Simpatias e Crendices

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  • 7/25/2019 Simpatias e Crendices

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    Simpatias e crendices

    Quando minha me queimava folhas secas para espantar as tempestades, estava

    apenas repetindo um ato que vinha desde a Idade Mdia portuguesa. Aquilo tinha

    passado de me para filha, de av para neta, por anos e anos. Esses imigrantes antigos

    no apenas carregavam para a Amrica suas habilidades e sonhos, mas todo umuniverso de crendices. A procisso dos mortos que eu j contei aqui era uma delas.

    Outra conhecida era a de comer seis gros de rom no dia 06 de janeiro, dia de

    Reis. Diziam que trazia sorte. Meu pai insistia nisso quando estvamos na fazenda, de

    modo que at hoje, quando realizo o ato, lembro-me dele dizendo:

    - Engole as semente...

    J meu av materno dizia que as sementes tinham que ser guardadas na carteira.

    Cada um tinha a sua verso...

    Outra coisa era jogar sal na casa do vizinho. Minha tia vivia jogando sal numa

    casa que havia subindo a rua porque isso espantava a famlia daquele lugar. Ela ainda

    alimentava outra loucura de crendice: na sexta-feira santa, queimava um papel comuma cruz rabiscada num pires com um pouco de leite, deixando as cinzas carem por

    cima. Deixava-se o pires descansar por uma noite, e no outro dia poderia se ver uma

    mensagem deixada pelo alm. Ela jurava ter visto o sagrado corao de Cristo no ano

    em que minha av morreu...

    Quando no, eram os remdios caseiros e as simpatias. Folha de arnica, babosa,

    erva-cidreira, casca de goiaba e de rom... Tudo virava remdio para essas pessoas

    antigas! E muitas vezes, confesso, o negcio parecia surtir efeito...

    As simpatias eram quase sempre ilgicas. Ana, a amiga de minha me, apareceu

    com uma que era infalvel para curar a bronquite de Dona Anita. Consistia no seguinte:

    numa crise, minha me tinha que tomar um gole de leite, mas no tomar tudo... Umpouco iria para a goela, o resto era cuspido de volta para o copo. Ana ento pegaria o

    recipiente, cobriria com um pano e levaria para enterrar junto de uma rvore cuja

    moradia minha me teria que desconhecer.

    Feito isso, Ana me convidou para ir at um lugar. Pegamos uma estrada que

    seguia para a estrada das almas. A meio caminho, havia uma grande rvore. Ali foi

    enterrado o copo.

    Dali em diante, minha me nunca mais sofreu de ataques de bronquite...

    Por fim, os benzimentos. Tudo quanto era velho sabia benzer de alguma coisa,

    fosse bucho virado ou mau-olhado. Lembro-me de estar com dor de dente, e minha me

    colocar minha cabea no seu colo para benzer. Ela fazia com os dedos uns movimentosestranhos em minha bochecha (do lado em que estava o dente) e repetia baixinho umas

    oraes estranhas. Parece incrvel, mas enquanto ela estava falando, o dente comeava

    a parar de doer. A dor realmente sumia...

    Crendices, bnos, simpatias, remdios caseiros... Essa gente pobre se virava

    como podia numa poca em que comprar remdio ou pagar um mdico era

    praticamente um luxo. E muitos dos mdicos no eram l essas coisas. Lembro-me de

    estar muito doente quanto era pequeno, com uma tosse forte que beirava pneumonia.

    Meu pai ficou preocupado, e reservou uma boa parte do seu pouco dinheiro para pagar

    um txi e fazer uma consulta com um mdico em Passaredo. Por fim, o mdico os tratou

    com uma indiferena sem tamanho, receitando remdios carssimos. Meu pai deliberou:

    - Compr remdio o qu! Vamo d aquele xarope de ervas que minha me fazia.

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    - Mas o caso grave, Lando!alertava minha me, preocupada.

    - Vamo tent...

    E l estava eu de p na semana seguinte, graas ao santo xarope que era uma

    receita centenria da famlia...