Sobre Crocodilos e Avestruzes Ligia Amaral[1]

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    DI FERENAS E PRECONCEI TOS NA ESCOLA: Alternativas tericas e Prticas. Julio GroppaAquino (org.) So Paulo Summus Editorial, 1998.

    Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenas fsicas, preconceitos e suasuperao

    Lgia Assumpo Amaral

    O termo vida designa um fato biolgico e uma vidapropriamente humana: a vida dramtica do homem.

    George Politzer

    Ao ser convidada pelo organizador desta coletnea a escrever um captulo sobre "diferenas fsicas", econsiderando as abordagens paralelas, no mesmo livro, de temas como as diferenas relacionadas aaspectos socioculturais, cognitivos, tnico-raciais, religiosos etc., deparei com um impasse:

    A partir de que ngulo redigir meu texto, uma vez que a amplitude da idia de "diferena fsica"

    parece-me de grande monta? Ou seja: ser obeso caracteriza uma diferena fsica? Ser magricela? Sermuito alto? Ser muito baixo? Ser negro? Usar culos? Ser surdo? Ser cego? Ser paraplgico?

    A resposta genrica , sem dvida, um "sim", embora haja, no meu entender, algumas especificidadesque distanciam bastante os primeiros dos ltimos. Mas porqu? s indagaes complementares,decorrentes da primeira, dedicarei grande parte do presente captulo. Todavia, antes disso, penso sernecessrio compartilhar outra questo que a tangencia. Vamos a ela.

    As dificuldades encontradas por essas crianas (aqui enfatizadas pela prpria caracterstica dacoletnea) em seu convvio escolar tm algum denominador comum? Essa a segunda grandeindagao a ser levantada.

    Se pensssemos nos costumeiros apelidos que circulam nos lbios infantis: "rolha de poo", "azeitonano palito", "pau-de-sebo", "nanico", "criolo doido", "quatro olho", "surdinho", "ladinho", "cegueta","mula manca".......estaramos muito perto da resposta: a presena de preconceitos e a decorrentediscriminao vivida, ainda com mais intensidade, pelos significativamente diferentes, impedindo-os,muitas vezes, de vivenciarem no s seus direitos de cidados, mas de vivenciar plenamente sua

    prpria infncia.

    Aps estes primeiros pargrafos, imagino que o leitor j estar com outras perguntas na ponta dalngua: mas o que diferena fsica, afinal? O que vem a ser "significativamente diferente;"? Ainsere-se diferena/ deficincia? Como se configuram a criao e a manuteno de preconceitos'? No

    que a discriminao impede o exerccio da cidadania?

    Tentarei, minha maneira (claro), juntar essas indagaes todas num hipottico cadinho e dele ireiretirando possveis respostas ou at mesmo simples articulaes - quando as respostas lineares sefizerem inalcanveis!

    Psicloga, mestre em Psicologia Social pela puc-sp, Doutora cm Psicologia Social e especialista em deficincia pelo IP-USP. tambm Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. e autora. dentre outros livros. deConhecendo a deficincia (Em companhia de Hrcules) (Robe. 1995

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    Mas, antes de mais nada, dois esclarecimentos que se complementam: por um lado tenho um certoconhecimento, terico-conceitual, da questo da deficincia pois a ela venho me dedicando

    profissionalmente h quase vinte anos, estudando, pesquisando, escrevendo, dando palestras eassessorias; por outro tenho tambm esse conhecimento num mbito "prtico", por viver a condio dedeficincia, pessoalmente, h cinqenta e poucos anos, uma vez que tenho seqela da plio que contrarecm-caminhante, aos quinze meses de idade.

    Esclareo esse ltimo ponto para que o leitor saiba de que lugar estou falando (duplo!), e para quecompreenda alguns eventuais arroubos de quem pode at ser acusada de "advogar em causa prpria".De qualquer forma, deixo sua generosidade a possibilidade de desculpar-me se tais arroubos vieremefetivamente a acontecer no decorrer do presente texto!

    Diferena significativa/Diferena fsica/Deficincia

    Para falarmos de diferena, precisamos falar de semelhana, de homogeneidade, de normalidade, decorrespondncia a um dado modelo. Mas quais conceitos utilizamos para "decretar" que um objeto, umfenmeno, algum ou algum grupo diferente'! E quando considerarmos "significativamente

    diferente". Quais ,os parmetros?Quando falamos simplesmente de "diferenas", talvez estejamos apenas referindo-nos a caractersticasou opes que, embora sinalizando dessemelhanas, no criam climas extremamente conflitivos (comexceo de situaes bem peculiares): cor dos cabelos; preferncia pelo azul, em detrimento doamarelo; So Paulo e no Corinthians, ou vice-versa; gostar de jil ... e assim por diante.

    Bem mais complexos so o contexto e as relaes humanas que se estabelecem a partir de uma dadacaracterstica que sinaliza para o "significativamente diferente". A sim inscreve-se o grande tema quenos interessa.

    Tenho defendido a idia de que so trs os grandes parmetros utilizados para definir n diferenasignificativa. ou o desvio. ou a anormalidade9E sobre eles que agora medebruo. Ou seja. penso quea diferena significativa, , o desvio, a anomalia , a anormalidade. e, em conseqncia. o ser/estardiferente ou desviante, ou anmalo, ou anormal, pressupem a eleio de critrios. sejam elesestatsticos (moda e mdia). de carter estrutural/funcional (integridade de forma/funcionamento), oude cunho psicossocial. como o do "tipo ideal". Vejamos cada um deles.

    O critrio estatsticotem duas vertentes. Uma delas a "mdia" (varivel matematicamente alcanadapelo cociente da soma de 11 valores por fi) que nos d, por exemplo, a altura mdia do homembrasileiro como sendo x e, assim, todos aqueles que se afastarem significativamente dela os muitoacima ou abaixo - so diferentes, so desviantes, so anormais. A outra vertente a "moda" (varivel

    que corresponde a um mximo de freqncia numa curva de distribuio) que nos d, por exemplo, amaior freqncia de mulheres sendo professoras de I grau, e assim, homens que exercem essa formade magistrio seriam diferentes, desviantes, anormais.

