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ESTUDAR FILOSOFIA, UM NADA!? 1 Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 13-36 SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA

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ESTUDAR FILOSOFIA, UM NADA!?

1Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 13-36

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SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVALALALALAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, volume especial, n. 6.3, p. 1-259, 2009

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR2009

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HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 13-36

Copyright © 2004 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.Centro Universitário Franciscano do Paraná

FAE – Centro Universitário Franciscano do ParanáIFSB – Instituto de Filosofia São BoaventuraSBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia MedievalInstituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected]: Nelson José HillesheimPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Paulo Arns da CunhaDiretor: Vicente KellerEditor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorialDr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College

Estocolmo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJHermógenes Harada

Revisão e editoração: Enio Paulo GiachiniDiagramação: Sheila RoqueCapa: Luzia Sanches

Catalogação na fonteScintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia SãoBoaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro UniversitárioFranciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189

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SUMÁRIO

EDITORIAL ................................................................................7Fr. Guido Moacir Scheidt

ARTIGOS ................................................................................. 11

Estudar filosofia, um nada!? ................................................ 13Hermógenes Harada

A vigência do poético na regência do virtual ........................ 37Emmanuel Carneiro Leão

Pensamento, elemento, transcendência ................................ 47Gilvan Fogel

Cristianismo e Budismo no pensamento originário ............. 65Leonardo Boff

Imensidão e asubjetividade .................................................. 71Márcia Sá Cavalcante Schuback

Eckhart e a superação da metafísica ..................................... 91Sérgio Mário Wrublevski

Alguém me tocou! ............................................................ 107Arcângelo Buzzi

Da necessidade do desnecessário ........................................ 123Frei Marcos Aurélio Fernandes, ofm.

Fontes franciscanas e formação .......................................... 155Fr. Dorvalino Fassini

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Da inacessibilidade e da jovialidade ................................... 183D. Fr. Leonardo Ulrich Steiner

A superação no primado da vontade .................................. 205Denise Quintão

TRADUÇÕES .......................................................................... 227

Zen e o começo ................................................................ 229Eiko Hanaoka (-Kawamura)

O boi e seu pastor ............................................................ 245

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EDITORIALFr. Guido Moacir Scheidt

A revista Scintilla surgiu com a finalidade de “ser uma centelha deluz, cintilação a iluminar nossa busca comum no intelecto e no espíri-to”. Assim está impresso na contracapa.

Este número é especial, tentando cumprir a mesma finalidade.Queremos homenagear Frei Hermogenes Harada, hoje com seus 80anos de vida em plena atividade na arte de pensar e iluminar os passos,tanto de religiosos como de leigos.

Como expressa o titulo, Scintilla, foram muitas faíscas se trans-formando em clareira, no caminho de tantas pessoas que conviveramou estiveram ao seu lado, meditando, refletindo o modo de vida deFrancisco de Assis.

Aprendemos a sentir o pensamento medieval como algo novo eatual para o tempo de hoje.

Nós frades tivemos a graça de tê-lo em sala de aula, no tempo deformação teológica e filosófica. A filosofia, que para alguns pareciaabstrata e fora do alcance de quem procura uma formação adequadapara a nossa realidade, torna-se comum na vida de todo ser humano. Enão só, ela se manifesta como um caminho no bem fazer o bem, nesteespaço da vida que Deus nos dá.

Dois exemplos nos ajudam a compreender a ousadia de semelhan-te homenagem.

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FR. GUIDO MOACIR SCHEIDT

Primeiro segue a história Zen: O primeiro é o de “um lutadorchamado O-nami, que significa Grandes Ondas, que reflete totalmen-te o significado do imenso valor da meditação. O-Nami era possuidorde grande força e conhecia todos os segredos do judô. Quando treina-va em particular era capaz de derrotar a todos, inclusive seu mestre.Mas em público, até mesmo um principiante o vencia. Procurou en-tão um mestre Zen para aconselhá-lo. O mestre morava num peque-no templo nas vizinhanças. ‘Grandes Ondas é teu nome’, falou o mes-tre. ‘Permanece no templo esta noite. Medita sobre o teu nome. Ima-gina o oceano’. O-nami sentou-se em meditação tentando imaginar-secomo as ondas. Gradualmente começou a sentir-se mais e mais comoelas. E começou a chocar-se com as rochas destruindo-as. Depois foiaos poucos invadindo a terra e levando tudo de roldão com sua força.Destruiu o próprio templo em que estava. O Buda no altar foi levado.No meio dos vasos de flores. Antes da madrugada nada mais restavana consciência de O-nami a não ser o ir e vir de um oceano imenso.

Quando o instrutor chegou pela manhã, O-nami, imóvel sorria.O mestre despertou-o com um vigoroso toque no ombro e lhe disse:‘Agora nada mais pode te perturbar’. Naquele mesmo dia O-nami setransformou no maior lutador do Japão1.

Quem foi discípulo de Frei Hermogenes Harada, e soube seguirsuas orientações, descobriu dentro de si a força necessária para o bemviver.

Um segundo exemplo é o da pesca: Um pescador ensinou-nos acaminhar na escuridão sem o uso de luz artificial (lanterna). Tínhamosque caminhar de madrugada ao longo da praia para alcançar uma pe-dra dentro do mar e dali lançar o anzol antes do nascer do sol. Há umaqualidade de peixe, o “Sargo”que vem à tona antes do amanhecer.

1. MERTON, T. Zen e as aves de rapina. São Paulo: Ed. Cultrix, 1968, p. 18.

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O pescador mostrou como no estourar das ondas surgem faíscasque indicam o caminho. A espuma cristalina brilha na escuridão.

Algo semelhante aprendemos no estudo, durante o tempo de for-mação. Não há obstáculo que impeça o avanço na conquista do saber.

“Grandes Ondas é teu nome”. Desperta a força que surge de den-tro e te tornarás o maior lutador.

Curitiba, abril de 2009,

Fr. Guido Moacir Scheidt

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ARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOS

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Hermógenes Harada

Resumo: No início do curso superior da filosofia, todos que ini-ciamos o estudo experimentamos ansiedade, receio, dúvida, enfim,inquietações e interrogações que precedem o começo de quaisquerempreendimentos de porte maior. No entanto, para além ou aquémdesse tipo usual e geral de inquietações e temores, surgem na disciplinado ensino e aprendizagem da filosofia dúvidas e inquietações todo-próprias acerca do próprio ser da filosofia, que poderíamos chamar deestranheza do saber chamado filosofia. Esse estranhamento pela coisaela mesma da Filosofia está no início do estudo, aumenta na medidaem que nos adentramos cada vez mais no país da filosofia, e nos fazperder o caminho para dentro do desconhecido intransitado, cuja pai-sagem do fundo nos evoca uma afinidade que sabe à disposição para epor fecunda jovialidade do ser do nada. A seguinte reflexão, num modode se aviar assaz desajeitado e inexperiente, tenta ensaiar alguns passosinseguros nas trilhas dessa paisagem.

Introdução

A referência da interrogação do título é ambígua. Diz respeito aoestudar? À filosofia? E/ou ao estudar filosofia?

Ambigüidade no começo de um curso superior não é bem vinda.Ela é tida, ora como titubeio, indecisão, dúvida, insegurança, ora comoastenia, falta de ânimo intrépido. Essa constatação, porém, nada diz,

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se não se mostra em que consiste o objeto da inquietação expressanesses termos. Ele é múltiplo. Mas, geralmente na prática, se pensa noque se pode resumir mais ou menos na pergunta: o que faço com essetipo de conhecimento, com sua graduação, seu diploma, na e para arealização do projeto da vida, individual, social, pública, que buscopara o futuro?

Quem assim aborda o começo dos seus estudos superiores já estábastante motivado no seu projeto de vida, sabe o que quer ser na vida,e por isso, escolheu esta determinada disciplina científica como meiopara alcançar o objetivo, colocado como projeto do seu futuro.

Nas disciplinas que não são Filosofia, a inquietação presente nostermos acima mencionados, expressando a preocupação inerente aocomeço de todo e qualquer curso, em relação à matéria disciplinar,não se refere em primeiro lugar nem principalmente à validade da dis-ciplina e à sua utilidade, à sua cientificidade e positividade, mas sim àcondição da possibilidade subjetiva da consecução, da realização doobjetivo do seu projeto da vida futura.

A interrogação do título desse pequeno artigo se coloca na situa-ção, vivida por quem quer estudar uma disciplina científico-acadêmi-ca no nível de graduação e pós-graduação, dentro da perspectiva doobjetivo de um projeto de vida. Mas a interrogação que expressa inse-gurança e o receio no começo de um curso universitário, acima rela-cionados à condição da possibilidade subjetiva da realização do objeti-vo do seu projeto da vida futura, é algo comum e geral a quaisqueriniciativas e empreendimentos da vida humana. Como tal, não é pro-priamente do interesse desse artigo que quer se concentrar especifica-mente no estudo da filosofia.

Diferentemente das outras disciplinas universitárias das ciênciaspositivas, aqui no estudo da Filosofia, situado dentro da ambigüidadegeral da inquietação inicial de todo e qualquer estudo superior, surge ese intensifica uma implicância estranha que vem da própria Filosofia,

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cuja manha somente aparece depois de se ter andado um bom trecho.É que, na Filosofia, interrogação, titubeio, indecisão, dúvida e insegu-rança, em suma, o sentimento da ambigüidade atinge a própria Filo-sofia, enquanto disciplina, na sua estranheza.

No estudo da Filosofia, começa-se com estranheza da disciplina.Estranheza aumenta na medida em que com ela nos familiarizamos; ese consuma num estranho nada. Nada saber, nada poder, nada ser. Daía exclamação da interrogação: Estudar filosofia, um nada!?

I – Filosofia, uma estranha “disciplina”

Por que chamamos a matéria de um saber científico, no ensino ena aprendizagem, de disciplina? A resposta parece óbvia: é porque oensino e a aprendizagem de um saber científico exigem e pressupõemempenho e desempenho bem disciplinados. A aquisição do saber cien-tífico é um trabalho, bem organizado, positivo e construtivo, de umtodo sistemático, coerente e fundamentado numa exatidão lógica, al-tamente racional. Trata-se pois, de impostação humana afinada à obje-tividade da certeza e controle. Essa imposição da objetividade da certe-za coordena, comanda a praxe do ensino e da aprendizagem; e se cha-ma disciplina. O oposto da disciplina é a indisciplina, desordem, anar-quia, o acaso, subjetivismo, o irracionalismo, o contraditório, a alógica,a assistemática.

Mas todas essas significações já fixadas da disciplina e do seu opos-to já são derivações defasadas do sentido simples, uno e imediato, maispróximo da origem da palavra disciplina que diz propriamente: a di-nâmica, o élan do aprender.

É que a palavra disciplina vem do verbo latino discere (disco, didici,discitum, discere). Discere significa aprender, saber, estudar; conhecer,tomar conhecimento, se informar.

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Assim colocada, a disciplina filosófica não tem nada de estranho.Estranho, porém, é não estranharmos essa maneira de considerar a Filo-sofia como uma disciplina do aprender, saber, estudar, conhecer, tomarconhecimento, se informar da impostação humana afinada à objetivida-de. É que a Filosofia é uma das atividades humanas, que juntamentecom a arte e a religião, possuem a maior implicação e implicância coma criatividade e a liberdade humana. Assim, o seu ensino, a sua apren-dizagem, a maneira de se estruturar e se constituir em conjunto deconhecimentos possuem o seu caminho e o seu modo de ser todopróprio. Podemos, por conseguinte, supor que a sua disciplina, i. é, adinâmica, o élan do aprender possui características todo especiais. Comoutras palavras, o verbo discere na disciplina chamada filosofia se nosapresenta como ação, cujo modo de ser deve ser observado com preci-são. Com outras palavras, o ser ativo, estudioso, inteligente, empe-nhado e competente na disciplina Filosofia tem razões que a efetivida-de e afetividade da racionalidade, da objetividade e do seu oposto, dasubjetividade desconhecem1.

1. Aprender na filosofia é ativo, passivo, reflexivo?

Seja em que língua for, na compreensão do modo de ser dos ver-bos, é de grande importância observar o significado das modalidadesdas suas vozes.

Segundo o Aurélio, num verbo, voz significa gramaticalmente:“Aspecto ou forma com que um verbo indica a ação como praticada pelosujeito (voz ativa), ou por ele recebida (voz passiva), ou simultaneamen-te praticada e recebida por ele (voz reflexa ou média)”. Sem entrar emdetalhes especializados na sintaxe gramatical dessas vozes, observemos

1. Pedimos perdão a Pascal por esse modo banal e boçal de parafrasear o seu profundopensamento. Cf. PASCAL, Blaise, Pensées (Pensamentos), edição Lafume, n. 423; ediçãoBrunschvicg, n. 277.

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o seguinte: a classificação das ações humanas em ativas, passivas e refle-xivas pressupõe a compreensão da ação humana dentro do esquema:homem, como sujeito e agente da ação, tendo como o término daintenção da ação, o objeto. Usualmente a respeito das ações humanas,delas, como já foi acima mencionado, distinguimos a fonte donde eonde se dá a ação, a saber, o sujeito. O homem é sujeito e agente dasações humanas. Como tais as ações humanas se realizam ora comoações ativas (= o sujeito agente atua sobre); como ações passivas (= osujeito sofre a atuação de outro sujeito sobre ele); e..., também comoações reflexivas. O adjetivo re-flexivo significa que na ação ativa dosujeito, se dá reviravolta na direção, de tal sorte que a ação ativa que vaisobre um objeto para fora do sujeito, se vira para o próprio sujeito,fazendo-o objeto da própria ação ativa, sofrendo-a. É como se o sujei-to fosse atingido pela ação ativa de outro sujeito, portanto, se tornassesujeito da ação passiva. Só que a ação ativa da qual se torna receptor,provém do próprio sujeito, enquanto agente da sua ação ativa. É o quediz o Aurélio: a voz reflexiva é ação simultaneamente praticada e rece-bida por sujeito. Só que aqui, o advérbio simultaneamente recebe umaacepção inexata, pois não é possível que ao mesmo tempo se dêem açãoativa e passiva no sentido preciso e rigoroso em igual tempo, pois hásempre uma prioridade temporal da ação ativa sobre a ação passiva.Isto significa que na divisão das ações humanas em ativa, passiva ereflexiva, a ação humana é considerada preferencialmente a partir daação ativa, da atuação. A dinâmica verdadeira é a atuação, é representa-da pela ação ativa.

Outra classificação da ação do verbo é em verbo transitivo eintransitivo. No transitivo a atuação da ação do sujeito transita, passapara o objeto, in-flui na coisa do objeto, mas propriamente não retor-na ao sujeito. No intransitivo, a atuação da ação não transita do sujeitoao objeto, mas permanece, fica no sujeito e agente da ação. Por isso,no verbo intransitivo não encontramos objeto. Aparentemente, o que

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na classificação anterior denominamos de reflexivo seria um variantedo intransitivo e que designamos também como sendo uma atuação

reduplicativa. A atuação da ação sai do sujeito para o objeto, mas re-

torna ao ou sobre o sujeito, se reduplicando. É o que é expresso no

verbo se perfazer. No entanto, se bem observarmos, considerar sem

mais a atuação intransitiva com a reduplicativa ou reflexiva pode nos

induzir a imprecisão, a saber, a de equiparar a classificação da atuação

da ação do verbo em voz ativa, passiva, reflexiva à do verbo transitivo e

intransitivo. Essa equiparação é possibilitada por uma pressuposição

ou pré-conceito tacitamente admitido em geral de que a atuação exce-

lente e propriamente dita da ação é a voz ativa; e que a passiva é uma

não ação. A classificação do verbo em transitivo e intransitivo – e este

como variante do reflexivo no sentido do reduplicativo – conserva em

si ainda de algum modo no intransitivo o que é insinuado na assim

chamada voz medial.

Depois dessa observação acerca da classificação da atuação da ação

do verbo, lancemos a modo de “chutação”, aqui assinalada com empáfia

como hipótese especulativa, a seguinte colocação:

Voz média não significa propriamente voz que fica entre ativa e

passiva, digamos, assim meio a meio, mas referente ao “médium”. Daí

medial. Médium aqui é latim e significa: permeio, ambiência, o modo

de ser que dá o todo na sua concreção de pregnância, a entonação, a

tonalidade, o colorido. Outra insinuação do médium é humor, at-

mosfera, sabor no uso da expressão “este pão sabe a panetone”. É o quê

ou o como, dito na palavra presença. É a ência do pré. O termo pré

indica antecedência. Ência, vigência, essência, ser. Vejamos de alguma

forma a dinâmica da estruturação do ser dessa antecedência. Tente-

mos, pois, atentar essa transcendência imanente, o a priori que é, em

tudo e a tudo que é e não é; que se torna e deixa de ser, em sendo, cada

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vez a seu modo ente e não ente em concreção, em crescimento coinci-dente, cada vez diferente na auto-identidade da sua dia-ferênia.

A nossa reflexão hipotética se limita apenas a dizer que o próprio

do empenho e desempenho do estudo da Filosofia é, para quem ensi-

na e quem aprende, adentrar a disciplina, i. é, o élan da dinâmica do

mover-se na ação medial2.

2. Parábola e seu plágio

Para de alguma forma poder dizer isso, recorramos a um trecho da

conferência, intitulada Supervisão e orientação na área dos meios pictóricos e

sua ordenação espacial 3 de Paul Klee, quando ele fala desse “tipo” de “coi-

sa”, ilustrando-o com a imagem de uma árvore. Essa ilustração de Klee é

uma parábola. Pará bola é uma palavra lançada a alguém, um projétil que

lhe passa bem a lente, quase o atingindo por um triz, no seu âmago, acor-

dando-o para o que lhe subjazia oculto como seu ser. O comentário que

aqui segue depois do texto citado de Klee é plágio. Plágio é uma cópia mal

feita da parábola bem dita que atinge e cordializa o essencial da causa da

comunicação, i. é, da linguagem. Por ser cópia mal feita, não possui a força

da chamada da pro-vocação vital, e assim se esvai em blá-blá formal. É

nesse sentido que se diz: não diz coisa com coisa.

2. Dito de modo exagerado, o verbo discere, independente de sua forma gramatical, éno seu ser uma ação medial. E, radicalizando a exageração, todas as ações humanas,originariamente, antes de ser ativas, passivas e reflexivas, substancialmente, essencialmen-te são simplesmente mediais. Cf. A conclusão dessa reflexão.

3. KLEE, Paul. Übersicht und Orientierung auf dem Gebiet der bildnerischen Mittel und ihreräumliche Ordnung, conferência pronunciada aos 26.01.1924, por ocasião de uma expo-sição de quadros, na Sociedade artística de Jena. O texto foi publicado pela primeira vez em1945, sob o título Paul Klee, Über die moderne Kunst (Sobre a Arte Moderna), editoraBentell, Bern. On modern art, tradução de Douglas Cooper, Bentell, Bern, 1945.

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Antes, porém, de citar o trecho de Klee, como introdução ao que

segue, apenas ouçamos o que o poeta pensador alemão, do século XVIII,

Johann Peter Hebel4 diz acerca do ser humano, do que é o seu pró-prio, a saber, da existência:

3. Parábola

“Nós somos plantas, que – o possamos gostar ou não de confessar– devemos subir, da terra, com as raízes, para poder florescer no éter etrazer frutos”5.

Diz Klee:Deixai que use uma comparação, a comparação da árvore. Oartista se ocupou com esse mundo de multifária configuração ese arranjo, – é o que queremos supor – bem de certa maneira alidentro, de todo, silenciosamente.Ele ali está tão bem orientado que pode ordenar a fuga dosfenômenos e das experiências. A essa orientação nas coisas danatureza e da vida, a essa ordenação cifrada em enigmas múlti-plos e ramificados eu gostaria de comparar à raiz da árvore.Daí fluem ao artista as seivas para irem, através dele e através doseu olho. Assim, o artista está no lugar do tronco.Pressionado e movido pela força daquele fluxo, ele conduz adianteo intuído para dentro da obra.Como a copa da árvore, visivelmente se desdobra temporal eespacialmente para todos os lados, assim acontece também coma obra.A ninguém há de ocorrer idéia de exigir da árvore que ela formea copa exatamente como a raiz. Todo mundo há de compreen-der que não pode haver nenhum espelhamento reflexo exatoentre em baixo e em cima. É claro que as diferentes funções emdiferentes dimensões elementares devem temporalizar vivas de-clinações diferenciais.

4. (1760-1826) pastor protestante, poeta-pensador e educador.

5. HEBEL, Johan Peter, Obras, editadas por Wilhelm Altweg, Editora Atlantis, Zuriquee Frigurgo i. Br., 1940, volume III, p. 314.

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Entrementes, no entanto, quer se vetar justamente ao artistaessas pictoricamente já necessárias declinações que se afastamdos protótipos. Foi-se tão longe no zelo, a ponto de acusar oartista de impotência e de falsificação intencionada.E ele, no entanto, no lugar a ele indicado junto do tronco nãofaz outra coisa do que recolher o que vem da profundeza e con-duzi-lo adiante. Nem servir, nem dominar, apenas mediar.Ele, pois, ocupa uma posição modesta, verdadeiramente. E elemesmo não é a beleza da copa, ela só passou através dele.(...)Gostaria, agora, de considerar a dimensão do objeto num novosentido para si e ali tentar mostrar como o artista vem muitasvezes a uma tal deformação aparentemente arbitrária da formanatural do aparecer.Por sua vez, ele não dá a essas formas naturais do aparecer aimportância obrigatória como o fazem os muitos realistas queexercem crítica. Ele não se sente tão ligado a essas realidades,porque ele não vê nessas formas terminais a essência do processonatural da criação. Pois para ele há mais interesse nas forças queformam do que nas formas terminais. Sem o querer, seja eletalvez, justamente, filósofo. E se não faz como os otimistas queexplicam este mundo como de todos os mundos, o melhor e setambém não quer dizer que esse nosso mundo circundante sejaruim demais para tomá-lo por exemplo, diz ele, no entanto as-sim:O mundo, nessa sua configuração formada, não é o único detodos os mundos!Assim, o artista olha as coisas que a natureza formou e lhe fazdesfilar diante dos seus olhos com mirada penetrante.Quanto mais profundamente mira, tanto mais facilmente eleconsegue distender os pontos de vista, de hoje para ontem. Tan-to mais lhe impregna no lugar de uma figura pronta da nature-za, a figura somente ela essencial da criação como a gênese.Então, se permite também o pensamento de que a criação hojemal poderia estar concluída, e com isso, estende aquela açãocriativa do mundo, de trás para frente, dando duração à gênese.Ele avança ainda mais.Diz para si, ficando desse lado: Esse mundo apareceu diferentee ele há de aparecer diferente.

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Tendendo para além, porém, pensa: Nas outras estrelas se podeter vindo, de novo, a formas de todo diferentes.Tal mobilidade nos caminhos naturais da criação é uma boaescola de formas.Ela consegue mover a quem cria, do seu fundo, e ele mesmo jámóvel, há de cuidar da liberdade do desenvolvimento para seuspróprios caminhos de configuração.A partir dessa impostação a gente deve ter como a seu favor,quando o artista esclarece o presente estágio do mundo do fenô-meno que lhe diz respeito, como casualmente bloqueado, blo-queado temporal e localmente. Como demasiadamente delimi-tado em contraposição ao intuído profundamente e sentido vi-vamente por ele.E não é verdade que, já o relativamente pequeno passo do olharatravés do microscópio faz desfilar diante dos olhos figuras, quenós todos haveríamos de declarar como fantásticas e exacerba-das, se, sem pegar o pivô da coisa, as víssemos de todo por acasoem algum lugar?Senhor X, porém, ao dar de cara com uma cópia de tal figura,haveria, numa revista sensacional, de clamar indignado: isto se-riam formas naturais? Isto é, sim, o pior dos comércios de arte!Portanto, o artista, pois, se ocupa com microscópio? História?Paleontologia?Apenas a modo de comparação, apenas no sentido da mobilida-de. E não no sentido da possibilidade de um domínio do con-trole científico da fidelidade à natureza!Apenas no sentido da liberdade!No sentido de uma liberdade que não conduz a determinadasfases de desenvolvimento, que uma vez na natureza foram assimexatamente ou hão de ser ou que em outras estrelas (um diatalvez uma vez constatáveis) poderiam ser justamente assim, masno sentido de uma liberdade, que apenas exige o seu direito deser igualmente assim móvel, como o é a grande natureza.Do exemplar para o arquétipo!Arrogante seria o artista que aqui, logo fica metido em algumcanto. Chamados, porém, são os artistas que hoje penetram atéa uma certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a leioriginária alimenta os desenvolvimentos.Lá, onde o órgão central de toda a mobilidade espaço-temporal,chame-se ele cérebro ou coração da criação, ocasiona todas as

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funções. Quem como artista não gostaria de morar lá?No seio da natureza, no fundo da origem da criação, onde achave do mistério para tudo jaz guardada?Mas não todos devem para lá! Cada qual deve-se mover ali, aon-de a batida do seu coração acena.Assim no seu tempo, nossos antípodas de ontem, os impressio-nistas tinham plena razão, em morar junto dos rebentos da raiz,junto do cerrado-chão dos fenômenos cotidianos. O pulsar donosso coração, no entanto, nos empurra para baixo, profunda-mente para baixo, para o fundo abissal.O que então cresce do impulso desse fundo, chame-se ele comoquiser, sonho, idéia, fantasia é de todo para se tomar a sério, seele se liga sem reserva à configuração com os meios pictóricosadequados.Então, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidadesda arte, que levam a vida um tanto mais adiante do que parecemedianamente. Porque elas não reproduzem só o visto, mais oumenos de modo bem temperamental, mas fazem visível o intuídona intimidade oculta (geheim).

II – Filosofar é ser medial

Filosofia é filosofar. Filosofar é ser. Ser é medial.

A seguir, tentemos a modo de plágio, comentar o texto-parábolade Klee. E isto com a expectativa de que se estabeleça de algum modoa seqüência acima formulada, explicando a atuação da ação do verbona voz medial.

1. Sujeito-ato-objeto na existência artística

O mundo da arte é comparado ao mundo natural, da árvore. Omundo da arte se constitui de artista, de sua ação criativa e de produtosdessa ação, de obras ou objetos artísticos e de tudo quanto se refere aeles. A relação entre os elementos constitutivos do mundo da arte se

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estrutura no esquema sujeito-ato-objeto. Em Klee esses elementos, nacomparação, se dão da seguinte maneira: o artista; este se ocupa e searranja; com o mundo de multifária configuração. E ali, no mundo demultifária configuração, o artista está bem orientado e ordena a fuga dosfenômenos e das experiências. Essa orientação nas coisas da natureza e davida, essa ordenação cifrada em enigmas múltiplos e ramificados Kleecompara à raiz da árvore.

a) Sujeito

Na maneira corriqueira de usar o esquema acima mencionado su-jeito-ato-objeto, o que aqui Klee compara à raiz da árvore, a saber, orien-tação e ordenação, é colocado dentro do sujeito, na sua mente, comoatos que classificam e ordenam os objetos ali ocorrentes diante e aoredor do sujeito-homem. Essa colocação considera no fundo o pró-prio sujeito homem como raiz e passa por cima do que Klee acentuacom insistência: que o artista é tronco, ele é apenas passagem. Klee nãofala nem do sujeito nem das suas ações. Fala do artista. O artista, detodo e em concreto, é o ente cujo ser é existência. Aqui, ser é responsa-bilidade por e para ser cada vez, na absoluta liberdade de ter que sercomo mundo: artista é ab-soluta ocupação, a soltura livre por e para aprenhez de cuidado da con-creção e con-creação como mundo demultifária configuração; e se perfaz na in-sistência dessa ação. Ali se dáa realização da realidade arte: o artista se ocupa e se arranja, se justifica,torna-se real a partir e dentro da possibilidade denominada arte: estáem casa, está adentrado no âmago, no imo da vigência, no todo dapossibilidade de ser: é ser-no-mundo.

Essa pré-sença antecedente não antecede nem sucede, mas qual dis-creta diligência retraída entoa, compenetrada num silêncio claro, tudoque é e não é, tudo que antecede e sucede. Assim, de antemão, a priori,sem antecedência e sem seqüência se dá um quê todo próprio, que

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penetra, impregna, recolhe e dá volume, consistência, densidade aotodo da possibilidade de ser, e faz ver tudo a partir e dentro, sob oesplendor, i. é, sub specie, do ser arte. Em vez desse modo enrolado eindiferenciado de dizer, Klee fala com cuidado e discrição de orienta-ção nas coisas da natureza e da vida. Essa orientação que ele compara àraiz da árvore aparece como ordenação, cifrada em enigmas múltiplos eramificados. Dessa orientação, dessa raiz fluem ao artista as seivas parairem, através dele e através do seu olho. (...) Pressionado e movido pelaforça daquele fluxo, ele conduz adiante o intuído para dentro da obra. Énesse processo da gênese da obra que Klee coloca o artista como passa-gem, na tarefa de ser passagem: Assim, o artista está no lugar do tronco.

Por conseguinte, o artista não é nem sujeito, nem agente da obra.E ele, no entanto, no lugar a ele indicado junto do tronco, não faz outracoisa do que recolher o que vem da profundeza e conduzi-lo adiante.Nem servir, nem dominar, apenas mediar.

Ele, pois, ocupa uma posição modesta, verdadeiramente. E ele mes-mo não é a beleza da copa, esta só passou através dele.

Trata-se, pois, da mediação, do modo de ser do médium, da açãomedial. Mediação, o perfazer-se na e como mediação, ser médium dopermeio não é ao modo da atuação ativa, passiva, reflexiva, não é nemobjetiva nem subjetiva, é apenas surgir, crescer e consumar-se comoobra. É o nada silencioso e retraído, sempre cuidadoso e diligente,onipresente em todos os momentos da gênese da obra de arte, em setornando, em sendo, cada vez novo e de novo. E o mundo da obraque surge, é como a copa da árvore: visivelmente se desdobra temporale espacialmente para todos os lados. (...) Todo o mundo há de compreen-der que não pode haver nenhum espelhamento reflexo exato entre embaixo e em cima. É claro que as diferentes funções em diferentes dimen-sões elementares devem temporalizar vivas declinações diferenciais.

São a orientação, a fonte, a raiz de onde fluem inspiração e toquesda atuação medial da ação de mediar, que ordenam as diferentes fun-

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ções em diferentes dimensões elementares e que devem temporalizarvivas declinações diferenciais nas obras; por sua vez atuam cifrados emenigmas múltiplos e ramificados, constituindo a “lógica” da arte na suacriatividade.

Resumindo o que Klee nos disse até agora, temos o seguinte:• orientação (na raiz das raízes)• ordenação (raízes) • abre-se em: inspirações e toques da orde-nação, codificados em enigmas múltiplos e ramificados• o artista (tronco): mediação, passagem, atuação da ação me-dial• o mundo das obras de Arte, de multifária configuração na fugados fenômenos e das experiências da existência artística (a copa, osgalhos).

b) Objeto

Para nós, hodiernos, as obras da ação criativo-medial da mediaçãoartística são consideradas como efeitos, causados pelo homem-sujeito,i. é, sub-stância de sustentabilidade e agenciamento da produtividadeestética. Assim, obras são o conjunto de objetos, de diversos tipos,mas todos referidos à interpelação produtiva do agenciamento dessesistema objetivo da estética.

O mundo das obras de arte, de multifária configuração na fugados fenômenos e das experiências artísticas, orientado e ordenado pelaatuação da ação medial da artista-mediação não é objeto. Não são somade objetos do sistema, mas estruturações concretas de eclosões, cresci-mentos e consumações da possibilidade de ser na natureza e vida. São,antes, diferentes funções da dinâmica de ordenação sob o toque da orien-tação proveniente das profundezas da possibilidade de ser, quetemporalizam e se fazem visíveis em diferentes dimensões elementares,como vivas declinações diferenciais. A linguagem, i. é, o modo de vir asi, o tornar-se, o destinar-se no tempo e no espaço, portanto, a

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epocalidade dessa estruturação é o mundo e sua mundidade. Assim,mundidade não pode ser compreendida plenamente na lógica da obje-tividade, correlativamente também não na da subjetividade.

Assim, na sua Confissão criativa6, diz Klee: Arte não reproduz ovisível, mas faz visível.

Mas faz visível o que?

