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Sobre a geografia da ciência: perspectivas locais e transnacionais nas histórias da
geografia quantitativa brasileira
Mariana Lamego
Professora Adjunta/Departamento de Geografia Humana
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
O texto explora dois exercícios analíticos realizados em 2014 e 2016 tendo como base
pesquisa sobre a geografia quantitativa brasileira. Os dois exercícios compõem o que
poderia se constituir em uma geografia da ciência, uma vez que ancoram o processo de
produção, circulação e recepção do conhecimento ao lugar.
Palavras-chaves: produção, circulação, recepção, conhecimento, geografia
Introdução
O presente artigo tem como objetivo compartilhar dois exercícios analíticos
sobre a produção, circulação e recepção do conhecimento geográfico no Brasil. Os
exercícios, realizados em 2014 e 2016, têm base em material proveniente da
investigação que fiz sobre um polêmico período da geografia brasileira conhecido como
geografia quantitativa que vigorou do final dos anos 60 a meados dos anos 70.
O texto se divide em três seções. Na primeira seção apresento o primeiro
exercício, no qual procurei explicar a conformação de duas versões distintas da
geografia quantitativa brasileira. Nesse exercício, como pretendo mostrar, foram
colocadas em prática ferramentas e categorias de análise que concedem às chamadas
contingências locais chave explicativa acerca da natureza do conhecimento produzido.
Na segunda seção do artigo, exploro o segundo exercício que em certa medida
superou algumas das fragilidades metodológicas do primeiro. Nesse exercício, debrucei-
me sobre o processo de incorporação e tradução no Brasil das ideias quantitativas
provenientes dos centros de cálculo (Latour, 2000) da geografia de língua inglesa. Nessa
investigação que considera a produção do conhecimento como uma forma de
comunicação (Secord, 2004), analisei a recepção, pelos geógrafos brasileiros, do livro
Explanation in Geography de David Harvey (1969), considerado texto fundador da
geografia quantitativa angloamericana.
Na última seção, teço breves considerações acerca da importância de se
firmarem diálogos com pesquisadores de outros campos afeitos aos estudos da ciência,
evidenciando pontes já exploradas entre historiadores da geografia e escopos avalizados
como não tradicionais e, talvez por isso mesmo, extremamente estimulantes, de estudos
contemporâneos sobre as histórias da ciência marcados por abordagens locais e
transnacionais.
Antes, porém de seguir a exposição, cumpre apresentar alguma parcela de
ressalvas no que tange a geografia quantitativa brasileira e suas histórias.
Contar, ou melhor, construir história é uma tarefa árdua e, felizmente,
irremediavelmente fadada a contestações. O desafio que se impõe àquele que deseja
historicizar qualquer ente que o valha, já começa no começo. Aliás, onde começa o
começo? Melhor, de que onde falamos? O onde na história ou o onde do historiador?
Para dor de cabeça daqueles que pretendem contar qualquer história, os dois. Tanto sua
arbirtária decisão pela “origem” do ente a ser historicizado, quanto sua situação e
posição, enquanto ser a historicizar, são elementos constitutivos do fazer história.
Por isso mesmo, e ciente dos alertas de Latour (2000) e Haraway (1991),
ofertarei, de forma breve e assaz simplificada, alguns aspectos sobre a geografia
quantitativa brasileira a partir de sua irrupção no Brasil em fins dos anos 60, e o faço
situando-me e posicionando-me como uma pesquisadora brasileira de história da
geografia formada nos bancos de instituições públicas na virada do século XXI. Tal
relato, ressalto ainda, presta-se tão somente à função de orientar o leitor na compreensão
dos exercícios que realizei e que são, esses sim, o objeto do presente texto.
