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CADERNO DE FORMAÇÃO II

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CADERNO DE FORMAÇÃO

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Expediente• Este caderno foi produzido pelo SINDSEP-MG, como subsídio para os cursos de formação política e sindical para dirigentes, representantes sindicais e trabalhadores de base. Gestão 2009-2012 • Pesquisa e Produção dos textos:Helder Molina, Historiador, Mestre em Educação (UFF), Doutorando em Políticas Públicas (UERJ), Educador e Pesquisador Sindical e Assessor de Formação da CUT-RJ.

• Roteiro e Organização: Carlos Henrique de Melo, Mestre em Saúde Pública e Diretor do SINDSEP-MG (Gestão 2009-2012)

Diretoria ColegiadaTITULARESAilton Ferreira da Silva Arnaldo José Santa Cruz Júnior Carlos Henrique de Melo Carlos Henrique Rodrigues Edilson Alves Coutinho Geraldo Custódio de Amorim Gilberto Almeida Oliveira Ivone Maria Carvalho RochaJussara Griffo Luiz Roberto dos Santos AzevedoMaria Adelina Braz Maria Aparecida Guimarães Marizete dos Santos MendesRonaldo Vasconcelos dos Santos Rosângela Nogueira da Silva Rosângela Silva Alves Ubiratan Nascimento Vera Lúcia Ribeiro dos Santos Vicente Paulo de FreitasVilma Moreira dos Santos Waldelino Lopes de Moura

SUPLENTESFrancisco Alves SaldanhaMaria de Fátima da Silva SantanaMaria Donizetti de Paula Maria Elza Soares MachadoMiguel Ladislau

Rita de Cássia Rodrigues

Conselho FiscalTITULARESAssuero Torres de MatosDirceu Francisco MendesLélio Pereira

SUPLENTES João Santana Pereira da SilvaMarco Antônio dos Santos Walter Ferreira Lopes

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SUMÁRIO1 - Apresentação....................................................................................................04

2 - Conceitos Básicos sobre capital, capitalismo, trabalho, produção classes sociais, movimentos sociais - Helder Molina................................05

3 - O sindicato: Nossa casa coletiva, nossa identidade de classe, nosso instrumento de luta - Helder Molina..............................................................07

4 - Os trabalhadores, o movimento sindical e os espaços de participa-ção política institucional. - Helder Molina....................................................09

5 - A relação dialética entre sindicatos, consciência de classe e orga-nização política dos trabalhadores - Helder Molina.................................13

6 – Ex-vereador e deputado do castelo perdem seus cargos...............17

7 – Horizonte ético da Mobilização – Bernardo Toro................................18

8 - Os Desafios do Movimento Social frente à Crise Capitalista e o Neoliberalismo – Frei Betto..............................................................................23

9 – Mobilização popular e participação – Gestão Social e Democracia: problemas e perspectivas – Ilza Araújo Leão de Andrade......................26

10 – O que é ser humano? Frei Beto..............................................................30

11 - Direitos Humanos do Idoso - Paulo Vannuchi...................................33

12 – Japão – Monja Coen...................................................................................35

13 – O preço de não escutar a natureza – Leonardo Boff.......................36

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1 Apresentação A política de formação desenvolvida pelo SINDSEP-MG tem sido extremamente importante para fortalecer o Sindicato em todas as Regiões do Estado de Minas Gerais. Desde que iniciamos esse processo, no início de 2010, com as Oficinas de Capacitação de Base, aproximadamente 310 trabalhadoras e trabalhadores partici-param dos processos formativos no ano de 2010, em oficinas de 14 horas/aula presenciais.O Caderno de Formação II, que ora estamos apresentando, servirá de roteiro e referencial teórico-político, e didático-metodológico, para o segundo módulo, das Oficinas de Capacitação.O modelo inicialmente proposto e exaustivamente preparado por nós foi testado e aprovado na base. Vamos fazer mais 27 Oficinas até o final de 2011, e temos como meta a participação de 650 trabalhadores (as) fed-erais, nas diferentes Regiões do nosso Estado.O formato das Oficinas é de 10 horas/aula presenciais. Nesta segunda etapa estão ocorrendo duas etapas uma teórica e outra prática. Também estão sendo previstas atividades para os participantes fazerem em casa de aproximadamente quatro oras/aula.

Os temas abordados neste primeiro módulo são:

a) A categoria dos Trabalhadores do Serviço Público Federal em Minas Gerais. Resgatando a história de lutas e o processo de organização política e sindical, como uma categoria que conquistou o direito de se sindi-

calizar e se organizar em associações, fóruns, depois em sindicatos gerais ou específicos, e depois fundando sua própria confederação nacional – a CONDSEF –, possibilitando, ainda, aos participantes, o conhecimento

do processo de conquista dos direitos elementares, e que hoje encontra grandes dificuldades de organização;

b) Qualidade de Vida e Promoção da Saúde;c) Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável;

d) Direitos Humanos;e) Estatuto do Idoso Sob a Ótica dos Direitos Humanos, com a exibição e debate

de um filme específico sobre o tema;f) Mobilização Social e Participação Popular; e

g) A Mobilização de Classe no SINDSEP-MG.

As Capacitações de Base em formato de Oficinas foram estruturadas e desenvolvidas como objetivo uma melhor interação entre os (as) trabalhadores (as) filiados e, consequentemente, ser mais participativa, além de propiciar uma maior reflexão por parte de todos. Trabalhamos com leituras de textos, um vídeo sobre a situação da terceira idade no Brasil. Fazemos um teatro de improviso com os participantes sobre os conselhos municipais de saúde – esta parte está sendo um sucesso!

Como produto das Oficinas de Capacitação de Base pretende-se criar Comissões Locais de Mobilização para oxigenar as articulações de base. Além de propiciar mais uma força política de sustentação do SINDSEP-MG.

Está sendo elaborado o terceiro caderno de formação de base para ser usado no próximo ano. Como vamos passar por um processo de eleição a partir de setembro de 2012, queremos fazer mais 15 oficinas de capaci-tação – em cidades com mais de 50 filiados – até o mês de agosto de 2012, com expectativa de capacitar em 2012 mais 600 trabalhadores e trabalhadoras. Para o próximo ano cada oficina deverá ter um dia de duração. O tema central discorrerá sobre as formas de mobilizarmos nossas bases a partir da montagem de uma coletânea de textos curtos, mas reflexivos. Tam-bém será abordada a importância de sermos sindicalizados. Sempre colocando todas estas discussões dentro dos contextos institucionais, sociais, econômicos e ambientais relacionados às nossas militâncias políticas e sindicais.

Diretoria Colegiada do SINDSEP-MG.Gestão 2009/2012

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2 Conceitos Básicos sobre Capital, Capitalismo, Trabalho, Produção, Classes Sociais e Movimentos SociaisHelder Molina

1. Modo de produção capitalista: organização das forças produtivas e das relações sociais com o intuito de gerar mais-valia que garanta a produção material e a reprodução social do Estado Capitalista.

2. Forças produtivas: terra, trabalho, capital, tecnologia: elementos essenciais à produção capitalista.

3. Relações sociais de produção: organização e interação das pessoas e das classes na sociedade, tendo em vista a produção material e a reprodução social, a manutenção e ampliação das relações sócio-político econômicas.

4. Classes sociais: grupos de pessoas que se diferenciam, entre si, pelo lugar que ocupam no sistema de produção social historicamente determinado, pelas relações em que se encontram no que diz respeito aos meios de produção, pelo papel que desempenham na organização social do trabalho, e, consequentemente, pelo modo de receber e pela proporção que recebem a parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos humanos, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro, por ocupar posto diferente, num regime determinado da economia social.

5. Trabalho: atividade significativa na vida, processo criativo, descoberta, forma de humanizar a sobrevivência das pessoas na natureza.

6. Trabalho alienado/precário... sinônimo de chicote “tripalhium” , dor, sofrimento, produto de relações de domi-nação, submissão, castigo, atividade desvalorizada socialmente, que gera sentimentos de inferioridade e produtos desvinculados da vida e das necessidades do trabalhador. O trabalhador realiza tarefas de forma mecânica, alheia ao produto. Seu trabalho não produz resultados suficientes para que ele possa usufruir de sua produção e passa a não ter relação com sua vida, é um trabalho forçado, por obrigação, a chamada gênese da exploração e alienação do trabalho.

7. Infraestrutura: base econômica da produção dos bens materiais de determinada sociedade que condiciona o surgimento da superestrutura.

8. Superestrutura: organização das instâncias política, jurídicae ideológica nas diferentes manifestações do Es-tado e da sociedade civil.

9. Luta de classes: relações conflitantes de interesses entre as classes sociais; processo dialético que atua como motor da história, criando o movimento permanente em razão das contradições, da exploração das classes domi-nantes; para Marx, toda história transcorrida até então tinha sido uma história de lutas de classes.

11. Mais-valia: processo histórico de exploração do trabalho que propicia a acumulação do capital; denomina-se também trabalho não pago e apropriado pelo capitalista, e trabalho morto.

12. Propriedade privada dos meios de produção: resultado concreto do processo histórico que possibilitou a con-centração da riqueza nas mãos de poucos (terra, trabalho, capital, matérias primas, ouro, prata, pedras preciosas, legislações, meios de comunicação), através da expropriação, pirataria, guerras, etc. viabilizando a organização de um modo de produção que se mantém e amplia pela exploração daqueles que só têm sua força de trabalho para vender ou negociar.

13. Contrato: dispositivo sócio-jurídico,político-econômico que assegura às partes contratantes, direitos e deveres pré- estabelecidos e sujeitos a sanções, em caso de inadimplência.

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14. Produção ampliada: processo produtivo que parte do capital para produzir mercadoria que, vendida no mer-cado, permite obter o capital inicial acrescido da mais-valia.

15. Salário: pagamento pelo tempo de trabalho realizado pelo trabalhador e que deverá garantir a produção e reprodução social do trabalhador, produção de futuros trabalhadores (as).

16. Renda da terra: percentual pago pelo arrendatário ao proprietário do imóvel, para que possa utilizar a terra na produção de mercadorias; a renda da terra é um custo social pago pela sociedade para que ela possa desfrutar dos bens e alimentos necessários e produzidos no campo.

17. Juros: tributação imposta em razão do empréstimo e aplicação do dinheiro alheio

18 . Mercadoria: produto para o mercado; bem de uso e bem de troca que se constitui no produto do modo de produção capitalista, capaz de assegurar ganhos, lucros e mais-valia no mercado.

19. Administração/ gestão: é a utilização racional de recursos para a realização de fins determinados.

20. Mercado - Existe mercado quando compradores desejosos de trocar dinheiro (moeda) por um bem ou serviço estão em contato com vendedores desejosos de trocar bens ou serviços por dinheiro. Assim, define-se o mercado em termos das forças fundamentais de oferta e demanda, não necessariamente confinadas a uma determinada localização geográfica.

21. Socialistas Utópicos: pensadores que resistiram após a revolução francesa, tiveram menos condições de ex-perimentar suas propostas e foram vistos como loucos, rebeldes e seus esforços desqualificados, tratados como românticos ou utópicos, classificados como socialistas utópicos, entre eles os mais conhecidos são Owen, Fourrier e Proudhon

Perguntas de um trabalhador que lêBertold Brecht

Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedras? E a Babilônia várias vezes destruída - quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas da Lima dourada moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida, os que se afogavam gritavam por seus escravos na noite em que o mar a tragou.O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho? César bateu os gauleses. Não levava sequer um cozinheiro? Filipe da Espanha chorou quando sua Armada naufragou. Ninguém mais chorou? Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem venceu além dele?Cada página uma vitória. Quem cozinhava o banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava a conta? Tantas histórias. Tantas questões.

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3 O sindicato: Nossa casa coletiva, nossa identidade de classe, nosso instrumento de luta Helder Molina

1. O sindicato existe para defender os direitos dos trabalhadores. Nossos direitos são frutos de muitas lutas, e para garanti-los temos que ter um sindicato forte e de luta.

2. Hoje temos emprego, salário, previdência, plano de saúde, e tantos outros direitos garantidos. Mil-hões de trabalhadores não têm. Amanhã, quem garante que não estaremos sem emprego, vivendo na informalidade, sem salário, sem renda, sem direitos, sem futuro? E pensando nisso que nos organizamos em sindicatos

3. Os direitos que os trabalhadores têm, hoje, são frutos de muitas lutas, vindas desde o século XIX. Du-ros combates e mobilizações para melhorar a vida dos trabalhadores se deram não só no Brasil (desde a escravidão), mas no mundo inteiro.

4. A luta pela definição, e depois pela redução da jornada de trabalho, vem de 150 anos. Quando não havia sindicatos, nem direitos trabalhistas. Era o patrão quem decidia o preço da força de trabalho e a duração da jornada. Eram de 14 ou 16 horas diárias, e o trabalho das crianças e mulheres não remunera-das.

5. Só na década de 1920 os trabalhadores conquistaram a jornada de 8 horas diárias. E no Brasil foi garantida na lei só em 1932. A vida “produtiva” de um trabalhador não passava de 25 anos de trabalho. Viravam bagaços humanos nas engrenagens das fábricas.