    O carter abstrato da mdia bem caracterizado por uma anedota contada por um amigo meu: coloca-se a cabea ele uma pessoa no forno e seus ps no congelador - a temperatura mdia estar tima, masa pessoa, morta. Em relao moda, permito-me apenas lembrar que esse valor no naturalmentedado, mas que corresponde a fatores historicamente constitudos. De qualquer forma, embora passveisde utilizao at legtima, esses parmetros estatsticos no do conta de especificidades das diferenassignificativas.

    9Para maior aprofundamento. convido o leitor a consultar outros textos de minha autoria em que estas idias foram maisdesenvolvidas e fundamentadas. os quais podem ser encontrados na bibliografia referente a este captulo, especialmente osde 1995. 1994 e 1992.

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    O critrio estrutural/funcional (assim denominado por mim certamente falta de melhores termos)refere-se ao que venho chamando de "vocao" dos componentes da natureza - onde estamos includoscomo seres humanos - e das coisas/objetos por ns construdos. Ou seja, estou sublinhando que tanto aintegridade da forma quanto a competncia da funcionalidade so critrios que podem definirmodalidades de diferena significativa. Obviamente necessrio destacar que no possvel haver :naturalidade ou universalidade de todas as caractersticas estruturais ou _ funcionais de pessoa ouobjetos.

    Todavia, inegvel que a espcie humana tem na "vocao" de sua forma/funo a existncia dedeterminadas caractersticas, como, por exemplo, peculiaridades de metabolismo que se correlacionama rgos especficos (tambm em nmero predeterminado), uma estrutura prpria (cabea, corpo emembros - ntegros e localizados de uma nica forma), olhos que vem, ouvidos que ouvem, membrosque se movimentam e praticam aes como pegar, andar, sentar etc. -tudo isso, em princpio, sem oauxlio de equipamentos ou recursos especficos e especiais.10

    Qualquer alterao de maior monta nessa "vocao" caracteriza a pessoa que vive essa condio comosignificativamente diferente, desviante, anormal e com deficincia. De qualquer forma, entendo que

    essa modalidade de categorizao de desvio a menos impregnada de crenas, valores, opinies ...Mas sublinho o menos pois isso pode ocorrer - e ocorre mediante especificidades de cartereconmico, religioso, cientfico, poltico ... , como veremos a seguir.

    O terceiro critrio - que alis lenho percebido, muitas vezes, apropriando-se perversamente dos doisanteriores - corresponde comparao entre uma determinada pessoa ou um determinado grupo e o"tipo ideal" construdo e sedimentado pelo grupo dominante.

    Todos sabemos (embora nem todos o confessemos) que em nosso contexto social esse tipo ideal- que.na verdade, fazo papel de um espelho virtual e generoso de ns mesmos - corresponde, no mnimo, aum ser: jovem, do gnero masculino, branco, cristo, heterossexual, fsica e mentalmente perfeito, belo

    e produtivo. A aproximao ou semelhana com essa idealizao em sua totalidade ou particularidades perseguida, consciente ou inconscientemente, por todos ns, uma vez que o afastamento delacaracteriza a diferena significativa, o desvio, a anormalidade. E o fato que muitos e muitos de ns,embora no correspondendo a esse prottipo ideologicamente construdo, o utilizamos em nossocotidiano para a categorizao/validao do outro.

    Enfatizo, portanto, que o reconhecimento da existncia e perpetuao desse terceiro parmetro (claroest que sem deixarmos de problematizar os demais pois podem ser a ele acoplados, com vistas a

    legitimao de preconceitos e estigma) que deve estar presente, com nfase, em nossas discussessobre diferena significativa, divergncia, desvio, anormalidade e deficincia.

    Penso que se abstrairmos ou mesmo "desconstruirmos" a conotao pejorativa das palavras:significativamente diferente, divergente, desviante, anormal, deficiente, e pensarmos nos parmetrosque as produzem, poderemos nos debruar sobre elas pura melhor contextualizar os critriosempregados para sua eleio como designativas de algo ou algum. Ou seja, penso que devemosreconhecer que normalidade e anormalidade existem (e por isso abstenho-me de usar aspas), mas o queefetivamente interessa na experincia do cotidiano problematizar os parmetros que definem tantouma como outra. Penso tambm que a partir da explorao e do questionamento desses parmetros

    pode-se pensar a anormalidade de forma inovadora: no mais e somente como patologia -sejaindividual ou social - mas como expresso da diversidade da natureza e da condio humana, sejaqual for o critrio utilizado.

    10Paralelamcntc a outras caractersticas. Comuns: tipo de cabelo, cor de pele ou de olhos etc ,. que esto sujeitas variahilidade decorrente da herana gentica ou ligada espcie mas a caractersticas dos ascendentes.

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    Para ir um pouco mais a fundo na reflexo sobre isso, tenho recorrido a algumas colocaes doantroplogo Gilberto Velho (1989) que nos fala, com muita propriedade, de um fenmeno bastanteusual: apatologizao do desvio - moeda corrente em nossa cultura.

    O autor afirma, ainda, que essa patologizao pode, mediante circunstncias/contingncias peculiares,voltar-se ora para o social, ora para o individual, parecendo-nos a primeira mais progressista emoderna. Alerta-nos, ento, para o fato de que a dificuldade (mal-entendido, diria eu) est exatamentena patologizao, sendo essa a grande armadilha que aprisiona aqueles que se colocam (ou socolocados?) no desvio, quer por suas caractersticas, quer por seus comportamentos.

    Goffman (1982) outro autor que me vem ajudando a afunilar ainda mais o raciocnio, pois introduzconceitualmente a noo de estigma (marca, sinal) - estigma esse imputado quelas pessoas que seafastam da idealizao corrente em determinado contexto. Para ele so trs as "aberraes"desencadeantes de estigma: do corpo, de opes comportamentais e de insero "tribal".

    Esses atributos e/ou caractersticas definem, nas relaes que o autor denomina de //listas, o tipo deinterao a ser vivenciado entre os estigmatizadores e os estigmatizados ou estigmatizveis.

