SL MAIO 2007 FIM - Minas Gerais · Bataille, como a parte malditaque se vinga da exclusão...

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HOMENAGEM A BAX 80 ANOS + TRIBUTO A JEAN BAUDRILLARD + MÁRCIO COELHO OUVINDO LUIZ TATIT + FUROR NA ÍRIS MARCUS NASCIMENTO + POEMAS CARLOS FELIPE MOISÉS + RODRIGO GARCIA LOPES. BELO HORIZONTE, MAIO DE 2007, Nº. 1301 SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS

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HOMENAGEM A BAX 80ANOS + TRIBUTO A JEANBAUDRILLARD + MÁRCIOCOELHOOUVINDO LUIZ TATIT+ FUROR NA ÍRIS MARCUSNASCIMENTO + POEMASCARLOS FELIPE MOISÉS +RODRIGO GARCIA LOPES.

BELO HORIZONTE, MAIO DE 2007, Nº. 1301 SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS

Impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais.

Suplemento Literário de Minas GeraisAv. João Pinheiro, 342 - Anexo30130-180 Belo Horizonte MGTel/fax: 31 [email protected]

CAPA: PETRÔNIO BAX, 2007.

Os desenhos da capa e das páginas 3, 7, 12, 13, 14 e 20foram feitos por Petrônio Bax especialmente para esta edição.

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GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS AÉCIO NEVES DA CUNHASECRETÁRIA DE ESTADO DE CULTURA ELEONORA SANTA ROSA SECRETÁRIOADJUNTO MARCELO BRAGA DE FREITAS SUPERINTENDENTE DO SUPLEMENTOLITERÁRIO DE MINAS GERAIS CAMILA DINIZ FERREIRA ASSESSOR EDITORIALCLÁUDIO NUNES DE MORAIS PROJETO GRÁFICO E DIR. DE ARTE MÁRCIA LARICACONSELHO EDITORIAL ÂNGELA LAGO + CARLOS BRANDÃO + EDUARDO DE JESUS+ MELÂNIA SILVA DE AGUIAR + RONALD POLITO EQUIPE DE APOIO ANA LÚCIAGAMA + ELIZABETH NEVES + IONE RINCO DE FARIA + WESLEY SILVA QUEIROS +ESTAGIÁRIOS CLARA MASSOTE + MIMA CARFER JORNALISTA RESPONSÁVELKÁTIA MARIA MÁSSIMO {REG. PROF. MTB 3196/MG}. TEXTOS ASSINADOS SÃO DERESPONSABILIDADE DOS AUTORES. AGRADECIMENTOS: IMPRENSA OFICIAL/FRANCISCO PEDALINO COSTA DIRETOR GERAL, J. PERSICHINI CUNHA DIRETORDE TECNOLOGIA GRÁFICA + LIVRARIA E CAFÉ QUIXOTE.

“Porque a Crítica elevada é na realidade aexteriorização da alma de alguém! Ela fascinamais que a história pois que não se ocupasenão de si própria. É mais deliciosa que afilosofia, porque o seu assunto é concreto enão abstrato, real e não vago. É a única fórmu-la civilizada da autobiografia...” Oscar Wilde,A crítica e a arte “É preciso trabalhar, se nãopor gosto, pelo menos por desespero, já que,olhando bem, trabalhar é menos entedianteque se divertir.” Baudelaire, Mon coeur mis ànu “A literatura, deusa ciumenta, não admiteoutra lealdade que não a ela mesma.” CabreraInfante, Mea CubaIn: Motta, Leda Tenório da. Sobre a crítica literária brasileira no último meio século. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

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OHOMEM

DOJAPAO

MANOEL HYGINO DOS SANTOS

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Minas são várias. Incrustada no territóriobrasileiro, longe do oceano, tem mar: Mar de Espanha. Embora de origem não suficientemente esclarecida, é da tradiçãolocal que o topônimo surgiu da exclamação deum dos primeiros povoadores, de nacionalidadeespanhola, que, assistindo ao espetáculo daconfluência dos rios Paraibuna e Piabanha,numa grande cheia, comentou: “Parece mar...um mar de Espanha”. A expressão serviu paradenominar uma fazenda e, enfim, se fez nomeda cidade.

Mas não só. Minas já conteve Japão. O topôni-mo decorreu da contração da frase “Já há pão”,com que os viajantes se referiam à volta dofornecimento do produto, em uma venda deestrada, interrompido por um período por faltade farinha de trigo.

Por décadas foi conhecido como “Japão” ou“Japão de Oliveira”, porque pertencia ao cura-to homônimo, da paróquia de Passa Tempo,município de Oliveira, município e vila com onome de Carmópolis de Minas, desde 1948.

Pois é dessa cidade mineira com denominaçãoextra-Brasil o artista plástico Petrônio Bax, quelá veio ao mundo em 11 de maio de 1927. Noano vindouro estará, assim, completando 80anos e, para festejá-lo e à sua vasta e magnífi-ca produção, se está elaborando programação.

Em 1946 (eu era secretário-geral da UniãoColegial de Minas Gerais, quando organizamosuma exposição dos jovens talentos da arte noEstado) Petrônio começou a estudar desenhoe pintura com Guignard, que abria no ParqueMunicipal uma fábrica para revelação degrandes valores e os revelava.

Com um qüinqüênio aprendendo com omestre de Friburgo, Bax se julgou apto, comoefetivamente se achava, para singrar sozinhoos mares das artes plásticas. Conquistou lau-réis na escultura e na pintura e, não satisfeito,publicou livros, que conquistaram simpatias eelogios, como “Espelho de Alexandra”, “Somde um caramujo”, “Espelho das Águas” e“Barco - Sonho do Pintor”.

Em 1991, transferiu-se para um lugar muitoagradável na Lagoa do Miguelão, Nova Lima,ali montando ateliê e dedicando-se ao nobreofício. Aqui tenho “Espelho das Águas” e“Das águas do Espírito”, de 2003 e 2004,pela Mazza, edições primorosas, que põem oleitor em contato com o texto simples ou acitação religiosa ou erudita, com os desenhosvívidos de um artista em plena maturidade.

