[SP - 28] ESTADO/CIDADES/PÁGINAS 29/03/15meiro “cacerolazo” (lê-se “cacerolaço”)....

1
A6 Política DOMINGO, 29 DE MARÇO DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO Em alto e bom som Rodrigo Cavalheiro ENVIADO ESPECIAL TEMUCO, CHILE D ona de um casarão ro- deado por trigo re- cém-colhido, vacas leiteiras e araucárias na zona rural de Temuco, 620 quilô- metros ao sul de Santiago, a fazendeira Carmen Saenz Terpelle ri da capacidade conquistada pelos panelaços para aguçar a audição dos go- vernantes. Essa senhora de 89 anos não só testemunhou o início desse fenômeno polí- tico-acústico, nascido em 1971 como arma da onda con- servadora que derrubaria o socialista Salvador Allende, em 1973. Ela comandou o pri- meiro “cacerolazo” (lê-se “cacerolaço”). Carmen tinha 48 anos e in- tegrava o Poder Feminino, grupo de direita formado por políticas de famílias afetadas pelas desapropriações de ter- ra ordenadas por Allende. Se- guiu-se uma queda abrupta na produção agrícola e distri- buidores contrariados com a elevação no ganho dos operá- rios organizaram boicotes. Chilenos de todas as ideolo- gias ficaram sem comida. “Sem ter o que cozinhar, uma líder comunitária de San- tiago me disse ‘por que não ba- temos panelas?’”, conta Car- men, acomodada na cadeira de rodas com que se move nas idas ao shopping e ao cassino da cidade de 270 mil habitan- tes, a 82 quilômetros da sede dafazendade600hectares.“A sugestão foi dessa mulher. O que eu fiz foi levá-la adiante.” Para ampliar a ideia, ela recor- reu ao programa Mulheres Tam- bém Improvisam, conduzido na Rádio Cooperativa por quatro amigas jornalistas que faziam campanha contra Allende. Se- gundo a fazendeira, bastou um anúncio: a senhora Carmen Saenz Terpelle convoca as des- contentes ase manifestar na Pra- ça Itália, centro da capital chile- na. “Cheguei por volta das 17 ho- ras e mulheres se desprendiam de ônibus lotados, todas com pa- nelas. Dali para frente, sempre às 21 horas, havia um panelaço.” Em 1.º de dezembro de 1971, a revolta redundou na Marcha das Panelas Vazias. Segundo o historiador americano Peter Winn, autor do livro Revolução Chilena, enfrentaram-se naque- le dia governistas e militantes de direita protegidos pelo grupo pa- ramilitar Pátria e Liberdade, de orientação fascista. Para o histo- riador,o panelaço incomum, co- mandado por mulheres de clas- se média e alta, marcou “o fim do avanço revolucionário”. Ao conquistar o poder na ter- ceira tentativa, Allende havia nacionalizado bancos, minas e indústrias. Ao Estado, a senado- ra Isabel Allende Bussi, filha do presidente deposto, disse que os panelaços foram importan- tes, “mas houve outros fatores decisivos para o golpe”. O apoio norte-americano foi um deles. Segundo Carmen, os defenso- res do governo legítimo não ne- cessariamente respondiam de forma limpa. Uma tática contra os panelaços era jogar batatas recheadas com lâminas de bar- bear – uma das quais cortou seu cotovelo. A reação da esquerda vinha também com sátiras. Em 1972, a banda Quilapayún com- pôs Las Ollitas (As panelas), um chá-chá-chá que dizia: “A direi- ta tem duas panelas / uma pe- quena, outra grande / a pequena acaba de comprar, essa é usada só para golpear”. Em 4 de setembro de 1973, meiomilhãomarcharamemSan- tiago por Allende, que já não ti- nha apoio de movimentos de ca- minhoneiros, comerciantes e médicos. No dia 11, ele se matou durante o bombardeio ao palá- cio presidencial, La Moneda. Co- meçava a ditadura comandada até 1990 por Augusto Pinochet, na qual, segundo dados oficiais, 40 mil morreram ou desaparece- ram por se oporem ao general. “Não me arrependo de nada. Os panelaços foram um alarme contratudooquesignificavades- contentamento nessa época. Campos desapropriados, escas- sezdepão...”,insisteavaidosafa- zendeira. Ao fazer compras, acompanhadadeummotoristae uma enfermeira, ela não dispen- sa colar e brinco de pérolas, bem comounhasfeitas.