espúrias ou nocivas e à implantação de atitudes adequadas ao progresso, à saúde, ao bem-estar e à produtividade.
Duvidar da necessidade de emprêsa semelhante para o Brasil contemporâneo é prova ou de ignorância do que seja uma realidade científica com seu alcance operativo e factivo ou de vocação passadista. E supor que tarefa tão imen~a possa
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ser produto de elucubração de gabinete é desconhecer o quanto a realidade é por vêzes contrária à gratuidade de suposições e convicções. Para que, prudentemente, se estime a magnitude da tarefa que o Brasil tem pela frente nesse particular, é preciso que se compreenda que, na extensão dos oito e meio milhões de quilômeh·os quadrados de nosso território, talvez venhamos a despender mais de meio século de trabalho para a mera fase de coleta e análise. Quanto mais tarde principiarmos, tanto mais tarde poderemos colhêr os frutos que dessa fisionomia poderão advir para o progresso material, moral, cultural, social, sanitário, intelectual dos brasileiros.
Desnecessário, quanto à nossa História, ressaltar, de outro lado, as luzes que dêsses estudos advêm para o conhecimento de nossa formação, a penetração e expansão territorial, as migrações internas, a ação recíproca dos ·centros urbanos ~ da periferia rural.
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Realizada numa extensão geográfica enorme com tão íntimas e necessárias vinculações humanas, graças ao que é o território brasileiro um dos ecúmenos relativamente menos diferenciados do mundo do ponto de vista lingüístico - da unidade nacional é possível afirmar ser ela uma vocação coletiva que dia a dia se aperfeiçoa e con-
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solida. O instrumento fundamental dessa unificação foi, é e será a nossa língua comum. O estudo aprofundado desta é, por conseguinte, um impeTativo dessa unidade e um meio para reafirmá-la, estruturá-la e universalizá-la.
Cientificamente, é de todo o ponto verossímil dizer que a língua reflete, no seu sistema de sistemas e na expansão dêste, o progressivo avanço de nossa psique coletiva no conhecimento de nossa realidade objetiva, condição precípua para que possamos pôr a esta a serviço do interêsse nacional, compreendido como o somatório da valorização humana de cada brasileiro. Torna-se, assim, um dos fatôres fundamentais da valorização do homem brasileiro o seu domínio tanto quanto possível completo de seu instrumento de comunicação - de sua língua, em suma.
Não menos importante, porém, nesta ordem de idéias, é o princípio de que o conhecimento de uma língua não se faz integralmente possível senão quando essa língua é objeto de uma penetração científica} na sua evolução no tempo e na sua diferenciação no espaço. Mas essa penetração científica depende, por sua vez, da colateralidade e reciprocidade do estudo da língua no tempo e no espaço, de tal modo que um aspecto não se desenvolve satisfatoliamente senão quando o outro aspecto apresenta um desenvolVimento paralelo. Portugal, nesse respeito, continua - fôrça é reconhecê-lo - na vanguarda dêsses estudos,
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no que tange à nossa comum língua portuguêsa, rapresentando inclusive, neste momento, um fator de avanço ponderável, em relação ao Brasil, com o término do levantamento lingüístico, dialecto16-gico e etnográfico de sua diferenciação no espaço, dentro de suas fronteiras européias, e com sua próxima descrição e caracterização objetiva, para breve publicação, no monumental Atlas Lingüístico da Península Ibérica.
Com a publicação dêsse Atlas, Portugal e também a Espanha completam o levantamento dialectológico e etnográfico da Europa, de vez que eram os dois últimos países de que se esperava uma pesquisa, e sua publicação, de tal natureza. Cumpriria, ao ensejo, lembrar que a França, por exemplo, já encetou o seu segundo Atlas; e que nos Estados Unidos da América, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em suma, até mesmo em variados pontos outros da Ásia e da África, vão avançadas, quando não ultimadas, pesquisas de tal envergadura e natureza.
Diversos pronunciamentos das mais altas autoridades cientificas, em geral, e dialectológicas e etnográficas, em particular, ressaltam a in,comparável significação para o conhecimento do fenômeno lingüístico que é o levantamento de um atlas de tal teor. :!!: nesse sentido que a observação de CHARLEs N ODIER ( 1780-1844), grande literato e grande dialectólogo francês, se erige à
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categoria de apoftegma que a ciência contemporânea confirma:
r en conclus même quelque chose de plus absolu, ce qu' on appellera, si l' on veut, un paradoxe, et cela m'est égal: c'est que tout homme qui n'a pas soigneusement exploré les patois de sa langue ne la sait encore qu'à demi.
Com respe1to, especificamente, ao português do Brasil, ocorreria lembrar que de há muito se vem fazendo sentir a necessidade imperativa de uma pesquisa exaustiva e exata do nosso domínio dialectológico e etnográfico. Com efeito, o Primeiro Congresso de Língua Nacional Cantada, malgrado seu objetivo aparentemente limitado, já em 1936, em São Paulo, se viu como que impossibilitado de chegar a conclusões definitivas sôbre tão urgente problema de normalização, por falta de levantamentos e pesquisas dialectais idôneos; e o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, agora mesmo, em 1956, em Salvador, aprovou moção unânime em que urgia a convocação de um Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia, apelando veementemente para os Podêres Públicos no sentido de encorajarem e possibilitarem a realização dêsse certame, verdadeira encruzilhada para as pesquisas científicas em matéria de Lingüística e Etnografia no Brasil.
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Com isso, não se fazia senão coincidir com um voto do Congresso Internacional de Lingüistas, reunido na Haia, em 1928, em que se instava junto ao Govêrno brasileiro, dentre outros, para que tomasse a si a tarefa de patrocinar o empreendimento dos trabalhos necessários ao Atlas Lingüístico do Brasil, para o estabelecimento do Atlas Lingüístico do Mundo. E, embora tardiamente, o nosso Govêrno aceitou inscrever como um dos objetivos permanentes do Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa a organização do nosso atlas lingüístico, sem, porém, propiciar meios materiais para tão avultada emprêsa. Pode-se, nesta conformidade, asseverar que, se há aí um asphcto relevante para o conhecimento ~umano em geral, é êle ainda maior no que se Tefere a nós mesmos, brasileiros, que teremos assim a chave de um perfeito conhecimento de nossa língua na sua feição típica brasileira e nas ·suas modalidades regionais, locais, rurais ou urba~ nas, chave, também, para uma política lingüística ·consciente e lúcida quanto aos múltiplos problemas de expansão cultural, de unificação nacional e de valorização político-social de nossa unidade :coletiva.
Nas condições objetivas do Brasil contemporâneo, o rádio, o cinema, a televisão, o avião vão sendo fatôres de precipitação de nossa unificação lingüística. As referências dialectais de algumas décadas atrás já não são, muitas vêzes, confirma-
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das pela observação hodierna, o que reflete bem quanto se acelera aquela unificação. Isso, que é obviamente um bem no sentido da nossa unidade, é, contudo, um fenômeno de transcendente importância, que deve ser urgentemente focalizado e caracterizado na sua realidade viva em mudança, a fim de que o conhecimento desta nossa língua comum que se forja dia a dia dentro de nossas fronteiras não venha a apresentar enigmas que talvez jamais possamos elucidar. ~ que os fatos lingüísticos, quaisquer que sejam êles, devem repercutir no sistema de sistemas que é uma Jingua, criando, se não caracterizados agora, futu>ras dificuldades intransponíveis para a tarefa <Científica de penetração objetiva de nossa realidade lingüística, realidade lingüística de capital importância não apenas para o Brasil, mas para a humanidade mesma tôda inteira, visto que é certo que num futuro não remoto será ela o instrumento de comunicação de uma coletividade em expansão das mais numerosas e das mais ricas de suostância. Estamos assistindo, na dinâmica social brasileira, a complexos fenômenos lingüísticos que continuam ou subvertem tendências profundas da deriva ou das derivas da língua portuguêsa no Brasil; alguns dêsses fenômenos se vêm revelando IJ.'ecessivos - digamos assim -, isto é, contraregráveis pela disseminação da cultura; outros, porém, parecem dominantes e tendem a incorporar-se em definitivo ao sistema de sistemas do
SUGESTÕES PARA UMA FOLÍTICA DA LÍNGUA 73
português do Brasil. Como vislumbrar, com a antecipação necessária, uns e outros, a fim de que possamos preconizar uma política lingüística consciente no plano da normalização, da padronização, do ensino, da correção das pronúncias, da ortologia, senão mercê das revelações e ensinamentos que se depreenderão do nosso Atlas Lingüístico e Etnográfico? A realidade nua e crua é que, malgrado o número ponderável de estudos gramaticais, não sabemos efetivamente o que é e como é a língua portuguêsa, sobretudo no Brasil, e assistimos estarrecidos ao divórcio crescente entre a disciplina gramatical canônica e a criação literária viva.
(1957)
SôBRE A "LíNGUA BRASILEIRA"
A questão da "língua brasileira" desde o romantismo vem repontando, com fases de recesso, jlla ordem do dia da intelectualidade brasileira. Presenciamos, neste momento, a uma fase aguda dá questão, com pronunciamentos mais ou menos autorizados em favor da sua "existência" : são ensaístas, beletristas, · filólogos, sociólogos, críticos e o mais - não raro confundindo posições - que •postulam, justificam, militam por, asseguram a existência da "língua brasileira".
O momento é, por conseguinte, oportuno para um balanço do problema. Procurei fazê-lo de forma tanto quanto possível impessoal, presumindo duas fases: numa primeira, procederia à inquirição de uns quantos partidários representativos de uma posição, numa segunda, de uns quantos representativos da outra. Circunstâncias de ordem individual facilitaram-me um contacto com os partidários da inexistência da "língua brasileira", razão por que iniciei com êles, esperando, em próxima inquirição, proceder de igual conformidade com os partidários da existência da "língua brasileira".
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 75
O método seguido foi simples: numa espécie ·de mesa-redonda, reuni três representantes conscientes da posição que ao longo dêste se afirma, procedemos a um diálogo livre, em que fui levantando objeções e alegações, dando ensejo a que fôssem elas rebatidas ou controvertidas. O material foi colhido em gravador magnético, os chamados magnetofones, e ato contínuo foi redigido na forma por que é agora apresentado ao público. Dei, naturalmente, alguns rápidos retoques, procurando, contudo, guardar o sabor espontâneo das intervenções coloquiais, ainda que intervenções coloquiais marcadas por um esfôrço de formulação dialética, embora repontem traços permanentes de afetivismo nessa formulação - o que é natural.
Seria lógico que procurasse o depoimento de personalidades cuja opinião fôsse valiosa para o debate. Isso me foi fácil, porque dentre meus amigos pessoais se inscrevem algumas dessas personalidades, encerrando-se a dificuldade, a rigor, na limitação numérica. Muitos outros, com igual responsabilidade e merecimento, poderiam, pois, ter sido escolhidos, e o não terem sido convidados se deve exclusivamente a questões de ordem prática e de exeqüibilidade imediata. Os depoentes, já agora, merecem uma rápida apre.sentação: são os professôres CELso F~IRA DA
CUNHA, SERAFIM DA SILvA NETO e SiLvro EDMUN
DO ELIA, todos apenas ingressados na casa qua-
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ll'entona, todos, por conseguinte, igualmente jovens mas igualmente maduros, todos com um curriculum uitae muito vinculado com os aspectos técnicos da questão, todos com pronunciamentos escritos sôbre o problema, todos na militância do magistério. O professor CELso FERREIRA DA CUNHA é catedrático de língua portuguêsa do Colégio Pedro li e da Faculdade N acionai de Filosofia, o professor SERAFIM DA Sn.vA NETo o é de filologia românica da mesma Faculdade N acionai de Filosofia, e o professor SiLvio EDMUNDO ELIA, da Pontifícia Universidade Católica e do Instituto de Educação - além, para todos, de outros estabelecimentos de ensino. Escusa evitar lembrar a larga produção intelectual dos três, em que se inscrevem trabalhos específicos sôbre a questão e sôbre o português do Brasil, de um modo geral ou particular.
As linhas a seguir representam, por conseguinte, a letra de fôrma do diálogo tal como ocorreu - tendo sido, isso não obstante, submetidas à aprovação dos três depoentes, que estão em tudo conforme com o que vai dito, embora pudessem muito mais ter dito, se não ocorresse a necessidade imperativa de limitação oo espaço e do tempo.
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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 77
- E minha intenção fazer um inquérito, com relativa profundidade, sôbre dois assuntos de capital interêsse para o empastamento do problema da cultura brasileira: em primeiro lugar, o da existência da "língua ·brasileira"; em segundo lugar, o da existência da literatura brasileira, sôbre a qual, a rigor, não pode haver controvérsia, mas que de qualquer modo tem sido associada àquela. A pergunta que me permito formular de início aos depoentes deve ser precedida de uma indicação metodológica: é meu desejo, no interêsse do inquérito, assumir o papel de opositor das idéias dos depoentes, numa posição de advogado do diabo, ainda que, não raro, essa posição possa não traduzir convicções pessoais minhas, porque - creio poder antecipar - as mesmas coincidirão, em suas grandes e pequenas linhas, com as dos depoentes. A primeira pergunta que se coloca é, pura e simplesmente, a seguinte: reconhecem os .depoentes a existência da língua brasileira? O professor SERAFIM DA SILvA NETO se dispõe a iniciar as respostas.
- Como posso reconhecer a existência de uma coisa que não existe? O problema da língua brasileira é até, a meu ver, um problema superado. Não pode haver dúvida, lingül.sticamente falando, de que nós usamos, nas nossas comunicações, da língua portuguêsa, de uma variedade da língua portuguêsa, a qual, naturalmente, se fragmenta numa série de variedades, de acôrdo
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língua nova; o que houve sempre foi um patriotismo mal entendido, a querer colocar nacionalistamente um problema que, assim nacionalistamente colocado, está mal colocado. E, aliás, êle não é do Brasil apenas. Também na América inglêsa e na América espanhola, lugares em que se acreditou falar uma língua norte-americana, ou uma língua argentina, boliviana, mexicana, chilena, e quantas mais, também aí o problema foi sempre de. natureza política de mal entendido nacionalismo. No mais, estou de acôrdo com as palavras do professor SÍLviO ELIA, que colocou a questão com clareza.
- Volto-me, por conseguinte, ao professor SiLVIO ELIA, já agora solicitando-lhe se possível uma resposta ao problema objetivo que lhe vou propor. No plano, digamos, dialetal, não há dúvida de que grosso modo o conjunto de dialetos brasileiros difere do conjunto dos dialetos portuguêses - ainda que uma análise particularizada dos fenômenos de cada um dos dialetos brasileiros, cuja descrição minudente ainda está por fazer-se, revele coincidência com particularidades dos diversos falares portuguêses - o que postula, até, um problema de história da língua muito interessante, mas que não vem agora a pêlo. O que eu quero, essencialmente, dizer, é isto: o princípio fundamental da unidade da língua está no fato de que a comunicação universalista, tanto em Portugal quanto no Brasil, é a mesma.
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LfNGUA 81
Trata-se, por conseguinte, de uma língua que nos é comum. Pergunto, entretanto: o fato de poderIDos adotar - inelutàvelmente - dois padrões de pronúncia diferentes, um para o português continental, outro para o português do Brasil, já não :postula, de por si, a eventualidade da admissão ,de uma língua diferenciada entre o Brasil e Portugal?
- Creio que não, porque a questão da pronúncia não esgota a questão lingüística. Hoje se costuma dizer, um tanto exageradamente, que a língua é uma fonna, não uma substância. O problema da pronúncia é mais um problema de substância, embora, de fato, seja conexo com o sistema fonológico. Entretanto, do ponto de vista propriamente gramatical - que é aquêle que mais se discute e que é, de fato, aquêle que dá forma ou informa o problema lingüístico -do ponto de vista gramatical, repito, a forma lingüística brasileira é a mesma forma lingüístiéa portuguêsa. Quero dizer que, naquilo que me parece essencial, que é o problema da gramática, o problema do certo e do errado, dêsse ponto de vista, a forma que nós usamos é estruturalmente a mesma que a de Portugal. Evidentelmente, as divergências que existem não comprometem o todo do sistema.
- De maneira que a sua resposta admite não só a existência de divergência e de diferenciações no plano da pronúncia, mas também no plano
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da gramática. Dividindo a gramática naquela sua tríplice divisão tradicional, em fonética, morfologia e sintaxe, o professor SÍLVIO ELIA distingue pronúncia e fonética propriamente dita, encontrando, apesar de tudo, um enlace muito estreito entre as duas ordens de fatos, mas reconhecendo que as bases fonológicas da língua continuam a ser mais ou menos iguais entre o Brasil e Portugal, !ainda que as realizações fonéticas discrepem entre o português comum do Brasil e o porh1guês comum de Portugal. Pergunto, então, se não poderíamos estender a questão a têrmos aproximativamente iguais, admitindo que existem diferenças não apenas na pronúncia, mas até na fonética, \Ila morfologia, na sintaxe, diferenças que, contudo, rsão minoritárias em face das igualdades? Em .suma, a quantidade diferenciadora teria chegado a ponto de estabelecer aquêle hiato que autorizasse a reconhecer a existência de duas línguas diferentes? Com a palavra, professor SERAFIM DA
Sn.vA NETo. - Não, creio que não. Em primeiro lugar,
retomando algumas de suas considerações de há pouco, devo recordar que, quando se fala em 'Unidade, evidentemente se está a pensar num padrão, evidentemente se está a pensar na língua escrita, e não nas variedades faladas, nas línguas faladas, porque essas são muito grandes em tôdas as partes. Neste particular até, apesar de sua diferenciação, a língua portuguêsa é muito menos
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 83
fragmentada em dialetos do que a italiana, por exemplo. Trata-se de uma coisa óbvia, mas muitos parecem esquecer-se disto: a língua falada varia de acôrdo com os indivíduos, as classes sociais; de um modo geral, há tantas línguas faladas quantos são os indivíduos que falam. Ora, para o instrumento superior de expressão, há a língua padrão, e é com referência a essa que julgamos que se trata do mesmo português, quer em Portugal, quer no Brasil. Permita-me ser talvez um pouco prolixo, mas o que sucede é o seguinte: temos hoje em dia duas capitais da língua portuguêsa: o Rio de Janeiro e Lisboa. E o que sucede é que, como dois poderosos cérebros, Portugal e Brasil criam suas formas lingüísticas, mas tudo se passa adentro da mesma língua, não importando que no Brasil chamemos "aeromoça" ao que em Portugal, com menos gôsto segundo me parece, se chama "hospedeira", porque tanto ~'aeromoça" como "hospedeira" são formações do patrimônio comum da língua portuguêsa, pouco importando que aqui se chame, numa expressão mais sintética, "caneta-tinteiro" ao que lá se diz "caneta de tinta permanente". O que se deve frisar é que os dois poderosos 'Cérebros pensantes criaram coisas diferentes com o mesmo material, com o mesmo estoque, com o mesmo repertório fonemático, corno é hoje uso dizer no que toca a fonemas. O que sucede, muitas vêzes, é que o português do Brasil mante-
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ve um padrão mais conservador do que o de Portugal. Os portuguêses avançaram mais, inovaram mais na língua a partir do século XVIII, do que os brasileiros cultos. Nós guardamos muitas expressões que já são antigas em Portugal, enquanto Portugal, em muitos ~asos, seguindo o progresso europeu, adotou novos têrmos. Por exemplo: mantemos a velha palavra "sorvete", enquanto em Portugal, adotando-se a nova fórmula italiana do alimento e decalcando o italiano gelato, se chama "gelado". Outras vêzes, guardamos um têrmo que em Portugal ficou regionalizado, criando-se um novo para uso padrão. Por exemplo, mantivemos "barbante", que só no norte tde Portugal é conhecido, enquanto em Lisboa se usa de "fio" ou ãlgo parecido. Isso não nos autoriza a falar em língua nova, embora o português do Brasil tenha suas características próprias. Não vejo, assim, nenhuma vantagem cultural e mesmo política em criar, em adotar um nome - língua brasileira - para uma realidade que não existe.
- A intervenção do professor SERAFIM DA
SILVA NETO é muito interessante, mas eu gostaria de frisar que o problema vocabular deveríamos, de certo modo, distanciar de nossas cogitações, por ora, porque é incontestável que, no plano da língua padrão, as diferenças que existem no respeito entre Portugal e Brasil se atêm sobretudo a objetos de uso cotidiano ou ligados a coisas
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típicas, em número de tal modo reduzido para as necessidades da expressão universalista, que não podem comprometer a unidade lingüística. O vocabulário da língua padrão, a ter um traço caracterizador fundamental, tem-no no fato de servir para exprimir sobretudo noções abstratas e genéricas, e nesses casos é êle realmente comum ao Brasil e a Portugal. Dêsse modo, qualquer discussão que tenha como base exemplos tais como os abonados pelo professor SERAFIM DA
SILVA NETo, por mais curiosos e interessantes que sejam, e o são, não nos pode levar à conclusão ela ,existência de uma língua brasileira. ConduzirlllOs-ia, ao contrário, levado às suas conseqüências o raciocínio, a . várias línguas dentro do que supomos ser a unidade lingüística portuguêsa, pois o critério diferenciador seria o vocabulário tregionalista, que é notoriamente particularista. A abundantificação de exemplos dêsse tipo tem valor, mas valor circunstancial, que poderá ensejar. a universalização de conceitos ou noções, quando universalizáveis, quando necessários à expressão universalista na língua. Por êsse motivo, preferiria que nos ativéssemos a um problema algo mais complexo, que tento formular,. com vistas ao professor CELso CuNHA, especiahnente, já que deveremos esgotar os capítulos - digamos assim - relativos à fonética, · à morfologia e à sintaxe, para só então cogitarmos eventualmente do vocabulário. Ora, no plano da fonética preocupa
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muito o professor CELSO CuNHA, na linha de vários estudiosos, dentre os quais o professor I. S. RÉvAH, tal como vimos de sua intervenção no Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, em Salvador, setembro de 1956, :1 circunstância de que há duas tendências, de profunda fôrça divergente, na fonética das duas modalidades que vimos considerando, a portuguêsa padrão e a brasileira padrão, isto é, dos meios cul.tos cariocas. Nas duas derivas - digamos assim - da pronúncia culta portuguêsa ·e da pronúncia culta brasileira, o vocalismo se apresenta com caracteres que tendem a discrepar progressivamente. Refiro-me à nitidez e ao arredondamento de certas vogais átonas, sobretudo as pretônicas, no português do Brasil, contra o manifesto obscurecimento de que são elas objeto em Portugal. ~sse obscurecimento leva a criar estmturas silábicas que inclusive estão repercutindo nas próprias tendências de poetar, sobretudo dos poetas mais espontâneos, que menos se submetem à tradição escrita, os mais sensíveis, os mais telúricos, os mais românticos no sentido técn~co, a tal ponto que se pode ver uma discrepância na métrica mesma dos poetas eruditos, entre brasileiros e portuguêses. 1!: o caso de lembrar - com as reservas que o asserto comporta - os conceitos que a êsse respeito já GoNÇALVES VIANA tecia sôbre a leitura de versos rde Os Lusíadas, os quais, segundo a pronúncia
SUGESTÕES PARA UMA POLfnCA DA ÚNGUA 87
padrão lisboeta, poderiam ser versos de pés quebrados. Essa consideração me leva à suspeita de que, ainda que não tenhamos uma língua brasileira diferente da língua portuguêsa, se êsses fatos da deriva não forem retroagidos, poderemos vir a ter um sistema fonético substancialmente, ,estruturalmente diferenciado. E mais: enquanto o vocalismo no Brasil tende a se apresentar mais conservador, ou pelo menos mais acorde com a tradição padrão, o vocalismo de Portugal tende, de fato, a romper com o da tradição da língua, a tal ponto que, a ter nome novo, antes deveria ter o português de Portugal que o do Brasil. Nesse sentido, pois, gostaria de ouvir-lhes a opinião, principiando com a do professor CELso CUNHA.
