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21.694 Capítulo 9 Segurança energética, soberania e desenvolvimento 9.1 A relação entre o consumo de energia e as políticas econômicas e sociais Em todas as sociedades, o grau de desenvolvimento aparece estreitamente associado ao consumo de energia. Isso ocorre porque, do mesmo modo que os alimentos, a energia é uma necessidade essencial dos seres humanos, com a particularidade de que ela contribui de modo decisivo para a satisfação de outras necessidades, como o transporte, a irrigação agrícola e o aquecimento das moradias. O resultado é que, no mundo moderno, os países com mais altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) são também aqueles que consomem energia em maior escala 1 . Já nos países da periferia do sistema capitalista, a ampliação do acesso aos recursos energéticos está estreitamente ligada à viabilização dos projetos de desenvolvimento e à elevação dos padrões de vida, com o aumento das oportunidades de acesso aos benefícios da modernidade. A influência da energia no desenvolvimento também se manifesta no plano econômico, devido ao forte impacto das 1 BARRÉ, 2007, p.12.

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Capítulo 9

Segurança energética, soberania e desenvolvimento

9.1 A relação entre o consumo de energia e as políticas econômicas

e sociais

Em todas as sociedades, o grau de desenvolvimento aparece

estreitamente associado ao consumo de energia. Isso ocorre porque,

do mesmo modo que os alimentos, a energia é uma necessidade

essencial dos seres humanos, com a particularidade de que ela

contribui de modo decisivo para a satisfação de outras necessidades,

como o transporte, a irrigação agrícola e o aquecimento das

moradias. O resultado é que, no mundo moderno, os países com

mais altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) são também

aqueles que consomem energia em maior escala1. Já nos países da

periferia do sistema capitalista, a ampliação do acesso aos recursos

energéticos está estreitamente ligada à viabilização dos projetos de

desenvolvimento e à elevação dos padrões de vida, com o aumento

das oportunidades de acesso aos benefícios da modernidade.

A influência da energia no desenvolvimento também se

manifesta no plano econômico, devido ao forte impacto das

1 BARRÉ, 2007, p.12.

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importações e exportações de recursos energéticos sobre a balança

comercial e a receita fiscal, assim como sobre os gastos e os

investimentos do Estado. No caso dos países latino-americanos

exportadores de energia, como México, Venezuela, Bolívia,

Equador, Colômbia e Paraguai, essas receitas constituem um

instrumento chave para políticas voltadas para o bem-estar, a

inserção social e o crescimento econômico. O bom desempenho do

setor energético também é vital porque é ele quem fornece os

insumos básicos para o conjunto do aparelho produtivo. Deve,

portanto, “contar com um financiamento satisfatório e é necessário

que alcance um desempenho que permita que os processos de

produção, distribuição e consumo sejam os mais eficazes

possíveis”2.

O grande risco, apontado por muitos analistas, é que no esforço

para incrementar os aportes de energia com o fim de impulsionar o

desenvolvimento, os objetivos ligados à sustentabilidade ambiental

sejam substituídos, no longo prazo, por objetivos de

competitividade econômica. O desafio, nesse caso, reside na

articulação de políticas nos marcos de uma visão sistêmica que

permita integrar metas de curto, médio e longo prazos.

9.2 A “maldição do petróleo”

2 ZANONI, José Rafael. ¿Qué pueden hacer las políticas energéticas por la integración? Nueva Sociedad,

Buenos Aires, numero 204, julio-agosto 2006, p. 176-185.

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Com raras exceções (a Noruega, na exploração das reservas off

shore do Mar do Norte; o Canadá, com as areias betuminosas da

província de Alberta), os países exportadores de petróleo seguem

um padrão econômico marcado pela dependência de um único

recurso. A renda petroleira gera uma situação em que o país

consegue garantir a sobrevivência econômica e a estabilidade

financeira sem a necessidade de realizar os investimentos

correspondentes. Isso pode trazer grandes vantagens políticas

imediatas, mas no longo prazo acarreta sérios riscos3. É o que

ocorreu, por exemplo, na Venezuela entre a segunda metade da

década de 1980 e o final da década de 1990, quando os preços

internacionais do petróleo despencaram e depois se mantiveram

bem abaixo dos altos patamares atingidos após o “choque” de 1973.

