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PROJETO FOLHAS - ENSINO MÉDIO AUTOR: Sandra Goret Sauthier Andreetta NRE: Cascavel Escola: Colégio Estadual Jardim Nova Itália Disciplina: Língua Portuguesa e Literatura (X) Ensino Médio Disciplina de Relação Interdisciplinar 1: Artes Disciplina de Relação Interdisciplinar 2: História TÍTULO: A paródia como recurso estilístico em Dalton Trevisan Conteúdos Estruturantes: O discurso enquanto prática social - Oralidade/Leitura/Escrita Conteúdo Específico: Intertextualidade: paródia e paráfrase Série a que se destina: 3ª Série do Ensino Médio VALIDADORES: Artes: História: Língua Portuguesa: Será que todos vemos (lemos) o mundo da mesma maneira? - Observe esta gravura: 1

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PROJETO FOLHAS - ENSINO MÉDIO

AUTOR: Sandra Goret Sauthier AndreettaNRE: CascavelEscola: Colégio Estadual Jardim Nova ItáliaDisciplina: Língua Portuguesa e Literatura (X) Ensino Médio Disciplina de Relação Interdisciplinar 1: ArtesDisciplina de Relação Interdisciplinar 2: HistóriaTÍTULO: A paródia como recurso estilístico em Dalton TrevisanConteúdos Estruturantes: O discurso enquanto prática social - Oralidade/Leitura/EscritaConteúdo Específico: Intertextualidade: paródia e paráfraseSérie a que se destina: 1ª 3ª Série do Ensino MédioVALIDADORES:Artes:História:Língua Portuguesa:

Será que todos vemos (lemos) o mundo da mesma maneira?

- Observe esta gravura:

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Releitura da tela “Operários” (Tarsila do Amaral). Por Sandra Goret Sauthier Andreetta. Atividade a) O que você vê, o que pensa a respeito desta gravura? b) Você gostaria de encontrar a resposta? c) Reúna-se com seus colegas e cheguem a uma conclusão.

Agora veja a gravura original, isto é, a tela “Operários” de Tarsila do Amaral.

“Operários” (Tarsila do Amaral). In: Portal Educacional do Paraná, projeto Folhas, nº 17, p.9, Vanessa A. B. Mosmann.

Atividadea) Na gravura anterior as pessoas não tinham rostos, eram todas iguais. E nesta segunda gravura, o que podemos observar quanto aos rostos (expressões) das pessoas? Quem são elas? O que representam? b) Você é capaz de relacionar a tela de Tarsila do Amaral a um determinado período da história brasileira?

O Brasil no início do século XX

No início do século XX a indústria brasileira desenvolvia-se a passos largos, pois, com a abolição da escravidão, os recursos antes aplicados no tráfico de escravos passaram a ser aplicados na indústria, e a Primeira Guerra Mundial,

obrigou os países nela envolvidos a reduzirem suas exportações, forçando assim o aumento da nossa produção industrial e do consumo interno dos

produtos brasileiros.

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A principal composição da mão-de-obra era de imigrantes, além dos homens, mulheres e crianças também faziam parte dela. Não existiam leis trabalhistas que protegessem os operários e as jornadas de trabalho ficavam por conta do patrão, que chegava a impor expedientes de até 16 horas diárias.

Muitas vezes os artistas fazem uma releitura da obra de outro,

segundo o seu entendimento, a sua visão de mundo, o seu ponto de vista.

Tarsila do Amaral, na realidade, retratou em sua obra o que vinha

acontecendo há muitos anos no Brasil, segundo o seu ponto de vista. O

que vocês acabaram de fazer, observando e analisando as gravuras da

obra de Tarsila do Amaral, foi uma releitura oral, como também poderiam

ter feito com pincel e tintas.

-Exemplo de releitura de “Mulher no Espelho” (Picasso)

Valéria Pimentel

Mulher no Espelho, de Picasso (acima): a tela inspiradora e a releitura feita por alunos de 4a série da Escola Verde Que Te Quero Verde, em São Vicente (SP).Revista Nova Escola On-line, edição 184 – ago / 2005. Trabalho realizado pela profª Lizete Moraes, sob a coordenação de Valéria Pimentel (coordenadora do Ensino de Artes e 1ª. A 4ª. Série da referida escola.