6. Só a partir de 1910 foi garantido o descanso aos domingos e o direito a férias. E essas conquistas foram à custa de muitas greves, mobilizações de massas, sofrendo repressões violentas, torturas, prisões, desa-parecimentos, mortes. Operárias queimadas vivas numa fábrica de Chicago são prova disso

7. Os grandes banqueiros e empresários só acumulam lucros porque exploram os trabalhadores. Din-heiro não nasce em árvore, nem cai do céu. O lucro privado ou estatal é produto da exploração do trabalho e do trabalhador, e da ausência de políticas sociais de distribuição da riqueza e dos benefícios gerados pelo trabalho humano, ou quando o.

8. Estado vira um comitê de negócios e interesses das classes que dominam a sociedade e monopolizam a economia

9. O 13º salário foi conquistado após grandes greves, confrontos sangrentos, desde 1953, em São Paulo. E só foi reconhecido em lei em 1962, no governo Goulart, após uma década de lutas.

10. As leis de aposentadoria, contra acidentes de trabalho, da licença-maternidade, da periculosidade e insalubridades, fundo de garantia por tempo de serviço, todas, foram resultados de muitas lutas, sem nenhuma dádiva do Estado e dos patrões.

11. Foram presos mais de cinco mil trabalhadores metalúrgicos, em greve, na frente do sindicato, em São

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Paulo. Para conquistar um direito que os trabalhadores já tinham na Europa, Japão e nos EUA, menos no Brasil. Questão social no Brasil sempre foi “caso de polícia”.

12. Nada veio por bondade dos patrões, dádiva do Estado, vontade de Deus, ou por “sorte” de alguns trabalhadores. Ao contrário, só a resistência, a organização, a luta, a mobilização coletiva, traz conquista e direitos.

13. A empresa privada ou estatal, para implantar banco de horas tem, por força da Convenção Coletiva, negociada pelo sindicato, que se submeter às regras instituídas para proteger nossos direitos.

14. Todo trabalhador tem direito de se sindicalizar, exercer sua cidadania sindical, opinar, discordar, propor, eleger e ser eleito, desde que participe ativamente da vida de seu sindicato. Quando sindical-izado, não precisa descontar a Contribuição Assistencial, que é decidida em Assembléia.

15. Por força da Convenção Coletiva, negociada pelo sindicato, as horas extras de domingos e feriados não podem ser compensadas no Banco de Horas, isso é uma conquista de duras lutas e conflituosas negociações.

16. Nunca é demais registrar: Do céu só cai chuva, sol e as benções da fé. Todos os direitos trabalhistas, direitos sociais, políticos, que temos hoje, foram conquistados através de muitas lutas da organização sindical, dos movimentos sociais. Tudo é fruto de lutas. Se lutando já é difícil, sem luta é muito mais!

17. O sindicato, ao cobrar Contribuição Assistencial dos trabahadores não sindicalizados, faz um ato de justiça, pois as despesas de uma campanha salarial são grandes, e os direitos e benefícios, quando conquistados e garantidos, são distribuídos a todos e todas, os que lutaram e os que não lutaram. Não é justo que só os sindicalizados se responsabilizem pelos custos. Os sindicalizados sustentam a entidade, sempre, antes e após as campanhas salariais.

18. Por conseqüência desse ato, a Contribuição Assistencial visa garantir recursos para as despesas da campanha salarial, como cálculos e acompanhamentos estatísticos e sóci0-econômicos, assessoria ju-rídica, produção de boletins, viagens para negociações, materiais, jornais, publicações de editais)

19. O trabalhador sindicalizado tem direito garantido de assistência jurídica, seja individual ou coletivo, com advogados de direitos trabalhista, criminal e cível .

20. O trabalhador sindicalizado tem direito a descontos em diversas instituições de ensino, lazer, esporte, saúde e outras, com as quais o sindicato tem convênio. Veja no site do sindicato a lista de convênios, usufrua desse direito.

21. Uma negociação salarial é longa, difícil, cansativa, com avanços e recuos, ainda mais em tempos de Crise. O sindicato negocia duramente para que você tenha reajustes sobre o salário, sobre o tíquete e todas as outras cláusulas que envolvem valores monetários.

22. Tenha certeza que, se dependesse da empresa você receberia 0% de reajuste salarial e seus dire-itos seriam reduzidos e benefícios retirados. Só não nos atacam mais, porque lutamos coletivamente, e porque o sindicato luta com você.

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4 Os trabalhadores, o movimento sindical E os espaços de participação política institucionalHelder Molina

Uma questão não resolvida, ou mal resolvida, nos movimento sociais e sindicatos, é a questão do poder. Esse tema têm causado profundos conflitos no debate sindical e popular. Quais devem ser as relações entre os movimentos sociais populares, partidos políticos, poder público/Estado, e instâncias de participação institucional. Participar? Não participar: Se participar, como. Essas instâncias e espaços são instrumentos privados ou públicos? Servem para os interesses privados e capi-talistas? Para a cooptação, acomodação, adaptação, corrupção, traição? Ou podem ser instrumentos de interesses coletivos, públicos, portanto, de mudanças? transformações? É sobre essa polêmica que este artigo tenta se inserir. Nos últimos 30 anos, a partir das lutas dos movimentos sociais organizados, e dos setores democráticas da sociedade brasileira,Superamos a ditadura militar e o Estado autoritário, colocamos na agenda política e sócio econômica as reivindicações e concepções dos(as) trabalhadores(as) sobre Estado, políticas públicas, direitos sociais, participação e cidadania. Nos anos 80, no processo de transição da ditadura para o Estado democrático de direito, os movimentos sociais e suas organizações retomaram a iniciativa política, não só de denúncia e resistência, mas de elaboração e proposição de alternativas. Os(as) trabalhadores(as) ocuparam a cena política e, como produto desse protagonismo abriram-se os espaços de participação institucional e política na esfera pública, Portanto, a democracia que se institucional no Brasil, mesmo com todas as dificuldades, lentidão, avan-ços e recuos, é uma conquista política da classe trabalhadora e do povo. Contra a vontade das classes dominantes, principalmente quanto estas tinham a completa hegemonia (dominância) do aparelho do Estado (Seja união, estados ou municípios). No início dos anos 90, e por toda a década, sofremos um profundo e organizado ataque das políticas neoliberais, de privatizações das políticas públicas, desmonte do poder e da política, dos orçamentos e recursos destinados aos setores mais pobres da sociedade, de Estado mínimo e mercado máximo, desregulamentação dos direitos trabalhistas, crescimento das terceirizações e das precarizações das relações de trabalho, desemprego, abandono da saúde e educação públicas, crescimento do espaço privado, individualismo, da idéia de cada um por si, da propaganda, da mercadoria, do consumo, e da agressiva tentativa de esvaziamento dos espaços de participação pública, dos movimentos sociais, dos sindicatos. Os movimentos sociais resistiram, mas a verdade é que aquele vendaval neoliberal que varreu o Brasil, a America Latina e o mundo, nos deixou na defensiva, na resistência, e nas respostas fragmentadas e sem um projeto ou alternativa que desse unidade e força às diversas lutas dos movimentos sociais. Nos últimos anos, mesmo ainda sofrendo os estragos provocados pelas políticas de mercado, de priva-tização e de flexibilização das políticas públicas, dominantes na década de 1990 e inicio dos anos 2000, os movimentos sociais e suar organizações resistiram e combateram na busca da participação política na

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vida social, de mudanças nas prioridades econômicas, no resgate do papel do Estado e do poder públi-co, na consolidação de canais de interlocução e proposição de projetos e alternativas, na distribuição da renda, na discussão coletiva dos orçamentos públicos, enfim, de institucionalização da democracia, visando melhorar a vida da maioria da população. Os movimentos sociais sempre tiveram desconfiança do Estado, e, portanto descrentes ou contrários à participação e suas esferas de formulações e decisões. No Brasil, desde a colonização, o Estado sempre foi espaço e instrumento de poder das classes dominantes, das oligarquias, seja no Império, seja na República. No século XX o Estado (há não se em pequenos períodos históricos de participação dos mo-vimentos sociais nos destinos do Estado, como no início dos anos 1960 - governo Goulart - 1961-1964). Portanto têm razões históricas essa desconfiança e mesmo rejeição ao Estado e suas instâncias. Muitos estudiosos e pensadores, como Marx, afirmam, com certa razão, que o Estado é um aparelho de re-produção da ideologia e dos interesses econômicos e políticos das classes dominantes. O que seria necessária uma ruptura estrutural (desmontando este e construído outro), isto é, derrubar, por abaixo este Estado capitalista, para que ele viesse a atender aos interesses da maioria do povo, que são os (as) trabalhadores (as). Outros, como Althusser, confessam sua completa descrença na transformação do Estado e das ideologias capitalistas que não fosse pela via da ruptura revolucionária. Com certeza, o Estado que interessa aos trabalhadores só vai surgir se desmontarmos, botarmos abaixo este Estado patrimonialista, privatizado pelas oligarquias econômicas e políticas, um verdadeiro comitê dos negócios dos empresários e suar organizações. O problema é a forma, o processo, o como fazer. Para isso temos que analisar a correlação de forças, a nossa capacitação organizativa e política de enfrentar-mos essas tarefas de mudança social e econômica do Estado e da sociedade. A nosso ver essas rupturas e mudanças econômicas, sociais e políticas não se darão num só golpe, num ataque único e definitivo, como em certos processos revolucionários ao longo da história. Entendemos que a mudança se dará num longo processo de acúmulo de forças e de espaços conquistados, de dispu-tas contra a hegemonia dos empresários, latifundiários e banqueiros, e seus interesses, no Estado e na sociedade. Portanto, têm que ser produto de um processo combinado de lutas, mobilizações e pressões sociais coletivas, dos trabalhadores e suas organizações políticas, dos movimentos sociais diversificados, e de avanços e conquistas dos espaços institucionais, sejam parlamentos, prefeituras, governos estad-uais e federal. A mudança tem que combinar a luta social, luta direta, nas ruas, passeatas, mobilizações, greves, mar-chas e pressões contra os patrões e o Estado, com a luta institucional, na participação eleitoral, com can-didatos e programas que defendem os direitos e reivindicações dos (as) trabalhadores (as), sejam para as câmaras municipais de vereadores, assembléias legislativa, câmara e senado federal, seja para as pre-feituras, governos estaduais e federais, e com a participação ativa nos conselhos de políticas públicas, nos fóruns de discussão do orçamento e das prioridades políticas de aplicação dos recursos públicos, nas instâncias de proposição e gestão pública. O Estado (aqui entendido como esfera governamental, portanto), aqui incluídas as prefeituras, e suas políticas devem ser públicas, para responder aos interesses públicos. Desprivatizar o poder, empoderar os movimentos sociais, construir os espaços públicos estatais de participação, eis uma das tarefas dos sindicatos, dos movimentos sociais. Num país complexo como o nosso, com profundas heranças escravistas, de exclusão dos pobres, mar-

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ginalização e criminalização dos movimentos sociais, de violência institucional, de silenciamento, es-magamento e agressão aos direitos das mulheres, dos negros e negras, dos índios, dos homossexuais, enfim, marcado pelas injustiças sociais na distribuição da renda e da decisão política, mais do que nunca temos que tomar o Estado e torná-lo realmente poder público, para democratizar a economia, a política e a sociedade. Tomar o Estado significa retirar das mãos dos interesses privados, patrimonialistas, nepotistas, e trazê-lo para as mãos dos (as), trabalhadores (as), das crianças, dos jovens, dos adultos, enfim, da sociedade que trabalha e produz a riqueza da nação.Não é possível mudar o mundo sem mudar o poder. Defender a autonomia dos movimentos sociais significa dotá-los de capacitade política (empoderar) para disputar os espaços da luta social direta, combinada com as lutas institucionais. Ambas são lutas políticas. Portanto, os trabalhadores e os trabalhadores devem participar ativamente da política, pois a política que interessa à classe trabalhadora só poderá ser desenvolvida e conquistada pelas orga-nizações (aqui incluídos os partidos políticos) que estão vinculados aos interesses e lutas concretas da classe. Mais do que nunca devemos participar da política, a luta sindical tem profundos limites, pois está presa às reivindicações corporativas, econômico-salariais. Na disputa política mais geral, pelos direitos dos (as) trabalhadores (as) são necessárias, fundamentais e não podem ser abandonadas. Mas devem combinar com outras lutas e reivindicações, que são obrigações do Estado (poder público). Os (as) trabalhadores (as) devem ter seus representantes nos parlamentos e nas prefeituras e governos. Mais que aliados, são seus representantes. Porta vozes de suas bandeiras, reivindicações, projetos e al-ternativas. Numa democracia representativa, que tem hegemonia das classes dominantes, mais do que nunca devemos ampliar as esfera da participação, da cidadania e da democracia popular. Sim, devemos lutar para construir uma democracia popular, um projeto das maiorias, dos setores populares. Esses espaços de participação também são espaços de formação política, de desenvolvimento de uma cidadania ativa, consciente, concreta, vinculada aos interesses de classe. Os sindicatos negligenciam os fóruns e conselhos de participação, ainda desconfiados sobre sua eficácia e capacidade de resolver problemas concretos da população. È a desconfiança de que falamos anteriormente. Centenas de conselhos, espaços, fóruns e instâncias institucionais, políticas, governamentais, que dis-cutem o orçamento público, que definem onde aplicar os recursos advindos dos impostos cobrados, em sua maioria, dos (as) trabalhadores (as), estão ocupados apenas pelos empresários e pelos burocratas estatais. Estes, com certeza, discutem e aprovam nesses espaços os seus interesses particulares, as suas prioridades, silenciando a voz dos mais pobres, calando as reivindicações dos movimentos sociais. Pela ausência dos movimentos sociais (aqui incluídos os sindicatos), acontecem os desvios de verbas públicas, a corrupção, o roubo desenfreado da riqueza produzida pelo trabalho dos (as) trabalhadores (as). Quando os (as) trabalhadores (as) ficam de costas, às escondidas se praticam o nepotismo, o emp-reguismo, o leilão do dinheiro público, a privatização, a corrupção, enfim. Pense nisso. Pense e se mexa. Cidadania ativa, discussão do interesse da cidade, governar os desejos coletivos, eis uma das tarefas fundamentais colocadas aos sindicatos, além do salário e do emprego. Que acha dis-so?