- Em verdade, o que diz meu caro inquiridor parece ser o fato mais grave. de quantos até agora consideramos. Em realidade, tudo o que tem sido lembrado até agora como elemento caracte~ rístico da "língua brasileira" me parece de valor secundário. Quer dizer, o vocabulário, a sintaxe e mesmo certos fenômenos de ordem fonética, que variam naturalmente de região para região, em suma, os argumentos dos defensores da suposta "língua brasileira" são, como disse, fatos de ordem secundária, porque se verificam do ponto
·de vista da diferenciação geográfica ou da diferenciação social, noutros têrrnos, da diferenciação individual. Quando se argumenta com tais fatos,
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lembrando que êles aparecem e~ Portugal e no Brasil, em ilhas lingüísticas de lá ou de cá, o problema da unidade não me parece estar sendo bem considerado, a unidade não está a periclitar, já que na unidade, dentro de certas estruturas comuns e padrão, está implícita a necessária noção de diversidade. Entretanto, as tendências divergentes do vocalismo e do consonantismo, de Portugal em relação ao Brasil - e vice-versa, é óbvio, segundo se coloque o observador -, podem vir a ter repercussões graves, repito. Sabemos que no século XVI, segundo o testemunho do próprio FERNÃO ó'OuvEIRA, o português falava descansadamente. Ora, ~ partir do século XVIII, por [razões ainda não suficientemente apuradas, o português de Portugal passou a ser uma língua de .elocução mais rápida, não só em relação ao porltuguês do Brasil, senão que também ao espanhol, por exemplo. Isso quer dizer que o vocalísmo do 'Português quinhentista e seiscentista era mais níitido, e isso a métrica dos poetas do tempo nos ajuda a comprovar. Mas o que se observa hoje é exatamente o obscurecimento das vogais em tôrno da tônica, noutros têrmos, salvo a tônica, as vogais portuguêsas ou são indistintas ou tendem para a indistinção, são fracamente pronunciadas. Em contrapartida, o português de Portugal possui um consonantismo tenso, para usar de um têrmo do gôsto do meu amigo HouAISs. :E:sse estado de coisas me permite remontar a uma das supostas
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causas para a diferença de estrutura de certas línguas indo-européias, evidenciadas desde os começos dos estudos da gramática comparada, quando do nascimento do método comparativo na lingüística: uma língua houve que alterou o seu vocalismo mas conservou quase intacto o seu consonantismo primitivo, o sânscrito, enquanto, de outro lado, o grego, o latim, o germânico haviam mantido o vocalismo e alterado o consonantismo -do que decorreram estruturas lingüísticas geneticamente filiadas a um tronco comum, mas estruturalmente muito diferenciadas. O fenômeno, no momento presente, é algo parecido. :ftsse é o fato que me parece mais grave - embora, dentro de nossas preocupações presentes, seja uma gravidade não atual, mas futura, pois que, do ponto de vista padrão, continuamos a guiar-nos, em Portugal e no Brasil, pelo vocalismo e pelo consonantismo tais como fixados pela tradição culta escrita. Mas o fato é que o português do Brasil, apoiando-se no vocalismo e tendo-o sensivelmente assemelhável ao do espanhol, enquanto apresenta um consonantismo algo relaxado, num relaxamento que pode provocar evoluções que não sabemos a que ponto podem chegar, êsse fato é que me parece grave e complexo. Do ponto de vista dos que, reconhecendo a unidade lingüística presente, não vêem senão vantagens na sua manutenção, graças a uma política lingüística consciente seria possível aconselhar no ensino, quer
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no Brasil, quer em Portugal, que houvesse uma atenção maior na p_ronúncia, em Portugal das vogais, no Brasil das consoantes. Ora, isso não é um fato que venha a forçar a realidade fenomenal, sob a alegação de que apenas sabemos o que se está passando em profundidade. Quando do Piimeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, em Salvador, em setembro de 1956, o professor ANTÔNIO HouAISS, nas suas considerações sôbre a pronJ].ncia culta do Rio de Janeiro, lembrou o fato, que me parece da mais alta importância, de que, há cêrca de duas décadas, dificilmente uma pessoa das dasses humildes do Rio de Janeiro pronunciava o _...,. e o -s finais, fato que ainda se observa em vastas zonas do interior do país, onde o ensino ainda não se fêz sentir no grau que era de desejar. Ora, hoje em dia, o que se observa, talvez também pela influência do rádio, da televisão, de certos padrões eleitos pelo povo, pela disseminação das escolas no Distrito Federal, é que há uma preponderância sensível de pessoas humildes que pronunciam com nitidez - até com certa tensão - essas consoantes finais. Como se pode depreender dêsse exemplo, há aí um problema de escolarização; como creio que interessa ao país ter uma unidade lingüística - unidade em têrmos relativos, repito, isto é, dos meios cultos que passaram pelas escolas, devendo-se prever que num futuro mais ou menos próximo todos os brasileiros venham a passar pelas escolas -, não há dúvida
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de que, graças a uma política lingüística consciente, poderemos recuperar certas formas do nosso conwnantismo, para voltarmos às minhas cogitações iniciais. Em verdade, os que pretendemos uma certa unidade lingüística, almejamos que o país a mantenha através da unidade política, econômica, cultural, em suma, nacional; no nacional, a língua é uma das formas. Por isso, entre os que se inscrevem no ponto de vista da unidade lingüística estão aquêles que querem estudar a realidade brasileira, a realidade lingüísti,ca brasileira. É curioso lembrar, entretanto, que os que propendem para a língua brasileira não tenham até agora trazido uma contribuição para os estudos dialectol6gicos do país. Não conheço, a êsse respeito, nenhum trabalho que não seja de ordem geral, teorética, em que os autores vêem ,do seu gabinete, no Rio de Janeiro ou num centro urbano, o Brasil com seus oito e meio milhões de quilômetros quadrados e seus sessenta milhões de habitantes. O pouco que temos de trabalhos sérios de dialectologia, de trabalhos que visam a apreciar a realidade, êsses foram todos êles feitos por pessoas que pelo menos não têm a preocupação de considerar que o Brasil se diminui com ter uma língua com o nome de portuguêsa já que o Brasil é um país de cultura portuguêsa e um país que foi descoberto no auge de uma nação que, pequena embora, naquele tempo era a maior nação do mundo, uma vez que havia des-
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coberto a metade do mundo conhecido. - A sua contribuição é muito útil ao nosso
diálogo. Sugere, logo, que passemos aos argumentos ·principais dos neobrasileiristas - aos quais espero que os três professôres aqui presentes respondam. São dois êsses argumentos principais. Um é de analogia histórica, outro se relaciona com a situação _ presente dos dois países em causa. Vamos discutir o primeiro. A analogia histórica é consabida, mas eu me permito recapitulá-la, pela ordem: partem os neobrasileiristas, honestamente, da convicção de que - assim como no mundo românico, depois de difundida a cultura romana ou latina e depois do esfacelamento da unidade política do Império Romano, se verificou, possivelmente com pruridos diferenciadores ante:riores, uma diferenciação progressiva na România, em conseqüência da qual, num lapso de tempo .relativamente curto, o grande falar relativamente unificado que aí havia anteriormente, se fragmentou, de tal modo que, em breve, puderam emergir, brotar, em regiões diferentes, diferentes línguas em formas altamente dialectalizadas e posteriormente unificadas - do mesmo modo, aproximativamente, deve ocorrer o fenômeno de formação da língua brasileira para com a língua portuguêsa. De maneira que partem do pressuposto de que, graças à circunstância de estarmos geogràficamente tão distantes quanto o estamos de Portugal, numa distância incomparàvelmente
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maior do que a que existia entre os diversos futuros membros da România, graças a essa circunstância em primeiro lugar; graças ao habitat, ao meio, à ecologia, à miscigena.ção diferentes, em segundo lugar; graças, por fim, à independência política em terceiro lugar, graças a tudo isso, se no primeiro caso houve diferenciação; neste segundo as razões são ainda maiores. E reconhecendo que isso seja uma tendência, digamos, fatal da história, perguntam por que atermo-nos, passadistamente, à conservação de uma língua unificada com Portugal, conservação que eventualmente violenta o aprendizado, por impor maneiras não vivas de falar, de escrever, de pensar, quando deveríamos ir, ao contrário, à frente dessa tendência, para criar, ainda que lentamente, uma entidade, que já de si está hoje em dia diferenciada, que é legitimamente a língua brasileira, isto é, uma língua que, derivada da língua portuguêsa, é já agora apenas um instrumento comurri de comunicação de todos os brasileiros nas nossas coordenadas geográficas. Acho que êsse é um argumento de analogia histórica cujo vício não IJlle permito antecipar, preferindo, ao contrário, ·ouvir a opinião de cada um dos três. Vejamos o professor CELSO CUNHA.
- Sôbre o assunto creio que o professor SERAFIM DA SILvA NETo poderá particularmente ·dissertar, pois está procedendo a estudos especiais, além dos que já tornou públicos. Apenas gostarei
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de antecipar algumas de suas idéias, que são, aliás, as dos romanistas mais atuais. Em primeiro .lugar, essa diferenciação, colocada em têrmos de uma quarta proporcional - assim como do latim saíram as línguas românicas, também do português · sai (ou saiu, ou sairá) a língua brasileira, o brasileiro - pressupõe considerar a evolução histórica como fenômeno, senão estático, ou menos l:lbsolutamente repetitivo. Depois, os estudos modemos têm demonstrado que a coisa se passou de modo bem distinto: a diferenciação latina já era uma diferenciação itálica, ao mesmo tempo que cada região do orbe latino foi conquistada e colonizada em épocas diferentes por colonos provindos de regiões diferentes da Itália. Ora, por exemplo, verificamos que os colonos itálicos do sul levaram certos hábitos que aparecem :ilhados em certas regiões da România, enquanto certas ligações aparentemente ilógicas, como a do português com o gascão, passam a ser mais claras a essa· interpretação possível. Digo possível, porque êsses estudos da colonização romana são .relativamente novos, quanto às suas conexões com a filologia e a lingüística, são trabalhos da ·escola de BERTOLDI e de outros italianos, com estudos sôbre a emigração dos sicilianos e de povos do sul da Itália, do centro e mesmo do norte, tudo, em suma, relativamente moderno. Ora, o que se pode desde já verificar é que a colonização portuguêsa foi feita de modo diferente.
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 95
Devemos a alguns estudiosos esclarecimentos novos nesse sentido. O professor SERAFIM DA Sn..vA NETo fêz, há pouco tempo, uma bela conferência na Universidade de Lisboa, diante de mestres portuguêses que haviam proposto outras soluções, e mostrou que a emigração de portuguêses não foi feita para o Brasil apenas partindo do sul de Portugal e das ilhas, mas principalmente do :norte, que era ao tempo a zona mais populosa. De uma maneira geral, podemos dizer que vieram portuguêses de tôdas as partes, portuguêses que, formando uma superestrutura lingüística aqui na América, tenderam a unificar sua diversidade de falares portuguêses numa espécie de língua franca no território que colonizavam. Isso me enseja ·considerar que é um defeito metodológico presumir, também, para a expansão do português no Brasil uma forma lingüística igual, pois sabemos que uma região como o Rio Grande do Sul, por exemplo, só foi realmente povoada no século XVIII e povoada por um processo diferente. Lembremos ainda que a colonização no Brasil central, na Bahia, no Rio de Janeiro e em vários outros pontos do atual território nacional foi feita por homens apenas, donde apresentarem mestiçagem maior do que a que vai processar-se no sul do país, em que a colonização foi feita quase tôda ela na base de casais e a miscigenação ficou relativamente insignificante em relação às regiões que referi antes. Não contesto, por conseguinte,
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que haja honestidade cultural e intelectual da parte dos que sustentam a existência da língua brasileira: quanto a isso, não há a menor dúvida. Mas o problema não pode ser colocado nas bases em que o querem. Um dêles, por exemplo, diz, essencialmente, que o Brasil é um pais soberano - logo, deve ter uma língua própria. Acho que êsse argumento não tem valor cientifico, pura e simplesmente. Pode comover e impressionar, mas esboroa-se ante uma simples verificação do seguinte tipo. A língua - qualquer língua - não é um bem cuja propriedade esteja regulada em 'código. A língua é um bem que, como diziam os homens do Renascimento, quanto mais vulgarizado é maior; pertence, por conseguinte, a todos quantos a falam, é tanto nossa quanto dos portuguêses. Mas insisto com o inquiridor em que o professor SERAFIM DA Sn..vA NETO se manifeste a êste respe_ito, já que, como disse, tem trabalhos e estudos especiais que o habilitam a um pTonunciamento com maior soma de ponderações.
- Permito-me apenas relembrar ao professor SERAFIM DA SILVA NETO, pela ordem, que o problema em pauta é ainda a analogia histórica, cuja ·enunciação me dispenso de recapitular.
- O fato é que p ucas palavras tenho que acrescentar às que já foram, no particular, ditas pelo meu colega CE:r.so CuNHA. Só desejo lembrar que êsse símile, que êsse argumento de semelhança com o latiu; é um argumento totalmente falso,
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como êle já o demonstrou. Em verdade, é um argumento antigo, que de vez em quando é trazido de novo à baila. Ainda há pouco tempo era o nosso grande escritor, respeitável sob outros aspectos, MoNTEmo LOBATO, quem o trazia à cena; um pouco antes, por 1909, era o conde de AFoNso CELSo quem aflorava essa comparação. Creio, no entanto, que ela pela primeira vez foi invocada por JosÉ DE ALENCAR, no p.ost scriptum rde Iracema. Que eu saiba, foi o primeiro a vir com essa comparação, a qual, como muito bem diz o professor CELSO CUNHA, é completamente !inadequada, porque, dentre outras razões ademais das que já referiu, o Império Romano se esfacelou lingüisticamente pela desvinculação cultural. Não foi a distância ·geográfica de Roma que transformou o latim falado na Hispânia em línguas 1diferentes, não foi a distância geográfica, repito, foi a distância cultural. Ora, não estamos no mesmo caso, porque o Brasil, graças a Deus, mantém suas instituições culturais vivas, e as mantém não estàticamente, mas dinâmicamente, porque, como há pouco se disse, invocando o nosso colega ANTÔNIO HouAISS, a influência da escoiarização tem sido crescente. Portanto, o panorama brasileiro em relação a Portugal é totalmente diferente do panorama da Península Ibérica em :relação ao Império Romano. Na Península Ibérica, naqueles idos, se chegou a uma tal barbárie, que as mesmas elites não sabiam mais escrever, não
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tinham instrução alguma. No Brasil não se trata disso, o fenômeno é até inverso. Mesmo com relação a Portugal não estamos separados. Há contactos, há profunda interpenetração das duas culturas, da cultura brasileha descendente e da cultura raiz, da cultura fonte. Quero acrescentar, a propósito, ainda uma consideração. Há tempos, um homem muito sábio, cujo nome por sinal de respeito não pronuncio, grande sociólogo, homem ad)llirável, repito, chasqueava, zombava - creio que hoje já não pensa assim - da língua dos doutôres, considerando que essa não era a lingua do Brasil, que essa era uma língua artificial. Entretanto, ela é que é a lingua do Brasil, não a língua das massas ainda desprovidas de qualquer instrução, massas, por conseguinte, ainda não integradas no complexo nacional como participantes ativos. A língua do Brasil é a língua dos seus homens cultos, a língua padrão, a língua que se ensina nas escolas e que se procura manter num grau de certa fixidez, como há pouco dizia o professQr CELSO CUNHA, para poder ter um âmbito de comunicação mais geral, lembrando um problema que não é totalmente nosso, qne é também de Portugal, o qual de fato, a partir do século XVIII, se afasta mais do padrão do que o português do Brasil. Quanto ao argumento de que existe um relativo distanciamento entre a língua falada e a língua escrita, culta, padrão, lembremos gue em tôda parte é assim: a lingua
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escrita é normativa, tem os seus princípios. O menino italiano que fala um dos seus dialetos vai aprender o italiano na escola, italiano que é substancialmente diferente do seu dialeto napolitano, siciliano, genovês ou o que fôr. A língua escrita é assim, as suas normas não podem ser as da língua falada: língua falada é uma coisa, língua escrita é outra, embora vinculadas por um d enominador comum.
- Resta-nos ouvir o professor SiLVIo ELIA a respeito do mesmo problema.
- Quanto à analogia histórica a que se referiu o professor ANTÔNIO HouAiss, quero ainda acrescentar algumas considerações. Os que me precederam se detiveram com bastante fundamentação nos problemas das condições históricas e sociais, mostrando que, não sendo elas as mesmas, não podem evidentemente gerar conseqüências também idênticas. Creio que êsse aspecto ficou suficientemente esclarecido, de modo que me · permitirei ater-me apenas ao seguinte: o velho argumento de que o brasileiro sairá do português assim como o português saiu do latim representa um tipo de explicação prêso a uma mentalidade histórica, característica da segunda metade do século XIX. üs fatos estão aí, os fatos quase sempre são os mesmos, são imutáveis, mas as interpretações variam de acôrdo com a mentalidade da época. No século passado, como disse, o princípio geral de explicação em tôdas as ciências
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era o evolucionismo - tudo evoluía de acôrdo com aquêle princípio conhecido do homogêneo indefinido para o heterogêneo definido. Temos, daí, o princípio da fragmentação, da divisão, da multiplicação - tudo teria de evoluir no caminho ·da diferenciação, fatalmente, de modo que, coeren•temente, se aplicava o determinismo do mundo natural a um domínio onde êle não é pertinente, isto é, aos fatos de cultura, ao mundo cultural. Dêsse modo, tratava-se do assunto como se tratasse também de leis físicas. Por conseguinte, o brasileiro teria fatalmente de sair do português, assim como o português saíra do latim, por uma evolução fatal, conforme com condições intrínsecas do latim. Ora, sabemos que isso não é verdade. O evolucionismo pode ter as suas razões dentro do mundo da natureza, dentro do mundo maturai como lei natural. Mas não podemos aplicá-lo de maneira, por assim dizer, mecânica ao mundo dos fatos culturais, como se fazia no século XIX, com as doutrinas do próprio evolucionismo ou a lei dos três estados do positivismo, ou mesmo a própria dialética marxista - quer dizer, na base do passado se tinha sempre a ilusão de que se poderia traçar as linhas do futuro. Sabemos que os fatos desmentem isso, o que, creio, CHESTERTON pôde afirmar desta forma: a única lei histórica que existe é a lei do imprevisto. De modo que, diante dêsse fato, o que temos de verificar é que a base filosófica dessa inter-
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pretação já foi superada e a ciência hoje caminha noutro sentido, mesmo dentro da explicação lingüística - a que nos cabe aqui examinar. A explicação lingüística não t€lm hoje em dia aquêle rigor determinista que, por exemplo, encontramos nos filólogos positivistas, nos neogramáticos. Hoje, a neolingüística tem uma outra largueza de horizontes. Acrescento ainda o seguinte: tem-se falado muito na fragmentação, mas não se tem vista que, ao lado disso, como já observou JESPERSEN,
existe a unificação. Ter-se-á observado, entre os neobrasileiristas, que o espanhol se estendeu a vários domínios fora do território europeu? Teria o Império Romano - como observou JESPERSEN
- a extensão que tem hoje o domínio lingüístico espanhol? E o domínio da língua inglêsa no mundo? Temos a impressão de que há fragmentação, de que há atomização, mas se observamos o que se passa colateralmente, por clara fôrça de fatôres culturais, o que se vê é expansão e unifi. cação de uma língua padrão a outros domínios. De modo que a realidade, ao contrário, desmente a teoria, que não estava certa. Eis o que me ·parece se poderia acrescentar ...
- E que creio de grande importância. No início destas três últimas intervenções, uma de 'cada um dos inquiridos, propusemos o problema da analogia histórica, sôbre o qual cada um se pronunciou. O parecer do professor SiLVIo ELIA coroou, creio, o tratamento da matéria, parecer
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que tomo a liberdade de tomar como tanto mais válido quanto, permitindo frontal divergência quanto às implicações e formulações filosóficas sôbre a interpretação do fenômeno histórico, tem a seu favor os elementos factuais, a saber, que as circunstâncias históricas no momento presente não são de modo nenhum comparáveis às que condicionaram o aparecimento das línguas românicas. Estamos, ao que tudo leva a crer, ao contrário, em face de um mundo que, a apresentar uma característica lingüística geral, essa é a de que a unificação sobreleva - e de muito - à diferenciação. :f:sse fato é de tal maneira ponderável que, a haver - repitamo-lo - um fenômeno geral, no respeito, na terra, êsse deve ser o do desaparecimento d e dialetos e línguas em favor da expansão de grandes unidades lingüísticas de cultura. E isto é tão sensível que certos filósofos, certos historiadores, certos teóricos admitem, perfeitamente, uma precipitação de tal processo, de maneira que num lapso de tempo relativamente cmto a humanidade venha a contar - em conseqüência de ditames econômicos, demográficos, espirituais - com um número incomparàvelmente menor de línguas. Ora, exatamente no momento em que essa deriva geral parece afirmar-se é que a recidiva da língua brasileira ocorre - e ocorre, já agora, com visos filosóficos ou teóricos, como se êsse ponto de vista fôsse favorecido pela história mesma. Isto pôsto, já agora podemos
SUGESTÕES PARA UMA POÚTICA DA ÚNGUA 1()$
passar para o segundo argumento, o que se poderia denominar argumento cultural - forçando um pouco a riota. Reconhecem os neobrasileiris· tas - no que eu, pessoalmente, estou longe de divergir, antes pelo contrário - que o Brasil, por suas circunstâncias histórico-sociais, pelo seu território, por sua demografia, pelo conjunto de seus caracteres materiais e espirituais, por tudo o que se lhe possa ver em prospecção, é um país eminentemente voltado para o futuro - e mais, com um presente já consideràvelmente atuante e importante no cenário mundial. Complementando essa verificação, acham os neobrasileiristas que seria ·um passadismo retrógrado, nocivo ao avanço cultural que se nos impõe sob todos os aspectos, que nos detivéssemos a espelhar-nos numa cultura que, aos seus olhos, lhes parece saudosista e que já teria dado os seus frutos à humanidade, incapaz, por conseguinte - mas "por conseguinte"· mesmo? - de dar novos frutos. :f:sse enlace da cultura brasileira com a cultura portuguêsa, que se facilita pela unidade lingüística compulsória, seria, portanto, maléfico à cultura brasileira, por atar-nos a um passado histórico em lugar de volver-nos às perspectivas do presente e sobretudo do futuro. Creio que me fiz claro; gostaria, pois, que cada um dos inquiridos se externasse a êsse respeito. Principiemos com o professor SERAFIM
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- As pessoas que assim pensam estão, pelo menos num ponto, que é importante para a questão, muito mal informadas. Porque a realidade me parece muito diversa, muito diferente, no que se refere a Portugal e à cultura portuguêsa. Portugal, ao contrário, é um país voltado para o futuro, um país moderno. Essa é a realidade que quem vê pode compreender. Sob o ponto de vista do progresso material, há naquele país, hoje em dia, wna preocupação enorme com o futuro, ll'azão por que se empenham em trabalhos importantes de base material. O maior número de pessoas que cursam o ensino superior, fazem-no no Instituto Superior Técnico, de engenharia, cujo exame de admissão é dos mais difíceis, dos mais rigorosos. É nah1ral que em Portugal não haja a febre, a ânsia, a fúria de progresso que se vê no Brasil, ou pelo menos em certos pontos do Brasil, mas não há diferença tão flagrante, tão notória, como dizem tais pessoas, que seguramente não estão bem informadas. Afinal de contas, se o Brasil fôsse assim tão modemo e Portugal tão antiguado, um se completaria no outro, do ponto de vista cultural. Mas êsse não é o caso, repito, pois se Portugal não nos deu fôrmas de cultura, mas a própria dinâmica cultural, essa .dinâmica continuou, entretanto, viva em Portugal também: de sorte que, a falar em dinâmica, hoje temos duas, a brasileira e a portuguêsa, de igual raiz. E se a brasileira vem tomando maior im-
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pulso, maior velocidade, p'Orque o território, a população, as necessidades, os anseios são maiores, nem por isso estará menos longe da verdade quem supuser que em Portugal essa dinâmica desapareceu, ficando o país com os olhos voltados para o passado, num sebastianismo extemporâneo. Creio que se enfrentará mal o problema quando :não se considerar o fundamental; e o fundamental parece-me que é o seguinte: o Brasil tem uma cultura de base portuguêsa - cultura no sentido de conjunto de hábitos, costumes, usos, idéias, vezos, práticas, recebidos dos antepassados e praticados consuetudinàriamente. Essa cultura de raiz portuguêsa é que define o Brasil, é que define a cultura brasileira. Tanto é assim que os .elementos estrangeiros, os colonos que vieram depois - italianos, alemães, japoneses - só se tornam nacionais brasileiros na proporção que adotam essas formas culturais. Essas formas culturais luso-descendentes é que definem o Brasil; é que determinam o Brasil. Pessoalmente, gostarei ainda de frisar um pouto, que a mim me parece extremamente importante: o nacionalismo, no Brasil, não pode consistir na separação de Portugal, separação cultural; pelo contrário, o Brasil se desnaciona1izaria na proporção que se fôsse isolando de Portugal. :11: eyidente que uma aproximação maior não implica, de modo nenhum, em afetar a nossa soberania política, o que, aliás, não está nem nunca estêve em jôgo, nem implica na
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alienação de nossa independência cultural, já que não quer dizer o abandono das florescências novas que da dinâmica portuguêsa repontaram e repontam com a dinâmica brasileira no Brasil.
- Consideremos a posição do professor SiLVIO ELIA.