Buscar inspiração em pinturas e esculturas famosas para criar uma obra é comum entre os artistas plásticos. A prática também se tornou comum nas aulas de Artes como forma de aprofundar o estudo de determinado autor.Para realizá-la de verdade, o aluno deve personalizar sua produção e ter a intenção de transmitir uma nova mensagem com ela. Esse recurso, de usar outras obras como referência, chama-se intertextualidade, diálogo entre textos (ou entre imagens). É a relação estabelecida entre uma produção verbal (ou não verbal) e outra.

- Observe esta tira de Wiley e responda: 0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c02cc04280f040000002e0118001c000000fb021000070000000000bc02000000000102022253797374656d0004280f00007cc8110072edc63038e616000c020000280f0000040000002d01000004000000020101001c000000fb029cff0000000000009001000000000440001254696d6573204e657720526f6d616e0000000000000000000000000000000000040000002d010100050000000902000000020d000000320a5900ffff0100040000000000230fc904200d2d0004000

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0002d010000030000000000- In: Maia, 2003, p. 125

Atividade a) Que relação há com os contos de fadas? Que semelhanças e diferenças? b) Você é capaz de dizer que crítica está oculta nesta tira?

Novamente ocorreu a intertextualidade, embora o final da

história tenha sido diferente da maioria dos contos de fadas, já

que o objetivo era outro.

- Será que você lembra o poema citado por essa intertextualidade?

ParaísoSe esta rua fosse minha, Se esta mata fosse minha,Eu mandava ladrilhar, Eu não deixava derrubar.Não para automóvel matar gente, Se cortarem todas as árvores,Mas para criança brincar. Onde é que os pássaros vão morar? (Autor Anônimo)

A intertextualidade pode ocorrer por relações de semelhanças e

diferenças. A incorporação do texto se dá para que ele seja reafirmado,

transformado, invertido, contestado, ocorrendo inclusive deformação de

alguns de seus sentidos. As formas mais usadas são a paráfrase e a

paródia.

Segundo Afonso Romano de Sant’anna:

Paráfrase é a reafirmação em palavras diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita. Em geral, ela se aproxima do original em extensão. Reafirma os ingredientes do texto primeiro conformando seu sentido.Paródia, uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso é uma tomada de consciência crítica. Deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou sentido.

Atividadea) Reúnam-se em grupo com seus colegas, leiam os fragmentos de textos a seguir, discutam e cheguem a uma conclusão:b) Quais textos são os originais (texto-matriz);c) Qual é paráfrase e qual é paródia (cite características das mesmas).

a) Poema de Sete Faces“Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.”

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(Carlos Drummond de Andrade) Gauche:fr.(gôshi). Deslocado, desajustado, à esquerda dos acontecimentos.

b) Anjo“Quando nasci, um anjo torto, mancoquase morto, veio ler minha mão.Era um anjo muito torto, torto, torto.Mas era muito diferente, é claroDo anjo bem barrocoRouco, rouco, roucoCom asas de avião...”(Anjo, Sidney Olívio)

c)“Ainda que eu falasse a língua dos homens d) “Se falar as línguas de homens e anjos, E falasse a língua dos anjos mas não tiver caridade (amor), sou Sem amor, eu nada seria.” Como bronze que soa ou címbalo que (Monte Castelo, Renato Russo) retine...” (Coríntios 13, 1ss)

Címbalo : s.m. Antigo instrumento de cordas.

