Segurança Alimentar e Agricultura Sustentável

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O modelo agrícola convencional, centrado no uso abusivo de recursos naturais e de agroquímicos de síntese, permitiu aumentar a produçªo e a produtividade de alguns cultivos em certas regiıes, causando porØm forte agressªo ao am- biente e comprometendo a sua sustentabilidade a longo pra- zo. Ademais, prioriza a produçªo de commodities e respon- de mais ao mercado do que às reais necessidades alimenta- res da populaçªo. Esta situaçªo só poderÆ ser revertida no momento em que o projeto de desenvolvimento nacional definir o atendimento das demandas alimentares e nutricio- nais como a principal meta da produçªo agropecuÆria, jÆ que existem hoje 44 milhıes de brasileiros que nªo tŒm atendi- da sequer sua dieta quantitativa. A segurança alimentar e nutricional requer, no entanto, a implementaçªo de estilos de agricultura sustentÆvel baseados nos princípios científi- cos da Agroecologia. A verdadeira modernizaçªo da agricul- tura exige que o manejo dos recursos naturais e a seleçªo de tecnologias usadas no processo produtivo sejam o resultado de uma nova forma de aproximaçªo e integraçªo entre Eco- logia e Agronomia. Os estilos de agricultura deverªo ser compatíveis com a heterogeneidade dos agroecossistemas, levando-se em conta os conhecimentos locais, os avanços científicos e a socializaçªo de saberes, alØm do uso de tecno- logias menos agressivas ao ambiente e à saœde das pessoas. SEGURAN˙A ALIMENTAR E AGRICULTURA SUSTENT`VEL UMA PERSPECTIVA AGROECOLÓGICA Francisco Roberto Caporal JosØ Antônio Costabeber

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Agroecologia e segurança alimentqr na agricultura sustentável

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  • O modelo agrcola convencional, centrado no uso abusivode recursos naturais e de agroqumicos de sntese, permitiuaumentar a produo e a produtividade de alguns cultivosem certas regies, causando porm forte agresso ao am-biente e comprometendo a sua sustentabilidade a longo pra-zo. Ademais, prioriza a produo de commodities e respon-de mais ao mercado do que s reais necessidades alimenta-res da populao. Esta situao s poder ser revertida nomomento em que o projeto de desenvolvimento nacionaldefinir o atendimento das demandas alimentares e nutricio-nais como a principal meta da produo agropecuria, j queexistem hoje 44 milhes de brasileiros que no tm atendi-da sequer sua dieta quantitativa. A segurana alimentar enutricional requer, no entanto, a implementao de estilosde agricultura sustentvel baseados nos princpios cientfi-cos da Agroecologia. A verdadeira modernizao da agricul-tura exige que o manejo dos recursos naturais e a seleo detecnologias usadas no processo produtivo sejam o resultadode uma nova forma de aproximao e integrao entre Eco-logia e Agronomia. Os estilos de agricultura devero sercompatveis com a heterogeneidade dos agroecossistemas,levando-se em conta os conhecimentos locais, os avanoscientficos e a socializao de saberes, alm do uso de tecno-logias menos agressivas ao ambiente e sade das pessoas.

    SEGURANA ALIMENTARE AGRICULTURA SUSTENT`VELUMA PERSPECTIVA AGROECOLGICA

    Francisco Roberto CaporalJos Antnio Costabeber

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    Segurana alimentar e nutricional sustentvelA expresso segurana alimentar, como conceito

    orientador para polticas pblicas, apareceu em 1974, du-rante a Conferncia Mundial da Alimentao promovidapela Organizao das Naes Unidas para Agricultura eAlimentao (FAO). Em 1996, a mesma FAO estabeleciaum conceito mais ambicioso, ao afirmar que se trata deassegurar o acesso aos alimentos para todos e a todo o momen-to, em quantidade e qualidade suficientes para garantir umavida saudvel e ativa. A partir deste conceito, ficou patentea importncia de uma agricultura que produza alimentosbsicos (e no apenas commodities), com adequada qualida-de biolgica. Ademais, alerta para a necessidade de que aagricultura seja mais respeitosa com o meio ambiente, demodo a assegurar a conservao da base de recursos natu-rais indispensvel para a produo ao longo do tempo. Estapreocupao se justifica quando o organismo das NaesUnidas encarregado de zelar pela agricultura e pela alimen-tao dos povos, diagnostica que, ao longo das dcadas deRevoluo Verde, houve um crescimento significativo dafome no mundo. No mesmo perodo cresceu o xodo rurale aumentou a pobreza tanto rural como urbana. Hoje exis-tem no mundo mais de 800 milhes de pessoas passandofome. No Brasil, apesar de no haver consenso sobre os n-meros apresentados nas estatsticas, h pelo menos 44 milhesde habitantes sem as condies alimentares adequadas.

    Se por um lado estamos diante de um problema de aces-so aos alimentos, por outro, estamos diante de uma carnciana produo de comida para atender s necessidades detodos os brasileiros, quer em quantidade, quer em qualidade.