    Isso posto, pode-se afirmar que muitas e muitas vezes a noo de desvio centralizou (ou construiu?),em companhia do estigma, as pr-conceituaes/definies de diferenas significativas, dentre estas adeficincia (vista como fenmeno global) e, numa dialtica de causa conseqncia-causa, as atitudesdiante dela.

    Falando dessas atitudes (presentes nas e constituidoras das mentalidades), alguns autores nos falam deuma progresso: do extermnio ou marginalizao ao assistencialismo de cunho paternalista, e desteao ') investimento nas potencialidades e ao reconhecimento da cidadania.

    O momento culminante dessa "progresso" seria a atualidade. Mas, embora presente no discurso

    oficial h algum tempo, essa viso "generosa" do trato com a deficincia encontra ainda muitosentraves (conscientes ou inconscientes, admitidos ou inconfessos), por parte de muitos dosprotagonistas individuais ou institucionais envolvidos nesse "drama"11

    E que entraves so esses'! Sinteticamente pode-se dizer que, por um lado, so os prprios mitos quecercam a questo da deficincia (criados e perpetuados socialmente) e, por outro, as barreirasatitudinais (emanadas prioritariamente do mbito intrapsquico) - embora a separao entre ambos sejaquase imperceptvel. 12I. 132. ,. que esto sujeitas variahilidade decorrente da herana gentica ouligada espcie mas a caractersticas dos dentes.

    Falando de castelos e de crocodilos

    Quanto aos mitos,penso que o profundo abismo que separa o mito da realidade pode ser simbolizadocomo os fossos repletos de crocodilos dos castelos medievais. Brincando com a idia, tenho nomeadoesses hipotticos crocodilos de preconceitos, esteretipos e estigma.

    Ainda brincando com a idia, tenho visualizado uma ponte movedia que possibilita o trnsito entre acidade e o castelo, permitindo, ao mesmo tempo, escapar dos ferozes animais e conhec-los a umadistncia segura. Essa ponte movedia toda oportunidade de encontro ("ao vivo e em cores" ou por

    11Palavra de onde (e perseguindo idias desenvolvidas por Politzer. 1975. em sua ohra Crtica dos fundamentos da

    psicologia), abstra a conotao romntica. tentando referir-me. simplesmente. a um conjunto de atos que envolvem umenredo e a interao dinmica entre os participantes: a vida propriamente humana.

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    intermdio de um livro!) de pessoas que vivem a questo ou interessam-se pelo tema; todo progressono mundo terico-cientfico; toda vitria no contexto da prtica; todo momento de impasse queleva a reflexes.

    Assim sendo, o primeiro ponto a assinalar no que se refere aos mal fadados crocodilos, os mitos, queestes acabam por configurar um leque bastante grande de opes para a leitura tendenciosa dadiferena fsica significativa/deficincia. Dentre esses mitos cito alguns, que tenho chamado de:"generalizao indevida", "correlao linear", "ideologia da fora de vontade", "culpabilizao davtima", "contgio osmtico" ...

    Aqui estarei explorando, mesmo que rapidamente, trs deles que esto, penso, mais diretamenteligados temtica abordada.

    Generalizao indevida" refere-se transformao da totalidade da pessoa com deficincia na prpriacondio de deficincia, na ineficincia global. O indivduo no algum com uma dada condio, aquela condio especfica e nada mais do que ela: a encarnao da ineficincia total. Osdepoimentos nesse sentido so numerosos e talvez o mais conhecido deles tenha sido dado pelo

    escritor francs Chevigny (1946) que, ao ficar cego, viu-se repentinamente tratado tambm comodeficiente auditivo e mental. Relata, para ilustrar essa afirmao, que em dada situao foi convidado atomar ch em casa de uma conhecida e esta, ao servir,perguntou ao seu acompanhante: "O ch dele com ou sem acar?" Eis a presena do mito.

    Por outro ngulo, h o uso freqente da lgica da "correlao linear", a lgica do "se ... ento": se estaatividade boa para esta pessoa com deficincia ento boa para todas as pessoas nessas condies.Ou: se no h uma pessoa com deficincia desenvolvendo tal atividade, ento esta no uma atividadecompatvel. Ou: se audio um sentido privilegiado no cego (claro que aqui h mais um preconceito),ento os cegos so excelentes msicos. Ou: se este paraplgico cruel, ento todos os paraplgicos socruis. Ou: ...

    Quanto ao "contgio osmtico ", refere-se ao medo (pavor mesmo) da "contaminao" pelo convvio.o velho ditado "diga-me com quem andas e te direi quem s" talvez seja um de seus cmplicesinvoluntrios.

    E as barreiras atitudinais? Penso que estas, em ltima instncia, sendo "barreiras", nada mais so doque anteparos interpostos nas relaes entre duas pessoas, onde uma tem uma predisposiodesfavorvel em relao outra, por ser esta significativamente diferente, em especial quanto scondies preconizadas como ideais.

    Estou referindo-me ao preconceito que, como a prpria construo da palavra indica, um conceito

    que formamos aprioristicamente, anterior portanto nossa experincia. Dois so seus componentesbsicos: uma atitude (predisposies psquicas favorveis ou desfavorveis em relao a algo oualgum - no caso aqui discutido, desfavorvel por excelncia) e o desconhecimento concreto evivencial desse algo ou algum, assim como de nossas prprias reaes diante deles.

    A atitude que subjaz ao preconceito baseia-se, por sua vez, em contedos emocionais: atrao, amor,admirao, medo, raiva, repulsa ... Os preconceitos, assim constitudos, so como filtros de nossa

    percepo, colorindo o olhar, modulando o ouvir, modelando o tocar ... - fazendo com que nopercebamos a totalidade do que se encontra nossa frente. Configuram uma predisposio perceptual.

    Ou dito de outra forma: fruto de informaes tendenciosas prvias ou . do desconhecimento (sejaoriundo de desinformao factual, seja oriundo de emoes/sentimcntos no elaborados) abrigamos cmns atitudes diante .de um determinado alvo de ateno: algo, algum ou algum fenmeno, Essas

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    atitudes, em princpio, daro o "tom" de nossas aes e reaes no convvio com esse alvo de ateno.Esse "tom" ser, nas circunstncias a que este texto se refere, colorido pois pelo preconceito. No casodos relacionamentos humanos, a concretizao desse preconceito dar-se- pela relao vivida com umesteretipo e no com a pessoa.