Ao considerar a dimensão do objeto num novo sentido para si, asaber, como mundo, e ao nos convidar a ver a obra de arte, não comoesse e aquele objeto ali ocorrente, mas como forma terminal de todoum movimento da vigência e da dinâmica de formação criativa, en-quanto realização da realidade inesgotável da possibilidade da arte, Kleeresponde a essa pergunta: Arte faz visível a existência artística comotrilha do retorno à origem da força formativa do mundo dasestruturações artísticas. Nesse sentido, no inter-esse da existência artís-tica, o artista não dá a essas formas naturais do aparecer a importânciaobrigatória como o fazem os muitos realistas que exercem crítica. Ele nãose sente tão ligado a essas realidades, porque ele não vê nessas formasterminais a essência do processo natural da criação. Pois para ele há maisinteresse nas forças que formam do que nas formas terminais.

(...) Assim sendo, o mundo, nessa sua configuração formada, não é oúnico de todos os mundos! A mira da aberta na existência artística quantomais profundamente ela mira, tanto mais facilmente consegue distenderos pontos de vista, de hoje ali ocorrente para ontem, para a estruturaçãoda origem, tanto mais, em vez de ficar parada no lugar de uma figurapronta da natureza e/ou da vida, impregna as configurações das for-mas terminais com a vigência da força abissal da possibilidade,“nadificando”-as com a plenitude da entificação finita, em cuja possi-

6. KLEE, Paul, Schöpferische Konfession, publicada pela primeira vez em “Tribüne derKunst und Zeit”, editada por Kasmir Edschmid, na editora Erich Reiss, Berlim, 1920.

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bilidade onipresente reflui, aliás, como forma sem forma, somente elaessencial da criação como o gênese, crescimento e consumação.

Essa mira, a visão translúcida, situada no mundo das formas ter-minais, vai por assim dizer atravessando camadas de formas termina-das, fixadas como pressuposições, classificações e padronizações do quese fez na e da natureza, do que se fez na e da vida; vai subindo eadentrando a modo de contracorrente o fluxo da força formadora, emretorno ao toque inicial da origem e agiliza a prontidão da aberta doex-sistir artístico numa mobilidade cada vez mais disposta, generosa elivre. Essa mobilidade livre consegue mover a quem cria a vitalidade dacontenção a partir do seu fundo; e ele mesmo, uma vez vitalizado e jámóvel, há de cuidar da liberdade do desenvolvimento para seus próprioscaminhos de configuração, seguindo os ductos da ordenação e da orien-tação que vem da raiz, cuja origem é abismo insondável e inesgotávelda possibilidade de ser.

Portanto, se o artista, enquanto ex-sistência artística, é tronco que épassagem, não faz outra coisa do que recolher o que vem do abismo daprofundeza e o conduz adiante; se ele nem serve, nem domina, mas apenasmedia; se ele, verdadeiramente, pois, ocupa uma posição modesta de sermedial; e assim, se ele mesmo não é a beleza da copa, que só passa atravésdele; então, nesse nada de função medianeira, ele apenas deixa ser ? a orien-tação (raiz das raízes) que conduz ? a ordenação (raízes); esta por sua vez seabre em inspirações e toques da ordenação, codificados em enigmas múl-tiplos e ramificados; e deixa eclodir o mundo das obras de arte, de multifáriaconfiguração na fuga dos fenômenos e das experiências da existência artística(a copa, os galhos). Ora, se é assim, então esse movimento, essa mobilida-de, representada estaticamente como seqüência ocorrente de fundamen-tos, a modo de causa e efeito, a modo meta-físico não é compreendidaadequadamente. A terra na qual se assenta a raiz se adentrando nela é con-siderada como um ente absoluto, imutável, perene, um Ser, que causa e dáo fundamento absoluto a outros entes, representados na comparação como

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partes componentes da árvore como: raiz das raízes, raízes, tronco, galhosprincipais, galhada, folhagem e flores e frutos, portanto, como a copa.E tudo isso, numa hierarquia de causas e fundamentos como camadasde entidade fixa em diferentes níveis de excelência do ser. A compara-ção da árvore, se a olharmos externamente como partes de um todo,pode nos induzir a essa maneira defasada de entender a comparação deKlee. Ao passo que a precisão, a simplicidade certeira da sua exposiçãoconcreta da estruturação da origem da e na existência artística, da e naobra de arte, nos apresenta a con-juntura da dinâmica de estruturação,na qual todos os elementos se referem à origem, i. é, ao toque doabismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser, em multifáriasfunções do mesmo, na mobilidade e na liberdade da soltura ab-soluta da ena vigência da criatividade.

Tudo isso quer dizer: o artista, cujo ser é existência artística, comdiligente preocupação, cuida de tudo, tudo se lhe torna função e refe-rência da busca da criatividade, de tal modo de tudo que se pergunta:o artista, pois, se ocupa com microscópio? História? Paleontologia? Quími-ca? Psicologia, Sociologia etc., etc. ?

Responde Klee: apenas a modo de comparação, apenas no sentido damobilidade. E não no sentido da possibilidade de um domínio do controlecientífico da fidelidade à natureza, portanto, da objetividade. Mas então,essencialmente, radicalmente, em que modo, em que sentido?

Apenas no sentido da liberdade! No sentido de uma liberdade,que não conduz a determinadas fases de desenvolvimento, queuma vez na natureza foram assim exatamente ou hão de ser ouque em outras estrelas (um dia talvez uma vez constatáveis) po-deriam ser justamente assim, mas no sentido de uma liberdade,que apenas exige o seu direito de ser igualmente assim móvel,como o é a grande natureza.Do exemplar para o arquétipo!Arrogante seria o artista que aqui, logo fica metido em algumcanto. Chamados, porém, são os artistas que hoje penetram até

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certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a lei originá-ria alimenta os desenvolvimentos.Lá, onde o órgão central de toda a mobilidade espaço-temporal,chame-se ele cérebro ou coração da criação, ocasiona todas asfunções. Quem como artista não gostaria de morar lá?No seio da natureza, no fundo da origem da criação, onde achave do mistério para tudo jaz guardada?Mas, não todos devem para lá! Cada qual deve-se mover ali,aonde a batida do seu coração acena.Assim no seu tempo, nossos antípodas de ontem, os impressio-nistas tinham plena razão, em morar junto dos rebentos da raiz,junto do cerrado-chão dos fenômenos cotidianos. O pulsar donosso coração, no entanto, nos empurra para baixo, profunda-mente para baixo, para o fundo abissal.O que então cresce do impulso desse fundo, chame-se ele comoquiser, sonho, idéia, fantasia é de todo para se tomar a sério, seele se liga sem reserva à configuração com os meios pictóricosadequados.Então, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidadesda arte, que levam a vida um tanto mais adiante do que parecemedianamente. Porque elas não reproduzem só o visto, mais oumenos de modo bem temperamental, mas fazem visível o intuídona intimidade oculta, na qual sempre já estamos e sempre denovo vamos estar como em casa (Geheim)7.

2. Mas de que estamos falando? Da arte ou da filosofia?

Sem dúvida alguma, da filosofia. Estamos perguntando, a atuaçãoda ação chamada Filosofia, seu ensino e sua busca, a dinâmica do traba-lho, do empenho e desempenho do aprender a Filosofia, portanto, a dis-ciplina filosófica é a modo medial?

7. Em alemão o prefixo Ge conota ajuntamento, recolhimento, densificação. Heimsignifica lar, em casa. Geheim, Geheimnis, significa mistério, o per-meio, o toque maispróximo a nós mesmos do que nós a nós mesmos.

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Mas então para quê toda essa fala da arte e da sua gênese? Filosofianão pertence à dimensão racional do homem, à sua mais alta excelên-cia (metafísica) para uns, para outros, à época histórica do passado,mas que serviu para despertar a humanidade da irracionalidade (dasuperstição, da religião) e nos fez evoluir para a excelência suprema dosaber racional, a saber, das ciências modernas? E a arte por sua vez nãopertence à dimensão irracional do sentimento, da emoção e intuiçãodo coração, portanto à área da subjetividade, oposta à da objetividade?

A justificativa para ilustrar a estruturação interna do estudo da fi-losofia através das palavras de Klee, que fala da essência da arte, nós arecebemos do próprio Klee, quando ele ao caracterizar o inter-esse doartista diz: ele não se sente tão ligado a essas realidades, porque ele não vênessas formas terminais a essência do processo natural da criação. Poispara ele há mais interesse nas forças que formam do que nas formas ter-minais. Sem o querer, seja ele talvez, justamente, filósofo.

Segundo a afirmação de Klee, o inter-esse essencial do artista, asaber, o de ir à origem da sua dinâmica criativa, portanto, o retorno aotoque inicial donde atua a força formadora das formas terminaisocorrentes como do mundo já ali constituído da arte seria o mesmodo filósofo: nisso de buscar na origem, na sua gênese o abismo da pos-sibilidade de ser, nisso sem o querer seja ele talvez, justamente, filósofo.Há portanto, entre filosofia e arte uma afinidade de fundo. E talvezpossamos acrescentar: e também há a mesma afinidade de fundo coma religião. Isso, admitindo-se como hipótese inicial que entre inúme-ras atividades que preocupam a humanidade, há três verbos, i. é, ações,a saber, poetar, pensar e crer, em cujo seio ainda se contém o frêmito degrande saudade e indigência pela plena soltura da ab-soluta liberdade.Poetar é vigor de origem que vem à fala na arte e quando defasada seinstaura como estética; Pensar é vigor da origem que vem à fala nafilosofia e quando defasada se instaura como ideologia; e crer é vigorda origem que vem à fala na Fé e quando defasada se instaura como

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religião. Trata-se de totalidades, de mundos cuja mundidade são dife-rentes, mas que possuem afinidade de fundo, cuja identidade, não maispode ser compreendida como generalidade, comunidade, igualdade,significados esses, agenciados nos termos usados como óbvios na esté-tica, na ideologia, e na religião. A sensibilidade pelo sentido do ser detodos esses termos, somente começa a tornar-se busca, questão, quan-do o ser da arte, o ser da filosofia e o ser da fé, não mais é consideradocomo uma das atividades entre outras atividades dos nossos afazeres,mas como o destinar-se historial da própria autonomia, como existên-cia. Poetar, pensar e crer, existência artística, existência filosófica e exis-tência crente, sua identidade e diferença é um tema que extrapola afinitude de nosso ensaio, se não o abordarmos com um novo cuidado,discrição e ânimo próprio. Por isso, aqui deixemos apenas menciona-da a questão, para nos justificarmos porque citamos um longo textode Klee para refletir acerca do ser do estudo da filosofia.

III – Um nada?!

Depois de todo esse blá blá que não disse coisa com coisa por serplágio, enrolados e emaranhados, voltemos ao problema do começo,onde constatamos como fato a seguinte situação: em todo o começodo estudo, principalmente quando se trata de adquirir, dominar e ge-renciar o saber superior como um excelente instrumento para umadeterminada meta a ser alcançada. Nessa perspectiva, tudo quanto nãopossui o modo de ser da mira (cf. do fuzil), clara e distinta, exata ecerteira é tido por inseguro, duvidoso, defasado, interferência a sereliminada da busca de objetivo e objetividade na meta. Esse modo deinterpelação produtiva cria uma consciência do poder e eficiência, quese faz necessária cada vez mais, na medida em que tal intencionalidadefascina e impregna o agir, julgar e ver no usufruto de tudo transformar,tudo produzir, tudo processar para criar um novo mundo, isento de

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dor, sofrimento, fraqueza, titubeio, de ambigüidades e incertezas, isentode tudo isso que acena para a diferença de fundo. Toda e qualquerinstituição de ensino, aprendizagem e pesquisa, na medida em que não

apenas funciona correta-politicamente, seguindo os padrões e as medi-

das impostas pela publicidade do poder dominante, um dia vai ter que

colocar questões que tocam o fundo, a raiz de toda e qualquer posição

fundamental das nossas impostações disciplinares das matérias do en-

sino, aprendizagem e pesquisa do saber, não em referência à excelência

e ao valor da medida e do critério que ali operam como óbvios, mas

enquanto o sentido do ser do todo que ali se constituiu como mundo

estabelecido, a partir da mobilidade e da liberdade de um toque da

possibilidade de ser. Repetindo, nesse ânimo da busca de aprofunda-

mento ou do retorno pela origem, pela gênese in-tuitiva, para dentro

do abismo insondável da possibilidade de ser, Filosofia e Arte são afins.

O artista e o filósofo, no toque do poetar e do pensar, são animais de

fundo. Seu existir é conter-se, manter-se, é ser aberta do fundo abissal,

suspenso ao e no nada. Esse nada não nadifica, apenas entifica, até

mesmo a nadificação. É a imensidão, profundidade, a magnanimida-

de, livre, solta, generosa, serva e moça, cada vez ali jovial, disposta,

apenas disposta, sem nada poder, sem nada querer, sem nada saber,

sem nada ser e/ou não ser, a não ser pré-sença. Pré-sença alegre no

cuidado finito, recatada e diligente em tudo recolhendo e acolhendo

sob a sombra da sua ab-soluta soltura da mobilidade e liberdade dapossibilidade agraciante, ou melhor agradecida. Os entes no seu todo,seja o que e como for, nascem, crescem e se realizam através da huma-nidade, como eclosões do mundo e sua mundidade. E a existência, nafiel sistência no ex; é a grata e agraciada mira da maravilha, do instanteda passagem livre da reviravolta do e para a possibilidade de ser e nãoser, é a privilegiada filha da liberdade abissal e vivificante do Nadainominável.

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Conclusão

Insatisfeitos, concluamos esse plágio, perguntando: o que tem aver tudo isso com a ambigüidade no começo do estudo da disciplinachamada filosofia e as vozes ativa, passiva, reflexiva ou média ou me-dial do verbo?

Talvez as inúmeras inquietações encontradas no começo do estu-do, i.é, do zelo e empenho do ensino, aprendizagem e pesquisa daFilosofia – para além ou aquém de todas e quaisquer inquietações,apresentadas pelo começo de quaisquer ações em geral de qualquerempreendimento humano –, dirigidas desde o começo ao próprio serda Filosofia, não tenham algo a ver, ou melhor, tudo a ver com oNada Inominável que nos visita em todas as vicissitudes da existência,em tudo que é e não é, em tudo que se torna e se consuma, em tudoque prospera e definha, cada vez, sempre, no começo, no meio e nofim, a cada instante como sentido do ser? E assim ao vir de encontro,nos visitando, se retrai e se esconde, nos atraindo sempre de novo paradentro de um permeio, de uma ambiência, re-cordando um sabor,uma entoação, uma afinação de fundo longínquo, nos envolvendo,nos impregnando com a proximidade, com satisfação in-quieta de es-tar em toda parte, em casa?

Mas e a voz medial?

Não é assim que na medida em que nos enredamos nas inúmerase variegadas trilhas da Filosofia, começamos a perceber que o que im-porta é ficarmos intrigados cada vez mais e sempre de novo com overbo ser?8 Pois, seja qual for a interpretação que dermos a esse verbo,seja em que escola e corrente de Filosofia, o ser sopra sob mil e miltonalidades em todos os verbos do nosso falar, seja na voz ativa, na

8. A designação outrora dada ao verbo ser era verbo substantivo. Talvez em vez de sub-stantivo possamos dizer pré-sencial?

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passiva, na reflexiva. E assim, em suma, ser é a ação de fundo, a açãoonipresente em todas as atuações de todas as nossas ações e não ações.Não será por isso que as trilhas da disciplina filosófica, seja qual for omodo de ser de suas sendas, mais cedo ou mais tarde, se perdem naclareira do in-transitado, denominado questão do sentido do ser?

E..., o que os antigos denominavam de medial, que hoje defasado,

restou como voz reflexiva do verbo, não seria propriamente o modo

da possibilidade de ser que é o modo originário, elementar e primeiro

de todas as ações, paixões, recepções e reações reflexivas, portanto, a

potência, a possibilidade dada de antemão, a priori, como entoação do

Nada, onipresente, retraído no pudor e na continência da plena liber-

dade da sua jovialidade? Antes de e em todas as possíveis e atuais vari-

antes de entidades, silencioso, modesto e discreto é o nada, antes e

depois, dentro e fora do ser e nada, de tudo e nada, em sendo o cons-

tante sustento da ocorrência do simplesmente dado, de tal modo sim-

ples que se é, antes e sem precisar dizer que ser e pensar é o mesmo. A

correspondência da existência filosófica, do empenho e zelo, do estu-

do da e para a disciplina Filosofia não seria retornar a ser sempre em

repetição in-sistente o silêncio do nada, a voz medial, o permeio de

todas as coisas, das que são e não são? Ser assim nascituros de todo a

cada momento no corre-corre das atividades, atuações, das passivida-

des e depressões, e das suas reações, no afã dos nossos afazeres, e sem-

pre de novo dar reviravolta de retorno para e na disposição da soltura,

na liberdade da existência por e para o abismo inesgotável de ser filhos

e filhas do Nada, não seria isso o que os bem antigos gregos do início

denominavam de Physis; a partir da qual um Heráclito, tiritando de

frio no inverno, encostado no forno aquecido da queima do pão, con-

vidou aos visitantes ávidos do infinito na busca do extra ordinário a

entrar no recinto do permeio da banal simplicidade que se engraçou

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com a gratidão da finitude ab-soluta, dizendo: Também aqui, pois, es-

tão os deuses presentes9? E isso porque, como diz de novo Heráclito: A

physis ama o retraimento10.

Não é bom, ontem, hoje e amanhã, poder sempre de novo impli-car com a pergunta: Estudar filosofia, um nada?

9. Cf. ARISTÓTELES, De part. anim. A5. 645 a 17: einai gar kaì entautha theous.

10. Fragmento 123: Physis kryptesthai philei (Cf. HERÁCLITO. Os pensadores originários.Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90).

A VIGÊNCIA DO POÉTICO NA REGÊNCIA DO VIRTUAL

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A VIGÊNCIA DO POÉTICO NAREGÊNCIA DO VIRTUAL

Para Frei Hermógenes Harada, pelos oitenta anos de vida!

Emmanuel Carneiro Leão

Hoje em dia todos somos pós-modernos. Pós-modernos, vive-mos na e da baixa modernidade. Baixa modernidade é a conjugação detrês ordens de transformação em detrimento da criatividade na histó-ria: a financeira, a genética, a virtual. Nesta baixa, impõe-se, cada vezmais, uma divinização do homem e uma humanização do sentido.Trata-se de uma imposição negativa: a desordem prevalece sobre a or-dem. Desordem é o império da violência transformada em soluçãouniversal para qualquer problema, em satisfação universal de qualquerinteresse. A força do direito já não é a justiça. Restou apenas o direitoda força. A vida perdeu todos os acentos transcendentes e vai sendosacrificada aos poderes da morte. Chega-se ao cúmulo de se reconhecerna teoria e na prática que a vida é um direito relativo, em contrastecom a personalidade, direito absoluto, como se fosse possível vidahumana, tanto em ato como em potência, sem personalidade e vice-versa. Até bem pouco, só podia morrer ou não morrer o inanimado.Hoje, não. A engenharia genética, a nanotecnologia, a automação e arobotização acenam com e para uma imortalidade inanimada. Por outrolado, retornam as questões de princípio por toda parte. Até ontem,não era possível transplante de cérebro, só era possível transplantar osoutros órgãos do corpo. Hoje, não. A clonagem é do espírito. Está emjogo toda a gravidade da hominização. Parodiando Vergílio (Eneida, I,

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EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

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33), deve-se dizer hoje em dia: é de tanta mole criar gente humana queo peso se tornou infinito.

Uma época histórica é uma caminhada que trabalha na construçãode um caminho de feitos para fatos, de cenas para encontros ou desen-contros, de cenários para realizações. A internet é um fenômeno virtu-al e poético, ao mesmo tempo. E é como tal que instala e define nossabaixa modernidade. No artifício da virtualidade, técnicas de processa-mento da imagem e do som, do movimento e da composição, dasimultaneidade e da onipresença se transubstanciam em criação poéti-ca. Esta união transubstancial transfigura técnica em poesia, criandoobras de arte virtuais. Uma tal transubstanciação não se dá sem pensa-mento. Por isso pensar a unidade de técnica e arte, realizando-se nainternet, levanta questões sobre o lugar e a função do poético numaépoca de regência do virtual.

Vigência e regência não são duas condições separadas na históriado homem de hoje. Formam um processo ontológico só, o processode estruturação em que o real se está realizando. Na vigência do poéti-co rege o virtual, assim como na regência do virtual já vige o poético.Quando se dão, nenhum dos dois se dá sem o outro, embora ambosaconteçam sempre um no outro, um com o outro, um pelo outro. Éque, em sua recíproca constituição, está em causa a linguagem, tantonas línguas da tradição, como nas línguas da técnica. Pois, na força dalinguagem, poesia e técnica jogam, no campo da história, o desafio dacriação, embora em níveis diferentes. Se a cultura do poético e a cultu-ra do virtual surgem e pertencem a uma mesma tradição histórica, assuas línguas respectivas sofrem dificuldades radicais – i.é, dificuldadesradicadas na própria essência de cada uma – para compreender os envi-os de ser e para lidar com as provocações de realizar-se na história dehoje, em tudo que é e está sendo, em tudo que não é, nem está sendono mundo atual.

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Urge, então, afundar a questão de nossa época. Mas afundar emque sentido? – Quando se diz, o navio afundou, entende-se logo que onavio foi a pique, que desceu, na vertical, para o fundo do mar. Poisbem, quando se fala em afundar a técnica, quer-se dizer que se deve irdireto para o fundo da técnica. Mas é um fundo estranho este fundoda técnica, pois se dá tanto na superfície quanto no profundo, comoem qualquer lugar em que a técnica esteja. Pois não se trata de técnicaapenas. Trata-se de qualquer coisa, igual e diferente da técnica. Assimafundar a questão de nossa época equivale a afundar as línguas e astécnicas da convivência atual. Se, no virtual e como virtual, a técnicanos domina de alto a baixo, numa regência, sem volta nem reserva, épor já se ter apoderado e haver controlado todas as nossas línguas. Natendência de seus vetores, já não sobra espaço para nenhuma outrasintaxe, já não resta nenhuma outra semântica, já não nos fica nenhumoutro encontro que não esteja logicamente controlado. Está domina-do, está tudo dominado.

Nessas condições, “só resta mesmo a saga do caminho”, na formu-lação lapidar de Parmênides, onde se poderá seguir os vestígios e inves-tigar no nada da ausência o sentido de todo e qualquer domínio. Oque, por sua vez, supõe que se aceite a dominação da técnica em todasua extensão e profundidade, para se poder interrogá-la sobre o queainda se poderá ser e dizer na técnica da técnica e com a técnica, masnão além ou aquém da técnica. Pois, neste último caso, prevaleceria ailusão de se poder pular a própria sombra e arrancar-se de um pântanopelos próprios cabelos, separando conhecer de pensar, ciência de sabere técnica de ser.

Na vigência do poético, chega-nos uma linguagem que as línguas datradição e as línguas do virtual não conseguem nem abafar nem controlar.É que, na regência do virtual, o descontrole ainda resta. Mas trata-se de umdescontrole essencial, o descontrole salvador, pois exige de nós, homens datécnica, uma atenção desdobrada para a gravidade sorrateira de um perigo

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que não somente nos ameaça com a possibilidade de uma destruição físi-ca, como também nos poderá advertir para a originalidade de todas ascoisas, salvando a essência inventiva de nossa humanidade das repetiçõesmonótonas e sem surpresas de uma estéril replicação.

Com o advento do virtual, põe-se em jogo uma atenção para a expe-riência do Nada no próprio seio de uma abundância sem limites, masmonótona, porque monocórdia. A humanização funcional do poder ab-soluto do virtual é uma caixa preta de Pandora: uma gigantesca armação,uma propaganda enganosa, em nível transcendental, sobre o modo pró-prio de ser de nossa existência. Pois, criando uma aparência em contrário,leva-nos para a forma mais perfeita de escravidão, uma escravidão nãoapenas inconsciente, como sobretudo nesciente, aquela escravidão que nospromete uma libertação total, desde que renunciemos operativamente àcondição radical de sermos sempre fim e nunca meio, na formulação para-digmática de Kant. A taumaturgia do virtual mostra, então, a face ocultada técnica, sua essência originária, a com-posição universal que a realidadecumpre em todo novo real.

Na regência do virtual e com ela, a realidade é provocada a fazer oreal apenas disponível e a tornar operativa toda energia de realização.Trata-se de um acontecimento pretensamente originário, embora ina-parente, porque escondido em sua intenção de absoluto. Longe de serum simples serviço prestado à humanidade, o virtual é, antes, umaforça que põe a humanidade do homem a seu próprio serviço. Poisnão somente arrasta todos os homens e convoca cada um de nós parauma ordem que nos assoberba e nos esmaga a singularidade, comosubstitui pela repetição a originariedade de nossa missão ontológica,que, única e original, nunca poderá ser replicada nem repetida.

Para se compreender o virtual em toda a extensão de seu sentido,há-de se penetrar em sua função histórico-ontológica no mundo dehoje. Mas, para tanto, deve-se descobrir-lhe o modo de ser metafísico

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que a tradição do Ocidente veio construindo, ao longo das épocas,desde a interpretação de Techne, como Episteme. Pensada em sua dinâ-mica especificamente grega, toda Techne e toda Episteme são Aletheia,toda técnica é pro-dução. Ora, pro-duzir é con-duzir, no sentido delevar um real à disponibilidade de sua serventia, num conjunto derelações e torná-lo, assim, acessível em sua vigência. O problema destacon-dução está todo na proveniência de seu vigor. O homem não pro-duz, em toda sua verticalidade, a con-dução, nem por invenção isola-da, nem por espontaneidade gerativa. O homem apenas pertence aoprocesso de pro-dução com a força de seu esforço de pre-sença. Natécnica, portanto, a pre-sença do homem é um revelador fotográfico,que deixa aparecer o ser de tudo que toca com seu trabalho. Na técni-ca, o homem é sempre Midas e nunca criador do ser daquilo que é eestá sendo, junto com sua pré-sença.

A essência do virtual não está nem na virtuose nem, muito menos,na eficiência de um fazer técnico. E por quê? – Porque a essência datécnica não é técnica. A essência da técnica não pode ser produzidatecnicamente, só pode mesmo ser pensada, e pensada, afundando-se aprópria técnica, cujo vigor ontológico a metafísica da tradição nãosoube, porque não pôde dizer e nem a técnica do virtual sabe e podefazê-lo.

Quase todas as análises do virtual se concentram hoje na referênciaà ciência. A técnica seria a ciência aplicada ao fazer. Ora, o virtual ésuperação sistemática e operativa da separação entre ciência e técnica,pela suspensão real da diferença entre teoria e prática, entre conhecer efazer, entre instrumentação e explicação. O instrumental técnico de-termina o conhecimento científico a ponto de reinar entre ambos umarelação de indeterminação, que, em última instância, reduz o cientifi-camente real, o real da e para a ciência, ao tecnicamente operativo, aoque a técnica pode operar e fazer. A automação, a retroalimentação, arobotização não constituem apenas resultados técnicos da aplicação da

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ciência. A regência do virtual nos veio demonstrar o nível, o grau e oponto em que a técnica revela sua estrutura de fundo, reconduzindotoda linguagem a um sistema de traços e nivelando todo sinal, signoou símbolo a meros bits e levando a comunicação a deixar de ser vín-culos de diferenciação para vir a ser simples códigos de barra, jogo deunidades informacionais. No controle retroativo do circuito virtual, oreino da técnica mergulha inteiramente na com-posição das possibili-dades de calcular e reivindica para si todo o homem, em todo homem.

O nexo entre a regência do virtual e a vigência do poético não éuma conexão extrínseca, nem relativa a determinados níveis de vincu-lação. Trata-se de com-pertinência na própria dinâmica do diferenciar-se das diferenças. Se o virtual dá provas de virtuosidade em nível com-binatório e, na globalização da Internet, se estende numa escala plane-tária, a linguagem do poético, vigente nas poesias de todas as coisas, seconfigura num perfil originário de surpresas, justamente no funciona-mento do virtual e, com base na própria língua da técnica. As línguasvirtuais falam de muitas coisas, podem falar mesmo de tudo, só não po-dem dizer tudo de nada, justamente por e para não poderem errar e falhar.Entretanto, porque não se pode dizer tudo, nem de tudo nem de nada,não significa que não se possa mostrar nada de tudo. Para poder dizer,todo dizer resguarda em si o que não pode ser dito, não, porém, comoreserva irracional e sim como amostragem portentosa da própria impossi-bilidade de dizer. O indizível constitui a condição de possibilidade detodo e qualquer dizer. No indizível e como indizível, a vigência dopoético se mostra por toda parte, protegido e cultivado pela lingua-gem, sempre em silêncio a fim de deixar as línguas falarem.

Escondido no coração do virtual descobre-se, portanto, o mistérioda linguagem, que não necessita de pronuncia para viger. O retraimen-to da linguagem é a linguagem do mistério em doação nos empenhosde ser e nos desempenhos de realizar-se. Por e para perfazer a força dequalquer dizer, a linguagem tem de retirar-se das falas e, ao fazê-lo,

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abre espaço e deixa lugar para o sentido correr pelos discursos das lín-guas. Desde o Tractatus Logico-Philosophicus de 1922, Wittgensteinnão se cansa de repetir que os limites do dizer apontam para os limitesdo mundo, mas não da vida, de vez que a linguagem sempre mostra oque o discurso não pode dizer. Este mostrar recolhe em si toda a im-possibilidade de dizer das línguas. Por isso é que, num esboço paraMnemosine, Hoelderlin, o poeta da poesia, nos remete para a dinâmi-ca do esquecimento no âmago da própria memória:

Ein Zeichen sind wir deutungslos,Schmerzlos sind wir und haben fastDie Sprache in der Fremde verloren!Somos um sinal sem sentido,Insensíveis à dor, quase per-demos a língua no estrangeiro.

Dar-se ao retirar-se, arrebatar consigo, quando se afasta, é tambéma vigência do poético na regência do virtual. Tal como a da técnica, aessência do poético não provém de um ato que o homem possa prati-car de moto próprio. Pois é sempre o poético que cria o ato dos poetase cumpre no poema o modo de ser da poesia. É o poético que jásempre institui a possibilidade de o poeta praticar ato poético e exercernum poema a dinâmica de ser e consumar-se da poesia. Na Pre-sençade ser homem de todo homem, apresenta-se e se ausenta o jogo recí-proco de atração e retração entre terra e mundo, entre vida e morte nocurso temporal das peripécias históricas de ser no tempo. Pois ser etempo são reciprocamente tempo e ser no desempenho doador dequalquer real. Este sentido, a vigência não dita da linguagem e a regên-cia não técnica do virtual encontram na identidade entre o legado e onegado pela tradição. Na famosa formulação de Heidegger, “tradiçãonão é mera transmissão. Tradição é Bewahrung und Verwahrung, épreservação e mobilização das forças criadoras do princípio em semprenovas possibilidades de cumprimento ontológico a partir do desgastedos discursos já decorridos e dos percursos já percorridos.

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Se a tradição metafísica evoluiu na pós-modernidade para o domí-nio total da técnica, a dominação em causa não se esgota com domi-nar. Nenhuma dominação domina seu próprio elã de dominar. Se novirtual a técnica atinge sua plenitude metafísica na tendência para avontade de poder numa vontade de vontade (i.é, numa vontade ines-gotável de querer sempre mais poder), o pensamento é, então, enca-minhado pelo advento gracioso do poético, i.é, de um destino ambí-guo, técnico e não técnico, que hoje se dá, como virtual, na medidaem que e enquanto se retira, como poético.

O grau superlativo de poder, porém, não instala apenas progressoe dominação, cria também regresso e servidão. Na Fenomenologia doEspírito, Hegel chamou esta ambivalência de dialética do Senhor e doEscravo. Todo auge inclui perda de cadência e se faz de-cadência. Setudo é poder, a dominação está em crise. Onipotência implica sempreimpotência, tanto em sentido reativo, como em sentido criativo. Existeuma dinâmica de provocação na impotência. Com o virtual, operatambém uma virada que está fora da alternativa de negativo e positivo.O não útil pode significar simples falta, uma carência do devido eesperado e, então, é o inútil, que vive na e da dependência daquilo deque carece. Mas há também um não útil que se constitui, que age eopera fora e dentro da diferença de útil e inútil. É, então, a graça quenão decorre nem de força nem de poder, que não provém nem demérito nem de conquista, mas da gratuidade de pura doação. É nestesentido gracioso de pura doação, que, na regência do virtual, o poéticoacontece, como a gratuidade do que não é nem útil, nem inútil.