Sucessivos presidentes venezuelanos amargaram, então, a queda

das receitas de exportação e o aumento das taxas dos juros sobre os

empréstimos – contraídos no período de bonança petroleira com

base na crença de que as condições favoráveis do mercado durariam

para sempre. O Estado se viu, assim, impossibilitado de atender às

múltiplas demandas do eleitorado – e o país mergulhou em um ciclo

de instabilidade que culminou com o triunfo eleitoral de Chávez, em

1998.

A lógica rentista em vigor da Venezuela e nos principais

exportadores do Oriente Médio e da África corresponde ao que

muitos analistas chamam de “petroestado” – países que sustentam o

3 NORENG, Oystein. El Poder del Petroleo – La política y el mercado del crudo. Buenos Aires: El Ateneo, 2003

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progresso econômico de suas sociedades com base na renda

petroleira. Nesses países, os governos se autofinanciam com a renda

obtida das exportações de hidrocarbonetos. Isso faz com que o setor

público fique superdimensionado, ocupando espaços que em outras

circunstâncias corresponderiam ao setor privado. Assim se

configuram sociedades altamente dependentes do setor público,

com marcos institucionais débeis, e muito vulneráveis à vontade de

quem controle o governo.

Uma característica comum a todos os Estados rentistas é que a

legitimidade do regime depende da sua capacidade de distribuir

renda para diferentes setores da sociedade. Em outras palavras, os

governos “compram” a sua estabilidade, utilizando a redistribuição

da renda petroleira como um mecanismo para obter apoio social ao

regime – ou, ao menos, para neutralizar os eventuais focos de

descontentamento. Daí deriva uma série de problema, como a

debilidade das instituições democráticas, a falta de transparência

dos organismos governamentais e concentração de recursos nas

mãos de um grupo restrito de atores econômicos. Além disso, as

atividades extrativas, embora sejam altamente intensivas em capital,

absorvem pouca mão-de-obra, o que restringe seu papel como fator

dinâmico na economia. Na Argélia, por exemplo, o setor dos

hidrocarbonetos representa 48% do Produto Interno Bruto (PIB),

mas só responde por 2% do emprego total.

Em sua análise sobre os efeitos da “maldição do petróleo” no

Oriente Médio, o pesquisador norueguês Oysten Noreng apresenta

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o rentismo extrativista como um grave obstáculo para os países em

desenvolvimento:

“Devido às elevadas receitas do petróleo, a acumulação

de capital ocorre no setor público em um ritmo muito

mais acelerado do que no setor privado. O controle do

processo de acumulação passa de capitalistas privados

para burocratas do setor público e governantes

autoritários. O dinheiro proveniente do petróleo

fortalece o Estado e a burocracia e cria um sistema

político com base na centralização da renda do petróleo

nas mãos do Estado. O ingresso dessas vultuosas receitas

significa essencialmente que o Estado nesses países é um

distribuidor de renda econômica e de favores, em vez de

ser um arrecadador de impostos e distribuidor de

recursos fiscais, como é o caso na maioria dos países. A

produção privada, as exportações (não-petroleiras) e os

investimentos adquirem um importância limitada no

contexto da economia regulada de um Estado

petroleiro”4.

Nessa visão, o processo político nos “petro-Estados” se reduz à

distribuição de privilégios seletivos por parte dos governantes,

4 NORENG, 2003, p. 161.

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financiados pelas receitas provenientes do petróleo, em troca de

lealdade e apoio de um setor privado em grande parte parasitário.

O problema das análises elaboradas com base na ideia da

“maldição do petróleo” sua tendência a adotar uma abordagem

fatalista, que apresenta como inevitáveis as distorções registradas

historicamente nos países com economia dependente das receitas

dos hidrocarbonetos. O cientista político francês Guillaume

Fontaine, ao analisar a economia dos países andinos exportadores

de hidrocarbonetos – Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia – no

início do século 21, concluiu que “não existe uma relação direta

entre a abundância de hidrocarbonetos e a dependência externa”5.

Ele aponta a diferença que existe entre a situação da Bolívia – que,

apesar de ser um exportador relativamente modesto de recursos

energéticos, adquiriu uma enorme dependência em relação às

receitas do gás natural – e a da Colômbia, que não depende tanto

dessa receita, já que possui uma economia mais diversificada.

