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Sobre a falência das reformas morais de Augusto Perturbada constantemente pelas guerras civis e pelo terror sinistro das proscrições, Roma, antes de Augusto, vivia uma situação deveras embaraçosa (i). As instituições políticas com que julgara realizar a sua felicidade, quando destronou o último dos Tarquinios, não lhe tinham granjeado a prosperidade que ambicionava. Os partidos digladiavam-se ferozmente, disputando com vee- mência as funções públicas, em especial a suprema das magis- traturas o consulado. Como consequência dessa luta, desleal de parte a parte, surgiu a conspiração de Catilina, ainda hoje insuficientemente esclarecida (2). Mas, uma vez derrotado o conspirador — por força, em grande parte, do êxito extraordi- nário das Catilinárias —, o velho sistema continuou, ainda assim, a cxtinguir-se aos poucos, inglória e tristemente. César dominou Roma e, extinto o triunvirato pela derrota de Pompeio e o desaparecimento de Crasso, antepôs a firmeza do poder, uno e coeso, às fúrias dos demagogos. A cidade, liberta das desordens tumultuosas e sangrentas dos fins da época republicana, fruía agora os benefícios da paz; período efémero: reacesa logo a efervescência dos partidários do sistema antigo. Bruto assassinou o ditador c Roma engol- fou-se de novo no caos da querra civil. (1) A situação tornava-se insustentável, a ponto de Horácio encarar a possibilidade de uma emigração em massa para terras longínquas, onde se dizia perdurar a idade de ouro (cf. epodo xvi). (2) As informações que possuímos são parciais: Cícero 6 o fogoso acusador, e Salústto esforça-se por defender César da suspeição de com- participante na conjura. Todos procuram, deste modo, apresentar o cons- pirador como 0 que de mais criminoso produziu a Terra. Cícero, todavia, foi mais compreensivo no Pro Caclio, 12-1'J.

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Sobre a falência das reformas morais de Augusto

Perturbada constantemente pelas guerras civis e pelo terror sinistro das proscrições, Roma, antes de Augusto, vivia uma situação deveras embaraçosa (i). As instituições políticas com que julgara realizar a sua felicidade, quando destronou o último dos Tarquinios, não lhe tinham granjeado a prosperidade que ambicionava.

Os partidos digladiavam-se ferozmente, disputando com vee­mência as funções públicas, em especial a suprema das magis­traturas — o consulado. Como consequência dessa luta, desleal de parte a parte, surgiu a conspiração de Catilina, ainda hoje insuficientemente esclarecida (2). Mas, uma vez derrotado o conspirador — por força, em grande parte, do êxito extraordi­nário das Catilinárias —, o velho sistema continuou, ainda assim, a cxtinguir-se aos poucos, inglória e tristemente. César dominou Roma e, extinto o triunvirato pela derrota de Pompeio e o desaparecimento de Crasso, antepôs a firmeza do poder, uno e coeso, às fúrias dos demagogos.

A cidade, liberta das desordens tumultuosas e sangrentas dos fins da época republicana, fruía agora os benefícios da paz; período efémero: reacesa logo a efervescência dos partidários do sistema antigo. Bruto assassinou o ditador c Roma engol-fou-se de novo no caos da querra civil.

(1) A situação tornava-se insustentável, a ponto de Horácio encarar a possibilidade de uma emigração em massa para terras longínquas, onde se dizia perdurar a idade de ouro (cf. epodo xvi).

(2) As informações que possuímos são parciais: Cícero 6 o fogoso acusador, e Salústto esforça-se por defender César da suspeição de com-participante na conjura. Todos procuram, deste modo, apresentar o cons­pirador como 0 que de mais criminoso produziu a Terra. Cícero, todavia, foi mais compreensivo no Pro Caclio, 12-1'J.

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(Cícero, proferindo as Filipicas contra Marco Antonio, ainda cuidou voltar aos tempos do triunfo; mas pagou com a morte a sua audácia, quando, após novo triunvirato, se decretaram, como sempre, as proscrições lalais. A luta civil continuou até à derrota de António na batalha de Accio. Octávio ficou sozinho em campo e, amoldando o seu puder pessoal aos quadros preestabelecidos, concentrou nas mãos todas as magistraturas.

A nova era de paz fez esquecer os sofrimentos do pas­sado (i). Octávio Augusto foi calorosamente vitoriado pelo povo romano. A parte as homenagens interesseiras dos adu­ladores, compreende-se, atendendo à magnitude da obra reali­zada, a sinceridade de muitas aclamações: estadista clarividente, dotado de espírito prático, o imperador buscou realizar, além da paz interna e do alargamento das fronteiras, o elevamento moral do povo a cujos destinos presidia.