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Isso sim significa República, “res.” (coisa) pública, consciência política, agir coletivamente, responder à importância e a centralidade de participação das bases, construírem o poder popular de baixo para cima, romper com as velhas estruturas apodrecidas do Estado, do poder público, da política e da econo-mia. Enfim, no concreto significa erguer novas estruturas sociais, consolidando a distribuição da renda, da participação, da democracia. Os sindicatos, os movimentos sociais, os (as) militantes, atividades, dirigentes, devem pensar nestas questões, mesmo que discordando, mas debatendo, formulando alternativas. Um pé no movimento concreto e nas lutas da classe, outro pé na disputa pelo Estado. Sem perder a autonomia em relação aos partidos políticos, aos patrões e ao Estado (seja prefeito, gover-nador ou presidente da República). Governos, partidos políticos e movimentos sociais. Cada um destes tem seus papéis diferenciados. Importante não misturar os papéis, pois isto gera, entre outras coisas, cri-se de identidade, confusão, adaptação, cooptação, burocratização, enfraquecimento, corrupção, enfim sem perder a independência de classe, instrumento fundamental para construção de nossa identidade, nossas lutas e nossas vitórias. Quando Marx diz que emancipação dos (as) trabalhadores (as) será obra dos próprios trabalhadores, cabe perguntar? Como.

Elogio do aprendizadoBertold Brecht Aprenda o mais simples! Para aqueles Cuja hora chegou Nunca é tarde demais! Aprenda o ABC; não basta, mas Aprenda! Não desanime! Comece! É preciso saber tudo! Você tem que assumir o comando! Aprenda, homem no asilo! Aprensa, homem na prisão! Aprenda, mulher na cozinha! Aprenda, ancião! Você tem que assumir o comando! Frequente a escola, você que não tem casa! Adquira conhecimento, você que sente frio! Você que tem fome, agarre o livro: é uma arma. Você tem que assumir o comando. Não se envergonhe de perguntar, camarada! Não se deixe convencer Veja com seus olhos! O que não sabe por conta própria Não sabe. Verifique a conta É você que vai pagar. Ponha o dedo sobre cada item Pergunte: o que é isso? Você tem que assumir o comando.

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5- A relação dialética entre sindicatos, consciência de classe e organização política dos trabalhadoresHelder Molina

Estas notas problematizam a contraditória e complexa relação dialética entre sindicatos, partidos, orga-nização e consciência de classe. Coerente com o materialismo histórico e dialético, discutirmos que a ruptura estrutural de um modo de produção, não é meramente um evento político, mas um processo social, um movimento prático de transformação, através do qual os trabalhadores adquirem uma percepção de sua existência social, en-quanto, ao mesmo tempo, nega e destrói o sistema de dominação.Isto não significa subestimar o papel desempenhado pela teoria mas, preferencialmente, significa coloca-la no devido lugar, A consciência de classe é, portanto, uma síntese, tirada da experiência pessoal adquirida no decorrer de uma prolongada luta, que criticamente revê todo o conhecimento previamente disponível. É indispensável, ao mesmo tempo, que os trabalhadores compreendem a essência da sociedade capital-ista, as relações de exploração entres as classes sociais, e suas próprias tarefas históricas[1]

1 – Teoria, práxis e formação da consciência de classe “A emancipação dos trabalhadores deve ser obra pelos próprios trabalhadores”. Esta afirmação inicial nos es-tatutos da 1ª Internacional foi escrita por Marx, em 1864. Como Engels ressaltou alguns anos depois, a decla-ração sintetiza a sua “confiança total no desenvolvimento intelectual da classe operária” Foi esta confiança que os levou a ambos além do manifesto comunista, e se constitui em uma de suas mais originais contribuições ao movimento operário.De acordo com Marx, os trabalhadores não podem ser educados por uma fonte externa, dada a unidade indivi-sível entre teoria e prática, a consciência só pode se desenvolver através da práxis (sua própria, e não a de outro alguém) luta, ação e experiência.A teoria contribui para a construção da consciência de classe, pois oferece uma estrutura que mostra o processo de formação e desenvolvimento da consciência. A teoria marxista, como uma guia de ação para o movimento operário, não pode ser trazida para a luta de classes de fora para dentro, mas, ao contrário, deriva de experiên-cias concretas dos trabalhadores, e reflete-se sobre a experiência para fazer avanças suas próprias lutas.Assim, então, como este processo pode ser elucidado? Onde pode ser encontrada a forma predominante de consciência de classe? Em cada conjuntura, esta forma de consciência revela a distância entre os dois aspectos da natureza da classe trabalhadora, ou mais precisamente, a contradição entre sua essência e sua existência?A terceira tese sobre Feuerbach responde, em termos globais: Na práxis concreta da classe. Ma como uma ação empreendida por um sujeito real coletivo, esta práxis surge fragmentada porque a classe é, na realidade, het-erogênea. Está fracionada em grupos mais ou menos contingentes, cujas ações são, por isso, desarticuladas.A práxis parece complexa porque a classe trabalhadora atua em vários níveis e suas coes têm âmbitos e con-teúdos diferentes; embora tente lançar um desafio integrado para esta desarticulação, que é constantemente incentivada pelos sistema como um elemento chave em sua estratégia de dominação.Aqui, como o risco de retroceder à metafísica do sujeito, é importante estabelecer um ponto básico. Estas afir-mações devem ser entendidas dialeticamente, dado que a classe trabalhadora não tem uma identidade históri-ca que preceda a práxis complexa, fragmentada e concreta .Assim, a classe não é uma “coisa”, uma categoria estatística que possa ser definida a priori e na qual a “consciên-cia correta” possa ser abstratamente injetada de fora para dentro. A classe é um processo histórico situado num contexto particular. Possui suas próprias características nacionais e é limitada pela especificidade de lutas que emergem das tradições, sistemas de valores, idéias e modos concretos de organizações, e deles se tornam

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parte.A consciência de classe, e o projeto emancipatório advindo desta, não é uma determinação histórica, e não está na natureza do processo histórico, ao contrário, tarefa cuja realidade emerge de sua correspondência a uma tendência objetiva de desenvolvimento histórico; embora a maturação de condições concretas possa tornar essa tarefa possível, não a torna necessariamente inevitável.Quando muito, em princípios bem dialéticos, aquelas condições não podem amadurecer integralmente, sem que a classe trabalhadora desenvolva sua consciência, de maneira a transformar tais condições em meios para sua própria emancipação.Uma investigação das formas predominantes de consciência de classe pressupõe uma análise histórica de uma multiplicidade de práticas institucionalizadas e não institucionalizadas. Estas práticas não podem ser sintetiza-das de forma simplista não só porque essa forma é em si multidimensional, mas também porque de fatos as di-mensões são sempre assimetricamente desenvolvidas. Apesar da extrema dificuldade desta tarefa, ela perman-

ece, não obstante, como pronto de partida necessária para a intervenção política que esteja por se efetivas.

2 - Consciência de classe e a organização política da classe trabalhadora A consciência de classe, e a organização política da classe trabalhadora como sujeito coletivo, não pode ser tomada de forma hierarquizada, conforme a elaboram algumas concepções vanguardistas de partido e de sindicato.Nessa hierarquização, na base estariam as massas trabalhadoras, e no ponto mais alto estará a direção do parti-do, e entre os dois haveria os sindicatos, operando como correias de transmissão e ligação da “política correta” com as massas. O sindicato, nesta concepção, é visto como uma camada intermediaria, um aparelho instrumen-tal, um elo de mediação, ou de implementação das políticas do partido para as massas.O partido pensa, o sindicato opera, as massas recebem. Esta imagem postula dois conceitos Um deles é o sugerido por níveis mais altos e mais baixos – hierarquia. O segundo é a homogeneidade. Esta imagem é par-ticularmente conveniente às concepções vanguardistas.Dado que a base é concebida como uma massa inerte, dominada pela ideologia burguesa e capaz de gerar so-mente demandas econômicas para os quais os sindicatos dão alguma forma coletiva, o partido, veículo através do qual a consciência externa penetra nas massas, controla, logicamente, a totalidade e está situado no ápice da pirâmide.Esta é a razão porque se torna importante, para os sindicatos, que são organizações de massas, se submeterem ao ápice da pirâmide, desta forma agirem como correio de transmissão entre o partido e seus membros, conce-dendo uma dimensão política às lutas que, de outro modo, não a teriam.Historicamente, um vanguardismo invertido lança a hipótese de a revolução ser um ato fundamentalmente político, um freio repentino e violento, que requer uma concentração total de energias para o instante tran-sitório, durante a qual a tomada de poder torna-se possível. O partido é, então Estado-Maior, incumbido incum-bido de levar adiante o processo de ruptura.Essa concepção de consciência e organização de classe em compartimentos hierárquicos alimenta a teoria de que a consciência é externa. Tendo o partido como uma vanguarda externa, com o objetivo de estimular a for-mação e o crescimento de quadros internos produzidos na luta de classes, advindos dela. Seria um equívoco toma-lo como direção apartada da classe, superior e fora do processo concreto desta. Para conquistar as mas-sas, fazendo-as reconhece-las como lideranças, queiram ou não.A autonomia e variedade das experiências das lutas dos trabalhadores serão encorajadas a fazer no leito de seus processos coletivos. Numa concepção vanguardista, as massas são forçadas a seguir as palavras de ordem e as doutrinas produzidas por um grupo que se reivindica e se proclama superior a elas.Assim, quanto mais atenção se der à formação e organização das massas, seja no processo de reflexão teórica, seja na ação prática, respeitando sua diversidade, seu estado de ânimo, estimulando sua unidade, mais possi-bilidade ela terá de reconhecer no sindicato e no partido aqueles sujeitos legitimados para dirigi-la.Nos vemos diante de uma concepção de ruptura essencialmente como evento político, que requer a existência de uma vanguarda, portadora de teoria, consciência, programa e linha revolucionária, e de uma outra, ou de outras, que concebem a ruptura com processo social, político e cultural, de complexas dimensões e diferencia-das durações.O sujeito coletivo define sua identidade complexa através da mediação e articulação de práticas relativamente

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autônomas, que têm características particulares, e tendem a se desenvolver assimetricamente.Duas importantes conseqüências surgem dessas observações. Uma é que a autonomia dos trabalhadores e a de-mocracia de base não existirão somente como uma função da estrutura de cada nível (massa, sindicato, partido).Existirão também comum uma função de articulação, mediadora, entre níveis de dentro de uma complexa totali-dade que eles próprios constituem e que defini a classe como um sujetro histórico.A outra consequência destas observações mostra um desenvolvimento desigual daquelas forças sociais. Num certo momento, uma delas pode tender a ser dominante no processo de mobilização de massa, daí, então, indi-cando as tarefas principais que devem ser cumpridas nessa conjuntura particular.Assim, por exemplo, durante o período de retração e passividade no movimento dos trabalhadores europeus, que se seguiu às tentativas revolucionárias de 1848 a 1870, Marx e Engels – contrariamente a Lassale – atribuiram um papel central aos sindicatos, e não aos partidos.Conforme se pode entender da Resolução da I Internacional, sobre sindicalismo, não ocorreu simplesmente que os sindicatos “sem serem conscientes disso, viessem a ser o eixo da organização da classe trabalhadora, como as cidades e comunas da Idade Média foram para a burguesia.... Qualquer partido, sem exceção, so desperta um entusiasmo transitório entre as massas trabalhadoras . Por outro lado, os sindicatos unem a massa trabalhadora de modo permanente, somente eles são verdadeiramente capazes de representar os interesses da classe e levar uma luta real contra o poder do capital” (Resolução da I Internacional, p. 119)

