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    A questo do comunismo1Lucien Sve2

    Dar pleno sentido ao tema que nos ocupa Que alternativa ao capitalismo? exigeestabelecer, para cham-lo por seu verdadeiro nome marxiano, a questo do comunismo. Paraser claro, estruturarei minha interveno em torno de vrias teses quer dizer, com certeza,hipteses que espero mostrar que no so arbitrrias. E, para ater-me ao tempo estabelecido,limitar-me-ei a sustentar trs.

    I

    Tomando a palavra alternativa ao p da letra, a pergunta Qual a alternativa ao capitalismo?

    consiste em perguntar-se qual o outro do capitalismo no seio da identidade em forma dedilema que constituiriam juntos. Mas que dilema? A resposta parecia bvia h mais de um

    sculo: propriedade privada ou propriedade social dos grandes meios de produo e de troca.

    Desse ponto de vista, o que se tem denominado socialismo real tem sido o outro docapitalismo, quer dizer, o contrrio dentro de um mesmo gnero. O contrrio: digamos, para

    prosseguir muito rapidamente, plano versus mercado. O mesmo gnero: o acionamento de umtipo idntico de aumento da produtividade baseado, segundo as lgicas industriais, naacumulao de trabalho morto como condio primordial de eficcia crescente do trabalhovivo.

    O melhor ndice dessa identidade essencial por trs da antinomia imediata no a palavra deordem que dominou a involuo brezhneviana dos pases socialistas: alcanar o capitalismo?

    Para a pergunta Qual a alternativa ao capitalismo, entendida no sentido exato da palavra

    alternativa, a resposta no est nem lgica nem historicamente diante de ns, mas atrs dens: tal alternativa no outra que o fenecido socialismo de tipo sovitico que perseguia o

    projeto invivel de alcanar o capitalismo sem mercado nem democracia verdadeiros. Resulta aconcluso que para muitos parece evidente: estaria demonstrado que no existe alternativavivel ao capitalismo. Poder-se-ia buscar unicamente no uma alternativa, mas variantes namaneira de regular e circunscrever esse elemento insubstituvel das sociedades desenvolvidas: omercado capitalista.

    Considerando-setal como o meu caso e sem dvida o de muitos entre ns que os estragos

    de todo tipo que o capitalismo produz hoje, e ainda pior, os que nos promete para amanh, soabsolutamente inaceitveis, a pergunta aberta que convm colocar-se, ento, parece-me no ade uma alternativa ao capitalismo que gire, de fato, na mesma rbita, mesmo que fosse no polooposto, mas a de superao, em que a prpria rbita resulte profundamente transformada. Tal a problemtica, no-alternativa, mas revolucionria no prprio sentido dado por Marx. E nessa problemtica que se inscrever minha reflexo. No se trata, portanto, de buscar algumavariante forma social hoje dominante, nem sequer de inverter tal ou qual sinal em uma

    1 Texto publicado na revista NOVOS RUMOS (4), Ano 16, N 35, 2001.2 Exposio realizada no plenrio de encerramento do Congresso Marx Internacional, onde se debatia o tema Quala alternativa para o capitalismo? O autor se baseia em uma leitura em profundidade dos Grundrisse, de Marx, para

    analisar os fenmenos contemporneos e em particular as condies da viabilidade e colocao na ordem do dia docomunismo. Publicada em Tesis Xl, no 2, Montevidu, junho de 1997. http://www.tesisxlmultimediany.com;traduo de Dina Lida Kinoshita.

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    frmula geral sem mudana, mas, ao contrrio, para retomar alguns dos temas mais ambiciososde Marx, de pr fim s grandes alienaes histricas levadas ao limite pelo modo de produocapitalista, de acabar com a era milenria das sociedades de classe, de sair da pr-histriahumana. Trata-se de mudar a base. Para esse movimento de superao radical, Marx reservouo nome de comunismo. Nesse sentido, mais alm das questes to embaralhadas que pode levar

    o uso poltico deste termo hoje, diria que o problema iniludvel com que nos defrontamos sempre e novamente o do comunismo.

