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3 Semina: Ciências Humanas e Sociais, Londrina, v. 23, p. 3-14, set. 2002 O conhecimento do real é uma luz que projeta algumas sombras. Gaston Bachelard Introdução Luz e Arquitetura têm estado profundamente re- lacionadas desde os tempos mais remotos. Exem- plos inspiradores do tratamento expressivo de luz são abundantes e servem como balizadores na pro- dução do meio ambiente construído de um determi- nado período histórico. A Poética da Luz Natural na Obra de Oscar Niemeyer The poetics of the natural light in the work of Oscar Niemeyer Paulo Marcos Mottos Barnabé 1 Resumo O artigo versa sobre o uso da luz natural como diretriz de projeto na obra de Oscar Niemeyer. Elemento que, superando condicionantes da luminotécnica, torna-se matéria própria da arquitetura, respondendo às questões funcionais mas também sendo moldada para emocionar. Para tanto, faz-se considerações sobre acontecimentos lumínicos em edifícios emblemáticos da história da arquitetura, sobre o cenário conceitual que norteia o discurso de Niemeyer, e sobre a análise de algumas de suas obras. Finalmente, elabora-se um balizamento entre os principais conceitos relacionados à temática da luz e aos objetos construídos vivenciados. Palavras Chave: Arquitetura, Poética, Luz Natural, Niemeyer Abstract This article deals with the use of natural light as a project line in the work of Oscar Niemeyer. This is an element that, as it is conditioning techniques, becomes a matter of architecture itself, providing answers to questions of function and also being shaped to cause emotion. Therefore, considerations are made about lightning events in significant buildings in the history of architecture; about the conceptual setting on which Niemeyer’s discourse is based; and about the analysis of some of his works. Finally, a demarcation is established as to the main concepts concerning the theme of light and the constructed and experienced objects. Key Words: Architecture, Poetic, Naturral Ligtht, Niemeyer Niemeyer utiliza a luz natural como instrumento de qualificação de espaços e formas, e como quesito de forte expressão e significado. Portanto, a aborda- gem através de um elemento arquitetônico tão im- portante, como a luz natural, serve de pretexto para analisar sua obra, motivando e renovando a maneira de analisar criticamente seu método de concepção projetual. 1 Professor Assistente na Universidade Estadual de Londrina desde 1985. Atualmente Doutorando pela Universidade de São Paulo ARTIGOS / ARTICLES semina humanas 2002.pmd 7/29/03, 09:46 AM 3

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3Semina: Ciências Humanas e Sociais, Londrina, v. 23, p. 3-14, set. 2002

A poética da luz natural na obra de Oscar Niemeyer

O conhecimento do real é uma luzque projeta algumas sombras.

Gaston Bachelard

Introdução

Luz e Arquitetura têm estado profundamente re-lacionadas desde os tempos mais remotos. Exem-plos inspiradores do tratamento expressivo de luzsão abundantes e servem como balizadores na pro-dução do meio ambiente construído de um determi-nado período histórico.

A Poética da Luz Natural na Obra de Oscar Niemeyer

The poetics of the natural light in the work of Oscar NiemeyerPaulo Marcos Mottos Barnabé1

Resumo

O artigo versa sobre o uso da luz natural como diretriz de projeto na obra de Oscar Niemeyer. Elementoque, superando condicionantes da luminotécnica, torna-se matéria própria da arquitetura, respondendoàs questões funcionais mas também sendo moldada para emocionar. Para tanto, faz-se consideraçõessobre acontecimentos lumínicos em edifícios emblemáticos da história da arquitetura, sobre o cenárioconceitual que norteia o discurso de Niemeyer, e sobre a análise de algumas de suas obras. Finalmente,elabora-se um balizamento entre os principais conceitos relacionados à temática da luz e aos objetosconstruídos vivenciados.Palavras Chave: Arquitetura, Poética, Luz Natural, Niemeyer

Abstract

This article deals with the use of natural light as a project line in the work of Oscar Niemeyer. This is anelement that, as it is conditioning techniques, becomes a matter of architecture itself, providing answersto questions of function and also being shaped to cause emotion. Therefore, considerations are madeabout lightning events in significant buildings in the history of architecture; about the conceptual settingon which Niemeyer’s discourse is based; and about the analysis of some of his works. Finally, ademarcation is established as to the main concepts concerning the theme of light and the constructedand experienced objects.Key Words: Architecture, Poetic, Naturral Ligtht, Niemeyer

Niemeyer utiliza a luz natural como instrumentode qualificação de espaços e formas, e como quesitode forte expressão e significado. Portanto, a aborda-gem através de um elemento arquitetônico tão im-portante, como a luz natural, serve de pretexto paraanalisar sua obra, motivando e renovando a maneirade analisar criticamente seu método de concepçãoprojetual.

1 Professor Assistente na Universidade Estadual de Londrina desde 1985. Atualmente Doutorando pela Universidade de São Paulo

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Figura 1 – Pantheon romanoFonte: BEHLING, 1996, p.78

1 A Poética da Luz Natural

Quem disse que o mundo se divide entre luz eescuridão não conhece o prazer do por do sol e daaurora, zonas de passagem, de luz intermediária,belíssimas porque incertas. (PONTE, 1999, p.23).

Buscar uma maior expressividade, este talvez te-nha sido o tema mais discutido pela segunda gera-ção de arquitetos modernistas, preocupados em re-cuperar a emoção perdida com os rigores doracionalismo. Arquitetos como Niemeyer tentammanter vivos os conceitos e valores da tradição aca-dêmica, correlacionando-os à nova tradição moder-na. Opondo-se ao frio pensamento funcionalista, atri-buem à luz aspectos relevantes de expressão.