- Sabemos todos que um dos problemas mais difíceis da lingüística geral é o das causas das transformações lingüísticas. Dêsse modo, considerações com intuitos de aplicação lingüística que se fazem na base de alegações do tipo -Portugal é um país voltado para o passado e o Brasil é um país voltado para o futuro - parecem-me um pouco ou um muito irrelevantes. Na base de tal raciocínio, querer assegurar que a língua fatalmente divergirá cá e lá é estar ligando o problema das transformações lingüísticas a uma causa, que entretanto não está apurada o que seja, aqtúlo que o professor SERAFIM DA SILVA NETO denominou dinâmica cultural. Realmente, o que será essa dinâmica cultural? O têrmo é muito amplo, muito geral: que fatos concretos pode êle comportar? O problema é assim ·dificultado, fantasiado mesmo; creio que se avança demais, quando se quer ligar uma coisa a outra - a língua brasileira à cultura brasileira. Ninguém poderá, com convicção, com fundamentação, dizer que a língua padrão vai divergir em Portugal e no Brasil por causa de uma tendência, por causa de uma perspectiva da alma por-
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tuguêsa em relação ao passado e da alma brasileira em relação ao futuro. Não quero, de outro lado, dizer que isso não possa ter suas conseqüências. Mas até que ponto, realmente, essas conseqüências alterarão o que me parece fundamental - o sistema da língua? Ademais, quero aqui lembrar um fato histórico, de um passado muito recente. Sabemos que uma das revoluções mais consideráveis da história foi a revolução comunista da Rússia. Pois bem, a doutrina comunista, como sabemos, liga os fenômenos sociais aos fenômenos de classe. Houve um filólogo tusso afamado, MARR, que disse que o novo regime, o regime comunista, caminharia para uma nova língua, língua de uma nova classe - já que a língua é uma superestrutura e, cmoo superestrutura, não poderia ser a mesma do antigo regime e do novo, da classe operária e da burguesia. Pois bem : o papa - se nos pudéssemos exprimir assim - do comunismo fulminou essa doutrina do lingüista MARR, doutrina que está hoje em dia em desgraça. Em última análise, disse STÁLINE que a velha língua nacional, a dos czares, seria a mesma língua nacional da Rússia comunista. Se isso pôde acontecer, teve de acontecer, num país que engendrou uma revolução que abre uma nova era na história - e não entro na apreciação dêsse fato -, quê dizer quando a relação que há entre Portugal e o Brasil nãq é absolutamente essa? Não vejo, realmente, ne-
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nhuma consistência nessa afirmação. Não a apadrinharia, porque não saberia trocá-la em miúdos, quando me dissessem: "Muito bem: é a dinâmica cultural, uma voltada para o passado, outra vol.tada para o futuro. Agora faça o favor de descer a fatos lingüísticos, expondo isso tudo no concreto" - eu me sentiria embaraçado, porque não saberia ligar uma coisa à outra. Se êsses que assim afirmam têm provas do alegado, gostaria bastante que as trouxessem para o debate.
- Vejamos o professor CELso CUNHA. - Bem, perfilho as opiniões do professor
SÍLVIO ELIA. Acrescento que essa dinâmica cultural como base de uma nova língua, como base de diferenciação lingüística, se firmada apenas no progresso material, ainda não teve sua ação apurada nem verificada. Os Estados Unidos da Amé·rica, com o maior avanço material dos tempos modernos, não se diferenciaram lingül.sticamente da Inglaterra. E devemos considerar que, de :certo modo, a situação dêsses países contribuiria para a diferenciação, já que não possuem academias de letras, ou equivalentes, com pronunciamentos normativos sôbre a língua padrão. Mas, em contraposição, na Inglaterra como na França, para só citar êsses dois países, a defesa da língua ·como que é feita pelas camadas mais populares. Ouve-se normalmente num e noutro país dizerem os indivíduos dessas camadas que isso não é francês, que aquilo não é inglês, num constante
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combate à inovação. Noutros têrmos, as inovações, quando levados ao plano consciente, são refugadas por tôdas as classes sociais, em tudo o que é povo. Ademais, perfilho também a opinião do professor SERAFIM DA SILvA NETO quanto a considerar Portugal um país estagnado. Somente quem não conheça Portugal pode dizer isso. Seria longo enunciar provas em contrário, bastando lembrar ao lado de sua atividade material os avanços que tem feito nas ciências históricas, ~SOciais, culturais em geral. Não se trata de asseverar que as características do nosso incremento material sejam comparáveis ou iguais às de Portugal, coisa, aliás, que não creio fundamental para o debate. O que se passa entre nós, com relação a Portugal, suspeito que decorre da larga difusão que teve entre nós um ensaio do professor FmE
LINO DE FIGUEIREDO, intitulado Depois de Eça de Queirós. Nos meios ligados aos estudos ou ao conhecimento das letras, mas ligados por vínculos superficiais à evolução do pensamento português, houve, creio que por causa do título do ensaio, a rerrônea suposição de que depois do grande romancista a literatura portuguêsa estivesse morta; não foi sem espanto, por conseguinte, que vieram a saber, depois, que essa literatura morta contava com um FERNANDO PEssoA, quer dizer, um grande gênio literário, português. A verdade é que Portugal conta com uma literatura pujante, muito desconhecida entre nós, salvo nos meios universi-
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tários, mas em verdade mal conhecida sobretudo pelos nossos críticos literários. Um MIGUEL ToRGA, um JosÉ RÉGIO, por exemplo, honrariam qualquer literatura contemporânea, são grandes em Portugal, sê-lo-iam no Brasil e onde quer que seja. E na pesquisa científica não vale a pena estar citando nomes, basta que lembremos as figuras portuguêsas que participaram do último Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, de Lisboa. Incidentemente, permita-se que eu faça um pequeno comentário em tôrno dos estudos científicos lingüísticos, pois que a êsse respeito lavra ainda uma tão lamentável confusão, que nunca será demais levantar a voz contra ela. Num projeto do govêrno, para que, por meio de instituição adequada, viessem êles a ser incrementados no Brasil, em função da realidade lingüística brasileira, uma autoridade, chamada a opinar por injunções de suas funções, de suas altas funções, considerou tais estudos bizantinices, sem interêsse para o futuro do Brasil, país dinâmicamente voltado para o futuro. . . :E: uma concepção de ciência que consegue separar os campos do conhecimento em compartimentos tão estanques que chega à conclusão graciosa de que se pode avançar num dêles com absoluta ignorância de outros ou dos demais. A ciência, no fundo, é uma só e o enlace das diversas disciplinas de especialização é tão mais estreito do que alguns pensam, que não constitui surprêsa para quem estuda ver uma pes-
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quisa pura feita num sentido e numa direção ter aplicações teóricas e práticas inesperadas, em .campos aparentemente dissociados. Dizer que os estudos lingüísticos são bizantinos é o mesmo que dizer que os sputniks não têm significação científica ou só têm significação bélica... Um dêsses bizantinos, por exemplo, o padre RoussELOT, fundador dos estudos experimentais de fonética, especialista, em última análise, de pronúncias, foi quem localizou o canhão Berta, que atirava sôbre Paris as suas cargas mortíferas, permitindo a sua destruição; eis um exemplo de aplicação bélica inesperada, mas provinda de estudos bizantinos ... Outro bizantino, o foneticista, ainda, português, doutor ARMANDO DE LACERDA, tendo descoberto um aparelho a que deu nome de cromógrafo, destinado ao registro preciso da voz humana, viu seu invento ter uma aplicação para a obtenção de .. . electrocardiogramas, mas com tal economia e eficácia que o resultado era obtido por custo da ordem de 10 centavos de cruzeiros. . . Com isso quero lembrar que os problemas do Brasil não são apenas as verminoses, a paralisia infantil, a malária, como se alegou; além de muitos outros, incluem-se também os lingüísticos, que dentre outros benefícios podem oferecer o de ensinar a pensar, fazer pensar, pensar pura e simplesmente - o que sempre é uma condição para que os homens se compreendam e compreendam os seus problemas, individuais e sociais. Mas êsses exemplos foram
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aqui invocados apenas para lembrar que a ordem de estudos a que nos dedicamos, sem pretender ser mais importante do que as outras, não o é porém, menos, e também para reivindicar, para ela, a posição que merece, no Brasil de hoje e de amanhã.
- Creio, com sua resposta, culminando as duas anteriores, que a questão da assimetria ou diferenciação culhual existente entre o Brasil e Portugal, invocada para justificativa de uma língua brasileira, fica, assim, colocada nos têrmos em que o deve ser. Desculpo-me, porém, com dizer que ainda não esgotamos os pontos mínimos que me propus submeter-lhes. Não se pode negar que os brasileiros cultos, quando ainda não amarrados à escola do purismo clássico e se não possuídos do que eu poderia denominar de um espírito hiperlusófico, tendem a sentir que a língua portuguêsa não é propriedade também sua enq!lanto não declararem independência ou morte com relação às formas e fórmulas de criação endógenas, isto é, brasileiras, dessa mesma língua. Na realidade, o que eu quero insinuar é que um grande número, um número crescente de brasileiros culturalizados, sente que se exerce uma coerção gramatical, que os p1incípios da canônica gramatical, como digo, são excessivamente rígidos e por yêzes por demais arbitrários ou distanciados de certas tendências profundas das mais generalizadas formas e fómmlas de expressão do pensa-
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mento comum entre brasileiros, mesmo cultos, quando falam e quando escrevem algo espontâneamente. Tudo leva a crer que essa coerção gramatical é algo bizantina - agora emprego a palavra deliberada e pensadamente -, porque, se a língua nos é propriedade comum, a realidade é que a canônica gramatical parece ser de mais difícil assimilação por parte dos brasileiros que dos portuguêses, como se êstes, de fato, continuassem sócios proprietários e nós apenas sócios de participação de lucros. . . Será, em verdade, que a língua portuguêsa, para continuar com a imagem, continua sendo propriedade dos portuguêses e empréstimo para os brasileiros? Vejamos, professor SERAFIM DA SILVA NETO.
- Nem continua nem nunca foi. A língua portuguêsa pertence a todos que a falam. Todos somos sócios nessa grande sociedade cultural. Se houver um chinês que fale bem o português, também êle é. dono. O professor TEISSIER, por exemplo, o professor RÉVAH, que são franceses, qne falam bem o português, que são, aliás, grandes estudiosos de seus fenômenos, também têm uma cota; também são donos. Como dono, também, é o professor BoxER, norte-americano, pelos mesmos motivos. É uma propriedade que custa um pouco, porque é preciso aprender o português, que não é fácil. Mas, uma vez aprendida, a língua é propriedade de quem a fala. Por isso, os brasileiros são tão proprietários quanto os portuguêses, dessa
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língua que nos é comum. Tive até ocas1ao de dizer em Lisboa - e o meu caro amigo CELSo CuNHA deve ter ouvido - que a língua portuguêsa é hoje propriedade comum sobretudo de brasi· leiros e portuguêses, que têm maior número de cotas. E que a língua portuguêsa tem duas cabeças, tem duas capitais, Rio de Janeiro e Lisboa. Isso é uma coisa evidente. Agora, o problema do ensino da língua é outro, um pouco diferente. Com o muito respeito que os nossos colegas merecem, o fato é que o ensino da língua é mal feito, por uma série de motivos que não vamos aqui tentar dizer. Com algumas exceções muito honrosas - quero sempre citar as exceções, porque não desejo que os colegas fiquem ofendidos comigo - como a do nosso RocHA LIMA, que é prefaciada por mim, como a do MÁRio DE SousA LIMA, como a do SAID ALI (que já morreu, mas que também pode ficar ofendido comigo, no outro mundo), que são excelentes, com algumns exceções as gramáticas brasileiras são mal codificadas, são mal feitas. Têm realmente regras bizantinas. Mas aí a culpa não é de Portugal nem do Brasil, a culpa é que ou não temos ainda bons gramáticos ou os bons gramáticos não escrevem gramática. Em suma, o que é precis;> é estimular uma melhora no ensino da língua, um aperfeiçoamento nesse ensino . . .
- O professor CELSO CUNHA parece que tem alguma achega a dar a êsse respeito.
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- De fato, essa questão de propriedade lingüística, da prop1iedade da língua, de Hngua própria, etc., tem sido sempre lembrada não só no Brasil, mas também nos diversos países da América espanhola, em relação ao espanhol, e nos Estados Unidos da América, em relação ao inglês. Trata-se de um equívoco, mas equívoco em que laboram, no nosso caso, brasileiros e portuguêses. No caso, devemos culpar a todos que colaboram para essa incompreensão. São os portuguêses a se arvorarem em proprietários exclusivos da língua e a se permitirem ditar a norma inflexível por que se devem pautar aquêles que entendem a re-1ceberam de empréstimo, são os brasileiros a quererem fugir ao padrão coercitivo, a anelarem uma língua particular, baseados no raciocínio simplista de que, sendo uma nação soberana, o Brasil dever ter uma língua própria. A propósito dessa questão de língua própria ou de empréstimo, originada pelo sentimento de nacionalismo · transportado para o campo da ciência da linguagem e pelo esquecimento de que uma língua é uma norma, um contrato social entre o falante -e escrevente - e o ouvinte - e legente -, únicos ou múltiplos, que não pertence particula1mente a ninguém mas à coletividade que nela se exprime, porque nela pensa e sente, vale repetirmos aqui ou recordarmos aqui mais ou menos o raciocínio do malogrado filólogo espanhol AMADO ALoNso, com respeito a incompreensões idênticas relativas ao
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inglês e ao castelhano falados e escritos em terras de América. Diz êle, se não me falha a memória, o seguinte: Essa idéia de língua própria provém de uma confusão. Os bens anotados no registro de propriedade são próprios de uns quando não o são dos demais: uma casa, um campo, também êsse relógio. Para poderem ser de minha propriedade, êsses objetos têm de não ser da propriedade dos outros. Mas a língua não é dessa casta de bens; ao contrário, pertence àqueles que são maiores quando mais comunicados, como diziam os homens do Renascimento. Uma língua é própria de uma nação, quando é a que as crianças aprendem dos seus pais, a que os conacionais empregam em sua vida de relação e a que os seus poetas e prosadores elaboram e cultivam esteticamente, para as suas produções de alta cultura. Se assim é, a língua de um país é bem próprio, absolutamente próprio dêsse país, não importando que em outros países as crianças aprendam a falar na mesma língua e os homens se entendam com ela, os escritores a trabalhem em suas criações culturais. E se não se quer atender ao fato de que uma língua vive em perpétua formação, motivo por que é própria e obra de quantos a falam como língua natural, e se pensa que os inglêses, portuguêses, espanhóis receberam de seus antepassados a língua em propriedade como por herança legítima, ao passo que os americanos
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a recebem de mãos alheias, em caráter de mero usufruto, também se erra. A atual geração de inglêses (e no caso, aqui, de portuguêses) e os seus pais a receberam da geração anterior, e por isso o inglês (e o português) era a sua lí.ngua própria e natural. E a geração anterior da mais antiga, e assim sem solução possível de continuidade. E o mesmo sem a menor sombra de diferença fizeram os norte-americanos (e os brasileiros), até que cheguem inglêses e norte-americanos (e por-1tuguêses e brasileiros) a uma geração de antepassados que lhes seja comum. Dessa geração de inglêses (e de portuguêses), que falavam o inglês (e o português) como língua , própria, uns ficaram na Inglaterra (e Portugal) e outros foram para a América. Será que os colonizadores teriam perdido a pTopriedade da língua por se haverem expatriado ou acaso seus filhos, nascidos em terras americanas, falavam uma língua que, sendo a dos. seus pais, não lhes era mais própria, porque a sua propriedade a tiveram registrada os que permaneceram na Inglaterra (e Portugal)? E os filhos dos primeiros mestiços, os crioulos, não falavam também uma língua própria. se falavam a língua dos seus pais? Assim se chega à evidência de que para a geração atual de americanos, o inglês, o espanhol, o português são línguas tão próprias, exatamente tão próprias, sem mais nem menos, do que para os inglêses, portuguêses, espanhóis.
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- Poderia o professor SILVIO ELIA agregar .algumas considerações às já feitas, sôbre essa questão de propriedade da língua?
- Já que os meus dois colegas falaram e o hábito tem sido uma manifestação" tríplice, não vou deixar de aqui também dizer algo. Essa referência que o professor CELSO CUNHA acaba de fazer a AMADo ALoNso me parece, realmente, luminosa, e até já a tinha aproveitado também, em parte, no meu livro O problema da língua brasileira. De fato, a língua própria é aquela que AMADO ALONSO definiu, aquela que recebemos de nossos pais, que as crianças falam, que os poetas usam, que os governos aplicam, de modo que a língua do Brasil é tão própria de nós, brasileiros, quanto a língua de Portugal é própria dos portuguêses. Quanto à questão das inovações lingüísticas, que, se não :me engano, dão margem à controvérsia de saber se aceitáveis quando geradas em Portugal e inaceitáveis quando no Brasil, creio que há uma conceituação de JoÃo RrnEmo bastante elucidativa, quando diz que a língua do Brasil é essencialmente a mesma língua de Portugal, a língua portuguêsa, mas livre nos seus próprios movimentos. Evidentemente o que se cria no Brasil é !ão legi·timo quanto o que se cria em Portugal. Os filólogos devem, exatamente, estudar essas inovações, e cabem aos institutos de cultura - por exemplo, a escola, o livro, a rádio, e outras agremiações -contribuírem no sentido da unificação, para que
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essas inovações não se convertam em fraturas, Isso é que me parece importante. Mas em si mesmas, são tão legítimas as de Portugal, é claro, quanto são as do Brasil. :t;: o que queria acrescentar.
- Somos, pois, todos unânimes em reconhecer que as diferenciações existentes entre o português do Brasil e o de Portugal, bem como as diferenciações dialetais dentro do português do Brasil ou dentro do português de Portugal, não são bastantes para quebrar a unidade lingüística ·comum, que por sua própria natureza é diversificada regional, social, individualmente (quaisquer que sejam as línguas comuns existentes à superfície da terra). As diversificações dêsse tipo se sobrepõe um ideal cultural lingüístico comum. :E:sse ideal, no caso de nossa língua, apresenta a peculiaridade de ter hoje em dia duas capitais, Lisboa ou o eixo Lisboa~Coimbra, Rio de Janeiro .ou eixo Rio de Janeiro-São Paulo, ambos com amplificação cada vez maior, não importa. O fato é que essas capitais de cultura, de língua comum, tendem a se tornar cada vez maiores, em lugar de tenderem a diminuir, pelo mesmo processo de unificação a que nos referimos anteriormente. De maneira que, se na situação contemporânea se pode dizer que uma língua tem uma capital citadina (ou duas), nada nos autoriza a não supor que num futuro relativamente breve venhamos a ter uma (ou duas) região extensíssima como ca-
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pital da língua. O fato é que, com isso, continuamos sem elucidar certos aspectos relacionados com a noção do certo e do errado, da gramática padrão, da canônica gramatical, em suma. Retorno à pergunta que já formulei de se a canônica gramatical geralmente imposta no Brasil pelos profissionais do estudo e do ensino da língua não violenta bizantinamente a consciência dos brasileiros que querem aceder ao padrão literário, quando postula - para concretizar num exemplo que sirva meramente de esquema para o raciocínio - "eu tenho-lhe dito dia e noite tal fato", com um traço-de-união em "tenho-lhe", em lugar de aceitar lisa e simplesmente a grafação "eu tenho lhe dito", cuja contrapartida fônica, digamos natural, é sem o traço-de-união. O exemplo, repito, serve de esquema para o raciocínio, porque, infelizmente, poderia ser multiplicado, temo que por muito ... Vejam que, com êsse exemplo, não estou sugerindo uma argüição gratuita, porque êle tem por trás de si o fato fundamental - muito sensível ao professor PIERRE FoucHÉ - de lindar com a melodia e o ritmo da língua. Ora, impor êsse cânon, essa canônica, que é tipicamente portuguêsa - no duplo sentido, literário e falado - aos brasileiros não será um daqueles casos de bizantinice gramatical, ou crêem, ao contrário, meus queridos depoentes, que aí estaríamos ante uma brecha potencial da estrutura comum da língua padrão? Ao professor CELSO CUNHA, para iniciar.
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- Bem, o exemplo lembrado pelo inquiridor é curioso, no seu aspecto genérico, porque nos leva a uma diferença um tanto sensível entre o português culto falado no Brasil e em Portugal, diferença que incide sôbre a própria tonicidade e semitonicidade de certos monossílabos. Sabemos que o problema não é só português, e o mal tem sido êsse de colocar em oposição a situação das palavras átonas em Portugal e no Brasil. Trata-se de um fenômeno de ordem românica. A atonificação dos monossílabos átonos é um processo freqüente nas línguas românicas; além disso, o problema nos leva à conceituação de enclíticos, de :proclíticos, de palavras de apoio frásico. Em verdade, parece que por princípio não há proclíticos: as palavras assim são de fato enclíticas; como, porém, tomamos como ponto de referência o verbo na frase, então dizemos que é ela proclítica ou enclítica em relação a êsse verbo. Mas em realidade, do ponto de vista fonético, a questão· parece outra. Numa frase, tomada como esquema, do tipo "espero que se faça isto", o "se" nada tem que ver, fonêticamente, com o "faça" - o que faria o "se" ser denominado proclítico -, :mas, sim, êle se prende ao "que". O fato é tanto tmais digno de realce quanto alguns filólogos pressentiram empl.ricamente o fenômeno - digo empl.ricamente, porque viram que a reunião de dois monossílabos átonos determinava o encorpamento ·do conjunto. As palavras que servem de apoio
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frásico, isto é, aqu.elas sôbre as quais uma palavra átona poder "deitar-se" ou com as quais formar conjunto, êsses monossílabos do tipo de "que", de "se", têm dado margem a numerosos trabalhos dos romanistas. .E mesmo os chamados foneticistas experimentais têm estudado com 1cuidado tais monossílabos. Ora, no que se refere ao Brasil, mesmo sem usarmos de aparelhos apropriados, tem-se notado que os chamados monossílabo's átonos não -são, entre nós, tão átonos quanto em Portugal. Dentre outras razões, algumas são sensíveis para explicar o fato: o nosso silabismo é mais nítido do que em Portugal, a cadência é mais lenta, o vocalismo, como já vimos nesta discussão, mais arredondado ou mais proferido. Em conseqüência, em "eu tenho lhe dito" da pronúncia brasileira, o "lhe" não é propriamente uma palavra átona, mas antes uma semitônica ou semi-átona, como quiserem. Ora, uma palavra semitônica tem naturalmente maior autonomia fonética, maior mutabilidade de posição, do que urna palavra átona na frase. ~sses monossílabos, quand~ pronomes, são geralmente complementos de verbos, essenciais, por conseguinte, à significação da frase. Se o seu obscuretcimento na pronúncia fôr excessivo, pode provocar inclusive a quebra de sentido da frase. Daí a necessidade de virem êles em uma posição detetminada, digamos, a posição normal das línguas
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românicas, que vem a ser a do pronome enclítico ao verbo, pelo menos como colocação preponderante. Ora, no português do Brasil há uma mutabilidade maior. Daí essa famosa questão da colocação dos pronomes, que tem feito gastar tanta tinta dos professôres de português. Mas o fato é que, qualquer que seja á sua explicação, o fenômeno não é dos que incidam sôbre a estrutura unitária do português comum. Não ignoramos, por exemplo, que em latim havia uma mutabilidade muito maior na frase, desd,e que a palavra, quer fonética, quer morfológica, quer funcionalmente indicava claramente sua relação para com as demais, podendo, em conseqüência, !mudar de lugar no todo fraseológico com maior facilidade do que naquelas línguas, como o francês, pobres do ponto de vista mórfico, em que o lugar da palavra na frase supre aquelas relações, para não prejudicar o próprio entendimento do contexto. · Voltando, pois, ao esquema tomado como exemplo pelo nosso inquiridor, não me parece que êsse fato seja grave, do ponto de vista de suas repercussões na estrutura unitária do português padrão. De todos os modos, tais esquemas como muitos outros devem ser objeto de estudos aprofundados, porque não sabemos se em tôda a extensão do português falado no Brasil êles ocorrem. Só um atlas lingüístico é que nos diria quais as tendências, qual a ordem preferida em certas regiões em
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opos1çao a outras. Porque, hoje, também, não se aceita que a colocação, mesmo em latim, fôsse puramente arbitrária, como ensinavam os antigos professôres dessa língua. Os estudos de MAROUZEAU e de outros mais vieram mostrar que a realidade era algo diferente dessa afirmativa um t anto gratuita, fundada em aparência falaz.