    No que tange qualidade dos alimentos que estosendo ofertados populao, cabe registrar que pesquisarealizada pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (AN-VISA) mostrou, por exemplo, que 81,2% das amostras dealimentos analisadas continham resduos de agrotxicos,sendo que 22,17% apresentavam contaminao acima doslimites mximos permitidos pela legislao.1 Alm disso, aAgncia identificou a presena de resduos de agrotxicosno autorizados para determinadas culturas.2

    Sobre a questo da quantidade, o padro agrcola domi-nante no pas tem deixado a desejar quando o assunto aproduo de alimentos bsicos. As estimativas da super safrade 2002/2003 ilustram bem o aumento da produo de algunsgros, especialmente soja e milho, mas no mostram a debili-dade na produo e na oferta de alimentos bsicos para a dieta

    1 Assiste-se, atualmente, a umcamuflado desconforto e evi-dente constrangimento porparte daqueles que, nos lti-mos anos, rezaram acritica-mente pela bblia dos agro-qumicos e que, agora, estopodendo observar o incio deum verdadeiro bombardeiode notcias e resultados depesquisa que divulgam o des-cobrimento de impactos na-da desprezveis de insumos etecnologias agrcolas conven-cionais sobre o meio ambien-te e a sade da sociedade.Ainda que muitos no quei-ram admitir, as dennciasformuladas, no incio dosanos 1960, por Rachel Car-son (Silent Spring. Boston:Houghton Mifflin, 1962),mantm grande atualidade edeveriam servir como refe-rncia para tomadas de deci-so sobre o uso de determi-nados insumos ou tecnolo-gias.

    2 ANVISA. Agncia Nacionalde Vigilncia Sanitria. Anvisainvestiga alimentos contami-nados por agrotxicos. Bole-tim Informativo da Anvisa,Braslia, n. 25, p. 4-5 novem-bro de 2002.

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    dos 44 milhes de brasileiros que ainda no tm acesso aosalimentos em quantidade suficiente. Observe-se que, segundodados da Companhia Nacional de Abastecimento3, das 120,2milhes de toneladas de gros produzidas no ano agrcola2002/2003, 52,209 milhes de toneladas correspondem pro-duo de soja, sendo que cerca de 37,2 milhes de toneladasde produtos do complexo soja destinam-se exportao.

    Em relao ao volume total de produo, o consumonacional de soja em gro na alimentao humana poucoexpressivo, at porque a ingesto desta leguminosa no fazparte dos hbitos alimentares da maioria da populao. Sabe-se tambm que as campanhas que visavam aumentar o con-sumo de soja na alimentao humana no Brasil no al-canaram os resultados esperados.4 Por outro lado, na mes-ma safra assiste-se a uma reduo no volume de arroz pro-duzido5, este sim um produto plenamente incorporado nadieta nacional. No que se refere ao trigo, apesar da variaopositiva esperada, cabe salientar que o pas produz apenas4,514 milhes de toneladas, das 10,691 milhes de tonela-das que consome. A resultante dessa situao bvia: o pasprecisar importar alimentos bsicos, como arroz, trigo, fei-jo, batata e leite6, pois as quantidades atualmente produzi-das so insuficientes para atender a demanda dos 170 mi-lhes de habitantes; e podero ser ainda mais insuficientescaso o Programa Fome Zero obtiver sucesso.

    A tabela 1 ilustra a deficincia na produo de alimen-tos bsicos quando o objetivo a incluso dos 44 milhesde brasileiros que hoje passam fome.

    Tabela 1: Programa Fome Zero: projeo da necessidade quantita-tiva de alimentos

    Fonte: Pernambuco, G.10 Elaborao: Confederao de Agriculturae Pecuria do Brasil (CNA)

    3 COMPANHIA NACIONALDE ABASTECIMENTO. Qua-dro de suprimentos. Brasil: ofer-ta e demanda brasileira 2003(http://www.conab.gov.br/download/indicadores/0301-Oferta-e-demanda-brasileira.pdf).

    4 Nesse sentido, a experinciada campanha intitulada SojaSolidria, implantada na Ar-gentina no recente perodo decrise e crescimento da pobrezae da fome, enfrentou muitasresistncias e no resolveu oproblema alimentar. Ao contr-rio, serviu para que o Ministrioda Sade daquele pas divulgas-se cartilhas orientando sobre osriscos sade que a alimenta-o base de soja pode trazer,tanto para crianas de peque-na idade como para idosos.

    5 A produo de arroz caiu de10,626 milhes de toneladas,colhidas na safra 2001/2002,para 10,441 milhes de to-neladas, na safra 2002/2003(CONAB, Op. cit. ).

    6 Em 2002, o Brasil importou780,20 mil toneladas de ar-roz em casca e 450,00 miltoneladas de milho em gro(CONAB, Op. cit.).

    7 Necessidade mnima de ali-mento/ms. O Decreto Lei399/38 ainda inclui o pofrancs (6 kg), banana (90unidades), acar (3 kg) emanteiga (90 g);

    8 Para 44,04 milhes de pessoas.De acordo com o Projeto Fo-me Zero, os 44 milhes de pes-soas correspondem a 9.324mil famlias com renda famili-ar per capita de at US$ 1,08por dia. Conforme o Dieese,uma famlia constituda de 2adultos e duas crianas, conside-rando para fins de quantidadeque o consumo de uma fam-lia corresponde a de 3 adultos.