[...] a propósito da expressão, consideramos a luz,como um verdadeiro “gesto” a iluminar o silêncioe a dar diversos contrastes consoante a sua evolu-ção ao longo do dia. A luz como símbolo desta

transição dá-nos a passagem da intensidade para apenumbra e para o enigma do silêncio.(CONSIGLIERI, 1999, p.221).

Os recursos lumínicos determinam o caráter dosobjetos, animam suas superfícies e volumes, mol-dam os efeitos formais.

Na poética do racionalismo, é a luz pura que tri-unfa para dissolver as sombras e os claros-escuros,considerados projeções das obscuridades que domi-nam o espírito humano. Esse comportamento con-duz à eliminação da expressividade material da luze a substitui por uma luz fria e abstrata.

Alguns arquitetos reagem a esta postura e bus-cam restituir emoção aos ambientes. Voltam a utili-zar a luz como matéria construtiva, produzindo es-paços virtuais. Forma-se novamente a “cultura dapenumbra”, onde a matéria luminosa se faz variávele densa, requisitando um rico catálogo de adjetivaçãoe valores para descrever qualidade. Qualidade estaque o professor Rasmussen em seu livro “Arquite-tura vivenciada” descreve como “luz excelente”,muito diferente de apenas mais quantidade de luz.

Uma boa luz está ligada à idéia da escolha de umaluz que proporcione muitas variações, desde a luzintensa mais brilhante até a sombra mais profun-da, que revelam a verdadeira plasticidade de cadaparte redonda... uma quantidade adequada de luzrefletida entre as sombras a fim de também aí ob-ter relevo[...] (RASMUSSEN, 1986, p.82).

Podendo novamente ser considerada matéria pró-pria da arquitetura, material construtivo igual aomármore ou ao tijolo, a luz é capaz de transformar-se em elemento lingüístico no momento inventivodo projetar, retornando não só como material espe-cífico da arquitetura, mas como a própria arquitetu-ra. Não só iluminando a mensagem, mas sendo aprópria mensagem.

A história da arquitetura passa a ser a históriados vários modos de organizar o espaço-luz atravésdos vãos das janelas, dos cheios e dos vazios, dasaberturas nos tetos e através da concepção ideativado próprio espaço arquitetônico.

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A poética da luz natural na obra de Oscar Niemeyer

Conforme os vários tipos de invólucros se carac-terizam, como conseqüência também o espaço in-terno, a escolha de um certo tipo de pele é de fatotambém a escolha de uma particularidade luminosa.(PONTE, 1999, p.39).

Pode-se fazer uma correlação entre arquitetura epoesia. A luz revelando a poesia do espaço para ohomem. Assim como nem todo poema construídosob as leis da métrica contém poesia, nem todaedificação construída com as leis da física a contém.Pois poesia é uma operação criativa, que revela etransforma o mundo. E pela manipulação da luz na-tural pode-se, então, conseguir poesia na edificação.

Luz, sombra, cor, textura são condicionantesprojetuais que requerem um grande exercício de abs-tração intelectual porque exigem que se tenha emmente a imprevisibilidade da luz.

Mas o que é a luz? Silvio de Ponte define a luzcomo a “consciência da realidade”. O mundo existeenquanto se sente, se toca, mas, sobretudo se vê.Porém, a luz não é tangível. A luminosidade, as co-res e a aparência das coisas são somente o efeito pro-duzido sobre a retina por uma particular forma deenergia conhecida com o nome de radiação eletro-magnética. Aquilo que realmente existe é a energiaeletromagnética, enquanto a luz pode ser definidacomo uma invenção do sistema constituído pelo olho-cérebro que captura a energia radiante emitida emum determinado intervalo de comprimento de ondapara transformá-la em sensação visível.

Portanto, a luz é o elemento fundamental no pro-cesso perceptivo das coisas. Através da percepção esugestão formal ativadas pela luz, se configuram osparâmetros que ligam o homem às artes da pintura,da escultura e da arquitetura.

A luz na linguagem visível é responsável pelosignificado expresso das coisas, não só porque de-termina as cores, mas pela importância que assumeo ângulo e a intensidade com que atinge a superfíciedos objetos. Os contrastes luminosos de zonas cla-ras e escuras individualizam os volumes e a profun-didade dos objetos iluminados.

O sentido da visão é o grande responsável pelorelacionamento das pessoas com o mundo. O ato dever envolve uma resposta à luz. Todos os elementossão revelados através da luz, de sua presença ou au-sência relativa, reforçada por contraste tonal. Asvariações de luz ou de tons são os meios pelos quaisse distingue oticamente a complexidade de informa-ção visual do ambiente. Portanto, vê-se o que é es-curo pela proximidade ou sobreposição ao claro.

O professor Rasmussen defende a tese de que aluz é de fundamental importância para se sentirarquitetura. E sentir quer dizer entender, compreenderos elementos que a compõe. Sugere que se imaginea simples modificação de dimensão e localização deuma abertura sobre uma superfície de um ambiente,para se perceber o quanto este fato pode transformarprofundamente todo o caráter do espaço.

Por outro lado, no livro “Poetics of light”, HenryPlummer lembra que os seres humanos são atraídosa contemplar o amanhecer e o entardecer, e que mui-tos templos antigos são construídos para receber es-ses raios dourados como algo divino.

