SEBASTIÃO DIÓGENES - SOBRAMES CE - ANTOLOGIA 2012

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SEBASTIÃO DIÓGENES SOBRAMES CE ANTOLOGIA 2012 pág. 255 O CEGO ENCIUMADO Há uma crônica do Carlos Drumond de Andrade sobre um cego embriagado que provocava desordem. O poeta foi tomado de uma grande decepção. Para ele, ”Todo cego é ceguinho no coração da gente”. O cego desta narração tinha idade e estava embriagado de ciúmes. O causo. Presenciei-o no caminho da escola, mais precisamente, na praça José de Barros. O cego morava em Banabuiú e vinha aos sábados pedir esmolas em Quixadá, dia de feira. Pegava o transporte que lhe dava certo. Naquele dia, deu certo o misto, um luxo, que fazia o horário Banabuiú-Quixadá-Banabuiú. Misto, você sabe, era aquele veículo híbrido, parte ônibus e parte carroceria. Uso o pretérito porque não sei se ainda existe misto no interior. O “Misto Banabuiú” tinha categoria, apesar do “X”, e possuía três boleias, nas quais o preço da passagem era mais caro e o lugar muito disputado. O passageiro da história tinha uma guia para os seus passos, era uma moça jovem que parecia ter idade de filha. Logo se via que era, também, guia do seu coração. Ele nutria sentimentos nobres por ela e estava inconsolável, dizia impropérios ao motorista, este tipo de gente ordinária que sempre encontra um jeitinho de fazer deferências. A moça viera na boleia, ao seu lado. O cego viajara na carroceria do misto, entre os animais da feira: bodes, carneiros, porcos e aves. Ele não era burro, via as coisas! Sabia que para o motorista passar as marchas, Rita tinha de viajar com os joelhinhos afastados e a alavanca do câmbio entre eles, os joelhinhos. E para completar a tentação, o diabo do cotovelo direito do motorista não tinha prudência na hora de passar as marchas. Pois bem, o cego sabia de tudo isso, e estava descontrolado, batia a bengala na calçada e esbravejava os piores palavrões. Verifiquei a decepção relatada pelo poeta. Eu julgava que cegos não diziam coisas feias, dada a aura de candura que deles emana. O pobre homem estava arrebatado pela paixão, não parava de falar e gesticular. A rouquidão anunciava emoção excessiva, mão não havia renúncia na fala. À semelhança de refrão de uma cantiga de lamento, vociferava repetidamente: “Eu, cego de guia, vim na carroceria, no meio dos bichos. Rita, só porque tem xinim, veio na boleia!”

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SEBASTIÃO DIÓGENES – SOBRAMES CE – ANTOLOGIA 2012 – pág. 255 O CEGO ENCIUMADO Há uma crônica do Carlos Drumond de Andrade sobre um cego embriagado que provocava desordem. O poeta foi tomado de uma grande decepção. Para ele, ”Todo cego é ceguinho no coração da gente”. O cego desta narração tinha idade e estava embriagado de ciúmes. O causo. Presenciei-o no caminho da escola, mais precisamente, na praça José de Barros. O cego morava em Banabuiú e vinha aos sábados pedir esmolas em Quixadá, dia de feira. Pegava o transporte que lhe dava certo. Naquele dia, deu certo o misto, um luxo, que fazia o horário Banabuiú-Quixadá-Banabuiú. Misto, você sabe, era aquele veículo híbrido, parte ônibus e parte carroceria. Uso o pretérito porque não sei se ainda existe misto no interior. O “Misto Banabuiú” tinha categoria, apesar do “X”, e possuía três boleias, nas quais o preço da passagem era mais caro e o lugar muito disputado. O passageiro da história tinha uma guia para os seus passos, era uma moça jovem que parecia ter idade de filha. Logo se via que era, também, guia do seu coração. Ele nutria sentimentos nobres por ela e estava inconsolável, dizia impropérios ao motorista, este tipo de gente ordinária que sempre encontra um jeitinho de fazer deferências. A moça viera na boleia, ao seu lado. O cego viajara na carroceria do misto, entre os animais da feira: bodes, carneiros, porcos e aves. Ele não era burro, via as coisas! Sabia que para o motorista passar as marchas, Rita tinha de viajar com os joelhinhos afastados e a alavanca do câmbio entre eles, os joelhinhos. E para completar a tentação, o diabo do cotovelo direito do motorista não tinha prudência na hora de passar as marchas. Pois bem, o cego sabia de tudo isso, e estava descontrolado, batia a bengala na calçada e esbravejava os piores palavrões. Verifiquei a decepção relatada pelo poeta. Eu julgava que cegos não diziam coisas feias, dada a aura de candura que deles emana. O pobre homem estava arrebatado pela paixão, não parava de falar e gesticular. A rouquidão anunciava emoção excessiva, mão não havia renúncia na fala. À semelhança de refrão de uma cantiga de lamento, vociferava repetidamente: “Eu, cego de guia, vim na carroceria, no meio dos bichos. Rita, só porque tem xinim, veio na boleia!”

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As gentes da praça riam com indulgência e diziam que era fraqueza de velho.