O Brasil de 1945 a 1985

No Brasil, o período que se estende de 1945 a 1985 é marcado por uma série de fatos que causaram profundas transformações e traumas na sociedade brasileira. 1945: fim da II Guerra Mundial; fim da era Vargas. 1956 - 1960: Anos JK. O lema do governo Juscelino era fazer o Brasil crescer 50 anos em 5. Sua administração estava baseada no Plano de Metas, um programa que priorizava as obras de infra-estrutura e o estímulo à industrialização. 1961 - 1964: Jânio, Jango e a ditadura. Jânio Quadros renunciou ao cargo em 25/08/1961.A renúncia de Jânio foi ao encontro dos interesses udenistas e dos demais grupos de oposição.Houve um plebiscito realizado em 06/01/1963 em que João Goulart (Jango), assumiu a presidência. Em 31/3/1964, explodiu a rebelião das forças armadas contra o seu governo.Sem condições de resistir ao golpe militar, deixou Brasília, passou pelo Rio grande do Sul, em seguida, foi para o Uruguai como exilado político. Era o começo dos governos militares. 1964 - 1985: Os anos de autoritarismo. O Brasil foi governado por militares. Trata-se de um dos períodos mais tristes da nossa história, com a supressão das liberdades democráticas, a cassação de mandatos políticos, a censura à imprensa e aos meios de comunicação e o assassinato de opositores ao regime. A cultura brasileira é reprimida pela censura. Apesar disso tudo, alguns autores marcaram época pela criatividade e genialidade que demonstraram. Alguns, inclusive, conseguiram burlar a censura em seus poemas e letras de

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músicas, através de uma linguagem altamente figurada, metafórica.

Vários artistas, por tentarem a todo custo, quebrar as barreiras da

censura, foram exilados. Um deles foi Caetano Veloso: o choque de suas

idéias com a ditadura militar, ocasionou sua prisão em São Paulo e impôs

seu exílio na Inglaterra, em 1968. Roberto Carlos fez a música “Debaixo

dos caracóis dos seus cabelos” em homenagem a Caetano Veloso, que

estava distante.

A seguir, três estrofes da letra da música. Procure pesquisar o

restante da letra e ouvir a música inteira.

Debaixo Dos Caracóis Dos Seus Cabelos Roberto Carlos e Erasmo Carlos

Um dia a areia branca seus pés irão tocarE vai molhar seus cabelos a água azul do marJanelas e portas vão se abrir pra ver você chegarE ao se sentir em casa, sorrindo vai chorar.

(...) As luzes e o coloridoQue você vê agoraNas ruas por onde anda, na casa onde moraVocê olha tudo e nadaLhe faz ficar contenteVocê só deseja agoraVoltar pra sua gente.

(...)

Debaixo dos caracóis dos seus cabelosUma história pra contar de um mundo tão distanteDebaixo dos caracóis dos seus cabelosUm soluço e a vontade de ficar mais um instante.

-Você conhece alguma música desta época? Pesquise a letra de uma música da época e faça uma paráfrase ou paródia da mesma. Sugestões de músicas:

• “Apesar de Você”- Chico Buarque;• “Aquele Abraço”- Gilberto Gil;• “Sabiá”- Tom Jobim e Chico Buarque;

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• “Cálice”- Chico Buarque e Gilberto Gil;• “Minha História”, “Tanto Mar”, “Atrás da Porta”- Chico Buarque;• “Pra não dizer que não falei das flores” – Geraldo Vandré;• “Mamãe eu não queria” – Raul Seixas.

A Literatura Contemporânea

A literatura dos últimos 40 anos valoriza o pluralismo de estilos e a

mistura de gêneros. Muitíssimos escritores nutridos pela leitura de textos

anteriores ou estrangeiros, passam a incorporá-los aos seus próprios

textos, quer pela paródia, quer pela citação, quer pela paráfrase,

valorizando as referências literárias (intertextualidade).

Os modernistas, sobretudo, utilizaram muito a paródia para criticar

textos consagrados da literatura brasileira, sob a perspectiva do humor.

Por exemplo, um dos livros do escritor modernista Mário de Andrade

recebeu o título de “A escrava que não era Isaura”.

O texto mais parodiado em toda literatura brasileira é a Canção do

Exílio, de Gonçalves Dias, poeta do século XIX.

Entre outros, já fizeram paródias desse poema escritores e

compositores como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade,

Murilo Mendes, Mário Quintana, Casimiro de Abreu, Jô Soares e Dalton

Trevisan.

