Sonia Alberti, O Discurso Universitário

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    ARTIGOS

    O discurso universitrio

    Sonia Alberti

    Resumo Articula-se o tema da psicanlise na universidade com uma reviso sobre o conceito de discurso universitrio, tanto no que tange s dificuldades intrnsecas a esse discurso quanto a uma hiptese que concerne uma eventual contribuio do discurso universitrio, que, no entanto, s pode ser depreendida a partir da leitura do psicanalista. Para tanto, utiliza-se a teoria dos discursos de Lacan, assim como outros conceitos da psicanlise, em particular, a transferncia. Palavras-chave: psicanlise, universidade, saber e no saber, transferncia. Abstract This article develops as its central subject, psychoanalysis in the university, revisiting the concept of the university discourse and its inherent difficulties. It sustains the hypotheses of an eventual contribution of the university discourse to psychoanalysis. Never-the-less, this contribution of the university discourse may only be inferred from the interpretation of an analyst. To prove this hypothesis, we use Lacans theory of the discourses, as well as other concepts of psychoanalysis, in particular the one of transference. Keywords: psychoanalysis, university, knowledge and not-knowledge, transference.

    Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Procientista da UERJ; Pesquisadora do CNPq; Psicanalista Membro da Escola de Psicanlise dos Fruns do Campo Lacaniano. [email protected]

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    Aproveito o ensejo da criao de uma nova revista, que surge em um programa de ps-graduao em psicanlise dentro de uma universidade, para retomar um tema cujo debate de importncia fundamental para todo psicanalista que tambm professor em uma universidade. A articulao entre psicanlise e universidade provoca inmeros questionamentos, inclusive entre os psicanalistas, haja visto suas diferentes abordagens no livro recm-lanado sobre o Ofcio do psicanalista (em particular, os textos de MENDONA; SIGAL; & MAURANO, 2009). Privilegiarei uma abordagem da questo: a contribuio que Lacan a ela pode trazer ao isolar um tipo de discurso, o qual denominou de discurso universitrio. Trata-se de um dos quatro discursos que Lacan prope como os que fazem lao social, ou seja, que permitem que se articule alguma coisa na relao de um sujeito com o o outro para que se produza algo dessa relao. Tal articulao se d, como sabido, em funo do fato de um discurso implicar um agenciamento. Ele pe algo em movimento. No caso do discurso universitrio, esse agenciamento efetuado pelo saber que, por isso, est no lugar do agente, j que no discurso universitrio, o saber que move todo o edifcio das relaes que nele se fazem.

    O lugar do saber, em psicanlise, por sua vez, tema igualmente amplo e, na realidade, introduzido por Freud desde o incio de sua teorizao (FREUD, 1895[1940]/1999). Ele o conceituava, ento, com os traos mnmicos que se inscrevem no inconsciente, constituindo-o como lugar do Outro. Muitos anos depois disso, Lacan (1971-72) proferiu um conjunto de conferncias as quais chamou de O Saber do psicanalista, chamando a ateno para o fato de que a psicanlise no s ensina como demonstra que todo saber se inscreve sobre um fundo de no saber, ou seja, que o conjunto do no saber infinitamente maior que o do saber! Poderamos fazer uma analogia disso com a relao entre real e simblico: se o real se define como o que fica fora do simblico, e se o que simbolizamos sempre somente um significante, um trao mnmico, para retomar Freud, ento, necessariamente, o que fica fora do trao mnmico, ou seja, o que no simbolizado por ele, sempre um campo infinitamente maior do que o mero referente simbolizado (ALBERTI & NICOLAU). Assim, a teoria psicanaltica, que surgiu a partir das observaes clnicas e da prtica, implica, necessariamente, que o campo do saber at pequeno em relao ao no saber, e a psicanlise precisa, portanto, sempre levar em conta o no saber, tanto como prtica quanto como teoria.

    Ao contrrio, quando se trata do discurso universitrio, em que o saber que agencia o discurso, j de sada se observa que no h espao nesse discurso para o no saber. Ele fica de fora, a priori.