    O esteretipo (no contexto aqui abordado) a concretizao/personificao do preconceito. Cria-se um"tipo" fixo e imutvel que caracterizar o objeto em questo - seja ele uma pessoa, um grupo ou umfenmeno. Esse esteretipo ser o alvo das aes subseqentes e, ao mesmo tempo, o biombo queestar interposto entre o agente da ao e a pessoa real sua frente.

    Nosso universo vivencial est superlotado de esteretipos. Se "puxarmos" pela memriaencontraremos vrios deles presentes em nosso cotidiano: negros, judeus, homossexuais, prostitutas,loucos ... Alguns programas de televiso, inclusive, sobrevivem graas explorao (tantas vezes atgrosseira) desses esteretipos - tornando-os cada vez mais familiares ao pblico e, por uma distoro

    perceptiva acumulada, at "naturais".

    No que se refere deficincia, encontramos tambm esteretipos particularizados em relao aos tiposde deficincia14, como o deficiente fsico ser "o revoltado" ou "o gnio intelectual"; o cego ser "ocordato" ou "o sensvel" ou "o gnio musical"; o surdo ser "o isolado" ou "o impaciente"; a pessoa comSndrome de Down ser "a meiguice personificada".

    Alm desses esteretipos particularizados, penso que existem trs outros mais generalistas (chamemosassim) que so, da mesma forma, empregados por muitos de ns na vida cotidiana, pelos meios decomunicao de massa, pela literatura, pelo teatro ... Refiro-me a um deplorvel trio, composto pelosesteretipos de heri, vtima e vilo.

    Ao primeiro cabe sempre o papel daquele que supera todos os obstculos, ultrapassa todas as barreiras, "o bom" - corporificao do bem - e at mesmo o melhor; ao segundo cabe o papel de agentedesestruturador, destrutivo, de ser "o mau" -corporificao do mal; ao terceiro cabe o papel deimpotente, de coitadinho.

    lnteressantemente - preciso que sc diga - muitos de ns que pesquisamos na rea temos comprovadoa existncia desses esteretipos genricos correlacionados no s aos deficientes, mas quase de modoindiscriminado a todos aqueles que so significativamente diferentes, sejam ndios, judeus, negros,homossexuais ... Ou seja, por uma srie de condies psicossociais (atitudes, preconceitos e estigma)h uma forte tendncia em se perceber o significativamente diferente ou como heri, ou como vilo, oucomo vtima15, ou ainda passando de um esteretipo para outro no decorrer de uma determinada

    seqncia de tempo e de acontecimentos.

    Vistos e conhecidos (desmascarados?) alguns dos crocodilos que habitam o tal fosso do castelomedieval, talvez seja interessante pensar um outro desdobramento de nossa subjetividade diante dadiferena significativa: os mecanismos de defesa eventualmente presentes nas relaes interpessoaisnas quais se incluem, obviamente, aquelas vividas no contexto escolar.

    Tal como um avestruz, escondendo a cabea na areia!

    H vrios anos venho explorando algumas idias sobre o acionamento de mecanismos de defesa diante

    14O Leitor pode, a esse respeito, consultar o trabalho de Sadao Omote (1984).15No caso de minha tese de doutorado (Amaral. 1992), isso ficou patente na pesquisa sobre personagens de livros infanto-juvenis que tinham um corpo desviante, na forma. corou funcionalidade. em relao ao seu grupo de peninncia.

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    da diferena significativa16e penso ser necessrio aqui retom-las para que o desenho que constitui osaspectos psicossociais relacionados ao tema fique mais bem delineado.

    Esse acionamento reverte-se, no meu entender, de certa peculiaridade quando se trata de reaes dianteda diferena significativa, especificidade essa que chamou minha ateno bastante precocemente -tanto com base em minhas experincias pessoais como a partir da observao de situaes externas amim.

    Mas antes de mais nada desejo esclarecer o que um mecanismos de defesa. Trata-se de conceitoinicialmente formulado por Freud (s/d) em 1926, e posteriormente desenvolvido por Anna Freud, altoFenichel, Jos Bleger e outros autores. Baseando-me neste ltimo terico, trago a sntese do que me

    parece ser o essencial para um eventual primeiro contato (mesmo que apenas rudimentar) com oconceito. .

    Para Bleger (1977), mecanismos de defesa so tcnicas ou estratgias com que a personalidade totalopera para manter o equilbrio intrapsquico, eliminando fontes de insegurana, perigo, tenso ouansiedade, quando, por alguma razo, no est sendo possvel lidar com a realidade.

    Por outro lado, o mesmo Goffman (1982), que nos falou de estigma e das relaes mistas, nos lembraque estas so, por definio, relaes tensas e ansigenas.

    Vemos a o encontro entre diferena significativa e mecanismos de defesa.

    Quero com isso dizer que nas situaes em que entrar realisticamente em-pleno contato com adiferena significativa (ou mesmo entrar em contato com o sentimento de rejeio que ela pode gerar)no uma possibildade psicolgica imediata, e havendo a necessidade de "fugir" da questo, podemosassumir a postura de avestruz: enfiamos a cabea na areia para no ver o que no queremos ou no

    podemos ver.

    Ou dito de outra forma: se reconhecer a diferena significativa do outro (ou nossa rejeio a ela) noscausa profundo mal-estar, tenso e ansiedade, uma das possibilidades o acionamento do mecanismode defesa da negao17,o qual pode revestir-se de algumas roupagens especficas: compensao,simulao e atenuao.

    No cotidiano usamos certas expresses "clssicas" que ilustram essas trs formas de negao.Exemplos delas no faltam em nosso repertrio do dia-a-dia.

    Ao dizermos (ou at mesmo pensarmos) frases do tipo: " paraltico, mas to inteligente", " negromas tem alma de branco", " homossexual mas to sensvel" ... estamos compensando aquela

    caracterstica ou condio que consideramos espria e, portanto, negando-a ao contrap-la a umatributo desejvel- o "mas" denuncia esse movimento.