    9 Fontes: carnes, feijo e arroz(CONAB), leo (ABIOVE),batata e tomate produo(IBGE), leite milhes delitros (CNA).

    10 PERNAMBUCO, G. FomeZero aumentar o consumoda cesta bsica. Revista Gleba(Informativo Tcnico daCNA), Braslia, ano 47, n.189, p. 1-2, nov./dez. 2002.

    sotnemilAaminmosivorP 7

    83/993ieLoterceDedadisseceNavitatitnauq

    launa 8 l/tlim

    omusnoCmeorielisarb

    tlim2002 9

    omicsrcAon

    omusnocedadinU edaditnauQ

    senraC.1 gk 0,6 0,410.2

    anivoB.1.1 gk 0,3 0,700.1 8.954.6 %61

    ognarF.2.1 gk 0,3 0,700.1 8,268.5 %71

    etieL.2 l 0,51 0,530.5 0,001.22 %32

    ojieF.3 gk 5,4 5,015.1 7,217.2 %65

    ).feneb(zorrA.4 gk 0,3 0,700.1 8,670.8 %21

    atataB.5 gk 0,6 0,410.2 0,468.2 %07

    etamoT.6 gk 0,9 0,120.3 0,670.3 %89

    pmefaC.7 gk 6,0 4,102 0,087 %62

    ajosedoel.8 gk 5,1 5,305 0,539.2 %71

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    Conforme os dados aqui apresentados, para que oBrasil possa alcanar o objetivo de segurana alimentar enutricional sustentvel, para toda a sua populao, so ne-cessrias polticas pblicas que: a) disponibilizem mais re-cursos para estimular e bem remunerar a produo de ali-mentos bsicos compatveis com os hbitos alimentares pre-dominantes em cada regio do pas; e b) destinem recursospara um amplo processo de reconverso da agricultura, ouseja, um processo de transio do sistema convencional,baseado na agroqumica, para uma agricultura sustentvel,que se fundamenta nos princpios da Agroecologia. A im-plementao destas polticas, essenciais para a seguranaalimentar e nutricional dos brasileiros, ainda carece de de-ciso poltica dos governos federal, estaduais e municipais,razo pela qual, no marco deste artigo, optou-se apenas porregistrar esta questo em forma de alerta.

    Nessa perspectiva, cabe salientar ainda a importnciada reforma agrria e da agricultura familiar na construo deestratgias de desenvolvimento rural sustentvel e de au-mento e consolidao da produo nacional de alimentosbsicos. Conforme tem sido defendido ao longo de dca-das, o desenvolvimento rural brasileiro carece de uma vigo-rosa reforma da estrutura fundiria e de polticas consisten-tes de fortalecimento da agricultura familiar. Existem noBrasil 4.139.369 estabelecimentos rurais familiares que,embora ocupando apenas 30,5% da rea total e dispondo de25,3% do financiamento, respondem por 37,9% do ValorBruto da Produo (VBP) e por 76,85% da mo-de-obraocupada na agricultura. Os agricultores familiares produ-zem 24% do VBP total da pecuria de corte, 52% da pecu-ria de leite, 58% dos sunos e 40% das aves e ovos. Almdisso, respondem pela produo de 33% do algodo, 31%do arroz, 72% da cebola, 67% do feijo, 97% do fumo,84% da mandioca, 49% do milho, 32% da soja, 46% dotrigo, 58% da banana, 27% da laranja, 47% da uva, 25% docaf e 10% da cana-de-acar, o que demonstra a grandeimportncia estratgica deste setor.11

    Logo, uma vez estabelecidas como metas a busca desegurana alimentar e nutricional sustentvel e a incorpora-o de um contingente enorme de brasileiros como consu-midores de alimentos, seria pouco inteligente desconsiderara relevncia do segmento familiar rural. Vale ressaltar, ade-mais, que a agricultura de base familiar mais apropriadapara o estabelecimento de estilos de agricultura sustentvel,tanto pelas caractersticas de maior ocupao de mo-de-obra e de diversificao de culturas, que so prprias

    11 M I N I S T R I O D O D E -SENVOLVIMENTO AGR`-RIO. Instituto Nacional deC o l o n i z a o e R e f o r m aAgrria. Novo retrato da agri-cultura familiar: o Brasilredescoberto. Braslia: MDA,2000.

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    desta forma de organizao da produo, quanto pela suamaior capacidade de proceder ao redesenho de agroecossis-temas de maneira mais acorde aos ideais de sustentabilida-de.12

    Agroecologia como base cientficade uma agricultura sustentvel

    No raramente se tem confundido a Agroecologiacom modelo de agricultura, com processo de produo,com produto ecolgico, com prtica ou tecnologia agrcola,com poltica pblica, com modo de vida e at com movi-mento social. Apesar da boa inteno do seu emprego, essasimprecises podem mascarar a potencialidade que possui oenfoque agroecolgico para apoiar o desenvolvimento agr-cola e rural.13 Ainda que haja diversas interpretaes con-ceituais, a Agroecologia corresponde fundamentalmente aum campo de conhecimentos de natureza multidisciplinar,que pretende contribuir na construo de estilos de agricul-tura de base ecolgica e na elaborao de estratgias dedesenvolvimento rural, tendo-se como referncia os ideaisda sustentabilidade numa perspectiva multidimensional delongo prazo.14 Como cincia, a Agroecologia apresenta umasrie de princpios, conceitos e metodologias que permitemo estudo, a anlise, o desenho, o manejo e a avaliao deagroecossistemas.15 Suas bases epistemolgicas mostramque, historicamente, a evoluo da cultura humana pode serexplicada com referncia ao meio ambiente, ao mesmo tem-po em que a evoluo do meio ambiente pode ser explicadacom referncia cultura humana16, o que tem especial sig-nificado quando se pretende alcanar melhores patamaresde sustentabilidade.

    Sob o ponto de vista agroecolgico, existe relativoconsenso de que a agricultura sustentvel aquela que, apartir de uma compreenso holstica dos agroecossistemas,seja capaz de atender, de maneira integrada, aos seguintescritrios: a) baixa dependncia de inputs comerciais; b) usode recursos renovveis localmente acessveis; c) utilizaodos impactos benficos ou benignos do meio ambiente lo-cal; d) aceitao e/ou tolerncia das condies locais, antesda dependncia da intensa alterao ou tentativa de controlesobre o meio ambiente; e) manuteno a longo prazo dacapacidade produtiva; f) preservao da diversidade biolgi-ca e cultural; g) utilizao do conhecimento e da cultura dapopulao local; e h) produo de mercadorias para o con-sumo interno e para a exportao.17 Para Altieri, a expresso

    12 TOLEDO, V. M. Agroecolo-ga, sustentabilidad y refor-ma agraria: la superioridadde la pequea produccin fa-miliar. Agroecologia e Desen-volvimento Rural Sustentvel,Porto Alegre, v. 3, n. 2, p.27-36, abr./jun. 2002.