Durante séculos, efeitos lumínicos em arquitetu-ra têm percorrido do cognitivo ao poético. Luz sen-do distribuída para responder às questões funcionais,mas também sendo moldada para emocionar. Aspessoas não só desejam experimentar bem-estar fí-sico, mas também usufruir prazer psíquico. As cria-ções mais eloqüentes com a luz na história não estãosomente interessadas na acuidade visual. A luz vemtrabalhada com poder transformador de espaços ematérias, de algo inerte e amorfo para algo com es-pírito, reavivando e ampliando o espaço.

Neste sentido, a sombra ganha um papel relevan-te. Mesmo onde a luminosidade intensa é necessá-ria, sua beleza se condiciona à presença de sombrasque tornam a luz mais significativa. A penumbra temseu próprio valor, trazendo para o espaço uma at-mosfera pensada para induzir a contemplação e oreviver da luz, da mesma forma que a noite se pre-para para o amanhecer.

Luz e matéria são determinantes importantes noprocesso de concepção em arquitetura. Muitas ve-

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zes, a luz aviva a matéria. Placas finas de mármore,vidro grosso colorido, madeira esculpida, pedra cor-tada polida, metal martelado, gesso moldado, tudo écapaz de refletir, refratar, difundir, dobrar, absorver,colorir, dividir, e espalhar a luz recebida. Pode-se pas-sar a luz pelos materiais para dispersar e dar nova coraos raios, absorver seletivamente comprimentos deondas, refletir ondas reticulares, padrões de sombras,e emaranhar luz dentro de câmaras ocas e escuras.

Os envoltórios, os tipos de aberturas, os materi-ais de fechamento, alteram a luz incidente e, conse-qüentemente, a qualidade do espaço. Sejam cober-turas envidraçadas, planos transparentes, vidro co-lorido, espelhos, fragmentos cerâmicos ou metáli-cos, todos determinam experiências lumínicas dife-renciadas.

O cristal transparente, ao mesmo tempo em quetransmite a luz, reflete imagens, sobrepõe imagens.Por outro lado, vidros sobre vidro, vidros tubularesligeiramente transparentes, ondulam com sombrasde superfície, lançando o fundo ligeiramente fora defoco e embutindo miragens. Já os vidros coloridoscriam ambientes animados ou místicos, ardendo in-teriormente como jóias em sua própria luz. E super-fícies espelhadas dissipam sua luz incidente e, atra-vés da reflexão completa, aniquilam sua existência.

Outras vezes, a matéria é texturizada, multipli-cando reflexos e sombras em várias direções, ouentão, o jogo volumétrico é tão acentuado que a ên-fase é dada ao contraste intenso entre áreas ilumina-das e áreas em sombra.

Luz e espaço estabelecem relações inequívocasde dependência

A luz é o mais importante componente na defini-ção do espaço ou na manipulação da forma. Sem luznão existe nenhum espaço visual percebido. A qua-lidade da luz em um espaço arquitetônico afeta dire-tamente a definição, como também a qualidade dopróprio espaço.

A iluminação amplia a percepção do espectadore a consciência das dimensões físicas, emocionais,

psicológicas e espirituais do espaço. Um espaço ani-mado por luz nunca é suscetível à medida ou obser-vação neutra, mas incorpora o espectador diretamen-te, provocando leituras e sonhos, poderes estimulan-tes da imaginação, atraindo a atenção, fazendo o es-paço vivo com aventuras óticas e emocionais.

Fototrópicos por natureza, os humanos dirigem-se para a luz. Cada ponto luminoso em uma janela,cada estrela do céu, cada caverna de luz em volta deuma fogueira evoca a visão dourada de um distante,mas, contudo feliz cosmos, um reino de espaço quese abre receptivo à chegada. Toda luz noturna ofere-ce um santuário esperançoso dentro de um vaziosombrio. De forma similar, as pessoas percebem osfragmentos reluzentes de ouro num templo bizantino,como também as constelações de vidro colorido emcatedrais góticas.

As sombras, por sua vez, são um prelúdio para avida. O homem sempre busca um significado místi-co para as sombras. O vestíbulo escuro intensifica ocontraste entre interior e exterior, prepara para umaoutra luz onde a vida começa novamente. Ao passarpelas portas de uma igreja medieval, por exemplo,perde-se temporariamente a visão, até que a retinase acostume e possa expandir possibilitando acuidadevisual. Tais passagens de entradas desconcertantessão zonas embrionárias onde “morre-se” para “serenascer” em uma vida revitalizada.

Por fim tem-se que ponderar sobre a noção deluz e tempo, calcada num processo contínuo de mu-tação. A luz do dia está sempre se transformandocom o passar das horas e das estações, e pelos ângu-los incidentes. Ela pulsa em intensidades lumínicas,fã de cores e sombras variáveis, escurece e clareia,desaparece e reaparece.

O mundo torna-se vivo assim – sempre mudandoe vindo a ser, renovado, crescendo, transcendendoao inerte, dando origem a transformações óticas no-vas que nunca acontecem precisamente iguais nahistória do mundo.

A luz é responsável também por alterar o estadode ânimo das pessoas, conforme varia o dia ou as

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A poética da luz natural na obra de Oscar Niemeyer

estações sazonais. Nem mesmo a luz artificial é ca-paz de motivar o ser humano da mesma forma que aluz natural.

O reino luminoso é reavivado por uma poéticaalquimia, onde as coisas multiplicam-se em formase perdem sua certeza objetiva no tempo e no espaço.

Mudança e crescimento são qualidades inerentesao processo da vida.

2 A Luz Natural na Obra de Oscar Niemeyer

Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soa-res, Oscar Niemeyer, nasce em 15 de dezembrode 1907 em uma tradicional família burguesa doRio de Janeiro.