    Partirei de um trabalho anterior, cujas diretrizes retomo aqui (ALBERTI, 2004), publicado em homenagem a um colega nosso de So Paulo, o professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de So Paulo Luiz Carlos Nogueira, que foi um dos grandes pioneiros da psicanlise na universidade no Brasil, tendo inclusive feito sua tese de doutorado com um dos primeiros psicanalistas de So Paulo. Ocasio tambm de voltar a seu nome em associao a esta Revista, o que por si s j seria alvissareiro, e de tentar articular o discurso da universidade com o que particulariza um psicanalista. As discursividades

    Tanto quanto Luiz Carlos Nogueira, insiro meu trabalho na universidade por meio da minha atuao em um Instituto de Psicologia. Isso lana a questo sobre a relao entre Psicanlise e Psicologia, o que, por sua vez, nos leva de volta s grandes mudanas no campo do saber realizadas no sculo XIX (ALBERTI, 2003). A psicanlise como conceito, como corte profundo em toda discursividade do sculo XIX, associa-se a uma observao de Michel

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    Foucault (1969/1983), que, numa conferncia intitulada Sobre o autor, procurava sublinhar a importncia de instauradores de discursividade. Foucault trabalha a questo da ruptura na discursividade do sculo XIX, identificando Freud e Marx como os dois exemplos maiores, mais recentes de um corte profundo de discursividade, e diz o seguinte:

    A instaurao da discursividade parece ser do mesmo tipo, primeira vista em todo caso, da fundao de qualquer cientificidade. Entretanto creio que h uma diferena, e uma diferena notvel: [] o ato de fundao de uma cientificidade pode sempre ser reintroduzido no interior da maquinaria das transformaes que da derivam (FOUCAULT, 1969/1983, p.15).

    Ento, o que teriam feito Freud e Marx de uma outra ordem, ou seja, o ato de criao

    que realizaram, cada um em seu mbito, no pode ser reintroduzido porque nico. Ele , como continua Foucault, uma instaurao de uma discursividade [que] heterognea s suas transformaes ulteriores. Assim, Marx e Freud seriam, segundo esse texto de Foucault, tipos de autores bastante singulares! O que criaram no somente reintroduzido no interior da maquinaria das transformaes de uma cientificidade, mas, antes, estes autores se encontram em uma posio transdiscursiva . Pois, Freud no simplesmente o autor da Traumdeutung ou do Witz, nem Marx simplesmente o autor do Capital ou do Manifesto. Eles estabeleceram uma possibilidade infinita de discursos, quer dizer, eles no somente possibilitaram um certo nmero de analogias, eles possibilitaram e completamente um certo nmero de diferenas (FOUCAULT, 1969/1983, p. 14).

    Freud operou um corte, a partir do qual h um antes e um depois, mesmo se seus discpulos vrios velaram o instrumento criado por ele. Como Freud o conceituava, esse corte surgiu simplesmente na transferncia, quando, no lugar de se identificar com o mestre que comanda lugar que, conforme explica, lhe seria de bom grado outorgado pelo paciente , ele pode sofrer a transferncia sem se identificar com ela! Apesar de mdico, ou seja, apesar de ser colocado no lugar daquele que deve saber sobre o mal do qual o paciente se queixa, Freud, em funo da sua particular relao com a verdade, era suficientemente honesto consigo mesmo para no crer que tinha esse saber que lhe era outorgado na transferncia. E foi por no se enganar de que sabia, que pode devolver a seu paciente a possibilidade de saber, que era deste e no de Freud! Eis porque a psicanlise portadora de uma desalienao possvel e eis porque jamais um psicanalista pode saber mais sobre seu paciente do que ele prprio, sujeito. Ao partir da, Freud instaura um discurso, o discurso do psicanalista, aquele em que o agente, o analista, se dirige ao sujeito para este produzir o que sabe, j que o analista, apesar de frequentemente ser identificado como o mestre do saber em razo da transferncia do paciente, s tem por funo levar o sujeito a querer saber o que inconscientemente sabe e do que, portanto, por muito tempo, nada quis saber.

    S que esse ele prprio j no o eu da conscincia, agora com Freud, em 1915, mera tela da percepo. Mas o sujeito do inconsciente do qual o neurtico insiste em no querer saber. Para Freud, ao contrrio dos psicologistas do sculo XIX, o eu a sede das resistncias e fonte de desconhecimento. Ele d tudo e qualquer coisa para melhor poder enganar-se, na v tentativa de furtar a sua determinao inconsciente.

    A histria da psicologia, por sua vez, sofreu grandes modificaes na dcada de 1950, no Brasil, quando comearam a surgir as possibilidades da criao de cursos de psicologia nas universidades brasileiras. Elevada categoria de um saber, ou mesmo de uma cincia, conforme as interpretaes, foi em razo dos estudantes de psicologia que comearam a surgir

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    questionamentos antes dificilmente imaginveis, sempre em prol de uma autonomia. Quer fosse articulada ao discurso da cincia, quer fosse voltada para uma prtica clnica ou, ainda, educacional, a psicologia, a partir de 1950, encontrou no modelo universitrio o campo mais frtil para seu estabelecimento.