“Quebreiaba- cia, mas a cabeça está boa.” Carmen e o marido, Patricio Phillips, morto em 1997, foram deputados e senadores pelo Partido Nacional, que agluti- nou a direita até o golpe, e segui- ram influentes na ditadura e iní- cio dos 90. Sobre Pinochet – ou Pinóquio, apelido recebido nos últimos anos no poder, de pro- messas não cumpridas – Car- men pede um segundo antes de concluir: “Seria mentir dizer que o povo não gostava dele”. Reverberação. Embora conser- vadores chilenos se orgulhem da “invenção” do panelaço, os utensílios ainda ganham a ideo- logia de quem os empunha. O próprio Pinochet foi alvo nos anos 80 de panelaços caseiros, com que se evitava a repressão do regime militar. Na Argentina, as panelas co- meçaram a soar em 1982, ain- da na ditadura (1976-83), também com mulheres revol- tadas com escassez e infla- ção. A partir daí, segundo Ro- xana Telechea, autora de A História dos Panelaços: 1982-2001, atormentaram Raúl Alfonsín na hiperinfla- ção dos anos 80 e o liberal Carlos Menem nos 90. Mas tornaram-se um marco na crise de 2001-2002. Nesta etapa, adaptações para que tampas batessem mais rápi- do com uma manivela foram inventadas. Em 2012 e 2013, soaram para Cristina Kirch- ner, ao lado de cartazes con- tra inflação e autoritarismo. Na América Latina, houve manifestações do tipo em Ve- nezuela, Colômbia, Uruguai e Cuba. Na Europa, a batuca- da chegou a Grécia, Espanha e Turquia. E golpeou países com alto grau de desenvolvi- mento ao ressoar no Canadá, em 2012, e na Islândia, na cri- se de 2008. A chilena Carmen diz ter visto os recentes pane- laços contra o governo brasi- leiro. “Se é uma forma de que escutem as pessoas, acho muito positivo”, afirma. Mesmo tendo votado con- tra a presidente Michelle Ba- chelet, em crise de populari- dade por um caso de corrup- ção envolvendo filho e nora, Carmen não vê elementos pa- ra ruído de panelas onde elas começaram a soar em 1971. “Ela teve alta votação, está fa- zendo coisas muito boas. Não votei nela, mas me solidarizo, porque é minha presidente”, diz. “Não estamos em uma di- tadura, nem muito menos.” Os panelaços que a senhora ajudou a tornar multitudinários a partir de 1971 influíram na queda do presidente Salvador Allende e deram início a uma ditadura de 17 anos. Algum arrependimento? Não me arrependo de nada do que eu vivi. Acho que (o pane- laço) foi um alarme que con- centrou tudo o que significava o descontentamento nessa época. Campos desapropria- dos, escassez de pão. Era pre- ciso fazer fila para tudo. E a senhora mesma chegou a entrar em fila de alimentos? Mandava minhas empregadas para a fila. Mas tive que mui- tas vezes fazer fila pela carne. Como por sorte tenho uma fazenda, de vez em quando me mandavam carne daqui do campo para Santiago. A senhora chegou a ter uma boa relação com Allende antes de ele chegar à presidência? Allende foi três vezes candida- to. Na terceira, saiu. Não era partidário dele, mas sim de Jorge Alessandri (presidente de 1958 a 1964, derrotado em 1970 por Allende por 36,6% a 35,3%), que pôs em seus ministérios gente de todos os partidos. Já o senhor Allende, o que fez primeiro foi expropriar as pro- priedades rurais. Nisso caiu a minha mãe, caí eu, caiu a mi- nha sogra, caímos todos. Quanto