    Dizemos tambm: "podia ser pior", "no tem uma perna -e podia no ter as duas!", "no to graveassim" ... Nesse caso, ser que no estamos negando, pela atenuao, a especificidade (tipo edimenso, por exemplo) de dada condio ou caracterstica?

    Assimilao ocorre quando negamos literalmente a diferena: " cego, mas como se no fosse", "homossexual, mas nem parece" ... Fazemos de conta que.

    16Para explanao um pouco mais detalhada, remeto o leitor ao meu primeiro texto (Amaral. 1988) sobre o tema.17Estou. pela natureza e mbito deste captulo. excluindo outros mecanismos de defesa como projeo. racionalizao,formao reativa etc., que podem surgir tambm nas relaes mistas.

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    O fato que enfiar a cabea na areia no nos liberta da armadilha relacional (continuamos sofrendo aansiedade na relao interpessoal), nem facilita a vida do significativamente diferente, seja elediferente nesta ou naquela condio, esteja ele neste ou naquele contexto - inclusive, e talvez atespecialmente, no educacional.

    Enfim, foi em razo de toda uma reflexo sobre esses aspectos psicossociais (crocodilos e avestruzes =preconceitos, esteretipos, estigma e mecanismos de defesa) envolvidos na questo danormalidade/anormalidade que endossei a idia de enfatizar a possibilidade de uma nova constelao ada diversidade-para pensarmos o desvio, a anomalia, a anormalidade, concretizados no que passei achamar de diferenas significativas.

    Mas dentre as diferenas significativas, no estarei, a partir daqui, falando sobre aspectos remetidos apeso, cor, cognio, opo sexual, religio, gnero, envelhecimento etc.(alguns dos quais estaro sendoabordados em outros captulos, por outros autores), embora importantes interfaces existam e possamser exploradas. Estarei, sim, centrando minhas colocaes numa diferena significativa, num desvio

    peculiar: a deficincia. E, dentro de seu amplo gradiente, estarei focalizando aquelas remetidas maisclaramente questo corporal: deficincia fsica e deficincia sensorial.

    Falando um pouco mais sobre diversidade/deficincia ou "gua mole em pedra dura tanto bateat que fura"

    Todos ns, de uma ou de outra forma, j sabemos, um pouco pelo menos, a evoluo dos conceitosreferidos condio de deficincia pelas prticas sociais a eles aliadas. Ou seja,j sabemos que,decorrentes dos conceitos em vigncia em diferentes momentos, ocorreram movimentos de extermnio,marginalizao, confinamento, venerao, temores profundos, omisso, pessimismo, paternalismoexacerbado e explcito, paternalismo camuflado, descrdito, segregao, credibilidade, investimentoem educao e reabilitao, extermnio novamente, marginalizao, pseudo-integrao, integraoreal, luta pela cidadania ...

    Ou seja, sabemos j os percalos envolvidos no longo caminho da "superstio cincia" - para usar ottulo da obra de Pessotti (1984), do estado "pr-cientfico" ao "cientfico". Sabemos tambm das lutasintestinas da prpria Cincia, das colises tericas, dos confrontos de paradigmas ...

    A indagao maior que se coloca pode ser assim formulada: como contribuir para o avano doconhecimento nessa rea to impregnada de ambivalncia e ambigidade, to entranhada de

    preconceitos, esteretipos e estigma, to "territrio de ningum" e, simultaneamente, to "pertencente"a tantos proprietrios/especialistas?

    Claro est que a "mesma" contribuio sempre possvel quando outros so os interlocutores. Porm

    mesmo assim, em outras ocasies, como hoje, o desejo de introduzir novas vertentes para reflexotrazia (e traz) consigo a seduo e o desafio do pensar.

    Quero com isso dizer que a experincia mostra que precisamos sempre retomar, retomar, retomar ... otema, mesmo que isso tenha um certo ar de desalento, pois como dizia minha sbia av: "gua moleem pedra dura tanto bate at que fura".

    Assim sendo, nesta seqncia do texto estarei desenvolvendo alguns pontos remetidos "gua moleem pedra dura". Mas antes disso desejo expressar minha alegria em estar compartilhando algumasidias com profissionais do contexto escolar - o que, no meu entender, representa o nico caminhorealmente profcuo: a comunicao com Educadores (com E maisculo), estejam eles atuando nesta ounaquela educao (para aqueles que, infelizmente, ainda acreditam que Educao precisa ser mais deuma!). Ou seja, acredito firmemente que Educao uma s, embora tenha de adaptar-se, de acordo

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    comsuas necessidades especiais, para bem prestar seus servios comunidade.

    Brincando com as idias, diria que a Educao, como cada um de ns, deve escolher a roupa adequadapara os dias frios assim como para os de calor, os alimentos compatveis com o horrio e/ou clima, oscomportamentos para as situaes de alegria ou de tristeza, as expresses emocionais para momentos

    pblicos ou de intimidade ... Enfim, escolher o melhor (para cada um de ns e para aqueles que noscercam) para um melhor viver.

    Foi essa viso de Educao que propiciou em alguns pases (como a Espanha por exemplo) e emalgumas localidades de nosso prprio pas uma reviso crtica dos procedi mentos educacionaisadotados tradicionalmente.

    O "Livro Branco" espanhol preciosa ilustrao de uma reviravolta educacional, na qual o postuladomaior o de que cabe Educao adequar-se aos educandos e mio a estes adequar-se quela. E aEducao pode ento - e s ento - ser una, mesmo debruando-se sobre a diversidade.

    Voltando ao "gua mole em pedra dura tanto bate at que fura", devo confessar que foi fascinante a

    experincia de pensar sobre esse "ditado", pelas razes que compartilho a seguir.Quando a expresso me ocorreu referia-se, evidentemente, idia de que seria vlido voltar, tantasvezes quanto possvel, a uma mesma reflexo para que, finalmente, um dia, quem sabe, ela pudesseatravessar as muralhas de pedra dos preconceitos a que estamos sujeitos, como seres humanos quesomos e, muitas vezes, sem nem nos apercebermos de sua presena em ns mesmos.