    Em 1968, Jacques Lacan daria a sua verso do que o discurso universitrio. Ele se sustenta fundamentalmente na burocracia e nos ttulos acadmicos, ou seja, o discurso universitrio valida como verdadeiro aquele agente do discurso que se apresenta aparamentado de ttulos: se o agente o professor, doutor, titular, ento vlido, se ele no tem nem mestrado, melhor ele se associar a algum que tem os ditos ttulos. Ento, o discurso universitrio valida como verdadeiro aquele agente que se apresenta aparamentado de ttulos, independentemente do estofo, independentemente desses ttulos corresponderem a um verdadeiro trabalho de pesquisa. E ser considerada mais consistente aquela construo assinada pelo maior nmero de titulados, maior nmero de doutores, ps-doutores, pesquisadores de instituies oficiais, independentemente, como dito, do estofo dessas pesquisas, ou seja, da preocupao com boas teses e do interesse em aprofundar teorias.

    Em consequncia, o discurso universitrio, tal como conceituado por Lacan, no s valoriza a burocracia em detrimento de qualquer questo de estofo que possa haver no trabalho realizado na academia, como ele o prprio discurso da burocracia, tal como Franz Kafka j denunciava no final do sculo XIX e incio do XX, em particular em O Processo (1914). Se existe um discurso dentre os quatro estabelecidos por Lacan que joga fora o sujeito, esse o discurso universitrio. Conforme seu matema, o que dele resta, o que produzido por ele e jogado fora justamente o sujeito. Lembre-mo-nos que os lugares nos discursos so: o agente do discurso sobre a verdade, dirige-se ao outro do discurso e, com essa ao, instiga o outro produo: agente outro_ verdade produo

    S2 ----> a S1 // $

    DISCURSO UNIVERSITRIO

    O estudante, com suas questes subjetivas, suas dificuldades, o desejo que o leva universidade e que jamais no s satisfeito como muitas vezes sequer tocado, nos lembra, no contexto da relao da universidade com a capitalizao do saber, a observao feita por Lacan em seu Seminrio sobre a tica. Na passagem a que me refiro, Lacan est examinando a poltica ditatorial, a tirania. Ele diz que, nesse contexto, fica claro que, diante do desejo dos cidados, trabalhadores e, aqui, associo, estudantes , o discurso sempre um volte depois para falar do seu desejo, agora no hora para isso (LACAN, 1959-60/1986, p. 367). exatamente o que o estudante experimenta dentro da universidade: o desejo que o fez entrar no curso superior vai murchando, e ele vai se dando conta de que aquilo que ele queria aprender, que ele imaginava que fosse aprender, est bem longe das salas de aula que frequenta. Este estudante, com suas

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    questes subjetivas, suas dificuldades, o desejo que o leva universidade que jamais no s satisfeito como muitas vezes sequer tocado, convocado a submeter-se aos desgnios da universidade que visa fundamentalmente parceria com o discurso do capital. O restante no serve a ela, jogado fora, deixado de lado e deve ser sobretudo abandonado, razo de podermos dizer teoricamente que o sujeito enquanto tal literalmente jogado fora do discurso, quando no discurso universitrio o saber se conta em ttulos acadmicos, pouco importando se esses ttulos efetivamente condizem com algum estofo de sujeito. A psicologia e as cincias humanas

    A que est, que necessrio, um pequeno passo para se instituir nesse contexto uma situao perversa: nela, o sujeito s serve para completar o Outro a universidade com a sua prpria desolao diante da possvel parceria entre o agente do discurso universitrio o saber (S2) sustentado em meros ndices de titularidades, os S1 e o produto do discurso do capitalista, os objetos a no lugar do outro. O discurso universitrio paradoxalmente a transio mais imediata para o contexto em que, agora, eu cito Lacan em Kant com Sade: se trata do sujeito reconstitudo na alienao ao preo de ser apenas o instrumento do gozo (LACAN, 1963/1966, p. 775). Associando essa observao quela feita por Lacan em relao ao texto de Georges Canguilhem (1958/1972) O que a psicologia?, na qual se l que a Psicologia descobriu meios de se perpetuar, nos prstimos que oferece tecnocracia (LACAN, 1966, p. 859), conclui-se que particularmente nos cursos de psicologia que o discurso da universidade pode mostrar a premente caracterstica de sua visada: o capital. Fato, no mnimo, intrigante, j que sempre se pode ter a ideia de que os cursos de psicologia tm uma preocupao com as cincias humanas muito mais do que com o capital...