a senhora perdeu nas desapropriações? Tenho 600 hectares até hoje, isso foi uma herança do meu avô. Tenho uma leiteria e nun- ca tive problemas com os em- pregados. Estou contente no campo, prefiro viver no cam- po que em Santiago. Quando faltou comida com Al- lende, foi incompetência dele ou empresários tiraram os alimen- tos do mercado? Havia corporações que esta- vam autorizadas a receber co- mida e intermediários. Mas acho que íamos a passo muito firme para chegar ao que é Cuba hoje em dia. estadao.com.br/e/cacerolazos O grupo Poder Feminino, ao qual per- tencia Carmen Saenz Terpelle, é um exemplo de movimento conserva- dor liderado por mulheres, que tinha como grande trunfo apresentar-se como e consi- derar-se apartidário. A ideia de que estava acima da política e não precisava da inter- mediação de partidos e políticos corruptos ajudou a ter êxito no que pretendia. O mes- mo ocorreu no Brasil com a Marcha da Fa- mília com Deus pela Liberdade em 1964, contra o presidente João Goulart. O curioso é que na época as mulheres eram consideradas e se definiam como do- nas de casa e mães, não como atores políti- cos, mas encaixaram-se perfeitamente co- mo representantes desses movimentos. Nos dois casos, a liderança masculina anti- Jango e anti-Allende também entendeu a importância de organizar o movimento fe- minino. Eles bancaram de alguma maneira o envolvimento das mulheres na política. Ao mesmo tempo, algumas tomaram a ini- ciativa, foram para a linha de frente e organi- zaram milhares de outras mulheres, assim como homens. Aguçaram seu tino político. Em geral, a direita exibe seu poder político por outros meios. Os movimentos progres- sistas, por outro lado, cultivam o gosto pelos protestos de rua. Se elas serão ou não leva- das a sério, depende do assunto, do contexto e do tamanho da manifestação. Nos últimos anos, as que tiveram mais visibilidade e re- sultados concretos nos Estados Unidos fo- ram as do Occupy e, recentemente, as rela- cionadas a mortes de negros por policiais. O uso da tática das panelas no Brasil não surpreende. Essa foi uma estratégia com alto sucesso no Chile – o próprio Augusto Pinochet dissolveu o Poder Feminino um ano depois de chegar ao poder, sabendo do que o grupo era capaz. No Chile, quando mulheres começaram a golpear panelas va- zias contra Allende, a esquerda também riu. Argumentou que eram só mulheres de clas- se alta que nunca haviam cozinhado na vida porque tinham empregadas. A esquerda chi- lena usou a luta de classes para ignorar preocupações femininas legítimas. Minimi- zar essas reivindicações, como foi feito no Chile, seria um grande erro do Brasil. É AUTORA DO LIVRO 'A MULHER DE DIREITA: O PODER FEMININO E A LUTA CONTRA SALVADOR ALLENDE (1964-1973)' E PROFESSORA DE HISTÓRIA NO INSTITU- TO DE TECNOLOGIA DE ILLINOIS 5 PERGUNTAS PARA... ANÁLISE: Margaret Power ‘Foi um alarme dos problemas’ NA WEB Vídeo. Trechos da entrevista de Carmen Terpelle EL MERCURIO RODRIGO CAVALHEIRO/ESTADÃO Carmen Saenz Terpelle, idealizadora dos panelaços A COLUNISTA DORA KRAMER ESTÁ EM LICENÇA. História mostra que é um risco subestimar panelas ‘sem partido’ PANELAÇOS, UM LEGADO DA ELITE CHILENA A 620 km de Santiago, vive fazendeira que desfez cozinhas para mobilizar multidões contra Allende Segundo ato. Carmen participa de reunião com opositores do socialista Silêncio. Ela deixou a política nos anos 90 Primeira batida. Marcha das Panelas Vazias, em 1º de dezembro de 1971, foi a manifestação inaugural dos ‘cacerolazos’ contra Allende; nos anos 80, alvo do barulho era Pinochet EL MERCURIO

