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18 Novembro 2010 * WWW.REVDESPORTIVA.PT TEMA 3 Reabilitação das instabilidades crónicas do tornozelo 1 – Introdução O entorse do tornozelo é uma lesão com uma elevada incidência e que, em alguns casos de tratamento inadequado ou insuficiente, leva ao aparecimento de um quadro de queixas residuais que se prolonga no tempo e limitam de forma significativa o desempenho desportivo dos atletas (1) . É neste contexto que surge o conceito de Instabilidade Crónica do Tornozelo (ICT) definida por dois as- pectos: entorses recorrentes em inversão e persistência por tempo prolongado de sintomatologia residual, em particular a manutenção de uma sensação subjectiva de falência articular (2) . 2 - Fisiopatologia É hoje consensual o facto de a instabi- lidade crónica do tornozelo poder ser o resultado de duas causas potenciais que parecem coexistir na maioria dos casos: a instabilidade mecânica passiva e a instabilidade dinâmica funcional (3) . A instabilidade mecânica manifesta-se cli- nicamente por uma laxidez patológica do tornozelo secundária às lesões capsu- lo-ligamentares decorrentes do entorse. Recentemente foram descritos outros factores passivos associadas à instabili- dade passiva como restrições da cinemá- tica articular, alterações degenerativas articulares e alterações da membrana sinovial. Após os conceitos introduzi- dos por Freeman (4) há algumas décadas parecia que as alterações dinâmicas as- sociadas com ICT estariam exclusiva- mente associadas a uma desaferenciação articular. Esta seria devida a destruição estrutural dos mecanorreceptores e das vias aferentes decorrentes do entorse inicial. No entanto estudos com aneste- sia dos mecanorrectores ligamentares e capsulares não demonstraram de forma consistente a diminuição dos resulta- dos nos testes de medição de sentido posicional e cinestésico e nos testes de controlo postural (5) . Por outro lado aten- dendo ao comprimento dos neurónios envolvidos no arco reflexo medular e ABSTRACT Um grande número de atletas sofrem de um quadro de Instabilidade Crónica do Tornozelo (ICT) sendo causa de limitação funcional importante. Mecanismos passivos e dinâmicos, com alterações quer de mecanismos de feed-back quer de feed-forward parecem estar implicados neste processo. O tratamento destas situações baseia-se num programa de fortalecimento muscular analítico, numa treino de equilíbrio e num treino funcional orientado. Chronic ankle instability is very common in athletes and is one of the major causes of func- tional impairment in sports. Mechanical instability and functional instability, with deficits of both feed-back and feed-forward mechanisms are involved. Treatment is based on muscular strengthening programs, balance training and functional sport’s oriented tasks. Instabilidade crónica tornozelo (chronic ankle insatability) Dr. Pedro Saraiva, especialista em Medicina Desportiva; especialista em Medicina Física e de Reabilitação; Dep. Médico da Associação Académica de Coimbra / OAF PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS » Rev Medicina Desp in forma, 1 (6), pp.18-20, 2010

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tornozelo

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Reabilitação das instabilidades crónicas do tornozelo

1 – Introdução

O entorse do tornozelo é uma lesão

com uma elevada incidência e que, em

alguns casos de tratamento inadequado

ou insuficiente, leva ao aparecimento de

um quadro de queixas residuais que se

prolonga no tempo e limitam de forma

significativa o desempenho desportivo

dos atletas(1). É neste contexto que surge

o conceito de Instabilidade Crónica do

Tornozelo (ICT) definida por dois as-

pectos: entorses recorrentes em inversão

e persistência por tempo prolongado de

sintomatologia residual, em particular a

manutenção de uma sensação subjectiva

de falência articular(2).

2 - Fisiopatologia

É hoje consensual o facto de a instabi-

lidade crónica do tornozelo poder ser

o resultado de duas causas potenciais

que parecem coexistir na maioria dos

casos: a instabilidade mecânica passiva

e a instabilidade dinâmica funcional(3). A

instabilidade mecânica manifesta-se cli-

nicamente por uma laxidez patológica

do tornozelo secundária às lesões capsu-

lo-ligamentares decorrentes do entorse.

Recentemente foram descritos outros

factores passivos associadas à instabili-

dade passiva como restrições da cinemá-

tica articular, alterações degenerativas

articulares e alterações da membrana

sinovial. Após os conceitos introduzi-

dos por Freeman(4) há algumas décadas

parecia que as alterações dinâmicas as-

sociadas com ICT estariam exclusiva-

mente associadas a uma desaferenciação

articular. Esta seria devida a destruição

estrutural dos mecanorreceptores e das

vias aferentes decorrentes do entorse

inicial. No entanto estudos com aneste-

sia dos mecanorrectores ligamentares e

capsulares não demonstraram de forma

consistente a diminuição dos resulta-

dos nos testes de medição de sentido

posicional e cinestésico e nos testes de

controlo postural(5). Por outro lado aten-

dendo ao comprimento dos neurónios

envolvidos no arco reflexo medular e

abstract

Um grande número de atletas sofrem de um quadro de Instabilidade Crónica do Tornozelo (ICT) sendo causa de limitação funcional importante. Mecanismos passivos e dinâmicos, com alterações quer de mecanismos de feed-back quer de feed-forward parecem estar implicados neste processo. O tratamento destas situações baseia-se num programa de fortalecimento muscular analítico, numa treino de equilíbrio e num treino funcional orientado.