    Mas o que so, exatamente, as cincias humanas? Se nos aprofundamos no tema, deparamo-nos com outra observao de Lacan, a de que elas no existem. Porque o prprio sintagma cincia humana um paradoxo impossvel, como o retoma, alis, o prprio Lacan: a cincia excluiu o homem por necessidade. Ele atrapalha a medio dos experimentos com suas prprias dificuldades, de forma que todo cientista sabe os problemas advindos das particularidades de cada pesquisador. Uma cincia que visaria a um homem em princpio uma idiossincrasia, a no ser que o conforme a suas necessidades cientficas. O que, de um jeito ou outro, exclui as particularidades, necessariamente, exclui as diferenas e as singularidades, e a, sinto muito, j no mais humano, j no diz mais respeito a cada sujeito em suas relaes com o Outro, com o desejo e com o gozo.

    Paradoxalmente, justamente a psicologia, quando oferece os seus prstimos tecnocracia, que mais se aproximaria de uma cincia do homem no real sentido da expresso, se ela existisse, pois a nica que desconsidera o fato de que o homem da cincia no existe, a nica que desconsidera o fato de que, para fazer cincia, h que se ser sujeito. De resto, o discurso da cincia no deixa nenhum lugar para o homem (LACAN, 1969-70/1991, p. 171). Ento, se no existem as cincias humanas, bem provvel que a ideia que se pode ter sobre os cursos de psicologia seja verdadeiramente uma miragem com a qual se obnubila isso que Canguilhem (1958/1972) denuncia com seu texto: Enquanto a Psicologia no responder para onde tende, no possvel dizer o que Na turgidez obnubilada, possvel se perguntar at que ponto haveria algo mais adaptado a uma psicologia enquanto cincia humana do que sua oferta tecnocracia. O que nos levaria hiptese de que a psicologia a disciplina mais adaptada para exemplificar, no contexto universitrio, o discurso universitrio: aquele que se dirige ao capital no lugar do outro do discurso.

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    Eu levantei a hiptese de que a psicologia , antes de mais nada, um nome prprio, surgido ao longo do sculo XIX, consagrado no sculo XX, e que como todo nome prprio, no tem em si qualquer consistncia, a no ser que lhe atribuamos alguma (ALBERTI, 2003). So essas consistncias que ora se constroem em torno desse nome e so por ele agenciadas numa verdadeira batalha intelectual, cujo maior contexto a universidade.

    O conceito de sujeito sofreu muitas mudanas ao longo dos ltimos duzentos anos, e a psicanlise certamente uma das grandes colaboradoras, mas, sobretudo, ela responsvel pela possibilidade de se restituir a cada sujeito as determinaes de suas escolhas, que, com os discursos sobre o psiquismo organizado, perdeu sua autonomia. O sujeito perdeu a autonomia que tinha at meados do sculo XIX, sua capacidade de melhor discernir sobre si mesmo. Freud jamais deixou de se referir alma. O sujeito da psicanlise debitvel da alma, por mais descentrado que se experimente. A pergunta de Canguilhem, e que quer saber at onde h ou no um compromisso com os humanos e com a tecnocracia, pode ser mantida viva com o questionamento constante dos estudantes na relao com os seus professores. Essa a sua nica chance, pois, enquanto ficar viva a inconsistncia dessa resposta, sempre haver uma fronteira a priori necessria para novas criaes.

    A importncia do retorno a Freud, de Lacan

    Uma delas foi, sem dvida, a descoberta de Sigmund Freud. Ele insiste, ainda em 1927, que a psicanlise campo da psicologia e no como querem fazer crer os colegas da poca, um ramo da medicina. Cito Freud (1927/1975): A psicanlise uma parte da psicologia [...], certamente no o todo da psicologia, mas seu substrato, talvez mesmo seu fundamento (p. 343). Propor a psicanlise como substrato da psicologia implicaria uma aposta de parte de Freud de que a psicologia seria, sim, aquele saber capaz de fazer valer o sujeito, sem atribuir-lhe sentido a priori, seno teoricamente como ser de linguagem e capaz de com ela tecer as redes de sua prpria determinao. Este pelo menos o valor de verdade do discurso psicanaltico, que , ento, inaugurado com Freud, ao qual Lacan retorna quando prope a releitura da obra de Freud. A esse respeito Foucault chama toda ateno:

    preciso distinguir os 'retornos a...' dos fenmenos de 'redescoberta' e de 'reatualizao'. [] O que se deve entender por 'retorno a...'? Creio que podemos, desse modo, designar um movimento que tem sua prpria especificidade e que caracteriza, justamente, as tais instauraes de discursividade. Para que haja retorno, com efeito, necessrio, em primeiro lugar, que tenha havido esquecimento [] essencial e constitutivo. [...] retorna-se ao prprio texto, ao texto em sua nudez, e, ao mesmo tempo, no entanto, retorna-se ao que est marcado em furo, em ausncia, em lacuna do texto. Retorna-se a um certo vazio que o esquecimento esquivou ou mascarou, que recobriu com uma falsa ou errada plenitude, e o retorno deve redescobrir esta lacuna e esta falta (FOUCAULT, 1969/1983, p. 16).

    Quando Freud, ento, introduz a psicanlise e ele chegou a quer-la psicologia profunda

    , inaugura uma nova via. Enquanto instaurador de discursividade, Freud constri uma teoria que se baseia exclusivamente na fala do sujeito, o que tambm implica que no h de sada verdadeiro e falso. A histria da psicanlise nos mostrou que houve muitos enunciados pr-histricos em relao descoberta freudiana, mesmo depois dela, coisa ento que o retorno a Freud de Lacan pde rever.

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    A releitura que Lacan pde fazer da obra de Freud atribui psicanlise um discurso particular, o que de maneira alguma impede que se mantenha conectado a outros discursos. O discurso da psicanlise um discurso que se sustenta no dos ttulos, como o discurso universitrio, mas do prprio saber no lugar da verdade, sempre enquanto meio dizer. Isso uma grande diferena em relao ao discurso da universidade, no qual o saber est no lugar do agente. No tem meio dizer no saber. O saber isto e pronto e acabou-se. No caso do discurso do analista, o saber est no lugar da verdade, portanto, um meio dizer j que no h verdade toda.

    preciso observar que houve poca em que os psicanalistas pensaram poder sustentar a psicanlise com uma sociedade cujo modelo era o do discurso universitrio: um analista necessariamente tinha que ter o ttulo burocratizado de uma instituio psicanaltica para exercer-se como analista era o ento chamado psicanalista didata.

    Mas, h muitos anos, Jacques Lacan j mostrou a falcia de tal empreendimento. Em 1956, criticava a tentativa de burocratizar a transmisso da prpria psicanlise, o que a eliminaria nos fundamentos. Psicanlise didtica, observava, ento, nada tem que ver com ttulos. O nico princpio certo a propor, at porque no foi levado em conta [anteriormente], que a psicanlise consiste como didtica pelo querer do sujeito (LACAN, 1964/2001, p. 234).

    Conclui-se que no necessrio se estar na universidade para se deparar com o discurso universitrio. Voc pode estar numa sociedade de psicanalistas e topar com o discurso universitrio do mesmo jeito. O discurso universitrio o discurso da burocracia que est preocupado, exclusivamente, em dialogar com objetos como produtos, j que o objeto a ele mesmo que est no lugar do outro nesse discurso. Ao contrrio disso, no de ttulos que a psicanlise se sustenta, nem tampouco de verdades pr-concebidas, mas do fato de que o saber no seno um subconjunto de um conjunto muito maior, no qual ele se insere: o conjunto do no saber.

    , pois, o retorno a Freud de Jacques Lacan que reinstaura uma nova discursividade que fora esquecida na medida em que a descoberta de Freud foi reapropriada por um discurso de psicologia a servio da tecnocracia. Minha hiptese sobre a contribuio do discurso universitrio

    Lugar de formalizao de saber, entre outros, a universidade , tambm, paradoxalmente, um campo frtil para a subverso do discurso do mestre. Na medida em que no discurso universitrio um saber equivale ao outro, pois so os ttulos universitrios que garantem essa equivalncia, o valor de um saber, isso subverteu o discurso do mestre, em que a inquietao do sujeito, sempre dividido, embaraado, que est no lugar da verdade:

    S1 ----> S2 $ // a

    DISCURSO DO MESTRE

    Por mais grave que tenham sido as consequncias de tal subverso, na medida em que

    abriram caminho para a tecnocracia, por outro lado, isso deu a possibilidade para um outro pequeno passo, literalmente um quarto de volta atrs na lgica dos quatro discursos. Um recuo em relao ao discurso universitrio faz surgir o discurso do psicanalista! Quando diante do