    13 CAPORAL, F. R. & COS-TABEBER, J. A. Agroecolo-gia: enfoque cientfico e es-tratgico. Agroecologia e De-senvolvimento Rural Susten-tvel, Porto Alegre, v. 3, n. 2,p. 13-16, abr./jun. 2002.

    14 CAPORAL, F. R. & COS-TABEBER, J . A. Anlisemultidimensional da susten-tabilidade: uma proposta me-todolgica a partir da Agro-ecologia. Agroecologia e De-senvolvimento Rural Susten-tvel, Porto Alegre, v. 3, n. 3,p. 70-85, jul./set. 2002.

    15 Os agroecossistemas soconsiderados como a unida-de fundamental de estudo,nos quais os ciclos minerais,as transformaes energti-cas, os processos biolgicos eas relaes socioeconmicasso vistas e analisadas em seuconjunto (ALTIERI, M. A.El estado del arte de laAgroecologa y su contribu-cin al desarrollo rural emAmrica Latina. In: CADE-NAS MARN, A. (ed.). Agri-cultura y desarrollo sostenible.Madrid: MAPA, 1995. p.151-203). Tem-se um agro-ecossistema sustentvel quan-do os componentes tanto dabase social como da base eco-lgica combinam-se em umsistema cuja estrutura e fun-o reflete a interao do co-nhecimento e das prefernciashumanas com os componentesecolgicos do agroecossistema(GLIESSMAN, S. R. Agroeco-logia: processos ecolgicos emagricultura sustentvel. PortoAlegre: Editora da Universi-dade/UFRGS, 2000).

    16 ALTIERI, M. A. Agroecologia:as bases cientficas da agricul-tura alternativa. Rio de Janei-ro: PTA/FASE, 1989.ALTIERI, M. A. El estadodel arte de la Agroecolo-ga... Op. cit.

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    agricultura sustentvel se refere busca de rendimentosdurveis, a longo prazo, atravs do uso de tecnologias demanejo ecologicamente adequadas, o que requer a otimi-zao do sistema como um todo e no apenas o rendimentomximo de qualquer produto especfico.18 Por sua parte, oCentro de Agroecologia da Universidade da Califrnia,Campus de Santa Cruz (EUA), definiu agricultura susten-tvel como aquela que reconhece a natureza sistmica daproduo de alimentos, forragens e fibras, equilibrando,com eqidade, preocupaes relacionadas sade ambien-tal, justia social e viabilidade econmica, entre diferentessetores da populao, incluindo distintos povos e diferentesgeraes.19

    Tomando-se como referncia as proposies deStephen Gliessman, o enfoque agroecolgico corresponde aplicao de conceitos e princpios da ecologia no manejo edesenho de agroecossistemas sustentveis20, uma orientaoterico-metodolgica que adquire enorme complexidade,dependendo especialmente do nvel de sustentabilidade quese deseja alcanar. Segundo o mesmo autor, existem trsnveis fundamentais no processo de converso para agro-ecossistemas sustentveis. O primeiro diz respeito ao in-cremento da eficincia das prticas convencionais para re-duzir o uso de insumos externos caros, escassos e daninhosao meio ambiente. Esta tem sido a principal nfase da pes-quisa agrcola convencional, resultando em muitas prticase tecnologias que ajudam a reduzir os impactos negativos daagricultura, mas sem elimin-los. O segundo nvel da tran-sio se refere substituio de insumos convencionais porinsumos alternativos. A meta seria a substituio de insu-mos e prticas intensivas em capital e agressivas ao ambien-te, por outras mais benignas sob o ponto de vista ecolgico.Neste nvel, a estrutura bsica do agroecossistema aindaseria pouco alterada, podendo ocorrer, ento, desequil-brios similares aos que se verificam nos sistemas convenci-onais. O terceiro e mais complexo nvel da transio re-presentado pelo redesenho dos agroecossistemas, para quepassem a funcionar com base em um novo conjunto deprocessos ecolgicos. Somente alcanando esse terceironvel seria possvel a minimizao das causas que geram osproblemas na agricultura convencional. Em termos de pes-quisa e de produo tecnolgica, j foram feitos importan-tes trabalhos em relao ao processo de transio do pri-meiro ao segundo nvel. Porm, os trabalhos para a transi-o ao terceiro nvel esto recm comeando.21

    ALTIERI, M. A. Agroecolo-gia: a dinmica produtiva daagricultura sustentvel. 3. ed.Porto Alegre: Editora da Uni-vers idade/UFRGS, 2001.(Sntese Universitria, 54).TOLEDO, V. M. La racio-nalidad ecolgica de la pro-duccin campesina. In: SE-VILLA GUZM`N, E. &GONZ`LEZ DE MOLI-NA, M. (eds.) . Ecologa,campesinado e historia. Ma-drid: La Piqueta, 1993. p.197-218.NORGAARD, R. B. A baseepistemolgica da Agroeco-logia. In: ALTIERI, M. A.(ed.). Agroecologia: as basescientficas da agricultura al-ternativa. Rio de Janeiro:PTA/FASE, 1989. p.42-48.NORGAARD, R. B. A co-evolutionary environmentalsociology. In: REDCLIFT,M. & WOODGATE, G.(eds.) . The InternationalHandbook of EnvironmentalSociology. Cheltenham, UK:Edward Elgar, 1997. p. 158-168.CONWAY, G. The doublygreen revolution: food for allin the twenty-first century.London: Penguin Books, 1997.SEVILLA GUZM`N, E. &GONZ`LEZ DE MOLI-NA, M. (eds.). Ecologa,campesinado y historia. Ma-drid: La Piqueta, 1993.GONZ`LEZ DE MOLI-NA, M. Agroecologa: basestericas para una historiaagraria alternativa. Agroecolo-ga y Desarrollo, n. 4, p. 22-31, dic. 1992.