- Com a palavra o professor SÍLvio ELIA. - As declarações do professor CELSO CuNHA
sao de todo pertinentes. Creio que admitirmos como boa sintaxe as construções do tipo "tenho lhe dito" nada fere aquela unidade lingüística que queremos preservar entre as duas grandes nações de língua portuguêsa. Trata-se de uma questão ligada à pronúncia, ao ritmo da frase, onde evidentemente sempre se observaram, se afirmaram divergências. Com prender à colocação das palavras, não raro, essas razões fonéticas apontadas pelo meu colega, se passa para razões estilísticas, onde a liberdade é muito grande. Isso mostra que não se está pi'opriamente dentro do que poderia ser chamado o sistema gramatical da língua. f: uma das poss'bilidade> da língua, exatamente, cujas realizações tomam tais ou quais aspectos no Brasil e tais ou quais aspectos em Portugal, sem contar com tais ou quais aspectos neste, naquele, num terceiro, num quarto autor. O sistema morfológico, que tem sido sempre considerado como a cidadela da língua, tal como o faziam os compa-
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ratistas, o sistema morfol6gico não está sendo atingido com essas variações de colocação. Não vejo gravidade no fato, por conseguinte.
- Já que o professor SÍLVIO ELIA traz à colação a questão morfol6gica, quero agora, a título de mero cotejo de esquemas, ver o ponto de vista dos meus ' inquiridos para um fato comparável, por sua relativa universalidade no português falado do Brasil, falado sobretudo no co1oquialismo espontâneo de nossas camadas rurais e populares citadinas não culturalizadas. A realidade viva, cuja universalidade, repito, fica na dependência de verificação por meio de um atlas lingüístico, presume que a flexão verbal tenha sofrido tremenda redução, do esquema "eu corto, (tu), você, o senhor corta, êle corta, n6s corta, êles corta", a saber, "corto/corta". Na base dessa realidade- e tomo a liberdade de frisar que, se bem compreendidas até suas últimas conseqüências certas reivindicações neobrasileiristas, não é ela tão fantástica quanto parece - na base dessa realidade seria possível, atesta-o o estado atual do francês, erguer um edifício morfol6gico coerente para o "brasileiro". Poderia isso representar um progresso? Vejo que o professor SERAFIM DA Sn.vA NETO está insofrido por responder ...
- Claro que significaria um evidente retrocesso. Pois então n6s, que temos uma tradição culta, apreciável, que temos uma grande literatu-
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ra, vamos abandonar esSa tradição, que se entronca numa tradição culta, a da literatura portuguêsa, para adotar como novo padrão os falares rurais do Brasil, que a meu ver são crioulos ou semiICrioulos? Então vamos adotar um tipo lingüístico cuja morfologia é reduzida a frangalhos, reduzida a fragmentos, língua pobre, língua inculta, rude, e vamos tentar transformar essa língua num novo ideal lingüístico? Isso seria um absurdo!
· - Professor CELSO CuNHA : .. - Seria mesmo necessário mudar o ideal es
tético de tôda uma coletividade: E, como lembrou o professor SERAFIM DA SILvA NETo, hoje temos urna literatura de importância não só nacional, mas com pretensões justificadas mesmo a gozar de valor internacional. E vemos mesmo o bom êxito de traduções de autores brasileiros em outras línguas. Lembro-me, aqui, da opinião que me externou recentemente em Madrid o professor DÁMASO ALoNso: a literatura brasileira é hoje urna literatura que conta, juntamente com a inglêsa, com uma poesia das mais importantes do mundo contemporâneo. Há fundamentos ou vantagens de qualquer natureza para trabalharmos pela ruptura com êsse passado tão presente?
- Vejamos, agora, a opinião do professor SÍLVIO ELIA.
- Quero simplesmente manifestar minha concordância com os colegas, reportando-me, aliás,
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às minhas afirmações anteriores. No caso vertente, estamos ante fatos de flexão, fatos de morfologia, fatos que dizem respeito ao sistema gramatical, por conseguinte. :E:sse empobrecimento, com a adoção de maneiras de falar crioulo, de linguagem simplificada poique traduz um psiquismo rudimentar, isso seria um retrocesso, uma atitude que viria prejudicar a língua portuguêsa do Brasil e que talvez, ainda assim, não viria a criar a "língua brasileirà'.
- Bem. Creio que, já agora, posso encerrar a conversa que desejei manter a respeito da "língua brasileira" com os meus caros entrevistados. Em face das considerações expendidas, parece que atingimos uma compreensão comum, com a clareza mínima desejável. Creio que podemos conclJJ.ir, em caráter, digamos, de unanimismo, ressaltando, dentre outras que se esboçam ao longo da conversa, as seguintes teses fundamentais:
1.0 ) a língua falada no Brasil é essencialmente a língua portuguêsa;
2.0 ) a língua escrita no Brasil é essencialmente a língua padrão, culta, comum para o pensamento universalista;
3.0 ) essa língua apresenta, como é intrínseco a quaisquer sistemas lingüísticos, possibilidades variáveis e estilísticas, nacionais, regionais, sociais e individuais, que são vàriamente usadas no Brasil e em Portugal, nas suas regiões, pelas suas
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camadas sociais e pelos seus escritores e indivíduos falantes;
4. 0 ) os fatos dialetais merecem estudo e pesquisa profundos, sendo sobretudo urgentes no Brasil, pelo atraso que no respeito há entre nós; devem estar na base mesma de qualquer evolução lingüística, mas por sua própria situação poderão (e deverão) esboroar-se, esfumar-se, na medida em que se consolidar a unificação da língua comum, na marcha paralela com o avanço cultural do meio a que serve de instrumento de comunicação;
5.0 ) no grau de elaboração cultural que atingiu êsse instrumento de comunicação, com duas literaturas altamente significativas vinculadas pelo denominador comum instrumental, êle não pode ser melhorado senão mercê de seu uso eficaz como instrumento de comunicação universalista, quaisquer que venham a ser as derivações,' variações ou evolução do conteúdo de cultura ou de culturas de que é expressão e vetor;
6. 0 ) a codificação, a canônica gramatical (e seu ensino) é possível de críticas, por pretender a uma fixidez, de um lado, e a uma exclusão de variedades e possibilidades, de outro lado, mas nesse caso o defeito não é do instrumento, mas .dos que estão encarregados de ensiná-lo;
7.0 ) não parece haver razões ponderáveis, já :nacionais, já culturais, já mesmo patrióticas, já de
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 1~9
quaisquer naturezas, que militem em favor de seu abandono, com tôdas as suas virtudes conhecidas e outras potenciais, em favor de um outro, calcado sôbre dieletalismo cuja generalidade está por ser apurada, mas cuja característica é sua pobreza, de vária natureza, em correlação com a limitação cultural de que é expressão.
(1958)
SôBRE A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA
I
O Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação e Cultura, acaba, nesta cidade e neste ano, de publicar, sob o título Enciclopédia brasileira, introdução, diretrizes, normas gerais, um volume de 186 páginas, sob muitos aspectos precioso salvo pormenores insignificantes, dentre os quais ressaltaria a inoportuna fotografia do presidente da república e a do ministro da Educação e CUltura, que ocorreriam melhor, a ocorrer, no primeiro tomo da Enciclopédia propriamente dito. E isso vai observado por quem, embora sendo objeto de discriminação arbitrária, );lá quase cinco anos, nas suas modestas funções, por prepostos como êle do poder público, nem por isso deixou de emprestar seu mais decidido apoio, na sua ordem de pequenez, ao advento do atual govêmo e continua a crer que, ante as perspectivas imediatas, é êste o que melhor traduz e pode realizar as aspirações mínimas do nosso povo. Mas _isso pouco ou quase nada tem que ver com o objetivo destas linhas - que é o de contribuir, eventualmente, com algumas idéias,
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para a solução do problema da averbação na Enciclopédia brasileira.
O senhor EURÍALo CANABRAVA, no artigo introdutório do volume, "Diretrizes da Enciclopédia brasileira", reconhece que a tarefa que se tem pela frente deve renunciar à pretensão "à obra perfeita, que ainda não estamos em condições de realizar" ( p. 15), ressaltando, logo em seguida, a "necessidade de estabelecer normas claras não somente para inclusões, como também para omissões", vale dizer, inclusões e omissões de dados, fatos, idéias, pessoas, lugares, objetos, coisas, em suma, bits na nomenclatura documentalístico-cibernética. Baste-nos, neste respeito, considerar que num pequeno tomo de cem páginas quaisquer, mais ou menos tensas de conhecimentos e noções, um pesquisador de bits poderá encontrar até cem mil, quando não mais, informações. Ora, ainda que os bits coincidam, nos verbetes enunciadores respectivos, na proporção de 99%, de · obra em obra daquelas dimensões - quaisquer que sejam os assuntos tratados -, é fácil de imaginar que, ràpidamente, se chegaria a uma enciclopédia de porte chinês tradicional, o que quer dizer obra impublicável, pelo custo e pela dispersão e redundância de plano e de informação. Destarte, aquêle princípio diretor é, creio, fundamentalmente justo e necessário, sem dúvida uma das condições, quando não a principal, para o bom êxito do tentame.
132 ANTÔNIO HOUAISS
No "Plano geral da Enciclopédia brasileira", a p. 31, encontra-se a seguinte disposição:
Número de verbetes de cada classe. - A quantidade de verbetes não seria variável nas duas enciclopédias [a menor, de publicação dentro do atual qüinqüênio presidencial, e a maior, que se alongará pelos anos futuros, como tem de ser], mantendo-se em ambas mais ou menos a mesma estrutura, forma e pontos básicos. A primeira representaria uma síntese de conhecimentos e a segunda, bem mais ,extensa, rica e desenvolvida, seria de maior valor cultural, portanto. Devido ao tempo transcorrido entre a publicação das duas, verificar-se-á, evidentemente, a inclusão de novos assuntos, motivada pelas om1ssoes que, inevitàvelmente, ocorrem na primeira, apesar do maior cuidado no preparo do seu texto.
Como ordem de grandeza, podemos admitir quantidade arbitrária de 250.000 verbetes para cada uma das duas enciclopédias, variando a segunda, como já foi dito, na forma muito mais extensa e atualizada.
Retenhamos essa ordem de grandeza: 250.000 verbetes. Consideremos, de outro lado, sem pre-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 133
tender nem de leve esgotar todos os aspectos da questão, os seguintes pontos de referência:
I) o Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa, de LAUDELINO FREIRE, com a colaboração do professor J. L. DE CAMPos, contém cêrca de 209.000 verbetes, exclusivamente definidos do ponto de vista dos usos lingüísticos; isto é, cada vocábulo é acompanhado de tantas definições quantas forem as suas funções lógico-gramaticais, ou os seus matizes ou valores semânticos, inclusive os das linguagens especializadas, vale dizer, das artes, das religiões, das ciências, das filosofias, das artesanias, das profissões, sendo que na definição dêsses usos particulares os vocábulos em causa não esgotam - nem o pretendem - os aspectos técnicos senão superficiais envolvidos em cada um. Ora, é ponto pacífico que o Grande e novíssimo dicionário é já hoje, embora ainda dos mais ricos quantitativamente, omisso de um número considerável de vocábulos, cuja averbação poderia fazer ascender seus verbetes para a ordem de grandeza de 250.000 unidades. Considere-se, contudo, que êsse número seria representado essencialmente pela soma dos verbetes atuais (em que se incluem regionalismos continentais portuguêses, brasileirismos, alguns africanismos, asisticismos e oceanicismos, já acolhidos, eventual ou extensivamente, em obras literárias, científicas ou dialectológicas), mais os verbetes provindos do avanço do conhecimento científico,
9
184 A N T Ô N I O H O U A I S S
com a terminologia e nomenclatura decorrente, do incremento das técnicas e da coleta de novos vocábulos regionais. No momento, porém, em que já se anuncia a publicação, para breve futuro, do Atlas lingüístico da Península Ibérica e em que se pensa enfrentar, de forma sistemática, a pesquisa dialectológica e etnográfica brasileira, é certo que a ordem de grandeza de 250.000 unidades empalidece, não sendo exagerado supor que, num curto lapso de tempo, venhamos a poder averbar, lingii.isticamente, para mais de 300.000 unidades;
II) o W ebster' s Biographical Dictionary, na sua mais recente edição ( 1953), por sua vez, tomado como base de uma nômina onomástica, oferece cêrca de 40.000 verbetes. f: verdade que êsse onomástico é preferencial no que tange ao mundo anglo-saxônico, podendo, pois, sofrer um corte sensível nesse setor; em contraposição, · o mundo luso-brasileiro, muito pobremente nêle representado, contra-regrará aquêle corte, devendo-se, assim, admitir como base a possibiHdade de um quantitativo de verbetes onomásticos da ordem de 40.000 unidades averbáveis na Enciclopédia bmsileira (o que a rigor é excessivo, como se verá de cotejos adiante estabelecidos);
III) o W ebster' s Geographical Dictionary (edição de 1949), ainda, tomado como base da nômina toponímica, oferece, por sua vez, cêrca de 40.000 verbetes. f: verdade que essa toponí-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 135
mia é preferencial no que tange ao mundo anglosaxônico, particularmente ao território dos Estados Unidos da América, podendo, pois, nesse particular, sofrer corte sensível; mas o mesmo raciocínio feito supra cabe aqui também, sendo, pois, lícito admitir como base a possibilidade de um quantitativo de verbetes toponírnicos da ordem de 40.000 unidades averbáveis na Enciclopédia brasileira (o que a rigor é excessivo, como se verá adiante).
Sem discutir as omissões já existentes, no corpo dos dicionários em português, quanto à imensa nomenclatura dos "reinos" animal, vegetal e mineral, já no seu aspecto popular, já no seu aspecto científico, é admissível supor que inclusões pouco discriminadas poderiam fazer montar o número de verbetes da futura Enciclopédia bra.sileira para a ordem de grandeza de 40.000 unidades. Para só lembrar o caso da Enciclopédia universal ilustrada europeoamericana, a chamada Espasa-Calpe, anotemos que o "proemio" ( vol. 1 A-ACD) se gaba de que "figurarán en nuestra obra, debidamente clasificados, con toda la sinonímia técnica y denominación vulgar, los géneros botánicos completos hasta el día, constituyendo un caudal de más de 20,000 artictilos nuevos y 50,000 voces diferentes, con su breve y completa
136 A N T Ô N I O H O U A I & S
descripción de caracteres" ( p. VII). f: verdade que, no caso vertente, embora possa semelhante tipo de enciclopédia prestar incontestáveis serviços, é ela - pelo plano (difícil de depreender, seja logo dito por amor da objetividade) e sobretudo pela massa indefinida de achegas e inclusões - quase informe, servindo de modêlo, por seus dez tomos de apêndices e seus oito de suplementos aos primitivos setenta, de como não se Çleve pretender enciclopedizar nos tempos presentes. Em oposição a êsse tipo de enciclopédia, ergue-se a famosa Brit:annica. Esta, na sua edição de 1951, consegue encerrar tôda a matéria enciclopedizada em vinte e três volumes, com um vigésimo quarto de índices e atlas. Nos vinte e três volumes de texto, há tão-somente 41.000 verbetes alfabetizados ou articles, que se desdobram, ;remissiva e alfabeticamente, no vigésimo quarto, num extenso vocabulário com · um mínimo de 70 unidades por coluna, seja 350 por página, seja, em 507 páginas, 177.437 unidades, a que se deve acrescentar 100 unidades por coluna toponímica, seja, 500 por página, seja, em 59 páginas, 29.500 topônimos o que, tudo, totaliza 206.937 "informações" brutas, isto é, remetidas para "informações" líquidas. (Trata-se. em tudo isso, de um cálculo mínimo, a que procedi por mera aproximação, mas a figura global não deve estar muito alterada, a ponto de invalidar os dados para a argumentação. :n:sse número de topônimos deve ser levado
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 137
em linha de conta como eventualmente possível na Enciclopédia brasileira, contra o referido segundo o ·w ebster acima citado).
Temos, assim, por duas vias, dois números de base; de um lado, 400.000, não desdobráveis em vocabulários indiciadores, de outro lado, 41.000, desdobráveis em vocabulários indiciadores com um mínimo de 177.000 ou 207.000 unidades remissivas, cumulativas, cuja inter-remissão se faz (ou se deve fazer, pois há lacunas) nos articles propriamente ditos. O número de 250.000 verbetes, prospectivamente admitido no plano geral da Enciclopédia brasileira, é bem verdade que como "quantidade arbitrária", pode, dêsse modo, ficar muito aquém das necessidades mínimas ou muito além delas.
Mas consideremos ainda êsse número de base adotado pelos planejadores. São 250.000 unidades distribuídas entre 1) verbetes-monografias, 2) . verbetes de expansão, 3) verbetes ilustrativos, 4) verbetes de definição e 5) verbetes de remissão. As definições que dêsses verbetes dá o volume introdutório do plano, pp. 32-34, são claras para o estágio presente dos trabalhos. Vejamos, porém, algumas ilações que se podem fazer da discriminação acima dos verbetes. Os verbetes de remissão devem "conter apenas os títulos, os subtítulos e as referências ao verbete ou aos verbetes onde serão encontradas informações que lhe são correlatas". Servem, assim, "para facilitar
138 ANTÔNIO HOUAISS
a procura, evitando-se os índices gerais, comumente utilizados para essa pesquisa". A atermonos a essa definição, sobretudo no que ela encerra de categórico, com referir os "índices gerais", po-
- deremos, de novo, estabelecer certa aproximação do plano de averbação da Enciclopédia brasileira com a Encyclopaedia Britannica, já que a primeira encerraria 250.000 verbetes no corpo dos volumes e a segunda encerra 41.000 no cmpo dos volumes ·e, pelos nossos cálculos, 177.000 ou 207.000 no índice, seja, na hipótese maior, 247.000 unidades.
Cabe perguntar, destarte, quantos verbetes de :remissão, prospectivamente, admitem, a mero título estimativo, os planejadores da Enciclopédia brasileira; se o número fôr aproximativamente igual ao da Britannica, estaremos em face, no particular, de uma estrutura relativamente afim, com a diferença de colocação dos verbetes de remissão, no primeiro caso, no texto, no corpo enciclopédico, no segundo caso, em posição extratextual, final. O argumento em favor da inclusão dos verbetes de remissão no corpo enciclopédico é feito sob a invocação do nome de MÁRio DE ANDRADE, cujas razões são dadas a p. 33 e que nos dispensamos de transcrever, rogando, entretanto, releitura da passagem. As razões de MÁRio DE ANDRADE, contudo, podem ser ou não ser válidas, ocorrendo, porém, uma objeção capitalíssima, a saber: semelhante critério de ínclusão dos verbetes de remissão no corpo enciclopédico
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 139
acarretará um impedimento, tanto na versão pequena da Enciclopédia brasileira, em seis volumes, quanto na grande, em trinta e seis, de dar por arrematado e publicável qualquer volume antes de arrematados todos os outros, pois que, mesmo que ·o recenseamento seja totalmente feito, mesmo que a hierarquização desses verbetes, sua classificação, sua enumeração de títulos sejam esgotados, atendendo a que se poderá admitir, sempre, no correr dos trabalhos, até o último momento, omissões involuntárias ou lacunas, sempre penderá a hipótese de inclusão de novos verbetes de remissão. Ou então iremos cair na falta de uniformidade, com verbetes realmente remissivos e outros, que acaso devessem ser dessa natureza, definidos, mas eventualmente definidos em contradição com os de monografia ou os de expansão; ou então, com isso, incidiremos no "plano" da Espasa-Calpe - o que seria o mal maior, pelo vulto que o tentame involuntàriamente· iria assumindo. Tenho para mim, pois, que a ,localização dos verbetes de remissão deve ser repensada maduramente, inclusive com a idéia de, por acaso, constituírem êles o primeiro tomo da Enciclopédia brasileira, embora elaborado in fine (como teria de ser), mas primeiro tomo destinado, quiçá, a subsanar parte dos inconvenientes -pequenos, em verdade - do estado psicológico do consulente, em face do recurso baldado a mais de um volume, antes de encontrar o local desejado:
140 A
ANTONIO HOUAISS
neste particular, aliás, o grande mal das enciclopédias são os apêndices e os suplementos, êsses, sim, desesperadores, a qualquer tipo, grau de cultura, fome de saber do consulente.
Mas, a meu modestíssimo ver, a pedra de toque da extensão da Enciclopédia brasileira, da sua relativa uniformidade, da sua eventual execução feliz, estará na justa ponderação do verbete de definição. O volume que ora apreciamos conceitua-o assim ( p. 33) :
Como o próprio nome indica, nestes verbetes se procurará definir o uso dos símbolos verbais, esclarecendo o sentido das palavras ou conceitos.
Evidentemente, em .grande número de casos, êstes verbetes poderão conter apenas uma ou duas fráses, admitindo-se, entretanto, casos especiais que exijam maior número de linhas. Na hipótese da enciclopédia de 6 volumes, pode ser limitado a 10 linhas. :ltste espaço, na enciclopédia de 36 volumes, será dilatado até 60 linhas no máximo.
Ora, como a definição não deixa margem a dúvida, tais verbetes são os preferentemente lingüísticos, isto é, os dos dicionários da língua, o que nos leva, de novo, a cotejos, seja com a Encyclopaedia Britannica, em face do The Pocket
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 141
Oxford Dictionary of current English ( Oxford, 1942), deliberadamente escolhido por ser de bôlso e "corrente", isso para maior fôrça de argumentação e por ser o de que disponho à mão, tomando, ainda ao acaso, como critério de cotejo as averbações numa e noutro, entre do e dog (na primeira coluna, os verbetes do dicionário, denteados os subverbetes, uns e outros seguidos ou não da palavra "não" entre parênteses, para indicar que não constam da averbação da enciclopédia) :
dol do2 (não) do3 (não)
do4 (não) do-nothing (não) doing (não)
doat (não) Dobbin (não) docile (não)
docility (não) dockl (não) dock2 (não) dock3
dockyard (não ) docker (não)
docket doctor
Doctor's Common doctoral (não ) doctorate (não) doctress (não ) doctrine (não)
do doab Dobbie, Sir James
Johnstone Dobs Ferry Dobell, Bertram Dobell, Sydney Thompson Dobeln Doberan Dobereiner, Johan
Wolfgang Dõblin, Alfred Dõbrentei, Gabor Dobrici Dobruzhoffer, Martin Dobrovsky, Joseph Dobruja Dobsina Dobson, Frank Dobson, Henry Austin Dobson, William Dobson-fly docetae dochmiac
142 ANTÔNIO HOUAISS
doctrinaire doctrinarism (não) doctrinal (não)
document documentary (não) documentation (não)
dodderl dodder2 (não) doddered (não) dodecagon (não)
dodecagonal (não) dodecahedrdodecasyllab- (não) dodge (não )
dodger (não) dodgy (não)
dodo doe (não) doP.s ( nllo) doff (não) dog
dock docket docket docks dock warrant dockvards and naval
bases doctor Doctor' s Common doctrinaires document dodder Dodds, Alfred Amédée dodecahedron Dodecanese Dodge Citv Dogson, Charles
Lutwidge dodo Dodona Dods. Marcus Dodslev, Robert Dodsworth. Roger Dodwell, Henry dog
e agora, ao acaso, entre sor e "sos" (mas não "sot"):
-sor (não) sorcerv (não)
sorcerer (não) sorC'eress (não)
sordid (não) sore (nllo) sorites ~;orra ( nllo) sorrel
Sordello sordino, sordoni, sordnn Sorel, A~tnes Sorel. A lhert Sorel. Charles SorP.l sorrrhum Soria Sorfa
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 143
sorrow (não) sorrowful ( 11ão)
sorry (não) sorrily (não)
sorriness (não ) sort (não) sorti e (não) sortition (não) -sory (não) SOS (não) sostenuto
sorites Sormovo Soroca Sorolla y Bastida,
Joaquin sororate sororities sorrel Sorrento Sorsogon Sosigenes Sosithens Sosnowiec sostenuto
e por fim entre "tac" (mas não "tad"):
tach (não) tacit (não)
taciturn (não) taciturnity (não)
tack tackle (não) tacky (não) tact (não)
tactful (não) tactless (não )
tactics tactical (não) tactician (não)
tactile (não) tactual (não) tactility (não) tactually (não)
Tacanan tacheometry Tachienlu Tachnid fly tachometer tach.ylite Tacitus, Cornelius Tacitus, Marcus Claudius tack Tacna Tacna-Arica Question Tacoma tactical formations tactics
Seria o caso de indagar a que omissões o cotejo não nos levaria se, em lugar do Oxford
144 ANTÔNIO H OU A ISS
de bôlso referido, se tomasse o célebre Murmy, com seus cêrca de 450.000 vocábulos!
O critério de exclusão da Encyclopaedia tBritannica, destarte, parece-nos "claro". Mas a "clareza", fôrça é recorlhecer, decorre fundamentalmente do fato de que a dicionarização em língua inglêsa e da língua inglêsa, quando não :reputável perfeita, se aproxima, na medida do possível, da perfeição, o que de pronto dá o barêmio de inclusões.
Mas aqui impor-se-ia uma nova consideração: o Instituto N acionai do Livro, além de sua seção da Enciclopédia Brasileira, conta, se não me equivoco, com a do Dicionário da Língua, não sei se "brasileira" - isto é, digamos a partir de 1 500, ou mais extensivamente Dicionári.o brasileiro da língua portuguêsa, o que o alargaria, conforme o critério que presidisse à sua elaboração, aos primeiros documentos escritos em português, quando não aos primeiros vocábulos portuguêses encontráveis em meio ao latim notarial e bárbaro.