3 – Notas sobre o papel dos sindicatos em Lênin, Rosa Luxemburgo e Gramsci Do mesmo modo, em Que Fazer? há uma base prática colocada para o papel do partido, que corroboram as posições teóricas acima. Lênin afirma que as massas não podem, espontaneamente, transcender a consciência economicista. E, ainda, é significante que, repetidamente, enfatiza a necessidade de se criar o partido, como unidade da teoria e da ação revolucionária entre as massas.Sob estas condições, é a consciência espontânea que transcende a atividade consciente da organização social, e é subestimada pelas abordagens economicistas. Daí, Lênin viu a urgência de consolidar um núcleo revolucionário rela, que superaria os métodos de trabalho primitivos dos círculos socialistas, num país onde era necessário atuar clandestinamente, onde um partido nacional dos trabalhadores ainda não havia se formado e onde os poucos sindicatos existentes eram ilegais e maciçamente perseguidos.[2]em como correias de transmiss para os sindica-tos, que s a torallapaz de gerar somente demandas econ e decisão seraj totalmente socializadosA perspectiva de Rosa Luxemburgo (1979) está baseada numa realidade social diferente, e abre uma terceira alternativa. Como militante do movimento social democrático alemão, ela atuou no centro da mais poderosa organização proletária, em sua época. Este caso sempre fascinou Lênin, que se referiu a ele frequentemente em seus escritos.De acordo com Rosa Luxemburgo (1979 , estas foram as forças sociais decisivas em uma situação que ela consid-erava revolucionária. Enquanto refletia, em 1906, sobre a experiência dos soviets russos um ano antes, e o papel da da base e da direção, afirmava que “não é a cúpula, no ápice das organizações e suas federações, mas , antes, é abase, nas massas proletárias organizadas, que se encontra a garantia da unidade real do movimento operária, e sua força política transformadora”.[3]Analisando de forma dialética, todas as críticas discutidas até agora, implicitamente desafiam qualquer conceito a priori, de hierarquia. Parece apropriado, contudo considera rapidamente dois problemas complexos e específi-cos que tende a ser subestimados neste campo. Estes dois problemas consistem na dicotomia estabelecida entre lutas sociais e políticas e no modo pelo qual a espontaneidade está vinculada à uma direção consciente.A fase monopolista do capitalismo tornou-se a primeira distinção menos relevante. O potencial político, ideológi-co e econômico. Esse potencial também cresceu, até que os mecanismos principais de controle social passaram a ser subordinados a racionalidade do grande capital. Isto se evidencia pelos esforços constantes em relação à despolitização dos conflitos que o sistema tem que levar a cabo, Se, por um lado a lógica do desenvolvimento capitalista penetra em todas as esferas da vida social, cada uma delas se torna, por outro lado, uma área possível de lutas políticas que podem lançar esta lógica numa crise. Hoje, mais do que nunca, a dinâmica social da revolução política toma a forma de um processo social.Gramsci reconhece a vida nos movimentos de massas no terreno político. Também de grande importância a espontaneidade da classe operaria e à sua necessária unidade dialética com uma direção consciente. Tal visão fortalecer a crítica de qualquer concepção hierárquica.

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Tal visão fortalece a critica de qualquer concepção hierárquica de organização que, na prática tolhe todos os níveis de luta, falhando no reconhecimento da especificidade de cada uma. Estritamente falando, não se pode falar de uma diferença de níveis, mas sim de tarefas. As função da vanguarda não é de injetar a dimensão política nas lutas sociais, mas participar, mediar e canalizar o desdobramento de seu próprio potencial político.Cada conjuntura histórico social traz uma forma equivalente de consciência de classe. Isso demonstra a complex-idade da forma prevalente de consciência de classe. A legitimação das atividades sindicais e a institucionalização do conflito do trabalho contra o capital implicam, na prática, em dar prioridade às demandas econômicas que questiona o próprio modo capitalista de produção. Pela sua própria natureza, a organização sindical tem como base o espaço da produção, mas deve ter como intenção sair para fora dele, e agir para além do econômico-corporativo.O sindicato se enquadra na lógica do sistema capital. Ao aceitar como seus membros somente aqueles que ven-dem sua força de trabalho em empresas e ramos produtivos aos quais estão ligados. Nesse sentido, sua função é receber as demandas de grupos específicos de vendedores de força de trabalho e negociar um preço (em forma de salário) para esta mão de obra. Como produto disso, o sindicato, pela sua própria natureza, leva o trabalhador a perceber o seu trabalho diário não como um processo de produção, mas simplesmente como um meio de ganhar dinheiro[4].Esta visão só poderia ser contestada somente pelos que menosprezam a especificidade deste nível de luta e pres-supõem como papel central do sindicato a luta pela revolução, com um programa maximalista sem mediações com o estado de espírito, a relação de forças e estágio de consciência da classe.Ao recusar, ou secundarizar o papel do sindicato como negociador da venda da força de trabalho, e a partir dela realizar um processo de mediação e educação política das massas, no sentido da superação dessa relação, as or-ganizações sindicais abrem mão de uma possibilidade concreta de realizar junto com sua base a experimentação dos limites da luta meramente salarial, sem a qual não haveria um salto de consciência e tomada de posição para superação dessa relação.Por outro lado, o sindicato atuando apenas no fenômeno salarial, prisioneiro das condições objetivas, e sem uma pressão política, organizada e coletiva, por parte dos trabalhadores, o sindicato tenderia a operar apenas ao nível dos efeitos, e não das causas da exploração capitalista. Utilizando uma linguagem marxista, atacaria os fenôme-nos, a aparência, e não a essência, a materialidade concreta.Ao trocar melhores condições de trabalho e ruptura nos processos de produção e gestão, por recompensas mon-etárias, como bônus, benefício de saúde, cestas básicas, seguros contra acidentes de trabalho, pagamentos de horas extras, etc, submetida à lógica capitalista e aos limites impostos pelo capital.O espaço da produção, ou o local de trabalho, por excelência, é o terreno onde se estabelecem e podem ser veri-ficadas empiricamente as contradições da exploração e dominação do capital contra o trabalho. O lugar onde a luta se inicia porque é nele que se condensa o conflito entre o desenvolvimento do caráter coletivo do trabalho, e o controle privado de sua organização, e da apropriação do trabalho do trabalhador na forma de mais valia.O espaço da produção, a fábrica, como classicamente a conhecemos, é concebida pelo sindicato como lugar primordial que possibilidade aos trabalhadores se perceberem como classe, partir do processo de aguçamento das contradições, como parte da totalidade social que deve ser transformada. O lócus da intervenção política, portanto, que deve ser potencializada pela ação organizada e consciente, ao mesmo tempo que é a unidade de produção em que a capacidade criativa dos trabalhadores encontra-se alienada. Onde a brutalidade da divisão capitalista do trabalho é mais concretamente revelada como um subutilização programada da potencial energia intelectual dos trabalhadores.A fábrica, ou o espaço da produção capitalista, é portanto, sua parte mais sensível. A natureza exploradora e re-pressiva manifesta-se diariamente, e numa tal dimensão que o esforço ideológico dirige-se menos para mascarar estar características que para difundir a imagem de sua inevitabilidade.A ideologia dominante apresenta tais características como dados puramente técnicos, a fim de desviar a atenção dos trabalhadores para o consumo, para uma falsa satisfação fora do cativeiro do trabalho assalariado capital-ista. Sob condições normais, há uma aceitação pragmática desta situação entre os trabalhadores, pela relativa fraqueza neste nível específico de relação de forças.Os trabalhadores podem ser membros do sindicato, ou de um partido de classe, mas num caso, estarão unidos

a partir da condição de vendedores de força de trabalho, dentro de uma unidade disciplinar com métodos de

produção e sociabilização restrita e restritiva, porém, paradoxalmente, o lugar onde eles podem se descobrirem

como classe. Unidos a partir da fábrica, s descobrem fora dela, no sindicato, atuando organicamente como su-

jeito coletivo que de fato são.

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6 Ex-vereador e deputado do castelo perdem seus cargosApós um mal-estar com a opinião pública, o governo de Minas anunciou, na noite de ontem, o afasta-mento do vice-diretor geral da Administração de Estádios do Estado de Minas Gerais (Ademg), Wel-lington Magalhães (PMN), e do diretor executivo da empresa estatal Minas Gerais Participações (MGI), Edmar Moreira (PR). O anúncio do Executivo foi feito após repercussões negativas sobre as nomeações. Segundo a assessoria de imprensa, o governo não vai se pronunciar sobre o assunto.

Wellington Magalhães teve o mandato de vereador em Belo Horizonte cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE), acusado de compra de votos durante a campanha de 2008. Magalhães recorreu da decisão no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que manteve, anteontem, a condenação da Justiça mineira. O ex-vereador havia sido nomeado para um cargo na Ademg, onde recebia R$ 7.000 por mês.

Já Edmar Moreira, conhecido como o “deputado do castelo”, foi alvo de um processo no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados por não ter declarado à Receita Federal uma propriedade - um castelo em estilo medieval - no valor de R$ 25 milhões em São João Nepomuceno, na Zona da Mata mineira. Moreira havia sido nomeado para o cargo de diretor executivo na MGI, com salário mensal de R$ 11 mil. Ele ainda responde a processos na Justiça referentes a questões previdenciárias.

Espera. Horas antes do afastamento ser anunciado, ontem, o governador Antonio Anastasia (PSDB) havia dito que ainda aguardaria a divulgação do acórdão da decisão do TSE para definir se afastaria, ou não, Wellington Magalhães. Já sobre Edmar Moreira, Antônio Anastasia havia minimizado a nomeação anteontem.

Para o presidente da Comissão de Acesso à Justiça da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Minas, Alexander Barroso, tanto Magalhães quanto Moreira não deveriam sequer ter sido nomeados. Segundo Barroso, uma emenda constitucional em vigor desde dezembro do ano passado veda a nomeação de políticos fichas sujas em cargos no governo. “Mesmo quando ainda há dúvidas sobre o delito, essa dúvi-da tem que beneficiar a sociedade”, afirmou Alexander Barroso.

R$ 11 milé o valor do salário mensal que o “deputado do castelo”, Edmar Moreira, receberia como diretor execu-tivo da estatal Minas Gerais Participações, empresa que tem como acionistas, além do governo mineiro, a Cemig e o BDMG.

R$ 7 milé o valor do salário que o vereador cassado, Wellington Magalhães, receberia por mês como vice-diretor geral da Administração de Estádios do de Minas Gerais (Ademg), estatal que terá papel essencial para a Copa de 2014.

Quanto eles custavam ao governo

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7 Horizonte Ético da Mobilização SocialO horizonte ético é aquilo que dá sentido a um processo de mobilização.

Uma das formas como um país explicita seu horizonte ético, seu projeto de nação, é através da sua Constituição. Nela ele define seu projeto de futuro, suas escolhas. Quanto mais participativo tiver sido o processo de sua elaboração, mais estas escolhas refletirão a vontade de todos e serão por todos com-partilhadas.

Constituição da República Federativa do Brasil

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I. A soberania;

II. A cidadania;

III. A dignidade da pessoa humana;

IV. Os valores do trabalho e da livre Iniciativa;

V. O pluralismo político.

Parágrafo Único: todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição.

Neste artigo, o primeiro da nossa Constituição, está consagrada a nossa escolha pela Democracia, tendo como fundamentos, entre outros, a cidadania e a dignidade humana. É necessário, então, buscarmos um entendimento preciso sobre o que significam estas opções.

2.1 - Compreensão do conceito de cidadania e dos princípios da democracia

Toda ordem de convivência é construída, por isso é possível falar emmudança. As ordens de convivência são construídas, não são naturais. O que é natural é a nossa tendên-cia a viver em sociedade.Os gregos se tornaram capazes de criar a democracia a partir do momento que descobriram que a or-dem social não era ditada pelos deuses, mas construída pelos homens. Vislumbraram assim a possibili-dade de construir uma sociedade cujo destino não estivesse fora dela, mas nas mãos de todos os que dela participavam.

Quando as pessoas assumem que têm nas mãos o seu destino e descobrem que a construção da socie-dade depende de sua vontade e de suas escolhas, aí a democracia pode tornar-se uma realidade.

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“Toda ordem social é criada por nós. O agir ou não agir de cada um contribui para a formação e consol-

idação da ordem em que vivemos. Em outras palavras, o caos que estamos atravessando na atualidade

não surgiu espontaneamente. Esta desordem que tanto criticamos também foi criada por nós. Portanto,

e antes de converter a discussão em um juízo de culpabilidades- se fomos capazes de criar o caos, tam-

bém podemos sair dele.” Bernardo Toro

No Brasil já não acreditamos na ordem emanada dos deuses, já não temos um ditador e cada vez fica

mais impessoal o “eles” a quem responsabilizamos pela nossa realidade. Mas ainda insistimos em pensar

e agir como se a situação em que vivemos fosse obra do outro. Eduardo Gianetti da Fonseca fala até de

um “paradoxo do brasileiro”.

“O paradoxo do brasileiro é o seguinte: cada um de nós isoladamente tem o sentimento e a crença sincera

de estar muito acima de tudo isso que aí está. Ninguém aceita, ninguém aguenta mais, nenhum de nós pac-

tua com o mar de lama, o deboche e a vergonha da nossa vida pública e comunitária. O problema é que, ao

mesmo tempo, o resultado final de todos nós é exatamente isto que aí está!” Eduardo Gianetti da Fonseca

Não aceitar a responsabilidade pela realidade em que vivemos é, ao mesmo tempo, nos desobrigarmos

da tarefa de transformá-la, colocando na mão do outro a possibilidade de agir. É não assumirmos o

nosso destino, não nos sentimos responsáveis por ele, porque não nos sentimos capazes de alterá-lo. A

atitude decorrente dessas visões é sempre de fatalismo ou de subserviência, nunca uma atitude trans-

formadora.

A formação de uma nova mentalidade na sociedade civil, que se perceba a si mesma como fonte cria-

dora da ordem social, pressupõe compreender que os “males” da sociedade são o resultado da ordem

social que nós mesmos criamos e que, por isso mesmo, podemos modificar.

A convivência social, por não ser natural, requer aprendizagens básicas que devem ser ensinadas, apren-

didas e desenvolvidas todos os dias. Esta é uma tarefa de toda a vida de uma pessoa e de uma socie-

dade.