Outrossim, cabe ainda precaver o leitor o fato de que a versão brasileira da
revolução quantitativa possuiu uma qualidade bastante peculiar. A geografia
quantitativa brasileira é maldita. E sua maldição, ao que parece, é não ter história. Até
os dias de hoje, passados mais de cinquenta anos da adoção de métodos matemáticos
sofisticados reunidos a perspectivas teóricas implicadas ao neopositivismo no fazer da
geografia no Brasil, não se viram maiores esforços no sentido de introduzir reflexões
mais dedicadas sobre esse período em livros ou manuais de formação, muito embora se
encontre sobre o assunto competentes investogações (Bomfim, 2007; Reis Jr. 2007 e
2003; Lamego, 2010).
Por isso mesmo, na história “oficial” da geografia, ensinada nos cursos de
graduação, sobretudo no âmbito da disciplina de História do Pensamento Geográfico, a
prática de “pular” esse periodo, suprimindo dez anos de uma rica produção geográfica
nacional, é corrente. A justificativa usual para essa “licença histórica” é a sobreposição
no tempo entre a prática quantitativa na geografia brasileira e a primeira década da
famigerada ditadura militar no país. Essa associação espúria é motivo suficiente para
deduzirmos que boa coisa não era a geografia quantitativa, logo, não faz muito sentido
saber sobre suas histórias, e que se passe logo ao próximo capítulo.
Amaldiçoada e relegada a um plano inferior no panteão do fazer geográfico no
Brasil, ficou a geografia quantitativa presa a uma caricatura tão inquestionável quanto
contrafeita. Em pesquisa de doutoramento sobre a geografia quantitativa – apesar da
desconfiança geral de contemporâneos sobre possíveis desvios políticos (ou morais)
meus – pude encontrar mais continuidades que propriamente descontinuidades, em
matéria de práticas e temas, entre a geografia quantitativa e demais modalidades que a
precederam ou mesmo sucederam na narrativa oficial da história da geografia no Brasil.
Engajada em renovada historiografia da disciplina pude identificar a origem e traçar os
caminhos de construção de uma poderosa caricatura da geografia quantiativa brasileira.
Caricatura conectada de forma patente à maldição, por suposto. E, muito embora, não
seja essa a questão a ser explorada aqui, é preciso que se retenha tal aspecto em tela, se
se vai refletir sobre historiografias outras. Ressalvas postas, segue-se, enfim, breve
narrativa.
Em retrospecto, podemos dizer que a geografia quantitativa no Brasil é
considerada extinta desde os últimos anos da década de 70. Teve seu apogeu durante o
início dos anos 70 – muito embora, ressalte-se, nunca tenha experimentado algo como
uma posição hegemônica na geografia acadêmica nacional. E pode ter começado por
volta de fins dos anos 601. A geografia da geografia quantitativa brasileira tem dois
epicentros: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Rio de Janeiro, e
o Departamento de Geografia da então Faculdade de Filosofia e Letras de Rio Claro,
atual Universidade Estadual Paulista, campus Rio Claro.
Esses dois lugares, embora geograficamente próximos, guardam distância no que
tange papel científico. IBGE é uma agência do governo, criada em 1939, e Rio Claro é
uma universidade estudal, fundada em 1958. No IBGE atuam geógrafos, em Rio Claro
se formam geógrafos, mestres e doutores. Tais componentes relacionadas a suas
situações geográficas distintas reunidas a tantas outras – de natureza epistêmica,
cultural, política, social e todas juntas – compõem rico mosaico para explicar diferenças
entre as práticas dos geógrafos do IBGE daquelas dos geógrafos de Rio Claro. Práticas
relativas não apenas à natureza da adoção dos métodos quantitativos e das teorias
subjacentes, como também à produção do conhecimento, o que me permite sustentar a
coexistência de duas traduções de geografia quantitativa no Brasil.
E foi na tentativa de qualificar as diferenças entre a geografia quantitativa
ibgeana e a geografia quantitativa rio-clarense que realizei o primeiro exercício que
abordo a seguir e no qual refleti sobre a conexão entre o conhecimento e o lugar onde é
produzido.