    17 GLIESSMAN, S. R. Quanti-fy ing the agroecologica lcomponent of sustainablea g r i c u l t u r e : a g o a l . In :GLIESSMAN, S. R. (ed.).Agroecology: researching theecological basis for sustain-able agriculture. New York:Springer-Verlag, 1990. p.366-399.

    18 ALTIERI, M. A. Agroecolo-gia: bases cientficas parauma agricultura sustentvel.Guaba: Editora Agropecu-ria, 2002. 592 p.

    19 GLIESSMAN, S. R. Op. cit.,2000.

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    A necessidade de alcanar o terceiro nvel da transi-o torna-se bvia, na medida em que hoje se reconheceque a agricultura convencional, num pequeno tempo hist-rico, mostrou-se no somente portadora de um processoentrpico ambientalmente destrutivo, mas tambm respon-svel pela crescente diminuio da biodiversidade dos agro-ecossistemas, especialmente em razo da adoo de grandesmonoculturas.22 No obstante, estudos mostram que a bio-diversidade responsvel por maior estabilidade ecolgicanos agroecossistemas e que, quanto maior for a simplifica-o, menor ser a estabilidade ecolgica proporcionada pe-las inter-relaes das comunidades de plantas e animais como seu meio ambiente fsico e qumico.23

    Transio agroecolgica:a experincia no Rio Grande do Sul

    Com base no conjunto de conceitos antes referidos,a experincia que vem sendo realizada no Rio Grande doSul demonstra que o processo de transio agroecolgica possvel, desde que existam polticas favorveis, incluindoservios pblicos e gratuitos de assistncia tcnica e ex-tenso rural voltados para esse objetivo.24 Os resultadosalcanados no perodo de 1999-2002 mostram que umnmero significativo de unidades familiares de produoest participando desse processo, e que est havendo aadoo macia, por parte de agricultores gachos, dediversas prticas ambientalmente recomendveis. Comoexemplo, pode-se citar que, em 2002, 110.070 agricultoresassistidos pela Emater/RS-Ascar utilizaram cobertura vege-tal de inverno em 857.917 hectares. No mesmo ano,quase 13.000 agricultores realizaram plantio direto desoja, milho e trigo sem o uso de herbicidas, em mais de57.000 hectares. Alm disso, 13.950 agricultores passarama usar o sistema de pastoreio rotativo na pecuria leiteira,enquanto 6.612 destes adotaram o uso de medicamentosfitoterpicos e/ou homeopticos no tratamento de seusanimais.

    Outros dados confirmam a tendncia positiva da tran-sio agroecolgica que est em curso. Segundo relatrio daEmater/RS-Ascar, so significativos os resultados em ter-mos de nmero de agricultores que vm participando desseprocesso.25 A empresa realizou o levantamento dos dadossegundo trs estgios de transio para estilos de agricultu-ra de base ecolgica, adaptados dos nveis sugeridos porGliessman26, conforme os seguintes conceitos:

    20 GLIESSMAN, S. R. Op. cit.,2000.

    21 GLIESSMAN, S. R. Op. cit.,2000. p. 573-5.

    22 Como conseqncia da mo-dernizao, a agriculturaatual reduziu a diversidadeao mximo. Das cerca de80.000 plantas comestveisque se considera que exis-tem, somente so utilizadasumas 200 e, destas, apenas12 so alimentos bsicos im-portantes para a humanida-de. Ao mesmo tempo, ocor-reu uma enorme perda davariabilidade gentica, comaumento do risco de danospor ataques de insetos e do-enas. (SARANDN, S. J.La agricultura como activi-dad transformadora del am-biente. El impacto de la agri-cultura intensiva de la Revo-lucin Verde. p. 32-33. In:SARANDN, S. J. (ed.).Agroecologa: el camino haciauna agricultura sustentable.Buenos Aires: Ediciones Ci-entficas Americanas, 2002.p. 23-47). Observe-se queeste quadro dramtico pode-r piorar se houver a adoode sementes geneticamentemodificadas em larga escala.

    23 ALTIERI, M. A. Agroeco-loga: principios y estrategiaspara disear sistemas agrariossustentables. p. 50-51. In:SARANDN, Santiago J.(ed.). Op. cit., p. 49-56.

    24 EMATER/RS. Marco Refe-rencial para uma Nova Exten-so Rural: Avanos Institu-cionais da EMATER/RS-AS-CAR Gesto 1999-2002.Porto Alegre: EMATER/RS,2002.