    Mas precisamente porque a perspectiva do comunismo nos projeta para fora da rbita dodesenvolvimento histrico atual, ela se choca com uma objeo fundamental: a de suairrealidade. A viso muito amplaainda que no-marxianado comunismo como um ideal,no tem no momento existncia alguma. Inscrev-la na sucesso no-acabada das formaessociais no equivaleria a introduzir as quimeras na classificao das espcies vivas? Objeoque no perturba a certos utopismos, que aceitam sem dificuldade que o comunismo sejasomente uma ideia reguladora de nossas prticas polticas. Mas nessa acepo evidente que

    perca toda consistncia como perspectiva de superao efetiva do capitalismo. Assim, a

    extraordinria originalidade de Marx querer incluir rigorosamente essa antecipao visionriado futuro em uma anlise materialista-crtica do presente. Ali est o ponto crucial para as atuaisreleituras crticas de Marx. A atitude, sem dvida alguma dominante hoje, de estigmatizaressa inaceitvel confuso de gneros epistemolgicos: por exemplo, quando no captulo XXIVdo Livro I de O capital, Marx nos apresenta a expropriao dos expropriadores como uma

    negao histrica da negao que se deve cumprir, diz, com a inelutabilidade de um processonatural.

    Muitas vezes se tem sublinhado, inclusive neste Congresso, que se trata de uma transioinadmissvel da comprovao emprica construo normativa mediante uma viso teleolgicados processos sociais que contradiz radicalmente os princpios do materialismo histrico. Demodo que no haveria motivo para espantar-se de que nosso sculo tenha sido nesse aspecto odas esperanas insatisfeitas.

    Em que pese os mritos destas consideraes, minha tese no por isso menos firme no queconcerne a que elas no invalidam o essencial. Admito que valem contra aforismosglobalizadores em que a dialtica faz as vezes de deus ex machina especulativo. Mas sustentoque esses pouco frequentes enunciados remetem, em Marx, a um vasto trabalho analtico queem seus princpios, em todo caso, escapa inteiramente objeo. Esse trabalho de Marxconsiste em colocar em evidncia a produo, empiricamente testemunhada pelo movimento docapital, dos supostos objetivos de sua prpria superao; no so nada mais do que suposies

    prvias que, aprisionadas nas formas capitalistas, so incapazes por si mesmas de revert-las nosentido comunista e s fazem aguar contradies devastadoras, mas pressuposies no menosessenciais daquela superao. Exemplo: o dinamismo com que o modo de produo capitalistadesenvolve sem interrupo a produtividade real do trabalho engendra condies materiais que,ao mesmo tempo, tornam cada vez mais possvel o desenvolvimento livre e pleno dos

    produtores e lhes exigem com mais fora em nome de uma produtividade ainda maior: no esse o centro da atual crise do trabalho? No existe a nenhum resvalo teleolgico. Criar as

    premissas de uma forma social em que cada um poder receber segundosuas necessidadesno significa nada para a atividade capitalista: sua finalidade e continua sendo a maximizaoda cota de benefcio, de maneira que ela produza no a riqueza para todos, mas a pobrezarelativa e inclusive a misria absoluta para a maioria. Mas ela no pode alcanar essa

    produtividade superior sem criar por isso mesmo s suas costas e de cabea para baixo,como gostava de dizer Marx, supostos objetivos para um modo de produo e distribuio

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    Entretantovrios dos trabalhos destas ltimas dcadas o tm mostrado h em Marx mesmoidias que vo muito alm do essencial no estudo histrico-crtico do capitalismo. Por falta detempo evoco aqui um s exemplo, que crucial para nossa poca. Extrapolando, com umgrande conhecimento das realidades industriais do seu tempo, e tambm com uma audciainaudita de pensamento, em que medida a produo ver-se-ia transtornada com a introduo

    nela, em grande escala, da cincia, viu aproximar-se um nvel de produtividade em que o tempode trabalho direto desaparece como algo infinitamente pequeno em relao a seu produto, emque o homem-produtor se torna um mero supervisor e regulador do processo de produo. Detal modo, raciocina, o roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se fundamenta a riqueza

    atual, aparece como uma base miservel comparada com esse fundamento recm-desenvolvido,criado pela prpria grande indstria. O mais-trabalho da massa tem deixado de ser a condio

    para o desenvolvimento da riqueza social, bem como o no-trabalho de uns poucos tem deixadode s-lo para o desenvolvimento dos poderes intelectuais do intelecto humano. Assim se tornaobsoleta a produo baseada no valor de troca, encerrada nas formas contraditrias da