    Mas quando me sentei para explorar um pouco mais a analogia entre aquele dito popular e o momentode escrever este captulo, meus pensamentos teimaram em seguir outro rumo. Na verdade o rumoinverso! Ou seja, pensei que, ao longo de milnios, a "gua mole" da ideologia18 bateu,inexoravelmente, na pedra dura das vises crticas da realidade, esta muitas vezes no menos dura!

    Quero com isso dizer que so incontveis as ilustraes histricas de asfixia da reflexo pelosdiscursos ideolgicos que, despejados sistemtica e competentemente sobre grupos (ou mesmos

    povos inteiros), fazem definhar os movimentos que se voltam para a tomada de conscincia, para oexerccio da crtica. Assim que a "lucidez" obscureceu-se- tantas e tantas vezes - pela pressoconstante de pesados vus.

    Desse velamento resultaram grandes tragdias como os massacres de contingentes enormes de sereshumanos - dos quais o III Reich triste exemplo. Porm resultaram tambm dramas de dimensesdemogrficas talvez menores mas nem por isso menos impregnadas de sofrimento, como o caso do"apartheid vivido (e meio "esquecido") em algumas regies dos Estados Unidos e (bastante lembrado)

    na frica do Sul. Resultaram tambm dramas circunscritos a determinadas esferas da condiohumana, como aquela referida prpria Educao.

    Os estudos e reflexes crticas sobre o chamado "fracasso escolar"19 desvelaram a fora de certos"postulados", repetidos acriticamente por este Brasil afora, que, oscilando entre a

    patologizao/culpabilizao do aluno e do professor, desviaram (e continuam desviando) o foco daateno de seu legtimo alvo: a necessidade da reflexo sistemtica sobre o fazer pedaggico, neleincluindo todas as esferas de influncia - econmicas, polticas, culturais - e no apenas aquelas

    18Entendendo-se como ideologia o "conjunto lgico. sistemtico e coerente de representaes (idias e valores) e de

    normas e regras (de conduta) que indicam e prescrevem... (grifos meus), conforme Marilena Chau em seu em seu texto Oque ideologia.19Veja-se a esse respeito, por exemplo.A produo do fracasso escalar: histrias de .submisso e rebeldia, de Maria Helena S.Patto.

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    referidas a condies peculiares ao educando ou ao educador.

    Quanto ao referido aluno: incompetncia, pobreza, incluso em famlia "desestruturada", deficincia,doena ... Quanto ao professor: desinteresse (pela desvalorizao do papel social e pelo aviltamentosalarial), inadequao da formao, falta de "reciclagem", no investimento em aprendizagem de novas"tcnicas" e/ou teorias ...

    Alguns de ns vm chamando essas colocaes de "culpabilizao da vtima".

    As conseqncias de um tipo de "discurso competente" (para usar uma expresso cunhada com muitapropriedade por Marilena Chau) e na realidade pseudocientfico, que, como ilusionista, desvia aateno e, no fundo, favorece um fazer acrtico, vm se fazendo presentes em vrios "outros" contextoseducacionais, como o da prpria educao chamada de especial.

    Bem, essa foi uma parte do caminho que percorri (quase minha prpria revelia) para ento poderresgatar minha primeira associao ao dito popular "gua mole em pedra dura tanto bate at que fura",ou seja, minha crena na legitimidade da recorrncia do convite reflexo.

    Passemos agora discusso sobre o que deficincia, que divide com outros (muitos) conceitos arepresentao de fenmeno multifacetado, impregnado de denotaes e conotaes. Dentre essesmuitos, pensemos nas outras diferenas significativas, ligadas, por exemplo, a: religiosidade,homossexualidade, velhice ... - apenas para citar uns poucos.

    Lembremos tambm que o conjunto formado por conceito/definio de deficincia aponta,inexoravelmente, para os contextos em que tem sido engendrado. Desejo portanto frisar que, ao nosdebruarmos sobre um conjunto conceito/definio, imprescindvel lembrar que essa dade semprehistoricamente datada.

    Ou seja, em dado contexto elabora-se um conceito (representando um objeto de uma dada forma), oqual operacionalmente descrito por uma definio que visa ampla compreenso daquele, bem comosua divulgao e apropriao pelos receptores previstos.

    Essas afirmaes prendem-se ao fato de desejar, aqui, enfatizar minha leitura: penso que o conceito dedeficincia e sua definio passam por dimenses descritivas e por dimenses valorativas, tendosempre um carter histrico concreto: um determinado momento, num contexto socioeconmico-cultural especfico.

    Ora bem,j ultrapassamos a metade da dcada de 90e qual o conceito cientfico em vigor? Pararesponder a essa pergunta gostaria de trazer, mesmo que sinteticamente, a conceituao, definio e

    conseqente nomenclatura propostas, em 1976, pela Organizao Mundial de Sade; avalizada pelaRehabilitation lntemational em 1980; oficialmente traduzida para o portugus em 1989 e em plenavigncia.

    Pessoalmente venho trabalhando sobre essa proposta desde a dcada de 1980, a ela acrescentandoalgumas reflexes que, mais adiante, estarei compartilhando. Por outro lado, em relao a essedocumento, esclareo que questionamentos, atualizaes e revises compem esse momento do

    processo, mas, paralelamente a isso, continuo a manter-me fiel s leituras que vinha fazendo daquele.Assim sendo, passo a compartilhar, embora de forma bastante reduzida, algumas das sugestes nelecontidas (OMS/SNR, 1989):

    DEFICINCIA (impairment) refere-se a urna perda ou anormalidade de estrutura ou funo:Deficincias so relativas a toda alterao do corpo ou da aparncia jsica,, de um rgo ou de uma

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    funo. Qualquer que seja a sua causa: em princpio deficincias significam perturbaes no nvel dorgo ( grigos meus)

    INCAPACIDADE (disability) refere-se restrio de atividadesem decorrncia de uma deficincia:Incapacidades refletem as conseqncias das deficincias em termos de desempenho e atividadefuncional do indivduo; as incapacidades representam perturbaes ao nvel da prpria~. (grifasmeus)

    DESVANTAGEM (handicap) refere-se condio sociql de prejuzo resultante de deficincia e/ouincapacidade: Desvantagens dizem respeito aos prejuzos que o indivduo experimenta devido suadeficincia e incapacidade; as desvantagens refletem pois a adaptao do indivduo e a interao delecom seu meio.(grifas meus)

    Como dizia, em virtude dessa proposta tenho, h vrios anos, pensado a deficincia, como fenmenoglobal, distribuda em dois subfenmenos: deficincia primria (deficincia e incapacidade) e

    deficincia secundria ( desvantagem).