O “véio” Petrônio Bax encaminha, para agrado e alegria deste recebedor, mensagemincentivadora, valiosa como um conselho: “Se o importante é não silenciar, pode usar a

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aldrava - que a porta se abrirá, rangendo nasdobradiças já um tanto enferrujadas...”

Nos textos dos dois graciosos livros - o portu-guês, o espanhol, o italiano, tudo misturadomas sensibilizador. Enfim, a linguagem dabeleza é universal, com a grafia cambiantenas três línguas, porque - para o artista - essahistória de gramática não é fundamental. Aarte, sim, é essencial.

Muita cor, simbologia, desenhos que agradariamo seu saudoso mestre. Para terminar o “Espelhodas Águas”, um finale muito próprio, extraídodo Prólogo da obra maior de Cervantes:

“Desocupado lector: sin juramento mepodrás creer que quisiera que este libro,como hijo del entendimiento, fuera el máshermoso, el más gallardo y más discretoque pudiera imaginarse. Pero no he podi-do yo contravenir al orden de la natu-raleza, que en ella cada cosa engendra susemejante...

Acontece tener un padre un hijo feo y singracia alguna, y el amor que le tiene lepone una venda en los ojos”.

Privilegiados os que, ganhando idade e soman-do experiências, não envelhecem. Seguemtrilhando o caminho das artes e das letras.Transmitem felicidade e são felizes, enquantoos dias fluem como os rios para o mar.

Texto publicado no jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte, Caderno Opinião, em 1º de agosto de 2006.

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TRIB

UTO

NOS PASSOS DEJEAN BAUDRILLARD:UMA TRAJETORIAHYGINA BRUZZI

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Ao tratar, em depoimento concedido à imprensa, docrescente interesse pela filosofia em nosso meio a partir dos últimos anos, o professor Renato JanineRibeiro recorre à psicanálise para interpretar essemovimento em busca de um trabalho variado, difícilde definir, e seguramente pouco útil, como um ines-perado retorno do recalcado. Após tantos anos desilêncio, o pensar filosófico, segregado como modelode inutilidade e de saber improdutivo é, lembrandoBataille, como a parte maldita que se vinga daexclusão produtivista. A Bataille faz eco, nestemomento, o discurso apaixonado de seu fiel admirador contemporâneo, recentemente falecido:Jean Baudrillard.

Ninguém melhor que Baudrillard,aliás, para ilustrar a idéia de filosofiasugerida por Renato Janine Ribeiro:um pensamento desejante, movido poruma atenção plural e proliferante; umaestratégia do espanto; finalmente, algopropriamente corrosivo.

O fato de estarmos diante de um pensador contempo-râneo e de temas igualmente atuais torna sempre agudasas dificuldades. Por outro lado, o distanciamento críticose apresenta duplamente comprometido numa épocaque se esforça justamente para aboli-lo. O historiadorMichel Vovelle expressou muito bem essa dificuldade,ao confessar ter preferido improvisar-se comomedievalista do que enfrentar a iconografia pratica-mente ilimitada do mundo contemporâneo. Ao sedebruçar sobre a mentalidade do cidadão anônimo dasociedade de consumo, Baudrillard descreve, pois, umgesto audacioso, cuja dimensão ainda estamos longede avaliar completamente. Como explorar simultanea-mente uma obra e um tema tão ricos?

Se tivéssemos de apontar uma intuição originária, essaidéia simples que, sem rodeios, sustenta o pensamentode um autor, diríamos que o núcleo da interpretaçãode Baudrillard é a recusa do econômico como princípio

capaz de fundar uma antropologia geral. Essa é a formulação implícita em sua teoria crítica do valor eno desenvolvimento da noção de troca simbólica quea complementa. Por outro lado, se a posição do valoré produto da representação, uma tal teoria críticaimplica uma nova recusa. O partido da representaçãoque se estabelece com a revolução da idade modernana história da cultura ocidental é, portanto, associadoà instituição do valor e, conseqüentemente, à hegemo-nia do econômico como princípio de exclusão da ordemsimbólica. A evolução do partido da representaçãoassume para Baudrillard a forma de uma espiral desimulacros, composta por três ordens, cada uma delasse apresentando com relação à anterior, não comoacréscimo de sentido, mas como a outra volta de umimenso processo de dessignificação.

Também para Heidegger só é possível falar de concepção de mundo a partir da revolução copernicanaque dá início aos Tempos Modernos. Com o cogitocartesiano, a representação do mundo substitui omundo como presença disponível no pensamento clássico, e introduz uma disjunção fundamental entrea objetividade e a forma objetivante que é a subjetivi-dade. Só a partir desse distanciamento e do projeto deuma subjetividade, desse movimento pelo qual omundo se torna objeto, ciência e técnica se tornampossíveis, consolidando-se ao mesmo tempo comoprocesso de dominação da natureza. Isso não acontece,diz ele, sem a instituição de uma egoidade.

Para Baudrillard, a representação introduz a mesmadisjunção. Assim, ao se constituir como sujeito, ohomem segrega na forma-objeto tudo o que é outro,diferente dele mesmo. Esse princípio humanista, queexclui o outro num crescente e intenso projeto deobjetivação, não acontece impunemente. A vingançado outro, ou do duplo, ou do objeto, é anunciadacomo o termo de um longo processo de exclusão.

Da dualidade produzida pela representação se ressente amoderna teoria do valor e, na medida em que o sentidoé também postulado como valor, a teoria do signo. Oprincípio econômico da acumulação permite estabele-cer uma homologia estrutural entre a forma-valor e a

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forma-signo, pela qual a mais-valia de significado ésintetizada numa forma ainda mais apurada de domi-nação: o valor-signo. Significação e valor, ambos seinscrevem na especularidade do modo de produção,representação que o pensamento do Ocidente estabe-lece a partir da oposição radical entre natureza e culturae da abstração que faz da natureza o conceito de umaessência dominada.

