Sobre Espiões e Traidores

2
SOBRE ESPIÕES E TRAIDORES Gen Div Clovis Purper Bandeira Historicamente, os estados têm feito grandes esforços para proteger seus documentos sigilosos, dentre os quais avultam a correspondência diplomática e a militar. Além da segu- rança física dos arquivos, foram criados sofisticados sistemas criptográficos para aumentar essa segurança. O ciclo completo envolve sua redação, criptografia, transmissão, utilização e arquivamento. A sensibilidade do assunto levou as nações a redigirem leis de segurança das infor- mações confidenciais e a investirem consideráveis recursos na busca da garantia de suas comunicações sigilosas e na quebra dos sistemas criptográficos inimigos, principalmente em tempo de graves crises ou de guerras. Na 2ª Guerra Mundial, por exemplo, os Aliados con- seguiram, a certa altura, quebrar o sigilo criptográfico das comunicações alemãs (a famosa máquina criptográfica Enigma) e japonesas. Para mascarar a obtenção dessa fabulosa van- tagem militar, aceitaram grandes perdas militares nos níveis tático e operacional, a fim de que o inimigo não suspeitasse de que seus segredos tinham sido acessados. Há muito tempo, também, a violação das malas diplomáticas é considerada um crime da maior gravidade, podendo levar a represálias em todos os campos, do diplomático ao mili- tar. O cuidado é tanto que, tradicionalmente, o território das embaixadas e das chancelarias é considerado território soberano da nação hospedada, não estando sujeito à autoridade da hospedeira. As tramas que envolvem a atividade de espionagem deram lugar a uma grande pro- dução literária e cinematográfica, em especial no tempo da Guerra Fria, envolvendo agentes duplos, mulheres fantásticas, superespiões, traições, perseguições, tiroteios e explosões. Não só a espionagem diplomática ou militar tem essa importância, mas também a industrial e comercial, quando os valores financeiros envolvidos compensam o investimento. Basta lem- brarmos a incrível semelhança do avião supersônico comercial Concorde, franco-britânico, com o soviético Tupolev Tu-144. De modo geral, as nações criminalizavam as atividades de espionagem adversas e escondiam ou negavam as próprias. De tempos em tempos, trocavam espiões presos que não mais lhes interessavam. Em resumo, a atividade envolve dois tipos de operadores: os fornecedores das infor- mações, os traidores, que podem ter várias motivações, mas quase sempre de fundo ideoló- gico e/ou financeiro; e os coletores dessas informações, em geral profissionais especializa- dos, os espiões. Buscando atuar sobre uns e outros, os serviços de inteligência nacionais organizavam suas divisões de inteligência e de contrainteligência. Recentemente o noticiário internacional foi sacudido pela surpreendente difusão de documentos sigilosos pertencentes, na sua maioria, ao Departamento de Estado e ao Depar- tamento de Defesa dos Estados Unidos da América. A divulgação dos documentos deu margem a várias interpretações, conforme o inte- resse de seus autores. Assim, os antiamericanos, entre eles os ex-presidentes Lula e Putin, subitamente apaixonados pela liberdade de imprensa que tanto combatem, vibram com as

description

considerações sobre os espiões

Transcript of Sobre Espiões e Traidores

Page 1: Sobre Espiões e Traidores

SOBRE ESPIÕES E TRAIDORES

Gen Div Clovis Purper Bandeira

Historicamente, os estados têm feito grandes esforços para proteger seus documentos sigilosos, dentre os quais avultam a correspondência diplomática e a militar. Além da segu-rança física dos arquivos, foram criados sofisticados sistemas criptográficos para aumentar essa segurança. O ciclo completo envolve sua redação, criptografia, transmissão, utilização e arquivamento.

A sensibilidade do assunto levou as nações a redigirem leis de segurança das infor-mações confidenciais e a investirem consideráveis recursos na busca da garantia de suas comunicações sigilosas e na quebra dos sistemas criptográficos inimigos, principalmente em tempo de graves crises ou de guerras. Na 2ª Guerra Mundial, por exemplo, os Aliados con-seguiram, a certa altura, quebrar o sigilo criptográfico das comunicações alemãs (a famosa máquina criptográfica Enigma) e japonesas. Para mascarar a obtenção dessa fabulosa van-tagem militar, aceitaram grandes perdas militares nos níveis tático e operacional, a fim de que o inimigo não suspeitasse de que seus segredos tinham sido acessados.

Há muito tempo, também, a violação das malas diplomáticas é considerada um crime da maior gravidade, podendo levar a represálias em todos os campos, do diplomático ao mili-tar. O cuidado é tanto que, tradicionalmente, o território das embaixadas e das chancelarias é considerado território soberano da nação hospedada, não estando sujeito à autoridade da hospedeira.