Na China Imemorial, Dsi-Gung atravessava a região do Rio Han,quando encontrou um ancião todo ocupado em irrigar sua leira.Entre o poço e os leirões tinha rasgado veios no chão para fazerchegar água às plantas. Com grande esforço, descia e subia opoço com um balde nas mãos. E apesar de todo o trabalho, sómuito pouca água escorria pelos regos.Dsi-Gung teve pena do velho. Aproximou-se e disse: há ummeio fácil de fazer correr muita água com pouca fadiga por

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muitos regos em pouco tempo. Assim pouco esforço rende gran-des resultados. O ancião parou e perguntou: e qual seria estemeio?Dsi-Gung respondeu: a técnica, ora! Instalam-se no poço bom-bas de sucção e se tem água a rodo!O velho olhou para Dsi-Gung e respondeu: sempre escutei avida dizer que, para usar da técnica, é preciso um coração técni-co. E quem tem no peito um coração técnico, perde a inocênciada vida. E, sem inocência, não há nem vida nem morte, somen-te a secura do útil e inútil. E quem vive nos tremores do útil edo inútil, não se encontra com o mistério da realidade. Não éque despreze a utilidade e inutilidade da técnica. É que aindanão me foi dado relacionar-me, na técnica, com a graça de cria-ção da terra!

É esta graça do inesperado que hoje na regência do virtual se esperaque nos aconteça com a e na vigência do poético.

Rio de Janeiro, 2008

PENSAMENTO, ELEMENTO, TRANSCENDÊNCIA

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PENSAMENTO, ELEMENTO,TRANSCENDÊNCIA

Gilvan Fogel

Para o mestre, o grande mestre, que acena,

acena e convida para o sagrado – Hermógenes Harada.

1. No § 7 de Ser e Tempo, lê-se: “O ser e a estrutura de ser acham-seacima de qualquer ente e de toda determinação ôntica possível de umente. O ser é o transcendens pura e simplesmente. A transcendência do ser dapresença é privilegiada porque nela reside a possibilidade e a necessidade daindividuação mais radical”1. Em Sobre o Humanismo Heidegger fala de“ser como o elemento do pensar” e ainda dirá que o pensamento “chegasempre ao fim, quando se afasta de seu elemento”2.

Temos, pois: ser como transcendência e ser como elemento – ele-mento do pensar. À medida que ser se determina como transcendênciae também como elemento temos que transcendência, de algum modo,fala igualmente elemento. É isso que, inicialmente, queremos com-preender. Num segundo momento, buscar-se-á caracterizar pensamen-to, ou seja, o que é, como é pensar e pensar desde seu elemento pró-prio, a saber, ser, transcendência.

2. Elemento, aqui, não quer dizer um indivíduo ou uma pessoa,p. ex., integrante de um determinado grupo – João é integrante (ele-

1. Cf. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2006, p.78, Trad. M.C. Schuback.

2. Cf. HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.27, trad. E.C. Leão.

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mento) deste grupo de estudos. Nesta direção, elemento também nãoé uma parte ou uma unidade constituinte de um algo ou todo qual-quer, p. ex., se digo que esta página é um elemento deste caderno. Nãoé, pois, elemento no sentido de indivíduo, unidade, seja de um con-junto ou de um subconjunto qualquer. Também não quer dizer “pri-meiras noções” ou “rudimentos”, se digo, no plural, “os elementos dagramática, da metafísica ou do futebol”.

Aqui, elemento é preciso entender, antes, na direção de meio, demedium, como, p. ex., ao dizer que a água é o elemento (meio) dopeixe, a floresta é o elemento (meio) do selvagem, a cidade é o elemen-to (meio) do citadino ou, numa formulação talvez obscura, digo que aterra é o elemento (meio) do homem.

Mas, dizendo meio, medium, o que diz realmente elemento?

Meio, por seu lado, não diz metade, ponto intermediário oueqüidistante entre os extremos de dois ou diversos pontos. Portanto,meio não está se referindo ao centro, quando falo, p. ex., o meio (cen-tro) da circunferência ou da sala. Não é o espaço-extensão, como sefora coisa física, continente dos muitos conteúdos que ele poderia en-cerrar. Antes, meio, enquanto elemento, se refere a uma situação depermeio, quando digo, p. ex., o homem no meio da multidão, nomeio da borrasca, no meio da tormenta. Aqui, meio não fala do cen-tro geométrico ou geográfico da multidão, não é o epicentro da tor-menta ou do terremoto, mas no meio, aqui, significa todo permeado,perpassado, atravessado ou varado por multidão, por borrasca ou portormenta. Meio, assim, evoca ambiente, situação, circunstância e, nestesentido, fala de medium.

Falando situação, circunstância ou medium, meio fala deinserimento ou inserção e, então, circularidade, círculo. Círculo, pelomenos desde Heráclito, é a imagem, a plástica para dizer e mostraralgo que não é e não tem imagem alguma, contorno ou plástica algu-

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ma, a saber, esta situação ou circun-stância da vida, da existência hu-mana de ser sob a forma de inserimento, de inserção, isto é, de repen-te, súbita ou i-mediatamente ver-se lançado, jogado, p. ex., na vida,no elemento-vida — no ser. Isto é, portanto, o medium, o elementodo ou no viver, do ou no existir. Mas tentemos ver isso mais de pertoainda e, então, descrever, formular melhor.

3. Elemento, falando meio ou medium, caracterizando-se comoinserimento ou inserção, define um modo de ser interessado, isto é,um modo de ser, o do homem, da vida humana, que se mostra sersempre já desde dentro (inter) de um determinado modo de ser (esse),a saber, ser sempre já desde um elemento ou medium, pois um modopossível de ser, um interesse qualquer no ou do viver, é como o ele-mento se dá ou se concretiza.

A formulação “sempre já” fala anterioridade, isto é, uma dimensãoprévia que, quando a gente se dá conta, ela sempre já se deu ou seinstaurou, caracterizando assim a inserção (i.é, a estrutura circular) e,por outro lado, a própria dimensão de transcendência, pois se revelauma dimensão ou um modo de ser que sempre já ultra-passou, sobre-passou ou trans-cendeu ao homem ou a qualquer poder seu de deci-são. Esta anterioridade, portanto, aponta para um modo de ser arcai-co, originário, que, p. ex., a modernidade o disse sob a forma do “apriori”. Aqui, no entanto, não se trata de nenhuma antecipação subje-tiva ou subjetivo-transcendental. E isto porque esta anterioridade, fa-lando de interesse ou de elemento da/na vida, do/no acontecimento-homem, é o que se pode caracterizar como relação arcaico-originária,na qual a estrutura subjetivo-objetivo não é, não pode ser medida oucritério. A relação arcaico-originária, i. é, interesse ou elemento, é oabsoluto. E isso quer dizer: toda fala de subjetivo-objetivo já é fala apartir deste elemento ou desta relação arcaico-originária sempre jáacontecida, aberta, instaurada.

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Por relação arcaico-originária entende-se o ser um para o outro, p.ex., o homem para o mundo ou para as coisas, não à maneira de pólosou termos, os relata, uma vez que estes aparecem sempre como tardi-os ou epigonais. Em outras palavras, estes aparecem e se dão porque ointeresse, o elemento ou a relação arcaico-originária sempre já se ins-taurou ou aconteceu como o horizonte absoluto de toda possibilidade(de ser), de toda possibilitação. O elemento, a transcendência, é o ver-dadeiro, o autêntico “a partir de”, fundo de instauração ou depossibilitação de toda e qualquer coisa, de toda e qualquer realidade.Nesta direção, dirá Heidegger: “O elemento é verdadeiramente o quepode, o poderoso: o poder”3. Voltaremos a isso, mais adiante.

Importante, porém, é que não cabe entender elemento como sefora uma super-substância, um super-sujeito, um super-homem pro-posto ou anteposto, à maneira de um primeiro numa ordem cronoló-gica, a todo e qualquer suceder, acontecer. Elemento, portanto, não éuma super- ou proto-causa. Não é nada como Deus, no sentido de“causa prima” ou “causa sui”. A idéia de súbito, de i-mediato ou desalto, que perfaz círculo ou inserção, exclui a representação de um talsujeito ou substância. Elemento é o poder, mas nenhuma causa, ne-nhum sujeito. Como, então?

4. É próprio do homem – melhor, o próprio do homem é ser aber-to para vida, ou seja, para transcendência (interesse, elemento). Noentanto, este aberto para, esta abertura, precisa ser bem entendido(a).

Ao se falar isso, habitualmente, entende-se, subentende-se ou ima-gina-se o homem como já um algo, já como um dado ou um algo jáconstituído, p. ex., um eu, uma consciência, uma pessoa, um indiví-duo, uma alma ou um espírito, enfim, já um sujeito, que, então, seabre, isto é, se volta, se interessa pelas coisas da vida, pelo mundo, peloao redor, pela situação ou circunstância. Assim pensando, caracteriza-se

3. Cf. HEIDEGGER, M. op. cit., p. 28.

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este abrir-se ou voltar-se para como intenção ou intencionalidade, vo-lição ou ato de vontade, como espontaneidade ou naturalidade. Qual-quer que seja ou como quer que seja uma destas formas, destas carac-terizações, ao assim pensar ou imaginar, já penso homem e (+) mun-do, homem e (+) coisas, homem e (+) situação ou circunstância, comose estes fossem dois pólos, termos ou sujeitos. O fato é que, assimpensando, mal-entende-se ou desentende-se tudo.

Este aberto para diz algo desconcertante, paradoxal. Nessa formulação(O homem é aberto para), é preciso poder ver o homem como um “ente”que, antes de tudo, não é “ente” nenhum. Ou seja, é preciso poder ver,conceber, o homem não sendo, imediata ou originariamente, coisa ou algonenhum, já dado ou constituído, a saber, não sendo de imediato nenhu-ma alma, ou eu, ou consciência, ou espírito, ou pessoa, ou mesmo ocontrário de tudo isso, como se fosse corpo”, base física, bio-fisiológica,ou uma certa matéria, ou energia ou sabe-se lá o quê.

Não sendo nada disso, o homem, imediata ou originariamente,mostra-se como se fora um oco, um vazio (de ser, de determinação),isto é, um ser nada ou coisa nenhuma, que, no entanto, se caracterizacomo aptidão, pura aptidão ou disposição, na verdade, pré-disposiçãopara. Esta aptidão, a abertura para, mostra-se, pois, como disposiçãoou pré-disposição a ser tocado ou tomado (afetado) por... algum modopossível de ser de vida, algum verbo no/do viver ou existir, e que sedeterminará como elemento, transcendência, ou seja, o que sempre jáse oferece a vir sobre ou sobrevir ao homem, assim determinando-o epossibilitando-o e, por isso e neste sentido, dirigindo-o, orientando-o,gerando-o, à medida que o pré-dispõe a vir a ser um homem, este ouaquele homem em particular ou determinadamente.

Ver isso, sentir isso, i. é, ver ou sentir este ser tocado e tomado poreste acontecimento da/na vida (o dar-se inaugurador de transcendência)é experimentar transcendência, melhor, é ser na experiência da expe-

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riência de transcendência, ou seja, na experiência de vida, na evidência(pois experiência é, funda evidência) de ser como e desde o que ultra-passa, trans-passa e sobre-passa ao homem – a mim, particular e espe-cialmente, por exemplo. Neste sentido de ultrapassar e sobrepassar,assim tomando e apropriando, é que é preciso entender a afirmação,segundo a qual elemento ou transcendência sobrevém ao homem, istoé, vem-lhe sobre, tomando-o todo, apropriando-se inteiramente dele.Isto marca igualmente a natureza de afeto da transcendência, de todatranscendência ou elemento possível. Transcendência, pois, define-secomo o acontecimento arcaico, que é afecção. O homem vive, existe,é, porque pega vida, pega existência, à medida que é pegado por ummodo de ser transcendente. Portanto, os afetos, isto é, os verbos do/no viver ou existir humano, são ou têm todos, cada qual por si mes-mo, a forma, a estrutura de transcendência. Cada qual é o modo comocada vez transcendência se dá ou se realiza – i. é, se concretiza ou faz-seaparecer, retraindo-se ou dissimulando-se justo no que aparece, comoaparece e porque aparece.

5. Transcendência, o elemento, tem o caráter do abrupto, do súbitoou do i-mediato. Justo por ser súbito ou imediato é transcendente. Súbitoou imediato, por sua vez, fala igualmente de salto e salto, porque salto, falade círculo ou de circularidade, isto é, de inserção. E inserção significa: quan-do se vê, quando se dá conta, já se vê, já se dá conta dentro, inserido, isto é,desde ou a partir do elemento, de transcendência. Por isso, toda fala, todaação ou atividade, todo e qualquer fazer-se ou vir a ser, toda e qualquerhistória, já o é de, do elemento; de, da transcendência, a qual como que seserve do homem, de um homem, o usa para aparecer ou concretizar-se. Ohomem, só o homem é usável por elemento, por transcendência. Ele-mento, transcendência usa o homem para aparecer, para concretizar-se.Não se ouça neste para um finalismo, uma intenção, um propósito. Me-lhor é dizer-se: o homem é usado e, então, acontece, concretiza-setranscendência. Neste acontecer ou concretizar-se ouçamos também: acon-

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tece, concretiza-se e, no mesmo ato retrai-se, dissimula-se nisso ou naqui-lo, como isso ou como aquilo, deste ou daquele outro modo e que ésempre o isso ou o modo, segundo o qual aparece ou se concretiza.

Tentemos mostrar isso. Busquemos um exemplo, no qual se evi-dencie toda esta estrutura. Vejamos como se dá a dimensão, a perspec-tiva ou o interesse escrever, por exemplo.

A primeira observação a se fazer diz respeito ao sentido de escreverenquanto e como dimensão, perspectiva ou interesse. Não quer dizerescrever enquanto o exercício mecânico, próprio de todo e qualquertipo alfabetizado, todo e qualquer cidadão letrado, que conhece e do-mina as regras da escrita, i. é, conhece e reproduz com fluência oscaracteres ou grafemas, conhece e domina as regras da sintaxe e dagramática, assim como as de ortografia, tudo isso aprendido na escolae que, no dia-a-dia da vida, tal tipo ou cidadão preenche formulários,cupons, formula e encaminha requerimentos e petições com grandedesembaraço e competência. Não.

Escrever, enquanto dimensão, perspectiva ou interesse da/na vida,se refere ao modo de ser, segundo o qual se evidencia e se impõe que oescrever, isto é, o dizer, isto é, a palavra poética, é princípio de realida-de. Por palavra poética não se entende a palavra extraída do corpo dealgum poema ou incluída num poema bem ritmado e rimado. Tam-bém nada sentimental ou meloso. Palavra poética, de poiesis, é a pala-vra que realmente diz, mostra, faz visível alguma coisa. É isso mesmoa sua característica como princípio de realidade, ou seja, uma dinâmicadesde a qual e como a qual realidade se realiza, se faz realidade, apareceou se faz visível, como dissemos. Em suma, escrever, assim, aqui eagora, refere-se a um modo de ser que se faz ou se mostra como poé-tica, como um necessário e possível princípio de realidade. Aquele queassim experimenta o escrever, o dizer, este vive no domínio, no âmbi-to do sem-nome, mas que é o domínio ou o âmbito do nomeável, isto

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é, do poder e precisar nomear, dar nome, dizer para ser, para vir a ser.Assim sendo, é preciso ver-ouvir escrever, p. ex., desde Dostoievski,Flaubert, Guimarães Rosa, Cabral de Melo Neto...

Entremos, pois, nisso, quer dizer, nesta estrutura, neste modo deser ou nesta experiência.

De cara, começa não sendo o comum e ordinário dizer “eu escre-vo”. Pois visto desde transcendência, “eu”, o “eu-escritor” não é o sujei-to (causa) da ação escrever. Na verdade, mais apropriado seria dizerque o eu-escritor é resultado do escrever, é ação ou obra do escrever e,portanto, não é ou há antes do escrever, não pré- ou sub-existe aoescrever como um sujeito ou causa do escrever. O eu, o eu-escritor sóhá, só pode haver porque ele é feito pelo escrever, por obra e graça ougraças ao escrever. Neste sentido, pois, “eu escrevo” só é possível já apartir ou já desde o escrever. Portanto, o escrever sempre já se deu,sempre já se abriu, aconteceu ou instaurou como uma possibilidade-necessidade da/na vida, do/no existir e, então, se é levado a dizer: escre-ver, antes, parece ser ele o sujeito, a substância. Isso, no entanto, é umamera inversão do esquema sujeito-objeto, sujeito-predicado. O erro,o vício, é este esquema que aparece, então, como um critério ou umamedida inoportuna para dar conta de ou para medir o fenômeno emquestão, a saber, o modo de ser de transcendência.

6. Heidegger escreve:O elemento é aquilo a partir do qual o pensamento pode serpensamento. O elemento é o propriamente poderoso(“Vermögende”): o poder (“das Vermögen”). Ele se apega aopensamento e assim o conduz à sua essência ... O pensamento é– isso significa: o ser se apegou, num destino histórico, à suaessência. Apegar-se a uma coisa ou pessoa em sua essência, querdizer: amá-la, querê-la (“mögen”). Pensando este querer maisoriginariamente, ele quer dizer: dar, presentear a essência. Estequerer (“mögen”) é a autêntica essência do poder (“Vermögen”),que não somente pode realizar isso ou aquilo, mas também dei-

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xa uma coisa vigorar (viger, “wesen”) em sua pro-veniência (“Her-kunft”), isto é, deixa que ela seja. O poder do querer é aquiloem cuja força uma coisa pode propriamente ser. Este poder(“Vermögen”) é o autêntico possível (“das Mögliche”), a saber,aquilo cuja essência se funda no querer. A partir deste querer(“mögen”), o ser quer, torna possível (“vermag”) o pensar. Aque-le (o ser) possibilita este (o pensar). O ser como o querer-pode-roso (“das Vermögend-Mögende”) é o possível (“das Mög-liche”).O ser, como elemento, é a força silenciosa do poder que quer,isto é, do possível4.

Temos aqui uma difícil passagem que, falando de ser, pensar, ele-mento, essência, fala principalmente da relação ou, melhor, da articu-lação e implicação entre/de querer e poder. Heidegger serve-se da cor-respondência na língua alemã entre querer-amar-gostar (“mögen”) epoder (“Vermögen”), assim como também a derivação de possível epossibilidade (“möglich” e “Möglichkeit”). Esta correspondência dizmais que uma mera correspondência ou uma mera relação, no sentidode alguma fortuita aproximação ou alguma ligação lógico-formal.Correspondência, aqui, fala de uma experiência na ou da linguagem, aqual ata como que num mesmo fenômeno querer-amar e poder-pos-sibilitar. Trata-se de uma experiência originária ou de fundação-atamento, cujo teor precisa ser explicitado. O fato é que Heidegger, apartir do sentido originário, fundador, de “mögen” (querer, amar, gos-tar) determina o modo próprio de ser ou a essência de poder, possibi-lidade e possível (“Vermögen”, “Möglichkeit” e “das Mögliche”). Épreciso entender como, neste sentido, nesta experiência originária,querer é poder.

“Mögen” diz querer e amar (gostar) no mesmo sentido que tambémnós empregamos, às vezes, os verbos querer e amar (gostar) em sentidoscorrespondentes de apegar-se, tomar apego, afeiçoar-se. Digo, p. ex., “que-ro (isto é, amo, gosto) muito esta coisa, esta ou aquela pessoa”. É justo este

4. Cf. HEIDEGGER, M. op. cit., p. 29/30.

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o exemplo dado por Heidegger, quando diz: “Apegar-se a uma coisa oupessoa na sua essência, quer dizer: amá-la, querê-la”. E, vimos, Heideggercontinua: “Este querer-amar (“mögen”), pensado mais originariamente,quer dizer: dar, presentear essência”. Como isso?

Por essência não cabe entender um algo, alguma coisa por trás,sub- ou pré-existente e que seria, p. ex., a causa desta ou daquela coisa.Não é um núcleo dentro, o caroço, formando o em-si da coisa. Essênciaé a própria dinâmica de algo fazer-se ou tornar-se algo, a dinâmica oua força a partir da qual e como a qual algo vem a ser este algo que é e talqual é – sempre uma escandalosa superfície. Vê-se ou tem-se realmentealgo quando conseguimos nos transpor à sua essência, isto é, à suaproveniência, origem ou gênese. Então, partilhamos a coisa na sua gê-nese, na sua nascividade. Participamos, pois, de seu ser ou modo de sere, assim, co-nascemos com ela.

A partir de agora, tentemos entender como que, originária ou es-sencialmente pensado, querer-amar significa poder e, por isso, dar oupresentear essência, isto é, doar, presentear a passagem para o própriomovimento-gênese de algo.

Querer, do latim “quaero”, significa buscar, procurar, andar à cataou em busca de e, nessa direção, ainda aspirar a e desejar.

Assim sendo, i. é, entendendo querer como busca e procura, ten-temos não entender querer como um ato volitivo, no sentido de umato de uma faculdade, a vontade, a vontade consciente. Querer, assim,seria um ato ou uma decisão consciente, deliberada, de um sujeito oude uma consciência autônoma que, então, querendo, impõe sua von-tade, isto é, seu modo próprio de ser. Impõe, quer dizer, faz valer seuquerer, sua vontade, a partir do poder maior, mais forte, mesmo auto-ritário, mandão e despótico do seu querer. Tudo fica achatado e nive-lado ao poder deste querer. Isso é uma maneira de se entender o “que-rer é poder”. Mas não é, provavelmente, neste sentido que o texto

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citado fala, sub-fala que “querer é poder” ou que “o poder é o querer”.

Considerando querer (“quaero”) como buscar ou pro-curar, é pre-ciso que se entenda esta busca, esta pro-cura como um entregar-se, umabandonar-se todo ou um doar-se inteiro à própria busca, à própria pro-cura. Esta entrega ou doação à busca estará em estreita e imediata relaçãocom escuta. Tal doação, tal entrega, se dará, se fará a partir de escuta, comoimperativo de escuta e nisso residirá o presentear-se de essência. Por outrolado, por escuta, aqui, entende-se justamente e tão-só este ato de entre-ga, de doação à coisa buscada, procurada ou querida.

Por ora, no entanto, tenhamos somente a boa vontade de se enten-der este quero, esta vontade, como a entrega ou a doação de corpo ealma, isto é, todo ou inteiro à própria busca, à própria procura. Este éum doar-se e entregar-se ao que ultra-passa, ao que sobre-passa, ao quetrans-cende o próprio querer ou, melhor, ao próprio sujeito que quer, quebusca, tornando-se aquele que assim busca permeável, como que à mercêda própria coisa ou objeto buscado, quer dizer, na verdade, movido, pro-movido pela própria coisa que lhe transcende – portanto, por transcendência.E é dessa maneira, como entrega e doação, fazendo-se escuta ou obediên-cia, que o querer se faz o poder, ou seja, amar ou gostar é, então, dar,presentear essência, deixar essencializar. Assim, pois, é preciso entender afala de deixar algo vigorar, viger, isto é, ser e impor-se em sua própriaproveniência, em sua própria gênese, e que constitui propriamente o fazer-se essência da essência ou essencializar-se.

Portanto, nesta entrega ou abandono à coisa buscada, querida, háum deixar ser a própria coisa, um consentir ou permitir que ela, desdeela mesma, venha a ser o que é. Nisso, como já dito, reside o dar, opresentear a própria essência desde e como o querer, a saber, desde ecomo o buscar que é entrega e abandono à busca, à coisa mesma. Eisso é poder, nisso reside o poder que, tal como o querer, que não é afãe ânsia incontida, encerra muito, tudo de doçura, de candura, e não

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pode ser visto como o arrogante, petulante e autoritário, para não di-zer bazofeiro, “eu quero!” de um sujeito, de uma vontade-faculdade-autônoma, que impinge seu poder, antes, sua coação e sua subjugaçãode mais forte e de “poder mais”, sempre achatando, nivelando e igua-lando tudo ao seu poder-querer mais forte, mais capaz de coação e desubjugação. E isso, a saber, doçura e candura, porque, aquele que quercomo entrega e doação, precisa se fazer fraco, melhor, frágil, permeá-vel, para assim poder ser tocado, tomado e, então, levado, guiado oudeterminado pela própria coisa e, desse modo, fazê-la (deixá-la) vir àsua própria essência, ou seja, ao seu modo próprio de ser ou de fazer-se, pois isto, quer dizer, vir a ser e fazer-se no que é e como é, é osentido próprio de essência, de essencializar-se. Ser desde sua própriaproveniência, desde sua própria gênese.

7. “O poder do querer é aquilo em cuja força uma coisa podepropriamente ser. Esse poder (“Vermögen”) é o autêntico possível, asaber, aquilo cuja essência se funda no querer.”

Entendido o querer desde busca ou procura e estes como doação eentrega ao buscado ou procurado e esta doação ou entrega, por suavez, como escuta ou obediência (um seguir ou acompanhar) à própriacoisa – assim entendido, pois, este “poder do querer” é, na verdade,poder nenhum, ou seja, é um autêntico poder não poder. Isso é, me-lhor, nisso está todo o poder, tal como o poder da criança (lembrarNietzsche). Neste poder não poder, nesta forma ou modo de ser crian-ça, está o deixar ser, isto é, deixar, consentir que a própria coisa (obuscado, o procurado, o querido) seja o que é ou que venha a ser o quepropriamente é. “Deixar”, “deixar ser”, não é largar apática e desinte-ressadamente. Este “deixar” não pode ser compreendido desde apatia,indiferença, passividade. Em outros termos, “deixar” não pode ser en-tendido como coisa passiva como contraste ou reação à atividade im-pulsiva ou frenética de um fazer voluntarioso, ativo. Aqui, ativo oupassivo, ativo versus passivo, não é medida para se entender este deixar

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ser. Antes, aqui, medida é só a escuta e a entrega à escuta na escuta –participação vital. Assim, neste sentido, este querer, que é o poder, é opossível, quer dizer, o que possibilita, à medida que deixa ser, a própriaessência, a própria proveniência ou gênese da própria coisa, o própriofazer-se ou vir-a-ser-coisa de coisa. Sim, este querer, este poder, doa,presenteia essência, pois é graças ou por graça (por doação) do poderdeste querer que algo é, pode ser o que é. Poder, portanto, não é enten-dido como estruturação, ou seja, como constituição, modelagem eestes como coação e subjugação de um fraco (o constituído, uma coisa,um objeto, o passivo) por um mais forte (o constituinte, o sujeitoautônomo, o ativo).

Não. Poder diz: desde entrega e escuta (o querer!), possibilitar,possibilitação e isto, por seu lado, quer dizer: liberação de possibilida-de ou de poder ser. Isso, justamente isso é força, a “força silenciosa”, ouseja, retraída, porém presente, e que, então, se faz a única e a só realida-de. A vida da coisa ou a coisa-vida.

8. Continua Heidegger:“... O pensamento é pensamento do ser. O genitivo exprimeduas coisas. O pensamento é do ser enquanto, provocado peloser em sua propriedade, pertence ao ser. O pensamento é aindapensamento do ser enquanto, pertencendo ao ser, ausculta oser. Enquanto, auscultando, pertence ao ser, o pensamento é deacordo com a pro-veniência de sua essência”5.

Pensar, aqui, não pode ser entendido como poder, i. é, uma facul-dade, de representação. Não é, igualmente, um poder ou uma faculda-de de formular ou de inventar conceitos e, ao mesmo tempo, o poderou a capacidade de amarrar, de organizar logicamente estes conceitosou representações. Também não diz respeito ao produto ou ao con-teúdo da atividade ou da capacidade (faculdade) de pensar lógico-con-ceitual e representativamente.

5. Idem. op. cit. p. 28/9.

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Seguindo a citação, pensar se dá desde, a partir de escuta e comoescuta. Mais: ausculta. A escuta, sobretudo a escuta lhe dápertencimento. Pertencimento à medida que, escutando, o pensar éapropriado por ser e, então, se faz pensamento do ser.

Já caracterizamos esta escuta a partir da busca e da entrega ao bus-cado, i. é, ao querido. Ser levado, conduzido pelo próprio buscado,esta entrega e seguimento ou obediência – isso constitui a escuta. As-sim, escuta é pertencimento ou participação, ou seja, um tomar parteem ... o escutado, buscado, querido. Este pertencimento ou participa-ção passa a ser a própria textura, a própria consistência ou constituiçãodo pensar, do pensamento.

Esta escuta, participação ou pertencimento faz com que pensa-mento seja “de acordo ou segundo a proveniência, isto é, a gênese, desua essência”. Em outros termos, desde tal pertencimento, pensamen-to e o buscado ou querido se fazem co-naturais, isto é, consangüíneos.Pensar, assim, como já se disse, não é estruturar, constituir, objetivar,mas tão-só testemunhar, ou seja, tão-só dizer e assim celebrar e aquies-cer a própria gênese de seu pertencimento, de sua participação. É issopropriamente o “deixar ser”. Pensar, assim, é, desde e como escuta,falar, dizer, mostrar e então celebrar o elemento, pois em última ouprimeiríssima instância, é desde e como participação e dizer do ele-mento (do ser) que gênese se faz, se dá ou acontece.

Elemento, ser, é o transcendente, constitui-se como transcendência.

9. Transcendência não se refere ao objetivo, ao fora, ao externo,como o que se opõe ao subjetivo, ao dentro, ao interno, que seria aimanência. Mais uma vez: o súbito, a imediatidade ou o salto, enfim,o círculo, que instaura vida, existência, exclui a possibilidade da fala desubjetivo x objetivo, de interno x externo e, nesta direção, de imanentex transcendente. Mas como? Por quê?

O homem, como se fora um algo já constituído, não passa, nãosalta para o transcendente, como se um dentro (i. é, um sujeito, um

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eu, uma alma, uma consciência) passasse, saltasse para um fora (o ob-jeto, as coisas, o mundo). Não. O salto, o acontecimento transcen-dente, i. é, que ultrapassa, sobrepassa e sobrevém o (ao) homem, o qualdefine o modo de ser transcendência, é o fato de o homem, enquanto “arealidade da liberdade como possibilidade para a possibilidade”(Kierkegaard), de repente, subitamente ser tocado e tomado pelo aconte-cimento mundo, i. é, vida, existência, que evidentemente o ultrapassa, otranscende. A evidência é dada pela experiência arcaica. Experiência (afeto,“páthos”) é evidência. Dito de outro modo: em sendo “a realidade da liber-dade como possibilidade para possibilidade”, transcendência é propria-mente o dar-se, o acontecer do fato, de repente, que há, que é, que dá-se ou que faz-se ser, isto é, mundo, sentido-mundo, ou seja, a expe-riência vida, existência. Tal acontecimento, em sobrevindo ao homem,dele apodera-se ou apropria-se, fazendo, melhor, possibilitando queele venha a ser o ente, i. é, a possibilidade que é.

Este proto-acontecimento (Ürphänomen), que constitui o homemessencialmente, ou seja, em sua permanente gênese, atravessando-o ouperpassando-o todo, e que, por ser assim súbito, ou seja, salto, pode-seou deve-se também denominar absoluto, no sentido que é um aconte-cimento que não se refere a nada, absolutamente nada fora, além ouaquém – enfim, este proto-acontecimento, que constitui o homemessencial ou medularmente, é como que anterior ao próprio homem.E é este acontecimento que se denomina propriamente transcendência.Pleonástica ou redundantemente: absoluta transcendência.

10. Imediatamente, subitamente dá-se, faz-se, é e há. Este modode ser, a imediatidade ou subitaneidade, marca ou define transcendência.Transcendência é a circunscrição ou o âmbito subitamente aberto, ins-taurado, e que é o lugar, a hora – é isso o âmbito – do homem, i. é, davida, da existência. O salto nele mesmo já é transcendência. E étranscendência à medida que é pura gratuidade, puro acontecimento,ou seja, pura doação. É graça e de graça. Dá-se, faz-se, acontece e sem-

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pre já se deu, sempre já se fez, sempre já aconteceu desde nada, pornada, para nada. O divino, o sagrado, o extraordinário é não ser, nãoter, não precisar ser ou ter nenhum começo, nenhum princípio, ne-nhuma causa: gratuidade, abissalidade – pura transcendência.

Cheio deste acontecimento, completamente tocado e atravessadopor este modo de ser, a saber, transcendência, o poeta exclama e, então,abre e pontua toda a poética de Sonetos a Orfeu: Uma árvore irrompeu.Ó pura irrupção! Ó pura emergência! Ó pura transcendência!6

Este “puro”, que estamos usando e abusando, diz: só, tão-só. Só,tão-só gratuidade, doação. Só, tão-só abissalmente e, então, gratuita-mente, absolutamente. Salto, inserção – círculo. Dá-se, faz-se, é ele-mento. Puro elemento.