Chronic ankle instability is very common in athletes and is one of the major causes of func-tional impairment in sports. Mechanical instability and functional instability, with deficits of both feed-back and feed-forward mechanisms are involved. Treatment is based on muscular strengthening programs, balance training and functional sport’s oriented tasks.

Instabilidade crónica tornozelo (chronic ankle insatability)

Dr. Pedro saraiva, especialista em Medicina Desportiva; especialista em Medicina Física e de Reabilitação; Dep. Médico da Associação Académica de Coimbra / OAF

Palavras-chavekeyworDs

» Rev Medicina Desp in forma, 1 (6), pp.18-20, 2010

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aos valores fisiológicos de velocidade condução neuronal, não

haveria tempo suficiente para que a resposta dos eversores, em

consequência de uma instabilidade em inversão súbita, evitas-

se a lesão(6). Parece hoje aceite que há uma actividade muscular

dos eversores fundamental, prévia ao contacto do pé com o

solo durante a marcha e o salto, indiciando um mecanismo de

controlo motor de feed-forward. Parece ser fundamental que

haja uma capacidade antecipatória prevendo situações de re-

cepção em possível instabilidade, onde assumem papel impor-

tante o sistema gama e um aumento da excitabilidade a nível

dos motoneurónio alfa eferentes(6).

3- Reprogramação neuro-muscular

Para se proceder a um programa de reprogramação neuro-mus-

cular nas situações de ICT consideram-se essenciais três aspec-

tos: reequilíbrio da força muscular, um programa de treino de

equilíbrio respeitando regras de progressividade e um treino

funcional orientado especificamente para cada modalidade(7).

3.1 - Fortalecimento muscular

Nos últimos anos o trabalho de fortalecimento muscular

incidiu primordialmente no grupo eversor, tentando com

isso restituir uma capacidade de contrariar o movimento

de inversão, quer numa fase antecipatória com uma re-

cepção ao solo com um ângulo eversor aumentado, quer

com um trabalho em excêntrico que frenasse o momento

de inversão potencialmente agressor(8). Trabalhos recen-

tes realçaram a existência de um défice de força muscu-

lar também em inversão. Os inversores do tornozelo con-

trolam o momento de eversão do calcâneo, evitando um

mecanismo potencial de inversão exagerada com stress

ligamentar acrescido do complexo ligamentar lateral. Al-

guns autores tentam explicar a inibição dos inversores por

mecanismos reflexos artrogénicos, sendo a sua existência

demonstrada em vários estudos(9). Recentemente, alguns

trabalhos encontraram também uma diminuição na força

muscular do tricípete sural, particularmente em excêntri-

co(10) e dos abdutores e extensores da coxo-femoral em

indivíduos com ICT(3). Parece assim fundamental avaliar

com particular atenção estes grupos musculares e proce-

der a um programa de fortalecimento muscular analítico

restituindo critérios de normalidade. O programa é evo-

lutivo sendo numa primeira fase efectuado em isometria,

passando para um trabalho isotónico concêntrico, e termi-

nando num trabalho excêntrico. Usualmente é privilegiado

o trabalho com resistência manual e com bandas elásticas

de resistência progressiva.

3.2 - Treino de equilíbrio

O treino de equilíbrio deve sempre respeitar critérios de segu-

rança, deve ser estimulante, ter uma abordagem multissenso-

rial, partindo de um movimento sectorial e evoluindo para um

gesto técnico específico. São efectuadas 3 a 5 sessões semanais

por um período de 4 a 6 semanas(11). O treino é normalmente

iniciado no solo recorrendo ao treino em estrela, evoluindo de-

pois para superf ícies de instabilidade crescente.

3.2.1 - Treino de equilíbrio em superfícies estáveis

- Estrela

Este trabalho é efectuado numa fase precoce no solo recorren-

do a um desenho em estrela com 8 braços de 90 cm com 45º de

intervalo entre cada um. Após um período de aquecimento em

cicloergómetro e um trabalho de flexibilização global, o atleta

coloca a linha transmaleolar no centro da estrela e tenta atingir

com o outro pé, sem tocar no solo e mantendo o equilíbrio, o

ponto mais distante em cada uma das direções da estrela, reto-

mando de seguida a posição inicial (12).