K assim, pensou numa propaganda consciente e pertinaz das virtudes antigas, que haviam caracterizado os fundadores da nacionalidade, aqueles mesmos que, na simplicidade de um viver campesino e agrícola, rudes e «intonsos», como diz Horá­cio de Camilo e de Curto (2), sentiram energias já então des­conhecidas. Era preciso lazer ressuscitar o amor da pátria, e à lembrança carinhosa dos grandes íeitos aliar o conhecimento das suas tradições e história, instituições sacras e profanas. Urgia também, e esta era uma das principais tarefas, incutir o amor das velhas práticas religiosas, táo esquecidas já. e o entusiasmo pela grandeza do nome romano.

(irande renovação espiritual a que Augusto pretendia ! Protector assíduo e desvelado das letras, directamente ou por intermédio de Mecenas, procurou a colaboração dos poetas, sobre os quais exercia uma atracção espontânea e amável. Formou-se à sua volta um círculo literário, e daí partiu a rea­lização, na esfera da arte, do pensamento imperial.

Era mais fácil, contudo, restabelecer o amor pela grandeza

(1) Mas não pode esquecei-se a arbitrariedade e a crueldade de que Augusto deu muitas vezes provas: cf. Suetùniu, Aug,% xv e xxvn. E, pelo que respeita á clemência, cl. o cap. Li,

(2) Odes, I, i i .

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do nome romano — sentimento mais ao alcance do povo, que contemplava o engrandecimento progressivo do Império, com a derrota dos Bárbaros e a sua pressurosa submissão—, do que pretender sustar o descalabro moral da sociedade romana. As veleidades de reforma depararam, neste particular, com dificul­dades quase insuperáveis. Pretender restaurar os primitivos costumes, a moral dos antepassados, era louvável, sem dúvida, mas as circunstâncias não favoreciam tal plano (i).

A natureza da velha religião romana era já um óbice impor­tante. As relações com os deuses não enraizavam numa atitude filial : revestiam-se, antes, de um aspecto pragmático, contratual, demandista. A fumarada dos sacrifícios cruentos entenebrecia a consciência do homem, simples joguete do destino. K os deuses pagãos, competindo em sensualismo e protervia com o mais desonesto dos homens, não podiam inspirar respeito aos mortais. Ao contrário do que afirma Frederico Plessis, do conjunto das antigas religiões pagas não é fácil deduzir uma moral ou uma regra, e prova-o bem a falência das pretensões reformadoras de Augusto neste campo {%).

A religião paga desagradava aos melhores espíritos, que só se aproveitavam dos mitos para embelezamento das obras lite­rárias. Alguns poetas haviam mesmo tentado introduzir em

(i) Augusto encontrou persistente oposição ás suas leis moralizadoras, que a consulta popular não sancionou na forma primitiva (Suet., Aug., xxxjv). O imperador continuou, porém, a pugnar pelo aumento da natalidade, a fomentar os casamentos e a combater o vicio, por uma hábil politica de atenuações e contemporizações. Cf. Leão Homo, Auguste, Payot, Paris, Kj36, púgs. 177 e segs. As principais leis de Augusto neste campo foram: a lex lulia de adultéras et de pudicitia, a lex lulia sumptuária e a lex lulia de maritandis ordinibus,

(i) \'. certo que algumas raras lendas nos permitem falar de uma depuração de elementos míticos. Mas o caso é verdadeiramente excep­cional: assim, numa tenda como a de Hipólito, podemos ver uma apolo­gia da castidade. Felisberto Martins, .1 legenda de Hipólito e a tragedia clássica, in Brotaria, xxwm. fase. t», 1944. púgs. 634-646. — Em geral, porém, o sentimento de justiça dos antigos, permitindo a justificação do todas as paixões, dava margem a atitudes de soberana indiferença perante as maio­res atrocidades: Séneca justificou o matríeídio de Nero, e Xenofonte, o constante sacrificador, só vê pelo lado estético o terrível sacrifício das mulheres dos Táocos.

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2gô FELISBERTO MARTINS

Roma a concepção racionalista do Olimpo de Evémero, assim Enio, ou, como Lucrécio, adaptar ao mundo romano as teorias filosóficas de Epicuro. O clima heróico dificilmente se reen­contrava, em face da contínua solicitação dos epicurismos do ambiente, do constante chamamento ao gozo da vida.