Do fantasma do valor e de sua articulação mágica(valor de uso, valor de troca e valor de troca-signo), aracionalidade e a indefectibilidade da ciênciaeconômica e das ciências humanas ainda estão,segundo Baudrillard, longe de se dar conta. Elas malpercebem que a necessidade só se confirma diante dovalor, pois é precisamente através dele que o desejo épositivo como necessidade e que sua ambivalência étransmutada em uma lógica da equivalência. O queexplica os lapsos da pulsão de apropriação, a baixatendencial de gozo, a falha em ganhar? Para essasanomalias a teoria econômica não tem resposta. Aextensão da psicologia profunda e da análise das pulsões em Freud é algo que ainda não chegou, portanto, a ser devidamente considerado pelas ciênciashumanas e pela ciência econômica, com vistas a umaantropologia geral. A falha é aquilo que assombra oseconomistas, insinuando-se como fantasma e negaçãodo valor, vingança do desejo e da ambivalência datroca simbólica que o econômico exclui de suaracionalidade: como contabilizar o dar e o restituir, opresente, a prodigalidade, a festa? O conjunto dessesatos e práticas que constituem tão plenamente o universo simbólico da cultura é irredutível à simplestroca econômica. Baudrillard vai ainda mais longe.Apoiando-se freqüentemente em Marshall Sahlins, ele considera que a escassez é produto da economia eque esta só se constitui a partir do resto. Sobre este,por sua vez, se funda o valor. Ou seja, a trocaeconômica, ao se instituir como administração doexcedente, é forma residual da troca simbólica, a qual,por definição, não deixa resto, é resolução imediata epresença completa.

Qual destino pode ter uma cultura e, por extensão, asteorias que a legitimam, que elege como princípio

hegemônico essa forma residual? A recorrência àssociedades arcaicas em Baudrillard obedece a ummovimento semelhante ao retorno do recalcado. Nãose trata, portanto, da busca nostálgica e melancólicade uma situação ideal localizada em um tempo passado,para sempre perdido. É justo que a possamos interpretarfreudianamente como essa volta atrás, que é condiçãopara avançar no momento presente.

Se o partido da representação que Baudrillard, assimcomo Heidegger, considera como traço definidor dostempos modernos na história do pensamento ocidental,caracteriza-se como uma posição do sujeito e dovalor, ele assume, como conseqüência imediata, umaatitude particular com relação à verdade. Esta, umavez erigida em valor, passa a desfrutar de um estatutoprivilegiado, é valor-signo supremo, fim último, termoque premia o esforço da procura. Dessa representaçãoda verdade como valor ao inacreditável racismo daverdade, que Baudrillard vai atribuir à moderna teoriapsicanalítica, assistimos ao desenvolvimento de umacrítica implacável, cujo alvo são as teorias do reflexo,basicamente fundadas na dupla articulação manifesto-latente. Ora, para Baudrillard, o pensamento queinsiste na distinção entre falso e verdadeiro, fazendodeste último um valor, trai um puritanismo cujo resultado é, paradoxalmente, a transparência obscenada cultura contemporânea. Toda teoria que persegue a verdade como valor e, portanto, que a considerapassível de desvelamento, é simulação desencantada.A verdade não se presta, assim, a uma teoria heurística.Eis o que o faz sumariamente concluir que pobre étoda teoria do reflexo.

Rejeitando, pois, o partido da representação, na duplaarticulação do signo e na dupla articulação do valor,as quais reenviam indefinidamente à miragem de umreferente que se oculta por detrás do manifesto empermanente movimento de fuga, Baudrillard proclamao triunfo do horizonte sagrado das aparências. Se aarte de fabricar imagens é atribuída ao sofista, o qualse compraz em fazer do falso o verdadeiro, estamosdiante de um artista perfeito, quando ouvimosBaudrillard proclamar: o simulacro é verdadeiro. Pois fazer do falso o verdadeiro através do poder do

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discurso não é uma das seis definições que Platãoatribui ao sofista?

A passagem do partido da representação ao partido da simulação, no pensamento de Baudrillard, é umavertente que se abre em leque. Ela se oferece a umaexploração múltipla, que vai do estritamente filosóficoao estético e, de modo particular, ao cenográfico.Tentemos, entretanto, seguir a direção para qual otema aponta na obra de Baudrillard: a hermenêuticada sociedade de consumo. A associação de dois temasfortes em uma obra tão fecunda vem atender a umadupla exigência: trata-se não só de participar de seucombate, mas também de melhor compreender omundo contemporâneo através de suas hipótesesinterpretativas. É com atenção bem mais apurada queagora podemos ouvir algumas expressões correntes arespeito da condição moderna ou pós-moderna. Acomeçar por alguns títulos apocalípticos – era daincerteza, era do receio, era do vazio – lemos e ouvimos aqui e ali freqüentes alusões à sociedade doespetáculo, a uma certa concepção cenográfica dopolítico, e assim por diante.

Do simulacro naturalista, passando pelo simulacroprodutivista, a cultura do Ocidente alcança finalmente,na interpretação de Baudrillard, a simulação propriamente dita, que coincide com a era de reprodutibilidade ilimitada de signos e com o domínioda lei estrutural de valor. Levado às últimas conseqüências, o perspectivismo da representação tem,na cultura contemporânea, um efeito paradoxal, resultando no signo puro e auto-referente que é o

simulacro. À obsessão de realidade e de sentido quepassa a se impor a partir do momento em que a verdade é exaltada como valor, o universo do consumo e da comunicação de massas responde como simulacro hiper-real. Quando as diferenças entrefalso e verdadeiro se dissolvem, quando em vão setenta desvendar algo por detrás das imagens, quando o real se torna mais real que o real, verdade e simulacro passam a ser uma única e mesma coisa. Oexemplo do autômato do século XVIII, que Baudrillardnão se cansa de citar, nos mostra o quanto é inquietantea abolição dessa distância para a mentalidade dohomem ocidental: para apaziguar uma platéia atônitadiante da mimese perfeita do gestual humano, o apresentador se vê obrigado a imitar os gestosmecânicos de seu artefato, restabelecendo, assim, adiferença confortadora. Essa forma encantadora dereversibilidade e de ilusionismo parece definitivamenteproscrita da obscena contemporânea.

