Sobre Trabalho e Vida

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Sobre Trabalho e Vida Domingo. Anoitece. Os mais entediantes programas televisivos anunciam, em uma espécie de tempo cíclico, a repetição de mais uma semana de trabalho. Nesse momento, por mais que ponhamos nossas expectativas na possibilidade de um novo tempo, o que pesa é a percepção de uma série de obrigações que se repetem indefinidamente. Sentimos haver um controle exterior que atrofia nossas vontades. No entanto, trabalhamos. Acordamos na segunda-feira desejando ansiosamente que fosse sexta. Vivemos em fuga. Frequentemente, me deparo com a sensação de viver apenas um terço da vida, ou até menos. O cálculo, apesar de áspero, é bastante simples. Em um dia de vinte e quatro horas, dedicamos cerca de oito horas ao trabalho, oito horas ao sono (assumindo aqui a possibilidade de um sono saudável) e, por fim, oito horas que, idealmente, serviriam ao descanso e à vida. Todavia, esse terço que nos é disponível diminui consideravelmente em razão das inúmeras tarefas diárias que temos de lidar. E, se você, caro leitor, habita uma dessas megalópoles, sinto em afirmar que seu terço desce vertiginosamente. Somente nas horas gastas em transporte, seja qual for, lhe ceifam algumas dessas preciosas horas, seja de vida ou sono. Nesse cenário em que tudo é uma cópia de uma cópia, não posso deixar de pensar em um dos meus filmes/livros favoritos. O Clube da Luta, escrito por Chuck Palahniuk, e adaptado ao cinema com a direção de David Fincher. Nas obras, o vazio da vida é preenchido pela violência regeneradora do Clube da Luta. A violência, apesar de evidente, é apenas um pano de fundo. Por meio da luta, aqueles homens expressam seu niilismo diante da vida. Por meio da luta, aqueles homens, diante do vazio, conseguem conectar-se, porque passam por experiências semelhantes. Assim, pode-se dizer que o Clube da Luta oferece aos seus membros uma nova forma de sociabilidade. Apesar de pensar que Palahniuk acerta na veia ao demonstrar o vazio de nossas vidas, não creio que implodir o sistema financeiro seja uma solução adequada para esse vazio. Obviamente, não estou cobrando soluções do livro. Esta não é sua função, ainda que alguns acreditem fielmente na possibilidade de um cataclismo do capital financeiro. Também não estou aqui para esbravejar críticas ao meu chefe ou ao fato de ter que trabalhar.

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Reflexões sobre trabalh oe vida

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  • Sobre Trabalho e Vida

    Domingo. Anoitece. Os mais entediantes programas televisivos anunciam, em

    uma espcie de tempo cclico, a repetio de mais uma semana de trabalho. Nesse

    momento, por mais que ponhamos nossas expectativas na possibilidade de um novo

    tempo, o que pesa a percepo de uma srie de obrigaes que se repetem

    indefinidamente. Sentimos haver um controle exterior que atrofia nossas vontades. No

    entanto, trabalhamos. Acordamos na segunda-feira desejando ansiosamente que fosse

    sexta. Vivemos em fuga.

    Frequentemente, me deparo com a sensao de viver apenas um tero da vida,

    ou at menos. O clculo, apesar de spero, bastante simples. Em um dia de vinte e

    quatro horas, dedicamos cerca de oito horas ao trabalho, oito horas ao sono (assumindo

    aqui a possibilidade de um sono saudvel) e, por fim, oito horas que, idealmente,

    serviriam ao descanso e vida. Todavia, esse tero que nos disponvel diminui

    consideravelmente em razo das inmeras tarefas dirias que temos de lidar. E, se voc,

    caro leitor, habita uma dessas megalpoles, sinto em afirmar que seu tero desce

    vertiginosamente. Somente nas horas gastas em transporte, seja qual for, lhe ceifam

    algumas dessas preciosas horas, seja de vida ou sono.