    25 EMATER/RS. Relatrio deGesto: 1999-2002. EMA-TER/RS-ASCAR. Porto Ale-gre: EMATER/RS, 2002.

    26 GLIESSMAN, S. R. Op. cit.,2000.

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    Segurana alimentar e agricultura sustentvel: uma perspectiva agroecolgica

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    Convencional-Racionalizao: agricultores assistidos quevm, simplesmente, reduzindo o uso de insumos qumicos,por razes econmicas ou outras, sem maior preocupaocom a adoo de insumos ou prticas alternativas. Transio-Substituio: agricultores assistidos que vmrealizando processos de substituio de insumos qumicos(fertilizantes qumicos e agrotxicos) por insumos alterna-tivos de base ecolgica. Transio-Redesenho: agricultores assistidos que, alm doprocesso de substituio de insumos, vm realizando oredesenho de suas propriedades, a partir de um enfoqueecolgico e sistmico (esto aplicando, simultaneamente ede forma integrada, diversas tcnicas e prticas agrcolas debase ecolgica, tais como: manejo ecolgico do solo, rota-o e diversificao de culturas, integrao de sistemas agr-colas e de criao animal, florestamento e reflorestamentoconservacionista, manejo de sistemas agroflorestais etc.).

    A partir dessa categorizao de nveis de transio, etomando-se como referncia as principais culturas agrco-las, cabe destacar, a ttulo de exemplo, os seguintes avanosna transio agroecolgica no Estado:

    Relativo s culturas de alho, batata, cebola e tomate,7.983 agricultores assistidos pela Emater/RS-Ascar estavamno estgio Convencional-Racionalizao (9.261 hectares),2.769 no estgio Transio-Substituio (857 hectares) e649 no estgio Transio-Redesenho (160 hectares). Na fruticultura, tomando-se por base apenas os dados deprodutores de abacaxi, banana, bergamota, figo, laranja, li-mo, melancia, morango, pssego e uva, 13.365 agricultoresestavam no estgio Convencional-Racionalizao (26.385hectares), 9.050 no estgio Transio-Substituio (12.936hectares) e 1.645 no estgio Transio-Redesenho (2.045hectares). Com referncia produo de gros, aqui exemplificadapelas culturas de arroz, feijo, milho, soja e trigo, os dadosconstantes na tabela 2 mostram possibilidades concretas noprocesso de transio tambm em cultivos que esto entreos que experimentaram os maiores impactos da RevoluoVerde.

    Alm desses resultados, cabe destacar que agriculto-res assistidos pela Emater/RS-Ascar e apoiados por suascooperativas, participantes dos Programas de Ecologizaoda Cadeia Produtiva do Feijo, nas microrregies Centro-Serra e Quarta Colnia27 obtiveram, na safra 2002/2003,

    27 Estas duas microrregies es-to situadas em rea de abran-gncia do Escritrio Regio-nal da EMATER/RS de San-ta Maria.

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    respectivamente, 675 Kg/ha e 1.029 Kg/ha nas reas commanejo ecolgico, contra 673 Kg/ha e 858 Kg/ha nas reascom manejo convencional 28, evidenciando produtividadessuperiores no sistema de produo ecolgica em relao aosistema de produo convencional, assim como aumento darenda para os agricultores, melhoria do meio ambiente eoferta de alimentos com melhor qualidade biolgica.

    Tabela 2: Produo de gros: nmero de agricultores e rea em tran-sio agroecolgica em cinco cultivos selecionados (Safra 2001-2002)

    Ainda, dados do mesmo relatrio indicam que, nofinal de 2002, havia, no Rio Grande do Sul, 138 feiras se-manais de produtos ecolgicos, com participao de 880feirantes.29 Na mesma poca, os extensionistas rurais asses-soravam 4 cooperativas ecolgicas e 354 grupos de agricul-tores ecolgicos, com quase 4.000 participantes, o querefora a possibilidade de ecologizao dos sistemas agr-colas.

    Ecologizao e riscos associadosO enfoque agroecolgico, baseado nas noes de

    ecologizao30 e de transio agroecolgica, vem apoiando oprocesso de modernizao socioambiental da agricultura, demodo a assegurar a produo de alimentos em quantidade equalidade. Nessa perspectiva, a idia de ecologizao no selimita a obedecer apenas estmulos de mercado, mas incor-pora valores ambientais e orientao para a construo deuma nova tica de relao da sociedade com a natureza,conformando a transio agroecolgica. Transio definidacomo um processo gradual de mudana, atravs do tempo,nas formas de manejo dos agroecossistemas, que tem comometa a converso do modelo agroqumico de produoagropecuria para estilos de agricultura que incorporemprincpios, mtodos e tecnologias de base ecolgica. Esse

    28 POERSCHKE, P. R. FeijoEcolgico: Resultados da Sa-fra 2002/2003. InformativoTcnico Regional, Santa Ma-ria, Escritrio Regional daEMATER/RS, n. 2/3, 2003.2 p. (mimeo).

    29 EMATER/RS. Relatrio deGesto: 1999-2002. Op. cit.,2002.

    30 O conceito de ecologizaoaqui utilizado est inspiradona perspectiva adotada porButtel, como a introduo devalores ambientais nas prti-cas agrcolas, na opinio p-blica e nas agendas polticaspara a agricultura (BUTTEL,F. H. Environmentalizationand greening: origins, proces-ses and implications. In:H A R P E R , S . ( e d . ) . Thegreening of rural policy inter-national perspectives. London:Belhaven Press, 1993. p. 12-26. BUTTEL, F. H. Transi-ciones agroecolgicas en elsiglo XX: anlisis preliminar.Agricultura y Sociedad, n. 74,p. 9-37, ene./mar. 1994).Ver tambm: CAPORAL, F.R. La extensin agraria delsector pblico ante los desafosdel desarrollo sostenible: elcaso de Rio Grande do Sul,Brasil. Crdoba, 1998. 517p. (Tese de Doutorado) Pro-grama de Doctorado en Agro-ecologa, Campesinado e His-toria, ISEC-ETSIAN, Uni-versidad de Crdoba, Es-paa, 1998.COSTABEBER, J. A. Accincolectiva y procesos de tran-sicin agroecolgica en RioGrande do Sul, Brasil. Cr-doba, 1998. 422 p. (Tese deDoutorado) Programa deDoctorado en Agroecologa,Campesinado e Historia,ISEC-ETSIAN, Universidadde Crdoba, Espaa, 1998.CAPORAL, F. R. & COS-TABEBER, J. A. Agroeco-logia e desenvolvimento ruralsustentvel: perspectivas parauma nova Extenso Rural.Agroecologia e Desenvolvi-mento Rural Sustentvel, Por-to Alegre, v. 1, n. 1, p. 16-37, jan./mar. 2000.