9.3 Segurança energética e soberania energética, conceitos em

disputa

É possível compreender de uma forma abrangente os principais

conflitos em torno do acesso à energia e da apropriação da riqueza

gerada por ela a partir de dois conceitos conflitantes: segurança

energética e soberania energética. Na perspectiva dos países

5 FONTAINE, 2010, p.217.

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desenvolvidos que importam petróleo e gás, como os Estados

Unidos (EUA), o Japão e os mais prósperos entre os integrantes da

União Europeia, a segurança energética é definida como “o aporte

confiável, amplo e diversificado e a preços acessíveis de

suprimentos de petróleo e gás (e seus equivalentes futuros) para os

Estados Unidos, seus aliados e parceiros – e a infra-estrutura

adequada para levar esses suprimentos ao mercado”6.

Já os países detentores de excedentes exportáveis de energia –

quase todos, sociedades que superaram sua condição colonial ou

neocolonial ao longo do século XX – se mostram inclinados a

formular suas políticas com base em um conceito alternativo, o da

soberania energética. A soberania, nesse contexto, é entendida como

o pleno uso dos recursos naturais com potencial energético pelas

sociedades onde esses recursos se situam, com vistas a atingir

objetivos de desenvolvimento econômico e social, definidos a partir

do Estado. Nos termos formulados pelo pesquisador argentino

Gustavo Lahoud, soberania energética é “a capacidade de uma

comunidade política para exercer o controle e a autoridade e para

regular de maneira racional e sustentável a exploração dos recursos

energéticos, conservando uma margem de manobra e uma liberdade

de ação que lhe permita minimizar os custos associados às pressões

6 KALICKI, Jan H.; GOLDWYN, David L.. Introduction. In: KALICKI, J.H. ; GOLDWYN, D. L. (eds.),

Energy Security – Towards a New Foreign Policy Strategy, pp. 1-16. Baltimore (EUA): Johns Hopkins

University Press, 2005.

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externos dos atores estratégicos que rivalizam pela obtenção desses

recursos”7.

Tanto o conceito da segurança energética quanto o da soberania

energética devem ser entendidos na sua historicidade, não como

ideias abstratas de interesse exclusivamente acadêmico. São

conceitos políticos, como um papel instrumental na defesa de

interesses dos atores que os empregam. O conceito de segurança

energética tem a sua origem no Choque do Petróleo, de 1973,

quando o embargo petroleiro decretado pelos países árabes da Opep

provocou, em poucos meses, uma alta de 800% nos preços. O

choque salientou a dependência dos EUA e das demais potências

econômicas – os integrantes do chamado “Norte global” – em

relação aos países exportadores de hidrocarbonetos (petróleo e gás

natural), quase todos situados no “Sul”.

A inserção dos conflitos energéticos globais em uma lógica Norte-

Sul se deve a dois motivos: a) concentração geográfica dos recursos

energéticos exportáveis no Oriente Médio, América Latina e antiga

União Soviética; b) esgotamento rápido das reservas dos EUA, país

que a partir da década de 1970 passou de exportador a importador

líquido de petróleo8.

7LAHOUD, Gustavo. Una Aproximación Teórica a la Soberanía Energética e Integración Regional Sudamericana.

Buenos Aires: Instituto de Investigación en Ciencias Sociales (IDICSO) de la Universidad del Salvador,

2005. 8 Denomina-se importador líquido aquele país em que o valor das importações de um determinado

produto ultrapassa o das suas exportações desse mesmo produto.

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A segurança energética passou, desde então, a ocupar um lugar

central nos cálculos dos países mais ricos, que encaram o acesso a

recursos de energia a preços aceitáveis como uma prioridade

estratégica. O tema foi securitizado na medida em que os EUA

passaram a incluir entre os seus “interesses vitais” a garantia do

acesso às fontes mundiais de petróleo para si e para os seus aliados.

Se é um interesse vital, justifica-se o uso da força militar para

garantir que ele seja atendido. Assim a questão partiu do âmbito

econômico para se tornar explicitamente uma questão militar.

..................................................................

SAIBA MAIS

A “securitização” de um determinado tema – como meio-ambiente,

narcotráfico, migrações e energia – ocorre quando um Estado decide

encará-lo com uma questão que põe em jogo a sobrevivência e/ou

outros interesses vitais do país. Quando um assunto é

“securitizado”, os atores estatais passam a abordá-lo sobre o prisma

da segurança nacional, o que justifica o uso ou ameaça de uso da

força militar para atingir os objetivos a ele relacionados9.

..............................................................

9 FIERKE, K.M. Critical Approaches to International Security. Cambrigde (Reino Unido): Polity, 2007, p. 102-

104.

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O tema da segurança energética permaneceu em segundo plano

nas décadas de 1980 e 1990, período em que a oferta de petróleo e

outros recursos de energia se manteve abundante e a preços baixos.