Transcript of [SP - 28] ESTADO/CIDADES/PÁGINAS 29/03/15meiro “cacerolazo” (lê-se “cacerolaço”)....

Page 1: [SP - 28] ESTADO/CIDADES/PÁGINAS 29/03/15meiro “cacerolazo” (lê-se “cacerolaço”). Carmentinha48anosein-tegrava o Poder Feminino, grupodedireitaformadopor políticasdefamíliasafetadas

%HermesFileInfo:A-6:20150329:

A6 Política DOMINGO, 29 DE MARÇO DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO

Em alto e bom som

Rodrigo CavalheiroENVIADO ESPECIALTEMUCO, CHILE

D ona de um casarão ro-deado por trigo re-cém-colhido, vacas

leiteiras e araucárias na zonarural de Temuco, 620 quilô-metros ao sul de Santiago, afazendeira Carmen SaenzTerpelle ri da capacidadeconquistada pelos panelaçospara aguçar a audição dos go-vernantes. Essa senhora de89 anos não só testemunhouo início desse fenômeno polí-tico-acústico, nascido em1971 como arma da onda con-servadora que derrubaria osocialista Salvador Allende,em 1973. Ela comandou o pri-meiro “cacerolazo” (lê-se“cacerolaço”).

Carmen tinha 48 anos e in-tegrava o Poder Feminino,grupo de direita formado porpolíticas de famílias afetadaspelas desapropriações de ter-ra ordenadas por Allende. Se-guiu-se uma queda abruptana produção agrícola e distri-buidores contrariados com aelevação no ganho dos operá-rios organizaram boicotes.Chilenos de todas as ideolo-gias ficaram sem comida.

“Sem ter o que cozinhar,uma líder comunitária de San-tiagome disse ‘porque nãoba-temos panelas?’”, conta Car-men, acomodada na cadeirade rodas com que se move nasidas ao shopping e ao cassinoda cidade de 270 mil habitan-tes, a 82 quilômetros da sededafazendade600hectares.“Asugestão foi dessa mulher. Oque eu fiz foi levá-la adiante.”

Para ampliar a ideia, ela recor-reu ao programa Mulheres Tam-bém Improvisam, conduzido naRádio Cooperativa por quatroamigas jornalistas que faziamcampanha contra Allende. Se-gundo a fazendeira, bastou umanúncio: a senhora CarmenSaenz Terpelle convoca as des-contentesasemanifestar na Pra-ça Itália, centro da capital chile-na. “Cheguei por volta das 17 ho-ras e mulheres se desprendiamde ônibus lotados,todas compa-nelas. Dali para frente, sempreàs 21 horas, havia um panelaço.”

Em 1.º de dezembro de 1971, arevolta redundou na Marchadas Panelas Vazias. Segundo ohistoriador americano PeterWinn, autor do livro RevoluçãoChilena, enfrentaram-se naque-le dia governistas e militantes dedireitaprotegidospelogrupopa-ramilitar Pátria e Liberdade, deorientação fascista. Para o histo-riador,o panelaço incomum, co-mandado por mulheres de clas-se média e alta, marcou “o fimdo avanço revolucionário”.

Ao conquistar o poder na ter-ceira tentativa, Allende havianacionalizado bancos, minas eindústrias. Ao Estado, a senado-ra Isabel Allende Bussi, filha dopresidente deposto, disse queos panelaços foram importan-tes, “mas houve outros fatoresdecisivos para o golpe”. O apoionorte-americano foi um deles.

Segundo Carmen, os defenso-res do governo legítimo não ne-cessariamente respondiam deforma limpa. Uma tática contraos panelaços era jogar batatasrecheadas com lâminas de bar-bear – uma das quais cortou seucotovelo. A reação da esquerdavinha também com sátiras. Em1972, a banda Quilapayún com-pôs Las Ollitas (As panelas), umchá-chá-chá que dizia: “A direi-ta tem duas panelas / uma pe-quena, outra grande / a pequenaacaba de comprar, essa é usadasó para golpear”.

Em 4 de setembro de 1973,meiomilhãomarcharamemSan-tiago por Allende, que já não ti-nha apoio de movimentos de ca-minhoneiros, comerciantes emédicos. No dia 11, ele se matoudurante o bombardeio ao palá-ciopresidencial,La Moneda.Co-meçava a ditadura comandadaaté 1990 por Augusto Pinochet,na qual, segundo dados oficiais,40 mil morreram ou desaparece-ram por se oporem ao general.