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    zorrA 544.2 626 185 346.13 351.4 354

    ojieF 078.31 511.5 525.1 689.51 001.5 425.1

    ohliM 854.95 063.41 832.2 659.452 860.15 654.7

    ajoS 310.82 455.6 599 238.833 980.56 881.7

    ogirT 979.6 681.2 161 461.85 598.41 556

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    Segurana alimentar e agricultura sustentvel: uma perspectiva agroecolgica

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    complexo processo, que vem sendo experimentado em v-rios lugares e que aqui foi exemplificado com resultadosobtidos no Rio Grande do Sul, mostra que possvel cami-nhar em busca da segurana alimentar e nutricional sus-tentvel, sempre que seja adotada a Agroecologia como en-foque cientfico e estratgico para apoiar o processo demudana.31

    Porm, vale lembrar que hoje existem vrias corren-tes disputando o conceito de agricultura sustentvel e ado-tando distintos mtodos e tecnologias. Pelo menos duasgrandes correntes do desenvolvimento sustentvel se apre-sentam como alternativas para orientar estratgias rumo agricultura sustentvel. A ecotecnocrtica parte de um oti-mismo tecnolgico, relacionado capacidade de uma substi-tuio sem fim dos recursos naturais no renovveis pornovas tecnologias e novos materiais. Na agricultura estariarepresentada pela intensificao verde que, embora manifes-tando um certo tipo de ecologizao, continuaria muito pr-xima ao padro tecnolgico dominante. J a corrente ecos-social recomenda a prudncia tecnolgica, dada a aceitaode que os recursos naturais necessrios para a manutenoda vida sobre o planeta so limitados e finitos. Na agricultu-ra, materializar-se-ia em estilos de produo de base ecol-gica, aproximando conhecimentos ambientais, econmicos escio-culturais e conformando assim a transio agroeco-lgica.32 O imediatismo e a orientao das decises baseadasapenas na busca de resultados econmicos tm feito comque muitas agriculturas alternativas no estabeleam as con-dies necessrias para a sustentabilidade no mdio e longoprazos, at porque nem sempre seguem os princpios daAgroecologia. Ademais, considerando o recrudescimentoque se percebe nas estratgias ecotecnocrticas da sustenta-bilidade (a ecologizao sob a forma de intensificao ver-de), no intuito de implementar uma Nova Revoluo Verde,que busca resultados econmicos de curto prazo e coloca afome como um problema de mercado, corre-se o risco deque o modelo atualmente hegemnico venha a ser mantidoe, portanto, no se criem as condies para resolver o pro-blema da oferta de comida e da melhoria da qualidade dosalimentos no Brasil.

    Nessa tica, cabe alertar que, embora constituindoum imperativo socioambiental de interesse de toda a so-ciedade, a construo de estilos de agricultura sustentvelexige que sejam tomados cuidados especiais para que seevite a emergncia de riscos associados ao processo de

    CAPORAL, F. R. & COS-TABEBER, J. A. Agroeco-logia e desenvolvimento ruralsustentvel: perspectivas parauma nova Extenso Rural.In: ETGES, V. E. (org.). De-senvolvimento rural: poten-cialidades em questo. SantaCruz do Sul: EDUNISC,2001. p. 19-52.

    31 CAPORAL, F. R. & COS-TABEBER, J. A. Agroecolo-gia: enfoque cientfico e es-tratgico para apoiar o de-senvolvimento rural susten-tvel (texto provisrio paradiscusso). Porto Alegre:E M A T E R / R S - A S C A R ,2002. (Srie Programa deFormao Tcnico-Social daEMATER/RS. Sustentabili-dade e Cidadania, texto 5).

    32 ALTIERI, M. Op. cit., 1989;1995; 2001.

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    ecologizao em curso. Evidncias empricas esto mostran-do o surgimento de novos fenmenos, ainda pouco estuda-dos, tais como: a) uma nova onda de diferenciao social nocampo, motivada pela varivel ecolgica; b) uma expansona oferta de alimentos limpos apenas para consumidoresmelhor informados e com maior poder aquisitivo; c) umincremento gradual na exportao de alimentos orgnicos,destinando-se os produtos de categoria inferior ao consumointerno; d) o privilgio de prestao de servios de assistn-cia tcnica e extenso rural para os novos adotadores pre-coces, ou seja, aqueles que se destaquem na adoo de tec-nologias verdes derivadas de uma nova onda difusionista; e)o aparecimento de novos e sofisticados pacotes tecnolgicosverdes; f) a consolidao de mercado de insumos orgnicose de novas formas geradoras de dependncia, a exemplo daimportao de insumos industriais alternativos; g) a aceita-o de perdas ambientais de longo prazo como contra-partida para ganhos econmicos de curto prazo, deriva-dos da implantao de monoculturas orgnicas; e h) aexplorao da mo-de-obra e a degradao do trabalhopara viabilizar certas formas de produo orgnica emescala.33