Consumo e simulacro: a associação dos dois temas é,por assim dizer, aquilo que nos pareceu a síntese maisexpressiva dos diversos momentos da semiologia hermenêutica de Baudrillard, dispersos, é verdade, emuma obra assistemática, mas – é sempre bom lembrar– espantosamente lúcida e coerente.

Concluindo, deixando por um instante a análise dasobras mais sedutoras de Baudrillard, encargo quelegamos ao leitor, podemos dizer que, com o falecimento do pensador, a França perde um dos seus mais brilhantes e criativos ensaístas dos últimos tempos.

Podemos compre-ender com Baudrillard neste momentoque, se toda a sociedade se transformounum espetáculo, é porque o espetáculochegou ao fim; que, se é evidente ofascínio por uma concepção cenográ-fica de poder, é porque o esquema darepresentação política já não seduzninguém.

HYGINA BRUZZI é arquiteta e ensaísta, autora de A cultura do simulacro: filosofia e moder-nidade em Jean Baudrillard (Loyola, 1988) e Do visível ao tangível: em busca de um lugarpós-utópico (C/ Arte, 2001).

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É como entrar num castelo em ruínase de repente ver renascer o esplendorde seus salões ou a languidez acetinada

de suas alcovas;é como se todos os ventos, súbito,amainassem, deixando atrás de sio arrepio no dorso da pantera

em pleno salto;é como pressentir ao longeo colear da serpente na areia fina do deserto, a deslizar como quem flutua

sob o sol que cega;é como embalar no colo a feraenfim liberta da fúriaque a prendia ao olho do ciclone:

placidez de vendaval.

Ain't nobody's business if I do!Que fazer se quando é escuro aquia luz já vai raiando, mais adiante?

Lady Day? Pássaro cego, asas

a ruflar no coração da noite nula,a espalhar por aí o esplendorde castelos em ruínas, caríciano dorso da pantera, silvode serpente ensolarada:mansidão de vendaval.

Lady Day? Nada quer senão um maço de violetasou magnóliaspara saudar no horizontea luz que vem do mar

como num sonhode que não possa despertar.

CARLOS FELIPE MOISÉS

BILLIE HOLIDAY

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Depois de escalar as geleiras do HimalaiaGerty fica sem ter o que fazer fazer.Para quem almeja chegar ao topodo Everest chegar ao topo do Everesté quase tudo mas para quem estáà procura de uma rosa uma rosa umarosa o Himalaia todo é nada: brancosobre branco tão branco rútilo carmim a rosa rosa rosa do nada.

Tudose repete nada repete a quietudedo início da escalada nada compensao vazio da meta não sonhada.

Depois do Himalaia Gerty fica semter o que fazer fazer a não ser repetiruma rosa é uma rosa é uma rosa é

umarosa até a rosa se abrir e mostraro descampado onde se esconde o nada

tudotudo tudo - tudo enfim, já se vê,para quem desiste de perguntar.

Mas Alice lhe ensina: qual a resposta?Silêncio silêncio mais nada nada?Então é hora de voltar a perguntar:qual a pergunta? Gerty responde:é o amor é o amor é o amor é

o amor?

Theda Bara nunca existiu. Foi sóum daguerreótipo sensual, animado,sob sete véus: Salomé; boquitacarnuda em forma de coração,tiara de bilro, peitilho esvoaçante:Quando a Mulher Peca; víboraencarnada, estátua toda de vícios,entre capitéis de cartolina, olhosfundos, cravados no éter, braços nus:Madame du Barry, Mulher Libertina.

Cabelos negros a rolar em cachossobre os ombros de deusa fria - a todos os homens do mundo prometeudelírios de jade, gozo sem fim,e muito mais, posto que nunca existiu.

Theda Bara foi só um anagrama:Arab Death. Começou a inexistirquando se rendeu à volúpia do écransilencioso, onde reinou mulher-fatal, fêmea-vampiro, muda.

Inexistindo em silêncio, à inexistênciacondenou a menina que foi, a vidatoda lacrada em sonho branco-e-preto,como se tudo (Paixão Mortal)não passasse de cinema mudo.

CARLOS FELIPE MOISÉS é poeta e crítico literário. Autor de diversos livros,entre os quais, Lição de casa & poemas anteriores, 1998, e Poesia & utopia,2007. Ex-professor da Universidade de São Paulo e de outras instituições.

GERTRUDE STEIN THEDA BARA

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CANCAOPOPULAR:

A canção é a extensão estética da fala. Uma canção não é

senão a estabilização das entonações da fala. A raiz entoativa

justifica a escolha melódica da canção. Colocar letra em uma

melodia é extrair de um modo de dizer aquilo que pode ser

dito. O primeiro gesto de composição de uma canção é criar

mecanismos de contenção da velocidade da fala cotidiana.

A EXTENSÃO ESTÉTICA DA FALA

MÁRCIO COELHO

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Certamente estas são as principais máximas da Semiótica da Canção - teoria erigida pelo professor e cancionista Luiz Tatit, com base nasemiótica de linha francesa (ou semiótica greimasiana). Utilizando-as como farol, navegaremos, no presente artigo, sobre as idéias insti-tuídas pelo eminente semioticista, que lançaram nova luz sobre a canção popular brasileira e estimularam o surgimento de um olhar maisgeneroso por parte daqueles que tomavam-na como um objeto artístico menor.