As tramas que envolvem a atividade de espionagem deram lugar a uma grande pro-dução literária e cinematográfica, em especial no tempo da Guerra Fria, envolvendo agentes duplos, mulheres fantásticas, superespiões, traições, perseguições, tiroteios e explosões. Não só a espionagem diplomática ou militar tem essa importância, mas também a industrial e comercial, quando os valores financeiros envolvidos compensam o investimento. Basta lem-brarmos a incrível semelhança do avião supersônico comercial Concorde, franco-britânico, com o soviético Tupolev Tu-144.

De modo geral, as nações criminalizavam as atividades de espionagem adversas e escondiam ou negavam as próprias. De tempos em tempos, trocavam espiões presos que não mais lhes interessavam.

Em resumo, a atividade envolve dois tipos de operadores: os fornecedores das infor-mações, os traidores, que podem ter várias motivações, mas quase sempre de fundo ideoló-gico e/ou financeiro; e os coletores dessas informações, em geral profissionais especializa-dos, os espiões. Buscando atuar sobre uns e outros, os serviços de inteligência nacionais organizavam suas divisões de inteligência e de contrainteligência.

Recentemente o noticiário internacional foi sacudido pela surpreendente difusão de documentos sigilosos pertencentes, na sua maioria, ao Departamento de Estado e ao Depar-tamento de Defesa dos Estados Unidos da América.

A divulgação dos documentos deu margem a várias interpretações, conforme o inte-resse de seus autores. Assim, os antiamericanos, entre eles os ex-presidentes Lula e Putin, subitamente apaixonados pela liberdade de imprensa que tanto combatem, vibram com as

Page 2: Sobre Espiões e Traidores

situações constrangedoras enfrentadas pelo governo ianque. Outros, que normalmente de-fendem a liberdade total da imprensa, alegam que ela tem limites, e que a publicação dos documentos na Internet contraria os mais altos interesses da segurança nacional e expõe a intimidade de personalidades de relevo que, ocasionalmente, possam ter caído na malha de interesse norte-americano.

Há argumentos em profusão para os defensores de ambas as tendências.

O que não tem sido discutido, porém, de maneira desapaixonada, são os atores que deram início ao problema.

O traidor é o soldado Bradley Manning, do Exército dos EUA, que tinha acesso funcio-nal a um imenso banco de dados recheado de documentos sigilosos dos departamentos do Estado e da Defesa. Descontente com o tratamento que recebeu de alguma autoridade, re-taliou, difundindo a um site especializado em divulgar esse tipo de informação, centenas de milhares de documentos classificados. Até o momento, não se fala em retorno financeiro.

Quanto à traição, não há dúvida: divulgou informações privilegiadas que deveria pro-teger, com o intuito de causar prejuízos e constrangimento a seu governo. Equivale a violar e publicar o conteúdo de milhares de malas diplomáticas, sob a alegação de que, numa soci-edade aberta e democrática, as informações são transparentes e devem ser de conhecimen-to de todos. Se tal raciocínio for aplicado a prontuários médicos, contas bancárias, projetos industriais e científicos avançados e a outras informações protegidas em todo o mundo, será um grande retrocesso. Não seria também contrário aos direitos humanos revelar informa-ções de caráter privado sobre a vida dos cidadãos?

O espião, rapidamente alçado à categoria de grande herói mundial e paladino da li-berdade de informação, é o australiano Julian Assange, ex-hacker, um dos diretores e princi-pal porta-voz do site WikiLeaks, onde os documentos são divulgados. Em nome da liberdade de imprensa, julga-se o grande juiz da verdade, com direito a decidir o que as nações devem divulgar ou proteger sob o manto do sigilo. Está vivendo momentos de glória, como o todo-poderoso que faz tremer o grande império, a nação mais poderosa do mundo, que está sem saber como agir, inclusive por desconhecer o valor total do vazamento (ironicamente, leak em inglês).

Enquanto isso, o principal prejudicado na história, o governo americano, toma suas providências. Já prendeu o traidor, sem dúvida sujeito a penas severas pelo crime de traição, entre outros. E procura provas para enquadrar legalmente e processar o espião, por en-quanto posando de defensor das liberdades. De qualquer maneira, está em posição delicada e desvantajosa, tendo que tomar medidas que muitas vezes condenou em outros governos, enquanto tenta minimizar a importância das informações vazadas e a fragilidade surpreen-dente de sua segurança orgânica quanto ao trato de informações sigilosas de seu interesse.

É possível que busque um acordo com o novo proprietário dos arquivos, negociando o silêncio em troca da suspensão de possíveis processos judiciais e de uma generosa com-pensação financeira. É preciso dosar cuidadosamente a negociação: não tão rapidamente que pareça fuga, nem tão lentamente que pareça desafio. Ainda há muito a perder, e a bola está com o adversário.