    penria em meio da maior riqueza, enquanto florescem as hipteses materiais do

    desenvolvimento livre das individualidades.3

    Cento e quarenta anos depois de ter sido escrita essa pgina proftica dos Grundrisse, nochegamos exatamente a esse ponto? Com a irrupo sem precedentes da cincia na produo,no estamos vivendo a reduo drstica do tempo de trabalho necessrio, mesmo que decabea para baixo, quer dizer, preso s lgicas capitalistas da desocupao macia, da

    contratao aleatria do trabalho, do trabalho precrio, da dispensa precoce, ao mesmo tempoque surgem por toda parte condies tais como exigncias de superao da dicotomiaesclerosante tempo de trabalho/tempo livre, da reduo mercantil da fora do saber e dotrabalho, em sntese, as premissas de uma nova era da organizao social e da existncia

    pessoal? Outras hipteses, que Marx no previu, ademais, vinculam-se a isso, como o imensopice dos servios e a onipresena da informao, hoje engessadas na forma-mercadoria ao

    preo de uma desastrosa mutilao das possibilidades que isso implica: repartio dos custos,cooperaes no-predatrias, desenvolvimento superior das capacidades pessoais. Agregaria atudo isso um processo nascente, mas j poderoso: o grande frenesi atual do capital nos pasesmais desenvolvidos o de converter o maior nmero de assalariados em trabalhadoresindependentes com contratos pontuais, quer dizer, livrar-se inteiramente, no s dos encargossociais mas do prprio salrio. Essa tendncia indita do capital superar o regime deassalariamento no oferece um enorme tema para refletir sobre o estgio a que estamoschegando da maturao objetiva da questo comunista?

    O que acontece aqui em primeiro plano , de outra maneira, mais que o problema da

    propriedade, o das regulaes em seu conjunto e de seu carter intrinsecamente alienado nocapitalismo, em que no cessam de crescer as potencialidades sociais indmitas que nossubjugam e nos esmagam. Como dizia Marx em frmulas sintticas, que seria um grave erro,do meu ponto de vista, considerar como uma mera especulao filosfica, a essncia docapitalismo inverter as relaes entre a pessoa e a coisa, entre o fim e o meio. A superao docapitalismo tal e qual se nos apresenta hoje no tem eminentemente que ver com recolocarsobre seus ps essas relaes fundamentais para construir a primazia do desenvolvimento dosseres humanos sobre a produo dos bens e da deliberao coletiva dos fins sobre pr em aoos meios? Da socializao burocrtica dos meios de produo preciso passar para aapropriao democrtica das finalidades de todas as atividades sociais. Desse ponto de vista, anoo de critrio, cara a P. Boccara, parece-me efetivamente central, porque na interveno

    3 As citaes foram tomadas de K. Marx, Elementos fundamentales para la crtica de la economia poltica(Grundrisse, 1857-1858), vol. 2 (9a edio, Mxico/Madri: Siglo Veintiuno Editores, 1982), pp. 220 e 228.

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    para mudar os critrios das atividades sociais se realiza o retorno desalienante da questo dosmeios subordinada dos fins. Isso tambm sugere uma mudana em profundidade na maneirade pensar o avano consciente para essa civilizao superior que Marx denomina comunismo.De sbito, to brutal como pouco operacional, em definitivo, da revoluo-abolio se substituia figura do tombo progressivo, das misturas conflitivas de formas privadas e pblicas mercantis

    e no-mercantis, que evoluem para um predomnio das segundas e de seus critrios, enquanto odelineamento demasiado sumrio do poder se ramifica, sem desaparecer por certo, naconstruo de novos centros e de novas capacidades de deciso, apoiando-se nas hipteses maisdesenvolvidas de outra ordem sociopoltica. Uma lgica essencialmente diferente de superaodo capitalismo parece esboar-se, aqui, no por certo menos, mas mais autenticamenterevolucionria em substncia da que j transcorreu, liberada no entanto das mitologiassangrentas da luta final e da tbua rasa.

    Tudo isso pode ser resumido numa segunda tese: se Marx est vivo como filsofo, est muitomais como pensador do comunismo. Para alm da vulgata falaciosa do socialismo cientfico,h um ncleo racional, desconhecido por muitos e ainda mais atual hoje que no seu tempo, em

    sua anlise do movimento do capital enquanto produtor das condies materiais de suasuperao.

    Considero que possvel generalizar o exemplo que apresentei brevemente a propsito daprodutividade e do tempo de trabalho, como poderia demonstr-lo o processo polimorfo damundializao, o da crise universal das relaes autoritrias, o do irreprimvel movimento dasmulheres pela igualdade.