“Não me arrependo de nada.Os panelaços foram um alarmecontratudooquesignificavades-contentamento nessa época.Campos desapropriados, escas-sezdepão...”,insiste avaidosafa-zendeira. Ao fazer compras,acompanhadadeummotoristaeuma enfermeira, ela não dispen-sa colar e brinco de pérolas, bemcomounhasfeitas.“Quebreiaba-cia, mas a cabeça está boa.”

Carmen e o marido, PatricioPhillips, morto em 1997, foramdeputados e senadores peloPartido Nacional, que agluti-nou a direita até o golpe, e segui-ram influentes na ditadura e iní-cio dos 90. Sobre Pinochet – ouPinóquio, apelido recebido nos

últimos anos no poder, de pro-messas não cumpridas – Car-men pede um segundo antes deconcluir: “Seria mentir dizerque o povo não gostava dele”.

Reverberação. Embora conser-vadores chilenos se orgulhem

da “invenção” do panelaço, osutensílios ainda ganham a ideo-logia de quem os empunha. Opróprio Pinochet foi alvo nosanos 80 de panelaços caseiros,com que se evitava a repressãodo regime militar.

Na Argentina, as panelas co-

meçaram a soar em 1982, ain-da na ditadura (1976-83),também com mulheres revol-tadas com escassez e infla-ção. A partir daí, segundo Ro-xana Telechea, autora de AHistória dos Panelaços:1982-2001, atormentaramRaúl Alfonsín na hiperinfla-ção dos anos 80 e o liberalCarlos Menem nos 90. Mastornaram-se um marco nacrise de 2001-2002. Nestaetapa, adaptações para quetampas batessem mais rápi-do com uma manivela foraminventadas. Em 2012 e 2013,soaram para Cristina Kirch-ner, ao lado de cartazes con-tra inflação e autoritarismo.

Na América Latina, houvemanifestações do tipo em Ve-nezuela, Colômbia, Uruguaie Cuba. Na Europa, a batuca-da chegou a Grécia, Espanhae Turquia. E golpeou paísescom alto grau de desenvolvi-mento ao ressoar no Canadá,em 2012, e na Islândia, na cri-se de 2008. A chilena Carmendiz ter visto os recentes pane-laços contra o governo brasi-leiro. “Se é uma forma de queescutem as pessoas, achomuito positivo”, afirma.

Mesmo tendo votado con-tra a presidente Michelle Ba-chelet, em crise de populari-dade por um caso de corrup-ção envolvendo filho e nora,Carmennão vêelementos pa-ra ruído de panelas onde elascomeçaram a soar em 1971.“Ela teve alta votação, está fa-zendo coisas muito boas. Nãovotei nela, mas me solidarizo,porque é minha presidente”,diz. “Não estamos em uma di-tadura, nem muito menos.”

● Os panelaços que a senhoraajudou a tornar multitudinários apartir de 1971 influíram na quedado presidente Salvador Allende ederam início a uma ditadura de17 anos. Algum arrependimento?Não me arrependo de nada doque eu vivi. Acho que (o pane-laço) foi um alarme que con-centrou tudo o que significavao descontentamento nessaépoca. Campos desapropria-dos, escassez de pão. Era pre-ciso fazer fila para tudo.

● E a senhora mesma chegou aentrar em fila de alimentos?Mandava minhas empregadaspara a fila. Mas tive que mui-tas vezes fazer fila pela carne.Como por sorte tenho umafazenda, de vez em quandome mandavam carne daqui docampo para Santiago.

● A senhora chegou a ter umaboa relação com Allende antes

de ele chegar à presidência?Allende foi três vezes candida-to. Na terceira, saiu. Não erapartidário dele, mas sim deJorge Alessandri (presidente de1958 a 1964, derrotado em 1970por Allende por 36,6% a 35,3%),que pôs em seus ministériosgente de todos os partidos. Jáo senhor Allende, o que fezprimeiro foi expropriar as pro-priedades rurais. Nisso caiu aminha mãe, caí eu, caiu a mi-nha sogra, caímos todos.