Quererão os planejadores da Enciclopédia brasileira enveredar pela obra pioneira do dicionário da língua, ou quererão, ao contrário, deixar o dicionário em mãos dos lingüistas, filólogos, lexicógrafos?
Admitamos, como base de trabalho, as duas hipóteses seguintes : a) a Enciclopédia será, t ambém, filológica e lingüística - faremos algumas
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 145
ressalvas quanto aos conceitos aí expressos; b) a Enciclopédia não será, também, filol6gica e lingüística. Que num certo sentido ela, prospectivamente, terá elementos de filologia e lingüística é 6bvio e 16gico, tanto assim, aliás, que o volume que ora examinamos, dentre outras passagens, o ;refere expll.citamente no "Plano geral da Enciclopédia brasileira", a p. 34, nos "campos de conhecimento", distribuídos em nove classes, a primeira das quais é "filologia e lingüística". Mas no outro sentido, no de encerradora de unidades-verbetes cujo conteúdo se endereçar especialmente ao "signo" ( êste é o vocábulo usado algures no volume) lingüístico como elementos estruturados no sistema de sistemas do português, isto é, de novo, aos usos e potências e significações gerais ou de conhecimento particular de grau não definidamente científico nessa direção, que é típica do dicionário da língua, nessa direção parece pretender também enveredar a Enciclopédia, quando acolhe, a p. 44, como vimos, não s6 os verbetes de remissão (que obviamente apresentam também uma finalidade extradicionário), mas principalmente os verbetes de definição, que expressamente são conceituados, a p. 33, e cuja citação já foi feita supra, verbetes típicos de dicionário.
Primeira hipótese
Entretanto, cumpre-nos examinar, agora, a primeira hip6tese de trabalho: a Enciclopédia
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.será, também, filológica e lingüística - o que vale dizer, como vimos, que encerrará, ademais de verbetes relacionados com as ciências e técnicas filológicas e lingüísticas, verbetes relacionados com os vocábulos da língua extensivamente. A pergunta que ocorre é a seguinte: se o teto, arbitràriamente embora, fixado para o número de verbetes é de cêrca de 250.000 unidades, como conciliá-lo com a possibilidade de incorporar cêrca de 240.000 vocábulos, no mínimo, da língua na Enciclopédia? A preliminar óbvia é de que .cada vocál:;ulo não constituirá um verbete, nem mesmo verbete de remissão, como o previram os planejadores, ao reconhecerem que se impunha um critério de exclusão, mas de exclusão de vocabulário da língua comum, inclusive. Noutros têrmos, impõe-se criar ou consolidar uma sistemática tal que um sem número de vocábulos possa ser encerrado em um ou dois verbetes apenas da Enciclopédia, já que nesta hipótese de ttrabalho, nem que seja implicitamente, todo o extensivo vocabulário da língua deve constar da Enciclopédia .
.Admitamos um processo de combinação de tantas variáveis vocabulares seletivas já definidas ou por definir isoladamente, mais uma constante, da fórmula VC, que pode, por exemplo, corresponder a "adjetivo qualificativo qualquer + sufixo - mente", êste o C da fórmula, que será definido uma única vez num verbete, com a extensão
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 147
compreensiva de tôdas as particularidades dos derivados, na base de sua significação adjetiva. Digamos, assim, por mera suposição, que o português possui 25.000 adjetivos qualificativos, a que correspondem, potencial ou realmente, 25.000 advérbios em -mente; os 50.000 vocábulos, como, vimos, serão (ou poderão ser) averbados em 25.000 + 1 verbetes, desde que, no roteiro prévio de consulta, haja clara e expressa menção dessa circunstância. Num certo sentido, êsse processo pode ser estabelecido, por exemplo, para os substantivos em -ção regularmente formados de verbos da primeira ou da terceira conjugação, do esquema "conjugar(r)+ção" ou "parti(r)+ção", mas não em "agir:ação'' ou "ação:agir", nem em "instruir: instrução", já que não formados "regularmente", segundo estamos figurando (outras "regularidades" menores poderão ser estabeleci.cidas .. . ) . Neste caso, teremos para uns 11.000 verbos - estimativamente -, em lugar de 22.000 verbetes, apenas 11.000+1. Outro exemplo, mais particular, poderia ser invocado com "adjetivo qualificativo oxítono terminado em -l + -izar = verbo", ou "verbo do tipo anterior + -dor,, como fórmula de alguns substantivos de agentes.
Tal critério, que parece razoável, tem contra si, se em definições excessivamente gerais, o risco (que de certo modo é um mérito, mas não enciclopédico) de apresentar como "existentes" no acervo da língua uma série de palavras "poten-
148 ANTÔNIO HOUAISS
,c1a1s , tais, por hipótese, na ordem dos três últimos esquemas formulados, as seguintes séries de exemplo: a) cantação, paração, dançação, cansação, faltação; ouvição, sentição, fugição, calção, provição, rição; b) azulizar, tafulizar, cabalizar (de "cabal"), fielizar, cruelizar; c) azulizador, tafulizador, cabalizador, fielizador, cruelizador. . . Escusa, entretanto, entrar em maiores pormenores, se êste fôr o objetivo dos planejadores: não apenas com sufixos (-menta, -tor, -douro, -vel, -il, etc.), mas também com prefixos ( re-, ante-, pré-, contra-, anti-, meta-, dia-, ana-, etc. ) os esquemas estruturais podem ser, em operação relativamente factível por qualquer médio conl1ecedor da língua, estabelecidos, e com isso um número não pequeno de verbetes poderá ser excluído do acervo da averbação enciclopédica. Fica esta, porém, com um lastro dicionário ainda ponderável, pois que essas reduções não poderão, em um vocabulário da ordem de 250.000 unidades, ser superiores a - estimativamente para mais, dentro do conceito de "regularidade" acima referido - 40.000 vocábulos. Estamos ainda em que é excessivo o saldo de 210.000, mais a onomástica, mais a toponímia, mais, possivelmente, os intitulativos (da ordem presumível de 5.000, entre as principais obras literárias, artísticas, científicas, instituições, museus, palácios, que quiçá mereçam guarida em verbetes autônomos,
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA JNGUA Í4Q
ainda que verbetes de rem1ssao, e.g., "Ermitage, Museu do - ver Leningradl?]·
Impende, ainda, nesta oportunidade, examinar um aspecto da averbação de vocabulário da língua numa enciclopédia, quando não se trata da segunda hipótese que abaixo examinaremos. 1t que a mistura de verbetes relacionados com os dicionários da língua mais os enciclopédicos propriamente ditos suscitará novas dúvidas que assaltarão a mente dos planejadores - o problema já não da averbação enciclopédica, mas o da averbação dicionária tout cottrl, que aqui não pretendemos aflorar, antecipando, tão-somente, dentre muitíssimas ouh·as, as seguintes coordenadas da questão:
a) por famílias de palavras do ponto de vista morfológico?;
b) por "áreas semânticas" ou analógicas?; c) da histbricidade da língua, isto é, com os
vocábulos arcaicos?; · d) da potencialidade viva da língua, isto é,
com aquêles vocábulos para os quais não haja abonações literárias ou documentais escritas, entretanto "sentidos" como "reais"?;
e) sem datação ou com datação da entrada ou documentação na língua?;
f) com abonações de uso e de "autoridades"?; g) em face dos arcaicos, com que forma ou
formas?;
lO
150 A N T Ô N I O H O U A I S S
h) como tratar os sincretismos modernos, tipo "aspecto: aspeto", "muxirão, muxirom, mutitão, mutirom, mutirum, mbutirão, mbuxirum, etc."?;
i) e os dialetais?; j ) e, dêstes, os ultramarinos (do nosso ponto
de vista)? Segunda hipótese Vejamos, agora, a segunda hipótese de tra
balho: a Enciclopédia não será, também, filológica e lingüística, no sentido extensivo da hipótese anterior, noutros têrmos, a filologia, lingüística e ramos e divisões e conexões entrarão apenas como formas de conhecimento. Quais, com essa ampla · poda preliminar de verbetes, os vocábulos da língua que merecerão figurar como verbetes da Enciclopédia (já que todo verbete é vocabular, já que a enciclopédia inteira será, fundamentalmente, um acervo de mensagens e informações com base essencialmente nos signos lingüísticos, mas seletivos, tão secundá1ia é, relativamente, a função das "ilustrações" ).
Viria, liminannente, a pêlo lembrar o dilema de RAYMOND QUENEAU, modernamente, na sua Présentation de l'Encyclopédie de la Pléiade, Paris, Gallimard ( 1956), embora o plano seja estruturalmente diferente, pois não se trata de enciclopédia alfabética, mas temática. Entretanto, o problema da seleção vocabular se lhe apresenta quase igualmente, já que, nos "índices gerais" e
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA ÚNGUA 151
particulares da mesma, cumpre saber o que indiciar. A pp. 8-9 diz êle:
rD'abord les mots. Un lecteur peut être gêné par la rencontre de périhélie, anastomose, stiophoide, du moins, c'est rce que peut supposer l' éditeur; et lui-même, ce lecteur idéal, il avouera volontiers qu'il les ignore. Par contre, on supposera connus les mots parallélépipede, antibiotique, radar, quoique la connaissance réelle qui se cache derriere chacun de ces mots soit souvent assez :mince. Ou se trouve la limite? Elle est difficile à determiner. I-Iexagone, électron, cellule: on est censé savoir ce que c'est; ellipsoide, méson, gene: c'est déjà moins, clair; simplexe, sp'in, néoténie: on sort du langage courant.
A citação não visa, senão, a dois objetivos: lembrar que RAYMOND QuENEAU, para um problema bem mais simples, já que o da indiciação e eventualmente o de grau de contensão do vocabulário dos verbetes, também teve de lutar com "omissões e inclusões", e lembrar, porém, também, que tôda a exemplificação dubitativa foi feita ení tôrno de substantivos.
O cotejo supra feito entre o Oxford de bôlso e a Encyclopaedia Britannica, embora dê algumas
152 .A.NTÔNlO HOUAlSS
indicações, parece-me que, se exaustivamente acabado, nos revelaria apenas um método de seleção de verbetes provàvelmente precário para os fins da futura Enciclopédia brasileira; mas dos 41.000 verbetes-articles da Britannica, ao simples exame, ressalta que a grande maioria - seguramente mais de 65% - é de verbetes que em português (salvo certos concretistas) seriam escritos com iniciais maiúsculas, nomes próprios, em
· suma; em contraposição, freqüentes são os com letra minúscula de que decorrem no índice ( vol. 24) muitos dos substantivos comuns a êles remetidos, mas, repitamos, palavras da língua comum que decorrem do tratamento enciclopédico de verbetes no corpo da Britannica.
De novo caímos num círculo vicioso aparente: quais os vocábulos do dicionário, do vocabulário da língua comum que merecem, a priori, guarida, em forma de verbete, no corpo da Enciclopédia, dentro da premissa desta · segunda hipótese de trabalho[
Estabelecer, sôbre essa base, categorias definitivas e inevogáveis, sem possibilidade de eventuais exceções para êste ou aquêle caso singular, parece uma temeridade, ousaria dizer mais, parece negação de qualquer prudência científica. Por exemplo: admitamos como nã"o averbáveis as preposições ou as locuções prepositivas vemáculas, bem como as latinas e as gregas como tais usadas em português, seja, "a, ante, até, após, com,
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contra, etc.", "in, aprud, cum, inter, etc.:', "catá, aná, diá, etc.". O princípio pode, evidentemente, ser estabelecido como regra que comporte, eventualmente, exceções em forma de verbetes, e.g., "in, preposição latina, em, usada em bibliologia e bibliografia ou afins, para indicar onde se estampa artigo ou colaboração ou estudo, anteriormente :referido, anteposta às vêzes a periódicos e obras de autoria coletiva" (convenho em que o exemplo é tão secundário que não mereceria o verbete, sobretudo como está redigido, já que as abreviações, abreviaturas, signos convencionais e símbolos afins deverão ocupar na Enciclopédia um lugar prévio adequado). Por · exemplo outro: admitamos que os adjetivos qualificativos em geral venham a ser averbados; isso não impedirá que, eventualmente, se averbe, e.g., "potencial" ou "real", como remissivos (se houver verbetes de remissão, tal como o admitem 0s planeja dores) de "ser" ou do verbete de lógica, filosofia, gnoseo- · logia ou o que fôr em que aquêles "modos" ocorrerem, já que "potencialidade" ou "realidade" podem não necessàriamente ocorrer averbados.
Já agora, cremos, se tomaria operação exeqüível, dentro desta segunda hipótese, estabelecer, na base de alguns princípios gerais, as exclusões do dicionário, do vocabulário, possíveis, ressalvadas as exceções antes admitidas como subprincípio ou ~mesmo pré-princípio, que no di-
154 A N T Ô N I O H O U A I S S
tame de organicidade de um verbete-monografia poderia haver determinação de n verbete de extensão, alguns dos quais fôssem "aparentes" exceções dos princípios de exclusão, ou então por conveniência de remissão, em verbetes de remissão (se constarem do corpo enciclopédico, senão, no índice geral, ab initio ou in fine).
Ensaiemos algumas indicações gerais para princípios de exclusão:
1. 0 ) as palavras ditas relacionais: a) as preposições e locuções prepo~
sitivas; b) as conjunções e locuções conjun-
tivas; _ c) as chamadas partículas ou locuções
equivalentes;
2 . 0 ) as palavras ditas modificativas: a) os advérbios e locuções adverbiais; b) os adjetivos (qualificativos);
3.0 ) as palavras ditas determinativas ou substitutivas:
a)' os adjetivos determinativos ou pronomes adjuntos;
b) os pronomes, ou pronomes absolutos (.pessoais, demonstrativos, pos_sessivos, etc.);
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 155
4.0 ) as palavras interjetivas; 5.0 ) os verbos (mas não os "verbos" subs
tantivados, é óbvio, pois êstes ficarão na fluh1ação abaixo admitida);
6.0 ) alguns substantivos.
Que substantivos, meu critiquinho? (O critiquinho é o autor mesmo destas linhas ... )
Ora, é nos substantivos que se encerra, efetivamente, o grande problema seletivo e exclusivo - no quadro desta segunda hipótese de trabalho.
Permita-se-me novamente um cotejo operativo. Tomando como base - sem nenhum critério !indicativo de valor - o Melzi (Il No1Yissimo Melzi, dizionario italiano in due parli, linguistica-scientifica, XXXIV edizione, ampliata, riveduta e 1aggiomata, Antonio Vallardi editore, Milano, 1953), consignemos. que no volume "lingüístico" (o primeiro), numa letra tomada ao acaso, seja "C", seja até "cac" (mas não "cad"), há os seguintes substantivos (segundo a própria definição do dicionário, excluídos os subverbetes): c, caaba, cab, cábala, cabaletta, cabalista, cabasite, caberu, cabila, cabina, cablogramma, cabotaggio, cabriolet, cacadubbi, cacaiola, cacao, cacasenno, cacata, cacatoa, cacatoio, cacazibetto, cacca, caccabaldole, cacchione, caccia, cacciabronzina, cacciatorpediniere, cacciavite, cacciu, caccitt.co, cacco_la, cacolone, cacherella, cachessia, cachi,
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cachinno, caciaia, cacico, cacio, caciola, cacodilato, cacofonia, cactacee, cactee, cacto, cactus, cacume, seja, 47 substantivos, enquanto o "científico" dá os seguintes (não citados os "enciclopédicos" tout court, isto é, topônimos, antropônimos, onomásticos, intitulativos, os de letra maiúscula inicial, em suma) : c, cabili, cabo (como espanholismo), 10acao. Instrutivo, por exemplo, é a comparação do tratamento de "cacao" em cada um dos dois volumes do Melzi. A Encyclopaedia Britannica 1consigna, do início da letra "G" até "gal" (mas não "gam") os seguintes substantivos comuns (ou "comunizados" no vocabulário da língua inglêsa): g, gabardine, gabbro, gabelle, gaberdine, gable, glablet, gage, gaine, galago, galangal, gale, galena, galeopithecus, galium, gallas, galleon, galley gallfly, gallicanism, galliformes, gallinule, gallium, gall rnidge, gallon, galloway, galls, galop, galvanized iron and steel, galvanized wire, galvanorneter. No Oxf.ord de bôlso, contra êsses 31 verbetes substantivos comuns (o critério de "comum" aí é discutível, mas o recenseador-critiquinho é o mesmo), há os seguintes (em que, com "id." entre parênteses após vocábulos, indico os que coincidem com a Encyclopaedia): g ( id.) , gab, gabble, gabelle ( id.), gaberdine ( id.) gabi.an ( gabigonade), gable (id.), gaby, gad-fly, gadget, gadoid, gaffl, gafF, gaffer, gag, gage1 ( id.), gage2, gaiety, gain, gait. gaiter, gala, galantine, galanty-show, galaxy, galbanum, gale1, gale2 ( id.) , galeeny, galilee, ga-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 157
lingale, gaW, gall2, gall3, gallant ( gallantry), galleon ( id), gallioon, gallery, galley ( id.), ( gallicism), galigaskiris, galliot, gallipot, gallon ( id.), galleon ( id. ) , gallioon, gallery, galley ( id.), ( gallows, gdlop ( id.), galosh, galvanism ( galvanist, galvanization, galvarr.ometer - id. -), seja 49 verbetes substantivos que, com os subverbetes subs-
. tantivos, montam a 57, dos quais 12 se representam na Britannica.
Reiteremos, pois, que dentro desta segunda hipótese de trabalho, apenas "alguns" substantivos devem figurar na enciclopédia. Qual, porém, o padrão informador da seleção dêsses "alguns" é o problema que subsiste. Creio que, nesta altu:ra, as achegas lingüísticas para as exclusões chegam a seu têrmo, cabendo, agora, em processo de confluência, uma operação inversa: do acervo vocabular total, nesta hipótese, se chegou a um núcleo, o acervo vocabular substantivo, cuja redução é não apenas temerária, audaciosa e precária, · mas sobretudo apriorística, se baseada em categorias ou grupos mais ou menos amplos. O método seletivo-exclusivo parece, já agora, dever ser o de determinar as inclusões: a) quais os substantivos que encerram substância enciclopédica "monográfica", para serem objeto de verbetes-monografias, do tipo, digamos (a escolha é arbitrária) "química, física, história natural, sociologia, antropologia, geografia, geologia, filosofia, matemática, estatística, cibernética, arte, culinária, indumentá-
158 ANTÔNIO HOUAISS
ria, locomoção, comunicação, psicologia, medicina, biologia, direito, etc."; b) dêsses, quais os que geram verbetes de expansão e quais seriam a cada caso êstes, e.g. (ainda a escolha é arbitrária), "alcalóides, ácidos; acústica, dinâmica; mineralogia, zoologia, botânica; relações humanas, classes; antropometria, raças; antropogeografia, ecologia, fitogeografia, zoogeografia; ontologia, gnoseologia; topologia, análise diferencial, integral, combinatória; demografia, zoografia; robots, circuitos abertos, circuitos fechados, informação, estrutura, sistema; pintura, escultura, arquitetura; dietética, dieta; plumagem, chapelaria, sapataria, alfaiataria; meios de transporte, terrestres, marítimos, aéreos; linguagem, semáforos, telecomunicações, diacronocomunicação; sincronocomunicação; psiquiatria, psicanálise, reflexologia; terapêutica, cirurgia; fisiologia, histologia; direito privado, direito público, direito internacional; etc. etc. Autogênicamente, os verbetes de categoria mais restrita quanto ao conteúdo ou extensão iriam sendo "brotados" do desenvolvimento dos verbetes da categoria imediatamente superior.
Pode acontecer que o esquema geral aqui apresentado se revele desanimaaor aos olhos dos planejadores da Enciclopédia, que desejariam, talvez, após o recenseamento geral dos vocábulos dicionarizáveis e enciclopedizáveis, fixar, ato contínuo, suas categorias, isto é, êste será de mono- · grafia, aquêle de expansão (relacionada com os
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 159
verbetes de monografia a, g, x e por isso mesmo dividido em três partes, admitamos "antropologia", "direito", "sociologia"), aquêle outro de ilustração (relacionado com tais de monografia e tais de expansão), aquêle outro mais de definição ( relacionado com tais de monografia, tais de expansão, tais de ilustração), aquêles, por fim, de remissão (relacionados com tais e quais das categorias anteriores). Que o critério seria falso se vê do último item da suposição: predeterminar os verbetes de remissão (onde quer que fôssem colocados, no corpo, ab initio ou in fine da Enciclopédia) seria compelir os redatores dos verbetes ·de categorias superiores a "empregar" estas mas não aquelas palavras-chaves, o que parece, em matéria de nomenclatura e terminologia científica ou empírica, muito difícil, senão impossível, já que_ seria induzir uma "direção" necessária, do ponto de vista ideológico, à redação dêsses verbetes superiores.
Infelizmente, que eu saiba, dada a pobreza de pesquisas estatísticas no campo da língua portuguêsa, não se pode desde já estimar o número de substantivos dela. Entretanto, não deve êle ser de ordem desencorajadora pelo vulto e magnitude. Em condições muito precárias para validade da amostragem, tomando o Vocabulário ortoeráfico brasileiro da língua portugu~sa, organizado por MANUEL DA CuNHA PEREIRA, colaboração de Luis PEIXOTo GoMES Fn.Ho, supervisão de
160 ANTÔNIO H OU A I S S
AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, 2.6
,edição, revista e aumentada, Rio, 1954, como base, podemos depreender a relação seguinte (a primeira coluna é de número das páginas; a segunda, de coluna da página; a terceira, de substantivos nela encontrados, e a quarta, de verbetes totais) :
60 - 1 21 (51) 69- 3 39 (58) 82 - 2 29 (41)
113- 4 32 (54) 149 - 2 38 (48) 177- 1 44 (55} 217- 3 35 (42} 268- 1 15 (49) 280 - 4 30 (54) 295- 2 39 (56) 314- 3 40 (53} 337 - 1 34 (53} 358 - 4 29 (51) 415 - 1 21 (41) 446 - 2 41 (56) 518- 3 38 (51)
TOTAL 555 813
A algo valerem, êsses números (precários, repitamos, pois o campo de amostragem é demasiado restrito) dão uma relação segundo a qual, sôbre 300.000 vocábulos idealmente considerados em "português", teríamos 204.000 substantivos. Entretanto, êsses mesmos números, se reduzidos aos "substantivos "exclusivamente, isto é, àquelas palavras que só são substantivos (não se incluindo
SUCJ!:STÔEi PARA UMA POÚTICA DA xJNcUA 161
nelas nem "sábio", nem "prêto", nem "branco", nem "sindicalista", em suma, as que nos voc.abulários aparecem como "adj. e s.", mas só as que aparecem como "s."), se reduzem pràticamente à metade, 100.000, inclusive dialectalismos, regiona- · lismos, vulgarismos, provincianismos e afins.
Cremos, então, que seria factível recensear todos os substantivos dos principais dicionários e vocabulários da língua; uma vez feito isso - segundo normas pràticamente já adotadas pelos planejadores da Enciclopédia e adotadas, ao que compreendi, com rara perfeição- recensear-se-iam, em fichas distintivas cromàticamente (ou segundo outro qualquer padrão diferencia dor), os substantivos comuns, em português, de suas quantas enciclopédias de base, seja, a italiana ( Treccani), a Britannica, o Larousse. As coincidências já seriam de si um têrmo de referência capital para a seleção e hierarquização dos verbetes enciclopedizáveis, coincidências que poderiam ser fortalecidas com igual operação para com alguns vocabulários científicos especializados que, modernos, ~abarcassem em guase plenitude os "campos de 'Conhecimento" (salvo os "diversos") do planejamento da Enciclopédia Brasileira.
Ainda um ponto: o vocabulário limitado aos substantivos encerra um problema quase insolúvel. Na exemplificação tirada à Brítannica, supm,
162 ANTÔNIO HOUAISS
aparece um elemento indicativo da dificuldade, o verbete dado, ave lá classificada, descrita e acompanhada de um bico de pena ilustrativo. É o problema da relação "palavras: coisas". O campo denominativo, intitulativo, designativo empírico dá, em tôdas as línguas de cultura (e mesmo IJlas outras, quando de certa extensão), para a mesma "coisa" considerada como una, una naturalisticamente falando, na chamada designação vulgar, três, quatro, oito, dez, vinte, duzentos "substantivos", consoante sejam levadas em conta as diferenças vocabulares ou as va1iantes do mesmo vocábulo. Como eleger em casos tais? A averbação de tôdas as diferenças essenciais seria excelente; mas êsse ideal, liminarmente, no que tange ao português, mais, ao português do Brasil sobretudo, não pode nem pàlidamente ser resolvido, pelo simples fato de que a coleta no particular parece estar ainda na sua pré-história - a fase histórica será erguida pela dialectologia brasileira de campo, que a miopia oficial ainda não quis estimular (pois só com a assistência oficial será possível levá-la, não direi a cabo, mas a meio). Que fazer? Incorporar tão-somente o vocábulo "comum" da língua para a "coisa" e nêle reunir, na medida do conhecido, os regionais, como já o tenta, em escala .Obviamente tímida, o Pequeno dicionário brasileiro da língua portugu~sa, da Editôra Civilização Brasileira, e remissivamente (no corpo ou no "índice geral"? ab initio ou in
SUGESTÕES PARA UMA rorlncA DA rJNcUA 16.1
fine?) fazer os diferentes vocábulos indicar o ((" , comum.