A canção é a extensão estética da fala: Inspirado pelas idéias do poeta-filósofo francês Paul Valéry acerca do trânsito de objetos entresuas dimensões utilitária e artística, Luiz Tatit nos mostra que a canção popular (dimensão artística), no fundo, é a estabilização de umrecorte efetuado na linha entoativa da fala cotidiana (dimensão utilitária). Quando um compositor seleciona um determinado recorte deentoação e o estabiliza, este passa a configurar uma melodia e, seu conteúdo lingüístico, aquilo que denominamos letra de uma canção.Daí o destinatário da mensagem é levado a dar mais importância a como o conteúdo foi dito do que ao que propriamente foi dito. E acada vez em que a mensagem é reproduzida mantendo suas características melódicas (entoacionais) originais, ergue-se um simulacro deenunciação, que faz o ouvinte crer que a narrativa enunciada acontece de maneira simultânea com a sua audição. Então compreendemoso estatuto popular da canção e o aforismo valeriano segundo o qual a fala se dissolve na clareza e a poesia (no caso, a canção) renascedas cinzas, ou seja, na fala cotidiana, o modo de dizer desaparece assim que a mensagem é decodificada. Na canção, ao contrário, alémde ser o principal elemento persuasivo, o modo de dizer melódico renasce a cada manifestação do conteúdo.

Uma canção não é senão a estabilização das entonações da fala: Basta pensarmos na melodia dos primeiros versos da canção “Você jáfoi à Bahia?”, de Dorival Caymmi (Você já foi à Bahia, nega/ Não?/ Então Vá.), que torna-se fácil perceber a proximidade entre os modosde dizer cotidiano e cancional.

No diagrama acima, cujas linhas representam, cada uma delas, um semitom (ou uma nota de escala cromática, que vem a ser grossomodo uma escala tocada ao piano sem que se salte tecla alguma), vemos que o ponto nevrálgico da interrogação (“Você já foi à Bahia?”)incide no topo da tessitura. O vocativo (Nega) é alocado na nota mais baixa do segmento melódico, e, em seguida, uma interrogação con-densada eclode novamente no cume do segmento. Cumpre destacar que o vocativo acomodado entre os dois pólos interrogativos pareceestar entre vírgulas, isto é, da maneira como seria grafado no caso de expressão escrita. O imperativo é manifestado de maneira categóri-ca e sua direção final descendente (marcada pela última seta) não deixa dúvidas em relação à veridicção enunciativa. Se o leitor experi-mentar dizer em voz alta o segmento lingüístico que acabamos de analisar sumariamente, verá que sua entonação será bem próxima damelodia escolhida e estabilizada por Dorival.

Vo

foi

à

Ba

hia, Não?

Nega

En

tão

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Na verdade, esse processo, segundo Tatit, se dá na direção con-trária, ou seja, a raiz entoativa justifica a escolha melódica dacanção: O projeto entoacional de uma enunciação oral é consti-tuído, em grande, parte por tonemas, que são, segundo NavarroTomás, “as finalizações das frases entoativas que concentram onúcleo do sentido melódico” da fala, ou seja, a melodia daentoação dos finais de frase da fala cotidiana (conseqüentemente,também da canção popular). Em geral, quando o falante enunciauma interrogação, a linha melódica que recobre o componentelingüístico toma a direção ascendente como que a criar a expec-tativa de uma resposta, que, ao contrário, quando pronunciada,opta pela direção descendente, fato que cria o efeito de sentido deconclusão. Mas esse processo não se restringe às situações de per-gunta e resposta. Quando o falante assevera algo ou conclui todoou parte de seu pensamento, a melodia da sua fala também tendea alcançar o nível mais baixo da sua tessitura; assim como quan-do quer criar a expectativa de continuidade, esse mesmo falanteou eleva a entoação ou simplesmente a mantém suspensa, crian-do expectativa de prosseguimento enunciativo. Por exemplo: nosdias de hoje quase todos nós temos um telefone fixo e um celular.Pensemos numa hipotética situação em que alguém pergunta aoutra pessoa qual é o número de seu telefone. Há pouco mais dedez anos, imediatamente o interrogado responderia: 3972 3333,usando para tanto um melodia descendente, asseverativa.Entretanto, hoje em dia, para criar a expectativa, na outra pessoa,da enunciação do segundo número (o do telefone celular), quasetodos nós utilizamos uma inflexão ascendente na melodia doprimeiro número, para somente depois enunciar de maneiradescendente e finalizante o número do nosso telefone móvel:9722 3444, ou vice-versa.

É essa raiz entoativa que serve de base, de ponto de partidapara a escolha do componente melódico que irá recobrir ocomponente lingüístico do enunciado cancional; assim como ofez Dorival Caymmi em “Você Já Foi à Bahia?”, e como ofazem, mesmo que inconscientemente, todos os cancionistas.

Colocar letra em uma melodia é extrair de um modo de dizeraquilo que pode ser dito: Sabemos que geralmente o can-cionista compõe ao mesmo tempo letra e melodia. No entanto,não são raros os casos de compositores que não fazem a letrade suas canções: Ivan Lins e João Bosco são dois bons exemplos.Nesse caso, duas possibilidades são oferecidas: i. O letristaentrega uma letra ao compositor e este coloca uma melodia em

seu texto. Esse processo em quase nada difere daquele quecomentamos há pouco; ii. O compositor dá uma melodia aoletrista, que deve revesti-la de palavras para serem cantadas. Aía coisa muda de figura. Muda porque não basta que a quanti-dade de sílabas se encaixe na quantidade de notas disponíveispela melodia e que haja, para tanto, a observação de certoajuste prosódico. É preciso fina sensibilidade (e grande esforçoartesanal) para extrair de um bom modo melódico de dizer umtexto verbal que se supere ao ser manifestado melodicamente, eque, ao final das contas, juntamente com o texto melódico,construa um discurso cancional que pareça não permitir aindissociabilidade de seus constituintes, sob pena de tal fazer,caso seja levado a cabo, causar o efeito de amputação. Comoveremos à frente, o letrista tem de respeitar o modo de inflexãopersuasiva já proposto pela melodia.