Porém a energia voltou ao topo das preocupações estratégicas

globais a partir do ano 2000, quando começou a ganhar corpo a

percepção do desequilíbrio entre o crescimento acelerado do

consumo global de energia e o ritmo mais lento da expansão da

oferta de recursos energéticos, em especial o petróleo. Foi nesse

cenário de tensão entre oferta e demanda de energia que os EUA

adotaram, durante o governo de George W. Bush (2000-2008), uma

política que defende “a maximização da oferta de recursos

energéticos em escala global”, conforme já foi exposto no Capítulo 5.

Faz parte dos objetivos da política dos EUA no campo da energia

incrementar as importações de petróleo procedentes da América

Latina, da África e da Ásia Central – fornecedores considerados

mais confiáveis do que os do Oriente Médio, região marcada pela

sua grande instabilidade política e pela presença de regimes hostis

aos EUA. Como meta complementar, o governo de Washington

também preconiza que esses fornecimentos sejam feitos de

preferência por empresas privadas e segundo critérios de mercado,

o que na prática significa o controle do petróleo, do gás e dos

biocombustíveis por empresas internacionais, sobretudo

estadunidenses.

O interesse dos EUA pela América Latina como ator estratégico no

cenário global da energia se explica pela sua condição de

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exportadora líquida de energia. Ou seja, trata-se de uma região que

envia ao exterior mais energia do que recebe de fora. Devido às

grandes reservas existentes, ela tem a capacidade de ampliar ainda

mais a participação na oferta global de energia. Mas os esforços dos

EUA em garantir o controle dos recursos da América Latina têm

esbarrado, desde o início do século 21, em uma série de obstáculos,

entre os quais se incluem:

- o ressurgimento do nacionalismo energético, impulsionado

inicialmente pela Venezuela e, ao longo da última década, adotado

como política de Estado, em maior ou menor grau, pelos principais

produtores da região;

- o fracasso da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), uma

proposta que, se tivesse sido implementada, implicaria a

integração energética do hemisfério sob o comando dos EUA;

- o fortalecimento das empresas estatais de energia na América do

Sul, acompanhando uma tendência global, ao mesmo tempo em

que a tentativa de privatização da estatal Petroleos Mexicanos

(Pemex) foi, em grande medida, bloqueada por resistências da

sociedade civil mexicana;

- o protecionismo existente nos próprios EUA, que limita a

expansão da oferta internacional de etanol de cana-de-açúcar por

países latino-americanos com condições favoráveis a esse cultivo.

Do lado da América Latina, a ideia de soberania energética é

recente, embora tenha raízes históricas no nacionalismo petroleiro

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da primeira metade do século 20 – uma tendência que deu origem

ao monopólio estatal do petróleo em vários países e ao surgimento

de empresas como a Petrobras, a Pemex, a argentina Yacimientos

Petrolíferos Fiscales (YPF) e a Petroleos de Venezuela (PdVSA). O

conceito evoluiu como parte de um movimento da resistência às

políticas neoliberais da década de 1990, que incluíram a

privatização do petróleo e do gás natural em grande parte da

América do Sul. O neoliberalismo fracassou na sua promessa de

impulsionar o desenvolvimento econômico e social, estimulando,

em reação, uma retomada das propostas de nacionalismo

econômico, que incluem a percepção de que os recursos

energéticos se tornaram objeto de uma conduta predatória por

parte das empresas transnacionais. Não por acaso, a ideia de

soberania energética irrompeu ao mesmo tempo em vários países,

justamente aqueles onde a ideia que era preciso pôr um fim à

pilhagem dos recursos energéticos adquiriu maior força.

9.4 O contencioso entre liberais e nacionalistas no campo da

energia

O tema da soberania energética ganha expressão concreta em

um vasto conjunto de questões conflituosas na América do Sul,

configurando um conflito entre, de um lado, correntes liberais,

com um discurso articulado em torno da defesa do “livre

mercado”, e, do lado oposto, os partidários da ideia da soberania

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nacional como referência central na definição das políticas

relacionadas com energia e exploração dos recursos naturais. Entre

os principais pontos de divergência entre essas duas correntes se

destacam:

a) O controle dos recursos de hidrocarbonetos: estatal ou

privado?