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5 – Despertar é preciso Vladimir Maiakowiski Na primeira noite eles aproximam-se E colhem uma Flor do nosso jardim e não dizemos nada. Na segunda noite, Já não se escondem; Pisam as flores, matam o nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, Rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, Arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, Já não podemos dizer nada.

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A Democracia é uma ordem social que se caracteriza pelo fato de suas leis e suas normas serem construí-das pelos mesmos que as vão cumprir e proteger. A democracia é uma ordem auto-fundada.

Nem toda ordem de convivência é democrática. A monarquia é uma ordem de convivência, mas não é democrática. Nela um monarca, que, por laços de sangue ou divindade, se coloca fora, separado da sociedade, diferente dos outros, cria as leis e as normas que vão reger aquela sociedade. Ele cria a ordem social e aos súditos (sub ditos:, submetidos ao que o outro diz) cabe obedecer essas normas. É por isso que na monarquia comemora-se quando nasce o filho do rei, porque a continuidade da ordem está as-segurada.

A ditadura também é uma ordem social, mas não é democrática. Nela o ditador, ou seu grupo, por força das armas, se coloca acima da sociedade e dita as normas sobre como ela deve pensar e agir. A ordem também vem de fora, sua fonte é externa à sociedade que deve cumpri-las.

Na democracia a ordem social se produz a partir da própria sociedade. Nela as leis são criadas, direta ou indiretamente, pelos mesmos que as vão cumprir e proteger. A convivência democrática começa quando uma sociedade aprende a auto-fundar a ordem social. E isso deve ser ensinado e aprendido.

As 7 aprendizagens básicas para convivência social

Aprender a não agredir o semelhante:Fundamento de todo modelo de convivênciasocial.

Aprender a comunicar-se:Base da auto-afirmação pessoal ou dogrupo.

Aprender a interagir:Base dos modelos de relação social.

Aprender a decidir em grupo:Base da política e da economia.

Aprender a cuidar de si:Base dos modelos de saúde e seguridadesocial.

Aprender a cuidar do entorno:Fundamento da sobrevivência.

Aprender a valorizar o saber social:Base da evolução social e cultural.

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Por isso, a democracia é uma cosmovisão, o que quer dizer que ela é uma forma de ver o mundo. Uma forma que aceita cada pessoa como fonte de criação de ordem social. A democracia não pode ser im-posta, tem que ser quotidianamente construída. Ela é fruto da decisão de uma sociedade, que acredita que é possível criá-la, a partir de uma unidade de propósito e do respeito pelas diferenças.

A democracia não é um partido político, não é uma matéria, é uma decisão que se fundamenta em aceitar o outro como igual em direitos e oportunidades. Por isso, a democracia supõe a construção da equidade social, econômica, política e cultural.

Porque a ordem democrática é uma ordem construída, não existe um modelo ideal de democracia que possamos copiar ou imitar. Podemos aprender com outras sociedades que constroem sua própria or-dem democrática, mas é nossa a responsabilidade de criar nossa própria democracia.

Esse princípio é chamado de “incerteza” e é fundamental para uma sociedade que quer ser produtiva econômica e socialmente, porque se opõe à tradição de “ser como os outros”.

O conflito é constitutivo da convivência democrática. Na democracia não existem os inimigos, mas os opositores: pessoas que pensam diferente, querem buscar os objetivos de outra forma, tem interesses distintos dos meus, que muitas vezes conflitam com eles, mas com as quais posso discutir e consensar metas comuns, colocadas acima das divergências. Para a democracia, a paz não é a ausência de conflito. A paz é o resultado de uma sociedade que é capaz de criar e aceitar regras para dirimir conflitos sem eliminar o outro nem física, nem social, nem psicologicamente.

Na democracia, o público, o que convém e interessa a todos, se constrói e se fortalece na sociedade civil. A força do público e das instituições públicas tem origem no fato de que eles sintetizam e representam os interesses, contraditórios ou não, de todos os setores da sociedade.

A partir deste conceito de democracia podemos desenvolver o conceito de cidadão. No Brasil o cidadão tem sido confundido com o voto. Cidadão seria aquele que vota. Mas o voto é um direito do cidadão, não é o que o define como tal.

Cidadão é a pessoa capaz de criar outransformar, com outros, a ordem social ea quem cabe cumprir e proteger as leisque ele mesmo ajudou a criar.

2.2 - Como podemos definir a Dignidade Humana?

A dignidade humana tem uma definição básica, consensada entre os diversos países, expressa na Decla-ração Universal dos Direitos Humanos (10 de novembro de 1948). Ainda que não haja modelo ideal de democracia, toda ordem democrática está orientada a proteger e fortalecer os Direitos Humanos (fun-damentais, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais) e a proteger e desenvolver a vida.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é o projeto de humanidade que nosso século concebeu e uma de suas contribuições mais originais. Nos séculos passados, alguns países, como os Estados Unidos na sua Constituição (1787) e a França na Declaração dos Direitos do Cidadão (1789), haviam definido os direitos humanos, mas eram experiências, isoladas, de cada país. Nunca na História, um número tão

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grande de países foi capaz de atingir um consenso quanto à relevância e quanto ao conteúdo deste tema, como expresso nesta Declaração. Reúne direitos que possuímos simplesmente por sermos da espécie humana, anteriores a toda distinção, a toda ação cultural, econômica ou política, a toda car-acterística étnica, etc.

Ao incorporarmos aos direitos garantidos na nossa Constituição a íntegra da Declaração Universal dos Direitos Humanos ( Título II- Dos Direitos Fundamentais, artigo 5o.) e declararmos a dignidade humana um dos fundamentos de nossa nação e de nosso modelo de democracia, nos comprometemos com a formulação de um projeto de desenvolvimento que não seja exclusivamente econômico, mas que seja baseado nos Direitos Humanos e que contribua para transformá-los de projeto ético em um projeto público, em uma visão de mundo, um discurso, uma decisão e uma ação.

Nosso TempoCarlos Drummond de Andrade

Esse é tempo de partido, tempo de homens partidos.Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.

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8 - Os Desafios do Movimento Social frente à Crise Capitalista e o NeoliberalismoFrei Betto

O neoliberalismo é o modo como hoje o sistema capitalista se estrutura. Até os anos 80, o capitalismo mostrava-se com um perfil liberal: havia concorrência entre empresas, os Estados procuravam fortalecer as burguesias de suas nações, a questão social era uma das prioridades públicas.A queda do Muro de Berlim, em 1989, fez desmoronar também o mundo bipolar. Agora, temos um mun-do unipolar, sob hegemonia dos EUA. O avanço da tecnologia de comunicações favorece o fenômeno conhecido como globalização: a soberania dos Estados é ignorada, as fronteiras nacionais desrespeita-das, empresas e mídia operam na geografia mundial como se o fizessem nas cidades onde estão sedia-das. A concorrência entre empresas desaparece quando se trata de megaempresas, agora transformadas em oligopólios que controlam bancos e redes de lanchonetes, clubes de futebol e fábricas de roupas. O capital circula sem barreiras e fronteiras, a especulação supera a produção, a busca desenfreada de lucro ignora qualquer princípio ético.Efeitos do neoliberalismoMudança de conjuntura exige mudança nos atores sociais, como nos movimentos populares. Quais se-riam os efeitos mais evidentes do neoliberalismo naquela parcela da população que os movimentos populares procuram sensibilizar, mobilizar e organizar?1) A despolitização: O fracasso do socialismo real na Europa e a ofensiva da mídia centrada no estímulo consumista favorecem o desinteresse pela política. O neoliberalismo proclama que “a história acabou”, procurando apagar as utopias do horizonte histórico e ironizando os empenhos idealistas. A corrupção que grassa entre políticos profissionais, e as divisões internas dos grupos e partidos de esquerda, refor-çam a idéia de que a política é um terreno pantanoso no qual não se deve pisar.Como a idolatria do mercado é incensada pelo neoliberalismo, a publicidade e a mídia procuram vender a imagem de que a felicidade reside na despolitização, no lazer, na volta para os interesses individ-uais. A vida tranqüila restringe-se às esferas da família, do trabalho e do prazer. Ultrapassar os limites desse círculo hermético é correr o risco de meter-se em dificuldades e sofrimentos, dores de cabeça e perseguições.No entanto, é preciso não esquecer: quem não gosta de política é governado por quem gosta. Se a maio-ria não gosta, azar dela, pois deve aceitar ser governada pela minoria.2) O municipal predomina sobre o nacional e o mundial: Embora a globalização faça do mundo uma pequena aldeia que, de dentro de casa, nossos olhos abarcam através da janela eletrônica da TV, as pessoas tendem a se sentir impotentes frente à magnitude dos problemas internacionais e nacionais. Voltada para seus próprios interesses e preocupada com sua qualidade de vida, a maioria parece sensi-bilizar-se mais com as questões municipais: o transporte, a escola, a saúde etc.Iniciativas como orçamentos participativos das prefeituras ou mutirões na lavoura e na construção civil, lutas por terra e por teto mobilizam mais que a solidariedade ao Timor Leste ou a luta em favor da de-marcação das terras indígenas no Brasil.3) A prática social predomina sobre as teorias revolucionárias: Muitos parecem cansados de teorias, out-ros estão enfarados de conceitos e análises. Já não se crê na “conscientização”, pois inúmeros militantes “conscientes” abraçam, hoje, as benesses do neoliberalismo e torcem o nariz quando ouvem falar de socialismo. As obras de Marx e da Teologia da Libertação pouco saem das prateleiras, como se a prática histórica tivesse comprovado que não merecem muita credibilidade.“Mais ações, menos reuniões”, conclamava Betinho poucas horas antes de morrer. Muitos já não querem

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ouvir análises de conjuntura, querem fazer algo de concreto pelas crianças de rua, pela reforma agrária, pela preservação do meio ambiente. Ainda que tais ações sejam ou pareçam assistencialistas e paliati-vas.As CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) torcem o nariz para os carismáticos, mas são estes que lotam templos e estádios. A pastoral social da Igreja católica encara com desdém as Igrejas neopentecostais, mas são elas que atraem camadas mais pobres da população e promovem grandes concentrações ur-banas.As pessoas querem menos análises e mais soluções, mais emoções e menos razões.4) Bandeiras específicas no lugar de vagas utopias: A cultura que transforma tudo em mercadoria ime-diata e palpável tende a esvaziar a atração das propostas genéricas, como mundo melhor, libertação e socialismo. As pessoas não parecem muito preocupadas com o futuro da humanidade; querem saber como assegurar seu emprego, obter um plano de saúde, levar a família de férias à praia.Durante décadas falou-se em reforma agrária no Brasil. Só no momento em que a bandeira se atrelou às ocupações de terra, que garantem lotes às famílias sem-terra, é que a luta pela reforma agrária se tornou concreta. Já não se espera “fazer revolução” para, depois, conquistar direitos sociais. O fracasso das lutas na Nicarágua e El Salvador afeta a credibilidade nos projetos históricos. Partidos como o PT oscilam entre seu programa original e a prática eleitoreira que submerge parcela da militância numa disputa fratricida por cargos e mandatos. O trabalho de base é abandonado.As pessoas estão dispostas a lutar por benefícios imediatos, como obter uma terra, uma casa, um em-prego. E nem sempre prosseguem na mesma disposição de luta após resolverem a sua demanda pessoal e familiar.5) As novas bandeiras - ecologia, relações de gênero, questão racial: O enfoque político desloca-se do macro para o micro, do global para o local, do social para o pessoal. Não tanto no sentido excludente, de um substituindo o outro. Mas a prioridade é concedida, agora, ao micro, ao local, ao pessoal.Em busca de qualidade de vida, a preservação do meio ambiente mobiliza amplos setores da população, superando tensões entre classes sociais e unindo ricos e pobres. A emancipação da mulher acentua o debate sobre relações de gênero, politizando temas até então restritos à esfera privada e revestidos de tabu: a sexualidade, o machismo, a violência entre casais ou sobre os homossexuais etc.A afirmação da negritude e da condição indígena é sintoma da atualidade de pautas sociais que ultra-passam os conceitos do marxismo vulgar, restrito ao conflito de classes. No sindicalismo, a luta de class-es dá lugar às câmaras setoriais, aos mecanismos de diálogo entre patrões e empregados, à participação acionária de trabalhadores nas empresas.6) A emergência da espiritualidade: A predominância do pessoal sobre o social favorece a preocupação com o equilíbrio e a harmonia individuais, a subjetividade, a vida espiritual. Já que as ideologias não suscitam tanta esperança como outrora, muitos buscam nas religiões um sentido para a vida.Fatigadas de racionalismo, as pessoas querem resgatar o encantamento do mundo. O maravilhoso, o miraculoso, o esotérico exercem forte atração nesse mundo em que o sonho político não encontra lugar e as utopias parecem ainda mais distantes.