Prove, por favor, leitor cético, o sabor de colocar o primeiroverso do samba “Com Que Roupa” (“Agora vou mudar minhaconduta...”), de Noel Rosa, na frase melódica inicial do HinoNacional Brasileiro, conservando o gênero, o andamento, aimpostação etc., enfim, toda a pompa que um hino merece aoser cantado... Com certeza, o ressaibo foi inevitável. Porcuriosidade, devemos acrescentar que, segundo o anedotário docancioneiro popular brasileiro, o músico Homero Dornelas, aoescrever melodia de “Com Que Roupa” no pentagrama, verifi-cou que sua melodia era idêntica à do Hino Nacional e, paraevitar o “plágio” involuntário de Noel, fez as devidas e notóriasmodificações, que entraram para a história juntamente com osamba.

O primeiro gesto de composição de uma canção é criarmecanismos de contenção da velocidade da fala cotidiana:Paul Valéry, no livro Variedades, faz uma notável analogiaentre a velocidade com que devemos falar para garantir o fluxode nosso discurso e uma hipotética passagem por uma frágilprancha, colocada, para servir de pinguela, sobre uma fendaentre duas rochas. Se nos servirmos da prancha com certavelocidade, certamente alcançaremos a outra rocha. No entan-to, se pararmos sobre a prancha e ficarmos testando seu graude rigidez ou flexibilidade, é muito provável que caiamos nafenda. O mesmo acontece com as palavras que enunciamos.Devemos manter certo grau de velocidade durante a enunci-ação oral, sob pena de travarmos o discurso. Por exemplo: senuma conversa cotidiana alguém diz: “- Ando tão sem tempopara fazer as coisas de que mais gosto...”, e seu interlocutor, em vez de dar continuidade à conversa indagando sobre o que lhe tem tomado tanto tempo, resolve lhe fazer a seguinteindagação: “- O que é tempo?”, o corte no fluxo dialógico seráinevitável, isto é, a parada na palavra será análoga à paradasobre a prancha.

Como já vimos, na fala cotidiana, nosso projeto entoacionaldeve servir à valorização do conteúdo enunciado e desaparecer

3972

9722

443

33 33 (pausa)

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assim que a mensagem for decodificada. No que concerne àcanção popular, tudo acontece de maneira diferente. SegundoTatit, “a forma artística constitui, no fundo, um rito de desace-leração da linguagem. Ela refreia a transposição do plano daexpressão ao plano de conteúdo”. Daí, ao criar mecanismos dereiteração melódica, por exemplo, o cancionista refreia umfluxo que tenderia à continuidade. Quando um compositorestabiliza um determinado projeto entoacional, fixando umamelodia, ele valoriza e acresce sentido à expressão; evita a dispersão da matéria sonora; contém a velocidade da fala.

Somente esse rico inventário sobre o fazer cancional já nosobrigaria a reverenciar o fundador do Grupo Rumo. Mas oamor pela canção popular brasileira e o rigor científico levouLuiz Tatit, além disso, a estabelecer uma convincente, rendosa einvejável tipologia da canção: i. Na categoria das cançõestemáticas, temos aquelas cujo andamento é mais veloz, sendoassim, notamos o privilégio dos recortes consonantais em detri-mento dos alongamentos vocálicos. Essa velocidade aproximaos contornos melódicos de modo que percebemos mais facil-mente seu caráter identitário. Pensemos em um trem que andaà velocidade de 20km/h e, em seu interior, vemos “passar” umposte a cada 100m, isto é, a cada 18s vemos um poste “passar”à nossa frente. Como em uma viagem não estamos empenhadosem observar a constituição dos postes, certamente os 18s queseparam a visão de um poste da próxima não nos permitirá umdespretensioso juízo comparativo sobre a qualidade dos pilaresque sustentam a rede elétrica situada às margens da malha fer-roviária. No entanto, se o trem aumenta sua velocidade, sere-mos capazes de ver os postes em um intervalo menor de tempo.Este fenômeno nos dará a impressão de aproximação espacialentre eles, e isso facilitará um olhar comparativo que poderános informar sobre suas identidades e diferenças.

Tatit descobriu que um fenômeno análogo a esse acontece comas canções populares. Quanto mais velozes elas são, mais nosinformam sobre a identidade entre seus temas, exatamenteporque, assim como o exemplo acima, a velocidade aproximaos temas e nos permite captá-los em bloco; afinal a música éuma arte do tempo e não do espaço.

À medida que os temas se aproximam temos a impressão deque um parece buscar o outro. Curiosamente, quase sempre oconteúdo dessas canções velozes (temáticas) trata da aproxi-mação de um sujeito com outro sujeito ou de um sujeito comum determinado objeto, que pode também ser um objeto cons-truído, ou essa conjunção pode se dar à distância. São muitasas variáveis. Consideremos a primeira parte de “Garota deIpanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes: “Olha que coisamais linda/ mais cheia de graça/ é ela menina/ que vem e quepassa...”. Ao cantarolar, imediatamente percebemos a identidadeentre os fragmentos melódicos. Essa “conjunção” dos fragmentos,promovida pelo caráter veloz da canção, repercute em sua letra

que descreve a conjunção (ao menos no campo visual) do narrador com a bela moça que passa num doce balanço a caminho do mar. ii. Na categoria das canções passionais,temos aquelas cujo andamento é mais lento. Portanto, contraria-mente às canções temáticas, na melodia dessas canções notamosuma busca pela configuração final do contorno melódico.Desse modo, o percurso (melódico) é privilegiado - então ossaltos intervalares ganham mais pertinência -, assim como osalongamentos vocálicos, que permitem a configuração dedurações melódicas. Nas canções passionais, os estímulossomáticos cedem lugar aos psíquicos. O destinatário é fisgadopela mente e não pelo corpo. Então os sentimentos de falta -em direção ao passado (saudade) ou ao futuro (desejo) - seerguem sobre o corpo cancional. Para manter o mesmo exemplo,pensemos na segunda parte da mesma “Garota de Ipanema” eperceberemos que a valorização do percurso é garantida pelasdurações das vogais, desde a primeira interjeição: “Ah, comoestou tão sozinho/ Ah como tudo é tão triste (...)”. Então a passionalidade aflora e temos até a impressão de que o tempo é refreado. iii. As canções figurativas são as que lançam mãode recursos que deixam transparecer a voz que fala por detrásda voz que canta. Os tonemas (ascendente, descendente e suspensivo), já comentados, são elementos de suma importânciapara esse processo.