Ao esbocejelhar estas linhas, escusa realçá-lo, tivemos o mais sincero desejo de cooperar com os planejadores da Enciclopédia brasileira, se mais não fôr, suscitando problemas e dúvidas, muitas, senão tôdas, das quais já terão assaltado a generosa mente dêles. Mas é precisamente por confiar na sua dedicação, é precisamente por compreen,der-lhes o espírito científico, que reputei justo permitir-me a discussão que me permiti, desvaliosa, vá, mas sincera, que algumas luzes poderá trazer ao debate a que todos os brasileiros deveriam dar o seu melhor. Por isso, é minha intenção, em breve oportunidade, tecer algumas considerações sôbre outros aspectos do magnífico planejamento da Enciclopédia brasileira, pelo qual todos os brasileiros devem rejubilar-se.
li
Sob o título - Enciclopédia bmsileira, introdução, diretrizes, normas gerais - o Instituto Nadona! do Livro, do Ministério da Educação e Cultura, ·publicou, não faz muito, neste ano, um volume de 186 páginas, por muitas razões importante - dentre muitas porque é, digamos, o pórtico
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dêsse instrtm1ento de informação de que todos os brasileiros - e os estrangeiros também - estamos desejosos sôbre essa realidade tão complexa, tão original que se chama Brasil.
O <ítulo define claramente a finalidade do volume. E êste constitui-se de a) uma apresentação, pelo diretor do Instituto Nacional do Livro ( p. 9) ; b) um artigo "Diretrizes da Enciclopédia brasileira", do senhor EURÍALO CANABP.A-
. VA (p. 13) ; c) de outro, "Introdução ao planejamento da Enciclopédia", do senhor PAULO DE
AssiS RIBEIRo ( p. 23); d) de "Plano geral da Enciclopédia" ( p. 29); e) de "Normas regimentais de funcionamento", com o texto de uma norma (pp. 55 e 57, respectivamente); f) de ''Normas administrativas e de contrôle", com o texto de oito ( pp. 63, e 65, 68, 77, 85, 93, 107 e 113, respectivamente); g) de "Normas técnicas básicas", com o texto de nove (pp. 121, e 123, 128, 134, 140, 147, 153, 158, 164 e 171, respectivamente).
Sôbre o capeamento já tive a oportunidade de louvar-lhe a excepcional felicidade de concepção, do rico de sugestivo e de execução, em recensão que fiz para a Revista de filologia, desta Capital, sôbre o livro do senhor Wn..soN MARTINS, A pala1.YT'a escrita, São Paulo, Anhembi, 1957, cuja capa acredito tenha sido a "fonte" de inspiração da do presente volume, com a diferença ftmdamental de que esta vale não apenas pela idéia, mas por tudo. Outra, porém, é a questão de saber
SUGESTÕES PARA . UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 165
se o capeamento em aprêço poderá ser o dos futuros volumes da Enciclopédia brasileira, da pequena e da grande, que talvez peçam algo mais discreto e neutro. ~ questão que deve ser madurada.
Sôbre um grave problema particular suscitado pelos próprios planejadores da Enciclopédia brasileira neste volume - e possivelmente ao longo das reuniões de planejamento -, o das inclusões é omissões de verbetes, escrevi pequeno ensaio "Sôbre o problema da averbação enciclopédica", de forma crítica construtiva (creio eu), sugerindo algumas controvérsias que suponho fundamentais ,e apontando - quem sabe? - algumas direções eventualmente válidas, pois a rigor se cuida, nesse particular, do problema capital, central, nodal, do planejamento enciclopédico, daquilo que encerra de substantivo, de substância mesma. O ensainho em causa deverá aparecer no próximo número ( 6) da Revista do Livro, do Instituto Nacional do Livro.
Nesse ensainho, uma das poucas discrepâncias frontais que me permiti foi quanto à inserção da fotografia do presidente da república e da do ministro da Educação e Cultura; é que, malgrado a importância prospectiva do volume, é êle, entretanto, não mais do que um planejamento, parte de um; fotografias como essas, a parecerem, devem aparecer no, digamos, definitivo, jamais no instrumental ou intermediário dêsse definitivo. Sei que
11
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isso, talvez, desonere os responsáveis da Enciclopédia de as incluírem na dita propriamente dita; mas a hipótese mais normal é a de que, quando aparecer o primeiro volume da Enciclopédia, da grande ou da pequena, já outros talvez sejam os planejadores ou alguns dos, talvez outro o presidente da república e o ministro da Educação -temos pela frente mais de cinco anos, por certo, antes de que venha à luz o primeiro volume da pequena. O precedente atual valerá como razão dobrada para a inserção de fotos então.
Na ''Explicação necessária" (p. 9) - que no índice se dá com o nome de "Apresentação do diretor do I. N. L." ( .. . ) -o senhor JosÉ RENATO SANTOS PEREIRA toca em dois aspectos do problema, que merecem reparo.
Um, muito en passant, é o relacionado com a distribuição do trabalho redatorial das comissões de especialistas "nos vários campos do cotnhecimento humano" (p. 10), às quais a comissão central cometerá "os elementos básicos para o tralho de elaboração de verbetes e monografias referentes às 26 letras de que se compõe o nosso Alfabeto, na sua natural ordem seqüencial de A a Z" (ibidem). Sem disputar quanto aos aspectos lmenos exatos dessa formulação, queremos deixar de manifesto nosso receio de que a ordem de trabalho seja efetivamente essa, pois as "futuras comissões de especialistas", ainda que reduzidas, deveriam já ter tido pronunciamentos, prévios, por
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA ÚNCUA 167
vêzes decisivos, sôbre não poucos aspectos do planejamento, que se me afigura algo tão interinfluente, que não seria demasiado supor fases de interdependência dos tipos seguintes: a) prospecção de cada "campo de conhecimento", com indicações de verbetes-monografia basilares e não poucos de extensão, por grupos de especialistas de cada "campo"; b) prospecção pela comissão central, integrada de um representante de cada "grupo de especialistas", do conjunto de indicações obtidas em ( a) ; c ) retômo às comissões de especialistas do plano prospectivo conjunto elaborado em ( b); d) plano executivp quase analítico de cada comissão de especialistas, na base do plano prospectivo conjunto, sobretudo para os "campos" estreitamente conexos ou onde se verificassem conexões ou vinculações; e) plano executivo da Enciclopédia - tudo isso no que se refere ao problema nodal da substância dos verbetes. O plano executivo assim obtido seria, parece-me, não só mais realista, ma!s exeqüível e mais ponderado, mas também permitiria disposições mais rígidas e objetivos mais definidos, não apenas quanto às diretrizes do planejamento, mas também quanto ao planejamento do planejamento.
O outro aspecto que merece reparo, na "Explicação necessária" ou "Apresentação do diretor do I. N. L." é o fato consumado da estruturação alfabética da Enciclopédia. Sei que é matéria passada em julgado, pois que aprovada
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pelas autoridades superiores. Mas ainda assim caberia justificá-la. Ainda que a muitos possa ter parecido ponto pacífico a. necessidade de que sua estrutura fôsse alfabética, creio serem tais e tantas as vantagens também apresentadas pela estruturação temática, que me pergunto se a comissão central levou em linha de conta um e outro tipos, antes de sugerir o assentamento do adotado. E, se levou, teria sido sumamente útil à opinião ·pública interessada ter recebido uma justificativa, para ficar mais convencida das razões que informaram o critério adotado. A relativa autonomia de elaboração temática nas suas partes essenciais é, sob muitos aspectos, uma garantia de viabilidade para o trabalho coletivo, mormente quando ainda assaltam dúvidas quanto a uma feliz coordenação de trabalhos dessa monta entre nós.
Nas "Diretrizes da Enciclopédia brãSTieira" (p. 14), com a responsabilidade da assinatura do senhor EURÍALo CANABRAVA, fixam-se os padrões mais gerais e extensivos das características da futura Enciclopédia, condensados desta maneira (pp. 15-16):
1) renúncia à obra perfeita, que ainda não estamos em condições de realizar;
2) necessidade de estabelecer normas claras não somente para inclusões, como também para omissões;
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 169
3) especial relevância dada à técIIlica e metodologia do conhecimento, em prejuízo da acumulação de dados estatísticos que não se organizam em sistema;
4) demonstração das interconexões das diferentes disciplinas e da unidade orgânica do conhecimento positivo;
5) sentido corajosamente prospectivo da obra a realizar, sem compromissos paralisadores com o inventário retrospectivo das teorias e escolas.
A quem se tenha detido na consultação da Encyclopédie Française contemporânea, em parte malograda na sua unidade relativa de grau de aprofundamento de conhecimento pela intercorrência da última guerra, não escapará que as di~etrizes dela, implícitas ou explícitas, inspiram a da Brasileira; e ninguém deixará de saudar semelhante coincidência como altamente promis- . sora, ainda que, para realizar aquêles objetivos, a Française tenha compreendido que a melhor via e ra a da estruturação temática. Agora, vendo o plano da EnGyclopédie de la Pléiade, da editôra Gallimard, de Paris, também temática, perguntome se êste tipo de estruturação não decorre da necessidade contemporânea, em que mais do que nunca se almeja - tamanha é a aparente dispersão do "conhecimento positivo" - pôr clara a diretriz ( 4) supra referiaa, a saber, a "demonstra-
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ção das interconexões das diferentes disciplinas e da unidade orgânica do conhecimento positivo", e pergunto-me também se êsse tipo de estruturação temática não decorre da sua, digamos, maior viabilidade. Tenho para mim que ambas as atuantes estiveram presentes ao espírito dos organizadores das duas enciclopédias temáticas citadas, que, isso não obstante, discrepam em muitos pontos, como é lógico. O exemplo contemporâneo da Soviética e pouco anterior da Italiana milita >em favor da hipótese ·de que as enciclopédias alfabéticas, embora mais difíceis de elaborar (quando boas) , são de melhor e mais fácil utilização coletiva, segundo a variedade de formação e de grau de conhecimento dos consulentes. Mas estas parecem ser, também, tão mais onerosas como investimento de capital, de mão (ou cabeça) de obra e de técnica, que, creio, s6 organizações estatais bem assistidas ou entidades privadas fortemente consolidadas podem levá-las a cabo e mantê-las, a exemplo do que ocorre com a Encyclopaedia Britannica. :E:ste pormenor parece ser um desafio ao Estado brasileiro, pois nada será mais melancólico do que a suspensão a meio do ingente tentame - que, entretanto, desde o nascedouro, vem sofrendo de fundas dificuldades, por relativo desamparo material. Teria valido ser mais prudente . e não nos lançarmos à tarefa, quando parece não haver ainda maturidade diri-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 171
gente para compreender-lhe o alcance além da aura eleitoralista qne proviesse de sua ·publicação?
Escusa ressaltar, das diretrizes, que a de !llÚinero (1), "renúncia à obra perfeita", é óbvia, tão óbvia que deveria estar subjacente; os planejadores, porém, foram perspicazes, ao inscrevê-la liminarmente. Cortaram cerce fuhrras críticas irrazoadas e criaram crédito, junto aos colaboradores, para reclamarem cumprimento de prazos, ,cujos diferimentos serão não raro pedidos, para aperfeiçoar ainda a matéria... Nem tampouco eu lhes iria atribuir a ingênua veleidade de supor que êles cressem em "obra perfeita". De fato, oponencialmente, repitamos, souberam criar o crédito compulsório junto às comissões de especialistas e ao corpo redatorial e de pesquisa, que não poderão alegar descumprimentos de prazo, ;repitamos, a pretêxto (o acento circunflexo é por !minha conta) de fazer "obra perfeita". Prudencial, sintomático, o princípio desautoriza, entre- · tanto, eventuais reveses em perspectiva, se aquela fôr a justificativa - a tarefa perfeita.
Não parece, porém, clara, ou pelo menos feliz na sua formulação, a diretriz número ( 3). Os "dados estatísticos que não se acumulam em sistema" são, de fato, desprezíveis. Contudo, não se cogita, muitas vêzes, de "dados estatísticos" apenas, mas de "dados" em geral, se bem compreendi; e ao contrário os "dados estatísticos", se efetivamente lidados com critérios estatísticos, de-
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verão, não direi acumular-se, mas organizar-se em sistema, ainda que sistemas abertos, êstes, mais do que quaisquer fechados, capazes de mostrar as potencialidades prospectivas de um processo. Um particular, com efeito, caberia - pois palavra puxa palavra - estudar, quanto aos "dados esta-tísticos": é o que se refere aos topônimos (cidades, portos, países ... ) e a emprêsas e instituições cuja 1eficácia ou importância se aferem por dados numericos ou quantitativos, indicadores de trânsitos qualitativos. Nesse ponto, o envelhecimento precoce das enciclopédias e dos dicionários especializados é tão flagrante, pelo menos para certas áreas de grande desenvolvimento no mundo, que não seria somenos que os planejadores da Enciclopédia desde já cometessem à Escola de Estatística, sob muitos aspectos notável, que funciona nesta capital, a tarefa de estudar normas indicativas de que se pudesse depreender uma progressão histórica, em situações normais de desenvolvimento. Aí, a historicidade parece ser indispensável na maioria dos casos, para que se possa depreender algo de organizado.
O segundo capítulo das "Diretrizes" ( p. 16) insiste no caráter prospectivo da Brasileira, opo?do, por assim dizer, o "sentido eminentemente tradidonalista das enciclopédias" (ibidem), de provável "orientação humanista" (ibidem), ao sentido "eminentemente prospectivo" ( p. 18). Não seria eu capaz de debater ou impugnar essa di-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 173
retriz, que a Fmnçaise, mais do que qualquer outra dentre as que conheço, deseja realizar. O que me pergunto é o que numa das reuniões de planejadores alguém perguntou: fazer tabula rasa das conquistas e aquisições do passado? E pergunto mais: já que conquistas e aquisição do passado foram, não raro, subtraídas da circulação das idéias presentes, embora sem atribuição histórica insistam por sua vitalidade em repontar no presente, não seria mais prudente, para dar especial relêvo ao "sentido eminentemente prospectivo" da Brasileira, procurar sistemàticamente no passado, ainda que de ontem ou de dez mil anos, êsse lado prospectivo, com o rigor da atribuição histórica devida e justa? O apoftegma de WHITEHEAD, invocado pelo senhor EURiALo CA
NABRAVA, "referindo-se à lógica, de que a ciência está perdida quando ela não esquece os seus fundadores" ( p. 16) vale menos que outro que dissesse que a ciência está perdida quando não reconhece a sua inserção na práxis social, que é um combinatório dialético da sua própria história dentro da história. Noutros têrmos, o conhecimento positivo é tão orgânico nas suas partes ou disciplinas atuais quanto na sua formação histó:rica e situação presente e prospectiva. Qualquer enciclopédia não imbuída de historicidade, de historicidade orgânica, é fadada, me parece, in limine, a ser um preceituário morto de regras
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aparentemente prospectivas, 'mas provàvelmente desmentíveis em curto lapso de tempo.
Ponto capital a meu ver magnlficamente formulado pelo senhor EUIÚALo CANABRAVA é o relativo ao equilíbrio de formulação dos verbetes, sobretudo no que tange à fundamentação matemática das questões científicas ( p. 14), Os verbetesmonografia, mais do que quaisquer outros, se destinar~o a dar "painéis sintéticos", ainda que extensos, históricos e prosp'ectivos, do conhecillllento, em linguagem tal, que uma relativa autosuficiência se realize dentro dêsses painéis, autosuficiência relativa em que tôdas as conexões sejam apenas afloradas explicitamente e remetidas para os locais da extensão especializada ou particularizada; em verbetes de extensão provàvelmente é que se inserirão aspectos mais tecnificados da exposição, verbetes em que, por isso mesmo, mais do que em quaisquer outros, a calibração do grau de aprofundamento e de "esoterismo" deverá !Ser contra-regrada.
A "Introdução ao planejamento da Enciclo-· pédia" ( p. 23) é estampada sob a responsabili-dade da assinatura do senhor PAULO DE AssiS RIBEIRo. ~ quase certo que não se encontraria entre nós pessoa mais indicada para semelhante planejamento. Ainda assim, permitir-me-ei algumas observações, na certeza de que a rigidez do planejamento prospectivo ou do planejamento executivo é verdadeiramente "rígida" se prevê em
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 175
sua organicidade a possibilidade, sempre, de protcessos reversivos e corretivos, para maior eficácia das atividades intermediárias à realização das "atividades-fins [,] que no caso são, essencialmente, a redação e preparo dos verbetes e respectivas ilustrações" ( p. 24).
Já no correr destas linhas e no ensainho que a Revista do Lit/ro citada acolheu para publicar, levantei dúvidas quanto à eficácia do planejamento independentemente da constituição ou anteriormente ao funcionamento dos "grupos de especialistas" ( p. 23), que me parecem ser as "comissões de especialistas" referidas alhures no volume. :E: que em última análise o planejamento caracteriza-se "pela unidade de tratamento dos vários assuntos, pela sistemática observada no desenvolvimento dos mesmos, e sua hierarquização racional e adequada dentro de um plano geral preestabelecido ... " (ibidem); por isso mesmo, deveria, antes de mais nada, saber que unidades; com que qualidades, e em que quantidades iria planejar, prospectivamente é claro. Enciclopédia, é claro também, significa mensagens verbais do segundo sistema de sinalização e, pois, também, adjutoriamente, mensagens visuais objetivas icónicas ou simb6licas - as ilustrações - com uma suma dos conhecimentos humanos organizados em livros ou volumes, segundo certo tipo de estruturação. A estruturação adotada o foi por verbetes e êstes ordenados alfabeticamente - são as uni-
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dades enciclopédicas. As qualidades destas uni,dades são discriminadas e definidas no "Plano geral" ( p. 29) e em normas subseqüentes ( verbetes-monografia, verbetes de expansão, verbete ilustrativo, verbete de definição, verbete de remissão) e a quantidade dêstes "arbitrária de 250.000 verbetes para cada uma das duas enciclopédias" ( p. 31).
Ora, ao que se depreende da "Introdução ao planejamento da 'Enciclopédia" e em seguida do "Plano geral", arbitrária foi a quantidade de 250.000 verbetes em geral, o que, ipso facto, levou a quantidades arbitrárias os diversos tipos de verbetes, tomando arbitrário, de um modo geral, o planejamento, no que de substancial - já que a diferença de quantidade de verbetes de remissão, mínimos no tamanho, e verbetes-monografia, máximos, tanto pode permitir um pressuposto de trabalho de sessenta quanto de seis anos, para 5eis e trinta e seis volumes como para três vêzes êsses números. Mas não apenas isso: tanto pode permitir que se lide, durante os trabalhos, com 500.000 ou 1.000.000 de verbetes, como pode pertmitir 100.000 ou 200.000. De novo, creio eu, o crivo prospectivo dos verbetes deveria ter sido tanto quanto possível estimado previamente - o que acredito perfeitamente factível, tal como tentei esboçar, a título de sugestão, no artigo que a Revista do Livro acolheu, dispensando-me, por isso, de reiterar as idéias lá expostas - artigo já
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 177
agora perfectível num sem número de particufares. Leio, com efeito, in fine do volume que uma equipe numerosa, composta de vinte e uma pessoas, "já l·evantou cêrca de 80.000 verbetes [? - verbetes mesmo ou cabeças de verbetes?], completando, assim, a letra A, cujos respectivos cartões estão sendo perfurados para proceder-se ao primeiro levantamento estatístico que irá orientar os trabalhos de prosseguimento do recenseamento" ( p. 180). E li, no noticiário jornalístico que envolveu êsse acontecimento, que êsses 80.000 verbetes (ou cabeças de verbete) representavam um quinto, no máximo, dos trabalhos prévios de recenseamento, seja, completos, 400.000 unidades. O que nem sequer dá uma remota idéia da magnitude da tarefa, que é mais ampla ainda - abarcando o vocabulário integral, ou quase, da língua -, como se depreende, seguramente, de "dois aspectos singulares entre as normas administrativas e de contrôle" (p. 24), a saber: "às possibilidades· . que decorrem da mecanização prevista no recenseamento dos verbetes, a qual irá permitir, além de grande eficiência nos trabalhos de organização dos fichários, de revisão de inclusões e hierarquização dos verbetes, pelas Comissões especializadas, e de contrôle e elaboração das redações e dos volumes de serviço nos vários setores da Enciclopédia, um completo estudo estatístico de nossa língua, s6bre vários aspectos até então não ensaiados para outro idioma" (ibidem; o grifo é meu).
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Isso tudo é louvabilíssimo, e ninguém poderá deixar de rejubilar-se no Brasil ante essa perspectiva; mas também é, por certo, multiplicar a ordem de magnitude da tarefa - como acredito deixei entrever no ensainho a que me reporto mais uma vez. Passemos, entretanto, a algumas observações particulares, sob pena de nos tomarmos ilegíveis pela extensão e monotonia.
Ouso insistir, a mais do que ousei no ensainho citado, sôbre a conveniência de ser reexaminado o problema da inserção dos verbetes de remissão ( p. 33) no corpo enciclopédico. Ouso também ponderar, mais uma vez, que não será útil nem factível depreender, através do recenseamento, quais devam ser todos os verbetes de remissão, mas, ao contrário, "levantá-los" após cada verbete-monografia, cada verbete de expansão, cada verbete de ilustração, e, eventualmente, cada verbete de definição (onde poderão ocorrer cargas sinonímicas ) .
Na norma 32-1/1 (p. 86), preconiza-se a :adoção dos símbolos fonéticos da Associação Fonética Internacional, para a transcrição entre parênteses da pronúncia do têrmo que exprime o verbete geral. Impõe-se, já agora, norma especial que precise quais os símbolos particularmente adotados daquele sistema, na consolidação de um tipo de alfabeto fonético para a pronúncia brasileira - e qual será esta. Esperemos que a indi-cada pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Língua
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Falada no l'eatro, realizado em Salvador, Bahia, em setembro de 1956, cujos anais estão em fim de preparo na Imprensa Nacional. A inclusão entre parênteses parece ser cqntra-indicada, devendo-o ser entre colchêtes, segundo tendência já pràticamente universalizada na transcrição fonética dentro de contextos ortográficÔs; opositivamente, os colchêtes recomendados para as etimologias deverão ser substituídos por parênteses. Embora difícil, por que excetuar os verbetes biográficos da regra da transcrição fonética? O W ebster' s Biographical Dictionary faz a transcrição e o faz, no que p'Osso julgar, bem.
As abreviações e abreviaturas ( p. 94) merecem revisão e consolidação. Algumas discrepam dos hábitos mais universais:
1) atendendo a que há diversas abreviações terminadas em vogal (o que é inovação moderna, que vai de encontro à tradição da língua, que só possuía uma, 'a.' e 'aa.', por 'assinado, a' e 'assinados, as', tôdas as demais terminando por ·consoante ou vogal superposta), por que "ag." para 'agôsto' e todos os demais meses h·iliterais, salvo 'maio', que não é abreviado?;
2) o uso das maiúsculas não parece normalizado, nem no geral, nem nas abreviações e abreviaturas; destarte, "An." para "Anais" e "an." para "anual" é puro capricho; "Ativ." para "atividade" e "atual." para "atualidade"; pior, porém, "A. C."
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como "antes de Cristo" (não se adota 'd. C.', 'dep'Ois de Cristo', pois se encampa "A. D." por "anno Domini" como "no ano do Senhor"); mas o fato é que 'A. C.' é também 'anno Christi', pelo que melhor seria 'a. C.' para 'antes de Cristo'; a distinção permitiria, na cronologia islâmica, "A. H.'' como "anno Haegirae" e 'a. H'. como 'antes da Hégira'; "D. D.'' não é tão conveniente quanto 'DD.' para 'digníssimo'; mas o fato é que seriam desprezíveis, como inoportunas, as abreviações áulicas, cortesãs, palacianas e cerimoniosas no corpo da Enciclopédia;
3) há excessivo uso de abreviaturas de forma muito paronímica, muito próxima, às vêzes distinguidas pelo uso arbitrário das maiúsculas apenas: "util." e "Util."; seria mais razoável um sistema orgânico abreviante conjunto; e que dizer d.e "m." e "mm.'' e quejandos para a metrologia, em frontal recusa de convenções internacionais e de lei nacional?