Ribeiro e Soares, de Portugal; Almeida, árabe; eNiemeyer, alemão. Sem contar algum sangue negroou índio que, como se sabe, faz parte de toda famíliabrasileira. Uma mistura de raças que me faz bemintegrado na mestiçagem de meu povo.(NIEMEYER,1992, p.12).

Mestiço. Condição típica do povo brasileiro.Mestiço na raça e na cultura. E em Niemeyer isto seevidencia numa arquitetura freqüentemente híbrida,dual, em conflito entre conhecimentos acadêmicosda Escola de Belas Artes dos anos 30 e das novasvanguardas modernistas, entre a formação de origemeuropéia e os valores regionais. Com vocação pictó-rica dos arquitetos que tiveram dupla formação. Masquase sempre com talento para renovação,reformulação, incorporação e adaptação, portantomestiço. Livre de cânones restritivos, numa delibe-rada expressividade própria, avessa a cópias,enfatizando a liberdade de criação e tendo a inven-ção como premissa básica.

Apesar do folclore alimentado pela visãodistorcida, pouco isenta, da crítica européia; da vi-são nacionalista da crítica brasileira e das manifes-tações do próprio Niemeyer, ficam ainda obscurasas fontes teóricas que norteiam a formação e a matu-ridade da produção do arquiteto.

Figura 2 – Casa de Canoas, 1953. (fotos do autor)

Em sua tese de doutoramento o professor KleberMonteiro (1989) defende um argumento bastanterazoável: o da multiplicidade de influências, colo-cando Niemeyer como um homem moderno,antenado com seu tempo, e, portanto, sofrendo in-fluências não só de vários arquitetos, mas tambémde inúmeras correntes artísticas e filosóficas.

A crítica européia, sempre com interesses asalvaguardar, avalia a obra dos países periféricos enão alinhados as posturas racionalistas, comosurrealistas, “exóticos” quando muito, epejorativamente “barrocos”.

No caso de Niemeyer insistem em situá-lo numarelação estreita com o seu contexto, quase numa ca-racterização regionalista. Mas como se evidenciaposteriormente, o tom brasileiro em sua arquiteturanão é transparente, respondendo muitas vezes aosestímulos da história da arquitetura universal e dasartes em geral, e não a particularidades regionais.Geralmente é colocada a tese da influência definiti-va de Le Corbusier, consubstanciada por influênciasregionais. Fato possível de ser desmistificado apósuma análise mais aprofundada de sua obra. Oscondicionantes regionais em seus projetos sãogradativamente minimizados no transcurso de suacarreira, não importando produzir no Brasil, Françaou Argélia, pois o produto será o mesmo: uma ima-gem particular do tempo onde vive seu autor.

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É quase certo que desde o começo de sua carrei-ra, Niemeyer busca a afirmação de uma arquiteturaque se diferencie fundamentalmente da européia,encarnada por seu mestre maior. Embora, por mui-tos anos, houvesse em sua arquitetura algumas cita-ções de elementos formais retirados diretamente dosedifícios de Le Corbusier.

No início, as influências de Lúcio Costa e LeCorbusier são definitivas. Mas por ser um homematento ao que ocorre no mundo, muito provavelmentesão suas viagens e leituras as que realmenteprovocam mudanças significativas no seupensamento moderno.

No ano que Niemeyer ingressa na faculdade, LeCorbusier cria em Paris a Villa Savoye, obra primarepresentativa do início do modernismo; no mesmoano Mies van der Rohe faz o pavilhão alemão daExposição Internacional de Barcelona. A união des-sas duas arquiteturas influe decisivamente na for-mação de Niemeyer, quase toda a sua produção emBrasília será, de certa forma, uma manipulação “lí-rica” dessas duas idéias de espaço.

Pode-se dizer que Niemeyer se distancia de seumestre Le Corbusier, ou melhor, executa uma gra-dual mestiçagem de influências, quando se aproxi-ma das vanguardas contemporâneas, agregando ou-tros valores a sua arquitetura, cada vez maispriorizando o mínimo para obter surpreendentesgrandes efeitos.

Em relação às questões lumínicas não poderia serdiferente. Sua obra evidencia as várias influências esua capacidade em adequar-se às condições locais.

Niemeyer cria um cosmos onde a luz se expres-sa, revela a forma e a sombra contrastante enfatizasua leveza. E neste sentido, as soluções são radicais,sem meios termos. Não enfatizando um jogo de cla-ro-escuro, não se interessando por volumes sombre-ados, e sim pela oposição dual da figura sobre o fun-do, do forte contraste entre áreas iluminadas e áreasem sombra. Volumes sob o sol!

Um olhar atento sobre sua obra faz perceber deimediato a preocupação em adotar procedimentosprojetuais que respondam à luz enquanto elemento

norteador do projeto. Todas as obras vivenciadas dealguma maneira respondem a aspectos lumínicos.Algumas utilizam a luz para definir elementosconstruídos, outras adotam a luz como tema. Estesprocedimentos podem estar relacionados aosensinamentos de seu mestre francês, que define aluz como elemento revelador das formas. Ou a umapostura que identifica a boa arquitetura como umexercício pleno, onde se questionam todos os ele-mentos que possam qualificá-la.

Muitas vezes Niemeyer adota soluções que res-pondem à excessiva incidência lumínica da abóbadaceleste. Embora, sua resposta nem sempre seja ape-nas uma solução técnica, e quase sempre esteja alia-da a poéticas e plásticas proposições.