Este mesmo acontecimento é celebrado, esta mesma experiência édita e festejada, quando se lê, quando se ouve:

E, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira paracima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ím-peto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo – ó colossalidade!– na direção da altura?7

Ó pura emergência! Ó colossalidade! “Pura”, isto é, não outra coisaque só e tão-só irrupção gratuita, gratuita emergência e instauração oufundação. Só, tão-só, isto é, por nada, graças a nada e para nada. Denenhum lugar, para nenhum lugar. Sem porquê, sem para quê. Puragratuidade, doação. Milagre. ...! O começo, o acontecimento trans-cendente, enfim, transcendência é exclamação, vocativo, pura excla-mação, puro vocativo – chamado, apelo, convocação. ! É. Há.

6. “Ein Baum stieg. O reine Übersteigung!” Cf. RILKE, R.M. Die Sonette an Orpheus,Franckfurt: Insel Velag, 1976, p. 51.

7. Cf. ROSA, J. G. “São Marcos”, em: Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1978, p. 238.

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Encerrando, ouçamos ainda João Guimarães Rosa:“Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de ummistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quan-do nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”8.

Petrópolis, 25/05/2008.

8. Cf. ROSA, J. G. “O espelho”, em: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Livraria JoséOlympio Editora, 1981, p. 61.

CRISTIANISMO E BUDISMO NO PENSAMENTO ORIGINÁRIO

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CRISTIANISMO E BUDISMO NOPENSAMENTO ORIGINÁRIO

Leonardo Boff *

Este pequeno texto quer homenagear o modo de pensar de FreiHermógenes Harada. O que tem marcado sua trajetória intelectual foitentar sempre de novo ver todas as realidades e todos os eventos apartir daquilo que chamamos de “pensamento originário”.

Pelo pensamento originário se procura alcançar aquele nível de pro-fundidade para além do qual não se pode mais ir. Por isso termina nonobre silêncio. Mas para chegar lá, precisa-se percorrer um tormento-so caminho, feito de muitas palavras. Esse silêncio não significa quenão se tem mais nada a dizer. Pode-se dizer muitas coisas. Mas elasterminam por não dizer o que se quer dizer. Por isso é um silêncionobre e reverente.

O pensamento originário não é propriamente um pensamento,mas a origem do pensamento. Vale dizer, aquele transfundo a partirdo qual tudo é englobado, do qual tudo se faz emergência e transpa-rência. Costuma-se chamar a isso de “Última Realidade”. Sobre a “Úl-tima Realidade”, não podemos, a rigor, dizer nada, nem o ser nem onão-ser. Ela está para além das determinações de existência e não-exis-tência, pois é em si mesma inefável (apofatismo ôntico) não só paranós, humanos, no tempo, mas para si mesma por toda a eternidade.

* Leonardo Boff, teólogo, olim frater e sempre franciscano.

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Se lhe afirmamos o ser, significa que ela é pensável e comunicávele então pertence à ordem das manifestações. Logo, não é a “ÚltimaRealidade”. Apenas revelações dela. Se lhe negamos o ser, pareceria queentão se liquidaria o problema. Mas podemos simplesmente negar-lheo ser? Na verdade, ela está para além de nossas determinações de ser ede não-ser. Podemos, entretanto, dizer: é mas para além de nossas de-terminações de ser-e-de-não-ser, como afirmação e negação de um e deoutro. Ela é mas de forma totalmente inapreensível por quem querque seja. Se fosse apreensível, cairia sob o domínio de nossa compre-ensão e não seria a “Última Realidade”.

Místicos e pensadores radicais como o Mestre Eckhart, Buda eWittgenstein colocaram esta questão. Todos terminam no nobre si-lêncio. Não é por nenhum motivo pessoal ou ligado à natureza huma-na. Os três recusam a falar por uma exigência da “Última Realidade”.Porque tudo o que dizem não diz a “Última Realidade”. Lembremoso testemunho de Wittgenstein do Tractatus logico-philosophicus: “parao inexprimível não há linguagem; mas ele se mostra; é o místico” (6,52).Mas sobre o místico não se pode falar. Por isso completa: “sobre o quenão se pode falar, devemos calar” (Tractatus 7). Por esta razão, todoseles não falam da “Última Realidade”. Apenas apontam o caminhoque leva a ela. E esse caminho desemboca no silêncio reverente.

Queremos exemplificar esta questão radical à luz do Budismo edo Cristianismo, porque ambos alimentaram e iluminaram a vida e opensamento de Harada.

Há duas formas básicas de se estudar a relação entre o Budismo e oCristianismo. A primeira os toma como dados já constituídos, corposhistórico-sociais. O estudo de ambos visa mostrar as diferenças, as dis-crepâncias e as semelhanças.

Um segundo modo, procura entender o Budismo e o Cristianis-mo a partir do pensamento radical, como resultado de um processo

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mais profundo. O dado então é um feito. Sua realidade é uma realiz-ação. Budismo e Cristianismo são revelações da “Última Realidade”,força anterior que continuamente está atuando na história e mesmono universo e que encontrou neles uma das formas possíveis de emer-gência. Budismo e Cristianismo não encontram em si as razões de ser.Ambos remetem a esta Realidade mais profunda. Eles não explicam.Antes, precisam ser explicados. Este caminho é o do pensamento ori-ginário, presente nos pensadores radicais do Oriente e do Ocidente.

Um sutra da antiga sabedoria da Índia nos ilustra o que queremosdizer: “O que faz o pensamento pensar não pode ser pensado”. Querdizer, o pensamento vive de uma energia que permite ao pensamentoirromper; ela é sempre subjacente ao pensamento; por isso não podeser pensada, pois é condição do pensar. É semelhante ao olho que tudovê mas que não pode ver a si mesmo.

Algo semelhante ocorre com o Cristianismo e o Budismo. Elesvivem de algo que vem antes deles. Nascem de uma Energia, feitaexperiência existencial, que possui a natureza do inominável e doindecifrável. Pois estas são as características do Mistério e da “ÚltimaRealidade” que está para além de qualquer realidade. Budismo e Cris-tianismo são diferentes maneiras de re-agir e dar expressão concreta aoMistério e à “Última Realidade”

Talvez a nova cosmologia nos sirva de metáfora do que significaesta Realidade que ousamos chamar de Última. Diz-se que todos pro-cedemos do big bang, aquele pontozinho, infinitamente pequeno masgrávido de energia, de matéria e de informação que há 13,7 bilhões deanos explodiu e se expandiu, gerando todo o universo e a cada um denós. Mas antes dele, consoante cosmólogos contemporâneos, havia o“vácuo quântico”, aquele transfundo repleto de energia de onde tudovem e para onde tudo retorna. Ele é chamado também de “abismoalimentador de todo ser”. Enquanto tal, ele é ainda discernível pelaciência. Ele é o antes de tudo o que existe.

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Mas o que havia antes do antes? A rigor não pode ser o nada,porque do nada não vem nada. Deveria haver uma “Última Realida-de” que deu início a tudo a partir da qual o universo se constituiu. Esseantes do antes possui as características do indecifrável e do inominável,quer dizer do Mistério e da “Última Realidade”.

Ora, as religiões e os caminhos espirituais chamam a esta Energiaou “Última Realidade” de Tao, de Buda, de Alá, de Olorum, de Shiva,de Javé, de Cristo, de Deus.

Budismo e cristianismo surgiram a partir da experiência desta “Úl-tima Realidade”. Ela é experimentada como uma Presença ou um Va-zio que irradia, que fascina, que arrebata até o êxtase. É uma vantagemevolutiva do ser humano o fato de poder captar esta Presença ou esseVazio que se anuncia no inteiro universo e em cada ser.

No Budismo se fala do princípio Buddha ou de budidade(buddhata). Ela se encontra em cada ser. O Cristianismo fala dacristidade, do “princípio Cristo” (Col 1,18) e do Cristo que “é tudoem todas as coisas” (Col 3,11). É o crístico presente em cada entecriado.

Quando um zen-budista pergunta pela natureza de Buda, não estáperguntando por dados históricos de sua vida ou por doutrinas, maspela “Última Realidade” intemporal e eterna, presente em cada ser eque encontrou uma expressão culminante na figura histórica de SidartaGautama. Quando um cristão pergunta, num sentido radical, peloCristo, quer saber da “Última Realidade” ou do Mistério que está pre-sente em todos os seres e que encontrou uma expressão histórica emJesus de Nazaré.

Mergulhar nessa realidade é chegar à suprema bem-aventurança(nirvana) pelo caminho da iluminação (satori) ou ao reino de Deuspelo caminho da identificação com Cristo (“não sou eu que vivo éCristo que vive em mim”: Gl 2,20). O objetivo de cada coisa e de cada

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pessoa é comungar e fundir-se com essa “Última Realidade” (“a amadano amado transformada”, de São João da Cruz).

Ela sempre está aí na sua gratuidade. O que nos cabe é invocá-la,preparar-nos e abrir-nos para que ela chegue até nós. Daí a necessidadeda disciplina e dos vários caminhos espirituais. Eles não produzem ailuminação e a experiência de não-dualidade com Cristo. Apenas cri-am espaço para que ela emirja e irradie.

Tanto o Budismo quanto o Cristianismo sabem da decadência dacondição humana, na forma de sofrimento (Budismo) ou na formade pecado (Cristianismo). Ela demanda libertação, seja pelo completodespojamento (Budismo) seja pela real conversão (Cristianismo). Es-vaziando totalmente a mente, permitimos que a “Última Realidade”emirja em nós como experiência no silêncio. Então percebemos queela é a essência de cada ser. O cristão se propõe unir-se radicalmente aCristo e verá sua irradiação em todos os seres, criados nele e por ele(Col 1,16), perceberá Deus, tudo em todas as coisas (1Cor 15,28).

Para o Budismo é fundamental a com-paixão (karuna) para que nin-guém tenha que sofrer sozinho. O bodhisattwa, aquele que chegou à ilu-minação, renuncia entrar no nirvana para renascer e ser solidário com cadaser que sofre, seja um ser humano, um animal ferido ou um galho quebra-do. Para o Cristianismo é fundamental o amor incondicional até com oinimigo e a com-paixão irrestrita para com o caído na estrada.

A energia da budidade fez Gautama se transformar em Buda (ilu-minado), assim a energia da cristidade ou do crístico fez que Jesus deNazaré se tornasse o Cristo (Ungido). Essas energias, na verdade, sãouma única energia: a “Última Realidade” ou no dialeto judeu-cristão oDeus-Energia ou o Spiritus Creator agindo e se revelando nas coisas enas pessoas dentro da história, resgatando-a e elevando-a até a si parauma suprema realização no mergulho do Mistério e da “Última Reali-dade”.

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LEONARDO BOFF

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Ter persistido nesta linha de pensamento radical, ao longo de todauma vida, ter animado a confrades e percorrerem esse caminho árduomas bem-aventurado, é o mérito de Frei Hermógenes Harada. Decerta forma ele uniu Oriente com Ocidente e fez do zen-Budismo umcaminho para o Cristianimo e do Cristianismo uma senda para o zen-Budismo. Ambos, Budismo e Cristianismo, testemunham para a hu-manidade a mesma coisa, a “Última Realidade” ou o Mistério a quemHarada, na santidade do pensamento, procurou servir com grandehumildade e comovente jovialidade.

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IMENSIDÃO E ASUBJETIVIDADE *

Márcia Sá Cavalcante Schuback

“Mas, então, como é possível ver, captar, afetar-

ser, ou melhor, ser tocado sem representar, sem

objetivar, sem nada de intermédio, assim direta e

simplesmente? Não há resposta para essa pergunta a

não ser: em sendo simples e imediatamente ver,

captar, afetar-se, ser tocado. Pois aqui ver, captar,

afetar-se, ser tocado não é outra coisa do que de

imediato e simplesmente ser presente, prejacente a

seu modo, como ente denominado homem, na

pregnância da imensidão, profundidade e vigência

da prejacência”1.

Fala-se hoje muito de “diferença”. Diferenças culturais, diferençaspessoais, diferença metafísica, diferença ontológica, diferenças de visãode mundo e, assim, por diante. A filosofia tem tematizado problemasde intersubjetividade, intercorporalidade e interculturalidade, discutindomais e mais caminhos possíveis de diálogo entre o si-mesmo e o outro,entre diferentes tradições de pensamento, entre Ocidente e Oriente.Quanto mais se interroga sobre modos de acessar diferenças, mais

* Esse texto é a versão em língua portuguesa e em parte alterada da conferência apresen-tada em Tóquio, novembro de 2008, “Immensity and Asubjectivity”, no 9 encontroanual da Sociedade Japonesa de Fenomenologia. Ambas as versões foram dedicadas aFrei Hermógenes.

1. HARADA, Frei Hermógenes, OFM. Comentário “especulativo” acerca da objetivação,in: Scintilla. Revista de filosofia e mistica medieval, vol. 2, n.2 – Curitiba, jul/dez, 2005,p. 273-297.

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descobre-se, porém, que as diferenças estão mais misturadas eidentificadas com um padrão europeu-ocidental de ser do que se espera.A diferença entre experiências culturais misturadas (como nas culturasocidentalizadas e colonizadas) indicam a complexidade dessas questões,pois em jogo estão mecanismos de identificação e desidentificação, deprojeções e introjeções que colocam em dúvida a própria noção dediferença como diferença autônoma e separada, como diferença “emsi”. Na bonita novela Kusamakura, Natsume Soseki, considerado opai da moderna novela japonesa, faz aparecer a dificuldade de se pensare trazer à palavra a questão da diferença, pois como ele diz “como umacoisa se mostra, isso depende de como se a vê”2.

Como pensar a diferença permitindo que seja o que é: diferença, oque não se deixa reduzir a ou deduzir de um outro do que ela mesma?Com essa questão gostaria de esboçar e, assim ensaiar, minha homena-gem a Frei Hermógenes e, com ela, expressar minha gratidão por tudoque com ele venho, sempre e de novo, aprendendo – a vida do pensa-mento.

Diferença aparece de início como o longe do nosso perto. Dife-renças estão longe, no sentido de que não conseguimos reconhê-lascomo algo pertencente ao nosso campo de visão. O que pertence aonosso campo de visão está perto de nós, existindo como meio e paisa-gem, um pano de fundo sempre presente e que não chama a nossaatenção. O que está perto de nós parece comum e habitual. É o quetambém chamamos de familiar e doméstico. Encontrar o que se achadistante de nosso campo de visão – ou bem nós – ou seja, quem vê –precisa movimentar-se ou bem o que se vê deve mover-se. Ou bemsomos que nós que devemos nos deslocar ou bem a coisa longe de nósdeve fazê-lo. Essas condições não são apenas físicas ou corpóreas, masigualmente “espirituais”.

2. SOSEKI, Natsume. Kusamakura. Penguin Books, 2008.

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Quando nos deslocamos para um lugar e um tempo distantes, sejaviajando no tempo da memória e da fantasia, seja no tempo real, leva-mos a nós mesmos nesse deslocamento. Levamos o nosso perto paraesse longe. Levamos conosco o que somos. Somos nossas memórias enossos sonhos, somos o nosso saber e o nosso não-saber, somos nossopassado e o nosso futuro – somos não apenas o que somos mas tambémo que não somos. Tudo isso levamos conosco quando nos movimenta-mos para além de nós mesmos rumo a um lugar e um tempo distantes.Movendo-nos para além de nós mesmos e alcançando esse longe, o queantes era longe aparece como perto, embora numa maneira nova e signifi-cantemente inesperada. Aparece como estranho. O estranho é o longeficando perto de nós. O estranho é o longe adentrando nosso campo devisão. Nesse momento, o longe passa a referir-se ao que, antes, estavaperto de nós, a ele relatando-se no modo de uma tendência a tornar-se um“como se” fosse perto de nós. Adentrando nosso campo de visão, o longeadentra a tendência de identificar-se com o nosso perto. Vemos então essenovo perto como um novo relacionado à antiga proximidade. Compara-mos. Vemos esse perto como um duplo, como uma reduplicação. Viajaré fazer a experiência desse duplo no jogo de perto e longe, de proximida-des e distâncias.

Viajar é uma experiência que não acontece apenas quando parti-mos para países e terras distantes. É, até um certo ponto, o que sempreacontece quando “vemos” algo diferente. Ver coisas diferentes é fazer aexperiência de uma viagem tendo lugar na visão. É o que permite quetambém possamos ver coisas que sempre estiveram perto de nós comoalgo diferente. Isso acontece quando tomamos distância e o que antesera perto vira longe. Isso acontece, por exemplo, quando alguma coisajá sempre presente passa a nos chamar atenção. De repente, ela se tornaestranha. Aqui, o que era perto aparece como o que já era distante semque o percebéssemos como tal. Aparece então como proximidade,tornando-se heterogêneo relativamente ao que antes era presença não

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observada. O longe de nós pode tornar-se próximo e aparecer como sefosse nosso. Mesmo o mais próximo de nós pode tornar-se tão distanteque aparece como nossa própria estranheza, como o estranho de nósmesmos. Essas experiências são muito simples e banais, sendo parteconstante de todo viajar. Por serem simples e banais, delas nos esque-cemos rapidamente não obstante permanecerem dentro de nós na es-tranha luz turva e no embaçamento iluminado que aderem aos nossosolhos ao chegarmos no lugar do longe, onde diferenças têm lugar.Quando diferenças têm lugar e nos vemos cativos do jogo entre pertoe longe, nossa visão torna-se turva e embaçada.

Essas impressões tão corriqueiras, bem distantes de uma expressãoe explicação técnicas da filosofia, referem-se à visão de coisas. Podemostranspor essas impressões banais para a visão de pedras e animais, depessoas, culturas e mundos, ou seja, para a visão de qualquer coisa quese possa considerar coisa intramundana. A bem dizer, essas impressõescotidianas falam de um procedimento comparativo que opera quandoidentificamos algo como algo. Num certo sentido, toda identificaçãoem jogo quando dizemos, por exemplo, “isso é uma flor” já semprerealizou um certo grau de comparação, pois traz algo distante para umcerto grau de proximidade. No enunciado dêitico – “isso é a umaflor”, trazemos o “isso” para a proximidade da “flor”, dizemos semdizer que isso é como flores. E se dizemos em seguida que “flor é plan-ta”, fazemos também algo similar. Dizemos que a flor é como todaoutra planta. É uma tal semelhança que nos torna capazes de dizer queessa flor é como uma outra e até mesmo que ela é mais ou menoscomo as outras flores ou como qualquer outra coisa. É até mesmouma tal semelhança que nos torna possível dizer que essa flor é mais(flor ou bela) do que uma outra e ainda que ela é a mais (flor ou bela)do que qualquer outra.

O que assim descrevemos corresponde ao que podemos chamar,valendo-nos de uma expressão de Edmund Husserl, de “exame ou con-

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sideração comparativa” (vergleichende Betrachtung) ao nível da senso-percepção. Numas notas de 1929, intituladas Experiência e julgamen-to (Erfahrung und Urteil)3, Husserl mostrou como essas consideraçõescomparativas, tão comuns no nosso dia-a-dia e chegando mesmo aconstituir nossas percepções mais imediatas das coisas, estão longe deserem neutras. Não comparamos coisas simplesmente porque uma seacha ao lado da outra. Comparação é um ato interessado, um ato queocorre quando alguma coisa chama e provoca a nossa atenção. As coi-sas precisam dar-se para a consciência. Esse dar-se das coisas correspon-de ao interesse, à “intenção”, ao afeto, como preferia dizer Nietzsche,que nos motiva a voltar nossa atenção para o que se dá à visão, à escuta,etc. Coisas não são, portanto, “dados”, mas doações, ou seja, o queaparece, o que se dà a ver, a ouvir, a sentir. São um aparecer. Com issose diz que as coisas encontram-se inicialmente como que dissolvidasnum fundo, ele mesmo “atemático”, ou seja, que ainda não nos chamaa atenção, que ainda não se tornou um “tema”. Esse fundo é o mundoque, de início, aparece ele mesmo como um meio e paisagem “natu-rais”, ou seja, como o que não chama atenção por estar por demaispróximo de nós. Excitação e interesse articulam a possibilidade deencavar ou extrair desse fundo mundano atemático, não enfocado epróximo, o que se dá. Passando de uma doação à outra e depois vol-tando à anterior, torna-se possível, com base nesse fundo atemático –o mundo – reconhecer uma igualdade ou semelhança, ou seja, compa-rar. O verbo comparar, do latim comparo, significa literalmente trazeruma coisa para a proximidade da outra, para um conjunto enquantoum duplo ou um par. Passando de A para B, de flor para flor e depoisvoltando de B para a lembrança de A, o que é próprio a B pareceperder sua força (passa) ao mesmo tempo em que o que é próprio a Aparece tornar-se mais vivo. Quando os contornos de B se esvanecemao voltar a atenção para A, os contornos de A parecem avivar-se, como

3. HUSSERL, E. Erfahrung und Urteil. Hamburgo: Claasen & Goverts, 1948.

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se tivessem sido redesenhados, reforçados. Nesse reforço de um certotraço já presente no primeiro reconhecimento, dá-se uma duplicação queconstitui uma unidade sem, no entanto, perder o fato de ser um duplo.Por isso dizemos isso é como aquilo. Esses contornos perdem as suas dis-tâncias, tornando-se tão próximos que são quase como um e o mesmo.Em atos comparativos, onde aparece semelhança e não tanto igualdade,acontece o mesmo tipo de “operação” à exceção de que a distância entre asduas visões fica ela mesma mais visível. Nessa distância, os dois não for-mam um duplo, como no primeiro caso, mas um par. O contrário dasemelhança é heterogeneidade, seguindo ainda a terminologia de Husserl.Heterogeneidade é uma dessemelhança que aparece ela mesma sob a for-ma de uma luta (Widerstreit) de opostos. Em suas análises do que sejauma consideração comparativa, Husserl insiste sobre dois aspectos signifi-cativos para a questão em aberto, que aqui nos orienta. O primeiro é deque, enquanto relação de identidade e diferença, atos comparativos for-mam sentido num movimento de distância para proximidade, ou seja,numa aproximação. O que traduzimos inicialmente por “consideração”deve ser entendido literalmente como uma aproximação comparativa. Osegundo é que não comparamos coisas apenas por se encontrarem umajunto da outra mas porque nós, por assim dizer, buscamos um fundocomum, porque temos um interesse, uma motivação ou afeto que pedeessa busca. O que aqui está sendo buscado é o comum das diferenças, ofundo comum, o termo de comparação, o parâmetro de unidade. Husserlnão discute, todavia, como esse interesse por buscar o “comum”, essatendência para identificar diferenças (reduplicando-as ou fazendo pa-res) está relacionado com o movimento da distância para a proximida-de, ou seja, com o aproximar-se.

Essas análises da consideração (ou aproximação) comparativa refe-rem-se a uma análise dos mecanismos da nossa senso-percepção quetoma os olhos e a visão como parâmetro e base de todo perceber. Essaexperiência visual-perceptiva das coisas é, de há muito e, ainda mais

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intensamente na fenomenologia de Husserl, um parâmetro central paraa análise de como a subjetividade humana percebe a alteridade de ou-tras subjetividades não como coisas diferentes mas como uma outravida subjetiva e consciente. Admite-se, aqui, a diferença entre umadiferença percebida (diferença entre o sujeito da percepção e as coisaspercebidas) e uma diferença vivida (em que o sujeito da percepçãopercebe outros sujeitos percebendo coisas e sujeitos) . Essas comparti-lham, porém, a estrutura comparativa pela qual o distante é trazidopara uma proximidade, aparecendo como um duplo ou um par(Paarung). Aparecendo como duplo ou par, no sentido de ser como“eu”, o outro, a diferença vivida mostra sua alteridade em relação amim, sem misturar sua alteridade com minha mesmidade ou subjeti-vidade. Pensando assim, Husserl considera que o “outro”, no sentidode uma outra vida consciente, só se deixa perceber como outro me-diante analogia, ou seja, comparativamente. A estrutura analógica oucomparativa da experiência da alteridade de uma outra vida humanapermite, assim, tanto reconhecer a alteridade do outro (suacomparabilidade) como reconhecer a impossibilidade de uma vidacolocar-se no lugar de uma outra (sua incomparabilidade). Isso signifi-ca que o outro nunca pode ser realmente conhecido mas somente re-conhecido mediante analogia, uma vez que uma vida não é capaz de“entrar” numa outra vida. O outro só se deixa conhecer empaticamentee, nesse sentido, re-conhecer. Esse (re)-conhecimento empático impli-ca que tenhamos de primeiro “sentir” nosso movimento para o outroa fim de alcançar o outro na sua alteridade.

No mesmo ano em que Husserl desenvolve essas reflexões sobre oque chamou de “consideração (aproximação) comparativa”(vergleichende Betrachtung), Heidegger dá um curso sobre os Concei-tos fundamentais da metafísica – mundo, finitude, solidão4. Nesses cur-

4. HEIDEGGER, M. GA 29/30. Die Grundbegriffe der Metaphysik. Welt-Endlichkeit-Einsamkeit. Ed. F.v. von Hermann. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1983.

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sos, Heidegger discute as teses do homem como “formador de mun-do”, do animal como “pobre de mundo” e da pedra como “sem mun-do”. Essas teses são, como Heidegger bem as precisa, teses “provisóri-as”, cuja articulação estrutura o que também chamou de “consideraçãocomparativa” (vergleichende Betrachtung). A vida humana é, paraHeidegger, antes de “consciente”, vida fáctica, uma vida que apenasvive e existe como vida formadora de mundo. Assim, compreendercomo uma vida humana pode compreender ou a si mesma ou outravida e, a seguir, uma outra vida humana significa compreender como épossível compreensão de mundo. Compreender diferenças aparece aquiessencialmente relacionado com o modo de ser do homem, o modoem que existir humanamente é ser uma vida desde, dentro e para omundo. Pois é somente desde mundo que a existência humana vem aomundo e somente desde mundo que também pode sair do mundo.

A questão de como conhecer o outro e sua alteridade não se fundaprimeiramente no problema de como uma vida subjetiva e conscienteconhece outra vida subjetiva e consciente. A questão que Heideggerformula é como a vida humana em sua facticidade de ser como forma-dora de mundo pode compreender a totalidade inteira do mundo,enquanto um ser e não ser de uma só vez. É a partir de uma compreen-são da totalidade inteira de mundo que a existência humana pode rela-tar-se tanto ao que é como ao que não é, em si e para além de si ecompreender-se a si mesma como formadora de mundo. Relatar-se àalteridade, a diferenças não é algo que a existência humana experiencieprimeiramente em relação a outros seres mas primariamente como oque caracteriza o seu próprio ser. Existir significa ser em si mesmo forae para além de si. Significa ek-sistir, ser como espaço e tempo ek-státicos à medida que, de uma só vez, é e não é a totalidade inteira domundo. Existindo ek-staticamente, a existência humana – a presença– Da-sein – existe não como algo fechado em si mesmo tal uma cáp-sula, mas como abertura (= ser-no-mundo é compreensão de mundo).

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Aparecendo em sua vida fáctica como um desencobrindo-se (mais doque como desencobrimento), a existência humana possui uma outraacessibilidade a diferenças e alteridade do que algo que existiria fechadae inteiramente imanente em si mesmo. É a partir dessa disposição “exis-tencial” que se pode questionar a estrutura analógica e comparativa daconsciência da alteridade e diferença tal como entrevista por Husserl.É que para comparar é preciso partir da pressuposição de que alteridadeou diferença é imanente nela mesma. Discutir a possibilidade ou im-possibilidade de um conhecimento de outra subjetividade definidacomo consciência no sentido da possibilidade ou impossibilidade deuma transposição para o espaço e o tempo do “outro” só é possívelpressupondo-se que a vida humana fáctica é a vida de uma consciênciasubjetiva. Heidegger diz, no curso acima mencionado, que “o concei-to de uma transposição de si mesmo […] contém um erro fundamen-tal precisamente por negligenciar o momento mais decisivo numaautotransposição”5. Esquece o momento positivo de transpor a si mes-mo, o momento positivo em que a existência humana torna-se capazde transpor-se a si mesma não para um outro mas para um outro de simesmo e só assim ver-se capaz de caminhar-ao-longo-com o outro, per-manecendo outro com relação a ele”6. Em seu momento positivo,transportar a si mesmo (auto-transposição) é transportar-se a si mesmo,é o transpor-se de si e do si mesmo para um outro de si. É ir além dosi-mesmo em si mesmo e, assim, “outrar-se”, como disse FernandoPessoa, em caminhando ao longo com o outro. O que aqui se descrevenão é um viajar para o longe a fim de se adentrar a distância do outro,mas o aproximar-se da distância, do “entre” constitutivo do si mesmo.Lendo com cuidado as obras de Heidegger, pode-se dizer que o pró-prio desse movimento é a transposição paradoxal de si mesmo paraum si mesmo liberado do si mesmo, somente de onde torna-se possí-

5. Idem, § 49, p. 297.

6. Id. ibidem.

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vel um caminhar ao longo com o outro. Em lugar de comparação, nosentido de apreender o ser semelhante ou dessemelhante do outro forade si mesmo, o que aqui se define é o modo humano demasiado hu-mano de acesso ao outro desde a possibilidade de se caminhar-ao-longo-com-o-outro. Caminhando-ao-longo-com-o-outro, torna-se possívelcorresponder ao outro. Embora usando a mesma expressão de Husserl,“consideração comparativa” (vergleichende Betrachtung), nesses pará-grafos sobre o método discutidos no curso já citado (GA 29/30),Heidegger nos mostra uma compreensão muito distinta. Ele descrevea “consideração comparativa” como um poder-caminhar-ao-longo-com-o-outro, como um corresponder. Ele faz aparecer assim que a corres-pondência constitui o fundamento existencial dos atos comparativos.

O momento positivo de autotransposição, da transposição de simesmo para além de si em si mesmo, que possibilita o caminhar aolongo com outros, funda-se no modo humano de ser existência, nomodo de ek-sistir como formação de mundo. Sendo fáctica, ou seja,existindo como mundo, a existência humana existe espelhando o modocomo mundo é mundo, o modo como mundo mundaniza em tudoque a existência humana é e não é. As discussões de Heidegger sobre“consideração comparativa” são significativas porque a apresentam comoum outro método ou caminho para se conceber filosoficamente amundanidade de mundo, o ser mundo de mundo. No sentido depoder-caminhar-ao-longo-com, ou seja, de corresponder, a considera-ção comparativa é um outro método do que o “modo histórico” e o“modo cotidiano”, que Heidegger seguiu por exemplo em Ser e tem-po7. Para o propósito de nossa discussão, chamemos de “modo corres-pondente” o método de consideração comparativa. Heidegger não negaos métodos precedentes. Ele ainda sugere que devem haver outrosmétodos ou modos de consideração de como mundo é mundo, ouseja, o modo como “mundo mundaniza”8. O modo correspondente

7. Id. Ibidem.

8. Idem, p. 264.

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mostra, todavia, o modo espelhante-especulativo de ser-presença, Da-zu-sein, da estrutura da transcendência ek-stática que caracteriza a exis-tência humana fáctica como ser-no-mundo. Heidegger mostra aqui,em que sentido, pre-sença, Da-sein, não pode ser entendida como avida de uma consciência subjetiva mas como um desencobrindo(espelhante-especulativo). Pre-sença, Da-sein é fundamentalmente a-subjetiva por ser como mundo, por ser como espelhamento-especulati-vo da totalidade inteira de mundo. “… em todos os comportamentose relações damo-nos conta de nos relatar a cada vez a partir do “comoum todo inteiro”, por mais cotidiano e restrito que possa ser esse rela-tar-se”9. Da-sein é pro-jeção, Entwurf, não no sentido de um planeja-mento para ações futuras ou de um acolhimento do futuro em açõespresentes ao relacioná-las ao passado. É Entwurf , projeção entendidacomo “brilho da luz adentrando o possível possibilitador” [Lichtblickins Mögliche-Ermöglichende] como Heidegger formula ao referir-se àconcepção schelligniana da vida humana como Lichtblick des Seyns,como uma vida que é a luz de ser olhando-se para si mesma e, nessereflexo, fazendo aparecer a vida do homem como o seu espelho. Nofinal desse curso de 29/30, no § 76 da versão publicada, podemosseguir os pensamentos crípticos de Heidegger sobre a presença, Dasein,como projeção espelhante e espelho projetivo da luz de ser, onde pre-sença, Da-sein, define-se como sendo um “como a totalidade inteira demundo” não sendo a totalidade do mundo. Aqui, o como correspon-dente de Dasein – como o todo do mundo – é compreendido comoum “entre irruptivo”10, “ausente no sentido fundamental – de nuncaser simplesmente dado, sendo ausente em sua essência, sendo essen-cialmente um em indo embora (wegwest), removido para um ter sidoe futuro essenciais –, ausentando-se por nunca ser dado, não obstante

9. Idem, p. 525.

10. Idem, “Das ’als’ ist die Bezeichnung für das Strukturmoment jenes ursprünglicheinbrechenden ’Zwischen’, p. 531.

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existindo nessa sua ausência essencial”11, como “transposição para opossível”. No sentido de projeção espelhante e de espelhamento proje-tivo, de “entre irruptivo”, pre-sença, Da-sein significa o vir à luz irruptivoda asubjetividade da vida humana. Presença, Dasein é como clareado(gelichted) , uma concepção muito distinta do conceito de existênciahumana como vida de uma consciência subjetiva e de sua busca teleo-lógica de esclarecimento (Aufklärung)12. É em termos de um pensa-mento da clareira, Lichtung, que Heidegger formula o seu distancia-mento da fenomenologia transcendental de Husserl e propõe uma fe-nomenologia tautológica do inaparente13. Não subjetividade mas cla-reira (Lichtung) é o modo de Heidegger conceber ser como aconteci-mento e acontecer. Clareira, Lichtung, diz em termos asubjetivos o“dá-se”, Es gibt, de um há e não de um estar-aí “para mim”.