Além disso, a doutrinação moral requer, como base de uma sólida convicção, a força do exemplo. De contrário, tudo íica num verbalismo sem sinceridade, que pode atordoar, mas que não atinge o íntimo das consciências. Por muito tradicionalis­tas e formalistas que nesse aspecto fossem os Romanos, depois da evolução sofrida no campo das ideias, nem por isso deixa­riam de raciocinar assim.

Não faltavam na poesia grega modelos e incitamentos aos poetas latinos para corresponderem ao apelo de Augusto (i). E certo que não possuíam grandes disposições para a poesia heróica, apesar de se haverem formado mentalmente com a lição de Homero. Temperamentos fundamentalmente líricos, sentiam-se mais à vontade dentro da poesia leve e simples, em que se cantam sentimentos pessoais, sem a solenidade faustosa da epopeia. A função impessoal de poetas da cidade não lhes sorria. Mas, apesar de se escusarem a princípio, as belas obras vieram, quando o entusiasmo as inspirou.

Contudo, no aspecto que nos interessa, esses poetas não viviam os ideais que celebravam (i). Horácio, um deslrutador sibarítico do momento que passa, despreza e odeia o profanam uulgus; celibatário, quando se encareciam as vantagens sociais do casamento, só lhe importava a paz, a sua arte e o prazer : a par das odes cívicas campeiam as epicuristas... Propércio, absorvido pelo amor de Cintia — embora enalteça nobres e aus­teras figuras de mulher, como Cornélia e Elia Gala—, vè-se bem o lugar que no seu coração ocupa o prazer ilegítimo. O mesmo podemos dizer de Tibuio (3) e de Ovídio, o tcoriza-dor da imoralidade, também poeta cívico nos Fastos.

(i) V. ver a vasta florescência da poesia cisTíca na Grécia, desde Calino, Tirteu, Sólon, a Simónides tie Geo, Teúgnis e Píndaro.

(2) A excepção, talvez, de Virgílio. (3) Este pertencia ao circulo de Messala : a sua colaboração na

política de Augusto será, portanto, indirecta e talvez quase involuntária.

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SOBRE AS REFORMAS MORAIS DF. AUGUSTO 207

Mecenas era um gozador. E Augusto, o reformador e defensor dos bons costumes? O seu teor de vida não condizia com a austeridade que recomendava aos concidadãos. Pondo de lado os vícios que teriam manchado a sua juventude, sabe-se que roubou Lívia ao marido, em circunstâncias particularmente censuráveis pelo direito pagão. Não tinham conto as imorali­dades praticadas, sem respeito por donzelas nem matronas (i), por vezes até com o consentimento e de iniciativa da própria Lívia (2). A lista das mulheres desviadas do caminho da honestidade o imperador teria mesmo juntado Terència, a mulher do seu amigo Mecenas (3).

Km presença de tais exemplos, não e de admirar, portanto, a falência da reforma dos costumes empreendida por Augusto. Não encontrava ambiente propício na sociedade romana ; os princípios em que se baseava — a restauração, na primitiva pureza, da velha religião latina — não eram susceptíveis de a enformar convenientemente, e os seus propugnadores e defen­sores contradizian>na abertamente na prática.

A transformação dos costumes viria mais tarde, através do sangue derramado, em sinceridade e generosidade, pelos ver­dadeiros instauradores de um mundo novo, pelas vítimas, aliás, do nunien imperatontm, — o culto imperial fundado por Augusto, ou correspondente, pelo menos, às suas mais íntimas aspirações.

FELISBERTO MARTINS

(1) Cf. Suet., Aug., LXVIII-I.XX.— Marco António, quanJo ainda se encontravam cm boas relações, escreveu a Augusto: «Quid te mutauit? Quod reginam ineo? Yxor mea est. Nunc coepi an abhinc annos nouem? Tu deinde solam Drusillam inis : lia ualcas, uti tu, bane epistulam cum leges, non inieris Tertullam aut Terentillarn aut Rulillam aut Saluiam Titiseniam aut otnnes. An refert, ubi et in qua arrigas?» {Li., ibid., í.xix.)

(2) Suet., Aug , 1 xxi. (3) Os antigos explicam por este facto, juntamente com motivos de

saúde, o afastamento relativo do Mecenas nos últimos tempos da sua vida (Homo, Auguste, págs. 104-105). Este. contudo, não deixou de ter pala­vras de simpatia para com Augusto, no testamento, ao reeomendar-lhe de novo Horácio: Ilor.iti Flacci} ut met, e&to manor.