Os desafios ao movimento popular

Sem levar em consideração essa conjuntura, os movimentos populares ficam condenados ao esvazia-mento.A experiência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), no Brasil, serve de referência para um novo estilo de atuação. Ali o político (a reforma agrária) articula-se com o benefício pessoal e familiar concreto (a ocupação da terra e a conquista de um lote). O utópico (o socialismo) é vivenciado

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em atividades coletivas (assentamentos e cooperativas). O ético (a militância e as marchas) encontra motivação no estético (os símbolos, como a bandeira, as músicas, as romarias, o ritual dos encontros).Os movimentos populares devem partir das demandas específicas da população, ainda que elas não pareçam ser “as mais políticas e ideológicas”. Em outras palavras, não se trata de partir daquilo que direções e lideranças julgam melhor para o povo, mas sim do que interessa e mobiliza, invertendo o processo.Talvez muitos não saiam de casa para manifestar solidariedade a Cuba, mas certamente o farão para evitar que a prefeitura derrube a árvore da esquina. Talvez muitos não entendam o caráter neoliberal do governo, mas querem manter seus empregos e conquistar melhores salários. Talvez muitos não estejam motivados para um debate sobre socialismo, mas estão dispostos a trabalhar para organizar uma creche para crianças carentes ou uma escola de alfabetização de adultos.O movimento popular deve enfrentar o desafio metodológico de partir do pessoal ao social, do local ao nacional, do subjetivo ao objetivo, do espiritual ao político e ideológico. Agora, o trabalho de base só terá êxito se associar lazer e dever, criatividade artística e formação, estética e ética. Não é mais possível criar uma “cortina de ferro” que torne os militantes imunes à ideologia neoliberal, ao consumismo, aos encantos da globalização. A questão é como introduzir práticas sociais que despertem neles uma con-sciência/experiência críticas frente ao sistema, de modo que a nova sociedade possa ir sendo forjada nas entranhas da atual, como a criança no ventre materno.Cabe ao movimento popular vincular o micro ao macro, as lutas específicas às políticas públicas. Para tanto, é preciso elaborar propostas concretas e viáveis para áreas como abastecimento, transporte, mo-radia, saúde etc. As pessoas precisam visualizar as bandeiras, sentir que são palpáveis e, de certo modo, alcançáveis mesmo na atual conjuntura.

Homens e mulheres novos

Não é fácil fazer-se novo numa nova conjuntura. É um desafio para nós, veteranos na militância, nos livrarmos do ranço adquirido em práticas anteriores: os chavões ideológicos que assustam os novos companheiros; o jeito carrancudo que afasta a alegria; a prepotência de quem se julga vanguarda; o autoritarismo na condução das reuniões e das atividades; a falta de transparência ética; a ambição por fatias de poder; o ideologismo que espanta a gente simples que participa pela primeira vez dos eventos; o radicalismo na linguagem de quem nem sempre se mostra radical na prática; a intolerância frente aos que entram na luta; os preconceitos diante de pessoas de outras classes sociais; o pouco respeito pela religiosidade alheia.Sem superar tais barreiras, torna-se difícil dar um novo alento ao trabalho de base e aos movimentos populares. Hoje, o desafio principal é ampliar a participação e multiplicar movimentos. Portanto, só der-rubaremos as barreiras objetivas - das estruturas e do sistema - quando lograrmos, primeiro, derrubar as subjetivas.Façamos dessas palavras de Ernesto Che Guevara uma exigência às nossas práticas: “Deixe-me dizer, mesmo com o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes senti-mentos de amor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem esta qualidade. (...) É preciso ter uma grande dose de humanismo, de sentido de justiça e de verdade para não cair em extremismos dogmáticos, em escolaticismos frios, em isolamento das massas. É preciso lutar todos os dias para que esse amor à humanidade viva se transforme em atos concretos que sirvam de exemplo e mobilizem”.

(“El Socialismo y el hombre en Cuba”, Editora Politica, La Habana, 1988, p. 26 e 27. Tirado de Ernesto Che Guevara, Escritos e discursos, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1977, t. 8, pp. 253-272).

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9 Mobilização popular e participação Gestão social e democracia: problemas e perspectivas Ilza Araújo Leão de Andrade

O processo de redemocratização da sociedade brasileira trouxe para o debate político nacional uma série de questionamentos sobre o Estado nacional focalizando a discussão, sobretudo, nas práticas cris-talizadas na burocracia pública. Esse momento coincide, a nível internacional, com o momento de crise mais profunda do padrão estatal vigente na sociedade capitalista e com o início do debate sobre a ne-cessidade de reformar o Estado. São inúmeras as razões justificadoras dessa necessidade, dentre as quais podemos destacar: a fragilidade dos padrões de regulação estatal frente a crise de acumulação que atingiu a sociedade, a ineficiência das instituições públicas e a ineficácia de suas políticas em responder aos problemas da sociedade e o crescente isolamento do Estado. Nas sociedades latinoamericanas e, em especial na brasileira, a reforma do Estado tinha também o sen-tido da substituição de um padrão autoritário de poder por outro mais aberto à sociedade, menos cen-tralizado e sobretudo mais democrático, após um longo período de vigência de governos militares. Du-rante os 21 anos que os militares permaneceram no poder, no Brasil, assistiu-se a um crescente processo de expansão do Estado que vai, pouco a pouco, estabelecendo fronteiras entre o seu domínio legítimo e a sociedade, demarcando as diferenças entre o espaço público e o espaço privado.A crise do regime militar teve sua manifestação mais visível no reaparecimento da sociedade organiza-da, discutindo e reagindo, na prática contra o excesso de autoritarismo e o afastamento da sociedade, das decisões que lhe diziam respeito, O tema da participação na gestão das políticas públicas no Brasil foi introduzido durante o período de redemocratização da sociedade brasileira, especificamente, os anos 80. Ele surge em decorrência de dois fatores condicionantes que, apesar de politicamente distintos, se complementam, num período de intensa mobilização social e política: a introdução de mecanismos participativos nas exigências dos órgãos financeiros internacionais e a eclosão de movimentos sociais de natureza reivindicativa voltados, sobretudo, para a melhoria das condições de vida nas cidades, principalmente em termos de habitação e saúde (Andrade, 1996).A nova Constituição brasileira, promulgada em 1988, incorpora, em parte, essas reivindicações/reco-mendações e adiciona ao processo de descentralização das políticas públicas de natureza social, mecan-ismos de gestão social, sendo os mais importantes, os Conselhos Gestores. A participação do cidadão nas arenas deliberativas O balanço da literatura sobre Conselhos Municipais no Brasil aponta para três tipos de problemas relati-vos à questão da participação nos fóruns de deliberação democrática: a fragilidade dos movimentos so-ciais e organizações reivindicativas da sociedade, a resistência dos setores organizados e a interferência de interesses político-partidários no interior desses fóruns.

a) A fragilidade dos movimentos sociaisEm relação à fragilidade dos movimentos sociais, é importante lembrar que a incorporação da participa-ção, enquanto mecanismo de gestão pública, deu-se em um momento de intensa mobilização popular (crise política do regime militar e reconstrução do ideal democrático pela sociedade), sendo os Consel-hos concebidos como mecanismos de democratização do processo de tomada de decisões em relação à formulação e implementação de políticas públicas. A idéia dos Conselhos estava calcada na suposição da existência de uma sociedade organizada e demandante de participação o que garantiria a realização de um novo padrão de gestão das políticas, principalmente na área social.

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Com a incorporação e a institucionalização dos princípios de gestão compartilhada no desenho das políticas públicas no país, o problema que se apresenta para a sua realização, diz respeito, a fragilidade da base social, necessária ao funcionamento do modelo em virtude da inexistência, na grande maioria dos municípios brasileiros, de um mínimo de organização da população, necessário à sua dinamização. Como lembra Putnam "A cooperação voluntária é mais fácil numa comunidade que tenha herdado um bom estoque de capital social sob a forma de regras de reciprocidade e sistemas de participação cívica (Putnam, 1996:177) A inexistência de uma tradição associativa, de uma cultura cívica, leva a que não haja, por parte da população, demanda de participação real, uma vez que isso não faz parte da experiên-cia cotidiana da grande maioria. Os teóricos clássicos da teoria democrática já chamavam a atenção para a importância da experiência nos processos participativos. Para eles é participando que o indivíduo se habilita à participação no sen-tido pleno da palavra, o que inclui, não somente o fato de tomar parte, mas, também, de ter parte, no contexto onde estão inseridos. Segundo Pateman (1992) a principal função da participação na teoria democrática é educativa, no sentido mais amplo da palavra, tanto no aspecto psicológico quanto no de aquisição prática de habilidades e procedimentos democráticos; e tem ainda um efeito integrativo ( Pateman, 1992:61-2) Por outro lado, como lembra Demo (1993) a participação tem que ser encarada como um processo de conquista e construção organizada da emancipação social e não como algo que se define institucional-mente como modelo de operação da coisa pública.As experiências concretas têm demonstrado que, em algumas regiões do país, a população não está suficientemente organizada nem, tampouco, mobilizada, para se incorporar aos mecanismos institu-cionais de participação, e isso representa um sério problema para o novo desenho de gestão esboçado para a formulação e implementação de políticas públicas. A participação que aparecia, no fim dos anos 80, como uma demanda quase natural da sociedade, na medida que se institucionalizou "perdeu o seu encanto". A onda participacionista que marcou aquele momento foi substituída pela volta ao cenário político dos atores políticos tradicionais como os partidos, sindicatos e demais instituições políticas num movimento de arrefecimento do ímpeto mobilizador que caracterizou a transição para a democracia.

b) A resistência da sociedade.A institucionalização da experiência de gestão partilhada, no Brasil, que começa a ocorrer no fim dos anos 80, começo dos anos 90, corresponde a fase denominada por Cardoso (1994), como a fase de institucionalização dos movimentos, fase posterior à fase denominada por ela de emergência heróica dos movimentos. Nesta, houve uma ampliação do modo de gerir as áreas de políticas públicas com a aceitação e a abertura de espaços novos onde os movimentos sociais entram... No entanto, como lem-bra a autora, os movimentos não têm, nessa segunda fase, as mesmas características que apareciam na primeira, aquela que conceituou, definiu e estabeleceu os contornos do fenômeno (Cardoso, 1994:83).É importante lembrar, que uma característica básica dos movimentos sociais em sua primeira fase era uma postura radicalmente anti-Estado, o que dificultava a adesão dos movimentos sociais, ao processo de incorporação da sociedade ao novo modo de gerir a coisa pública iniciada em fins dos anos 80. ...a própria identidade do movimento estava tão calcada na idéia de espontaneidade e de uma identidade particular criada internamente, que se tornava difícil encontrar os caminhos para participar conjunta-mente da administração pública...(Cardoso, 1994: 87)Na verdade, existe ainda uma certa resistência dos movimentos organizados em relação à participação institucionalizada. O espectro da cooptação ou da utilização do movimento como mecanismo de le-gitimação dos grupos no poder ainda é muito forte entre algumas organizações da sociedade. A longa

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história de exclusão da sociedade das arenas decisórias produziu, no interior dos movimentos, uma forte desconfiança em relação aos apelos participativos característicos do novo modelo de gestão. Em alguns setores é possível observar a vigência de atitudes do tipo se hay gobierno, soy contra numa clara demonstração do descrédito da sociedade em relação a possibilidade de um tipo novo de relação entre o Estado e a sociedade. E se não há confiança, não há participação. De outro lado, a forte normatização dos mecanismos operacionais da implantação dos Conselhos não deixa lugar para o espontaneísmo dos movimentos, aumentando as resistências. A rigidez na monta-gem do arcabouço institucional necessário ao funcionamento do modelo participativo de gestão, prin-cipalmente na área da saúde, muitas vezes dificulta a realização do ideal democrático de ampliação da esfera pública, propiciada pela participação. Isso por que prevalece na constituição da experiência, o que Habermas denomina de ação instrumental ao invés da ação comunicativa. Enquanto esta está baseada na idéia de socialidade, espontaneidade e solidariedade, aquela está ancorada em procedi-mentos de coordenação da vida social, próprios da dimensão administrativa do Estado. Nessa condição, os Conselhos acabam ficando expostos a alterações ou adaptações que interessam àqueles que têm o controle da administração. Isso explica, por exemplo, a maior facilidade de adesão desses movimentos a fóruns de deliberação mais informais ou menos institucionalizados, como é o caso do orçamento participativo. A obrigatoriedade da existência de Conselhos Gestores e os arranjos político-institucionais decorrentes dela, num primeiro momento, afastaram a sociedade organizada. No entanto, o aprofundamento da experiência e a crescente legitimidade alcançada pelos mesmos foram, paulatinamente, quebrando as resistências dos setores mais organizados, que começaram a disputar espaço político no interior des-sas arenas deliberativas. O fato de que as experiências mais bem sucedidas em termos de Conselhos gestores, no país, encontraram-se em localidades onde o movimento popular é mais organizado e tem maior visibilidade, demonstra mudanças de atitudes, do próprio movimento, em relação a esse tipo de fórum de deliberação.