• Conheça trechos de alguns desses textos:

“Nossas flores são mais bonitas “Minha terra tem palmaresnossas frutas mais gostosas Onde gorgeia o marmas custam cem mil réis a dúzia.” Os passarinhos daqui(Murilo Mendes) Não cantam como os de lá.” (Oswald de Andrade)

“Minha terra não tem palmeiras... “Minha Dinda tem cascatasE em vez de um mero sabiá, Onde canta o curióCantam aves invisíveis Não permita Deus que eu tenhaNas palmeiras que não há. De voltar pra Maceió.Minha terra tem relógio, Minha Dinda tem coqueirosCada qual com a sua hora Da ilha de MarajóNos mais diversos instantes... As aves, aqui, gorgeiamMas onde o instante de agora?” Não fazem cocoricó.”(Mário Quintana) (Jô Soares)

“Lá? “Não permita Deus que eu morra

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Ah! sem que daqui me vá sem que diga adeus ao pinheiroSabiá... onde já não canta o sabiá.”Papá... (Dalton Trevisan)Maná...Sofá...Sinhá…Cá?Bah!(José Paulo Paes)

Obs: Cada texto é um pronunciamento sobre dada realidade; cada texto revela a visão de mundo de quem o produz.

Atividade: Leia a “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias e em seguida responda as seguintes questões:a) Aponte a semelhança e diferença entre o texto romântico (de Gonçalves Dias) e os fragmentos de textos modernistas (Oswald de Andrade , Murilo Mendes, Dalton Trevisan e Mário Quintana).b) Podemos afirmar que os textos românticos são mais nacionalistas do que os modernistas? Justifique a resposta.c) No fragmento de Jô Soares ele faz alusão a um momento político de nossa história. Você consegue identificar esse momento e a pessoa a que ele se refere?

Canção do Exíliopor Gonçalves DiasCoimbra, julho de 1843. Publicado no livro Primeiros Cantos (1846).

Minha terra tem palmeiras,Onde canta o sabiá;As aves, que aqui gorjeiam,Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,Nossas várzeas tem mais flores,Nossos bosques tem mais vida,Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,Mais prazer encontro eu lá;Minha terra tem palmeiras,Onde canta o sabiá.

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Minha terra tem primores,Que tais não encontro eu cá;Em cismar — sozinho, à noite -Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabiá.Não permita Deus que eu morra,Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primoresQue não encontro por cá;Sem qu'inda aviste as palmeiras,Onde canta o Sabiá.

A intertextualidade em Dalton Trevisan

A intertextualidade não acontece somente em obras de arte, através

da releitura da obra de outro, em poemas e letras de música, com a

intenção de transmitir uma nova mensagem com ela. Acontece também

em narrativas, como contos e romances através de alusões, paródias ou

paráfrases.

Um dos maiores exemplos de contista de nossa época é o paranaense

Dalton Trevisan. Ele usa e abusa da intertextualidade, principalmente da

paródia, em seus contos, tanto no título, quanto no corpo do texto e

mesmo na construção de suas personagens. Seu objetivo é romper com o

tradicional, fazer um panorama da sociedade e dos homens que a

compõem, buscando momentos e situações singulares para mostrar-nos o

homem em situações corriqueiras, com seus problemas existenciais, em

sua essência, sem salvá-lo ou acusá-lo, mas aproximá-lo de nossos olhos

através da literatura.

• Eis aqui um conto de Dalton Trevisan no qual ele parodia um texto

da mitologia grega.

PENÉLOPE

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Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinho. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo e enternece, incapaz de matá-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se cacto feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

- Que vai fazer?- Queimar.Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a

toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.A dona recolhe na cestinha o fio e as agulhas.- Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.O canto das sereias chega ao coração do velho? Esquece o papel no bolso,

outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:- Não vai ler?Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco,os olhos que,

apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.- Já sei o que diz.- Por que não queima?É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras

recortadas. Sopra o envelope e, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.

..............................................................................................................................................

Reconstitui os gestos da amiga: pó nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Pela toalhinha marca o tempo.Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.

Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés,

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espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.Afinal compra um revólver.- Oh, meu Deus... Para quê? – espanta-se a companheira.Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes.

Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher – o rosto, o vestido – atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha.