    Em minha viso a primeira delas (a deficincia primria) est remetida a aspectos descritivos,intrnsecos (ou qualquer nome que se queira dar) e a segunda, basicamente, a aspectos relativos,valorativos, extrnsecos ...

    Tenho, na companhia de vrios autores, argumentado que a deficincia primria pode impedir ritmos eformas usuais de desenvolvimento, mas no a sua ocorrncia - o que de fato vem a suceder, muitasvezes, em decorrncia das variveis envolvidas na problemtica da "desvantagem" (deficinciasecundria). Ou seja, estou referindo-me a questes que apontam para a relativizao inerente prpriaidia de desvantagem. S se est em desvantagem em relao a algo ou algum! E na possibilidade

    deproblematizao da desvantagem, da deficincia secundria, que repousa a maior contribuio daatual conceituao-definio-nomenclatura "mal grado" oriunda de um modelo mdico.

    Claro est que muito ainda poder ser discutido, questionado, acrescentado, modificado. Mas poragora o que temos para nossas reflexes. E assim vamos a elas.

    Em relao "deficincia" e "incapacidade" (que, como j dito, entendo como "deficinciaprimria") no desejo alongar-me, at porque sou ardorosa defensora da idia de que as deficinciasexistem (e no so apenas socialmente construdas), assim como existem incapacidades delasdecorrentes. uma questo descritiva: o olho lesado e o no ver, a medula lesionada e o no andar...

    Mas a que nos remete a prpria idia de "desvantagem", de prejuzo? A peculiaridades intrapsquicassim, porm, com certeza, a contingncias preponderantemente sociais: as chamadas especificidadessocioeconmico-culturais, tais como sistema econmico, organizao poltica, crenas e valores,leituras e interpretaes sociais e, em conseqncia, a um conjunto de aes/reaes ao fenmenodeficincia e s pessoas que o corporificam.

    De qu, em ltima instncia, dependem essas leituras, interpretaes, aes e reaes? Basicamente doparmetro utilizado para designar a condio de desvio, de anormalidade. Se do "tipo ideal" ou do tipo"forma/funo". Se pelo primeiro: todo um leque de preconceito, esteretipo e estigma abrindo-se na

    vigncia das relaes humanas estabeleci das na escola. Se pelo segundo: a constatao de umacondio e o enfrentamento realstico de um cotidiano que deve, necessariamente, incluir apeculiaridade em pauta. Isso nos levaria a uma leitura especfica: a criana com deficincia podendo

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    ser vista como "nem menos que, nem pior que".

    Diante dessa manifestao (ento considerada legtima) da diversidade, diante da diferenasignificativa/deficincia, talvez possa surgir uma nova mentalidade. E dessa nova mentalidade talvezsurja uma nova configurao no jogo de poder. E dessa nova configurao poder brotar uma novadinmica nas interaes sociais, quando o "cetro do poder" estar ento, e s ento, dinamicamente

    passando (nas relaes mistas e de acordo com as circunstncias)'de um plo a outro.

    Talvez a esteja, afinal, a verdadeira revoluo: a mudana radical dessas interaes sociais - atagora to marcadas pelo maniquesmo da plenitude versus falha, sanidade versus insanidade. perfeioversus imperfeio, eficincia versus ineficincia. DEFICINCIA?

    Finalizando esta linha de raciocnio, eu diria que a questo conceitual (e seus desdobramentos emdefinies e nomenclaturas) no se limita a mero exerccio de retrica, como querem alguns. Penso, aocontrrio, que a problematizao desse aspecto traz subsdios fundamentais para uma outra (e talvezsubseqente) temtica: a da integrao social, societal ou comunitria (como nomeiam diferentesautores) desse abstrato coletivo "crianas com deficincia", expresso nas individualidades que o

    compem.Ou, a partir de outro ngulo, penso que essa discusso pode ir realmente muito alm de um exercciode retrica. Penso que, mais do que isso, a questo conceitual pode encaminhar novas formas deinterao humana, uma vez que se ponham a descoberto os aspectos intimamente vinculados desvantagem, especialmente em sua vertente social.

    E ainda: que ponha a descoberto que uma sociedade abstrata tambm no existe, pois cada um de ns aconstitui e, portanto, cada um de ns pode subverter alguns dos postulados vigentes, revolucionar amentalidade hegemnica. Essa seria, para alm da prpria revoluo conceitual, a revoluomicropoltica, detonada e exercida no cotidiano, nas interaes do dia-a-dia - e talvez especialmente no

    cotidiano escolar.

    A filsofa Agnes Heller j nos ensinou que a cotidianidade - entendida como uma no apropriaoplena dos objetos e fatos que se apresentam - pode impregnar de tal forma nossa percepo do mundoque tornamos "natural" aquilo que historicamente constitudo. E, assim, deixamos de perceber asnuanas infinitas que colorem o dia-a-dia, o cotidiano propriamente dito, obscurecida a viso pelavitalidade da ideologia dominante.

    Sintetizando as idias acima: penso que a reflexo sistemtica sobre a questo conceitual de extremaimportncia para a simultnea/subseqente reflexo sistemtica sobre o cotidiano das pessoas comdeficincia, cotidiano este ento, e s ento, pensado como profundamente imerso na rede de

    significaes da prpria condio de deficincia.