De um lado, os liberais defendem que as empresas privadas

podem garantir um uso mais eficiente dos recursos, em favor dos

consumidores. Do outro, os defensores da soberania energética –

genericamente chamados de nacionalistas, apesar da imprecisão

que envolve esse termo – enfatizam a necessidade do controle

estatal como um meio de garantir que a exploração se dê em

nome dos interesses da sociedade, que, em última instância, é a

verdadeira proprietária desses recursos.

b) O ritmo da exploração

No modelo privado, os recursos são extraídos por critérios

definidos pelas próprias transnacionais, ao sabor dos seus

interesses. Eles podem reduzir a extração para favorecer a

posição de outras filiais no mercado global ou, ao contrário,

acelerar a exploração para fazer baixar os preços, já que essas

mesmas empresas operam em outros setores da cadeia

produtiva, como a distribuição e o varejo. No limite, verificam-se

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casos de exploração predatória, numa lógica de curto prazo em

que a estratégia adotada pelas empresas privadas é extrair o

máximo de recursos com o menor investimento possível. Já o

controle estatal da exploração prevê que o ritmo da extração se

regulado em função de objetivos de curto e longo prazo,

definidos pelos atores estatais. No curto prazo, isso pode

significar a redução da oferta para aumentar os preços ou evitar

a sua queda, como é a prática habitual dos países da Opep. No

longo prazo, a governança energética exercida a partir do Estado

favorece que se leve em conta o caráter não-renovável dos

hidrocarbonetos. Nesse caso, a exploração deve ser planejada de

modo a considerar não apenas os interesses econômicos

imediatos, mas também a preservação dos recursos energéticos

para uso das gerações futuras.

c) A apropriação dos lucros

O modelo privatista prevê regras generosas para as empresas

estrangeiras e garantias jurídicas para os seus investimentos, de

modo a maximizar as possibilidades de atração de capitais e

tecnologias do exterior, por meio das petroleiras transnacionais.

Em contraste, o modelo nacionalista da soberania energética

enfatiza a máxima arrecadação possível por parte do Estado e

tende a rejeitar mecanismos jurídicos como a arbitragem

internacional em caso de divergências.

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d) A utilização dos recursos obtidos

Os defensores da posição privatista nos países exportadores da

América Latina atuam em conformidade com os critérios de

segurança energética dos importadores nos países centrais,

defendendo o reinvestimento dos ganhos com a exportação dos

recursos (petróleo, gás) no aumento da capacidade produtiva. Já

a ideia da soberania energética prevê a aplicação da receita

obtida em projetos de desenvolvimento econômico e social. Essa

questão é particularmente polêmica na Venezuela, onde, sob a

gestão presidencial de Hugo Chávez, os lucros da PdVSA

passaram a financiar projetos governamentais que diminuíram

pela metade a pobreza no país e melhoraram todos os seus

indicadores sociais, ao mesmo tempo em que debilitaram

parcialmente a estatal pela falta de investimentos.

e) O destino da produção

Privatistas rejeitam controles sobre o comércio dos recursos

(aceitam, no máximo, que as necessidades básicas de

abastecimento doméstico sejam atendidas). Trata-se, também

nesse caso, de uma política compatível com o enfoque de

segurança energética adotado nos países centrais, já que prioriza

as exportações da América Latina para regiões mais

industrializadas: EUA, Europa Ocidental e Leste da Ásia. Na

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ideia da soberania energética, ao contrário, a prioridade é

conferida ao mercado interno, com ênfase às políticas de

industrialização dos recursos em lugar da sua exportação em

estado bruto.

f) As cadeias produtivas

No modelo privatista, os insumos devem ser obtidos na melhor

relação custo-benefício possível (na prática, o mercado

internacional, com fornecedores, em sua maioria, estrangeiros).

Já no modelo da soberania energética, o objetivo do

empreendimento não se esgota no produto obtido pela

exploração, mas em maximizar as oportunidades de estimular o

fornecimento de insumos e equipamentos nacionais como uma

alavanca para o desenvolvimento. O dilema do governo

brasileiro em torno da infraestrutura para a exploração das

reservas de petróleo no pré-sal exemplifica, com clareza, a

diferença entre os dois enfoques. O que é melhor, comprar os

navios necessários à empreitada no exterior, a preços inferiores

aos dos equivalentes a serem produzidos domesticamente, ou

encomendar esses equipamentos a empresas com sede no

próprio país (não necessariamente de capital brasileiro), de modo

a internalizar os ganhos a serem obtidos na cadeia produtiva da

indústria naval¿ Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e

Dilma Rousseff escolheram a segunda alternativa.

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