..............................................................................................................................................

De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?

Erguendo os olhos a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.

..............................................................................................................................................No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.

Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou – ele se pergunta, com nova ruga na testa – descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?

Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre s móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca. Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido branco ensangüentado. Deixa-a de olho aberto.

Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora.Segurando uma alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.

Entra na sala, vê a toalhinha na mesa – a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia – o marido em casa.

Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou - de repente o alarido no peito – acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua.

..............................................................................................................................................Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta...

Os dois degraus da varanda – “Fui justo”, repete, “fui justo”- , com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta par não ouvir os gritos do silêncio.

(Novelas Nada Exemplares, Dalton Trevisan,2004).

• Ao parodiar o mito grego da personagem Penélope o autor faz uma

inversão de sentido. Na versão mitológica o que está em jogo é o

amor, o encontro, a indissolubilidade do casamento, no conto é a

morte, o drama da infidelidade e a dissolução do casamento.

Penélope – mitologia grega

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Penélope, personagem famosa por sua fidelidade ao marido, posta à prova numa espera longa, de vinte anos, enquanto Ulisses estava ausente, lutando em Tróia. Na viagem de volta para casa, ele se envolve em uma série de aventuras que retardam sua volta. Durante sua ausência, Penélope é disputada por vários pretendentes e, para despistá-los, cria um plano: tecer, antes da escolha, a mortalha de Laerte, pai de Ulisses. Porém , para ganhar tempo, desfaz à noite o bordado feito durante o dia, até o regresso do marido, quando é recompensada por sua fidelidade. O autor usa o mito de Penélope para reinventar a história por meio da

paródia e criar uma nova história, uma nova situação condizente com os

novos tempos e rumos da sociedade e do homem moderno.

Atividadea) Sabe alguma coisa da vida ou obra de Dalton Trevisan?b) Você conhece algum outro conto dele?- Procure conhecer mais a obra deste contista paranaense.

• Abaixo há uma sugestão de contos de Dalton Trevisan. Em todos eles, Dalton parodiou o texto-matriz (fez a intertextualidade). Escolha um deles e indique a intertextualidade (paródia) existente e justifique.

- Capitu sou eu; - Em Busca de Curitiba Perdida;- Chapeuzinho Vermelho; - Cantares de Sulamita;- Virgem louca, loucos beijos; - O Quinto Cavaleiro do Apocalipse;- Debaixo da Ponte Preta; - João,o Estripador;- Lamentações de Curitiba; - Curitiba: Odores e Perfumes;- A Volta do Filho Pródigo; - Certidão.

“A percepção das relações intertextuais, das referências de um texto a outro, depende do repertório do leitor, do seu acervo de conhecimentos literários e de outras manifestações culturais. Daí a importância da leitura, principalmente daquelas obras que constituem as grandes fontes da literatura universal. Quanto mais se lê, mais se amplia a competência para apreender o diálogo que os textos travam entre si por meio de referências, citações e alusões. Por isso cada livro que se lê torna maior a capacidade de apreender, de maneira mais completa, o sentido dos textos.”

Platão e Fiorin In: Para Entender o Texto. P.20

Referências Bibliográficas

BONNICI, Thomas. (Org). Teoria Literária:abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2006.

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COSTA, Sueli Aparecida. ”Penélope um mito às avessas”. In: Revista Trama, v. 2, n.3, p.173-181, 2006.

COTRIM, Gilberto. História Global – Brasil e Geral. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.

MAIA, João Domingues. Português. 10. ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.

MORAES, José Geraldo Vinci. História Geral e Brasil. 2. ed. São Paulo: Atual Editora 2005.

REIS, Bia. ”Recriar dá mais sentido à arte”.In: Revista Nova Escola On-line. N. 184, p. 3-8, agosto, 2005.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia,Paráfrase e Cia. 7. ed. São Paulo: Editora Ática, 2006.

TREVISAN, Dalton. Novelas Nada Exemplares. Rio de Janeiro: Record, 2004._______________. Em Busca de Curitiba Perdida. 26. ed. Rio e Janeiro: Record, 2004.

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