    III

    Se Marx produziu um conceito substancial do comunismo, cujo contedo est longe de tercaducado inteiramente, nada pode entretanto eximir-nos de reelabor-lo de nova maneira e, paraisso, recomear de seu conceito puramente formal: o da superao at o fim de todos osantagonismos do modo de produo capitalista, e ainda com maior amplitude, de todas asalienaes histricas das sociedades de classes. E quais so, nas sociedades e no mundo atual,as hipteses objetivas dessa superao? Eis a um vasto canteiro de pesquisa que se nosapresenta se queremos reconstruir um conceito substancial do comunismo para o sculo XXI.

    Nesse trabalho analtico e prospectivo sobre o real, a obra de Marx pode contudo servir-nos deapoio, na medida em que nos perguntemos que hipteses subestimou, interpretou erroneamenteou, sobretudo, desconheceu, ainda que fosse pela simples razo de que no estava desenhadoclaramente em sua poca. Aqui tambm devo limitar-me a alguns exemplos.

    Para Marx, a hiptese das hipteses do comunismo era o que denomina o desenvolvimento

    universal das foras produtivas. Digamos, para abreviar, que leva em conta essencialmente o

    papel exercido pela cincia (essa forma universal dos poderes dos homens sobre as coisas esobre eles prprios) para arrancar as foras objetivas e subjetivas da produo de sua estreita

    privatizao. Esse desenvolvimento universal no somente, a seu ver, determinante enquantocria as condies materiais do a cada um segundo suas necessidades lema pr-marxista que,

    por outra parte, nunca significou para Marx a via livre para os apetites individualistas, mas alivre satisfao das necessidades socialmente cultivadas de todos.

    Ao mesmo tempo, este desenvolvimento universal anula a premissa mais profunda da diviso

    em classes essa diviso, escreve Engels no Anti-During, se baseava na insuficincia daproduo: ser varrida pelo pleno desenvolvimento das foras produtivas modernas. E no

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    corao desse pleno desenvolvimento figura o dos prprios indivduos a sociedadecomunista, se l na Ideologia alem, a nica em que o desenvolvimento original e livre dosindivduos no uma frase oca [...]

    Mas o que nem Marx nem Engels haviam visto, e que temos aprendido rudemente neste ltimo

    meio sculo, que esse desenvolvimento universal tropea, para alm de certos limites, comumbrais de viabilidade econmicos, ecolgicos e antropolgicos. Essa dialtica da quantidade equalidade, na qual eles nem sonharam, faz surgir um novo conjunto de interrogantes

    prospectivos fundamentais. Ela nos obriga a questionar novamente, a meu juzo, de nenhummodo a perspectiva de uma hominizao cada vez mais avanada mediante a superao at ofim das grandes alienaes histricas, mas esse conceito de desenvolvimento humano quevrios sculos de crescimento capitalista profundamente desumanizador nos fizeram aceitar, ematitude pouco crtica, como natural.

    Este o ponto de necessria convergncia entre uma reflexo marxista renovada e a advertnciaecologista, ao menos se for concebida em seu nvel mximo. Para diz-lo rapidamente, no

    penso em absoluto que este chamado legtimo seja capaz de julgar a herana marxista,invalidando a problemtica de classe: sob vrios pontos de vista, muitos problemas ecolgicosatuais so em si mesmos problemas do capitalismo. Mas tambm no creio que, inversamente,o pensamento marxista tenha a capacidade de absorver a problemtica dos limiares deviabilidade tomada em toda a sua profundidade, em uma anlise de classe. Porque e, a meuver, a novidade essencial dos problemas de limiar, na exigncia de um desenvolvimentoduravelmente sustentvel, j afloram preocupaes e responsabilidades do gnero humano emsua totalidade que s uma sociedade sem classes poder converter em uma realidade

    plenamente efetiva. Essas questes so tipicamente as de uma humanidade comunista, mesmoque topemos com elas no capitalismo: novo e eloquente ndice do momento histrico queestamos abordando.

    Para aqueles que aderem ao marxismo em sua letra mais do que em seu esprito, a quemincomoda totalmente a ideia de que possa ser atual uma problemtica ps-classes, gostaria deobservar que, talvez mais do que no problema ecolgico, este salta vista no campo biotico.