    Talvez no seja outra minha motivao para escrever mais este texto sobre o mesmo tema sobre o qualvenho escrevendo h anos - assim como minha disponibilidade para estar em tantos e diferenteslugares de meu Estado e de nosso pas. Acredito que podemos - cada um de ns - de alguma formacontribuir para que a "gua mole" seja a reflexo continuada e compartilhada, e a "pedra dura", oconglomerado constitudo pelos saberes e fazeres cristalizados, que emanam de uma bem estruturadaideologia.

    Contando histrias

    Para finalizar, decidi contar histrias que vi acontecer ou que me foram contadas, relativas a crianascom deficincia fsica ou sensorial que freqentavam classes comuns do ensino regular - e, portanto,

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    imersas num cotidiano que, em princpio, no estaria aparelhado para o convvio com aqueles quefossem significativamente diferentes.

    Assim, alguns episdios plenos de preconceitos desfilaram pelos olhos de minha memria: o damenina cega que se viu tratada pelos coleguinhas e pela professora como se tambm fosse surda edeficiente mental; o do menino que sequer precisava fazer as lies de casa pois, "coitadinho", era

    paraplgico; o do aluno que pego "colando" no foi criticado pois, "coitadinho", usava muletas paraandar; o da menina (com problemas motores na face, devido paralisia cerebral, que tinha dificuldadesde deglutio da saliva) que foi isolada num canto pois babava e podia contaminar os colegas; o domenino surdo que foi colocado bem no fundo da classe pois a professora julgou que ele falava alto

    para atrapalhar o andamento da aula ... Eram tantas as histrias denunciadoras de preconceitos que,confesso, fiquei deprimida ao lembr-las, assim em bloco.

    Mas, alegremente, lembrei-me de que sabia, tambm, de histrias que falavam da superao depreconceitos, como a do menino que teve a ajuda dos colegas e da professora para ultrapassar suasdificuldades prticas de escrita, decorrentes de movimentos involuntrios de seus brao; da meninacega que recebia a colaborao sistemtica da classe para a gravao das

    matrias escritas e dos exerccios de lousa; do menino com ambas as pernas amputadas que foi pararna diretoria pois sua lio era a cpia estrita da de seu colega; da professora que se organizou para falarsempre de frente para a classe e assim no privar o aluno surdo de suas explicaes; dos pais de alunosde uma determinada classe que, em mutiro, construram pequenas rampas de madeira em diversas

    partes da escola, facilitando assim o acesso da cadeira de rodas usada por uma das crianas, ..

    Ao lembrar desses fatos e histrias ia, sistematicamente, lembrando-me de coisas que eu mesma tinhavivido. Assim, acabei por escolher fechar este captulo transcrevendo um episdio de minha prpriavida que relatei na dissertao de mestrado Resgatando o passado: deficincia como figura e vidacomo fundo, defendida em 1987 na PUC de So Paulo, a qual pioneiramente trouxe luz, na academia,

    a voz de uma pessoa com deficincia falando por si mesma.

    E com alegria que a compartilho com voc, leitor, uma dcada depois de relatada pela primeira vez, equase cinqenta anos depois de ter sido por mim vivida:

    Caf com leite

    Jardim Paulista, fim dos anos 40. Noites de vero.Como era ento meu cotidiano? Se no estivesse operada, acordar; fazer lio, brincar um

    pouco, almoar, irpara o colgio, voltar, tomar banho, brincar ouvir Nh Totico pelo rdio,ler na cama e dormir:

    Quando chegava o vero a rotina se modificava. Contrapondo-se ao ouvir rdio e ir dormir;as noites quentes traziam as brincadeiras de rua. Que coisa complicada era essa alterao.Quanta ambivalncia! Por um lado, mergulhar na vida l fora, por outro, abrir mo da

    proteo l de dentro: noites de vero traziam brincadeiras de roda, passa-anel, esttua etelefone sem fio. Mas traziam tambm caladinha--minha, leno atrs, queimada, pegador.....

    Nessas eu era caf-com-leite, e era sempre terrvel ser caf-com-leite. No jogo de equipe, ahumilhao de me sentir escolhida por favor (a custo as lgrimas eram engolidas por trs do

    sorriso amarelo). No "salve-se quem puder", a de roar no pegador e no ser pega, de noreceber o leno, de no ser atingida pela bola.Que mal me fazia ser caf-com-Ieite! Aquele faz de conta que mas no , que no mas .Um jogo de mentiras, de cartas marcados, de fingimento,. at talvez bem intencionado.

    Foi a professora de ginstica do colgio que me fez viver uma coisa diferente. estranho mas

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    durante anos me esqueci de seu nome. Hoje me lembro: dona Consuelo.Por lei, eu estava dispensada de suas aulas. Minha atividade esportiva restringia-se aula denatao. permitida e incentivada porque benfica para minha reabilitao.

    Assim, nem o uniforme de ginstica eu precisava ter.Eu me sentava ali por perto e ficava. mais uma vez. observando o mundo acontecer.Isso no demorou muito. Ter parecido uma eternidade? Um dia, ela me chamou para a rodade alunos sentados no cho. Em claro e bom som, props a mim e ao grupo que eu comeassea participar das aulas. -Como? -pergunte aIarmada, com os olhos pregado nos ' colegas.- Muito simples. Voc far o que pode fazer e no far o que no pode. Por exemplo:aprender como tocar a bola com as pontas dos dedos. como dar saques. quais as regras do

    jogo. Ter o prazer de pegar na bola voc ter. Mas no competir num jogo. pois no seriabom nem para o time nem para voc. Ajudar o juiz. aprender a pensar com ele. voc pode e

    far.. E desfiou um rosrio de alternativas que incluamjogos competitivos e atividades individuais de ginstica: "levantar os braos.flexionar acintura d para fazer, ento faz; flexionar os joelhos. saltar, correr no d pra fazer; entono faz." Simples e honesto.

    Eu nunca precisei ser caf-com-leite nas aulas de ginstica e. ainda por cima, ganhei o caloazul bufante e a camiseta de malha!

    Com esta historinha - fragmento de minha vida - despeo-me do leitor, esperando que tanto ela como otexto tenham propiciado momentos de reflexo. E desejando que essa reflexo possa levar a eventuaisquestionamentos sobre o saber e o fazer que adquirem vida e plasticidade no cotidiano do contextoeducacional.

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