Quanto à incidência da luz percebe-se queNiemeyer a manipula para obtê-la predominantemen-te difusa através de um espaço intermediário (va-randa, fosso, jardim de inverno). Sendo que a suadireção se faz normalmente pela lateral e algumasvezes por zenitais. Na iluminação dos espaços inte-riores utiliza a luz da abóbada celeste como princi-pal fonte luminosa, onde a distribuição da luz temsido heterogênea na grande maioria dos edifícios;indício claro de que o arquiteto opõe-se ao pensa-mento racionalista da “luz universal”: branca e uni-forme. Preferindo aproximar-se do conceito de uma“boa luz” do professor Rasmussen, ou seja, aquelaque qualifica através da personalização e caracteri-zação de várias zonas espaciais.

Alguns conceitos presentes em seu discurso ofe-recem indícios para o entendimento da estrutura depensamento do arquiteto, e sua correlação com otema da luz natural como parâmetro na concepçãodo projeto.

Niemeyer materializa a busca pelo novo, pelocriativo, pela invenção desde que feita com liberda-de, entendida sem vínculos com postulados rígidosdos “ismos” arquitetônicos. Invenção e fantasia sãopara ele conceitos fundamentais.

Pode-se dizer então que Niemeyer trabalha paraimpressionar, fazer com que o vivenciar de sua obranão seja em vão. Materializa conceitos como con-

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Ação Popular

traste e surpresa através da composição de elemen-tos duais.

Gosta de trabalhar com a ilusão, principalmentede contrapor o real peso das suas monumentais es-truturas, e as propõe leves quase não tocando o chão.

Outro conceito importante é o comprometimentoentre a forma gerada e a estrutura. Forma gerada porreferência sensual da curva, da plástica liberta esimples. Niemeyer utiliza estruturas “aerodinâmicas”,na linguagem poética de Joaquim Cardoso,contradizendo o espírito de “firmitas” de Vitrúvio.Suas estruturas pretendem causar ilusão; ilusão demovimento, ilusão de transparência, ilusão de leveza.

Assumindo apreço ao monumental, aogigantismo, cria uma obra sempre dinâmica. Masacaba optando pelo simples, principalmente quandoelege uma matéria como elemento principal de suaexpressão plástica: o concreto. Embora não sejaessencialmente um minimalista, cada vez mais emsuas últimas obras predomina o uso de poucoselementos.

Muitas vezes Niemeyer manifesta-se contestan-do a imposição funcionalista ortodoxa e suas regrasrígidas, defendendo a criatividade e a evolução daarquitetura. Desafiando as crenças e dogmas iniciacom Pampulha (40) uma arquitetura moderna ver-dadeiramente brasileira. Uma arquitetura que não sepreocupa apenas com o utilitário, mas que tambémse detém na sensação de prazer que ela, enquantoespaço organizado, é capaz de oferecer ao usuário.

Para ele a arquitetura funcionalista gerou medio-cridade, através da repetição, da monotonia, dos es-paços ascéticos. Niemeyer ocupa toda a sua vida paracombater esse gênero de pensamento mecanicista quese instaura na arquitetura. Busca o novo e a supera-ção do ato anterior por um mais atual, compatívelcom o tempo em que vive.

A concepção sobre espaço arquitetural estácorrelacionada com o conceito de planta livre e va-zio, principalmente o vazio como elementoarquitetônico.

Niemeyer pensa a concepção de espaço comovolume. Caracteriza seus espaços de duas formasbásicas: primeiro em uma única membranavolumétrica como, por exemplo, a Catedral deBrasília (58). Segundo uma concepção de planta li-vre, com colunas e muros, como em Le Corbusier eMies. Nesses os planos divisórios estão soltos daestrutura, podendo ser mudados sem prejuízo da idéiageral do projeto.

Para obter essa independência entre estrutura eplanos divisórios, Niemeyer cria grandes vazios quenunca devem ser utilizados para funções práticas.São dedicados a contemplação do “espetáculoarquitetural”, não devem ser utilizados porque sãoconcebidos como espaços livres em si. São feitospara serem contemplados e para contemplar-se atra-vés deles, através de planos transparentes e articula-ções, de modo que na membrana material que com-põe a idéia arquitetônica se choca a relação entreinterior e exterior.

Ele estabelece uma arquitetura como um aconte-cimento, um drama, um espetáculo. Representa umaarquitetura que busca novas expressões plásticas, li-gadas muitas vezes a recusa a frontalidade, propici-ando a lhe classificarem como “barroca” ou “exube-rante”.

A história da arquitetura tem no Barroco o perío-do onde a luz natural ganha fundamental importân-cia para qualificar o espaço através do dramalumínico indireto.

A temática sobre o Barroco na obra de Niemeyeré controversa, mas serve como pretexto para anali-sar alguns aspectos que estruturam as suas atitudes.

Alguns o usaram como termo pejorativo, outroscomo instrumento para justificar seu possível regio-nalismo ou a ligação com seu contexto, e o próprioarquiteto como forma de propaganda ou defesa de-monstrando respeito aos mestres antigos: A curvame atraia. A curva livre e sensual que a nova técni-ca sugeria e as velhas igrejas barrocas lembravam.(NIEMEYER,1998, p.14).

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Nessa mestiçagem toda o drama e o gosto peloespetáculo talvez sejam os temas que o ligam aoBarroco enquanto idéia. Assim, em sua obra preva-lece o apreço por expressar a fantasia, a mutabilidade,a multiplicação de efeitos cenográficos. Interessa aele persuadir o usuário, seduzi-lo através do impac-to visual, arrebatando-o.