Primeiro exercício: genius loci, centro de cálculo e heterotopia na geografia
quantitatiba brasileira
1 Tal periodização foi por mim proposta (Lamego, 2010), estabelecidos em livre-arbítrio os seguintes marcos: extinção (ou mais apropriado seria expurgo) durante o Encontro Nacional de Geógrafos, organizado pela Associação de Geógrafos Brasileiros, em Fortaleza, 1978; o apogeu em 1971, quando se reune no Brasil a Comissão de Métodos Quantitativos da União Geográfica Internacional; e ínicio em 1969 quando as páginas da Revista Brasileira de Geografia, chancelada pelo IBGE, abre suas páginas para a publicação de pesquisas de geógrafos utilizando métodos quantitativos, e também ano em que têm início as reuniões do Grupo de Rio Claro (composto por docentes e discentes do curso de geografia interessados pela dita renovação teórica e metodológica da disciplina).
Esse primeiro exercício2 teve como base um processo de renovação na
historiografia da disciplina, a partir dos anos 90, principalmente na geografia de língua
inglesa, num período que ficou conhecido como virada histórica. Uma das
características da virada é a aproximação dos geógrafos a perspectivas mais afeitas ao
universo dos estudos sobre a ciência e que desequilibram análises antes fundamentadas
nas tradicionais abordagens da ciência (Lamego, 2015). Em tais abordagens
tradicionais, o lugar onde o conhecimento é produzido não importa. Nesse caso, as
explicações para o desenvolvimento intelectual e a construção do conhecimento
desconsideram que a ciência constitui uma prática epistêmica local e defendem um
suposto caráter essencial do conhecimento científico que toma forma na história, nunca
no espaço.
Um intenso debate sobre o papel do lugar na produção da ciência – expresso em
questões como produção, circulação e recepção do conhecimento, embodied knowledge,
ou ainda o argumento de uma ‘universalidade’ construída localmente – ganha terreno na
geografia em trabalhos como dos geógrafos David Livingstone (2003) e Trevor Barnes
(2004a). Ambos autores desenvolveram pesquisas sobre modos de se fazer geografia
que articulados aos lugares de produção. Livingstone (2003) chega a propor um novo
domínio de estudos da ciência, que seria a geografia da ciência, partindo da premissa
que a ciência ‘takes place’. Seu argumento posiciona o lugar no centro dos modos
científicos de conhecimento tornando suspeita a ideia da existência de alguma coisa
unificada que se chama ciência (Lamego, 2015).
Trevor Barnes também acompanha as reivindicações de Livingstone e também
adota algumas teses dos então recentes e renovados estudos da ciência. No artigo
Placing Ideas: genius loci, heterotopia and geography’s quantitative revolution, Barnes
(2004b) a irrupção do movimento quantitativista na geografia posicionando os
contextos situacionais dos departamentos de geografia britânico e americanos que se
destacaram na adoção das técnicas quantitativas no centro de sua análise.
2 O exercício foi realizado para trabalho apresentado durante o simpósio da Comissão de História da Geografia da União Geográfica Internacional, realizado na cidade do Rio de Janeiro em dezembro de 2014, e transformado em artigo publicado na Revista Terra Brasilis (Lamego, 2015).
No exercício que realizei, com base em Barnes (2004b) usei dois elementos
ancorados ao lugar que funcionaram como importantes chaves de explicação para o
fenômeno das duas traduções da geografia quantitativa brasileira. O primeiro elemento
seria a heterotopia, noção que Barnes toma de empréstimo de Foucault, e que consistiria
em uma condição que certos lugares possuem de não se ajustarem a normas ou padrões
circundantes, sendo, consequentemente espaços propícios a rupturas intelectuais. São
espaços onde se justapõem elementos materiais, práticas, textos e ideias que nunca
haviam sido reunidos e que possibilitariam, consequentemente, a criação de saltos
inovativos.