Depois desse brevíssimo e incompleto relato sobre a tipologiacancional proposta pela Semiótica da Canção, devemos acrescen-tar que esses processos não são excludentes, eles aparecem nascanções de modo dominante, recessivo ou residual. De acordocom a dominância de um desses modos de inflexão persuasiva,dizemos que uma canção é temática, passional ou figurativa.

Outros aspectos concernentes à construção do sentido nacanção popular brasileira estão sendo abordados por umalegião de seguidores de Luiz Tatit. Nossa contribuição surge no sentido de expandir tais idéias para o âmbito do arranjo,com o objetivo precípuo de demonstrar que, assim como o criador da Semiótica da Canção convincentemente instituiu aidéia, segundo a qual, ao analisarmos somente a letra de umacanção popular estamos prescindindo da metade de seu sentido,qualquer análise de canção popular que dispense a abordagemdo arranjo está prescindindo de um terço de seu sentido. Dessemodo, propomos também que, em lugar de analistas decanções, reconheçamo-nos como analistas de fonogramas; mas isso é assunto para uma próxima oportunidade.

.19Maio 2007

MÁRCIO COELHO é mestre e doutor em Lingüística Geral. Área de concentração: semiótica,pela FFLCH-USP-SP. Cancionista com quatro CDs gravados, foi vencedor da IX edição doPrêmio Nascente, categoria música popular, oferecido pela USP e Ed. [email protected] e [email protected]

20. Maio 2007

.21Maio 2007

A literatura contemporânea tem nos pro-porcionado obras que tanto se pautam porreflexões dramáticas sobre o mundo urba-no, marcado pela barbárie, como ironizam,às vezes com desdém, a condição humanado início do século XXI. Assim é Furor naíris, de Marcus Nascimento.

Este livro de contos é resultado da experi-ência urbana do homem na qual a acu-mulação, a apropriação e a decomposiçãosão fenômenos corriqueiros. O autor tomaa síndrome da decomposição como matériada qual se apropria para construir, ironi-camente, personagens e narradores con-sumidos pela solidão, pela cegueira, peloabandono, pela farsa e pelo tédio.

Essa construção deixa o leitor perplexo,em uma espécie de choque. Com este sen-timento é que se percorre o universo de “Odoador de órgãos”, título da primeira parte

do livro e de um de seus contos. Em “Odoador de órgãos”, explicita-se o percur-so de um personagem que entra para omercado da doação de órgãos e deixa-se“doar”, parte por parte, numa represen-tação da reificação do sujeito através doretalhamento de seu corpo e do corpo dotexto. É nessa “decomposição em vida”experimentada pelo personagem que secompõe o fio (tênue) que alinhava váriasoutras narrativas. A obra que resulta des-sa costura entre os contos evidencia umtecido social esgarçado pela presença docorpo vilipendiado e pela natureza absur-da dessa face cotidiana da decomposição.

A ousadia desta obra está não apenas nosaspectos formais da construção e elabo-ração estética da linguagem, uma vez quea mutilação do sujeito se apresenta emfragmentos de contos e em contos comofragmentos, mas, fundamentalmente, naradicalidade irônica da escrita. Não sepode dizer que o absurdo da vidacontemporânea é visto aqui com deses-pero. Marcus Nascimento, assim como jádemonstrou em seu primeiro livro, Apalavra no espelho, cria situações que detão absurdas são, muitas vezes, motivo deperplexidade e riso.

Esta perplexidade acompanha o leitor, emFuror na íris, até o final da obra. Na segun-da parte dela e em seu último conto, ambosintitulados Muxarabiê, o processo criativoda fragmentação chega ao ápice. O furorpela decomposição do texto torna-se,agora, conceito de escrita e de um modo dever o mundo. O conto final da obra repre-senta uma forma de olhar repleta de inter-rupções, de vazios, de vácuos.

Mesmo com tantos cortes há, na obra, umaevidente acumulação de textos originadado processo de apropriação constituídopelo autor. Fala-se aqui da apropriação delinguagens e de vidas, e até mesmo deautores. Neste caso, verifica-se a surpre-endente presença de um prefácio (poema)de Carlos Drummond de Andrade e contosde duas autoras convidadas: Sandra DuartePenna e Jacqueline Guimarães Ferreira.Esses processos criativos são acompanha-dos por um projeto gráfico arrojado, deCristiano Trindade, e pelas ilustrações deMarcelo Kraiser, que acompanham o olhardos personagens e dos narradores. Sãoimagens fortes que fazem deste livro algonão apenas para ser lido, mas tambémpara ser visto.

RAQUEL BEATRIZ GUIMARÃES

FURORNA IRIS:

IRONIARADICAL EOUSADIAESTETICA

RAQUEL BEATRIZ GUIMARÃES é professora de LiteraturaBrasileira no curso de Letras da PUC-Minas. Mestre emEstudos Literários pela UFMG.

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22. Maio 2007

Falar de livros e autores que marcaram de algum modo nossa vidaé trazer de volta o passado, tão intimamente se ligam nossasleituras aos episódios e sentimentos vividos. Como um perfumeque desencadeia lembranças adormecidas, certas situações ines-peradas remetem-nos a essas obras; aparentemente na sombra,sem que nos apercebamos, elas estão sempre ali, acompanhandonossas escolhas, orientando nossa expressão escrita, dando voz anossos sentimentos, refinando nosso olhar sobre os homens e otempo em que vivemos. Se a literatura não servisse para maisnada, teria pelo menos esta função: a de nos tornar mais propen-sos à escuta, a entender possivelmente melhor, mesmo que semos números objetivos da estatística, ou os dados inferidos daanálise racional dos fatos, certos aspectos da realidade presente.