Que se me desculpe lembrar aspectos urgentes .de normalização:
1) normas indicativas de corpos gráficos (não absolutos, relativos), pois os verbetes extensos contarão, provàvelmente, necessàriamente, ,seções mais importante~, seções menos importantes, corpos de bibliografia, devendo, pois, haver indi'cação lateral de corpos, se três, maior, médio e menor, se dois, maior e menor;
SUGESTÕES PARA UMA POÚTICA DA ÚNGUA 181
2) normas de correlação entre o material dactilográfico e o material tipogràficamente prefigurado;
3) por conseguinte, norma de emprêgo dos gêneros tipográficos ( versais, versal-'Versalete, versalete, grifo, negrito, êstes também com versa!, versalete, etc.)
4) normas de emprêgo de realces materiais outros: aspas simples, aspas dúplices, travessões, colchêtes, parênteses;
5) normas de citação, referenciação e remissão (refiro-me ao aspecto gráfico e normativo da seqüencia das unidades, não ao sistema de referê~cia-remissão e inter-referenciação de verbetes, já bem previsto) ;
6) normas para as legendas das ilustrações, consoante sua natureza (originais, fontes, dimensões, natureza);
7) normas para tradução, transcrição e trans- · !iteração;
8) normas bibliográficas e elementos de citações.
o o o
Desnecessário insistir sôbre a importância do volume. Estão de parabéns a Seção da Enciclopédia Brasileira, o Instituto Nacional do Livro, o Ministério da Educação e Cultura, o govêmo da república. E o compromisso está lançado -
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recuar, agora, será uma tristeza e mesmo uma capitulação. Parabéns especiais merece a com1ssao central, em que me permito realçar as pessoas do senhor EUIÚALo CANABRAVA e do senhor PAULO DE Assis RmErno, bem como o senhor JosÉ RENATO SANTOS PEREIRA, diretor do Instituto Nacional do Livro. Tocar para a frente, com vontade de acertar, é o que esperamos todos os brasileiros, pois boa vontade de acertar é manifesta neste primeiro contacto da Enciclopédia brasileira com o seu público, em que me incluo como insignificante parcela individual, entretanto ·desejoso dP poder consultar, antes de morrer, pelo menos a Enciclopédia brasileira mirim, enquanto a açu não vem, pois que a esta fá-lo-ão os meus filhos, melhor, os filhos dos meus coetâneos, pois que me esqueci de que não os tenho ...
( 1957)
Post scriptum - A parte li supra, dividida em dois artigos, apareceu no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, sob os títulos de "A Enciclopédia brasileira" e "Ainda a Enciclopédia brasileira", nos dias 11 e 18 de agôsto de 1957. No comentário sôbre os padrões mais gerais e mctensivos das características da futura Enciclopédia, .citados de uma parte do volume coment~do, parte
SUGESTÕES PARA tJMA POL TICA DA LfNGUA JS:l
de que era responsável signatário o senhor EURÍALO CANABRAVA, diretor, no demais, da emprêsa, li d número 3 tal como ocorre supra, quando no texto original em verdade se diz "em prejuízo da acumulação de dados estáticos que não se organizam em sistema": a palavra por mim ora grifada no meú estudo foi lida - como se pode ainda ver, pois que mantive o êrro - estatísticos, o que desfigurou e ilegitimou parte, mínima, de minha argumentação. Na base dêsse êrro ou lapso, o senhor CANABRAVA
"respondeu" ao meu trabalho, com um artigo "A propósito da Enciclopédia brasileira", pelo Diário .de Notícias, de 2 de novembro de 1957, alegando defender a parte que lhe cabia nas críticas que eu fizera ao planejamento. O meu "êrro" lhe ensejou não só a "correção" mas também a fuga à substância de tôdas as demais críticas, feitas, aliás, com ânimo construtivo, como se depreende de sua leitura.
ARQUIVOS úO BRASlL
Na extensão do território brasileiro, há reservas, amontoados, depósitos e acervos arquivais que urge salvar - como passo preliminar, para depois classificar, sistematizar e, eventualmente, editorar, já por catálogos de unidade discriminadas e resenhadas, já pela estampação da íntegra de peças da maior importância para a historiografia, para o estudo da evolução lingüística e para o de todos os ramos de saber em que a historicidade é, senão a chave, pelo menos uma das chaves da inteligência, compreensão e até ação eficaz presente.
Diàriamente se obtêm provas de que tais conjuntos não são, nem de longe, despiciendos. Ninguém deve ignorar, por exemplo, que o material arquivai da cidade de Cuiabá deve encerrar preciosas indicações sôbre a expansão territorial luso-brasileira no coração do continente sul-americano. Não chega a constituir surprêsa o fato de que, em data relativamente recente, se tenha "achado" no arquivo estadual de Belém do Pará um precioso apógrafo das Cartas Chilenas. Nem é por acaso que a Universidade da Califórnia, dos Estados Unidos da América, se tenha interessado
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 185
capitalmente por um arquivo municipal, o da cidade de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, conseguindo autorização para microfilmá-lo totalmente. Em contraposição, depoimentos esparsos, fidedignos, afloram de vez em quando pela imprensa, pela voz dos leigos mas imbuídos internamente de espírito científico, pela voz dos especialistas, denunciando a situação calamitosa em que se acham tais reservas, não apenas nos pontos mais afastados da civilização, mas até em capitais estaduais. Raros são os arquivos que - para exemplificar não exaustivamente - se apresentam como o Municipal de São Paulo, o Nacional (em que, não obstante, tanto há ainda por recuperar, sistematizar e mesmo identificar), e, eventualmente, o Estadual de Pernambuco. É quase certo que os mais cuidados, ao crivo de exigências científicas mesmo discretas e prudentes, muito deixariam por desejar.
Não desconheçamos que à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro legalmente cabe a tarefa de coordenar a ação de guarda e salvação - com as diversas operações aí implícitas - dos arquivos brasileiros, onde quer que estejam dentro do território nacional. Não ignoremos, porém, que à a:nesma Biblioteca N acionai, na limitação de seus recursos, cabe a tarefa de prioritàriamente convergir sua melhor atenção para si mesma, a fim de que o precioso acervo bibliográfico e de vária natureza que encerra seja legado às gerações vin-
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douras em condições de inadulterabilidade e de manuseabilidade, tarefa que a sua atual direção procura cumprir com acendrada lucidez e paixão.
Não nos esqueçamos, por fim - já que é uma das coordenadas fundamentais para qualquer consideração sôbre o problema dos arquivos brasileiros - de que a produção dos suportes materiais da escrita (papel, tinta, elementos mecânicos em geral) e dos seus afins se fazia - e se ·faz ainda - nas características da c~vilização, não apenas ocidental, mas mundial, que visam as condições mesológicas tradicionalmente ecumênicas; e de que, nos trópicos, essa produção e seus ;produtos sofrem um impacto brutal diversificador, acarretando, se os cuidados não forem tresdobrados, deperecimento precoce das peças, pela ação da umidade, dos parasitas e de quantos males conexos, na construção, no mobiliário, nos materiais em geral de guarda e proteção.
A situação brasileira, no particular, lembra a dos Estados Unidos da América no correr do século XIX, já a partir de 1810, quando uma Comissão do Congresso reconheceu os papéis públicos "in a state of great disorder and exposure; and in a situation neither safe nor honorable to the nation". A tal ponto as coisas chegaram naquela hoje grande nação, com incêndios e perdas sucessivas tais, que o presidente RuTHEFORD B. HAYES, após os trabalhos de uma comissão altamente idônea designada para reco-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 187
nJendar providências a respeito, inseriu nas suas mensagens anuais, de 1878 e de 1879, o grito de .alarma em favor dos acervos arquivais norteamericanos. E püde-se dizer que a partir de então se incrementou a "consciência arquivológica." dêsse país, a exemplo do que já faziam a Grã-Bretanha, a França, a Espanha e Portugal, de forma menos ou mais eficaz, mas satisfatória. O fato, entretanto, é que somente a partir de 1933 principiaram os Estados Unidos da Amér.íca a conshuir próprios adequados à guarda sistemática dos arquivos do país em condições alta e, digamos, definitivamente satisfatórias.
Os depósitos arquivais brasileiros se distribuem nas seguintes categorias .principais: a) çomarcais, b) distritais, c) municipais, d) esta·duais e e) federais - na conformidade, aliás, da .divisão político-administrativa do país. A essas •categorias há que juntar os acervos a) privados familiares - urbanos ou rurais -, b) os eclesiásti- · cos, nas diversas escalas da hierarquia e da organização da Religião Católica, em que têm especial importância os conventuais, monacais e canônicos em geral, c) os pios e beneficentes, laicos ou ll'eligiosos, d) os das emprêsas comerciais, agrícolas, industriais e de serviços privados, autárquicos ou para-estatais, e) os cartoriais, notariais e tabeliães, e f) eventualmente os museológicos.
País de fraca tradição cultural em seu conjunto, mas com uma fração culta que se esforça
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por superar suas limitações conjunturais, o Brasil beneficiou-se, entretanto, de um passado colonial municipalmente bem estruturado, de um período imperial centralizado rico de preocupação nacional e por conseguinte unificadora - o que, em última análise, gerou uma sistemática de registro gráfico que poderia vir a ser preciosa como fonte para a interpretação da minúcia histórica e, também, da conspecção histórica da evolução brasileira. Entretanto, circunstâncias ligadas ao próprio desenvolvimento demográfico, econômico, social fizeram que, no grande surto de vária natureza que acompanhou o advento da república, não tivessem sido volvidas as atenções e cuidados que os acervos arquivais teriam desde sempre merecido, ainda que por mera rotina tradicionalista; só essa ruptura relativa explica, por exemplo, que um espírito de escol, por prurido moralizante acaso mal adequado à situação, determinasse a destruição de acervo arquivai possivelmente insubstituível para a historiografia de um dos aspectos capitais da formação brasileira.
Com o fluxo dos anos, o fato é que o problema arquivai brasileiro se agrava: relembremos que a ação do tempo nos trópiC'os, os locais mal adaptados aos fins de guarda, o despreparo específico dos guardiães, o desconhecimento generalizado do valor dos acervos, a falta de preparação espiritual dos eventuais consulentes e vicissitudes outras de teor equivalente, tudo vem dilapidando
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 189
êsse precioso legado, que tanto encerra, no seu bôjo, de ilustração, ensinamento e elucidação, para a formação histórica brasileira diretamente e para a evolução de Portugal quase diretamente.
Das categorias arquivais consideradas, há .conjuntos, em diversos pontos do território nacional, em que a guarda, o acesso, a pesquisa e a editoração se fazem de forma satisfatória. No pólo oposto, porém, há conjuntos que estão em vias de franco deperecimento, comprometendo, quiçá de forma irremediável, a documentação não apenas histórica stricto sensu, senão que lingüística, etnológica, cultural em geral.
O problema de salvação como primeira fase, d.e organização local tecnicamente assistida como segunda, de esh·uturação nacional como terceira, para uma quarta fase de editoração de catálogos e peças exemplares, se apresenta, destarte, como questão que desafia o brasileiro culto e consciente de nossos dias, aos quais, por sem dúvida, se associam solidàriamente os portuguêses e esh·angeiros identificados nos mesmos ideais de cultura.
É nessa ordem de idéias, pois, que caberia a) serem tomadas, com a brevidade possível, medidas tendentes a propiciar o máximo de atenção a todos os acervos arquivais do Brasil, assistindo, na :hierarquia polÍit:ico-administrativa, tôdas as instâncias e escalões, já com recursos materiais, já com ajuda técnica e de pessoal especializado
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formador; b) que os governos estaduais brasileiros se unissem em campanha cooperativa para êsse mesmo fim; c) que as municipalidades brasileiras inscrevessem nas suas imediatas cogitações êsse mesmo fim, tomando, ato contínuo, providências quanto à zelosa guarda de peças e seu não extravio ou deperecimento; e d) que os estudiosos brasileiros, portuguêses e estrangeiros, identificados nos mesmos ideais culturais, se aplicassem no 'Sentido de elaborarem monografias de natureza arqueográfica ligadas aos problemas de eficaz aproveitamento dos acervos arquivais brasileiros, sobretudo no que tange aos séculos XVI a XIX, 'inclusive.
(1957)
UM PROJET9 DE LEI
Trata-se de um projeto de lei, segundo o qual o poder legislativo autoriza o poder executivo a criar o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, como órgão de prospecção, planejamento e divulgação em matéria de história, antropologia cultural, etnografia, sociologia, ciência política, filologia, lingüística, dialectologia e ciências históricas, sociais, culturais, afins. auxiliares ou conexas.
Nos têrmos constitucionais, o amparo é dever do Estado, inscrevendo-se entre os instrumentos adequados à execução dessa política o estimulo às instituições de pesquisa científica, cuja criação ficou delegada à lei ordinária, na conformidade do Art. 174 e seu parágrafo único da Constituição Federal. Nos seus têrmos, ainda, se imprime caráter preferencial, na criação dêsses institutos de pesquisa, à sua conexão com os estabelecimentos de ensino superior. A sabedoria do texto constitucional, entretanto, intuindo eventual conveniência de que tais institutos de pesquisa pudessem ser .estruturados com certa autonomia em relação aos centros de ensino superior, deixou à clarividência dos podêres legislativo e executivo tal pos-
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sibilidade. Mas no caso vertente, como se verá, visa-se, outrossim, ao estímulo à criação de institutos de pesquisa dentro das organizações universitárias brasileiras, como colaboradores e cooperadores autônomos na tarefa geral de prospecção da vária e rica substância de nossa história política, social e cultural. Com o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais e seus institutos, e com a colaboração ordenada e planejada dos institutos de pesquisas históricas, sociais e culturais, já existentes, quer nos quadros universitários, quer fora dêles, quer em âmbito federal, quer em âmbito estadual ou municipal, o que se objetiva é incrementar tais pesquisas no país, dando à nação o instrumento de que estava necessitada para tal fim, a saber, a contrapartida, no plano das ciências históricas, sociais e culturais, do que é, para o plano das ciências exatas, o Conselho Nacional de Pesquisas, cujos frutos já se vêm revelando tão benéficos ao Brasil, ainda que tão brutalmente !l'eduzido nos seus recursos e disponibilidades financeiras.
É que, precisamente, as chamadas ciências históricas, sociais, culturais, políticas, não se exaurem no plano universitário, ainda que acompanhadas de institutos próprios de pesquisa, nem se podem desenvolver plenamente nos currículos do ensino superior, sob pena de eventualmente os tumultuarem. Seja, de novo, exemplo o benemé:rito Conselho Nacional de Pe~>qui~!lS~ gue, para as
SUGESTÔEII PARA UMA POiiTICA I
DA LlNGUA 19S
ciências exatas, tem realizado obra de tamanho alcance nacional, inclusive com o concurso universitário, em articulação tal que beneficia a um tempo a universidade e a pesquisa, em proveito recíproco e sobretudo em proveito nacional. Firma-se, destarte, a conveniência de que tais pesquisas se possam efetuar em atividades de fins especulativos, pioneiros e pragmáticos, sem o intuito imediato da preparação profissional especializada, mas ao contrário como ideal de conhecimento de campos de atividade cuja essência, aspectos e particularidades devam ser devassados por intermédio de profissionais já especializados e na plenitude de conhecimentos e de técnicas. Nessa conformidade - não é ocioso reafirmá-lo -estabeleça-se estruturahnente um processo de benefício recíproco entre os estudos universitários, a pesquisa privada, individual ou colegiada, e a pesquisa amparada pelo Estado, cada um condicionando os progressos e avanços científicos, técnicos e cognitivos do outro. Para lembrar um, tão-somente, dentre vários outros casos que abo;nariam o asserto, que se leve em consideração o trabalho meritório, sob muitos títulos, executado, no campo da historiografia brasileira, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pelos seus ,congêneres dos Estados da Federação, que, estimulados sob a zelosa inspiração cultural de dom Pedro II, cumpriram obra relevante para os quadros nacionais, mas já hoje vêem grande parte
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rde sua ação dificultada pelas múltiplas questões de caráter complexo que só uma penetração planejada e colegiada com recursos materiais e pessoais poderá superar.
Parece, assim, ponto pacífico que o crescente, inevitável e necessário relêvo do Estado na órbita dos interêsses gerais, tal como pôsto de manifesto na Constituição Federal, acentua a necessidade de sistematizar a pesquisa prospectiva e colegiada das disciplinas históricas, sociais, culturais, políticas, pesquisa que já não pode, senão com fundo prejuízo nacional, ficar relegada à devoção e ao espírito de sacrifício do pesquisador individual. Urge, ao contrário, estimulá-lo, com a perspectiva de que sua atividade individual possa inserir-se num plano global de pesquisas concomitantes por companheiros de igual devoção e espírito de sacrifício - o que, ipso facto, leva o Estado à sua função de planejador prospectivo, nesse como em outros campos em que igual saturação da atividade individual esbarra com aparente inércia dos podêres constituídos.
Reconhecendo, entretanto, que os supremos ~nterêsses nacionais se identificam com as pesquisas mais independentes livres de quais~uer injunções extracientíficas, não seria de boa etica constitucional preconizar a criação de um órgão de planejamento e prospecção de pesquisas dessa natureza que ficasse subordinaªo, no seu funcionamento, a ditames ou imperativos alheios aos seus
SUGESTÕES l>ARA UMA POr.f:ricA DA LÍNGUA 195
fins precípuos. Foi, nesta conformidade, com tal determinação subjacente, que se feiçoou o anexo projeto de lei, cuja finalidade essencial é dar plena e ilimitada expansão às pesquisas históricas, sociais, !culturais e políticas no Brasil.
A urgência da criação de semelhante órgão, aliás, se faz sentir a todos os respeitos. Lembremos, entretanto, um aspecto particular, que por seu excepcional relêvo pode bem ilustrar a assertiva. Na extensão do território brasileiro, há :reservas, amontoados, depósitos e acervos arquivais que importa veementemente salvar, salvação que é mero passo preliminar para outros, quais os d.e classificar, sistematizar e, eventualmente, editorar, já por catálogos de unidades discriminadas e resenhadas, já pela estampação da íntegra de peças de maior importância para a historiografia, o estudo da evolução lingüística e todos os ramos do saber em que a historicidade é, senão a chave, pelo menos uma das chaves da inteligência, com~ preensão e até ação eficaz presente. Provas de que tais conjuntos não são, nem remotamente, despiciendos, vêm à luz diàriamente. Ninguém ignora, por exemplo, que o material arquivai da cidade de Cuiabá deve encerrar preciosas indicações sôbre a expansão territorial brasileira no coração do continente. Não chega a constituir surprêsa o fato de que, em data recente, se tenha "achado" \un precioso apógrafo das Cartas Chilenas no arquivo estadual do Pará. Nem é por acaso que a
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Universidade da Califórnia, dos Estados Unidos da América, se tenha interessado por um arquivo municipal, o da cidade de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, conseguindo autorização para microfilmá-lo. Em contraposição, depoimentos esparsos, fidedignos por sua coincidência, afloram de vez em quando pela imprensa da Capital Federal e dos Estados, denunciando a situação em que se acham tais acervos arquivais ao longo do território nacional, mesmo em capitais estaduais ou cidades mais prósperas.
A situação brasileira, no particular, lembra a dos Estados Unidos da América, no correr do sécuJ.o passado, quando, já a partir de 1810, uma Comissão do Congresso daquele país reconheceu os papéis . públicos "in a state of great disorder and exposure; and in a situation neither safe nor :honorable to the nation". A tal ponto as coisas chegaram naquela hoje grande nação, com incêndios e perdas sucessivas tais, que o presidente RurHEFORD B. HAYES, após trabalhos de uma Comissão altamente idônea designada para recomendar providências a respeito, inseriu nas suas mensagens anuais de 1878 e 1879 o grito de alarma em favor dos acervos arquivais norte-americanos. E pode-se dizer que a partir de então se incrementou a "consciência arquivológica" dêsse país, a exemplo do que já faziam a Grã-Bretanha, a França, a Espanha, Portugal, de forma mais ou menos satisfatória.
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Outros muitos aspectos - qual, por exemplo, o do levantamento do atlas lingüístico e etnográfico brasileiro, que demandará largos anos de intensa coleta e análise rigorosamente planejada tanto em escala regional quanto em âmbito nacional - outros muitos aspectos relevantes do incluso projeto de lei deixo, neste ensejo, de explicitar, por estar certo de que todos os brasileiros patrioticamente compartilham dos conceitos aqui resumidamente expendidos.
CAPÍTULO I
Dos fins e da compet~ncia do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais.
Art. 1.0 • É criado o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, que terá por finalidade planejar, promover e estimular o desenvolvimento das pesquisas históricas, sociais, culturais · e políticas no país.
§ 1.0 O Conselho Federal é pessoa jurídica subordinada direta e imediatamente ao Presidente da República, terá sede na Capital e gozará de autonomia técnico-científica, administrativa e financeira, nos têrmos da presente lei.
§ 2.0 Sempre que necessário, o Conselho Federal entrará em entendimento com as autoridades federais, estaduais e :nunicipais, bem como
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com entidades públicas e subvencionadas, a fim de obter seu apoio e cooperação, assim como exercer suas pesquisas.
§ 3.0 O Conselho Federal será representado por seu presidente ou pelos diretores de institutos, conforme fôr o fôro, em juízo e fora dêle, ativa e passivamente.
Art. 2.0 Serão órgãos consultivos do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais as ep.tidades de caráter científico e reconhecido valor que, para tal fim, receberem o voto da maioria dos membros da sua Sessão Plenária.
Parágrafo único. A forma de cooperação dos órgãos consultivos a que se refere êste artigo será estabelecida no regulamento de que trata o art. 32 desta Lei.
Art. 3.° Compete precl.puamente ao Conselho Federal:
a) promover investigações e pesquisas históricas e sociais, por iniciativa própria ou em colaboração com outras instituições do país ou do exterior;
b) estimular a realização de pesquisas históricas e sociais em outras instituições oficiais ou particulares, concedendo-lhes os recursos necessários, sob a forma de auxílios especiais, para aquisição de material, contrato e remuneração de pessoal e para quaisquer outras providências condizentes com os objetivos colimados;
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c) promover e auxiliar a formação e o aperfeiçoamento de pesquisadores e técnicos, organizando ou cooperando na organização de cursos especializados, sob a orientação de professôres nacionais ou estrangeiros, concedendo bolsas de estudo ou de pesquisa e promovendo estágios em instituições científicas e de pesquisa histórica ou social no país ou no exterior;
d) cooperar com o Conselho N acionai de Pesquisas, as universidades e os institutos de ensino superior do país no desenvolvimento da pesquisa histórica e social e na formaçãc,> de pesquisadores;
e) entrar em entendimentos com as instituições que desenvolverem pesquisas históricas e sociais, federais, estaduais ou municipais, a fim de articular-lhes as atividades para melhor aproveitamento de esfôrço e recursos;
f) manter-se em contacto com instituições nacionais e estrangeiras para intercâmbio de . documentação histórica e social e para participação em reuniões e congressos, promovidos no país ou no exterior, no estudo de temas de interêsses colimados pelo Conselho Federal;
g) emitir pareceres e prestar informações sôbre assuntos pertinentes às suas atividades, que sejam solicitados por órgãos oficiais;
h) sugerir aos poderes competentes quaisquer providências que considere necessárias para a realização dos seus objetivos.
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§ 1.0 Para cada exercício financeiro, o Conselho Federal estabelecerá um plano básico de trabalho e preverá, para a sua execução, a discriminação dos recursos necessários.
§ 2.0 Nos casos previstos nas alíneas b, c, d dêste artigo, o Conselho Federal acompanhará a realização das correspondentes atividades a cargo das instihlições a que conceder auxílio financeiro, .sem que isso, no entanto, importe em interferência tnas ·questões internas dessas instituições ou em suas investigações científicas.
§ 3.0 O Conselho Federal promoverá, em 'cooperação com as universidades do país, com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com instituições oficiais ou privadas com que entrar em entendimento, a pesquisa necessária ao estabelecimento de mapas etnográficos e lingüísticos brasileiros, bem como, em entendimento com o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e instituições congêneres, o levantamento de acervos factuais e materiais de nossa civilização material, assim como o tombamento dos arquivos e acervos arquivais brasileiros, federais, esta~ duais, municipais e ouh·os, classificando-os, referendando-os, resenhando-os e publicando-lhes os .catálogos ou colaborando com material e pessoal nessas tarefas.
§ 4.0 Para efeitos desta lei, o Conselho Federal promoverá prioritàriamente conferências na-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 201
danais de especialistas com o fim de fixar sistemas internacionais de descrição, classificação e notação adaptados às características nacionais, ou criará sistemas brasileiros para êsse fim.
§ 5.0 O Conselho Federal será o órgão consultivo do Govêrno nas questões relacionadâs com a transferência de arquivos e bibliotecas federais que devam ser removidos para a futura Capital Federal.