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    discurso universitrio podemos fazer girar os discursos, cria-se a possibilidade para o discurso do analista, que se constitui, se fundamenta, no fato de se dirigir para um sujeito, que o outro do psicanalista, ou seja, o outro em relao ao qual o agente se direciona no discurso do analista:

    a ----> $ S2 // S1

    DISCURSO DO PSICANALISTA

    Se no discurso universitrio o outro objeto, no discurso do psicanalista, o outro o

    sujeito. Se o psicanalista professor universitrio, possvel operar esse outro retorno, outro em relao ao retorno a Freud promovido por Lacan, retorno agora em relao ao discurso universitrio, mas que se processa graas ao encontro do psicanalista com o discurso universitrio. Explico: Se, no discurso universitrio, um saber equivale ao outro, ento, um psicanalista, desde que bem sustentado, ou seja, aparamentado com todos aqueles ttulos maravilhosos Professor Doutor, Pesquisador, Autor etc. , equivale a qualquer outro professor igualmente aparamentado, independentemente da rea desse outro professor. Pude verificar isso no trabalho que desenvolvo, por exemplo, no hospital universitrio. Se, em outras paragens, o psiclogo sempre menos remunerado do que um mdico, no contexto acadmico, se ambos so professores e tm a mesma titularidade, no se faz qualquer diferena entre eles. diferente trabalhar num hospital em que o professor adjunto do Instituto de Psicologia recebe o mesmo salrio que um professor adjunto da Faculdade de Medicina, e trabalhar num hospital em que o mdico tem o salrio mais alto do que o psiclogo, pelo simples fato de ser mdico (ALBERTI, 2000, p. 50).

    Na ata de fundao da Escola da Causa Freudiana, em 1964, Lacan prope um sintagma que me parece ser de grande interesse para a questo. Trata-se da transferncia de trabalho. Cito Lacan: O ensino da psicanlise s pode se transmitir de um sujeito a outro e isso pela via de uma transferncia de trabalho (LACAN, 1964/2001, p. 236). Ou seja, impossvel haver ensino da psicanlise que no seja de um sujeito ao outro, e, para que haja esse ensino de um sujeito a outro, preciso que isso se d dentro de uma transferncia. J no aquela que se particulariza na clnica psicanaltica, lugar do trabalho em transferncia, mas uma transmisso que implique a relao de um sujeito a outro de tal forma que se transmita, inclusive, uma transferncia de trabalho, implicando o outro na causa freudiana, ou seja, implicando o outro para sustentar a psicanlise no mundo. Se a clnica o lugar privilegiado para transmitir a psicanlise pois todo psicanalista , necessariamente, produto de uma psicanlise , isso no impede que o campo das conexes que a psicanlise pode frequentar com outros saberes e prticas seja igualmente profcuo para sua transmisso.

    Por outro lado, h que se levar em conta que, se no h melhor lugar para transmisso da psicanlise do que a prpria psicanlise, e se existe uma vertente da clnica que interminvel, como j dizia Freud em 1937, ento, mesmo ali onde uma psicanlise chegou ao fim, h que haver lugar para a transferncia de trabalho num prolongamento da prpria transmisso da psicanlise. J no seria o lugar para um trabalho em transferncia, ou seja, da psicanlise propriamente dita, mas um lugar em que a transferncia de trabalho permite persistir na produo

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    da psicanlise como discurso que subverte, em recuo frente ao discurso dominante no caso, o discurso universitrio.

    Tal lugar , em princpio, a Escola de psicanlise. Donde a importncia vital da experincia de Escola (QUINET, no prelo). A experincia de Escola introduz o psicanalista nos dispositivos que fundamentam toda transferncia de trabalho, em particular, no assim chamado por Lacan, rgo de base da Escola, o Cartel. Trabalho em que no h o saber a priori do mestre, mas transferncia entre os membros do Cartel para trabalharem juntos um texto, um tema, uma prtica. Diante do tema de um Cartel, de um texto a ser estudado, de uma prtica a ser matemizada, todos os membros de um Cartel se questionam e questionam o texto, o tema, a prtica. H perguntas, fundamentalmente, da mesma forma como um sujeito histrico questiona o mestre. A experincia de Escola introduz o psicanalista na possibilidade de fazer girar os discursos, de ele prprio se situar como sujeito a agenciar um discurso, na posio histrica, portanto longe do lugar solitrio que ocupa quando est psicanalista. Disso ele pode depreender a ocupao de outras posies, ainda na mesma relao com a psicanlise. Disso ele pode tambm se posicionar para ensinar psicanlise, no como mestre, nem como dono de um saber, mas como aquele que questiona o saber pr-estabelecido, transmitindo a seus alunos uma modalidade de estudo que, por sua vez, subverte o discurso universitrio.