    Nesse cenrio em que tudo uma cpia de uma cpia, no posso deixar de

    pensar em um dos meus filmes/livros favoritos. O Clube da Luta, escrito por Chuck

    Palahniuk, e adaptado ao cinema com a direo de David Fincher. Nas obras, o vazio da

    vida preenchido pela violncia regeneradora do Clube da Luta. A violncia, apesar de

    evidente, apenas um pano de fundo. Por meio da luta, aqueles homens expressam seu

    niilismo diante da vida. Por meio da luta, aqueles homens, diante do vazio, conseguem

    conectar-se, porque passam por experincias semelhantes. Assim, pode-se dizer que o

    Clube da Luta oferece aos seus membros uma nova forma de sociabilidade.

    Apesar de pensar que Palahniuk acerta na veia ao demonstrar o vazio de nossas

    vidas, no creio que implodir o sistema financeiro seja uma soluo adequada para esse

    vazio. Obviamente, no estou cobrando solues do livro. Esta no sua funo, ainda

    que alguns acreditem fielmente na possibilidade de um cataclismo do capital financeiro.

    Tambm no estou aqui para esbravejar crticas ao meu chefe ou ao fato de ter que

    trabalhar.

  • Esse texto se prope, na verdade, no a apontar uma sada, mas a instigar

    algumas possibilidades que talvez nos ajudem a lidar com esse vazio repetitivo

    originado pelo trabalho. Em nossas impresses dirias colocamos trabalho e vida como

    dois opostos irreconciliveis. preciso, no entanto, a conciliao desses dois elementos.

    Penso isso a partir das leituras de Marx sobre o trabalho. Ao contrrio do que

    muitos memes ou sensos comuns que inundam as redes sociais, as pessoas de esquerda,

    ou ao menos aquelas que leram Marx com cuidado, no so vagabundos que no

    querem trabalhar, vivendo do suor dos outros. Digo isso por uma razo simples: para

    Marx, o trabalho uma categoria ontolgica. Isso significa afirmar que o trabalho uma

    dimenso inerente ao ser humano. O trabalho nos torna humanos. Sem trabalho no h

    vida humana.

    Ao pensar dessa forma, Marx confere uma dimenso criadora essencial ao

    trabalho. por meio do trabalho que o homem realiza sua capacidade de pensamento.

    Nesse sentido, pensamento e ao formam um par indissocivel. O problema comea no

    momento em que essas duas dimenses so colocadas parte. Quando Marx fala de

    trabalho alienado, pretende afirmar que o homem est separado de sua condio

    essencial de ser humano. Ao apenas executar movimentos mecnicos, sendo controlado

    exteriormente pelo gerente e, ao no compreender a totalidade do processo produtivo, o

    homem no se reconhece em produto, perdendo a dimenso criadora de sua criao.

    Fao essa reflexo para abordar a situao em que vivemos. Trabalhando

    diariamente, controlados exteriormente, perdemos nossa dimenso criadora, ou

    dedicamos grande parte de nossas foras para uma determinada tarefa. E exatamente

    essa perda que faz com que separemos definitivamente trabalho e vida.

    Diante disso, Marx aponta para a necessidade da revoluo que construiria o

    comunismo. No tendo legado muitas notas prescrevendo sobre como seria a sociedade

    comunista, Marx disse apenas que o homem deixaria o estado de necessidade para

    adentrar o estado de liberdade, podendo ser pescador durante o dia e poeta durante a

    noite.

    No creio em revolues. Penso que as revolues sejam uma sobrevivncia

    crist nas esquerdas; uma crena na redeno da humanidade, no encontro do homem

    com seu deus, no caso, o prprio homem. Tambm no creio no socialismo. Em todas

    as experincias socialistas a tutela autoritria do Estado serviu apenas para reforar um

    controle exterior e retirar a autonomia dos indivduos.

  • Tambm no tenho solues, mas alguns palpites irrealizveis. Sei que

    preciso uma reestruturao produtiva que permita mais liberdade e autonomia aos

    homens e mulheres, para que sua condio criadora possa ser reforada. Sei tambm

    que, ao menos no Brasil, isso bastante improvvel, em virtude de nossa tradio de

    tutela e controle. Diante dessas dificuldades, o que parece nos restar procurar pelos

    poucos espaos em que possamos reconciliar trabalho e vida. Fora dessa procura, s

    podemos desejar com f que a segunda seja finalmente a sexta-feira.