Evita o ângulo frontal de incidência do sol, a ho-mogênea distribuição da luz na fachada. Busca au-mentar o seu poder expressivo com acento lumino-so localizado. As suas estruturas são dispostas obli-quamente para que os raios luminosos produzamcontrastes fortes de luz e sombra. Propõe num mes-mo cenário luz incidente circunstancial e luz refleti-da planejada. Buscando muitas vezes utilizar-se daluz natural por suas possibilidades cênicas e pelacapacidade de distinguir a sucessão de planos emprofundidade na perspectiva.

Niemeyer não é Barroco, utiliza conceitos fun-damentais ao Barroco. Sua obra é antes de tudo umprocesso intelectual, sem preocupações estilísticas.Um fazer mais substancial, baseado na reflexão so-bre as essências e menos sobre citações como ocor-re no pós-moderno. As referências históricas se ma-nifestam como parte de um processo que busca va-lores fundamentais da arquitetura.

Ele se referencia à história também através dotema da luz. Pode-se constatar releituras egípcias,gregas, romanas, bizantinas, medievais, góticas,maneiristas, barrocas e modernistas. Mas o que per-manece é a idéia, a manipulação criativa, às vezesaté mesmo através de auto-referência, mas sempreuma solução própria de Oscar Niemeyer: da luz àescuridão no Memorial JK (80); varandas sombrea-das nos palácios de Brasília; cone de luz materiali-zado na Catedral de Brasília e na Mesquita de Argel(68); matéria reflexiva das superfícies espelhadas epolidas no Cassino de Pampulha (40); luz contidapor pequenas aberturas e o predomínio da massa naIgreja Ortodoxa de Brasília (86); luz através de umapele colorida na Catedral; luz intimista na IgrejaOrtodoxa; luz como um drama na Capela da

Pampulha (40) e no Panteão (85); e luz universalnos edifícios do Parque do Ibirapuera (51), apenaspara citar alguns exemplos.

Sobre os envoltórios de seus edifícios pode-sedizer que prevalecem duas formas básicas de trata-mento: transparência-claridade e opacidade-penum-bra. A opção por uma das duas tendências resulta deuma adaptação às condicionantes programáticas.Embora, não sendo uma regra, pode-se afirmar quea transparência predomina em suas primeiras fasese que a opacidade se intensifica a partir dos anos 70.

Nas obras iniciais, Niemeyer manifesta a preo-cupação em iluminar os ambientes e correlacionar-se diretamente com o exterior.

O Parthenon é um importante modelo em Brasília:a caixa dentro da caixa. A caixa interna envolta emcristal, transparente e reflexiva à semelhança de Mies,“clássica”; e a caixa externa com pilotis articulados,elementos pictóricos “barrocos” apoiando uma lajeplana da cobertura gerando avarandados. ParaNiemeyer, a coluna, quando vista em diagonal, éambígua, meio parede, meio coluna. Conforme va-ria a insolação durante as horas do dia, sombras semultiplicam sobre estas colunas em curva, revestidasem mármore branco. E um olhar oblíquo sobre asmesmas permite perceber outras formas, nuanças,formas sobre formas, curvas sobre curvas,enriquecidas por imagens em constante mutação se-melhante à arte cinética. As visuais deste peristilosão sempre variadas, uma varanda de múltiplasfacetas.

Niemeyer opta quase sempre pelo forte contrasteentre luz e sombra, e estes avarandados são muitoutilizados para valorizar esse efeito: sombras inter-nas contrapondo-se ao branco do revestimento “ví-treo” do mármore sob a luz.

Se a solução requer envoltórios mais fechados, paraevidenciar as massas ou o jogo volumétrico, as aber-turas se reduzem ou são camufladas por peles opacas,e a iluminação passa a se efetivar através de espaçosintermediários. Utiliza zenitais, painéis transparentes

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A poética da luz natural na obra de Oscar Niemeyer

iluminados através de reflexão em fossos de luz, comou sem pergolados. Como por exemplo, no Museu deCaracas (54), no Edifício Castelo Branco (71), e noCeplan (60), entre outros. Prevalecem os envoltóriosopacos e espaços onde a iluminação decresce em con-tínuas reflexões. Em alguns projetos mais radicais aclaridade é substituída pela obscuridade acentuadapelo uso de revestimentos escuros. Outras vezes a ilu-minação natural é focalizada, feita através de peque-nas aberturas, na maioria das vezes fechadas com vi-trais coloridos, o que produz nestes espaços em pe-numbra uma iluminação enfática.

Quando Niemeyer opera em edifícios onde averticalidade é preponderante, como ocorre em seusarranha-céus, o envoltório define-se por uma mem-brana de vidro ou uma capa de brise-soleil. Isto éverificável, por exemplo, no Hotel Nacional do Riode Janeiro (68), onde só o embasamento permitevolumes mais opacos em concreto aparente, privile-giando fortes contrastes de luz e sombra.

De uma forma geral percebe-se que as aberturasestão diretamente relacionadas aos vários períodosde sua obra, condicionadas ao programa e a inten-ção de qualificação espacial. No início de sua car-reira utiliza a janela em fita horizontal ou grandespanos de vidro, muitas vezes ocupando toda a fa-chada do edifício, protegidos ou não por brises eavarandados.