    Se O ensino da psicanlise s pode se transmitir de um sujeito a outro e isso pela via de uma transferncia de trabalho (LACAN, 1964/2001), ento esse o possvel mtodo de ensino da psicanlise tambm na universidade, se o professor puder sustentar a via de transmisso que se fundamenta na causalidade psquica. Da questo sobre a autoria sua instrumentalizao

    Seno, vejamos: no final de O Seminrio, livro 17, O avesso da psicanlise, Lacan retoma a conferncia de Foucault O que um autor? para justificar sua maneira de construir Scilicet revista em que todos foram convocados a escrever bons artigos, alguma coisa estruturalmente vigorosa, sem no entanto assinarem esses artigos (sic). Pois no deveramos nos preocupar tanto em identificar o que produzimos com o que nos diz respeito , acrescenta Lacan. Cito: Isso obstacularizaria muito a possibilidade de que surja alguma coisa decente (LACAN, 1969-70/1991, p. 222), na medida em que o autor estaria endereando o seu texto por um reconhecimento que s adquiriria desde que o artigo no trouxesse ideias nem que presentificasse uma cabea pensante. No discurso universitrio, justamente de artigos que ns nos sustentamos como professores doutores, autores... Publicar Scilicet da maneira como Lacan a publicou, ou seja, sem fazer dessa publicao mais um ardil que fomentaria o aparentamento dos autores conforme o discurso universitrio, foi uma tentativa, talvez extrema, de tentar furar aquele discurso.

    O que proponho h algum tempo, em acordo com a hiptese de que possvel extrair uma contribuio do discurso universitrio, , ao contrrio, instrumentalizarmo-nos dele para podermos continuar a promover a transferncia com a causa freudiana no mundo.

    Se Freud e Marx possibilitam infinitas leituras, como dizia Foucault naquela conferncia, o que lhes atribui um carter novo enquanto autores, ou seja, no so tanto autores, mas, antes, instauradores de discursividades, para Lacan o que lhes d esse carter que tm que se sustentam do fato de que no sintoma em que o sujeito fala que aparece a verdade. Lacan vai definir isso na sua famosa frase: A verdade fala. este o sentido que d no final do Seminrio 17 para o retorno observado por Foucault. A partir da instalao do discurso universitrio na Idade Mdia, conforme Foucault, surge a figura do autor, que, no contexto da circulao dos

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    discursos, sustenta cada vez mais o discurso universitrio em que se produzem teses, e isso o que d o peso ao nome de vocs, diz Lacan. Momento no qual se pode dizer o que quer que seja, desde que se tenha um nome. Donde tambm inferir o saber como gozo de uma posio que apaga a verso subjetiva como desejante. Bem diferente ao discurso psicanaltico que visa ao sujeito, razo de Lacan ter feito a experincia tentando furar a sustentao de um saber, por um S1 no lugar da verdade conforme o discurso universitrio , j que nele o saber fundamentalmente gozo do Outro.

    Mas quando o sujeito se interroga, o discurso em questo um outro discurso o discurso histrico. Neste, o sujeito que est sustentado pela verdade de um saber que no se sabe na medida em que o no saber que enquadra o saber:

    $ ----> S1 a // S2

    DISCURSO HISTRICO

    o discurso histrico que, na articulao com o discurso do mestre, denuncia. Ento, h

    um outro discurso alm do universitrio, alm do discurso do mestre, alm do discurso do psicanalista, que pode ser colocado em funcionamento na universidade na lgica dos quatro discursos, trata-se do discurso histrico. Nele, o sujeito que est na posio de agente. Ele se dirige ao mestre para coloc-lo a trabalho, o que produzira o saber. Trata-se de uma posio semelhante quela do mais um no Cartel: porque podemos nos posicionar como pesquisadores, como questionadores, como indagadores, que ns podemos transmitir este mesmo questionamento, esta mesma pesquisa, estas mesmas indagaes, que tambm caracterizam o modelo que o lugar propriamente de histeria. Se, como disse Lacan, na ata de fundao de sua Escola, a psicanlise s se ensina pela transferncia de trabalho de um sujeito a outro, ento o professor, no lugar do questionador dentro da universidade, um sujeito que pode se relacionar com os outros sujeitos transmitindo a psicanlise na transferncia de trabalho.