3.2.2 - Reprogramação neuro-muscular com

superfícies instáveis

Desde que Freeman introduziu as famosas tábuas instáveis,

vários autores tentaram mostrar a sua validade no tratamento

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da ICT. Os vários trabalhos posteriormente publicados com o

objectivo de validarem os seus resultados utilizaram as tábuas

descritas pelo autor tendo posteriormente introduzido varian-

tes com multi-estações e recorrendo a tábuas mais sofisticadas

como o Biodex Stability System(7) (13).

O treino de equilíbrio evolui de uma situação de apoio bipo-

dálico para unipodálico, permitindo apenas numa fase inicial a

utilização dos membros superiores para compensação do equi-

líbrio. Neste quadro de progressividade passa-se também de

um treino com os olhos abertos para uma situação posterior de

olhos fechados. Com a evolução clínica e com o maior controlo

do equilíbrio são adicionados estímulos externos para aumen-

to da dificuldade como por exemplo o arremesso de uma bola

que o atleta terá de agarrar mantendo a posição de equilíbrio.

Alguns autores advogam também a utilização de mini-trampo-

lim(14) como adjuvante neste treino de equilíbrio. Realiza-se um

trabalho de dificuldade crescente com estímulos externos que

promovem instabilidade, introduzindo-se o salto no trampo-

lim logo que clinicamente possível.

3.3 - Treino funcional direccionado

A fase final do programa de reabilitação das situações de ICT

é orientada em função da modalidade praticada pelo atleta em

questão(7). Introduz-se um trabalho de coordenação motora

com saltos, transposição de obstáculos, movimentos com mu-

danças bruscas de direção e alguns movimentos analíticos do

desporto em causa.

Alguns exemplos são os movimentos de passe e recepção no fu-

tebol com bola, de salto e passe lateral no rugby ou movimentos

de deslocação lateral com utilização de raquete no ténis.

4 - Taping e Ortetização nas ICT

Embora seja de uso corrente a utilização do taping e ortóteses,

essencialmente com estabilização lateral em gel ou em ar, na

prevenção de novos episódios de entorse em atletas com ICT,

os seus efeitos e o exacto mecanismos de acção ainda não são

totalmente conhecidos.

Se por um lado é valorizada a melhoria da função proprioceti-

va e aumento das aferências cutâneas a sua função de conten-

ção puramente mecânica parece questionável como factor de

limitação do mecanismo de inversão (15).

5 - Conclusão

A intervenção em atletas com ICT tenta essencialmente inter-

vir promovendo uma estabilização dinâmica deste segmento.

É possível que o programa de reprogramação neuro-muscular

crie adaptações a anível espinal e supra-espinal com a recons-

tituição da normalidade do controlo motor. Vários estudos

apontam para os benef ícios de uma intervenção com um pro-

grama de fortalecimento e treino de equilíbrio tendencialmen-

te funcional. No entanto, para uma maior uniformização vali-

dada dos métodos a utilizar será necessário que se continuem

a realizar mais estudos nesta área.

6 - Bibliografia1 – Gerber JP, Williams GN, Scottville CR, et al. Persistent disability associated with ankle

sprains: a prospective examination of the athletic population. Foot Ankle Int 1998; 19: 654-60

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3 - Hubbard TJ, Kramer LC, Denegar CR, et al. Contributing factors to chronic ankle instabili-

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4 – Freeman MA, Wyke B, Articular reflexes of the ankle joint: an electromyographic study of

normal and abnormal influences of ankle-joint mechanoreceptors upon reflex activity in the

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5 – Konradsen L, Ravn JB, Sorensen AL. Proprioception at the ankle: the effect of anaesthetic

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6 –Konradsen L, Voight M, Hosgaard C. Ankle inversion injuries. The role of dynamic defensive

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7 – Holmes A, Delahunt E. Treatment of common deficits associated with chronic ankle insta-

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8 – Munn J, Beard D, Refshauge KM,et al. Eccentric muscle strenght in functional ankle insta-

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9 – Wilkerson GB, Nitz AJ. Dynamic ankle stability: mechanical and neuromuscular interre-

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10 – Fox J, Docherty Cl, Schrader J. Eccentric plantar-flexor torque deficits in participants with

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11 – Webster KA, Gribble PA. Functional rehabilitation interventions for chronic ankle insta-

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12 – Chaiwanichiri D, Lorprayoon E, Noomanoch L. Star exercusion balance training: effects

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13 – Akhbari B, Takamjani IE, Salavati M, et al. A 4-week Biodex stability exercise program

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14 – Kidgell DJ, Horvarth Dm, Jackson bm. Effect of six weeks of dura disc and and mini tram-

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15 – Beynnon B, The use of taping and bracing in the treatment of ankle injury. ISAKOS

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