Como projeção espelhante e espelhamento projetivo da totalida-de inteira do mundo, ou seja, de como mundo mundaniza, pre-sença,

11. Id. p. 531: “Der Mensch ist im Übergang entrückt und daher wesenhaft (’abwesend’).Abwesend im grundsätzlichen Sinne – nicht und nie vorhanden, sondern abwesend,indem er wegwest in die Gewesenheit und in die Zukunft, ab-wesend und nievorhanden, aber in der Ab-wesenheit existent. Versetzt ins Mögliche…”.

12. Cf. HEIDEGGER, M e FINK, E. Heraklit, p. 200-201.

“Wenn Sie ’Bewusstsein’ auch noch als Titel für die Transzendentalphilosophie undden absoluten Idealismus nehmen, so it mit dem Titel ’Dasein’ eine andere Positionbezogen worden. Diese andere Position wird oft übersehen oder nicht genügendbeachtet. Wenn man von “Sein und Zeit” spricht, denkt man zunächst an das ’Man’oder an die ’Angst’. Beginnen wir bei dem Titel ’Bewusstsein’. Ist es nicht eigentlichein merkwürdiges Wort? – Fink: Bewssutsein ist eigentlich auf die Sache bezogen.Sofern die Sache vorgestellt ist, ist sie ein bewusstes Sein und nicht ein wissendes Sein.Wir aber meinen mit Bewusstsein den Vollzug des Wissens…”

13. Cf. as discussões de Heidegger sobre as diferenças entre a fenomenologia transcen-dental de Husserl e sua fenomenologia do inaparente em ‘Welche Aufgabe bleibt demDenken am Ende der Phlosophie noch vorbehalten?’ in Das Ende der Philosophieund die Aufgabe des Denkens, Zur Sache des Denkens, Tübingen: Max Niemeyer,1976, p. 66-80. Para uma definição da fenomenologia do inaparente, cf. Vier Seminare,Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, p. 135.

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Dasein é essencialmente a-subjetiva. Heidegger não usa o termoasubjetividade. Esse é um termo do fenomenólogo tcheco Jan Patocka.Gostaria, no entanto, de valer-me dessa expressão também relativa-mente a Heidegger como um modo possível de compreender o ser-como da pre-sença, de Da-sein enquanto um espelhamento-especulativoda totalidade inteira do mundo sobre o “entre”, essencialmente ausên-cia, constitutivo da presença, Dasein. O termo “a-subjetivo” deve sertomado no sentido de uma tensão com a subjetividade, de um entreser e não-ser. Como projeção espelhante e espelhamento projetivo datotalidade inteira de mundo (de como mundo mundaniza), pre-sença,Da-sein é de, uma vez, ser e não-ser. Por isso pode ser também chama-da, como Eugen Fink chegou a sugerir, crux ontologica, entrecruza-mento de ser e não-ser, fragmento da luminosidade própria do ser.Mundo mundaniza, die Welt weltet, no modo a-subjetivo de um raiode trovão, raio de luz repentina. Mostra a si mesmo negativamente naprojeção espelhante-especulativa da pre-sença humana. É por isso que,para Heidegger, o mundo enquanto acontecimento-raio da totalidadeinteira pode apenas aparecer como o todo de ser enquanto mundo, con-cebido como totalidade de entes, retrai-se e encobre-se. A irrupção dosentido de mundo como totalidade inteira quando o mundo comototalidade de entes (ou coisas) perde seu sentido, espelha o nada pulsantedo mundo. Na conferência O que é metafísica?, de 1929, Heideggerdiscute o nada pulsante do mundo como o modo em que o mundodá a si mesmo como totalidade que raia como luz repentina enquantoa existência perde o sentido de coisidade, des-encobrindo-se a si como“guardiã do nada” (Platzhalter des Nichts), que Heidegger tambémchamou de “pastor do ser” (Hirt des Seins).

Aparecer em desaparecendo é o modo como o mundo mundaniza.Esse modo é o modo da verdade, o modo aleteológico da mundanidadedo mundo. Aparecer em desaparecendo é o modo como mundo éfinitude e não infinitude. Finitude ou modo aleteológico do aparecer

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de mundo – dar-se em retraindo-se – define mundo como luta – Streit– com terra-natureza, com physis. Essa concepção da totalidade inteirade mundo é essencialmente distinta da concepção husserliana de mun-do como horizonte infinito, no sentido de um mais e mais, além ealém, característico das buscas de apreensibilidade que constituem aconsciência. Enquanto Husserl compreende mundo como horizontee horizonte como um mais e mais, adiante e adiante de um infinitomatemático inerente aos movimentos da consciência apreensiva edefinidora, Heidegger compreende mundo como finitude no sentidoaleteológico de aparecer em desaparecendo. Finitude de mundo nãosignifica um horizonte que possui um fim mas a experiência profundade imensidão. Imensidão é, assim, a experiência que mais se opõe àidéia de infinito14. Se quisermos compreender o que Heidegger querdizer ao definir Da-sein, pre-sença como “ser-no-mundo é compreen-são de ser”, é preciso caminhar ao longo com Heidegger em suas dis-cussões sobre a luta entre terra e mundo, entre physis (terra-natureza) emundo. É com base nessas discussões que o sentido de uma fenome-nologia a-subjetiva do inaparente pode ficar mais claro. A expressãomundo mundaniza, die Welt weltet, é em sua figura etimológica a es-trutura aleteológica do aparecer de mundo como mundo, no desapa-recer de mundo como conjunto de coisas – distanciando-se filosofica-mente do sentido da totalidade de mundo enquanto correlato de umasubjetividade transcendental.

Em seu evento transcendental, pode-se então dizer que o mundoaparece mais como cósmico do que como secularizado, ou seja, como

14. Sobre a crítica ao conceito husserliano de mundo como horizonte infinito elabora-da por Eugen Fink, cf.: WALTON, Roberto. “Worldliness in Husserl’s Late Manscriptson the Constitution of Time”. Veritas. Revista de fenomenologia, Porto Alegre, vol. 51, n.3, 2006, 142-145. SEPP, Hans Rainer, “Totalhorizont-Zeitspielraum. Übergäng inHusserls und Finks Bestimmung von Welt” und Yoshihiro Nitta, “Der Weltanfangund die Rolle des Menschen als Medium”, in: BÖHMER, A. (ed.), Eugen Fink. Würzburg:Königshausen & Neumann, 2006.

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mundo para sujeitos humanos. O termo “cósmico” é um vestígioheraclítico que percorre todo o pensamento de Heidegger, explicitando-se sobremaneira em suas discussões sobre a luta aleteológica do mun-do com a terra e sobre a quadratura de céu, terra, imortais e mortais.Cósmico é um termo heraclítico para nomear a imensidão do mundo.Em sua estrutura aleteológica de aparecer em desaparecendo, mundo éimensidão no sentido de jogo de luz e sombra, de céu e terra, de soloe abismo, de deuses e mortais. Como pre-sença, como um em si ek-stático, isto é, fora e além de si dentro de si, a vida humana fácticaespelha esse jogo da imensidão do mundo em seu modo de ser, deuma só vez, o mesmo e o contrário do mundo- raio de uma luz repen-tina. Pre-sença espelha o mundo como tensão de contrários, comoentrecruzamento de ser e não-ser em tudo que é e não é, que pode sere pode não ser. Como projeção espelhante e espelhamento projetivoda imensidão do mundo, pre-sença é co-incidência de ser e não-ser.Paul Valéry descreveu, certa vez, essa estranha coincidência de ser e não-ser na existência humana com as seguintes palavras: “Dou um passopara a varanda…/ Entro no palco do meu olhar. Minha presença sen-te-se tanto o mesmo como o oposto da totalidade desse mundo raianteque quer convencer minha presença de que ele a envolve. Aqui pode-sever todo o choque entre céu e terra”15.

Pre-sença, Da-sein, significa o hífen claro-escuro, o “entre” em queser e não-ser coincidem. O hífen claro-escuro ou “entre” é imagem daimensidão do mundo, do aparecer de si no próprio desaparecer. Essepensamento claro-escuro à base de uma fenomenologia a-subjetiva doinaparente apresenta uma perspectiva cósmica desde a qual um pensa-mento do mundo descobre seu fundo. Como compreender, porém,

15. VALÉRY, Paul. Alphabet. Paris: Le livre de Poche, 1997, p. 73: “Je fais un pas sur laterrasse…/J’entre en scène dans mon regard. Ma présence se sent l’égale et l’opposée detout ce monde lumineux qui veut la convaincre qu’il l’environne. Voici le choc entierde la terre et du ciel”.

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que a imensidão do mundo espelha-se na presença humana, incidindosobre o entre que lhe constitui da presença, sobre o entre que o ho-mem ele mesmo é? Esse espelhamento-especulativo fica mais claro seconsiderarmos, seguindo uma inspiração de Eugen Fink, a presençahumana como um entre a luz diurna e a obscuridade noturna, entrevisões diurnas e compreensões noturnas. Nas visões diurnas da presen-ça, coisas aparecem como não sendo a presença, como o que se encon-tra fora do homem para o homem. Sob a perspectiva da luz diurna, apresença conhece mediante um princípio de diferenciação, assumindoque coisas a serem conhecidas não são o ser que as conhece. Todavia,afirmando a si como não sendo o que está sendo visto, apreendido,pensado, a presença afirma a si mesma como não-sendo (isso ou aqui-lo). Presença é, no entanto, não somente existência à luz do dia masigualmente existência na obscuridade da noite, existência na não-dife-renciação. Presença é uma existência autodiferenciadora e, ao mesmotempo, não-diferenciada, enquanto existência na natureza, na vida. Éexistência que conhece tanto através determinações diurnas como atra-vés de não-diferenciações noturnas, através da vigília e do sono. Como“entre”, presença é ambos de uma só vez, como as escadas de PaulKlee, descendo e subindo ao mesmo tempo e de uma só vez, como asraízes de suas árvores que descem para o fundo da terra ao mesmotempo em que seus galhos elevam-se para a amplidão do céu. Issosignifica que, em conhecendo comparativamente medianteautodiferenciação (sob a luz diurna da consciência que diz “eu não souo que conheço”), a presença humana, paradoxalmente, corresponde,não conhecendo, à não-diferenciação noturna (fazendo a experiênciaque “eu sou o que não conheço” – o imenso do mundo e da vida).Separando a si mesma de cada coisa no mundo, presença, estranha eparadoxalmente, corresponde à não-diferenciação noturna da totalida-de inteira do mundo. Nessa estranha tensão de contrários, presençanão aparece nem como o mesmo e nem como o oposto da imensidão

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do mundo. Aparece como o seu não-outro, non-aliud, valendo-nos deuma expressão de Nicolau de Cusa. Como não-outro da imensidãodo mundo, presença descobre um outro sentido de distância e proxi-midade, não limitado pelas fronteiras do si-mesmo. Nesse ponto, podeaparecer a possibilidade de dar tempo e lugar para a luz clara-obscurado “entre”, a partir de onde diferenças não aparecem nem comocomparabilidade e nem como incomparabilidade mas como não-alteridade. Encontrar o outro como não-outro é possível num modocorrespondente, num caminhar-ao-longo-com-outros que, mais doque ver e ouvir os outros, significa ver e ouvir a imensidão do fazer-semundo no outro.

Nas suas discussões sobre as condições existenciais ou vivas paraum acesso à alteridade do outro, Heidegger nos alerta com relação aosatos comparativos. Foi o que também fez Goethe quando disse, noDivã oeste-leste:

Comparando, todo mundo tece muito facilmente julgamentos.Todavia, quando levadas longe demais, as semelhanças desapa-recem e os julgamentos comparativos, quanto mais cuidadosa-mente os examinamos, mais tornam-se inconvenientes. [“Jedermann erleichtert sich durch Vergleichung das Urtheil,aber man erschwert sich’s auch: denn wenn ein Gleichniss, zuweit durchgeführt, hinkt, so wird ein vergleichendes Urtheilimmer unpassender, je genauer man es betrachtet”]16.

Caminhando-ao-longo-com-o-modo-correspondente, esboçadopor Heidegger para aceder à outridade enquanto outridade e, assim,seguindo ainda os conselhos de Goethe, podemos encontrar algumasaberturas para tornar possível um encontro e uma conversa entre tradi-ções filosóficas diversas, como a fenomenologia no Ocidente e a filo-sofia japonesa e oriental. Esses caminhos não se confundem com atentativa de, por exemplo, descobrir japonesismos no Ocidente e o

16. GOETHE. West-East Divan, Deustcher Klassiker Verlag. 2000.

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ocidentalismo do Japão e nem com a proposta de tratar essas tradiçõescomo duas experiências paralelas que só podem ser examinadas com-parativamente. Filosofia mostra-se hoje em cada mais e mais compa-rativa e menos e menos co-respondente e co-responsiva ao acontecerda imensidão do mundo na existência. No mais das vezes, o que faze-mos em filosofia hoje é comparar filósofos diferentes, quer na mesmatradição quer em tradições diversas; comparamos diferentes períodosnum mesmo filósofo, ocupando dias exaustivos com colóquios esimpósios, tornando-nos mais e mais historiadores ou turistas de idéi-as e conceitos. Embora esse tipo de exame e consideração comparati-vos possa ter um valor técnico para o estudo da filosofia, ele tem-setornado mais e mais opressor e superficial. Isso se mostra ainda maisproblemático quando distâncias e proximidades entre tradições de pen-samentos mostram-se mais e mais undimensionalizadas e globalizadas,num mundo ditado por exigências tecnológicas de uso, consumo evivências. Nunca falamos tanto de diferença como hoje. Ao mesmotempo, nunca estivemos tão distantes da possibilidade de experienciardiferenças em seu movimento diferenciador. Mas talvez seja justamenteessa a hora certa para refletir sobre o que significa encontrar diferençasnum mundo que se torna a cada instante mais e unidimensionalizadoe nivelado. Deve ser essa a hora certa para questionar o modo compa-rativo como único acesso à alteridade de qualquer outro. Escutando omodo correspondente e co-responsivo entrevisto por Heidegger, po-demos nos tornar atentos para a urgência de aprender a caminhar aolongo com a outridade. Nesse aprendizado, temos de deixar para trástanto o que nos é mais próximo e o que está mais distante de nós,caminhando-ao-longo-com-o-”entre”de nós mesmos”, em que tantosomos como não somos nós mesmos. Esse é um momento de ser nãoser. Porque esse entre é o que deve irromper durante o caminhar aolongo com o outro, ele exige uma paciente deconstrução de nossospreconceitos e expectativas, de nossa vontade de poder e de saber, ou

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seja, de nossa vontade de comparação. Isso exige um des-aprender asconsiderações comparativas, algo muito difícil de se realizar. Pois cor-responder não é simplesmente negar, lógica e formalmente, a compa-ração mas des-aprender considerações comparativas encontrando, nes-se des-aprendizado, a possibilidade de escutar a sublime não-alteridadeda imensidão do mundo que constitui a outridade do outro. Des-aprendendo a comparar, pode-se descobrir o modo correspondente noseu significado essencialmente filosófico. Parece-me que a impressãocausada em Daisetz Suzuki pela doutrina das correspondências do visi-onário sueco Emmanuel Swedenborg está relacionada a essa necessida-de de des-aprender a comparar para se aprender a corresponder. Talvezpor isso Suzuki tenha chamado Swedenborg o Buddha do Norte.17

Nesse sentido, ainda podemos repensar a poética das correspondênciasproposta por Baudelaire ao pensar o homem moderno como um exí-lio de si mesmo. Trata-se assim de insistir sobre a intuição de queencontrar e pensar diferenças, o outro em sua outridade, exige umcaminhar ao longo com o entre diferenças como condição para oirromper da outridade no si mesmo. É o modo de “ser simples”. Essecaminho ou modo correspondente, modo de ser simples e, em sendosimples, ver, captar, afetar e ser tocado, é aquele contado por ChuangTzu na bonita estória A alegria dos Peixes18. Vendo a alegria dos peixesao caminhar-ao-longo-com-o-entre-nós, talvez possamos descobrircomo diferença, como outridade, espelha a imensidão do mundo apa-recendo assim como o seu não-outro. Talvez assim possamos desco-brir um modo de pensar junto com o que se nos dá a pensar. Talvezseja esse o modo em que a vida encontra formas de viver e morrer noesplendor da simplicidade de ser desde e para a imensidão do mundo.

Janeiro de 2009.

17. SUZUKI, D. T. Swedenborg. Buddha of the North. Swedenborg Foundation, 1996.

18. MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002.

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ECKHART E A SUPERAÇÃO DAMETAFÍSICA

Sérgio Mário Wrublevski

Pensar radicalmente a questão da metafísica tem se mostrado umdos grandes desafios intelectuais do nosso tempo. Ao longo de 25séculos, as diversas formas de pôr e de repropor criticamente a questãono-lo atestam. Se a crítica à metafísica se avoluma nos últimos trezen-tos anos, apontando para a inexorabilidade de tal questionamento crí-tico, como uma passagem decisiva para todo questionamento filosófi-co-espiritual essencial do nosso tempo, cada vez mais torna-se clara aimportância de compreender a questão ela mesma na sua envergadura,no seu enraizamento histórico, nas diversas alternativas e pseudo-alter-nativas. A superação da metafísica não consiste, obviamente, num quererfixar-se num sistema filosófico ou desvencilhar-se de algum, e simnum responsabilizar-se, aqui, agora, no contexto histórico em que vi-vemos, em colocar a questão da unidade e da verdade no seu caráterfundamental e suficiente em sua fundamentação, a partir e nos ques-tionamentos múltiplos e singulares da existência histórica do homem.Sem este sentido da verdade se manifestando em toda a sua exigência apartir e para a experiência humana, nós, homens, estaríamos desprovi-dos do bem mais importante, e tudo o mais perderia o seu significado.Nesse cipoal de dificuldades que uma autêntica superação da metafísicahoje significa, pode, desde o início, ajudar uma imagem que Heidegger,depois de ter se ocupado durante décadas com este questionamentonos sugere: A superação da metafísica não poderá ser uma experiênciaingênua de superação, liquidação de um sistema construído por algum

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gênio do pensar. Ela é antes uma experiência de convalescença de umaatitude doentia no espírito, que nos fica clara apenas quando aprende-mos a superá-la1. Também o segundo Wittgenstein nos lembra da ta-refa autêntica do pensar como superação de diversas doenças que nósmesmos teremos que aprender a superar para dispormos de saúde vi-gorosa, própria do vigor de espírito do homem.

A crítica da metafísica exige inicialmente que tenhamos presente aestrutura fundamental e típica do questionamento conhecido com estenome, “metafísica”, bem como os tipos mais característicos de metafísica,com os quais se dá a possibilidade de confronto e de superação.

A – Origem e significado do termo “metafísica”

Como já é de amplo conhecimento histórico, o termo “metafísica”provavelmente foi usado pela primeira vez pelo editor das obras deAristóteles, Andrônico de Rodes no 1º século a. C. Nessa ediçãoAndrônico usa a divisão da filosofia, comum no tempo do helenismo,em lógica, física e ética, e coloca 14 cadernos de Aristóteles, que não seencaixam em nenhuma destas três disciplinas, “depois das questões defísica” (meta ta physiká), por tratar-se de questões afins àquelas trata-das na obra “Física” (Ta physiká), mas também diversas destas. Nessaedição tais questões não são colocadas apenas depois da questões defísica, mas também depois de um livro sobre o céu (De caelo), sobre ageração e corrupção (De generatione et corruptione), sobre questõesmeteorológicas (Meteorologica), sobre questões acerca da alma (De ani-ma), e obras de biologia e zoologia.

1. Cf. Em vez de “superação” (Uberwindung), Heidegger sugere a palavra“Verwindung”, que pode se traduzida por “superação” no sentido de uma convalescen-ça. HEIDEGGER, M., Prólogo de “O que é isto – a metafísica (1927)”, bem como“Superação da metafísica” (1935).

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Essa tese de um significado apenas locativo da preposição “metá”(depois das obras de física) não explica por que tal obra teria sido colo-cada justamente depois das obras de física. Historicamente há, inclusi-ve, uma probabilidade, não de todo isenta de dúvidas, de ter havidouma edição do 3º século a. C., com o título Metaphysikà, formada de10 livros.

Uma primeira tentativa de explicar o título metafísica com umsignificado não apenas locativo-editorial foi realizado por Alexandrede Afrodisia (II-III século d. C). Segundo este comentador deAristóteles, este último teria chamado de metafísica a ciência denomi-nada “sabedoria”, que seria também uma “ciência teológica”, porqueestá depois da física, segundo a ordem relativa a nós2. Alexandre usaaqui uma famosa distinção feita por Aristóteles entre as coisas que sãoanteriores “por natureza”, i.é, por si, absolutamente (ou seja, os princí-pios e as causas, porque são a condição de inteligibilidade das outrascoisas), e as coisas que são anteriores “para nós” (ou seja, as realidadessensíveis, porque são acessíveis primeiramente à nossa experiência sen-sível). Por isto a regra metodológica a ser seguida parte daquelas coisasanteriores para nós, para alcançar aquelas anteriores por natureza, ou,dito de outro modo, parte do mundo da experiência para alcançar ascausas primeiras3. Aqui se esboça um entendimento do “metá” quenão significa um “depois” meramente locativo, e sim uma anteriorida-de de princípio, apreendida no que é mais próximo a nós (no médiumda experiência sensível), e para além dele (através de uma inteligibilida-de manifesta em si mesma como elucidação da experiência sensível)4.

2. Metaph. 171, 5-7.

3. Anal. Pr. II 23, 68 b 33 ss; Anal. Post. I 2, 71 33 ss; Top. V, 4, 141 b 3 ss; Phys. I 1,184 a 16 ss; Phys. I 5, 188 b 30 ss; Metaph. V 11, 1018 b 30 ss; Metaph. VII 3, 1029b 3 ss: Eth. Nic. I 2, 1095 b 2 ss.

4. Na preposição meta (depois de) pode ainda ressoar o antigo significado de ser “entre”(messos, messa).

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Aqui entendia-se a “física” como uma episteme voltada para seu obje-to, ou seja, para a natureza (physis), que é uma realidade apreensívelpela sensibilidade humana, e é objeto da experiência. A física precede ametafísica, enquanto esta última tem por objeto as causas primeiras,que são realidades supra-sensíveis.

Para Alexandre, metafísica, no sentido de Aristóteles, é a ciênciado ente, na medida em que ela não tematiza um determinado ente (onti) ou somente uma parte do mesmo como as demais ciências, mas o“ente como tal”, e é ao mesmo tempo teologia, na medida em que nainvestigação dos primeiros princípios e causas deste ente não se poderegredir infinitamente. Assim, a natureza deste “ente como tal” podeaqui, então, ser melhor caracterizada. Para Alexandre fica claro ser oconceito aristotélico do ente como tal orientado exclusivamente peloser das coisas naturais, i.é, pela existência atual de tais coisas fora donosso pensar. Com isto Alexandre tira conclusões do que, emAristóteles, é apenas uma orientação: de que o ente como tal é o sersubstancial de uma essência.

Os filósofos neo-platônicos (III séc. d. C.), baseados numa passa-gem em que Aristóteles chama a ciência investigada de “ciência teoló-gica”5, interpretaram-na como uma ciência que vem depois do físico,entendido o “meta” no sentido de “sobre” ou “para além de”. Baseadosem passagens de Aristóteles6, eles identificam a metafísica como umaciência teológico-ontológica: a metafísica, porque estuda as realidadesprimeiras, é chamada de teologia, mas, uma vez que as realidades pri-meiras são as únicas capazes de explicar o ser na sua totalidade, ametafísica é uma ciência que estuda o “ser enquanto ser”; é, pois, comoa própria expressão “ser enquanto ser” diz, universal, voltada à totali-dade do ser. Dito de outra maneira: Porque a metafísica se ocupa do

5. Metaph. VI 1, 1026 a 19.

6. Metaph. VI 1, 1026, III, 1.

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“ser enquanto ser”, isto é, do puro ser, ela se volta, antes de tudo, ao serque é ser antes de todos os seres, i.é, ao ser exemplar, supremo. En-quanto ciência que busca as causas primeiras e últimas do ente enquan-to ente, tem a ver com o ser do ente, ou seja com o divino.

Resumindo essa tradição, podemos reconhecer ter Aristóteles de-senvolvido um conceito de metafísica como ciência que vem “depois”da física no sentido de que esta investigação se movimenta a partir dasrealidades mais próximas a nós, i.é, a partir da experiência sensível,para buscar as causas primeiras. Somente depois de termos constatadoque as causas primeiras são anteriores às causas da física, podemos con-cluir ser a metafísica uma ciência da realidade supra-sensível. Mas umavez que a física é subsumida pela metafísica, esta, além de ciência dosupra-sensível, é também ciência da totalidade do real, pois as causasprimeiras, para serem verdadeiramente primeiras, devem ser causas datotalidade. Existe, portanto, em Aristóteles uma coincidência entre ametafísica como ciência da totalidade do real, i.é, do “ente enquantoente”, e a metafísica como ciência do supra-sensível, i.é do divino,chamada por Aristóteles de “teologia”. Isto não significa que o enteenquanto ente coincida com Deus, pois o sentido no qual o ente en-quanto ente é objeto da metafísica é bem diverso do sentido no qualDeus é objeto da metafísica. O ente enquanto ente é objeto da metafísicano sentido do qual se buscam os princípios e as causas primeiras7;Deus é objeto da metafísica no sentido de que é uma das causas pri-meiras do ente enquanto ente8. Causas (aitiai) no sentido aristotéliconão são alavancas de um movimento mas momentos deresponsabilização por uma questão.

Esta duplicidade de significados do termo metafísica tornou pos-sível usar o termo para indicar seja uma doutrina acerca da totalidade

7. Metaph. IV, 1003 a 31-32.

8. Metaph. I 2, 983 a 8-9.

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do real, entendendo-se aqui a busca das causas primeiras e últimas domundo da experiência, do que é e está sendo, seja uma doutrina focadano supra-sensível, que busca, em contraposição à experiência sensível,a esfera da realidade que é como condição de possibilidade da esferasensível.

Até agora não nos fica claro de onde provém filosoficamente anecessidade desta duplicidade de significados que o conceito “metafísica”recebeu em Aristóteles. Trata-se de uma compreensão genuína do pen-samento de Aristóteles ou do pensamento helenista ou neo-platônico?Qual a evidência dessas duas direções de investigação, e que questiona-mento mais radical elas intencionam realizar?

B – Enraizamento histórico da metafísica aristotélica

Essa duplicidade de significados da investigação filosófica, semprea partir de uma interpretação de Aristóteles, inaugurou uma tradiçãode indagação filosófica que haverá de estruturar a coluna vertebral dopensamento filosófico chamado “metafísica” durante séculos, em suasmúltiplas tentativas de re-proposta, superação e transformação. Antes,no entanto, de sondar um confronto com esta tradição posterior, tal-vez seja oportuno trazer aqui alguns elementos da tradição anterior, apartir da qual a tradição metafísica, sob o viés aristotélico, se consti-tuiu. Nessa relação de identidade e diferença com outras propostasacerca da questão fundamental da filosofia, talvez possa ficar mais cla-ra a questão fundamental nas suas possibilidades e limites, mas tam-bém em relação ao tempo em que a questão como tal se coloca.

No tempo inaugural do pensamento filosófico podemos breve-mente recordar aqui a direção do pensar de Heráclito e de Parmênides.

Para Heráclito todas as coisas se co-pertencem, e se interpenetram per-manentemente. Elas necessitam de uma força de integração que se dá como

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caminho de comunhão e contraposição, unidade a partir da diferenciação,e, a partir da diferenciação novas possibilidades de unidade. A unidade deintegração dos opostos dá-se como caminho positivo de ser, e negativo denão-ser, expansão ascendente e retraimento descendente. O sentido positi-vo de ser por ele mesmo não é alcançável a partir de fora dele mesmo, sejacomo derivação dos opostos, sejam como indução a partir do não-ser. Seo caminho do ser vier a se unilateralizar, perde paulatinamente sua força deestruturar um sentido de renovação do mundo. É, pois, nessa acolhidainstantânea e cada vez inesperada de um sentido positivo, mediatizadopelo não-ser que se dá o salto para a possibilidade de integração com ooposto, e que encontra possibilidade de crescimento no próprio retrai-mento e desintegração9.

Também em Parmênides encontramos o pensar como um cami-nho descrito como um vôo intempestivo, no qual o pensador deveráintegrar o caminho do ser com o não-caminho do não ser. “É somenteser, não-ser não é”. Este caminho de integração não conduz apenaspara cima, como fluência positiva de integração. Deverá se confrontartambém com o caminho para baixo, como desintegração, iniqüidade,escuridão, retraimento, sem desfigurar-se numa formalização abstratado caminho do ser, nem sucumbir a uma racionalização insidiosa docaminho do não-ser. Trata-se de um caminho que conduz através dosseus múltiplos níveis do pensamento da unidade sempre mais profun-damente para o confronto com a negatividade, diluição e retraimentoem toda a sua multiplicidade. O caminho positivo de integração entreSer e não-ser reúne em si esta multiplicidade, a conduz para a identida-de do puro ser e a entrega de novo para o âmbito, no qual a questão daunidade tem sempre menos valor. Por fim surge o mundo do homemcotidiano que dispõe tão-somente de uma infinidade de entidades.

9. HERÁCLITO, fragm. 60: “Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”.

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Na passagem do pensamento originário de Heráclito e Parmênides

para o pensamento clássico da metafísica aristotélica, Platão costuma

ser lido como o iniciador do formalismo metafísico posterior. Esque-

ce-se muito apressadamente que Platão foi discípulo dos heraclitianos,

e que Aristóteles talvez já articule os gonzos da planície do pensamen-

to do helenismo grego e latino. Apresentar a diferença qualitativa en-

tre o pensamento de Platão e o aproveitamento histórico que Aristóteles

realizou com a ressonância do pensamento de seu mestre é um dos

grandes desafios ainda por serem realizados.

No centro e ápice da reflexão acerca da essência da cidadania (jus-

tiça) seja como tarefa social-política, seja como tarefa individual-social

de cada cidadão, Platão reflete acerca da gênese do pensar em relação

com as diversas formas de saber, sejam elas realizações de um saber do

uso e vida (sócio-político), seja de um saber dianoético (científico).

Cada vez trata-se de um âmbito investigado segundo sua ordem inte-

rior. Esta ordem interior não se mostra sem trabalho da experiência

humana de competência, mas também não é derivada de uma apreen-

são empírica. Esta ordem interior à coisa diz propriamente a natureza,

a essência de uma coisa. Onde se fundamenta esta essência?

O saber de um certo âmbito de competência humana é um saber com

seu próprio médium de evidências. Ele surge como um olho para deter-

minadas “vidências”, as quais, encadeadas umas com as outras, formam

uma dinâmica de responsabilização pela evidenciação como um todo. Uma

tal e-videnciação busca ser uma responsabilização última e plena pelo “sen-

do”, como um âmbito de ser, i.é, pelo “sendo” na sua fundamentação

última, definitiva. Se todo o saber está sempre referido ao seu fundamen-

to, à sua causa (aitia), Platão vê o princípio do bem como uma possibili-

dade ontológica anterior tanto ao saber na sua evidenciação como anteriorao fundamento ou causa do saber em questão.