    Concluo minha hiptese: a partir da experincia de Escola e da experincia analtica, o psicanalista que tambm professor universitrio pode se instrumentalizar do discurso universitrio que subverte o discurso do mestre para fazer valer, na universidade, o ensino da psicanlise, independentemente de sua formao acadmica, j que no discurso da universidade todos os saberes se equivalem. Uma revista universitria de psicanlise , portanto, bem-vinda!

    Se o discurso da universidade trouxe graves problemas ao discurso do mestre lembremos que o discurso do mestre o discurso no s mais antigo a fazer lao social, como o prprio discurso do inconsciente , e se o discurso universitrio aquele discurso que faz lao social que abriu as vias para o discurso do capitalista que j no faz mais lao social, o psicanalista, ao se instrumentalizar do discurso universitrio, pode fazer girar os discursos na universidade para fazer valer nela a prpria psicanlise. Mas no h como faz-lo se no se leva at s ltimas consequncias a sustentao da prpria psicanlise. Quero dizer: aquele que cr dever ceder da psicanlise para tentar, com isso, introduzir um pouco de psicanlise na universidade, ver sua empresa fracassar de sada. A nica forma de sustentar a psicanlise, inclusive na universidade, aquela que levou o psicanalista ao final de sua anlise: no h psicanalista que no o seja como produto de sua prpria experincia. E isso rapidamente

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    http://www.uva.br/trivium/edicao1/artigos/11-o-discurso-universitario.pdf

    desmascarado sobretudo ali onde os outros discursos seduzem quando no se est bem situado na relao genuna com a causa freudiana. REFERNCIAS ALBERTI, S. (2004) Transferncia de trabalho e a universidade. In: Psicologia USP, v.15, nmero . pp. 55-70. ______. Crepsculo da alma. A histria da psicologia no Brasil no sculo XIX. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. ______. (2000) A psicanlise: ltima flor da medicina. In: ALBERTI, S. & ELIA, L. (orgs) Clnica e pesquisa em psicanlise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. p. 37-56. ALBERTI, S. et al. Ofcio do psicanalista: formao versus regulamentao. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2009. ALBERTI, S. & NICOLAU, R.F. (indito) Transmisso na universidade, saber e desejo do analista. Artigo aprovado para publicao na Revista Pulsional. CANGUILHEM, G. (1958/1972) O que psicologia? In: Revista Tempo Brasileiro, n. 30/31. Rio de Janeiro, jul-dez. p. 104-124. FOUCAULT, M. (1969/1983) Qu'est-ce qu'un auteur? Conferncia pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia, em 22 de fevereiro de 1969. Republicada na revista francesa Littoral. Nmero 9, Paris, res. FREUD, S. (1895[1940]/1999) Entwurf einer Psychologie in Gesammelte Werke. S.Fischer Taschenbuch Verlag, Frankfurt a.M., v. Nachtragsband. ______. (1915/1975) Das Unbewusste. In: Studienausgabe. S.Fischer, Frankfurt a.M.. v. III. ______. (1927/1975) Nachwort zur 'Frage der Laienanalyse'. In: Studienausgabe. op. Cit.. v. Ergnzungsband, p. 342-250. ______. (1937/1975) Die Endliche und die Unendliche Analyse. In: Studienausgabe. Idem, Ibidem. p. 351-392. KAFKA, F. (1914/s.d) O Processo. So Paulo: Crculo do Livro. LACAN, J. (1956/1966) La situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste. In: crits. Paris: Seuil. p. 459-492. ______. (1959-60/1986) Le Sminaire, livre VII, L'thique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986. ______. (1963/1966) Kant avec Sade. In: crits. Paris: Seuil, 1966. p. 765-790. ______. (1964/2001) Acte de fondation. In: Autres crits. Paris: Seuil. p. 229-241. ______. (1966) Science et vrit. In: crits. Paris: Seuil. p. 855-877. ______. (1969-70/1991) Le Seminaire, livre XVII, Lenvers de la psychanalyse. Paris: Seuil. ______. (1971-2) Le savoir du psychanalyste. Indito. MAURANO, D. (2009) A psicanlise na Universidade. In: ALBERTI, S. et al. Ofcio do psicanalista: formao versus regulamentao. So Paulo, Casa do Psiclogo. pp. 147-153. MENDONA, R.F. (2009) A formao analtica no ocorre na Universidade. In: ALBERTI, S. et al. Ofcio do psicanalista: formao versus regulamentao. So Paulo, Casa do Psiclogo. QUINET, A., A Estranha. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, no prelo.

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