Muitas vezes ele nega a janela “quadro”. Mas emsua casa, na Estrada de Canoas no Rio de Janeiro(53), Niemeyer demonstra-se avesso às normas rígi-das. Nela materializa o pensamento corbuseano, ne-gando o uso de cortinas, determinando umzoneamento funcional através dos tipos e posiçõesdas aberturas. São locados grandes planos de vidro,áreas sem aberturas iluminadas indiretamente porreflexões, janelas a meia altura, janelas em fita altasjunto à laje do teto, aberturas em quadro, janelas sa-lientes para o exterior com venezianas embutidas, epequenas aberturas de vinte centímetro de diâmetro.

Durante a terceira fase de sua obra, em Brasília,a janela não é mais que um perfil metálico incluído

no plano de vidro, cuja soma forma uma retícula quedá movimento à fachada. Outras vezes Niemeyer seutiliza pequenas aberturas circulares pontuadas noenvoltório opaco, proporcionando ritmados efeitosno interior. Como no Museu de Artes do Ibirapuera(51), no Museu do Índio (82), e na Biblioteca doMemorial da América Latina (89), entre outros.

Projetar em países tropicais exige muitas vezesprotetores solares. Niemeyer utiliza o brise-soleilcriado por Le Corbusier. Inicialmente dentro dospadrões técnicos sugeridos pelo mestre francês. Jáno seu primeiro projeto individual construído, a Obrado Berço (37), percebe-se o uso do brise móvel ver-tical articulando a fachada principal.

Gradativamente Niemeyer redesenha o brise, as-sim como o faz com os pilotis, atribuindo-lhe outrosvalores estéticos, superando os aspectos ligados ape-nas a luminotécnica. No Iate Clube da Pampulha (40)o brise da varanda do grande salão superior éencurvado, propiciando uma ruptura na inércia detoda a fachada oeste. Nos edifícios Copan em SãoPaulo (51) e Oscar Niemeyer na Praça da Liberdadeem Belo Horizonte (54), os brises são mais que sim-ples elementos protetores, quase apenas respondema força expressiva que seu autor anseia, transforman-do-se em elementos plásticos por excelência, quali-ficando o envoltório do edifício com uma pelecamaleônica que altera a sua percepção formal con-forme varia a incidência da luz solar.

Nos pavimentos tipo do Banco Boa Vista no Riode Janeiro (46) efeitos variados são percebidos, áre-as diferenciadas são definidas pela locação de pelede vidro em uma das faces, brises verticais em outrae brises quadriculados em uma terceira. Os brisessão para Niemeyer articuladores do envoltório, in-tensificando efeitos cinéticos tanto internamentecomo externamente.

Os anos 40 e 50 se caracterizam por uma pesqui-sa intensa de elementos protetores ricos em valoresestéticos, que demonstram uma grande preocupaçãodos arquitetos brasileiros com o conforto ambientalem seus edifícios. A relação do edificado com o sol

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determina a diferenciação da produção arquitetônicabrasileira do período com a européia.

Niemeyer propõe então muxarabis de madeira noHotel de Ouro Preto (38); elementos vazadoscerâmicos no Pavilhão de Nova York (39) e HospitalSul América (52); elementos vazados no Centro Téc-nico da Aeronáutica (47) e na Casa de Mendes (49);placas pré-moldadas perfuradas na Sede de O Cruzei-ro (49), apenas para citar alguns exemplos. Estes ele-mentos qualificam o espaço com uma projeçãorendilhada de luz e sombra sobre as superfícies, alémde serem eles próprios articuladores ricos em efeitos.

Na relação entre luz e matéria percebe-se que nasprimeiras fases de sua carreira a qualificação do es-paço tem na cultura barroca e posteriormente na pos-tura miesiana, as fontes de referência.

No Cassino de Pampulha importam as transpa-rências, os vidros sobre vidro, as imagens sobrepos-tas e refletidas à semelhança dos efeitos de“veladura” da pintura. Os materiais são nobres epolidos como mármores e granitos, aço inox, espe-lhos – todos refletores, difusores de luz e imagem.Predominam as cores claras, principalmente nas pa-redes e tetos. Esta postura de recobrir a estrutura commateriais nobres inicia-se no Ministério da Educa-ção e Saúde (36), pode também ser identificada noPalácio da Alvorada (56) e até mesmo no EdifícioManchete no Rio de Janeiro (66).

Niemeyer utiliza também materiais translúcidoscomo o tijolo de vidro. Elemento que refrata a luz eprojeta fantasmas externos: plantas e pessoas emmovimento interferem na qualificação do espaçoconforme modifica a incidência do sol. No térreo doBanco Boa Vista no Rio de Janeiro, do Edifício Os-car Niemeyer e do Banco da Produção (53) em BeloHorizonte efeitos contrapostos de translucência dosblocos de vidro e transparência de planos de vidroenriquecem o espaço com múltiplos efeitos de luz.

Na Catedral de Brasília o grande cone de luz temnos vitrais a matéria que altera a qualidade da luzque o traspassa, gerando uma luz diferente do exte-rior, uma outra luz.

Percebe-se também que Niemeyer introduz umoutro elemento importante em sua obra: a cor forte eexpressiva. Nos edifícios onde a função requer sole-nidade o arquiteto descobre o drama de pontuar umfoco de luz colorida, e utiliza normalmente a maté-ria de um vitral.

Afeito ao conceito de contraste, no Memorial JKele contrapõe o volume externo branco brilhante aointerior escuro, e um ponto focal em luz vermelhasobre a cripta cujo pano de fundo é um espaço imen-so em penumbra violeta acinzentada. Já no Panteãoele nega o espaço interno pintando-o de negro e pon-tua um vitral vermelho no vazio.