A pesquisa realizada sobre o Grupo de Rio Claro apontou para certo isolamento
geográfico experimentado desde o início da criação do curso de geografia no
Departamento de Filosofia e Letras de Rio Claro, em 1958, em relação ao que seria seu
“universo circundante” formado pela Universidade de São Paulo (USP) e pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em Rio Claro, nunca se praticou uma geografia de matriz francesa, tal qual se
observava nos departamentos de geografia da USP e da UFRJ, existindo, portanto,
desde o início certa disposição criativa em termos de método. Essa condição
heterotópica de Rio Claro foi responsável pela sua autonomia em relação ao currículo
da graduação, seguindo uma linha até então não existente no Brasil. A notícia do
desenvolvimento novos métodos, teorias e práticas na geografia de língua inglesa, até
então de influência tímida, ou quase nula, nos cursos de formação das grandes
universidades, foi acolhida pelos rioclarenses que puderam experimentar a justaposição
de temas e métodos jamais praticados antes no Brasil. A geografia quantitativa
oportuniza aos geógrafos de Rio Claro um caminho extremamente oportuno para o
rompimento com velhas práticas.
A condição de heterotopia do Grupo de Rio Claro contrasta com a condição do
IBGE e, para abordá-la, retomo o segundo elemento apontado por Barnes (2004b) que
apliquei nesse primeiro exercício. A partir de Latour, em Science and Action de 1987,
Barnes apresenta a noção de centro de cálculo, que tal como a noção de heteropia,
também ancora o lugar à produção do conhecimento. Os centros de cálculo
representariam lugares que desenvolvem estratégias e métodos de coleta, acúmulo,
organização e disseminação de conhecimentos de forma sistêmica e organizada
(Lamego, 2015). Funcionam como nós chaves de redes de alianças mais amplas
extensas geograficamente e que permitem ações à distância, estando sempre em posição
relacional numa rede.
Ao investigar a geografia quantitativa produzida no IBGE, percebi o quanto essa
agência se comportou como um centro de cálculo no desenvolvimento e apuração das
técnicas quantitativas na geografia brasileira. Como dito anteriormente, o IBGE não é
uma escola de formação de geógrafos, muito embora tenha jogado papel importante na
formação dos geógrafos brasileiros, especialmente em momento no qual as instituições
acadêmicas se firmavam como espaço de produção do conhecimento. Sendo um órgão
vinculado, desde sua origem, à demanda de governos e suas políticas nacionais de
planejamento e ação no território, no IBGE, a chegada dos métodos e teorias
quantitativistas nas pesquisas realizadas por seus geógrafos resulta da própria condição
de centro de cálculo.
Se durante os anos 30, 40 e 50, verdadeiras missões de geógrafos franceses, com
suas bagagens repletas de livros, chegaram ao IBGE e foram responsáveis pela
implementação e consolidação de investigações científicas e pela construção do
conhecimento geográfico no Brasil, após a Segunda Guerra Mundial esse circuito de
conexão e interação se tranferiu da França para os Estados Unidos e Reino Unido. A
partir daquele período, o IBGE passou a receber geógrafos americanos e britânicos
interessados em estudos de desenvolvimento na América do Sul. A condição de centro
de cálculo do IBGE foi mantida, mas agora a influência era da geografia praticada,
naquele momento, na geografia de língua inglesa. As visitas frequentes de Brian Berry,
John Cole e John Friedman possibilitaram a criação de cursos de técnicas quantitativas
para os geógrafos do IBGE. Um cenário extremamente favorável para o engajamento
no quantitativismo estava então configurado (Lamego, 2015).
Segundo exercício: conhecimento em trânsito e tradução na geografia quantitativa
brasileira
Este exercício3 vai além do primeiro, que considera o peso das contingências
locais na modelagem do conhecimento, e tem sua ênfase voltada para as conexões e
interações com outros lugares. O segundo exercício supera algumas fragilidades do
primeiro ao atentar para o risco de uma ênfase exagerada no papel explicativo das
contingências locais em investigações situadas de conhecmento. Tal risco pode ser
evitado ao se considerer o papel que joga o processo de movimento, tradução e
trasmissão na modelagem do conhecimento.