Os livros de memórias e a poesia, de modo geral, sempre meseduziram como leitora. Fico pensando se essa preferência nãose deve ao vínculo que as obras memorialísticas têm com os poe-mas: o de falarem de modo mais íntimo de vidas, de experiênciasvazadas em linguagem trabalhada, a qual já é, por si só, a própriaexperiência a nós oferecida.

Lembro-me de ler avidamente na minha infância e adolescênciapoemas, romances, livros vários, que me chegavam às mãos umtanto aleatoriamente. Mais à frente, os “clássicos” da literatura, oscanônicos, tiveram leituras intencionadas, escolhas mais direcio-nadas. Fragmentos de versos franceses, de Corneille, Musset,Lamartine; de poetas da literatura brasileira, Gregório, Cláudio,Gonzaga, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, Alphonsus deGuimaraens, memorizados no velho Colégio Estadual de finsdos anos 50, sob a influência dos professores Marcel Debrot ouWilton Cardoso, marcaram toda uma geração e vêm de repenteà lembrança.

Mas foi na Faculdade o tempo das grandes revelações: GuimarãesRosa, e seu portentoso Grande Sertão: Veredas, Dante e sua DivinaComédia, lida nas tardes de sábado, com Ricardo Averini;Stendhal, Flaubert, Camus, com estudo exigente do mestre Saunal;a maravilhosa e surpreendente (para mim) literatura espanhola ehispano-americana, com José Carlos Lisboa e Maria José deQueirós. E, é claro, acompanhando a descoberta da filologia, pelasmãos de Ângela Vaz Leão, as cantigas medievais e a lírica deCamões, com Rodrigues Lapa, e ainda Fernando Pessoa, eBandeira, e Drummond, e Murilo Mendes, e tantos outros.

Hoje, se tivesse que indicar quatro, cinco livros ou autores queme acompanham desde sempre, apontaria Tutaméia, do semprepresente Guimarães Rosa; os livros de memórias de Pedro Nava;a inigualável poesia de Drummond e de João Cabral de MeloNeto; a obra de João Gilberto Noll, estupendo registro dos sinto-mas das enfermidades de nosso tempo. Porque essas obras eautores são antes de tudo “imágenes entreveradas en el fluir dela vida”, “música inolvidable”, “rostros queridos”, de que nosfala Ricardo Piglia. E diante de uma paisagem de fim de tarde,aberta, luminosa, é certamente por força desta “músicainolvidable” que, sem mesmo cogitar da fonte, exclamaria comUngaretti, em seu curtíssimo poema, “M'illumino / d’immenso”.

LIVROS E LEITORESMELÂNIA SILVA DE AGUIAR

MELÂNIA SILVA DE AGUIAR é professora de Estudos Literários no Programa de Pós-gradu-ação em Letras da PUC Minas e ex-professora titular de Literatura Brasileira da UFMG.

.23Maio 2007

VINGANÇA EM VENEZAGiovanni Boccaccio Tradução de Nilson MoulinIlustrações de Carlos NineSão Paulo: Cosac Naify, 2007

A Cosac Naify lança mais um belo livro – “Vingançaem Veneza” –, desta vez um pequeno recorte docélebre Decameron, a obra-prima de Boccaccio.Do mesmo autor o Suplemento indica ainda o“Decamerão”, publicado pela Itatiaia, em 2002,com 802 páginas.

PÁGINA ÓRFÃRégis BonvicinoSão Paulo: Martins, 2007

Fundador e co-diretor da revista Sibila, RégisBonvicino lança seu novo livro de poemas, sob o títu-lo de “Página órfã”. Alma inquieta, sempre atual einstigante, sempre imprevisível e radical, Bonvicino éconsiderado um dos mais importantes autores dapoesia brasileira contemporânea.

COLEÇÃO ÁS DE COLETERio de Janeiro; São Paulo: 7Letras e Cosac Naify, 2007

Ás de Colete é uma parceria entre as editoras CosacNaify e 7Letras, que publica poetas nacionais e es-trangeiros contemporâneos. Entre os títulos jálançados estão

RILKE SHAKE | Angélica FreitasCom poemas nos quais “o humor carrega umadimensão trágica de tristeza e deslocamento”, RilkeShake é o livro de estréia da gaúcha Angélica Freitas.

A CADELA SEM LOGOS | Ricardo DomeneckNeste livro, Ricardo Domeneck reúne “reflexãofilosófica, apegos eróticos” e seu desejo de “rompervelhas dicotomias”.

20 POEMAS PARA SEU WALKMAN | Marília GarciaA carioca Marília Garcia traz “um livro de muitasvozes e velocidades”, abordando “universos diferen-tes” de diferentes lugares do mundo.

ALTA TRAIÇÃOOrganização e tradução: Carlos Felipe MoisésSão Paulo: Unimarco, 2005

Poeta e crítico literário, Carlos Felipe Moisés reuniu,nesse título, poemas de língua estrangeira pararealizar a difícil tarefa da tradução de poesia. Nolivro, o autor contempla escritores como MarcelProust, Guillaume Apollinaire, Luis Cernuda e W. H.Auden, entre outros.

RO

DR

IGO

GAR

CIA

LO

PES Língua, estranha viagem

por paraísos perdidos, esperantos,

sendas, cantilenas

de templos escondidos

à beira-mar

na mata densa, enquanto

em estado de pensamento

a paisagem se evapora

num eu que é quase silêncio

brecha entre o que foi

e o que será

tempo dentro de tempo

vestígios da noite derruída

vertigens pelas trilhas de luz

outro outono e seus gestos

claros e secretos

enquanto flores de linguagem

caem em nossos pés.

ENQU

ANTO

RODRIGO GARCIA LOPES é poeta, tradutor e editorda revista Coyote. Autor de vários livros, entreos quais, Nômada, Rio de Janeiro: Lamparina,2004, e Polivox. Poemas 1997-2000, Rio deJaneiro: Azougue Editorial, 2001.