    Estes riscos, hipoteticamente associados ao processode ecologizao (mas que no so inerentes Agroecologiaenquanto cincia que pretende orientar a construo deestilos de agricultura sustentvel e a elaborao de estrat-gias de desenvolvimento rural tambm sustentvel), pare-cem coincidir com a crescente influncia das determinaesde mercado e de preos diferenciados como estmulo adiferentes tipos de produo ecolgica, o que poderia levara novas formas de excluso e dominao. Cabe alertar quea simples adoo de tcnicas orgnicas para a produo deprodutos ecolgicos no condio suficiente para se al-canar a segurana alimentar na perspectiva da sustentabili-dade de longo prazo, podendo levar, inclusive, ao surgimen-to de outros fenmenos socioambientais indesejveis, almdos j citados. Portanto, as hipteses mencionadas preten-dem servir como um alerta no sentido de que a busca dasegurana alimentar e nutricional sustentvel, luz da di-menso tica, inclui a necessidade de oferta de alimentoslimpos e saudveis para todos, o que no se obtm com asimples adoo de certas estratgias de agricultura orgnicaou de substituio de insumos dirigidas pelo mercado e cujaproduo resulta acessvel apenas a uma pequena e privile-giada parcela da populao.

    33 C O S TA B E B E R , J . A . &CAPORAL, F. R. Possibili-dades e alternativas do de-senvolvimento rural susten-tvel. In: VELA, H. (org.).Agricultura Familiar e Desen-volvimento Rural Sustentvelno Mercosul . Santa Maria:Pallotti, 2003. p. 157-194.

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    Notas finaisAo contrrio do processo de co-evoluo sociocultu-

    ral e ecolgico que vigorou ao longo de mais de 10.000anos de agricultura, os ltimos 100 anos tm se caracteri-zado por um crescente processo de artificializao da natu-reza. Esta mudana comandada pela adoo macia detecnologias industriais, rompendo a dinmica de manuten-o dos equilbrios ecolgicos em favor de uma vigorosabusca de maior produtividade fsica, em detrimento da lon-gevidade34 dos sistemas de produo agrcola. Isso se agra-vou na medida em que as chamadas tecnologias modernas,ao serem incorporadas como conhecimento nas matrizesculturais dos grupos sociais envolvidos, quase sempre de-terminaram o rompimento de estratgias tradicionais, redu-zindo drasticamente a sustentabilidade socioambiental dosagroecossistemas e causando uma crescente perda na qua-lidade e diversidade dos alimentos e matrias-primas pro-duzidas. Adicionalmente, observa-se que o modelo con-vencional de desenvolvimento agrcola levou a uma debi-lidade crescente na relao entre as populaes rurais eseus territrios, entre a produo de alimentos e as neces-sidades bsicas das populaes, devido, especialmente, aorompimento do processo de co-evoluo sociedade-nature-za.

    A eroso sociocultural e a perda de valores que antesorientavam as estratgias de produo e consumo e queasseguravam a manuteno de certos equilbrios ecolgicos,como parte dos mecanismos de reproduo social, causa-ram, tambm, a perda da qualidade alimentar e nutricional,como conseqncia do estreitamento da variabilidade gen-tica. No limite desse processo, os agricultores e a sociedadeem geral passaram a ter uma dieta menos diversificada, aconsumir alimentos contaminados por agrotxicos e commenor qualidade biolgica. Inclusive no meio rural, a inse-gurana alimentar de muitas famlias de agricultores estpresente e se expressa numa crescente dependncia aosmercados para a aquisio de alimentos bsicos, o que tam-bm tem como causa a reduo da diversificao da produ-o. A realidade indica a existncia de milhes de famintosque devem ser includos no Programa Fome Zero, e istoexigir um aumento na produo de alimentos bsicos e,portanto, o fortalecimento da agricultura familiar, alm denovas polticas de apoio produo e comercializao dosprodutos agrcolas da cesta bsica.

    34 ODUM, E. P. Ecologia. Riode Janeiro: Editora Guana-bara, 1986.

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    Francisco Roberto Caporal eJos Antnio Costabeber soengenheiros agrnomos, douto-res em Agroecologia e extensio-nistas rurais da EMATER/RS-ASCAR, Regional Santa [email protected]@emater.tche.br

    Sem querer dar conta dos inmeros obstculos con-junturais e estruturais que barram o alcance da seguranaalimentar e nutricional sustentvel, no h como negar obvio: so necessrios novos e urgentes avanos cientficose tecnolgicos que considerem a heterogeneidade e a diver-sidade biolgica e sociocultural presentes no meio agrcolae rural. As projees mostram que o combate fome noBrasil, atravs de programas do tipo Fome Zero, requer noapenas o aumento do poder aquisitivo dos consumidores,mas tambm o incremento da produo de alimentos bsi-cos, o que exige avanos no campo tcnico-agronmico,como forma de garantir capacidade produtiva e sustentabili-dade dos sistemas de produo.

    De igual modo, a reforma agrria e o fortalecimentoda agricultura familiar devem fazer parte das estratgias dedesenvolvimento rural, pois tm a potencialidade de contri-buir, de forma decisiva, para a produo de alimentos bsi-cos em quantidade e qualidade. A consolidao desses avan-os requer a democratizao do conhecimento, o que colo-ca nas mos de universidades, escolas agrrias e institutosde pesquisa uma importante parcela da responsabilidadeque tem o Estado de promover estilos de agricultura sus-tentvel, com base em princpios ecolgicos. Decididamen-te, a segurana alimentar e nutricional sustentvel no po-der ser alcanada sem a construo de uma agriculturatambm sustentvel.