Mais uma vez, pontes se estabelecem com tendências recentes dos estudos da
ciência. Em 2004, o historiador e filósofo da ciência britânico Jim Secord aponta em seu
fundamental texto Knowledge in Transit que, muito embora em estudos sobre o
conhecimento científico tenha havido antes um foco maior nas origens e nos produtores,
os historiadores da ciência atualmente conduziram sua atenção em direção ao papel
jogado pelos leitores na construção dos sentidos dos textos científicos.
Os estudos sobre recepção do conhecimento científico se voltam para o estudo
das práticas de leitura, que são elementos fundamentais constituintes de duas dimensões
do conhecimento, a saber, o fazer-conhecimento (knowledge-making) e o comunicar-
conhecimento (knowledge-communicating). Estudar as práticas de leitura pressupõe
entendê-las como um exercício eminentemente hermenêutico sempre corporificada em
atos, espaços e hábitos.
Aprofundando-se nessa questão, as chamadas geografias da leitura – rótulo
originalmente criado por Secord – podem ofertar uma renovada perspectiva acerca das
maneiras que textos são lidos e interpretados em e de acordo a lugares diferentes. A
questão não é tanto como os textos são lidos, mas onde são lidos, o que revela uma
hermenêutica espacializada da comunicação científica (Livinsgtone, 2005).
3 O exercício foi realizado para trabalho apresentado durante o encontro anual da American Association of Geographers, realizado em São Francisco, Califórnia em maio de 2016.
Considerando a interpretação como sempre incorporada nos logais e
necessariamente coletiva, o ato de ler um texto está, por sua vez, localizado dentro de
uma comunidade interpretativa, na formulação de Stanley Fish (1976) no clássico e
sempre atual Is ther a text in the class?. A comunidade interpretativa compartilha
experiências, valores, referências culturais, além de pressupostos fundacionais.
Diversos estudos sobre a recepeção de textos científicos tem direcionado suas
atenções às respostas locais e individuais de livros. Como as ideias de um texto são
recebidas depende da orientação individual do leitor e também se seu contexto
intelectual mais amplo. Assim, resenhas de textos expressam muito bem essa questão. A
resenha é como uma testeminha de um leitor individual que está embebido no contexto
de práticas de leituras locais.
Por isso, minha questão central formulada durante esse segundo exercício
interroga em que medida uma resenha crítica de um livro é capaz de criar e modelar
uma comunidade interpretativa completamente nova, fornecendo novos elementos para
a composição de novas narrativas sobre a história da geografia brasileira.
O exercício procurou sublinhar algumas particularidades conectadas ao lugar de
recepção do livro Explanation in Geography, de David Harvey, publicado em 1969. Ao
fazer isso, a intenção era também a de caracterizar a comunidade interpretativa que
recebeu o livro de Harvey no Brasil. O cenário social e intelectual que Explanation
encontrou entre geógrafos brasileiros foi delineado, enfocando, principalmente, alguns
componentes sociais cruciais, fatores locacionais e nas redes de pesquisadores que
reunidos podem explicar a emergência de uma comunidade interpretativa
completamente nova.
Além disso, realizei uma análise mais detida sobre a resenha de Explanation
assinada por Sperdião Faissol (1972), um dos personagens centrais no processo de
desenvolvimento da geografia quantitativa brasileira, geógrafo do IBGE à época. Para
contextualizar a experiência de leitura de Faissol, foi fundamental conhecer um pouco
mais sobre sua posição dentro da comunidade interpretativa a qual pertencia. Isso
porque o autor de uma resenha crítica se dirige a leitores que compartilham com ele
mesmas preocupações acadêmicas, são familiares a certos debates e desejam saber o
valor do texto revisado no que tange seu próprio contexto disciplinar.
Faissol pode ser considerado um verdadeiro mentor e um dos maiores
promotores da geografia quantitativa no Brasil, tendo sido um usuário entusiasta dos
métodos quantitativos em suas pesquisas sobre rede urbana brasileira. Durante os anos
60 até meados dos anos 70, Faissol gozou de alto status no quadro profissional do IBGE
e foi responsável pela formação de um um grupo de pesquisas intitulado Grupo de
Áreas Metropolitanas (GAM), cujos componentes foram por ele selecionados com base,
principlamente, em suas habilidades matemáticas. O GAM desenvolveu, durante sua
atuação, as principais pesquisas do IBGE usando métodos quantitativos.