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Esta atinência do bem10 diz então atinência a uma originariedadedo saber, anterior a toda instrumentalização e fundamentação. O prin-cípio do bem encadeia, assim, a originariedade e nascividade do co-nhecimento como uma totalidade, colocando numa consonância aexperiência sensível e a configuração inteligível, de tal modo que nafiguração originária o homem vê uma esfera para além da realidade,não na direção de uma derivação e sim da originariedade. Neste senti-do a filosofia de Platão é uma filosofia da idealidade originária, por-que nela são concebidas idéias originárias, segundo as quais a realidadeterá de se conformar. É a realidade “figurativa” que funda a apreensãosensível da realidade. Trata-se de uma dimensão originária e de umadimensão derivada, ambas oriundas do processo genético do conheci-mento entendido como co-nascimento criativo do homem com oreal e do real com o homem.

Essa essencialização do conhecimento entendida como positivida-de de ser a partir do não-saber numa evidenciação cada vez bemencadeada de cada ordem, repercutindo em outras ordenações, tematizaa gênese complexa, cada vez livre e originária do conhecimento e nadatem a ver com uma articulação de mundos orientada por um logosgeral como se a questão da gênese de cada saber e do conhecimentocomo um todo pudesse ser reduzida à articulação de ordens e à conser-vação de uma lógica pré-determinante de tudo.

Aristóteles nos diz que a grande questão do pensamento filosóficode todos os tempos é colocar adequadamente a questão do “ser emtodo o sendo”. Ser para Aristóteles não deve ser entendido aqui nosentido de um ser particular, como por ex. a substância. Ser significaantes o manifestar-se do ser no sendo de modo a ser vigência do essen-cial. Este é o sentido originário da palavra grega ousia. Ser significa,então, tudo do qual se pode dizer que “é”, ou que “era” ou que “será”,

10. Eksis tou agathou (Rep. 509 a5).

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desde que manifestando-se como vigência de ser para um determina-do sendo. Falando disto ao qual é atribuído o ser, se pode dizer queisto é o “sendo” (on), entendendo com este termo, justamente, istoque é. Nem o ser nem o sendo são propriamente. O ser é propriamen-te o que faz ser o sendo na sua essência. Isto é tematizar “o ser enquan-to ser”, enquanto manifestação “como tal” (aplws), por si mesma(katháutò), isto é, sem ulteriores qualificações.

O ser enquanto ser não deve ser compreendido, portanto, como umadoutrina em si mesma, mas como o modo de tematizar o ser de tudo oque é, “enquanto ser”, de tal modo que a experiência humana seja plenoser. Tematizar a experiência na sua totalidade, i.é, a experiência integral,significa tematizar tudo o que é “enquanto ser”, não como uma sua parte,como o fazem as ciências particulares, mas na sua inteireza11. Cada ciênciarevela o sendo sob um certo aspecto. Cada aspecto, ou cada “parte” daexperiência é algo que é, é um sendo, mas tematizar o sendo enquantosendo, i.é, sem ulteriores qualificações, significa tematizar todo o sendo,em qualquer aspecto, do qual se possa dizer que é, ou seja, que antes detudo manifeste o ser de todos os sendos. Com a expressão “sendo enquan-to sendo” se aponta não somente para isto que todos os sendos têm emcomum, mas a todos os seus aspectos, seja aqueles que eles têm em co-mum, seja aqueles em virtude dos quais eles se distinguem um do outro.Que o sendo enquanto sendo para Aristóteles compreenda a experiência, eportanto não seja um tipo particular de sendo, vale também para o sendopor excelência, i.é, para Deus.

C – A superação da metafísica em Eckhart

Embora a unidade estabelecida por Aristóteles entre a metafísicaentendida como ciência do ente enquanto ente e entendida, ao mesmo

11. Katholou (Met. IV I, 1003 a 21-26).

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tempo, como teologia racional, tenha se mantido no âmbito da tradi-ção neo-platônica, seja no âmbito da Escolástica Medieval (como tam-bém seja na sua versão árabe e judia), Mestre Eckhart pode ser conside-rado um dos mais audazes críticos e inovadores desta forma de inter-rogação fundamental para a humanidade ocidental. Eckhart inovouresistindo à forma como a metafísica clássica que o aristotelismo, igua-lado historicamente ao platonismo, tinha passado para a tradição filo-sófica-teológica ocidental. Eckhart realizou esta resistência crítica, re-lendo mais rigorosamente Platão, descobrindo a inovação que o pen-samento de Dionísio Aeropagita significava. Mas foi no confrontocom Tomás de Aquino, representante maior da escolástica dominicanade viés aristotélico, que Eckhart trabalha a superação desta forma demetafísica.

Como é bastante conhecido, Tomás se apropria da tradição dafilosofia, ou seja, da metafísica como “scientia divina”, ciência de Deus,e o faz de tal modo que, mesmo sem desenvolvê-la sistematicamente,consegue fazer dela algo original e próprio. Sua metafísica está embu-tida na sua obra principal “Summa Theologica”.

Enquanto as diversas ciências pressupõem de seu objeto que ele é eo que ele é, pertence à metafísica mostrar que seu objeto é, e o que eleé. Para isto Tomás desenvolve uma análise reflexiva natural do conhe-cimento, na qual a divisão dos conhecimentos e ciências será clarifica-da a partir da metafísica ou filosofia primeira. No contexto dessa tare-fa Tomás distingue uma hierarquia de ordens que a razão pode reco-nhecer e criar.

Antes de tudo, a razão distingue uma ordem existente nas coisasnaturais, objeto de uma ciência especulativa, que, seguindo os passosde Aristóteles, Tomás chama de “filosofia natural” (Ta physiká). Logoapós, em segundo lugar, a razão distingue uma ordem a ser instauradano próprio ato da razão e nas suas concepções articuladas no médium

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lingüístico. Com esta ordem tem a ver a “filosofia racional”, articuladaatravés da lógica, dialética e retórica. Também a matemática é colocadacomo tendo o modo da “filosofia racional”, na medida em que criaordens tendo como objeto o ser objetivo. Uma terceira ordem racio-nal surge entendida como o âmbito dos atos fundados na vontadelivre. Este tipo de ordem racional deve ser apresentado pela “razão prá-tica” e pela “filosofia moral”. A razão na leitura das coisas externasdistingue ainda uma quarta ordem que se dá como a ordem na produ-ção de artefatos.

Assim, consequentemente dentro de sua tradição reflexiva, Tomásentende a metafísica como pertencente à “filosofia natural”. Para alémdo âmbito dos entes naturais, ele constata a existência de outros âmbi-tos e outras espécies de ser, como por ex., o conceito “nada”, que é“algo apreendido pela razão” e como tal é “sendo” (S. Th. I, 16,3,2).Deste modo, conclui Tomás, pode-se constatar ser o objeto dametafísica o ente como tal, abrangente de suas partes e de seus âmbitosparciais. Como última e primeira filosofia, a metafísica não somentepressupõe as demais ciências, mas também as inclui em si e é ela quejulga não somente os princípios mas também as conclusões das de-mais ciências. Ela é fundamento primeiro e último do saber humano,e por isto foi chamada de “sabedoria” (S. Th. I/II, 57, 2, 1). AssimTomás reconhece ter reconduzido o ente enquanto “algo que é”, atra-vés de seus princípios de essência e ser, ao ser existente divino. Perma-nece manifesta a mesma duplicidade do conceito de metafísica carac-terístico da metafísica aristotélica.

A partir dessa pequena amostragem, podemos reconhecer Tomásde Aquino, como também seu mestre Alberto Magno, como grandessistematizadores da metafísica aristotélico-platônica. Como mestre daOrdem Dominicana, Eckhart não podia não confrontar-se com taissistematizações, mas se empenha em superar uma tal concepção racio-nalista e formal, propondo uma concepção e uma nova e mais radical

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experiência da verdade, que, à primeira vista, surpreende tanto os ho-mens escolásticos como os homens modernos.

Na concepção eckhartiana o homem não é mais entendido comouma substância, formada de um princípio formal referido a umamaterialidade, nem Deus é o último motor imóvel, último funda-mento de um sistema analógico de modos de ser e existir, nem o mun-do é interpretado em contraposição a um outro mundo no além. Nocristianismo histórico a desvalorização teológica da era atual e da vidaentendida numa distância que o próprio Deus cria recebe sua interpre-tação a partir de motivos apocalípticos judaicos, gnósticos e neo-pla-tônicos como uma vida que será realizada somente no além (no “reinode Deus”, no “céu”, ou depois da morte). O modo como a relação detranscendência e imanência de Deus é pensada – de uma absolutaincomensurabilidade até a identidade (ipsum esse) – prefigura a valori-zação positiva do mundo como de uma criação divina e também a suadesvalorização como lugar do pecado e do abandono de Deus. Aquiaparece tanto a tendência de um desprezo cristão e fuga do mundocomo de uma responsabilização pelo mundo, podendo decair inclusi-ve num devocionalismo para com o mundo, num “mundanismo”. Astradições do conceito pejorativo de mundo se desenvolvem de umlado como dialética de distância e estranheza de mundo, e de outrolado com proximidade e confiança no mundo. Já o quarto evangelhose distingue por desenvolver a tensão entre Deus do amor e Deus dis-tante do mundo; a situação do crente num mundo hostil ao mundoda fé se dá marcada por uma dialética de mundo originário e próximoe perda de mundo, concreção transformadora do mundo sem ser domundo e sem julgar a “liberdade do mundo”.

Na concepção eckhartiana homem, Deus e mundo surgem origi-nariamente numa mesma gênese fundamental e universal. Deus e ho-mem não são entendidos como duas entidades separadas e contrapos-tas: uma no além, outra no aquém. O homem só surge da unidade

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com Deus e Deus só é através da unidade com o homem. Central paraEckhart é o pensamento de que a realidade verdadeira do homem é esó pode ser apreendida na realidade eterna do uno, e isto significa paraalém e numa unidade anterior à realidade do homem e à realidadeeterna de Deus. A explicação do homem enquanto criatura finita, con-tingente, exige a colocação de Deus como infinito, necessário, e estaoposição e separação não diz a gênese do homem e de Deus a partir dae na radical unicidade do uno. Enquanto entendermos Deus como ameta mais elevada, as criaturas têm sua riqueza e distinção a partir dediferentes comparações analógicas e fundadas no ente mais elevado.Nesse processo de identidade e diferenciação “Deus” é apenas o valormais alto da escala de comparação analógica.

No sermão “Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnumcaelorum”12, Eckhart toma a radicalidade da pobreza evangélica comoexemplar da gênese do homem na sua possibilidade fundamental euniversal. Assim, negativamente, o homem não pode viver nem parasi mesmo, nem para a verdade (de um mundo), nem para Deus. Posi-tivamente o homem deverá esvaziar-se de “Deus” e apreender umaverdade que é imediata fruição eterna. Ali o homem “deve querer edesejar tão pouco como queria e desejava quando ainda não era”.

O homem verdadeiramente pobre é aquele que “nada quer, nadasabe, nada tem”. Mas o fim da vontade própria não pode significarconformar-se com a vontade divina, como usualmente se entende.Quem pensa assim, constata Eckhart, não é um homem pobre, pois jásabe em que consiste a vontade de Deus, sem entender, como dizEckhart, nada da verdade divina. Trata-se ainda de um eu ensimesma-do, que se recolhe no seu próprio intimismo.

12. MESTRE ECKHART, Sermões alemães, vol. I. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 287-292.

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O homem na sua possibilidade fundamental e universal deveráviver “de tal forma que nem sequer sabe que não vive para si, nem paraa verdade, nem para Deus” .

Assim urge distinguir duas modalidades de agenciamento do sa-ber/conhecer:

1) O homem sabe (a partir de uma colocação construída pelohomem) que não vive para si, para a verdade e para Deus. É ohomem que sabe que não dispõe deste saber, como finitudede uma infinitude.

2) O homem não sabe que não vive para si, nem para a verdade,nem para Deus.

Nesta segunda possibilidade não se trata de um saber acerca da carên-cia do saber, mas de um não-saber que é condição de possibilidade paraque a captação finita se dê imediatamente, i.é, sem a mediação fracionadado si próprio, de cada relacionamento do mundo e da fundamentaçãoabissal de tudo. Trata-se de uma experiência de unidade de homem, mun-do e divino que o homem experimenta como “irrupção” instantânea einfinitamente diversa de toda mediação fracionada. A integração destes 3momentos na unicidade é descrita por Eckhart como fruição eterna, purareceptividade do que instantânea e absolutamente se dá e se retrai na suaimensidão. Esta pura e absoluta receptividade se assemelha ao puro criar deDeus cada vez se dando a partir do nada como pura gratuidade, esplendore absoluta singularidade.

Deste modo através da teologia mística dos padres orientais e deDionísio Aeropagita Eckhart aprendeu a resistir ao formalismo dametafísica de viés aristotélico-boeciano-tomasiano para redescobrir aspossibilidades fundamentais e abissalmente universais da metafísica dePlatão.

Rio de Janeiro, 23/03/2009.

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ALGUÉM ME TOCOU!

Arcângelo Buzzi

“Antes das sementeiras há a lavra. Trata-se de

desbravar um campo que deveria permanecer desco-

nhecido, em conseqüência da predominância inevitável

da terra metaphysica. Antes disso, trata-se de o pressen-

tir, depois, de encontrá-lo e, por fim, de o cultivar.

Trata-se de ir lá uma primeira vez. Muitos são ainda os

caminhos desconhecidos que aí conduzem. Mas um só

reservado a cada pensador: o seu, nos sulcos do qual lhe

será necessário errar num incessante vai e vem até que,

por fim, o tome como seu – sem todavia nunca lhe

pertencer – e diga o que aprende por esse caminho”

(HEIDEGGER, M., Chemins qui ne mènent nulle part.

Paris, l962, p. 174).

Naquele tempo, no episódio narrado por Lucas (Lc 8,43-48), Je-sus foi recebido por uma multidão que estava à sua espera. Em meioàquela multidão esperançosa, uma só pessoa pressentiu e encontrounele o saudável vigor de que ela necessitava. Mais claramente: ela nãosó pressentiu e encontrou nele o vigor de que necessitava, mas apro-priou-se do próprio saudável vigor, pois Jesus disse: “Alguém me to-cou! Senti que saiu de mim uma força!” E sem resistência, concedendo,Ele se deixou apropriar da plenitude de sua força e disse à mulherpalavras de recompensa e de supremo consolo: “Filha, tua fé te curou.Vai em paz!”

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O lendário episódio narrado no evangelho de Lucas nos introduz natarefa da fé! E na seqüência, o texto do filósofo Heidegger, acima transcri-to, nos introduz na tarefa do pensamento! Achamos que esse preâmbulode introdução à tarefa da fé e à tarefa do pensamento é meio para compre-ender as reflexões intempestivas, em forma de comentários, publicadasem vários livros e diferentes revistas, de nosso confrade e amigo HermógenesHarada, homem sensível à fé e ao pensamento.

Vamos primeiro à tentativa de clarear o que é dito da fé no episó-dio narrado no evangelho de Lucas. Nesse lendário episódio, a figurade Jesus é apresentada no “extraordinário” de uma excitante realidade.Dizemos que a figura de Jesus era assim apresentada porque movi-mentava ao redor de si grandes multidões. Movimentava multidõesnão apenas porque, no “extraordinário” de si, se mostrava ele próximo,acessível e disponível, mas sobretudo porque causava nas pessoas entu-siasmos por uma porção de coisas a todos realmente necessárias, úteis eproveitosas. Jesus, porém, a excitante realidade mobilizadora de mul-tidões, nem sempre era merecido na verdade dele próprio e muitomenos na verdade dos entusiasmos que ele despertava.

Há, portanto, nesse lendário episódio narrado no evangelho deLucas a presença de uma verdadeira e eficaz realidade chamada Jesus,mobilizadora do ser humano e correspondente às suas reais necessida-des. A mulher que se aproximou e se apropriou de Jesus, da verdadeirae eficaz realidade, correspondente à sua real necessidade, ouviu dele aspalavras de doce recompensa e supremo consolo: “Filha, tua fé te cu-rou. Vai em paz”! E há também, nesse lendário episódio, o relato por-menorizado da lucidez e do fervor entusiasta que levou a mulher aaproximar-se e a apropriar-se da força dele, “pois ela pensava: se eu aomenos tocar o manto dele, ficarei curada” (Mt 9,21).

Nenhuma outra pessoa da multidão foi igual à lucidez e ao fervorentusiasta da mulher que pensava: “se eu ao menos tocar o manto dele,

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ficarei curada!” Só a ela Jesus, a excitante realidade mobilizadora dasmultidões, se voltou e consentindo disse: “Alguém me tocou!” Ne-nhum outro da multidão que o esperava mereceu igual cura: o messiasda graça! Isso porque todos os outros da multidão esperavam e procu-ravam o messias da lei. A predominância do messias da lei, cultivadano coração das multidões por seus líderes, impedia que suas consciên-cias se abrissem à pura espera do messias da graça, esperado pelos patri-arcas Abraão, Isaque, Jacó, contido nos mandamentos de Moisés (Ex20,1-26) e anunciado pelos profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel,Oséias e muitos outros. E agora, no instante daquele tempo narradono evangelho de Lucas, foi visto na fé da mulher que pensava: “se eu aomenos tocar o manto dele, ficarei curada”! Na mediação do manto,isto é, na aparência simples e humilde em que se mostrava, bem dis-tante do espetáculo triunfante do messias da lei, a fé transportou amulher para o íntimo de Jesus e o levou a proclamar a sua missão demessias da graça! Na mediação do manto, como mais tarde na media-ção da cruz, deu-se de fato o consentimento da fé: a dádiva da miseri-córdia. Em outros termos, na mulher curada deu-se a fé: deu-se osalvador, o messias da graça.

Nas modulações de sua vida, todas elas no modo do crucificado,Jesus desfez o escândalo da cruz (Gl 5,11) e fez dela testemunho da fé(Jo 12,32): a invisível e sobrenatural presença da misericórdia divinana crucifixão de sua encarnação no todo da criação. “A doutrina dacruz é loucura para os que se perdem, mas poder de Deus para os quese salvam. Consoante está escrito: “destruirei a sabedoria dos sábios ereprovarei a prudência dos prudentes”. Onde está o sábio? Onde, oerudito? Onde, o pesquisador das coisas do mundo? Porquanto naloucura da cruz e na sabedoria de sua pregação aprouve Deus salvar osque crêem” (1Cor 1,18-22).

O texto do apóstolo evoca na árvore da cruz (Jo 14,6) a memóriada árvore da vida plantada no meio do jardim da criação (Gn 2,9).

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“Feliz de quem a ela se apega” (Pr 2,18), “a ele será dado de comer daárvore da vida que está no paraíso de Deus”(Ap 2,7)! A dificuldade deo ser humano abrir-se à fé, à pura espera do messias da graça, é algo deinevitável desde que ele se hominizou, isto é, desde quando se apossouda árvore do conhecimento (Gn 3,1-24), isto é, desde quando decidiugerenciar sua existência na perspicácia da razão, qual astuta serpente,sempre julgando o que é bom e o que é mau para seu modo de viver.E isso tudo foi bem sinalizado no mito narrado no livro do Gênese,onde se diz que a humanidade, ao apossar-se da árvore do conheci-mento, se afastou da verdadeira e eficaz árvore da vida, isto é, foi infielà fé, não creu no abrigo do Deus invisível, preferindo viver na predo-minância do seu conhecimento. O espinho que incomoda a fé, po-rém, não é o conhecimento, mas a infidelidade ao seu testemunho. Odever do crente é vigiar a fé mediante a oração, a exemplo de Cristo noGetsêmani, e não mediante o conhecimento.

No episódio narrado no evangelho de Lucas, a multidão estava noimpedimento de achegar-se à fé do messias da graça, devido ao seutradicional culto do messianismo da lei: do claro conhecimento decomo ele devia apresentar-se! A humanidade hoje, na predominância eno cultivo da ciência, bem antes de abrir-se à sabedoria da fé, está nadificuldade menor de abrir-se à sabedoria do pensamento que pensa oser se realizando em todo e qualquer sendo. E não podemos presumirque ela possa abrir-se à sabedoria da fé sem antes abrir-se à sabedoriado pensamento. Para mostrar o quanto a humanidade hoje está nestadificuldade, nos valemos do texto de Heidegger acima transcrito. Eisso tudo o fazemos com aquela pretensão de compreender asintempestivas reflexões de Hermóngenes Harada que buscam não ho-mogeneizar mas compactar pensamento e fé em todo conhecimento.

Se nos ativermos aos muitos conhecimentos da teologia, da filo-sofia e das ciências empíricas, propostos nas formulações da nossa civi-lização cristã ocidental, estaremos na ilusão se acharmos que temos em

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mãos as sementeiras da terra. Nessas formas de conhecimentos temosem mãos estruturas de conceitos e idéias, que ordenam em ídolos osdivinos do céu, que produzem objetos explorando a terra mediante atecnologia dos muitos saberes matemáticos da razão científica. As se-menteiras da terra não surgem dos múltiplos e diferentes conhecimen-tos, mas da lavra do campo.

O problema é como chegar à terra que possibilita as sementeiras,porquanto trata-se de lavrar um campo que deveria permanecer desco-nhecido, em conseqüência da predominância inevitável da terrametafísica. É dura a asserção de não podermos chegar à lavra das se-menteiras enquanto permanecermos no preponderante poder de nos-sos conhecimentos, que o pensador chama de terra metafísica. Ele nosdiz que é preciso ir por outro caminho! Trata-se de pressentir o campoda lavra! Depois, trata-se de encontrá-lo! E por fim, trata-se de o culti-var! Trata-se de ir lá uma primeira vez!

O caminho outro, que não o da terra metafísica, é a solidão em quesensíveis estamos junto às coisas na simplicidade nativa de seu surgir,crescer, florescer e frutificar na palpitação da terra sob a proteção docéu. No originar-se e vir a nós, essas coisas nos falam da terra e do céu,antes de nossa lavra, antes da exploração dos conhecimentos de teolo-gia, de filosofia e de ciência, antes da força das máquinas à nossa dispo-sição. Junto às coisas pressentimos, encontramos e cultivamos a terra nocuidado das inesperadas mudanças de seu realizar-se. Na palpitação daterra: no surgir, crescer, florescer e frutificar de suas sementeiras, o pen-samento percebe a irrupção do mistério do ser. Tocados por este misté-rio do ser que se nos dá nas dádivas da terra, compreendemos o co-mentário que o pensador fez do quadro de Van Gogh, Os sapatos dacamponesa. Neste comentário ele considera o caminho do pensamen-to, a filosofia, que pensa a realidade se realizando em todo e qualquersendo, igual ao da camponesa na sua lavra do campo. Como o dacamponesa, o seu lavrar o campo é sempre tenso e angustiante! Muitos

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são os caminhos que ali conduzem. Mas um só reservado a cada pen-sador: o seu, nos sulcos do qual lhe será necessário errar num incessan-te vai e vem até que, por fim, o tome como seu e diga o que aprendepor este caminho:

No rude e sólido peso do sapato está firmada a lenta e obstinadapegada através dos campos, a lonjura dos caminhos sempre se-melhantes, sob o vento frio. A pele é marcada pela terra fértil eúmida. Sob as solas estende-se a solidão do caminho do campoque se perde no crepúsculo. Através dos sapatos perpassa o ape-lo silencioso da terra, o seu dom tácito do grão maturescente, asua secreta recusa no árido pousio do campo invernal. Atravésdeste produto perpassa a muda inquietude pela segurança dopão, a alegria silenciosa de sobreviver de novo à necessidade, aangústia do nascimento iminente, o estremecimento frente àmorte que ameaça. Este produto pertence à terra e está em abri-go no mundo da camponesa (HEIDEGGER, M., Chemins... p. 25).

Este comentário do filósofo ao quadro Os sapatos da camponesa deVan Gog (1853-1890) nos diz que a tarefa primeira do pensamentode cada ser humano é aproximar-se da simplicidade das coisas quesurgem, crescem, florescem e frutificam na terra sob a arcada do céu e,incorporando-se ao instante de seu surgimento, ao instante de suafloração e frutificação e ao instante de seu declínio para o nada de seupoder, iguais a elas aprender o caminho desconhecido de seu própriorealizar-se no mistério do ser:

O próprio carvalho assegurava que só um tal crescimento podefundar o que dura e frutifica; porque crescer significa: abrir-se àimensidão do céu e também lançar raízes no abscôndito da ter-ra; porque tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega àmaturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas:disponível ao apelo mais alto do céu e abrigado pela proteção daterra que oculta e produz (HEIDEGGER, M., Le Chemin decampagne, Q.III, Paris, l966, p. 11).

É fácil ver que o carvalho se enraíza na terra para abrir-se à imensidãodo céu. É fácil também adivinhar que nessa tarefa de realizar-se, o

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carvalho, sem saber próprio, é intérprete da terra e do céu: deles reco-lhe a seiva, o vigor e o entusiasmo de seu projetar-se. Quem se aproxi-ma da atividade intelectual de Hermógenes Harada, de suasintempestivas reflexões, que procuram clarear a realização do ser hu-mano, ouve e escuta a voz da fala do carvalho. Ele chama essa escutaintelectual e conseqüente decisão de seguimento de hermenêutica dafacticidade do ser humano em oposição à factualidade.

Facticidade é o modo de ser próprio da existência humana deachar-se sempre já situada, isto é, aberta e constituída dentro ea partir de um “lance” da possibilidade de uma pré compreen-são do ser, que se estrutura como um todo, denominado mun-do. Mundo é oposto a imundo. O terreno baldio, selvagem ecaótico, é não-mundo, a saber, imundo. Quando o homem habi-ta a selva, ele abre ali clareira e cria ambiente viável para a mora-dia e cultivo da terra. Ele transformou o terreno baldio, imun-do em mundo, em terreno cultivado (HARADA, H., Coisas, velhase novas. Bragança Paulista: Edusf, 2006, p. 122).

Se “indiferentes” olharmos o carvalho, não vemos nem terra nemcéu! Ao aproximar-nos do espetáculo de sua altiva presença, porém,sentimos a seiva da terra e o vigor do céu no íntimo de sua estrutura-ção. Se nos aproximarmos da maneira de o ser humano estruturar suaexistência no mundo, sentimos a seiva da terra e o vigor do céu na falade sua linguagem. Isto quer dizer, que é na lavra da fala da linguagemque disputamos a seiva da terra e o vigor do céu, a hermenêutica dafacticidade do ser humano. A linguagem é o tesouro, a fala é a lavradesse tesouro! É, pois, nas experiências de falar a linguagem da terra edo céu que nos ligamos ao mundo da vida. A partir dessas considera-ções é fácil compreender que Hermógenes Harada tenha evocado aparábola de Jesus sobre o reino dos céus para ilustrar o procedimentoda hermenêutica da facticidade do ser humano: “Por isso todo escribaque se torna discípulo do reino dos céus é como o pai de família quede seu tesouro retira coisas novas e velhas” (Mt 13,52).

Igual à árvore que da terra sobe para o céu, o ser humano se enraízana terra para se erguer e florir no céu. O intérprete que de fato quer

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tornar-se discípulo do reino do céu deve ser como pai de família, dis-cípulo muito experimentado do mundo da vida na terra. Na fala dalinguagem da terra, do mundo dos mortais, e na fala da linguagem docéu, do mundo dos imortais, ele compreende interpretações velhas,elaboradas pelos antepassados e interpretações novas elaboradas por elemesmo. Tais interpretações não são a sabedoria nem da terra nem docéu. A sabedoria do céu (a fé cristã recomendada por Cristo) e a sabe-doria da terra (a prudência recomendada por Aristóteles, o bom sensorecomendado por Descartes, a retidão da razão prática recomendadapor Kant) não precisam de interpretações. Para lembrar que as inter-pretações “falham” na indicação da sabedoria da fé e do pensamento,Hermógenes Harada as chama de reflexões intempestivas e marginais.E nessa sua maneira de falar nos diz o quanto elas ajudam a nos ater,deter e conter na sabedoria da vida, no próprio da jovialidade da fé eno próprio da coragem do pensamento.

Quem de fato se afunda na sabedoria do mundo da vida (Lebenswelt),quem de fato persiste no próprio da jovialidade da fé e no próprio da cora-gem do pensamento, lhe faz bem ouvir na complexa e marginal fala dasintempestivas reflexões de Hermógenes Harada o quanto a condição hu-mana, antes de toda interpretação, está “cordial e gratuitamente na pleni-tude abissal e insondável do mistério da anterioridade, superioridade eprofundidade do encontro de e com quem se nos doou primeiro” (HARADA,H. Coisas, velhas e novas... op. cit. p. 10).

Para que a nossa condição humana esteja fortemente enraizada nasabedoria do mundo da vida, e se sinta sempre “cordial e gratuitamen-te” animada pela jovialidade da fé e coragem do pensamento, precisa-mos nós mesmos, mediante reflexões intempestivas a exemplo dasque sugere Hermógenes Harada, senão nos libertar, ao menos nos ali-viar da predominância dos muitos conhecimentos de teologia, de es-piritualidade, de filosofia, psicologia, sociologia, política e demais ciên-cias que instruem e escravizam nossa consciência:

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O espírito ou o sopro vital que anima as almas ardentes e suasobras, hoje podemos somente pressentir de alguma forma, delonge. Recordação de um antanho feliz ao mesmo tempo anseiooculto de uma renovação vindoura, prestes a se anunciar dofundo, do mais profundo de nós mesmos. Neste sentido, esta-mos hoje com grande saudade à margem do espírito de umtexto como de I Fioretti (HARADA, H. Em Comentando I Fioretti.Bragança Paulista: Edusf, 2003, p. 15).

E podemos acrescentar de muitos outros textos de nossa tradiçãocristã ocidental!

Portanto, as reflexões intempestivas de Hermógenes Harada nosaproximam, nos põem insistentemente não só à margem dos textosda tradição, isto é, de coisas velhas, mas também à margem de nossasituação atual, isto é, de coisas novas. À margem tem aqui o sentido denos abeirar da sabedoria do mundo da vida a que eles acenam e assimde nos repatriar à verdadeira morada da condição humana. À margemé o modo de cortejar e de abordar a coisa em questão, é o de andar aolongo, junto de, na cercania; é o modo da aproximação de fora paradentro como uma abordagem paulatina de participação. À margemtem portanto o sentido de nos aproximar do rio da vida, deixando-nos fascinar de sua corrente e no murmúrio de suas águas ouvir oconvite de saltar para dentro de sua torrente.

Para nos convencer que as reflexões intempestivas à margem dostextos da tradição e de nossa atual situação no mundo, propostas porHermógenes Harada, aparentemente alienadas, nos são de fato extre-mamente úteis, porquanto nos estimulam a praticar livres e alegre-mente, por maestria própria, a hermenêutica da facticidade de nossacondição humana, vamos recorrer a um poema do pensador chinêsChuang-Tzu (IV a. C). Neste poema há a exemplificação do que se-jam reflexões intempestivas à margem. Nele apreciamos a acribia dasreflexões intempestivas de Chunag-Tzu e de seu discípulo Hui Tzu arespeito da alegria. Com a palavra acribia queremos dizer que no final

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do poema há o reconhecimento que todo diálogo entre os dois partede uma anterioridade que o possibilita. A anterioridade é a sabedoriado pensamento, o lumen naturale, em que a condição humana sem-pre está antes de acordar para a acribia das possíveis e diferentes inter-pretações de si própria, aparentemente sem possível acordo.

Chuang-Tzu e Hui Tzu atravessavam o rio Hao pelo açude.Disse Chuang: Veja como os peixes pulam e correm tão livre-mente. Isso é a sua felicidade.Respondeu Hui: Desde que você não é um peixe como sabe oque torna os peixes felizes?Chuang respondeu: Desde que você não é eu, como é possívelque saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?Hui argumentou: Se eu, não sendo você, não posso saber o quevocê sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não podesaber o que eles sabem.Disse Chuang: Um momento: Vamos retornar à pergunta pri-mitiva. O que você me perguntou foi: Como você sabe o quetorna os peixes felizes? Dos termos da pergunta você sabe evi-dentemente que eu sei o que torna os peixes felizes. Conheço asalegrias dos peixes no rio através de minha própria alegria, àmedida que vou caminhando à beira do mesmo rio (MERTON, T.A via de Chung-Tzu. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 126-127).