Da visita a suas obras percebe-se que Niemeyerusa poucos materiais e poucas cores: no início dacarreira são as pedras naturais, granitos rosas, pe-dras mineiras, mármores travertino polido, madei-ras, azulejos brancos com filigranas azuis, pinturasem cores claras, principalmente o branco. Depoisvolumes revestidos em mármores vítreos brancos,pisos de granitos pretos ou granitinas polidas preta,granitos cinza escuro. Na fase estrutural elege o con-creto aparente e seu brilho prateado iluminando tex-turas ásperas de fôrmas filetadas.

Nesta relação entre matéria e cor gradualmenteNiemeyer opta pelo simples. Seus volumes mais re-centes são toscos, em concreto desformado pintadode branco, expondo sua textura conforme incide obli-quamente os raios do sol, ou contrapõe seu corpoclaro com projeções de sombras escuras. A cor bran-ca é utilizada para realçar o contraste entre áreas ilu-minadas e áreas em sombra, numa busca incessantepor imaterialidade e leveza.

Na arquitetura de Niemeyer do período estrutu-ral em diante (54) a sombra passa a estar constante-mente presente, transformando-se em matéria con-creta, elemento arquitetônico. Variando incessante-mente, mas sendo sempre sombra definida, semnuanças de claro-escuro.

Para cada forma escultural, Niemeyer cria um fun-do, uma plataforma, para que sua imagem se multi-plique. Isto pode ser constatado no Congresso Nacio-

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Código de defesa do consumidor e Mercosul: vicissitudes em sua coexistência

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nal (58) onde uma cobertura totalmente limpa recebea projeção das duas conchas. Ou seja, onde existe umvolume puro existe um fundo para que este se projeteem sombra. Havendo luz, a sombra esta presente.

As formas externas puras de Niemeyer não pri-vilegiam as soluções de pórticos com as tradicionaiscolunatas. Então ele introduz muitas vezes a sombraem contraste absoluto marcando a entrada. Uma en-trada que é uma abertura negra no piso branco inten-samente iluminado pela luz do sol tropical. Isto ocor-re, por exemplo, na Catedral de Brasília, no MemorialJK e no Espaço Lúcio Costa (89).

Outras vezes os efeitos obtidos pelosombreamento são rendilhados projetados nas pare-des e pisos como acontecem no Salão de Atos eAuditório no Memorial da América Latina, ou noTeatro de Brasília (58). Neste Teatro tem-se ainda assuas duas empenas cegas externas com painéis deAthos Bulcão, superfícies articuladas com elemen-tos em alto relevo envolvidas em um jogo cinético ametamorfosear o envoltório constantemente.

Na Catedral de Brasília Niemeyer utilizadeclaradamente a luz e a sombra como tema materi-alizado em arquitetura, através de um contraste ab-soluto entre o túnel de acesso descendente escurovalorizando a nave com uma luz manipulada brilhan-te se ascendendo aos céus.

Neste jogo de luz e matéria muito se pode aindafalar quando se lembra de suas viagens, que tanto oinfluenciam, como por exemplo, a de Veneza – umacidade que flutua, “leve” e sem densidade.

Niemeyer utiliza freqüentemente os espelhosd’água que refletem a luz solar e as nuvens, criandoum dinamismo cromático que amplia as possibilida-des de luz emitida pelo conjunto edificado. Servin-do para ampliar o monumental em sua obra, dinami-zar a superfície do edifício, alterar a sua forma comreflexões e novamente lembrar um jogo que é temana arte cinética onde se varia a leitura e percepçãodo objeto conforme varia a posição da fonte deluz e do observador. Reflexos dinâmicos de luzsobre as marolas dos espelhos d’água alteram as

superfícies do Palácio do Itamaraty (60) e doMuseu de Niterói (91), agregando efeitos que acen-tuam a ilusão de leveza.

3 Notas conclusivas

Do exposto pode-se concluir, mesmo precaria-mente, que na relação entre luz e espaço na obra deOscar Niemeyer existe intencionalidade no momen-to do projeto. Ele manipula os recursos lumínicospara alterar definitivamente a percepção espacial quepropõe. E por muitas vezes a luz é tema decisivo naproposta de seus edifícios religiosos e especiais,como o Memorial JK e Panteão. Em outros, solu-ções de proteção solar geram interferênciasqualificadoras nos volumes e nos espaços.

Estes são animados por uma luz variável que con-vida o observador a vivenciá-los. O Museu deNiterói, por exemplo, materializa a mutabilidade dosefeitos de luz no transcurso do tempo. A luz inci-dente metamorfoseia seu volume fotogênico. Por suajanela em fita convexa e modulada refletem-se ima-gens estratificadas da paisagem em constante trans-formação. Múltiplos quadros externos criam imagenssobrepostas como um quadro cubista.

Finalizando, tem-se que esclarecer que emNiemeyer a expressão arquitetônica não é um estilo,um método que se repete, mas um processo de cons-tante procura. Antenado ao seu tempo ele se trans-forma sobre suas referências, e neste processo usasua sensibilidade manuseando a luz de forma lúdica.Suas obras são caracterizadas pela experiência me-diante distintas camadas de opacidade e transparên-cia. As variações de luz e sombra realçam a sensa-ção dinâmica e as superfícies claras oferecem pre-sença material aos gestos abstratos. Sua arquiteturanão se repete, se revigora em criações e recriações,onde o tema luz é apenas mais um dos que ele mani-pula para obter um objeto criativo, feito para emoci-onar e causar surpresa!

“Penso no escuro e reflito no sol”. OscarNiemeyer

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Figura 3 – Capela de Pampulha, Belo Horizonte, 1948(fotos do autor)

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