Faissol ocupou também o lugar de editor do principal periódico do IBGE, a
Revista Brasileira de Geografia (RBG). E foi nas páginas desse periódico que Faissol
publicou a maior parte de seus textos, com base em suas pesquisas, e também a resenha
de Explanation.
De acordo com a política editorial da RBG, as resenhas geralmente não
excediam a marca de cinco páginas. Tratavam-se de breves comentários que cumpriam
o papel de apresentar à comunidade geográfica brasileira, livros e textos nacionais e
estrangeiros recém publicados. Apesar disso, a resenha de Faissol sobre o livro de
Harvey não segue o padrão estabelecido. Seu texto tem mais de 40 páginas e está
dividido em 4 seções. Considerando sua forma e conteúdo, a resenha se aproxima mais
de um texto de artigo que de um texto com comentários sobre um livro. E esse aspecto
não pode ser compreendido como uma casualidade.
Como o próprio Faissol aponta no início do texto, a dificuldade de acesso ao
livro de Harvey no Brasil o forçou a produzir uma versão extensa da resenha. Essa foi a
justificativa apresentada por Faissol, mas é possível inferir outros motivos que
encontram fundamento na ideia das práticas de leitura da comunidade interpretativa que
se formava naquele momento.
Boa parte do conhecimento da geografia quantitativa chegou ao IBGE na forma
de manuais técnicos utilizados nos cursos ofertados pelos geógrafos visitantes que
passaram temporadas entre geógrafos brasileiros. As práticas de leitura podem ser
caracterizadas por rotinas de leituras em grupo e também exercícios de natureza prática.
O acesso e o contato mais aprofundado com obras teóricas de maior envergadura eram
restritos e estavam condicionados a iniciativas pessoais dos geógrafos do IBGE.
Considerando essa contingência e também o papel precursor que Faissol assume
para si mesmo, o geógrafo brasileiro encara uma tarefa crucial de apresentar a novidade
quantitativa, não apenas pelas prátocas já conhecidas pela comunidade, mas em uma
forma filosoficamente e metodologicamente mais sofisticada. A escrita da resenha do
livro de Harvey, considerado um dos livros mais eruditos sobre geografia quantitativa,
se torna então meio para consolidação e, consequente, sobrevivência de uma
comunidade interpretativa inteiramente nova na geografia brasileira.
Brevíssimas considerações sobre as pontes entre a historiografia da geografia e os
estudos da ciência
Os exercícios aqui expostos só puderam ser realizados a partir da incorporação
de novas tendências historiográficas que estudos da ciência vem ofertando aos
pesquisadores desde, pelo menos, o final dos anos 90.
Os dois exercícios complementares são influenciados por tais abordagens sendo
também representativos do que poderia constituir uma perspectiva metacientífica da
geografia uma vez que ambos se voltam ao papel jogado pelos lugares no processo de
construção do conhecimento.
Além disso, ambos apontam caminhos alternativos para a historiografia da
geografia, fugindo das velhas e desgastadas narrativas canônicas, essencialistas, lineares
e/ou evolutivas no retratar dos complexos e, muitas vezes controversos, dramas
disciplinares.
O que poderia se constituir em uma geografia da ciência, com ênfase voltada
tanto ao potencial explicativo do lugar na produção do conhecimento, quanto ao
potencial da perspectiva do conhecimento em trânsito, possibilita a constituição de uma
historiografia crítica da geografia. É preciso que as atenções se voltem ao papel
fundamental do processo de movimento, tradução e transmissão do conhecimento que
atravessa fronteiras espaciais, temporais e disciplinares. Para aqueles interessados nas
histórias da geografia, resta ainda, felizmente, muito a ser feito.
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