    Nesse momento, em que a chamada revoluo biomdica comea a alterar as prprias bases dacondio humanaa partir da condio gentica ao destino sanitrio, do parentesco biolgico atividade neuronial , j est colocada a cada uma e cada um de ns, como ser humano semmais, esta pergunta inslita: que humanidade queremos ser? E chega a afrontar a alma e aconscincia um problema biotico transcendental por exemplo: preciso comprometer-secom a via da terapia gentica germinal, que modificaria em alguma medida a espcie em toda a

    sua descendncia? para perceber que a anlise poltico-classista tradicional nesse pontocompletamente impotente para sugerir-nos uma resposta. Estamos diante de um dessesinterrogantes antropolgicos que sero o po de cada dia da sociedade comunista, ante os quaisnumerosos problemas polticos atuais aparecem como tremendamente mesquinhos e, nesseaspecto, todos os pensamentos, inclusive os marxistas, esto fadados a superar-se sem suprimir-se.

    Sem deixar de levar em conta que hoje a revoluo biomdica, cuja aposta imensa, estdramaticamente pilotada, em medida crescente, por negcios de muito dinheiro e por cotizaesda Bolsa, quer dizer, por objetivos de classe. E, a meu modo de ver, o grave erro de certaecologia poltica o de no advertir suficientemente que esses problemas gigantescos de ps-

    classes, que no admitem postergao para amanh, no podero ser tratados plenamente a noser quando se tenha terminado com a sociedade de classes.

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    O que me conduz a um segundo exemplo, igualmente central e problemtico, de um temamarxiano que as realidades hodiernas nos obrigam, salvo erro, a repensar de maneira no-clssica: refiro-me pertinncia atual da prpria anlise em termos de classe, que o objetonotrio de um dos principais conflitos entre avaliaes diversas da herana de Marx. Pois bem,

    para ir diretamente ao que me parece merecer tanto debate como os problemas da classeoperria, proporia esta hiptese: medida que o capital penetra mais em campos de atividadecomo a sade, a formao, a informao, a investigao, a cultura, o lazer, por acaso noengendra, muito alm da explorao do trabalho, formas inditas de alienao profundssima davida social e pessoal cujo carter de classe no transforma, no entanto, as vtimas em classes?Porque o que aqui se encontra afetado muito menos seu status no sistema das relaes de

    produo e repartio do que sua relao com as finalidades e regulaes antropologicamenteessenciais e o prprio destino de tais atividades. Por a so agredidos, no somente assalariadosexplorados, mas, muito mais profundamente, como atores desarraigados de sua prpriaatividade humanizante, e desse modo alienados no centro de sua pessoa. Althusser sustentava oaparente paradoxo de uma primazia da luta de classes. De minha parte, adianto a ideia de que a

    lgica de classe uma realidade muito mais vasta da existncia das classes: de fato tem sidosempre assim, mas hoje essa dimenso, em mais de um terreno, tende a tornar-se dominante.

    Tudo isso se acentua uma vez que uma srie de processos, muito bem estudados por socilogosmarxistas ou no, contribui para dissipar os limites da classe operria, a solapar sua identidade,a relativizar seu papel especfico. De tal modo que a frmula de Marx, tambm proftica, quediz, que via nela a dissoluo de todas as classes est em vias de tomar para os operrios de

    hoje o mais concreto dos significados: antes tipo acabado de classe social no sentido marxiano,a classe operria perde progressivamente esse status histrico. Em uma inverso espetacular,no a classe capitalista que constitui de agora em diante a classe para si por excelncia,enquantofrente a ela e as camadas, clientelas e mfias que gravitam em sua rbitase operacada vez mais, pela via da generalizao do assalariado, a dissoluo de todas as outras classes?De onde vem uma assimetria absolutamente indita na dialtica das sociedades muitodesenvolvidas, com prolongamentos mundiais: em um plo, uma classe capitalista que pretendeencarnar o interesse geral em sua feroz particularidade; do outro, a fragmentao de vastasforas sociais mutantes nas dores do parto de uma universalidade humana efetiva, onde, porm,esse implacvel trabalho do negativo cria os pressupostos de convergncias originais de valorese de iniciativas objetivamente anticapitalistas.