c) Arenas deliberativas como espaços de conflitoUm outro problema relativo à participação nos fóruns deliberativos diz respeito aos conflitos existentes entre os participantes da experiência, principalmente no caso dos Conselhos. Inúmeros estudos têm chamado atenção para a interferência de interesses corporativos no processo decisório (Cohn, Elias & Jacobi, 1993) além da disputa de posições por parte de alguns segmentos com fortes ligações com parti-dos políticos (Pinheiro, 1995; Neder, Ribeiro, 1997). Esses problemas que dizem respeito, principalmente, a representação da sociedade, têm dificultado a ação dessa representação como um bloco unitário, e fragilizado a posição desse segmento em relação ao bloco que representa os interesses dos grupos no poder. A preponderância de interesses corporativos sobre os interesses gerais e as disputas pela hege-monização de posições por parte dos partidos políticos, acabam esvaziando os Conselhos da participa-ção dos setores menos organizados (no caso da saúde, os representantes dos usuários dos serviços).Um outro tipo de conflito que comumente se verifica no interior das arenas deliberativas diz respeito às dificuldades de se estabelecer o princípio de igualdade de participação, entre os representantes do gov-erno e os representantes da sociedade. São muitas as dificuldades de concretização desse padrão, tanto do ponto de vista dos representantes dos órgãos públicos, quanto dos representantes da sociedade. Em relação aos primeiros, há uma enorme resistência em relação à adoção de uma postura igualitária em relação aos demais membros. Historicamente estes setores possuíam o monopólio da informação e o controle dos recursos, o que lhes garantia um papel privilegiado no processo de negociação dos inter-esses políticos em jogo, quando das decisões sobre políticas públicas. Em relação à representação da sociedade é também visível a dificuldade de olhar para os representantes do poder público numa dimensão de proximidade e acima de tudo de cooperação. Em áreas onde a rep-resentação da sociedade é mais institucional (ONGs e organizações profissionais), como nos casos dos Conselhos da Assistência Social e da Criança e do Adolescente (Faria, 1998) é visível o conflito de inter-esses e a disputa de posições na arena decisória o que dificulta o entendimento, elemento fundamental nos processos deliberativos.É preciso pensar as experiências participativas como propostas reais de mudanças na relação Estado-

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sociedade, na direção da horizontalidade, da busca do entendimento e da cooperação. Em tese esta é a idéia mestra que sustenta o modelo e ela representa uma inversão total do padrão burocrático-institu-cional vigente no setor público do Brasil.Do ponto de vista da representação da sociedade é importante também chamar a atenção para os pro-cessos diferenciados de definição e de exercício dessa representação. O modelo predominante na ex-periência dos Conselhos é a indicação da representação pelos dirigentes das entidades sem nenhuma preocupação com a discussão e/ou o encaminhamento das questões de interesse da base social, o que transforma os representantes da sociedade em representantes de si mesmos, situação que comprom-ete a legitimidade de suas posições e o seu poder de representação. Esse problema é menos visível na experiência do orçamento participativo onde as discussões e decisões seguem um processo que tem início na base (categoria, bairro, etc), e culmina na assembléia do orçamento, onde os delegados escol-hidos em cada reunião de base expressam a posição do segmento que representam. Até aqui temos chamado a atenção para algumas diferenças básicas entre os dois tipos de fóruns delib-erativos em processo de formatação no Brasil, que são os Conselhos e o orçamento participativo, sendo ressaltada a importância da forma de institucionalização das diferentes experiências para o funciona-mento das mesmas e, sobretudo, para o grau de engajamento dos atores participantes. O alto grau de institucionalização dos Conselhos, a sua natureza impositiva e o controle do governo dificultam o engajamento da sociedade organizada. Por sua vez, a horizontalidade das relações em grande parte dos casos de orçamento participativo e o seu caráter espontâneo, contribuem para uma maior motivação da sociedade para participar nesses fóruns de deliberação.

Balanço da experiênciaOs estudos realizados sobre as experiências participativas no Brasil, a despeito de todas as dificuldades apontadas, são bastante otimistas em relação ao seu futuro. É indiscutível o avanço propiciado pela ab-ertura desses novos canais de participação para o encaminhamento das políticas públicas no país. Eles têm funcionado como espaços institucionais que têm favorecido a veiculação de demandas sociais não acolhidas pelos canais tradicionais da vida política, assim como o acolhimento de denúncias relativas ao uso dos recursos e ao funcionamento dos serviços públicos. Algumas avaliações têm apontado para a importância que os fóruns participativos têm tido para o processo de inversão de prioridades na agenda pública, abrindo espaço para o aparecimento de políticas inovadoras caracterizadas por uma maior ad-equação às necessidades da população. Essa avaliação, que é generalizada em termos do orçamento participativo, se estende hoje para um número significativo de conselhos gestores conforme avaliação da VIII Plenária Nacional de Conselhos de Saúde. Não há dúvidas, também, acerca da importância que a existência desses fóruns tem tido para o apren-dizado da democracia, não somente por parte dos setores da sociedade civil, mas, também, por parte dos que representam o Estado. A convivência com a diferença e com o conflito propiciam um apren-dizado no sentido da busca de soluções que se produzem na discussão e na argumentação, elementos vitais para a deliberação democrática. O balanço final das experiências de gestão participativa no Brasil não poderia deixar de chamar atenção para o saldo político das mesmas em termos organizativos. É possível visualizar uma certa redinam-ização da sociedade civil, onde as experiências têm sido mais exitosas (como em Porto Alegre) e uma mudança real, em termos de atitudes e práticas políticas, entre os participantes das arenas deliberativas. Essa experiência alimenta, assim, a possibilidade de construção de uma nova cultura política baseada na vivência concreta da condição cidadã por parte da população, principalmente da população mais pobre. O balanço do processo de institucionalização da participação, em fóruns de gestão participativa, no Brasil, tem assim um saldo positivo. Eles têm proliferado com muita rapidez e, por mais que o funciona-mento de experiências como a dos Conselhos ainda deixem a desejar em termos de funcionamento, o simples fato da sua existência e a participação de grupos organizados da sociedade, em seu interior, já representa um diferencial significativo no processo de ampliação do espaço público e no fortalecimento das bases que sustentarão a experiência democrática futura.

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10 - O que é o Ser Humano?Frei Betto

O mapeamento preliminar do genoma humano deitou por terra a nossa empáfia. Uma decepção! Aliás, a terceira grande decepção nesses últimos cinco séculos. Temos apenas trezentos genes a mais do que um

rato. E só 30.000 genes, ao contrário dos esperados 100.000.

A primeira grande decepçãoA pancada em nossa pretensão equivale à descoberta por Copérnico, no século 16, de que a Terra não ocupa o centro do universo.Em 1514, o papa pediu ao astrônomo polonês que fizesse uma reforma do calendário. Ao estudar o Almagesto de Ptolomeu, Copérnico percebeu as deficiências que transparecem na prolixidade das proposições. A ciência é o avesso da arte, e não o seu contrário. Toda verdadeira descoberta científica deve corresponder à harmonia demonstrada pela natureza. E o modelo geocêntrico de Ptolomeu, em-bora do agrado da Igreja, era complexo e carecia de beleza.“Um sistema desse tipo”, escreveu Copérnico a respeito da elaboração ptolomaica, “não parece sufi-cientemente absoluto nem suficientemente agradável à mente.” Ele sabia também que, desde a Anti-guidade, o Sol e as estrelas haviam sido contemplados por quem tem os pés na Terra. E não ignorava a força ideológica da Bíblia, a qual proclama que Deus se encarnou e viveu como homem aqui neste planeta. Não seria esse um sinal evidente de que vivemos no centro em torno do qual tudo se inove?Ora, ao beber nas fontes da Antiguidade clássica, o Renascimento aprendeu que a ciência é filha da verdade e não da autoridade. Imbuído dessa mentalidade dessacralizadora, quase iconoclasta, e da con-vicção de que não há barreiras à pesquisa, Copérnico ousou inverter a posição do observador e imagi-nou-se com os pés no Sol. Sua conclusão, a de que vivemos num sistema heliocêntrico, foi registrada no De Revolutionibus.Cauteloso, não esqueceu que a Europa ainda se movia na órbita da Igreja. Por isso, considerou prudente não se apressar em publicar sua teoria heliocêntrica. Permitiu apenas que um esboço manuscrito circu-lasse entre especialistas. Só veio a admitir que o De Revolutionibus fosse editado quando já se encon-trava no derradeiro abrigo, no qual a Inquisição não poderia mais alcançá-lo: o leito de morte.Ainda assim, o teólogo luterano Andreas Osiander, que prefaciou a obra, achou melhor sublinhar apenas que o sistema copernicano era uma mera descrição matemática, o que não significava que o Sol ocu-passe o centro em torno do qual girariam os planetas... E deixou seu texto sem assinatura, de modo a dar a impressão de que fora redigido pelo próprio Copérnico.A bomba, entretanto, explodiu com a publicação do livro, em 1543, após a morte do autor, e provocou, de fato, uma autêntica revolução ao deslocar, da Terra para o Sol, o eixo do mundo.Mesmo o nascente protestantismo sentiu-se ofendido ao ver este planeta relegado à condição de uma entre as tantas contas que ornamentam o colar do sistema solar. “Quem se aventura a pôr a autoridade de Copérnico acima do Espírito Santo?”, bradou Calvino.Lutero também não se conteve e denunciou: “Esse idiota quer inverter toda a ciência da astronomia; mas a Sagrada Escritura nos diz que Josué mandou que o Sol parasse e não a Terra.A Igreja Católica teve, de inicio, uma reação mais tolerante. Dez anos após a morte de Copérnico, o chanceler austríaco Johann Albrecht von Widmanstadt expôs ao papa Clemente VII, nos jardins do Vati-cano, os aspectos fundamentais da teoria heliocêntrica. A reação foi positiva. Não obstante, a Igreja acabou incluindo o De Revolutioníbus - oitenta anos após a sua publicação - no Index, a lista dos livros proibidos, onde figurou até 1835.Se o poder eclesiástico já conhecia as idéias de Copérnico desde 1533, como se explica à perseguição

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a Galileu no século 17? Talvez por ter ele escrito em toscano e, portanto, permitido ao povo o acesso às suas teorias. Deve ter pesado também sua atitude, considerada ousada e mesmo irreverente, de desafiar a autoridade papal ao “legislar” sobre os fenômenos da natureza.O fato é que a teoria fixista de Ptolomeu, astrônomo egípcio do século 2, tão conveniente a quem se jul-gava no centro do universo, foi derrubada pelo heliocentrismo de Copérnico, relegando o ser humano a um planeta periférico situado na órbita de uma estrela vagabunda, de quinta grandeza, o Sol, localizada na periferia da Via Láctea, uma entre bilhões de galáxias que brilham sobre o veludo negro deste uni-verso parecido a uma caixa de jóias.

A segunda grande decepçãoBem, podemos não estar situados exatamente no centro do universo, mas ao menos restava o consolo de que somos o capricho de Deus. A Bíblia, palavra divina, não mente. E, em sua porta de entrada, o Gênesis, consta que o próprio Criador fez o ser humano, e o fez homem e mulher.Tudo corria às mil maravilhas, até que, no século 19, Charles Darwin descobriu que somos filhos de macacos. Sob o impacto de sua própria conclusão, o autor de A Origem das Espécies ocultou, duran-te certo tempo, a sua teoria da evolução. Ele vivia doente, queixando-se de intensas dores de cabeça, derramando-se em vômitos e contraindo-se em palpitações cardíacas. Sofria os efeitos de um conflito íntimo, como quem somatiza um drama de consciência.Darwin, que sonhara ser sacerdote, fora levado por caminhos que o tornaram autor de uma teoria que, como a astronomia de Copérnico e Galileu, faria a Igreja vociferar também no século 19. Chegou a con-fidenciar a seu amigo Joseph Hooker que, ao admitir o parentesco entre o ser humano e os símios, ficou-lhe o sentimento de culpa de quem comete um crime, um verdadeiro parricídio - o assassinato de Adão.Faltou o gene a Darwin para que ele pudesse completar sua teoria

A terceira grande decepçãoAgora, em plena era de domínio humano dos espaços siderais e das intimidades das partículas atômicas, vem a ciência demonstrar que temos só duas vezes mais genes do que os vermes. Cerca de 60 por cento de nossos genes são cópias dos genes de moscas, fungos e bactérias.O conceito de raça, que motivou tantas guerras e, ainda hoje, produz ferozes discriminações, acaba de escorrer pelo ralo. A diferença genética entre um branco e um negro é menor do que a existente, entre dois negros.Ficou tudo muito confuso na cabeça de quem centrava sua esperança em dons. Nada indica que uma cópia humana será melhor que o original, uma vez que a estrutura genética não é o determinante em nossa constituição humana. O meio ambiente influi, e muito. O livre-arbítrio é inegável! O que explica tanta diferença entre gêmeos univitelinos.É evidente que, ao abrir o capítulo dos genes no livro da vida, a ciência descortina avanços inestimáveis, como prever anomalias que poderão ser previamente evitadas. A perdurar essa fútil cultura de dianas e apolos, é provável que se faça uso de mutações genéticas por meros caprichos estéticos. Mas as doenças poderão ser combatidas antes em suas causas que em seus efeitos.