● Quanto a senhora perdeu nasdesapropriações?Tenho 600 hectares até hoje,isso foi uma herança do meuavô. Tenho uma leiteria e nun-ca tive problemas com os em-pregados. Estou contente nocampo, prefiro viver no cam-po que em Santiago.

● Quando faltou comida com Al-lende, foi incompetência dele ouempresários tiraram os alimen-tos do mercado?Havia corporações que esta-vam autorizadas a receber co-mida e intermediários. Masacho que íamos a passo muitofirme para chegar ao que éCuba hoje em dia.

estadao.com.br/e/cacerolazos

O grupo Poder Feminino, ao qual per-tencia Carmen Saenz Terpelle, é umexemplo de movimento conserva-

dor liderado por mulheres, que tinha comogrande trunfo apresentar-se como e consi-derar-se apartidário. A ideia de que estavaacima da política e não precisava da inter-mediação de partidos e políticos corruptosajudou a ter êxito no que pretendia. O mes-mo ocorreu no Brasil com a Marcha da Fa-

mília com Deus pela Liberdade em 1964,contra o presidente João Goulart.

O curioso é que na época as mulhereseram consideradas e se definiam como do-nas de casa e mães, não como atores políti-cos, mas encaixaram-se perfeitamente co-mo representantes desses movimentos.Nos dois casos, a liderança masculina anti-Jango e anti-Allende também entendeu aimportância de organizar o movimento fe-minino. Eles bancaram de alguma maneirao envolvimento das mulheres na política.Ao mesmo tempo, algumas tomaram a ini-ciativa, foram para a linha de frente e organi-zaram milhares de outras mulheres, assimcomo homens. Aguçaram seu tino político.

Em geral, a direita exibe seu poder político

por outros meios. Os movimentos progres-sistas, por outro lado, cultivam o gosto pelosprotestos de rua. Se elas serão ou não leva-das a sério, depende do assunto, do contextoe do tamanho da manifestação. Nos últimosanos, as que tiveram mais visibilidade e re-sultados concretos nos Estados Unidos fo-ram as do Occupy e, recentemente, as rela-cionadas a mortes de negros por policiais.

O uso da tática das panelas no Brasil nãosurpreende. Essa foi uma estratégia comalto sucesso no Chile – o próprio AugustoPinochet dissolveu o Poder Feminino umano depois de chegar ao poder, sabendo doque o grupo era capaz. No Chile, quandomulheres começaram a golpear panelas va-zias contra Allende, a esquerda também riu.

Argumentou que eram só mulheres de clas-se alta que nunca haviam cozinhado na vidaporque tinham empregadas. A esquerda chi-lena usou a luta de classes para ignorarpreocupações femininas legítimas. Minimi-zar essas reivindicações, como foi feito noChile, seria um grande erro do Brasil.

É AUTORA DO LIVRO 'A MULHER DE DIREITA: O PODER

FEMININO E A LUTA CONTRA SALVADOR ALLENDE

(1964-1973)' E PROFESSORA DE HISTÓRIA NO INSTITU-

TO DE TECNOLOGIA DE ILLINOIS

5 PERGUNTAS PARA...

ANÁLISE: Margaret Power

‘Foi um alarmedos problemas’

NA WEBVídeo. Trechosda entrevista deCarmen Terpelle

EL MERCURIO RODRIGO CAVALHEIRO/ESTADÃO

Carmen Saenz Terpelle,idealizadora dos panelaços

A COLUNISTA DORA KRAMER ESTÁ EM LICENÇA.

História mostra que éum risco subestimarpanelas ‘sem partido’

PANELAÇOS,UM LEGADODA ELITECHILENAA 620 km de Santiago, vive fazendeira que desfezcozinhas para mobilizar multidões contra Allende

Segundo ato. Carmen participa de reunião com opositores do socialista Silêncio. Ela deixou a política nos anos 90

Primeira batida. Marcha das Panelas Vazias, em 1º de dezembro de 1971, foi a manifestação inaugural dos ‘cacerolazos’ contra Allende; nos anos 80, alvo do barulho era Pinochet

EL MERCURIO