    Ento, embora a luta de classes no sentido tradicional no se tenha esgotado, certamente seupapel nacional e internacional sob a condio de que seja capaz de rejuvenescer-se

    profundamenteno se v emergir as condies para lutas novas ou renovadas que oponhamos objetivos concretos de um universalismo civilizado ao particularismo cnico do capital? No, por exemplo, o que atesta a capacidade mobilizadora crescente de valores como a dignidade ea solidariedade, que dizem a quem quiser ouvi-lo que o que nos faz avanar desde j em direoa uma sociedade sem classes est a caminho de converter-se, justamente de um ponto de vistade classe, em um grande assunto?

    Se tudo no falso em tal anlise, pode conduzir a reconsideraes prospectivas e estratgicasde primeira ordem. As foras potencialmente motrizes de uma superao real do capitalismo jno podem, de nenhum modo, ficar encerradas em uma mera definio de classe moda antiga:sob muitos pontos de vista ultrapassam-na. O atraso de tomar uma conscincia clara disso

    pago com uma muito lamentvel carncia de interveno das organizaes anticapitalistas, porexemplo, nas graves crises de contedo que se esboam ou se aguam no campo da pesquisa

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    cientfica ou do sistema de sade, da escola ou do esporte, da criao artstica ou das redes deinformao.

    O que confere ao capitalismo sua reputao de ser impossvel de se superar no se deve poracaso em grande medida a uma pusilanimidade terica e prtica para conceber e construir os

    movimentos sociais, culturais e polticos novos, capazes de se empenharem em sua superao,movimentos cujas hipteses j esto dadas ou pelo menos em vias de surgir? Aresponsabilidade , portanto, considervel para todos os que propem renovar a culturadesenvolvida por Marx. No tempo de dizer que se tornou completamente obsoleta a

    problemtica do socialismo entendido como substituio da burguesia pela classe operriacomo classe dirigente? Cada vez mais claramente entra na ordem do dia uma problemticadiretamente comunista em que o objetivo iniciar desde j a substituio, muito conflitiva mas

    progressiva, das gestes capitalistas por regulaes de interesse comum no limite comum atodo o gnero humano. Para quem visse nisso a extravagante utopia da palavra de ordem:comunismo j, poder-se-ia perguntar se nunca refletiu sobre o conselho dado por Marx, hcento e trinta anos, aos trabalhadores da Europa: em lugar de a palavra de ordem

    conservadora: um salrio justo para uma jornada de trabalho justa, inscrevam em suasbandeiras a palavra de ordem revolucionria: abolio do trabalho assalariado.

    Resumo estas consideraes em uma terceira tese: o que morreu nestes finais do sculo XX,tomando o termo em seu sentido conceitual, o socialismo socialismo que deveria ser aprimeira fase do comunismo e comprovou ser sua anttese essencial. O que se incorpora por

    sua vez ordem do dia, no sentido marxiano da palavra, o comunismo um comunismo cujoconceito substantivo deve ser inteiramente reelaborado a partir das realidades de hoje, e dos

    pressupostos do amanh que neles proliferam.

    Por certo, inclusive aqueles que subscreveriam em alguma medida estas teses, no deixariam dese colocar outra questo: se tal conceito do comunismo pertinente, seria possvel conservar otermo, em que pese tudo que tem sido perpetrado em seu nome diria melhor: com seu

    pseudnimoneste sculo, como denominao de uma fora poltica que adota como objetivosemelhante superao do capitalismo? Minha resposta pessoal afirmativa, com a condio deuma verdadeira refundao de uma organizao poltica de novo tipo, totalmente livre dasheranas de todas as Internacionais que existiram depois da primeira. Mas para justificar estaresposta teria que me adentrar na exposio de motivos de uma tese nmero quatro, e j no hmais tempo.

    Entretanto, um ltimo interrogante. Minha interveno no ser, afinal de contas, demasiado

    otimista frente derrocada cujo terrvel passivo nos aflige? Respondo que sim, trata-se de umotimismo de tonalidade bastante trgica, porque, como estar acossado pela urgncia unida extrema dificuldade de reconstruir uma perspectiva de transformao social radical, sob o riscode no poder conjurar catstrofes polticas e humanas demasiado previsveis? Mas, em seaderindo verdadeiramente ao materialismo crtico de Marx, poder-se-ia deixar de advertir, noentanto, que a eventualidade mesma de tais catstrofes o reverso das possibilidades aindamuito pouco utilizadas para evit-las? a tese que atravessa todas as minhas teses: o pior nemsempre indubitvel.