O lixo é luxoA ciência já estava jogando no lixo o lixo do DNA e, agora, frente à decepção com o genoma humano, lá vão os cientistas ladeira abaixo em busca do lixo, como quem descobre que o brilho no fundo da mina de carvão é diamante. Os 98 por cento do genoma que não consistem de genes são o DNA lixo, que nos foram repassados por parasitas e vírus. O ser humano é uma obra feita de muita sucata. Aquilo que

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fomos em 15 bilhões de evolução do universo - algas, crustáceos, lagartos e pássaros - explica aquilo que somos. Jogar fora o lixo do DNA é tocar fogo em papéis velhos que podem ser o único registro da história de um povo.Mas não há razão para baixar a nossa auto-estima. Nossos genes fabricam cerca de 300.000 diferentes proteínas. Após o genoma, a ciência parte agora para o proteoma. Quem sabe as proteínas venham a inflar o nosso ego ferido, explicando melhor a nossa singularidade?Certo governador de Minas encomendou de famoso historiador mineiro a árvore genealógica de sua família. Lá pelas tantas, num jantar em palácio, o governador indagou do pesquisador “E então, como vai a minha árvore genealógica?” O historiador gaguejou: “Bem, excelência, descobri que seu bisavô paterno casou com uma negra.” Na mesma noite, a pesquisa foi cancelada.Há 600 milhões de anos, um verme de vida livre começou a repassar seus genes a moscas e seres huma-nos. Ele é o nosso ancestral comum, assim como tudo indica que Adão e Eva, ou como se queira chamar o primeiro casal humano, habitavam a África e eram negros.O curioso em toda essa revelação de nosso mapa genético é que corremos o risco de fazer ciência sem consciência. Nos EUA, noticia a mídia, cerca de noventa condenados já escaparam da pena de morte, graças aos exames de DNA. E 3.000 suspeitos foram sentenciados pela Justiça.Mas quem se importa com esse paradoxo de uma geração capaz de esquadrinhar os genes, mas incapaz de repudiar a pena de morte? Que diabo de sociedade é esta que se vangloria de avanços científicos com o poder de salvar tantas vidas e, ao mesmo tempo, sacrifica tantos homens e mulheres no altar da vingança coletiva que confere ao Estado de uma nação rica o oficio de carrasco de povos pobres? Para que serve tanta ciência e tecnologia se ninguém socorre a África, se os EUA bombardeiam impunemente o Iraque, se o FMI blefa no jogo financeiro e atira nações como a Turquia na miséria, se os filhos de Tio Sam formam o maior mercado mundial de consumo de cocaína?Apesar de tantas decepções e paradoxos, somos, sim, um ser singular, o único que sabe que sabe, e sabe que seu maior desafio é a sabedoria do amor. Talvez nos séculos vindouros, após o mapeamento da consciência humana, se chegue ao mapeamento de nosso espírito. Então, é possível que descubram dentro dele o sopro divino e lamentem o infortúnio das gerações passadas, que morriam de sede sem saber que traziam em si um poço inesgotável de água viva.

Frei Betto é escritor, autor de A Obra do Artista - Uma Visão Holística do Universo - (Ática), entre outros livros. www.dominicanos.org.br

Nada é impossível de mudarBertold Brecht

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural. Pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural. Nada deve parecer impossível de mudar.

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11 Direitos Humanos do IdosoPaulo Vannuchi

Os Municípios deverão estar preparados no futuro para enfrentar o envelhecimento da população, com o aumento do número de pessoas com idade acima dos 60 anos, que demandarão por serviços e dire-itos específicos.

Em 1º de outubro se comemora-se o Dia Mundial dos Direitos do Idoso, e o envelhecimento da popula-ção é, hoje, realidade mundial. Os progressos da ciência e dos direitos de cidadania contribuíram para que a expectativa de vida tenha dobrado em comparação com o século passado, apontando evidente salto civilizatório.

Essa nova realidade mundial enseja mudanças nas prioridades das políticas públicas e na relação entre Estado e sociedade, assegurando que a ampliação da longevidade seja acompanhada de maior quali-dade de vida. No Brasil, ao lado de avanços na proteção dos direitos do idoso, registrados em duas décadas de reconstrução democrática, seguem ocorrendo violações cotidianas que vão das atitudes de discriminação ou descaso até gravíssimos episódios de cárcere privado, sequestro do cartão de acesso a benefícios sociais, violência física e até mesmo sexual.

O reconhecimento dos direitos da pessoa idosa vem evoluindo, no âmbito nacional, por meio do diálogo com a sociedade e da coesão entre as políticas públicas. Nos últimos oito anos, foram realizadas a 1ª e a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (2006 e 2009), que propuseram a Rede Nacional de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa (Renadi). Contribuíram nesse processo a adoção da Política Nacional do Idoso e a aprovação do Estatuto do Idoso.

A valorização da pessoa idosa e a promoção de sua participação na sociedade são objetivos estratégicos do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Poderes públicos e representações da sociedade civil partilham responsabilidades e formulam propostas de políticas de governo no Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, organismo que possui ou deveria possuir o seu correspondente nas 27 unidades da Federação e em cada município.

Esses instrumentos e políticas nacionais consolidam a compreensão de que homens e mulheres idosos são sujeitos de direitos, não seres destinatários de caridade, compaixão ou dó. Tal mudança de paradig-ma se apoia na ideia de que a atenção aos idosos se insere no âmbito das políticas de Direitos Humanos, cujo fundamento diz respeito à dignidade intrínseca da pessoa. Foi com essa orientação que o governo brasileiro transferiu a coordenação da política nacional do idoso para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, dando-lhe transversalidade.

Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), as Nações Unidas constroem um robusto sistema de proteção aos segmentos vulneráveis da população, munindo cada um deles de uma conven-ção específica com força vinculante e compromissos compulsórios para as nações aderentes. Mulheres, crianças, migrantes e pessoas com deficiência já possuem um instrumento específico. Mais recente-mente foi aprovada uma declaração para assegurar os direitos dos povos indígenas.

Nos últimos anos, o Brasil desenvolve iniciativas, em parceria primordial com a Argentina, para iniciar

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discussões na ONU sobre as bases de uma Convenção Internacional dos Direitos do Idoso. A Secre-taria de Direitos Humanos articula ações com o Itamaraty para levar adiante esse debate, que ganhou destaque na Conferência Mundial sobre o Envelhecimento, em Madri (2002), e no prosseguimento dela, em Brasília (2007), com o nome Madri 5, cuja declaração oficial convoca à construção da nova convenção e demanda a criação de uma relatoria especial das Nações Unidas para o tema.

Elaborar um instrumento normativo internacional vinculante que proteja os direitos do idoso significa retirá-los de uma condição de invisibilidade, reconhecendo-lhes direitos e obrigações capazes de as-segurar condições de cidadania plena. A adoção de uma convenção internacional permitirá estabelecer um quadro conceitual, legal e de responsabilização para cooperação entre governos, organizações da sociedade civil e segmento empresarial visando eliminar a discriminação relacionada à idade. Já a Rela-toria Especial possibilitará o monitoramento desses direitos por relatores independentes que se repor-tam ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

O caminho para a criação de instrumentos internacionais exige esforços pacientes para a busca de con-sensos entre as nações. O primeiro passo já foi dado, com a aprovação pelos países do Mercosul da pro-posta de Convenção. No âmbito da 18ª Reunião de Altas Autoridades de Direitos Humanos e Chancelar-ias do Mercosul, realizada de 18 a 20 de outubro, em Brasília, sob a presidência pró-tempore do Brasil, um seminário apontou caminhos para avançar na construção de uma convenção internacional e de uma relatoria especial. Nesta semana, o Brasil participa de sessão especial na OEA, em Washington, que discute uma convenção sobre o tema no âmbito interamericano.

Com esses passos concretos, o país celebra a passagem da data internacional dos direitos da pessoa idosa, atuando na vanguarda de uma iniciativa que comprova que, no Brasil, as políticas públicas de direitos humanos são vistas como políticas de Estado. É mais um indicador de que a democracia brasile-ira se apoia em sólidas bases institucionais e já começamos a despontar como referência mundial em aspectos que pouca gente ousaria sonhar até períodos recentes.

Paulo Vannuchi - Graduado em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Mestre em Ciência Política-USP, Ex-Ministro da Secretaria de Direitos Humanos da

Presidência da República, Governo Lula.

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12 - JAPÃOMonja Coen

Quando voltei ao Brasil, depois de residir doze anos no Japão, me incumbi da difícil missão de trans-mitir o que mais me impressionou do povo Japonês: kokoro. Kokoro ou Shin significa coração-mente-essência.

Como educar pessoas a ter sensibilidade suficiente para sair de si mesmas, de suas necessidades pes-soais e se colocar à serviço e disposição do grupo, das outras pessoas, da natureza ilimitada?

Outra palavra é gaman: aguentar, suportar. Educação para ser capaz de suportar dificuldades e superá-las.

Assim, os eventos de 11 de março, no Nordeste japonês, surpreenderam o mundo de duas maneiras. A primeira pela violência do tsunami e dos vários terremotos, bem como dos perigos de radiação das usinas nucleares de Fukushima.

A segunda pela disciplina, ordem, dignidade, paciência, honra e respeito de todas as vítimas. Filas de pessoas passando baldes cheios e vazios, de uma piscina para os banheiros.

Nos abrigos, a surpresa das repórteres norte americanas: ninguém queria tirar vantagem sobre nin-guém. Compartilhavam cobertas, alimentos, dores, saudades, preocupações, massagens. Cada qual se mantinha em sua área. As crianças não faziam algazarra, não corriam e gritavam, mas se mantinham no espaço que a família havia reservado.

Não furaram as filas para assistência médica – quantas pessoas necessitando de remédios perdidos – mas esperaram sua vez também para receber água, usar o telefone, receber atenção médica, alimentos, roupas e escalda pés singelos, com pouquíssima água.

Compartilharam também do resfriado, da falta de água para higiene pessoal e coletiva, da fome, da tristeza, da dor, das perdas de verduras, leite, da morte.Nos supermercados lotados e esvaziados de alimentos, não houve saques. Houve a resignação da tra-gédia e o agradecimento pelo pouco que recebiam. Ensinamento de Buda, hoje enraizado na cultura e chamado de kansha no kokoro: coração de gratidão.

Sumimasen é outra palavra chave. Desculpe, sinto muito, com licença. Por vezes me parecia que as pes-soas pediam desculpas por viver. Desculpe causar preocupação, desculpe incomodar, desculpe precisar falar com você, ou tocar à sua porta. Desculpe pela minha dor, pelas minhas lágrimas, pela minha pas-sagem, pela preocupação que estamos causando ao mundo. Sumimasem.

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13 O preço de não escutar a naturezaLeonardo Boff

O cataclisma ambiental, social e humano que se abateu sobre as três cidades serranas do Estado do Rio de Janeiro, Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, na segunda semana de janeiro, com centenas de mortos, destruição de regiões inteiras e um incomensurável sofrimento dos que perderam familiares, casas e todos os haveres tem como causa mais imediata as chuvas torrenciais, próprias do verão, a configuração geofísica das montanhas, com pouca capa de solo sobre o qual cresce exuberante floresta subtropical, assentada sobre imensas rochas lisas que por causa da infiltração das águas e o peso da vegetação provocam frequentemente deslizamentos fatais.Culpam-se pessoas que ocuparam áreas de risco, incriminam-se políticos corruptos que destribuíram ter-renos perigosos a pobres, critica-se o poder público que se mostrou leniente e não fez obras de prevenção, por não serem visíveis e não angariarem votos. Nisso tudo há muita verdade. Mas nisso não reside a causa principal desta tragédia avassaladora.A causa principal deriva do modo como costumamos tratar a natureza. Ela é generosa para conosco pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer, entregue ao nosso bel-prazer, sem nenhum sentido de responsabilidade pela sua preservação nem lhe damos alguma retribuição. Ao contrário, tratamo-la com violência, depredamo-la, arrancando tudo o que podemos dela para nosso benefício. E ainda a transformamos numa imensa lixeira de nossos dejetos.Pior ainda: nós não conhecemos sua natureza e sua história. Somos analfabetos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percurso de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em con-hecer a flora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisagens, as pessoas significativas que ai viveram, artistas, poetas, governantes, sábios e construtores.Somos, em grande parte, ainda devedores do espírito científico moderno que identifica a realidade com seus aspectos meramente materiais e mecanicistas sem incluir nela, a vida, a consciência e a comunhão íntima com as coisas que os poetas, músicos e artistas nos evocam em suas magníficas obras. O universo e a natureza possuem história. Ela está sendo contada pelas estrelas, pela Terra, pelo afloramento e elevação das montan-has, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa é saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam.Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vin-ham ou não trombas d’água. Chico Mendes com quem participei de longas penetrações na floresta amazôni-ca do Acre sabia interpretar cada ruído da selva, ler sinais da passagem de onças nas folhas do chão e, com o ouvido colado ao chão, sabia a direção em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Nós desap-rendemos tudo isso. Com o recurso das ciências lemos a história inscrita nas camadas de cada ser. Mas esse conhecimento não entrou nos currículos escolares nem se transformou em cultura geral. Antes, virou técnica para dominar a natureza e acumular.No caso das cidades serranas: é natural que haja chuvas torrenciais no verão. Sempre podem ocorrer desmo-ronamentos de encostas. Sabemos que já se instalou o aquecimento global que torna os eventos extremos mais freqüentes e mais densos. Conhecemos os vales profundos e os riachos que correm neles. Mas não escutamos a mensagem que eles nos enviam que é: não construir casas nas encostas; não morar perto do rio e preservar zelosamente a mata ciliar. O rio possui dois leitos: um normal, menor, pelo qual fluem as águas correntes e outro maior que dá vazão às grandes águas das chuvas torrenciais. Nesta parte não se pode con-struir e morar.Estamos pagando alto preço pelo nosso descaso e pela dizimação da mata atlântica que equilibrava o regime das chuvas. O que se impõe agora é escutar a natureza e fazer obras preventivas que respeitem o modo de ser de cada encosta, de cada vale e de cada rio.Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário, teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.

Leonardo Boff é filósofo/Teólogo.

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