Ao atravessar o rio Hao com Hui-Tzu, em vendo os peixes quealegres pulavam e corriam, Chuang-Tzu disse: isto é a sua felicidade!Ao ouvir esta interpretação de Chuang-Tzu é provável que a exemplode Hui-zu, digamos que é pessoal, privativa e subjetiva. No decorrerdo diálogo de Chuang-Tzu com Hui-Tzu, porém, entendemos queno olhar os peixes, Chuang-Tzu se percebe morando na mesma paisa-gem dos peixes. Andando à margem do rio Hão, seus passos são tangi-dos pela fluência das mesmas águas. Na participação do vigor das águasdo rio Hão, que faziam os peixes pular e correr, instante fugaz quepossa ter sido, Chuang-Tzu se sentiu em igual felicidade.

Quando uma pessoa se perde em representações e se hipnotizana sucessão de representações e cria todo um mundo fechadoem si, pode vir a si e acordar com um estalo de dedos. Assim faz

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Chuang-Tzu em relação a Hui-Tzu. Estala os dedos da realida-de anterior às perguntas que disparam para longe da questão,isto é, da busca primitiva e elementar, dizendo: Acordemos,olhemos o que realmente é: na travessia, a caminho, ao longo dorio Hao, somos, estamos dentro da grande paisagem do ser, comoos peixes estão também imersos na vastidão, profundidade e noabismo desse mesmo ser, dessa mesma vida que nos cerca, nos im-pregna, nos sustenta e nos oferece mil e mil possibilidades de sen-tido e abertura de mundos. Antes de nos comunicarmos, já esta-mos “comungando” na mesma vida, no mesmo ser. E se podemosperguntar o como disso ou daquilo, é porque já estamos comun-gando, relacionados, participando da mesma vida. Longe desermos uns aos outros estranhos, alienígenas, todos nós, todasas coisas, todo o universo, desde as “coisas” mais sublimes até asmais insignificantes, ínfimas, constituímos um mesmo sangue,um mesmo hálito, uma família, uma fraternidade universal(HARADA, H. Em Comentando I Fioretti, p. 26-27).

A hermenêutica da facticidade do ser humano, na terminologia deHermógenes Harada: a interpretação ou reflexão intempestiva, embo-ra estando à margem, tem sempre alguma relação com a real situaçãoque se nos dá numa anterioridade, profundidade e enigma indecifrávelfora de nosso alcance. Podemos então dizer que a interpretação é sem-pre válida desde que nos ajude a estruturar a existência humana narespectiva situação. Validade não significa aqui imediatamente verda-de, diz apenas funcionalidade no sentido de nos relacionar à situaçãode modo coerente e coeso. Portanto, desde que tenha referência à si-tuação, nenhuma interpretação é arbitrária! Por outro lado, nenhumainterpretação é definitiva no sentido de possuir a chave da verdade: dedescobrimento pleno e total da situação. O reconhecimento que ahermenêutica da facticidade do ser humano é sempre uma interpreta-ção já é início de um processo de intercâmbio com outras possíveishermenêuticas, numa interação de mútua crítica, provocação, confir-mação, acolhida ou rejeição, de aprofundamento e alargamento, emcuja co-agitação cada hermenêutica é levada a tomar conhecimento

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cada vez mais responsável e acurado dos seus limites, do seu nível e dasua dimensão.

A hermenêutica da facticidade do ser humano deve estar sempre noempenho de transportar-se ao vigor da situação. Esse empenho de trans-portar-se ao vigor da situação pode ter como meta liberar o ser huma-no ao poder de explorá-la: de organizá-la para dela tirar proveito, lu-cro, prazer e maior bem-estar. E pode também ter o sentido de liberaro ser humano a associar-se à verdade da situação: ao encontro com oOutro, anterior aos interesses de sua exploração. Lá, o empenho detransportar-se ao vigor da situação se reduz à conquista de um bemexterior. Aqui, o empenho está no interesse de liberar-se à verdade de sipróprio, de merecer o encontro pessoal com o Outro. Embora prove-nham do ser humano, as diferentes decisões de viver a situação nemsempre se integram e se abraçam. No mais das vezes uma procuraprevalecer sobre a outra.

As interpretações intempestivas de Hermógenes Harada, acessíveisem livros publicados e artigos de revistas, nos ajudam a discernir essesdois modos de efetuar a existência humana no concreto de uma situa-ção: um modo funcional que ele chama de diferença ôntica ou empíricaproveniente da impostação das ciências e outro de modo pessoal queele chama de diferença ontológica ou transcendental pré-científica. Exem-plo desse modo de o ser humano personalizar-se no concreto de suasituação, na liberdade de sua verdade e na verdade de sua liberdade, élembrado pelo poeta Angelus Silesius (1624-1677) quando diz: “Arosa é sem porquê. Floresce por florescer. Dela mesma nada sabe, nempergunta se a gente a vê.” Esses versos da rosa evocam a liberdade doser humano de personalizar-se, de entregar-se à gratuidade da situação,de harmonizar-se aos diferentes degraus de sua manifestação, desde apedra ao Divino. Para ilustrar que é a gratuidade da situação que alentae anima o ser humano a efetuar sua existência na simbiose da diferençaôntica e da diferença ontológica, lembremos uma antiga parábola asiáti-ca, que diz:

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Era uma vez, na província de Saga, no interior do Japão, umvelho casal que vivia com um filho, ainda menino. Teciam àmão sandálias de palha para vender. O que ganhavam era pou-co, dava apenas para viver. O menino era obediente. A tudodizia sim, sim, sim, sem murmurar.Todos os dias a mãe dizia ao marido: “Ah, se ao menos nossofilho pudesse levar uma vida melhor. Mas, ele é um idiota. Atudo obedece, sem objeção. Não tem nenhuma iniciativa”. Opai nada dizia. Continuava trabalhando.Um dia a mãe disse ao marido: “Vamos tentar nosso filho, paraque sinta a necessidade da iniciativa. Vamos dar-lhe uma tarefaimpossível para ver se reage e diz não à nossa ordem”. O painada respondeu. A mãe chamou o filho e lhe entregou três pa-lhas e ordenou: “Vai trocar essas palhas com três peças da sedapreciosa de Kioto”. O filho disse sim e saiu de casa.A caminho, à beira de um riacho, uma mulher lavava cebolas.Disse a mulher: “Que tens na mão?” “Três palhas”, respondeu omenino. “Queres me dar as palhas para amarrar as cebolas emfeixe”? “É que as palhas são preciosas”, disse o menino. “Elasvalem três peças de seda”. Depois de muito negociar, o meninotrocou as palhas com três cebolas e saiu cantarolando pela estra-da afora.A caminho, à entrada de um albergue uma mulher lhe pergun-tou: “Não queres me dar essas cebolas? Preciso delas para dargosto à salada de peixe”. O menino respondeu: “É que as cebo-las são preciosas. Valem três peças de seda”. Depois de muitonegociar, o menino recebeu três garrafas de molho de soja emtroca das cebolas.Um pouco adiante , ao passar diante de uma rica moradia, cor-reu-lhe ao encontro o senhor da casa e pediu ao menino lhevendesse o molho. Dizia: “Preciso com urgência do molho. Re-cebi visita inesperada e não tenho mais molho em casa”. Disse omenino: “É que o molho é precioso. Vendê-lo não posso. Só seme deres algo equivalente”. O homem era fabricante de espa-das. Em troca do molho deu-lhe uma espada. O menino pen-durou a espada ao cinto e continuou a viagem.Na cercania de Kioto, porém, a estrada se encheu de cavaleiros.Era o séqüito do príncipe de Kioto que por ali passava numasuntuosa carruagem. Os pedestres se postavam à beira da estra-

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da, dando passagem ao cortejo. De repente, o olhar do príncipecaiu sobre o menino camponês, o único que trazia espada aocinto. Mandou chamá-lo e perguntou: “Como carregas umaespada, tu que és apenas camponês”?O menino respondeu: “É que a espada vale três palhas que sãogarantia de três peças de seda de Kioto”. Disse o príncipe: “Oque significa isso”? E o menino contou-lhe toda a história desua viagem. O príncipe admirado disse ao menino camponês:“Não é bom que uses a espada. Mas é bom receber a espada quevale três palhas do camponês”. E pediu-lhe a espada. Em trocadeu-lhe três peças de seda preciosa de sua tecelagem.O menino retornou à casa paterna. Em casa, o pai nada disse.Apenas continuou a tecer as sandálias de palhas.

A parábola do menino das três palhas conquistando a dignidadedo menino das três peças de seda preciosa, mostra que a hermenêuticada facticidade do ser humano se desdobra em três momentos simultâ-neos: na tenacidade e na sanha da mãe, na obediência pronta e cordialdo filho, no silêncio e na serenidade do pai. Os três momentos são deluta e de fúria, porquanto cada qual a seu modo busca atirar-se e reco-lher-se no prenhe vigor vindo da respectiva situação.

O momento mãe é de luta que tem como meta libertar o serhumano das imposições que o cercam, o comprimem e o prendemaos inexoráveis anéis da organização funcional e operativa da situação.Ela aciona seu saber, querer e poder para ir além dos limites da situa-ção. Sua luta visa ultrapassar a situação, sair de seus limites, porque vênela a inércia e a paralisação de seu impulso e anseio de transcendência.

O momento filho é diretamente de luta por merecer a dignidadeda vida humana na transcendência da verdade e da liberdade que lhe éprópria. Essa luta por merecer a transcendência da liberdade e da ver-dade não se faz contra a situação nem fora dela. Sua obediência prontae cordial é lucidez que agarra com ambas as mãos o pouco da possibi-lidade de cada situação, para neste pouco trabalhar tenaz e paciente-mente na afirmação da própria liberdade.

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O afã da mãe sem a obediência cordial do filho decai facilmentenum assanhamento estéril, vazio de concreção, onde a carência,a privação do finito se exacerba sempre mais na existência abs-trata de satisfação imediata dos anseios, sem o trabalho pacientee recolhido da mediação.A positividade cordial da obediência do filho sem o afã da mãejamais vem a si, jamais nasce, cresce e se firma como identidade,permanece amorfa na inércia de um deixar ser sem perfil e cará-ter.O que, porém, fecunda o momento mãe e o momento filhopara a simbiose da concreção, de onde e para onde a sanha damãe nasce e cresce como a cordialidade do filho e a cordialidadedo filho vem a si como a transcendência criativa da mãe, é osilêncio do pai, o retraimento sereno do nada do mistério. Asanha da mãe e a obediência do filho e o silêncio do pai sãomomentos “abstratos” da estruturação da existência, do desti-nar-se da sua história como nascer, crescer e consumar-se daidentidade humana: da seda de Kioto (HARADA, H. Coisas velhase novas... op. cit. p. 177-178).

A parábola do menino das três palhas nos reenvia a uma maiorcompreensão do poema de Angelus Silesius que ilustra a hermenêuticada facticidade da existência humana na rosa sem porquê que floresce porflorescer! No poema da rosa sem porquê: a mãe é a terra, o pai é o céu,o filho, a rosa.

Esta consumação da identidade humana como fruto sazonado detodo um processo de crescimento, cujas vicissitudes constituem aessência de todos os perigos e sofrimentos, de todas as dores e lutas,de vitórias e frustrações, de esperanças e utopias, de buscas e fugas daterra dos homens... Esta consumação de plenitude de sentido do serem quem nos movemos e somos e existimos é sempre evocada nasreflexões intempestivas de Hermógenes Harada, feitas à margem detextos da tradição e de situações de nosso cotidiano, à margem decoisas, velhas e novas.

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DA NECESSIDADE DODESNECESSÁRIO *

Frei Marcos Aurélio Fernandes, ofm

“Bem-aventurados os pobres no espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).

“A romântica nostalgia de I Fioretti na selva de pedra das nossas vicissitudes moder-nas, seria apenas os últimos ecos de uma tradição que se esvai ou alvores ainda

longínquos de um Deus vindouro?” (HARADA, Fr. H. Em comentando I Fioretti).

Advertência: o presente artigo se propõe uma meditação, comHeidegger, que parta da necessidade do desnecessário e que acene paraele. Ela se dá no empenho de abrir um caminho de pensamento, quese compreende como um pensamento inicial, o que significa, tam-bém, um caminho pré-cursor. O que isto aqui quer dizer, porém, sópode ficar claro, a partir da leitura do próprio artigo.

Comecemos, pois, esta meditação, com um diálogo do Oriente:Hui-tzu disse a Chuang-tzu: “Você fala do desnecessário”. Chuang-tzu falou: “primeiramente carece de alguém reconhecer o desne-cessário, antes de poder falar com ele do necessário. A terra é largae grande, e, no entanto, o homem carece, para ficar de pé, só da-quele tanto de lugar necessário onde ele põe o pé. Porém, se, aolado dos pés, se lhe arrancasse toda a terra, abrindo-se-lhe um abis-mo, aquele tanto de lugar ainda lhe seria útil?” Hui-tzu falou: “nãolhe seria mais útil”. Falou, então, Chuang-tzu: “daí resulta comclareza a necessidade do desnecessário”1.

* Ao frei Hermógenes Harada, por ocasião de seus 80 anos, em sinal da gratidão. Agra-deço tudo o que pude e poderei vir a ser, na experiência, por graça do encontro com ele.

1. Esta versão do diálogo foi construída tendo como referência a sua menção em: HEIDEGGER,Martin. Feldweg-Gespräche (1944/45) – Gesamtausgabe Band 77. Frankfurt am Main:Vittorio Klostermann, 1995, p. 239. Também foram cotejados os textos: Chuang-tzu,traducción de Carmelo Elorduy (s.l.): Monte Avila Editores (s.d.), p. 199 (cap. 26, 7); eMERTON, Thomas. A via de Chuang-tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 225-226.

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Hui-tzu e Chuang-tzu2 são dois chineses. Um é “sabido”, isto é,

um hábil discutidor e sagaz orador, ao mesmo tempo em que é um

homem pragmático, preocupado em instruir para aquilo que é consi-

derado imediatamente necessário. Já o outro é sábio, pois sua palavra é

uma concreção do silêncio e uma ressonância do recolhimento e da

quietude. O seu falar e dizer soa como uma floração de serenidade. Ele

fala do desnecessário, isto é, a partir do imediatamente desnecessário.

O encontro-confronto na linguagem do diálogo faz de ambos opo-

nentes. Entretanto, o diálogo entre eles não promove nenhuma inimi-

zade. É que sua oposição dialogal torna propício o cordial e benigno

aparecimento do fundo a partir do qual eles dialogam: o desnecessárioque vem à fala na posição pensante de Chuang-tzu, quer dizer, a vigên-

2. Chuang-tzu (Mestre Chuang), provavelmente, viveu entre 370 e 300 a.C. Juntocom Lao-tse (o Velho Mestre), constitui uma fonte imprescindível do taoísmo. Hui-tzuou Hui Shih (Mestre Hui) – 380-305 a.C. – era uma espécie de “sofista” chinês. Suapreocupação era com a argumentação. Era hábil na discussão e fluente na eloqüência –um homo loquax – mas, da perspectiva da tradição que remontava a Chuang-tsu e Lao-tse, faltava-lhe o saber próprio do caminho (Tao). No capítulo XXIII dos escritos reco-lhidos sob a autoridade de Chuang-tsu ele é apresentado debaixo da seguinte luzcrítica: “Shih teve grandeza, porém lhe faltou doutrina (...) Para ele, a verdade estava emderrotar o interlocutor. Buscava ser famoso vencendo os opositores. Por isso, não entra-va em acordo com ninguém. Muito débil na virtude, se deu a coisas em que não eramuito profundo. Seus discursos eram abstrusos. Caso se julgue o talento de Hui Shihsob o ponto de vista do céu e da terra, sua atuação não vale mais do que o cocô de ummosquito ou um cínife. Que utilidade trouxe aos seres do mundo? Se se tivesse aperta-do o cinto para lograr a plenitude de sabedoria no Um, dizendo-se a si mesmo o valorgrande de sua doutrina, podia tê-lo conseguido. Porém, Hui Shih não podia aquietar-se com isso e se esparramou incansável por todos os dez mil seres. Assim, ao final, logrouo renome de hábil sofista. Lástima de talento o de Hui Shih! Se desenfreou e se malo-grou. Marchou progressivamente entre as coisas e nunca soube retornar. Queria calar oeco gritando mais que ele e vencer a sombra de seu corpo correndo mais que ela! Quelástima!” (cf. Chuang-tzu… op. cit., p. 251s (cap. 33, 10).

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cia da grandeza3, profundidade4 e originariedade5 do céu e da terra e a

proximidade do caminho (Tao).

Em nossos dias, no ocidente, terra do ocaso, já em meio a uma noitehistórica que se tornou planetária, a proximidade do caminho6 fala ao pen-

3. A palavra grandeza, aqui, não designa uma quantidade. Medir a grandeza a partir dacategoria da quantidade é um sinal de falta de grandeza. Grandeza, aqui, é um modo deautodoação da totalidade e significa, propriamente, imensidão, “catolicidade” (no sen-tido de ser “segundo o todo”, isto é, ser segundo o modo de ser da grandeza). Recente-mente, frei Harada, numa apostila escrita para educadores, que se reuniam para refletiro tema da virtude, disse: “imensidão é abertura sem fronteiras, sem limites, a grandezagenerosa e magnânima que tudo comporta, tudo acolhe cordialmente. Essa catolicidadenós a sentimos na natureza, na mãe terra, no céu aberto, mas também no coração dospais, no carinho da criança, na nobreza de um cavalheiro, na compassiva bondade deuma mulher, na piedade do varão etc.” (cf. HARADA, Hermógenes. Provirtus, reflexões.Curitiba: Bom Jesus, pro-manuscripto, 2008, p. 5).

4. “A profundidade é uma totalidade que nos conduz para a imensidão abissal e íntimachamada interioridade humana. É aqui que se abre uma inesgotável possibilidade vitalde mil e mil mundos de realizações, cheios de aventuras e venturas, como o destinarhistorial de cada pessoa, de cada família, de cada povo, nação, épocas de humanidadeetc.” (cf. HARADA, Hermógenes. Idem, ibidem).

5. “E juntamente com imensidão e profundidade abre-se por fim uma outra totalidaderadical que costumamos chamar de originariedade, isto é, liberdade criativa que nosacena para o abismo de generosidade, profundidade e vitalidade inesgotável criativa dadoação do amor infinito” (cf. HARADA, Hermógenes. Idem, ibidem).

6. “Caminho” nos soa como uma experiência fundamental do oriente. O Tao-te-kingé a saga do caminho per-feito, isto é, do caminho inteiramente percorrido e consumadocomo caminho. No Japão esta experiência fundamental aparece no étimo “-do”, como,por exemplo, nas palavras “Ju-dô”, caminho suave, ou, ainda, ‘bushi-do’, o caminho daespada, o caminho do samurai, cujos ensinamentos se recolhem no livro de YamamotoTsunetomo, Hagakure (“folhas ocultas” ou “oculto pelas folhas”). No ocidente, a expe-riência fundamental do caminho resta uma experiência fundante, porém esquecida evelada, sim, de certa maneira, apócrifa. O pensamento originário de Heráclito e deParmênides emerge como caminho (hodós). A autocompreensão da existência cristãtambém fala a partir da experiência do caminho, à medida que o discipulado cristão éseguimento daquele que se fez o caminho – Jesus Cristo. Assim também, na espiritua-lidade e no pensamento medieval, que culmina com a mística, o “caminho” é decisivo.Os medievais estavam sempre “a caminho”, nas suas viagens e peregrinações (para SãoTiago de Compostela, para Jerusalém etc.). Semper in via summus, nunquam in patriam– estamos sempre a caminho, nunca na pátria – assim ressoa a vós de Agostinho naexistência medieval. O homem se torna “homo viator”, homem caminhante. Por isso,Hildegard von Bingen escreve a obra “Scivias” – “saiba o caminho”. Nos Fioretti, SãoFrancisco emerge como aquele que, a caminho, ensina a frei Leão a via da “perfeita

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samento como um apelo distante, pois nos advém e sobrevém, silenciosa-mente, da lonjura do desnecessário. Nesse kairós7 acontece a erupção de ummundo mais de duas vezes milenar, cuja destinação tomou impulso desdea Grécia dos pensadores originários e, ao mesmo tempo, a irrupção de umnovo aión8, em que se faz propício um “outro início do pensar”9.

I. Em plena viragem dessa passagem, em 196910, Heidegger, nodiscurso dos seus 80 anos de vida, saudou o seu amigo japonês

alegria” no seguimento de Jesus Cristo, o Crucificado. Uma vez que a teologia é sempreum saber “in via”, São Boaventura escreve o “Itinerarium mentis im Deum”. A mística deEckhart é o caminho do “homem nobre” e esta mística conflui para o pensamentoespeculativo a caminho do Não-outro, em Nicolau de Cusa. Mesmo a ciência moder-na, desde o seu ponto de partida, mantém uma estranha pertença ao caminho, quandonela o método (metá + hodós) se torna o decisivo. Não à toa o “Discurso do Método” éuma fonte imprescindível para o pensamento moderno. Enfim, ao chegarmos aNietzsche, e, assim, ao ocaso da consumação da metafísica ocidental, Zaratustra apare-ce, sempre a caminho, como o porta-voz do super-homem (Übermensch), alertandoque, o que há de grande no homem, é ser ele uma passagem (Übergang).

7. Kairós significa, em Hesíodo, “o apropriado”. Do que é apropriado nos vem a “medi-da certa do que convém”. E encontrar essa medida é o “decisivo”. A irrupção do instanteque abre e rasga espaços de decisão faz aparecer o kairós como o tempo-espaço propício,que traz, no seu bojo, o perigo, e, junto com o perigo, a proximidade propícia do quesalva, conforme o dito cantante de Hölderlin, evocado por Heidegger, ao erigir o lugarda questão da técnica: “ora, onde mora o perigo / é lá que também cresce / o que salva”(cf. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 31).

8. Aión significa, em Homero, o mesmo que psyché. Diz o vigor que inaugura, deixa efaz acontecer o abrir-se da existência, em sua facticidade e historicidade, como bíos. Daísignifica também o distender-se de uma idade, de uma era, de uma época e, cada vez,a estruturação de mundo que vem à tona.

9. Cf. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, passim.

10. Há 40 anos, portanto, da aula inaugural “O que é metafísica?”, em que Heidegger“nomeou” o ser como “nada”, por não ser nenhum ente. Enquanto a Alemanha e aEuropa apenas entenderam esta preleção como “niilismo”, um jovem estudante japo-nês, de nome Iuassa, traduziu o texto para a sua língua, em 1930. Heidegger recorda,em seu discurso dos 80 anos, os nomes de outros japoneses que se aproximaram do seu“caminho” de pensamento, como os mestres Tanabe e Nishitani. Convém lembrar queessa proximidade foi decisiva para a consolidação da chamada Escola de Kyoto.

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Tsujimura, trazendo à fala a apatridade como o destino do mundocontemporâneo e o emergir do que ele quis chamar de “a civilizaçãoplanetária”. Ele diz:

Há um século ela invadiu o Japão. Civilização planetária signi-fica hoje: predominância das ciências hipotético-dedutivas, sig-nifica predomínio e primado da economia, da política, da téc-nica. Tudo o mais já não é nem mesmo supra-estrutura. É ape-nas mera para-estrutura toda quebradiça.É nesta civilização planetária que estamos. Para ela é que se diri-gem as discussões do pensamento. Entrementes a civilizaçãoplanetária atingiu toda a terra. Por isso, Senhor Tsujimura, nos-sa necessidade é idêntica à sua11.

Podemos nos perguntar: que necessidade é esta? Não seria, justa-mente, a necessidade de um pensar que se mostra, de imediato, comodesnecessário, por não se ater e não se restringir às recomendações doútil, sim, por se devotar, única e inteiramente à constrição e ao cons-trangimento, isto é, aos apertos do questionar? O mesmo discurso deHeidegger parece nos acenar para isto:

Dizia há pouco: a apatridade é um destino mundial na formada civilização planetária. É como se a civilização planetária, queo homem moderno não criou mas em que foi “destinado”, trou-xesse consigo o obscurecimento da existência humana. De fato,é o que parece. Mas seria um erro pensar somente até aí e nãover nada mais, a saber, a possibilidade de uma virada. Mas nósnão sabemos nada do futuro. Talvez tudo finde numa grandedesolação. Talvez aconteça que algum dia o homem se enfastiedos produtos de suas pretensas produções e de repente comecea questionar. Talvez também possa ocorrer que a desolação atin-ja tal nível que as necessidades se nivelem a ponto de o homemjá nem sentir a decadência interior e o vazio de sua existência.Talvez possa também acontecer outra coisa. Em qualquer caso,como quer que seja ou aconteça: nós não nos devemos queixar,temos é de nos questionar!12.

11. HEIDEGGER, M. “O discurso dos 80 anos”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão.In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 332.

12. HEIDEGGER, M. “O discurso dos 80 anos”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão.In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 333.

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Ora, o questionamento a que se devota o pensar se detém juntoàquilo que é o mais questionável, não meramente no sentido daquiloque é o mais incerto e discutível, isto é, para a filosofia, o que é óbvioe admitido por todo mundo, mas no sentido daquilo que é o maisdigno de ser posto em questão pelo pensamento que se dispõe a res-ponder e corresponder ao apelo do “caminho”. No discurso dos 70anos, em 1959, Heidegger acena para esse “mais digno de ser questio-nado”, ao nomear “o estado cheio de mistério em que vivemos hoje, nóshomens da terra e deste tempo”13. Neste estado, o perigo é grave, mas,nesta gravidade, evoca a necessidade do desnecessário, a necessidade dooutro início do pensar:

A propósito do desenvolvimento extraordinário de nossa épocae de toda a humanidade, gostamos de falar em derrocada imi-nente e ameaçadora do homem. Contudo desejava dizer aquiuma coisa, que não é palavra de um profeta. É apenas a suposi-ção de um homem, que se esforçou em refletir sobre tudo isso.Desejava dizer neste instante: não pode ser uma derrocada dohomem na terra, porque ainda estão reservadas e poupadas aplenitude e as profundezas do querer e poder.É a suposição, a suposição de um pensador, que também sechama de filósofo. Quem é filósofo, é o que diz Nietzsche, opensador, que no mais extraordinário foi sacrificado ao extraor-dinário: “o filósofo é uma planta rara”, isto é, uma planta quenecessita de seu próprio solo...14.

O raro pensar do outro início nasce da grandeza da terra e nosalcança como o apelo do caminho. Este pensar não tem a pretensãocostumeira de originalidade, tão recorrente nos modernos e pós-mo-dernos. Se esse pensar busca uma originalidade, esta não pode ser outra

13. HEIDEGGER, M. “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carnei-ro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 330.

14. HEIDEGGER, M “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carnei-ro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 330s.

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do que a originalidade apropriada ao pensar, no que ele tem de maispróprio, ou seja, a originariedade:

A originalidade própria do pensar não está em descobrir os cha-mados “novos” pensamentos. A originalidade própria do pensarestá na força de se acolherem pensamentos já pensados, de seaturar o que se acolhe, e se desenvolver o que se atura no recôn-dito de sua intimidade. É então que os pensamentos alcançampor si mesmos o nível a que pertencem, o que chamo o “originá-rio”. É então que cresce a compreensão, de que um pensamentosó é verdadeiro pensamento, quando não necessitar ser útil nemprecisar comparar-se com a utilidade. Só quando uma paixãoassim tiver despertado, é que se poderá talvez conseguir poralgum tempo ater-se ao caminho e vir a ser o que se chama deprecursor. Refiro-me agora ao pre-cursor, não ao antecessor masa quem antecipa na antecedência, sem que se note15.

Originário é, hoje, aquele pensamento que pode se tornar, na ne-cessidade do desnecessário, pre-cursor do outro início do pensar. Ou-tro é este início, pois, corresponde, na gratidão, ao impensado do pri-meiro início:

...Pois agradecer (danken) e pensar (denken) não são apenas amesma palavra, são também a mesma coisa. Agradecer é pensarno sentido de pensar a partir de (an-denken), um pensamentoque não remonta ao já passado (das Vergangene) mas ao vigenteainda na concentração de seu vigor (das Gewesene), isto é, aoque recolhido ainda perdura na obra da verdade e nos determi-na. E assim pensar a partir de significa também pensar os pró-dromos e em direção daquilo que hoje nos constringe e cons-trange a nós, a nosso país, à Europa, à terra inteira16.

O pensamento pre-cursor é um pensar que não se precipita numcrescimento intempestivo, antes, é um pensamento que sofre as de-

15. HEIDEGGER, M. “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carnei-ro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 331.

16. Id. “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In:Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 330.

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moras do questionamento, o qual se faz investigação e, assim, aprendea saber esperar a maturação apropriada do tempo:

Saber investigar significa saber esperar, mesmo que seja durantetoda uma vida. Numa época, porém, em que só é real o que vaide pressa e se pode pegar com ambas as mãos, tem-se a investi-gação por “alheada da realidade”, por algo que não vale a penater-se em conta de numerário. Mas o essencializante não é onúmero e sim o tempo certo, isto é, o momento azado, a dura-ção devida. “Pois odeia /O Deus sensato/crescimento intempes-tivo”. Hölderlin, Do motivo dos Titãs (IV, 218)17.

Quem se torna, nesta paciência do questionar e investigar, umperguntador, se assemelha a um semeador:

Como, porém, o pensador abriga a verdade do ser, senão nagrave lentidão do andar de seus passos questionadores e de suaseqüência coerente? Sem dar na vista, a modo dos passos graves,lentos, contidos, sobre o campo solitário e sob o grande céu, osemeador mede com os pés os sulcos da terra e no lançar dobraço dimensiona e configura o espaço oculto de todo crescer eamadurecer. Quem consegue ainda, no pensar, levar isto à con-sumação, enquanto a mais inicial de sua força e enquanto o seumais elevado por-vir?18.

Sendo agradecimento e espera, o pensar cresce na maturação dokairós. Seu crescimento é um erguer-se do humano entre o céu e aterra, conforme nos dizem as palavras de Heidegger, em 1949, porvolta dos seus 60 anos de vida:

Crescer significa abrir-se à amplidão dos céus mas também dei-tar raízes na escuridão da terra. Tudo o que é maduro só chega àmaturidade se o homem for, ao mesmo tempo, ambas as coisas:disponível para o apelo do mais alto céu e abrigado na proteçãoda terra, que tudo sustenta19.

17. HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica (1935). Apresentação e tradução deEmmanuel Carneiro Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 227.

18. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 19.

19. HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 326.

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A disponibilidade para morar na proximidade do alto e, ao mes-mo tempo, o arraigar-se na pertença à terra tornam o pensamento pre-cursor um pensar que se dá no modo do abrir-se e o constituir-se do“Caminho do campo” (Feldweg). Nele ressoa o apelo do Mesmo. Nelese dá o presentear-se do simples.

O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e égrande. De chofre surge inesperado entre os homens e, não obs-tante, necessita crescer e amadurecer durante longo tempo. Noinvisível do que é sempre o Mesmo, protege seus dons. O alcan-ce e a envergadura de todas as coisas maduras, que demoram emtorno do caminho, é que instauram mundo. Como diz Eckhart,o velho mestre de vida e leitura: no não dito de sua linguagem éque Deus é Deus20.

O pensamento pre-cursor faz surgir homens simples, que reco-nhecem a necessidade do desnecessário, isto é, que modestamente serecolhem na quietude da escuta da linguagem do caminho:

Mas o apelo do caminho do campo só fala enquanto houverhomens que, nascidos em sua atmosfera, puderem escutá-lo.São obedientes à sua origem e não escravos de artifícios. É emvão que o homem tenta pôr em ordem toda a terra se não escu-tar o apelo do caminho do campo. O perigo iminente é ficar ohomem de hoje surdo à linguagem do caminho, cabendo-lhenos ouvidos apenas o ruído das máquinas que se lhe afiguram,então, como a voz de Deus21.

A linguagem do caminho é o caminho da linguagem, que, em suaoriginariedade, vige como o vigor do silêncio. O silêncio é proximida-de. Está-nos tão próximo que raramente o percebemos. É tão simplese discreto, que quase nunca o notamos. O erguer e o crescer humano

20. HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.

21. HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 326s.

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já sempre dele necessitou para acontecer. É que o silêncio paira, imen-so e benigno, sobre o homem, como a proximidade distante e a dis-tância próxima do céu. O céu é o vigor da imensidão, a vigência daclaridade, a regência da benignidade, da serenidade e da paz. O silênciotambém sustenta e abriga o humano como a escuridão da terra, a terraprofunda que, na sua humildade, no seu retraimento, recato e pudor,se vela a si mesma, liberando e, ao mesmo tempo, protegendo e sus-tentando tudo o que dela nasce, deixando tudo emergir na aberta doque vem à luz e se manifesta.