Art. 4.0 Os documentos públicos federais, estaduais e municipais, assim como os de quaisquer instituições ou órgãos do Estado ou subvencionados pelo Estado, serão desclassificados dez anos após sua emissão ou datação original, salvo aquêles sôbre os quais o Conselho de Segurança Nacional determinar maior prazo.
§ 1.0 Os documentos privados que, após a morte de seus autores ou detentores, forem postos no mercado, terão como adquirente privilegiado o Estado, retribuídos no justo valor, a parecer do Conselho Federal ou a critério de comissão arbitral, se fôr o caso, nomeada de comum acôrdo entre os herdeiros e o Conselho Federal.
§ 2. 0 Todos aquêles que tentarem retirar ou retirarem do território nacional documentos públicos ou mesmo privados sôbre os quais o Conselho Federal tiver feito declaração prévia de adquirente privilegiado serão objeto de ação legal e sujeitos· a penas ou multas que a lei fixará.
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CAPÍTULO li
Da organizaçã.o do Conselho Federal
Art. 5.0 - O Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais terá a seguinte organização:
a) Sessão Plenária b) Divisão Científica e Cultural c) Divisão Administrativa d) Institutos Art. 6.0 - A Sessão Plenária, órgão soberano
de orientação das atividades do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, será constituída dos seguintes membros, todos brasileiros:
. a) 2 (dois) membros de livre escolha do Presidente da República, que exercerão as funções , respectivamente, de presidente e de vice-presidente do Conselho Federal, funções em comissão e de que serão demissíveis ad nutum; _
h) 7 (sete) membros escolhidos pelo Govêrno como representantes, respectivamente, dos Ministérios da Agricultura, da Educação e Cultura, das Relações Exteriores, do Trabalho, Indústria e Comércio, da Justiça e Negócios Interiores, da Saúde, e do Estado Maior das Fôrças Armadas;
c) 10 (dez) membros no mínimo e 20 (vinte) no máximo como representantes de órgãos e instituições científicas e culturais do país, de
SUGESTÕES PARA -UMA POLÍTICA DÁ LÍNGUA 203
estudos históricos e sociais, de universidades e de entidades afins;
d) 5 (cinco) membros como representantes da Universidade do Brasil, 2 (dois) como do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e 2 (dois) do Conselho Nacional de Pesquisas;
e) dos diretores dos institutos integrantes do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais.
§ 1.0 - Os membros da Sessão Plenária do , Conselho Federal terão a escolha confirmada por decreto global do Presidente da República, exercerão mandato por três anos, que poderá ser renovado, e sua função será considerada de alta relevância.
§ 2.0 - A renovaç.:i'ío e o preenchimento de vagas dos membros a que se referem as alíneas a e b ficam a critério do Govêrno.
§ 3.0 - No caso da representação prevista na alínea c, o Conselho Federal manterá uma re-· lação de órgãos e institutos científicos e culturais do país que se possam representar em Sessão Plenária, procurando, a cada renovação trienal, reservar pelo menos um têrço dessa representação para fins de rodízio dos representantes de tais órgãos e instituições. ,
§ 4.0 - Em todos os casos em que a escolha
dos membros da Sessão Plenária do Conselho Federal não se faça pelo Presidente da República ou pelo Govêrno, o Conselho Federal organi-
204 ANTÔNIO HOUAISS
zará uma lista com os nomes das personalidades indicadas, especificac;:ão dos 6rgãos e instituições a que pertencem, em número duplo do que deve ser renovado ou completado, para opção do Presidente da República.
§ 5.0 - Para a constituição inicial da Sessão Plenária do Conselho Federal, o Presidente da República escolherá livremente os ~embros a que se refere a alínea c dêste artigo .
. Art. 7.0 - O presidente do Conselho Federal de Pesquisas Hist6ricas e Sociais exercerá a direção do Conselho Federal e velará pela execução das resoluções da Sessão Plenária por parte das Divisões e dos Institutos.
§ 1.0 - Em seus impedimentos eventuais, ou em suas faltas, o presidente será substituído pelo vice-presidente.
§ 2.0 - O Conselho Federal contará co~ 1 (um) consultor jurídico e o presidente com 1 (um) a 3 (três) assistentes, um dos quais será designado para exercer as funções de secretário de Sessão Plenária.
§ 3.0 - As Sessões Plenárias serão, ordinà
riamente, uma vez ao ano, podendo, a juízo do presidente do Conselho Federal ou a solicitação de um têrço dos integrantes da Sessão Plenária, ser convocadas extraordinàriamente.
§ 4.0 - Na Sessão Plenária ordinária, que
será preparada durante todo o ano anterior pela Divisão Científica e Cultural, serão planejadas as
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 205
pesquisas do ano futuro e balanceadas as realizações anteriores.
Art. 8.0 - A Divisão Científica e Cultural ficará encarregada de elaborar projetos de pes-
' quisas geral ou regional relacionados com os objetivos do Conselho Federal, por motivação ou sem ela dos Institutos, mas em estreito e permanente contacto com os mesmos, e terá, a critério da Sessão Plenária, os setores necessários ao atendimento e desenvolvimento de suas atividades.
§ 1.0 - A direção da Divisão Científica e Cultural será exercida por um diretor-geral e a de cada setor, por um diretor de planejamento, de livre designação do presidente do Conselho Federal.
§ 2.0 - Para efeitos da elaboração dos projetos de pesquisas geral ou regional previstos neste artigo, poderá ainda a Sessão Plenária motivar o presidente do Conselho Federal a requi- · sitar, na forma da legislação em vigor, ou contratar pessoal científico e técnico especializado, nacional ou estrangeiro, de comprovada idoneidade, bem como constituir comissões consultivas ad hoc.
Art. 9.0 - A Divisão Administrativa terá a séu cargo os serviços de administração e contabilidade.
Parágrafo único - A direção da Divisão Administrativa será exercida por um diretor-geral, que será assistido por dois ·chefes de setor e por
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servidores públicos, requisitados na forma da legislação em vigor.
Art. 10.0 - Os serviços de planejamento da Divisão Científica e Cultural, bem como os de administração da Divisão Administrativa, funcionarão na Capital Federal, onde se realizarão ordinária ou extraordinàriamente as sessões pie-nárias.
· § 1.0 - O presidente do Conselho Federal poderá, entretanto, convocar Sessões Plenárias para serem realizadas em qualquer localidade do país.
§ 2.0 - Serão considerados de caráter reservado os arquivos do Conselho Federal, bem como seus projetos e estudos, enquanto não forem tornados públicos por órgão competente do Conselho Federal, não podendo fazer uso dêles antecipadamente os que e~tiverem ligados, direta ou indiretamente, a tais arquivos, projetos e estudos.
§ 3.0 - A editoração de esh1dos e resultados de estudos do Conselho Federal e de seus institutos será sempre feita sob a menção de "Obras do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais", com imediata referência ao Instituto em que tiver sido elaborado o trabalho, se um só, sem l·eferência aos institutos, se forem dois ou mais, o que constará de parte preliminar da publicação, bem como a indicação de pesquisador, ou do diretor de pesquisas e seus colaboradores, os quais,
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todos, com se engajarem a serviço do Conselho Federal e de seus Institutos, e com receberem a assistência material, intelectual e de vária natureza de que necessitarem, abrem mão dos direitos autorais, por si e seus herdeiros, sem prejuízo, porém, de poderem reelaborar, condensar, glosar, didatizar a matéria de cuja elaboração tiverem sido autores, responsáveis, corresponsáveis, pesquisadores, diretos ou indiretos.
Art. 11 - A Sessão Plenária ordinária, ou qualquer extraordinária, deve;á, funcionar sempre, em primeira convocação, com um quorum de três quintos e, em segunda convocação, vinte e quatro horas depois da primeira pelo menos, de metade de seus membros, sendo suas resoluções tomadas por votação, em simples maioria.
§ 1.0 - Os membros das Sessões Plenárias não perceberão, por sessão, gratificação de presença, mas os que não residirem no local onde se realizarem as sessões perceberão ajuda de custas e diárias para as despesas de viagem e de estada.
§ 2.0 - Para os membros que forem servidores públicos, civis ou militares, as sessões plenárias do Conselho Federal terão preferência sôbre suas funções ordinárias, sem prejuízo dos vencimentos e demais vantagens do cargo ou pôsto efetivo.
§ 3.0 - Os membros que forem servidores públicos, civis ou militares, e que faltarem a duas sessões ordinárias consecutivas do Conselho Fe-
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deral serão automàticamente exonerados de suas funções, devendo o presidente do Conselho Federal providenciar a sua substituição na forma desta lei.
CAPÍTuLo III
Dos institutos do Conselho Federal
Art. 12 - Para a realização dos seus objetivos, o Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais poderá manter até 23 (vinte e três) Institutos, preferentemente nas capitais dos Estados e no Distrito Federal, os quais o Poder Executivo é autorizado a criar gradativamente por decreto, doze dos quais deverão ter prioridade e são os seguintes :
a) Instituto José V eríssimo de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Belém, capital do Estado do Pará;
b) Instituto Capistrauo de Abreu de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Fortaleza, capital do Estado do Ceará;
c) Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede no Recife, capital do Estado de Pernambuco;
d) Instituto Nina Rodrigues de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Salvador, capital do Estado da Bahia;
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 209
e) Instituto Euclides da Cunha de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Campos, Estado do Rio de Janeiro;
f) Instituto Rui Barbosa de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede na cidade do Rio de Janeiro, ora Capital Federal;
g) Instituto Carnões, para pesquisas filológicas e lingüísticas, com sede na Capital Federal;
h) Instituto Duque de Caxias de Pesquisas Históricas Militares, com sede na cidade do Rio de Janeiro, ora Capital Federal;
i) Instituto Washington Luís de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em São Paulo, capital .do Estado de São Paulo;
j) Instituto Bento Gonçalves de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Pôrto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul;
k) Instituto Tiradentes de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Belo Horizente, capital do Estado de Minas Gerais;
l) Instituto Couto de Magalhães de Pesquisas Históricas e Sociais, com sede em Goiânia, capital do Estado de Goiás.
§ 1.0 - O atual Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, com sede no Recife, capital do Estado de Pernambuco, será ampliado na conformidade da presente Lei em Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Históricas e Sociais.
§ 2.0 - A atual Casa de Rui Barbosa, sem prejuízo do que lhe compete no que tange à
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pessoa e à obra de Rui Barbosa, será ampliada na .conformidade da presente Lei em Instituto Rui Barbosa de Pesquisas Históricas e Sociais.
§ 3.0 - O Conselho Federal, em Sessão Plenária, definirá a jurisdição regional de cada instituto para os trabalhos de pesquisa, jurisdição que poderá ser diminuída na medida em que forem sendo criados os institutos de que trata a presente Lei.
· Art. 13 - Cada Instituto será dirigid9 por um diretor, designado, pelo Presidente da República, em comissão, de lista tríplice que lhe fôr submetida pelo Conselho Federal, e contará com dois secretários gerais, designados em comissão, de lista sêxtupla que lhe fôr submetida pelo Conseaho Federal.
§ 1.0 - Diretor e secre~rios gerais a que se refere êste artigo deverão ser domiciliados e residentes na cidade que fôr sede do Instituto em causa.
§ 2.0 - A primeira designação a que se refere êste artigo ficará a critério exClusivo do Presidente da República, guardado o disposto no parágrafo anterior. ·
Art. 14 - Cada Instituto se subdividirá em centros de pesquisas, tantos quantos forem necessários à execução dos projetos e na conformidade dos campos do conhecimento, disciplinas, matérias ou ciências históricas, sociais, políticas, culturais,
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 211
centros que poderão eventualmente constituir-se pelo período de determinada pesquisa.
§ 1.0 - Cada instihlto manterá permanente-mente os seguintes centros:
a) centro de preparação de pessoal; b) centro de pesquisas etnográficas; c) centro de pesquisas dialectológicas; d) centro de sistematização de arquivos e
documentação histórica; e) centro de editoração. § 2. 0 - O centro de preparação de pessoal a
que se refere o parágrafo anterior poderá, em acôrdo com universidade local, gozar de mandato universitário, na preparação de pes~oal de pesquisa, que uma vez formado será de engajamento preferencial nos Institutos do Conselho Federal.
§ 3.0 - O centro de sistematização pe arquivos e documentação histórica deverá, dentre outros objetivos que possa ter, zelar pela assistência ao . tombamento, classificação, referenciação, resenhação dos arquivos públicos, federais, estaduais, municipais e outros, mercê de acordos com as autoridades competentes e mercê do sistema definido como resultado do que é previsto no § 4.0
do art. 3. 0 desta Lei. § 4.0 - O centro de editoração se encarrega
rá da publicação de um boletim trimestral e da preparação final de originais de obras resultantes da pesquisa regionalizada, segundo características
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gráficas que serão fixadas, em âmbito nacional, por Sessão Plenária do Conselho Federal.
Art. 15 - O Conselho Federal, em Sessão Plenária, cento e vinte dias após sua instalação, proporá ao Presidente de República um projeto de regulamento dos institutos do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, regulamento em que se fixarão, com a minúcia desejável, os aspectos essenciais das pesquisas que a longo prazo deverão ser realizadas no Brasil no âmbito de sua competência.
CAPÍTuLO IV
Do patrimônio e da sua utilização
Art. 16 - O patrimônio do Conselho Federal será formado:
a) pelos bens e direitos que lhe forem doados ou por êle adquiridos, distinguindo os bens patrimoniais doados aos Institutos individualmente ou por êlt:)s adquiridos;
·b) pelos saldos de rendas próprias ou de !recursos orçamentários, quando transferidos para a conta patrimonial.
Art. 17 - A aquisição de bens patrimoniais por parte de Conselho Federal independe de .aprovação do Govêrno Federal, mas a alienação
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 213
dêsses bens somente poderá ser efetuada depois de autorizada em lei.
Art. 18 - Os bens e direitos pertencentes ao Conselho Federal somente poderão ser utilizados para a realização dos objetivos próprios à sua finalidade, na forma desta Lei, que permitem, porém, a inversão de um e de outro para a obtenção de rendas destinadas ao mesmo fim.
CAPÍTULO v Dos recursos e da sua especificação
Art. 19 - Os recursos para a manutenção dos serviços do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais e de seus Institutos, conservação, renovação e ampliação de suas instalações, bem .como de realização de seus objetivos e fins, serão provenientes de:
a) dotações orçamentárias que lhe forem atribuídas pela União;
b) dotações, a título de subvenção, que lhe atribuírem Unidades da Federação e Municípios;
c) doações, legados e outras rendas que, a êsse título, receber de pessoas físicas ou jurídicas;
d) renda de aplicação de bens patrimoniais; e) retribuição de atividades remuneradas
dos laboratórios e quaisquer outros serviços; f) taxas e emolumentos;
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g) receita proveniente de sua editoração; h) produto da venda de material inservível
ou da alienação de elementos patrimoniais; i) produto de créditos especiais abertos
em lei. Art. 20 - A dotação correspondente a cada
exercício financeiro constará do orçamento da União, com título próprio, destacado de cota nacional prevista no Art. 169 da Constituição Federal, para ser entregue ao Conselho Federal, sob forma de auxílio, em cotas semestrais antecipadas e que serão depositadas para movimentação, em conta corrente de instituição oficial de crédito.
§ 1.0 - O Conselho Federal, em Sessão Plenária, deliberará sôbre a distribuição dos recursos concedidos e examinará, para a devida comprovação, as demonstrações · das despesas efetUadas, podendo o presidente do Conselho Federal adiantar aos Institutos cotas-partes que não totalizem mais de cinqüenta por cento dos recursos distribuíveis, ad 1'eferendum da Sessão Plenária.
§ 2.0 - A movimentação de fundos será feita, no Conselho Federal, mediante a assinatura conjunta do presidente e do diretor da Divisão Administrativa.
§ 3.0 - Cota-parte da renda global anual do Conselho Federal será fixada para cada Instituto, na proporção das pesquisas, nacionais ou regionais, que êste dever realizar no exercício, independentemente da renda global particular que cada Insti-
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 215
tuto puder vir a ter para cada exercício, proveniente de subvenção de Unidade da Federação, de Municípios ou de pessoas físicas ou jurídicas que com êle entrarem em entendimento direto para pesquisa de particular interêsse estadual ou municipal;
§ 4.0 - Cada Instituto, por seu diretor, prestará contas em Sessão Plenária do Conselho Federal da aplicação dos fundos que lhe forem distribuídos pelo mesmo, juntando os comprovantes idôneos das despesas efetuadas, bem como uma demonstração da aplicação de outros fundos que receber de outras fontes.
CAPÍTULO VI
Do regime financeiro do Conselho Federal
Art. 21 - O regime financeiro do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais e de seus institutos obedecerá aos seguintes preceitos:
a) o exercício financeiro coincidirá com o ano civil;
b) a proposta de orçamento será organizada e justificada com a indicação das propostas particulares de cada instituto e com a indicação dos trabalhos correspondentes, de âmbito nacional e de âmbito regional;
c) os saldos de cada exercício serão lançados no fundo pah·imonial ou em fundos espe-
216 A N T Ô N I O H OU A I S S
ciais, na conformidade do que, no respeito, deliberar o Conselho Federal, que deverá ter em conta a possibilidade da criação de um fundo de reserva nacional e de fundos de reserva para cada Instituto, que poderão ser aplicados em projetos especiais de âmbito nacional ou de âmbito jurisdicional, respectivamente;
d) durante o exercício financeiro poderão ser abertos créditos adicionais, de caráter nacional ou de caráter regional, desde que as necessidades dos serviços o exijam e haja recursos disponíveis.
Parágrafo único - A proposta orçamentária, organizada pelo Conselho Federal, será submetida à aprovação do Presidente da República.
Art. 22 - A prestação anual de contas ao Presidente da República será feita até o último dia do mês de março, enquanto a prestação de contas ao Presidente do Conselho Federal por parte dos diretores dos institutos o será até o último dia do mês de janeiro; e a prestação global anual de contas, bem como a dos Institutos, constará, além de outros, dos seguintes elementos:
a) balanço patrimonial; b) balanço econômico; c) balanço financeiro; d) quadro comparativo entre a receita es
timada e a receita realizada; e) quadro comparativo entre a despesa fi
xada e a despesa realizada.
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍ GUA 217
§ 1.0 - A prestação de contas referente às dotações orçamentárias será apresentada ao Tribunal de Contas até o último dia útil do mês de abril.
§ 2.0 - Também até o último dia útil do mês de abril o Conselho Federal apresentará seus balanços à Contadoria da República, para que sejam publicados juntamente com balanços gerais da União.
CAPÍTULo VII
D.o fundo nacional de pesquisas históricas e sociais e outms fundos
Art. 24 - É instituído o fundo nacional de pesquisas históricas e sociais.
Parágrafo único - Serão incorporados ao fundo de que trata êste artigo os créditos especialmente concedidos para êsse fim, os saldos das dotações orçamentárias e quaisquer outras rendas e receitas eventuais.
Art. 25 -- O Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais e seus Institutos poderão receber doações com finalidades determinadas, se integradas nos seus objetivos e fins, ou sem finalidades expressas.
Parágrafo único - As doações com finalidade determinada que os Institutos receberem não
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poderão ser levadas em conta pelo Conselho Federal, quando da fixação da cota parte a que se :refere o § 3.0 do art. 20 desta lei.
CAPÍTULO VIII
Disposições gerais e transitórias
Art. 26 - O Conselho Federal aprovará em Sessão Plenária seu regimento interno e um padrão de regimento interno para os seus Institutos, que organizarão, nessa conformidade, o seu regimento interno, ad referendum de Sessão Plenária do Conselho Federal, regimentos internos que estabelecerão as normas gerais para desempenho de seus encargos; e o Conselho Federal elaborará, para aprovação pelo Govêrno, o projeto de regulamentação desta Lei.
Parágrafo único - O regulamento disporá sôbre a estrutura das divisões e setores do Conselho Federal e sôbre a estrutura dos Institutos, sôbre os requisitos e condições para a concessão de auxílios destinados à realização de cursos ou pesquisas e, ainda, sôbre as formas de admissão, o regime de trabalho do tempo integral e de pagamentos, as atribuições de vantagens e deveres do pessoal, atendidas as seguintes disposições:
SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DA LÍNGUA 219
a) O Conselho Federal praticará, sob sua exclusiva responsabilidade, todos os atos peculiares ao seu funcionamento;
_b) as condições gerais de requisição, desig;nação, licenciamento, demissão, aposentadoria dos ·Servidores públicos, lotados no Conselho Federal e seus Institutos, são as estabelecidas na legislação federal, enquanto para os servidores estaduais o são as estabelecidas na legislação estadual;
c) o Conselho Federal poderá admitir, inclusive nos Institutos, pessoal não caracterizado como permanente ou extranumerário, para melhor consecução de suas finalidades.
Art. 27 - Os interêsses do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais serão atendidos, em juízo, no Distrito Federal, por seu consultor jurídico e, nos Estados, pelo Procurador Seccional da República.
Art. 28 - São isentos de impostos e taxas os aparelhos, instrumentos, utensílios de laboratório e quaisquer outros materiais que o Conselho Federal importar, para si ou para os Institutos, na execução dos seus serviços, e o respectivo desembaraço alfandegário far-se-á mediante simples requisição ao chefe da repartição competente, acompanhado de prova de aquisição do material importado.
Art. 29 - Anualmente, até o último dia do mês de abril, o presidente do Conselho Federal apresentará ao Presidente da República relatório
220 ANTÔNIO HOUAISS
das atividades do Conselho Federal no exercício anterior.
Parágrafo único - Anualmente, até o último dia do mês de fevereiro, o diretor de cada Instituto apresentará ao presidente do Conselho Federal o relatório das atividades do instituto no exercício anterior.
Art. 30 - Para as atividades iniciais do Conselho Federal de Pesquisas Históricas e Sociais, inclusive a instalação e organização de seus serviçôs na Capital Federal e de pelb menos cinco Institutos, exclusive os já existentes que serão ampliados, é o Poder Executivo autorizado a abrir crédito especial de Cr$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de cruzeiro's).
Art. 31 - A presente lei será regulamentada dentro dos 120 (cento e vinte) dias de sua publicação.
Art. 32 - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
(1957)
lNDICE
Introdução o o o o o o o o o .. o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 7 Sôbre a língua do teatro o o o o o o o o o o o o o o o o o 9 A propósito de nossa língua falada o o o o o o o 22 Primeiro Congresso Brasileiro de Língua
Falada no Teatro o o o o o o o o o o o o o o o o o o 33 Dialectologia e Etnografia o o o o o o o o o o o o o o 38 Sôbre a "Língua Brasileira" o o o o o o o o o o o o o o 7 4 Sôbre a Enciclopédia Brasileira o o o o o o o o o 130 Arquivos do Brasil o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 184 Um projeto de lei o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 191
BIBLIOTECA DE DIVULGAÇÃO CULTURAL
SflRIE A
VOLUMES PUBLICADOS: I- Augusto Meyer - Prêto & Branco. li - Ruggero Jacobbi - A Expressão Dramática.
III - Ant6nio Rangel Bandeira - Da Liberdade de Criação Artística.
IV- Aires da Mata Machado Filho - Falar, Ler e Escrever.
V - Waltensir Dut1·a e Fausto Cunha - Biografia Crítica das Letras Mineiras.
VI - Sylvio de Vasconcellos - VILA RICA. Formação e Desenvolvimento. Residências.
VII- Octavio Mello Alvarenga - Mitos & Valores. VIII - Paulo R6nai - Como Aprendi o Português
e Outras Aventuras. IX - Celso Brant - Bach, o Quinto Evangelista. X - Brito Broca - Horas de Leitura.
XI - Edison Carneiro - A Sabedoria Popular. XII - Eduardo Frieira - O Brasileiro não é Triste.
XIII - Oswaldino Marques - A Seta e o Alvo. XIV- Euri co Nogueira França- Música do Brasil. XV - Francisco de Assis Barbosa - Achados do
Vento. XVI- M. Cavalcanti P r oença - No Têrmo de
Cuiabá. XVII - Paulo R6nai - Encontros com o Brasil.
XVIII - M iéqio Táti - Estudos e Notas Críticas. XIX - Eugêni o Gomes - Visões e Revisões. XX - Coutinho Cavalcanti - Um Projeto de Re
forma Agrária. XXI - Lu~s Cosme - Música, Sempre Música.
224 ANTÔNIO HOUAISS
XXII- Renato de Mendonça e da Gente.
Retratos da Terra
XXIII - Cassiano Ricardo - O Homem Cordial e outros pequenos estudos brasileiros.
XXIV- Josué Montello - Caminho da Fonte - Es-tudos de literatura.
* 11:STE LIVRO FOI COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DA EMPR:II::SA GRAFICA DA
"REVISTA DOS TRIBUNAIS" S. A., À RUA
CONDE DE SARZEDAS, 38, SÃO PAULO,
EM 1960.
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PREÇO: Cr$ 30,0