Quando o humano se desarraiga desta sua pertença ao céu e à terrae ao silêncio como origem essencial do caminho da linguagem, ele sedissipa e passa a vagar desnorteado, pulando de ente em ente, atravésda multiplicidade útil dos seus afazeres e divertimentos. Seu olhar,então, se embota e já não é mais capaz de ver, numa mirada simples, opróprio simples. Acostumado, então, com a novidade sempre de novoencantadora, mas fugaz, do pro-gresso, ele já não consegue deter-sejunto ao simples, pois esta quietude lhe provoca tédio e náusea:

E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipa-do, o simples parece uniforme. O uniforme causa tédio e náu-sea. Os entediados pela náusea só acham monotonia à sua volta.O simples já se retirou. Sua força silenciosa sucumbiu22.

Para o pensamento pre-cursor, homens do por-vir são aqueles quereconhecem a necessidade do desnecessário, isto é, aqueles que conhe-cem o simples, como o sempre o mesmo que se doa e se retrai nomodo de ser de uma fonte inesgotável de criação, que deixa e faz ser, acada vez, mil e mil diferenças. Entretanto, não se tornam, hoje, rarosestes homens? Após a Segunda Guerra Mundial, depois de os homensda civilização planetária terem se espantado com o poder destruidor dabomba atômica, através do terror de Hiroshima e Nagasaki, o pensa-

22. HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.

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mento de Heidegger evocou com confiança a presença destes homens,que sobrevivem à desolação de nosso tempo, como uma espécie de“mutantes” da civilização planetária, cujo aparente pro-gresso é dignode ser questionado. Desde então, urge-nos a seguinte pergunta: o quehoje denominamos de progresso, não seria, enfim, um progressivodistanciar de nossa humanidade, vale dizer, de nossa pertença ao céu eà terra, e ao mistério do silêncio e silêncio do mistério? Não se confir-mam, assim, as palavras que Brecht colocara na boca do CardealBarberini em diálogo com Galileu Galilei?

Vós podeis, com o tempo, descobrir tudo o que é para ser des-coberto, e, no entanto, o vosso progresso será somente um pro-gredir para longe da humanidade. O abismo entre vós e elapode se tornar um dia tão grande, que vosso grito de júbilosobre qualquer nova conquista e façanha poderia ser respondidopor um grito universal de pavor23.

Entrementes, enquanto a terra é reduzida a mero palco para o es-petáculo da azáfama do desenvolvimento e os homens de nosso tem-po são tomados pelo encantamento do progresso tecnológico, rarosvão se tornando aqueles que conhecem o simples:

Não há dúvida, diminui rápido o número daqueles que conhe-cem o simples, como uma conquista própria de sua proprieda-de. Mas estes poucos serão por toda parte os que permanecerão.Pela autoridade suave do caminho do campo, poderão sobrevi-ver todo dia às forças e aos poderes gigantescos da energia atô-mica que o cálculo do homem engenhou e fez dela os grilhõesde sua própria obra24.

Para o pensamento pre-cursor, porém, não se trata de sair dessemundo da técnica, recorrendo, talvez, a uma forma de vida “alter-nativa”. Trata-se, antes, de entrar mais profundamente dentro deste

23. Cf. BRECHT, Bertold, “Vida de Galilei”, apud ROMBACH, H. Leben des Geistes,Freiburg/Basel/ Wien: Herder, 1977, p. 262.

24. HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.

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mundo, imergindo na sua proveniência, e, por conseguinte, emseu destino:

Sem dúvida que não poderemos saltar para fora do mundo téc-nico. Ele constitui uma condição necessária da e para a existên-cia moderna. Mas não uma condição suficiente. Pois em suainsuficiência não atinge o horizonte a partir do qual a existênciado homem poderá talvez vir a ser libertada. É por isso que pen-samento deve começar com a pergunta: o homem de hoje morana morada de uma reserva do alto?25.

“Habitando poeticamente a terra”26, vale dizer, encontrando suamorada junto à riqueza superabundante, mas oculta, do alto, o ho-mem se liberta para a liberdade do caminho:

O apelo do caminho do campo acorda um sentido que ama aliberdade e, no lugar oportuno, suplantará as aflições numa úl-tima jovialidade. Esta se opõe à desordem de só trabalhar, umadesordem que, buscada por si mesma, favorece apenas o nadanegativo27.

Como, no entanto, se mostra esta jovialidade do pensamento pre-cursor? Não é a leveza de sua serenidade o que os homens de hoje nãoconseguem suportar?

No ar do caminho do campo, variável com as estações, nasce ecresce uma jovialidade sábia, cujo semblante muitas vezes pare-ce carregado. Este saber jovial é a “serenidade”. Quem não apossui, não poderá adquiri-la e quem a possui, é do caminho docampo que a tem. Em sua via, se encontram a tormenta doinverno e o dia da colheita, em sua via se cruzam a mobilizaçãoestimulante da primavera e o fenecer tranqüilo do outono, nasua via se surpreendem nos olhos o lúdico da juventude e a

25. HEIDEGGER, Martin. “A questão sobre a morada do homem! (1969)”. Tradução deEmmanuel Carneiro Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 334.

26. Cf. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel CarneiroLeão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p.165-181.

27. HEIDEGGER, M. “O caminho do campo (de 1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão, in: Revista Vozes, n. 4, 1977, p. 327.

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sabedoria da maturidade. Tudo, no entanto, se jovializa numaúnica harmonia, cujo eco o caminho do campo, indo e vindo,arrasta consigo.A jovialidade sábia é uma abertura para o eterno. Sua porta giranos gonzos que um hábil ferreiro forjou, um dia, com os enig-mas da existência28.

A gênese do caminho do campo em que o pensamento pre-cursorabre a sua trilha, se dá, pois, na simplicidade do recolhimento no um,em que vige a con-juntura do céu e da terra, do humano e do divino.Nele ressoa o apelo do mesmo, a partir do qual a cada um, na suadiferença, é restituída a sua identidade, podendo cada um viger no seumodo de ser mais próprio, isto é, apropriado.

O sempre o mesmo provoca estranheza e liberta. O apelo docaminho do campo é agora totalmente claro: É a alma que fala?É o mundo? É Deus?Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia nãotira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade. Oapelo nos faz morar de novo uma origem distante, onde a terranatal nos é restituída29.

II. O apelo do caminho do campo nos chega, hoje, como a solici-tação e a interpelação da necessidade do desnecessário. Como nos ad-vém e sobrevém esta necessidade? Resposta: como o emergir de umaindigência. “Toda necessidade se enraíza em uma indigência”30.

Como, porém, vem à luz a indigência de nosso tempo? Qual osentido dessa indigência?

28. HEIDEGGER, M. “O caminho do campo (de 1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão, in: Revista Vozes, n. 4, 1977, p. 327.

29. HEIDEGGER, M. “O caminho do campo (de 1949)”. Tradução de EmmanuelCarneiro Leão, in: Revista Vozes, n. 4, 1977, p. 328.

30. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 45. O texto originaldiz: “Alle Notwendigkeit wurzelt in einer Not”. A palavra alemã “Notwendigkeit” acenapara um virar, um voltar-se (sich wenden) para a indigência (Not).

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Antes de tudo, não podemos responder a esta dupla pergunta anão ser tomando-a como uma questão do pensamento – nunca chega-mos a questioná-la de fato e a alcançar uma sua “resposta” tomando-acomo um mero problema do conhecimento. Sim, mesmo o conheci-mento historiográfico não nos ajuda nesta busca. Querer seguir estecaminho seria comportar-se como alguém que entra na lama para lim-par-se da lama31.

A empresa de representar e de objetivar o nosso tempo, isto é,nossa situação epocal, talvez não seja somente impossível, mas tam-bém desnecessária e contraindicada. Parece coisa das famosas estóriasdo Barão de Münchehausen, que pretendia ter-se arrancado a si mes-mo das águas, puxando-se pelos próprios cabelos. É que o próprioquerer representar a nós mesmos, em nossa situação epocal, vale dizer,o próprio querer objetivar o tempo é uma marca de nossa própriaépoca, que segue a tendência de querer conhecer, para poder saber mais,para poder controlar mais, para poder dominar mais. Dominando, peloconhecimento, o nosso presente, pensamos poder nos assegurar mais, emface de nosso futuro, sim, pensamos poder até mesmo prevê-lo e antecipá-lo. Sentimos a necessidade de contar o nosso presente, para podermoscalcular o nosso futuro e, assim, graças a esse cálculo, podermos domi-nar os processos do porvir. Hoje, estamos sempre controlando as in-formações sobre o nosso presente, a fim de projetar conjecturas a res-peito de nosso futuro. A sociedade industrial teve que se tornar socie-dade da informação e esta, por sua vez, deve poder se tornar sociedadedo conhecimento. Por sua vez, o conhecimento científico deve podernos ajudar a projetar, planificar e planejar o nosso futuro, em vista doaumento das possibilidades de ação do homem e de seu domínio so-bre o real.

31. Cf. Heráclito de Éfeso, fragmento 5.

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Nessa concepção, o futuro é visado como aquilo que vem ao nossoencontro ou de encontro a nós; é apreendido como aquilo que se aproxi-ma de nós e chega até nós. Nessa perspectiva, portanto, o futuro é repre-sentado como advento. O que advém, no entanto, é apreendido apenas apartir da perspectiva da atualidade e é estimado tão somente em função desua expectativa. Nessa perspectiva, o futuro é tão somente a atualidade es-tendida. Nesse modo de visar o futuro, por conseguinte, nós permanece-mos presos à perspectiva da atualidade e ao modo como ela, a atualidade,lida e conta com as possibilidades do porvir32.

Esta atitude, entretanto, em face do presente e do futuro, bem como,mais fundamentalmente, em face do tempo e sua temporalidade, é um traçode nossa época. Ela se imposta como uma concepção técnico-científica:

Toda mera caça ao futuro, a fim de calcular sua imagem, de talmodo que se prolongue o atual, pensado pela metade, se moveainda na atitude do representar técnico-calculador. Todas as ten-tativas de pôr o real efetivo que aí está, morfologicamente, psi-cologicamente, na conta de decadência e perda, de fatalidade ecatástrofe, de ocaso, são apenas uma conduta técnica. Esta ope-ra com o aparato da enumeração de sintomas, cuja verificação semultiplica ad infinitum e pode ser sempre de novo variada. Es-tas análises da situação não notam que elas trabalham só nosentido e no modo de cortes e recortes técnicos e assim se entre-gam à consciência técnica, isto é, à representação historiográficae técnica do acontecer, que lhe é conforme. Mas nenhum repre-sentar historiográfico da história enquanto acontecer conduz paradentro do relacionamento conveniente e apropriado para com odestino e absolutamente não conduz à sua proveniência essen-cial no evento apropriador da verdade do ser33.

32. Cf. HEIDEGGER, Martin. Die Herkunft der Kunst und die Bestimmung des Denkens,conferência pronunciada na Academia das Ciências e Artes de Atenas, em 4 de abril de1967. Agora em: Denkerfahrungen (1910-1976). Frankfurt a.M.: VittorioKlostermann, 1983, p. 143-145.

33. HEIDEGGER, Martin. Die Technik und die Kehre. Stuttgart: Neske, 1991 (achteAuflage), p. 45-46.

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Se não é o conhecimento científico, calculador e, em sua essência,técnico, a via que pode nos conduzir para dentro de um relacionamen-to apropriado para com a nossa destinação, então qual seria o cami-nho? Não será o caminho do pensamento que medita, isto é, quepensa o sentido, a verdade do ser?

Meditar (Besinnen) é trilhar um caminho no empenho de pensar osentido (Sinn). Pensar, aqui, não significa o mesmo que representar,objetivar e calcular o ente, dentro do movimento de uma pesquisapositiva. Pensar, aqui, significa questionar o que para o conhecimentojá sempre permanece inquestionado, por passar despercebido, por nãodar na vista, por já ser sempre por demais óbvio. Pensar é questionar omais digno de ser questionado.

O que cabe pensar mais cuidadosamente? Neste tempo a pen-sar, onde ele se mostra? O que mais cabe pensar cuidadosamen-te mostra-se no fato de ainda não pensarmos. Insistentementeainda não, apesar da situação mundial tornar-se cada vez algo ase pensar mais cuidadosamente34.

Entretanto, ouve-se dizer por toda parte: chega de pensar! É preci-so agir! E isso, quanto mais urgente é a situação em que nos encontra-mos, nesta “civilização planetária”. Contudo, este imperativo é, maisuma vez, a voz de nossa própria época, que de há muito tem privilegi-ado o agir, mas sem pensar a essência do próprio agir, isto é, caindo nainessência do agir, ao interpretá-lo como um mero fazer. Assim, a ação,sem pensamento, se torna, em sua inessência, dissipação e agitação.Daí a suspeita: “E, no entanto... Talvez, já desde séculos, o homemvem agindo demais e pensando de menos”35.

34. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 112.

35. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 112.

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A ação sem pensamento não pode reconhecer na não-ação do pen-samento a sua própria essência, isto é, a proveniência essencial de seuvigor. Entretanto, em que consiste a essência da ação?

De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, aessência do agir. Só se conhece o agir como a produção de umefeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade. A essência doagir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer:conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua essência. Levá-la a essa plenitude, producere36.

Em que sentido, porém, é o pensar a ação primordial, já que opensar parece “não fazer nada”? De fato, o pensar não age, se por agirentendemos o fazer alguma coisa, o produzir de um ente. Entretanto,o pensar age e o seu agir se dá como a consumação da referência daexistência humana ao “nada”, isto é, ao que não é nenhum ente, ao ser.Ora, toda ação junto ao ente já sempre pressupõe a doação e a vigênciado ser:

Por isso, em sentido próprio, só pode ser con-sumado o que já é.Ora, o que é, antes de tudo, é o ser. O pensamento con-suma areferência do ser à essência do homem. Não a produz nem aefetua. O pensamento apenas a restitui ao ser, como algo quelhe foi entregue pelo próprio ser. Essa restituição consiste emque, no pensamento, o ser se torna linguagem. A linguagem é acasa do ser. Em sua habitação, mora o homem. Os pensadores epoetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifesta-ção do ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e aconservam na linguagem37.

No cuidado de restituir ao ser a referência humana para com opróprio ser, isto é, a linguagem, o pensamento age e age como a açãofundamental e primordial:

36. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de EmmanuelCarneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 23s.

37. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de EmmanuelCarneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 24s.

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O pensamento não se transforma em ação por dele emanar umefeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquantopensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado,por afetar a re-ferência do ser ao homem. Toda produção se fun-da no ser e se dirige ao ente. O pensamento ao contrário sedeixa requisitar pelo ser a fim de proferir-lhe a verdade. O pen-samento con-suma este deixar-se38.

A não-ação do pensar é a ação mais simples e elevada. Simples éesta ação, pois, nos põe na proximidade do simples. Elevada é estaação, pois nos faz morar junto do alto. Pensando, somos reconduzidosao “em casa” do mistério:

O que o pensamento, que, pela primeira vez, procurou expres-sar-se em Ser e tempo, pretende alcançar, é algo de muito sim-ples. Por ser simples, o ser permanece misterioso, a proximida-de calma de um vigor (Walten), que não se impõe. Essa proxi-midade se essencializa como a linguagem39.

Entretanto, em nossa época, apenas conhecemos a inessência dalinguagem, à medida que a reduzimos à mera possibilidade de expres-são subjetiva e comunicação intersubjetiva. Dissipada na tagareliceimpessoal da comunicação de massa, de há muito a linguagem é igno-rada no seu vigor mais próprio. Somos convencidos, até mesmo, deque há linguagem porque e à medida que nós falamos. Como se alinguagem fosse um produto, dentre outros, do fazer do homem...Não será, com efeito, o contrário? Não é, justamente, por se encontrarno medium da linguagem que é dada ao homem a possibilidade defalar? No pensamento, o empenho do falar consiste em dizer. Dizersignifica, porém, deixar-ser a saga do próprio ser: a poesia originária dalinguagem, na qual se dá o recolhimento e oclusão do silêncio da terrae a eclosão e abertura do discurso do mundo.

38. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de EmmanuelCarneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 25.

39. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de EmmanuelCarneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 54.

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Pois bem, ao interpretarmos o pensar como representar e objeti-var, o agir como fazer e produzir e a linguagem como comunicação eexpressão, e, ainda mais, o ente como objeto e recurso e o ser comonada, torna-se patente a indigência de nossa época. Contudo, esta in-digência só é reconhecida por quem reconhece a necessidade do desne-cessário e experimenta, hoje, a possibilidade do pensar como uma pos-sibilidade impossível. E isso é o mais digno de se pensar: que, emnosso tempo, nos é vedado o pensar. Cabe-nos, porém, permanecernessa possibilidade impossível e esperar que, de repente, talvez silenci-osa e discretamente, ela se transforme na impossibilidade possível deum outro início do pensar.

Hoje, nos é vedado pensar. De onde nos vem este impedimento,que nos constringe e constrange, como indigência de nosso tempo?

O que maximamente a partir de si mesmo dá a pensar – o quemais cabe pensar cuidadosamente – deve mostrar-se no fato deainda não pensarmos. O que quer dizer isso, agora? Resposta:ainda não atingimos propriamente o âmbito disso que, a partirde si mesmo e antes de tudo e por tudo, “gostaria” de ser pensa-do. Por que ainda não atingimos tal instância? Seria, talvez, por-que nós, homens, ainda não nos voltamos suficientemente parao que permanece como o que cabe pensar cuidadosamente? Nestecaso, o fato de que ainda não pensamos seria uma mera negli-gência por parte do homem. Assim sendo, este mal precisariapoder ser humanamente remediado através de medidas conve-nientes em relação ao homem40.

Certo? Nossa tendência é, de fato, esta: compreender a indigênciade nosso tempo como um desatino do humano e considerar que otomar medidas que supram a sua negligência seja o bastante. De resto,de onde vêm estas medidas? De nossos humanismos. Entretanto, osnossos humanismos estão tão permeados e impregnados do niilismo

40. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 114.

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de nosso destino e tão comprometidos com uma concepção do hu-mano marcada pela compreensão metafísica do “animal rationale” queprecisam ser questionados em sua insuficiência:

Todo humanismo ou se funda numa metafísica ou se converte asi mesmo em fundamento de uma metafísica. Toda determina-ção da essência do homem, que já pressupõe, em si mesma,uma interpretação do ente sem investigar – quer saiba quer não– a questão sobre a verdade do ser, é metafísica. Por isso a carac-terística própria de toda metafísica – e precisamente no tocanteao modo em que se determina a essência do homem – é ser“humanista”. Em conseqüência, todo humanismo permanecerásempre metafísico. Ao determinar a humanidade do homem, ohumanismo não só não questiona a re-ferência do ser à essênciado homem. Ele até impede tal questionamento, uma vez que,devido à sua pro-veniência da metafísica, nem o conhece nem oentende41.

Certamente, não se trata de se ser “anti-humanista” ou“antimetafísico”. Quem é “anti-” participa também, no modo da re-ação, daquilo contra o que ele se volta. No modo da re-ação, ele setorna presa daquilo contra o que reage. Tanto o humanismo quanto oanti-humanismo, tanto a metafísica quanto a anti-metafísica, partici-pam da mesma destinação, pela qual não nos é dado, ainda, pensar.Também não se trata de escolher entre a alternativa do pessimismo edo otimismo, pois ambos pertencem ao modo de valoração do realque tem suas raízes na mesma metafísica, em que vigora o não pensar,isto é, o esquecimento da re-ferência do ser ao homem. Por isso, paranos dispormos a alcançar o âmbito do que “gostaria” de ser pensado,mas que ainda não pensamos, o que nos cabe não é fugir de nossa“sombra” epocal, mas é entrar mais profundamente naquela sombramaior de onde esta nos advém. É o que nos ensina uma outra estóriade Chuang-tzu:

41. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de EmmanuelCarneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 37.

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Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar suasombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas queachou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por elefoi o da fuga, tanto de uma, como de outra.Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé nochão, aparecia outro pé, enquanto sua sombra o acompanhava,sem a menor dificuldade.Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo comodevia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até quecaiu morto por terra.O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisassenum lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasseficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas42.

Entremos, portanto, na “sombra maior” da indigência de nossotempo e compreendamos de maneira nova o fato de ainda não pensar-mos a sua proveniência:

Ainda não pensamos. Isto, porém, de modo algum se dá porqueo homem não se avia suficientemente para isso que, desde simesmo, gostaria de ser pensado. Ainda não pensamos – isto sedeve mais ao fato de que o próprio a-se-pensar se desvia do ho-mem e até mesmo, de há muito, dele mantém-se desviado43.

O ser, o mais digno de ser pensado, o pensável por excelência, oque “gostaria” sobremaneira de ser pensado, já sempre se desviou dohomem, destinando-o pelas vicissitudes e peripécias de uma história,em que predominaria, cada vez mais, o ente e o domínio do homemsobre o ente. É justamente no modo do des-vio que o ser se a-viou aohomem em sua destinação, perfazendo assim o que chamamos de “his-tória ocidental” e, hoje, “civilização planetária”:

Mas dá-se desvio somente onde já se deu um aviar-se. Se o quecabe pensar cuidadosamente mantém-se num desvio é porque issose dá precisamente tão-só no interior de seu “aviar-se”, isto é, de tal

42. MERTON, Thomas. A via de Chuang-Tzu, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 229s.

43. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 114.

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modo, que ele já deu a pensar. Em todo desvio, o a-se-pensar já seaviou para a essência do homem. Por isso, o homem de nossa histó-ria também sempre já pensou de um modo essencial. Ele pensoumesmo o mais profundo. Na verdade, de uma maneira estranha, oa-se-pensar permanece sob a guarda deste pensamento. O pensa-mento até hoje vigente de modo algum considera o fato e em quemedida o a-se-pensar também se retrai44.

No atual momento de nossa história, na “indigência de nosso tem-po”, a re-ferência do ser ao humano, o seu aviar-se e doar-se ao huma-no, se dá, de modo inexorável, no modo do retraimento e da recusa.Este é, pois, o modo como o ser se dá a pensar, a nós, hoje. E isso é oque mais nos dá a pensar e o que mais cabe pensar cuidadosamente:

O que mais cabe pensar cuidadosamente em nosso tempo, quetanto nos dá a pensar, revela-se no fato de ainda não pensarmos.Ainda não pensamos porque o que cabe pensar se des-via do ho-mem e não porque o homem não se en-via, de maneira suficiente,a isto que cabe pensar. O que cabe pensar desvia-se do homem. Oque cabe pensar retrai-se para o homem à medida que dele se reti-ra. O que se retira, porém, sempre já se nos mostrou. O que seretrai no modo de um retirar-se não desaparece. Como então sabero mínimo que seja a respeito disso que assim se retrai? Como se-quer nomeá-lo? O que se retrai recusa o encontro. Retrair-se não é,porém, um nada. Retração é retirada e enquanto tal – acontecimen-to. O que se retrai pode concernir ao homem de maneira essenciale reivindicá-lo de modo mais próprio do que algo que aí está e oafeta. De bom grado, costuma-se tomar o que nos afeta através doreal como o que constitui a realidade do real. Mas o ser-afetadoatravés do real pode justamente bloquear o homem em relação aisso que lhe concerne – que lhe concerne certamente de uma ma-neira enigmática, segundo a qual o concernir dele se desvia à medi-da que se retrai. Por isso, a retração, o retrair-se do que cabe pensarpoderia agora, como acontecimento, ser mais presente do que tudoquanto é mais atual45.

44. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 114.

45. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 116.

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A re-velação do ser através de seu retraimento e de sua recusa é o acon-tecimento fundante de nossa história e do hoje de nossa “civilização plane-tária”. Nessa condição, o ser só pode mesmo nos afetar como nada. E suapresença só pode mesmo viger como ausência. Com efeito, a recusa é omodo de sua doação. O retraimento, o modo de sua atração:

O que de nós se retrai à maneira mencionada, afasta-se paralonge de nós. Mas precisamente isso nos leva junto e, à suamaneira, nos atrai. O que se retrai parece estar absolutamenteausente. Mas essa aparência engana. O que se retrai se faz vigen-te – a saber, através do fato de nos atrair, quer percebamos ago-ra, depois ou mesmo nunca. O que nos atrai já concedeu en-contro. Tomados pela atração da retração, já estamos no impul-so para isso que nos atrai, à medida que se retrai46.

A recusa do ser e seu retraimento como o mistério do nada, nosatrai. Seu retraimento é a suavidade serena da autoridade do mistério:“Por ser simples, o ser permanece misterioso, a proximidade calma deum vigor (Walten), que não se impõe”47.

Atraídos pela retração, se-duzidos pela recusa do ser, somos hoje,então, levados para a noite do deserto. Ao se consumar a “morte deDeus”, a entrada nessa noite se nos tornou um destino inexorável. Desdeentão, nós podemos, talvez espantados, dizer como o homem louco,isto é, o homem tres-loucado, des-locado, trans-tornado, da Gaia Ciên-cia (n. 125):

Como pudemos nós sugar o mar? Quem nos deu a esponja, paraapagar todo o horizonte? O que fizemos nós, quando libertamos aterra de seu sol? Para onde ela se move agora? Para onde nos move-mos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos contínua e pro-gressivamente? E para trás, para o lado, para frente, para todos oslados? Ainda existe um em cima e um embaixo? Não erramos atra-

46. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 116.

47. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de EmmanuelCarneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 54.

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vés de um infinito nada? Não nos sopra ao rosto o espaço vazio?Não se tornou mais frio? Não cai a noite e sempre mais noite? Nãoterão de ser acendidas lanternas ao meio dia?

Ao evocar o dito poético de Hölderlin “...E para que ser poeta emtempos de penúria?”, Heidegger acena para a indigência dessa noite:

Longo é o tempo de penúria da noite do mundo. Esta carece,primeiro, se alongar para chegar ao seu meio mais próprio. Nameia-noite dessa noite a penúria do tempo chega ao máximo.Então, o tempo indigente não consegue nem mesmo e não maisexperimentar a sua indigência. Esta incapacidade, através daqual mesmo a indigência do indigente cai no escuro, é a indi-gência pura e simples do tempo. A indigência se torna plena-mente obscura pelo fato de que ela ainda só aparece como acarência que quer ser encoberta48.

No meio da noite da indigência de nosso tempo, a indigência nãoé reconhecida propriamente como indigência. Não é, muito menos,suportada e assumida. Não é, ainda menos, compreendida. No máxi-mo é advertida como carência e miséria e julgada como decadência.Pouco se sabe dela como da ressonância da necessidade do desnecessá-rio, como o que nos constringe e constrange para a necessidade dasmais próprias e elevadas possibilidades da história.

No meio dessa noite, a nossa época se caracteriza como o tempoque só conhece problemas, mas desconhece o mais próprio questionardo pensamento, que põe a pergunta de todas as perguntas, a questãodo ser: “Na era da in-finita penúria que parte da oculta indigência dafalta de indigência, esta pergunta tem de aparecer necessariamente comoa conversa mais inútil, da qual, de resto, já se escapou a tempo”49.

48. HEIDEGGER, Martin. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994,p. 270-271.

49. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 11.

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Nem se suspeita da possibilidade de que, em nossa época, a cora-gem do crer coincide com a paciência do questionar e de que aquelesque insistem e resistem nesta paciência são radicalmente crentes, nãono sentido de serem confessores de algo que retêm por verdadeiro,mas no sentido de serem radicados na experiência da verdade do ser:

Os perguntadores deste tipo são os originária e propriamentecrentes, ou seja, aqueles que, fundamentalmente, tomam a sé-rio a verdade mesma e não somente o verdadeiro; aqueles quepõem a decisão se a essência da verdade vige e se esta vigênciacarrega e conduz a nós, os que sabem, os que crêem, os queagem, os que criam, em breve, os historiais50.

Estes, os historiais, enquanto os que buscam, custodiam e vigiam,são aqueles que se deixam requisitar, constringir e constranger pelanecessidade mais premente: a de guardar, no ente, a verdade do ser, ade transformar a indigência do abandono do ser naquela necessidadedo criar que restitui ao ente o ser abrigado na verdade do ser51. Entre-tanto, “somente poucos estão de pé na claridade deste raio. A maioriatem aquela ‘felicidade’ de se encontrar em algo de já dado e assim em-preender, em favor do todo, o que é seu, seguindo o útil”52.

Nesse tempo, o empreender impõe a aparência de ser um criar, ofazer, de ser um agir, o produzir, de ser um con-sumar: “por toda partefalta a necessidade do que cresceu, mas, com isto, falta também aabissalidade do criativo”53.

50. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 369.

51. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 16-18.

52. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 28.

53. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 40.

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Entretanto, criador é aquele que pode iniciar à medida que se dis-põe a deixar-ser o vigor do início:

Pois o início é o oculto, a origem ainda não abusada e empreen-dida, que, sempre retirante e em retraimento, do modo maislargo sempre se capta previamente e assim custodia em si o maiselevado domínio. Este poder não desgastado da oclusão das maisricas possibilidades do coração (do querer afinado e sabedor doevento-apropriação) é a única salvação e superação da prova54.

O pensamento que deixa-ser o vigor do início é o pensamentoinicial. Este pensamento é o necessário por excelência em nosso tempo:

O pensamento inicial, enquanto con-fronto entre o primeiroinício, que há de ser reconquistado, e o outro início, que há deser desdobrado, é, a partir deste fundo, necessário; e esta neces-sidade constringe e constrange o pensar para a mais ampla eaguda e resistente meditação e veta toda fuga diante de decisõese todos os desvios.O pensamento inicial tem a aparência da marginalidade e doinútil. E, no entanto, caso já se queira que se pense no útil, oque é mais útil do que a salvação no ser?55.

Tal pensamento não é imediatamente necessário, se partirmos dautilidade que se atém ao real e efetivo do ente. Entretanto, enquantose atém à singularidade e estranheza do ser, ele é, de longe, a necessida-de mais necessária, a mais premente:

Porque este pensamento pensa o singular e o estranho, o ser, oque, de resto, é o mais comum e o mais corriqueiro na compre-ensão do ser, este pensamento permanece necessariamente raroe estranho. Mas porque ele tem em si esta falta de utilidade,tem que, imediatamente e de antemão, promover e afirmar aque-les que podem arar e caçar, manufaturar e dirigir, cultivar, cons-

54. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 58.

55. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 58.

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truir e erigir. Ele mesmo tem que saber que, em todo o tempo,vale como esforço sem recompensa56.

Este pensamento inicial, enquanto questionar, se dispõe, na dispo-nibilidade e prontidão resoluta, para a meditação e para a perseverançapaciente na indigência. De tal meditação e de tal paciência surge umsaber feito de renúncia, que se dispõe à longa preparação do outroinício:

Este saber se desdobra como o muito antecipador perguntarpelo ser, cuja dignidade de pergunta constringe e constrangetodo criar na indigência e erige para o ente um mundo e salva oabandono da terra57.

Entrar nesta indigência é reconhecer a necessidade do desnecessá-rio. E isto é ser pobre. Heidegger, em 27 de junho de 1945, ao final daSegunda Guerra Mundial, medita a respeito de uma palavra deHölderlin, que acena para o mistério desta pobreza, que é o destino denosso tempo: “Junto de nós, tudo se concentra no espiritual. Nósficamos pobres, para nos tornarmos ricos”58.

O espiritual, aqui, não pode ser compreendido, metafisicamente,como o imaterial. É que esta compreensão do espiritual permanecepresa ao material, dele se distinguindo e a ele se contrapondo. Tam-bém não pode ser compreendido como o subjetivo. O espiritual nãoé, per se, nem objetivo nem subjetivo. O espiritual, antes, é aquilo quesobrepuja ou está aquém a toda relação sujeito-objeto, quer esta relaçãose instaure numa perspectiva de conhecimento, quer numa perspectivade ação, quer, ainda, numa perspectiva dialética de ambos. O espiritu-

56. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 59.

57. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). GesammtausgabeBand 65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 63.

58. HÖLDERLIN, Friedrich. Apud: Heidegger, Martin. “Die Armut”. In: HeideggerStudien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot, p. 5.

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al designa, pois, uma relação anterior, mais ampla, mais alta e profun-da, mais originária do que toda a relação sujeito-objeto que possa seinstaurar no relacionamento do homem com o ente. Trata-se da rela-ção ser-homem:

A relação elevada, na qual o homem está de pé, é a relação do serpara com o homem, de tal modo que o ser mesmo é esta relação,que puxa para si da essência do homem, enquanto aquela essên-cia que está de pé nesta relação e, subsistindo nela, a custodia ea habita. No aberto desta relação do ser para com a essência dohomem, nós experimentamos o “espírito” – ele é o que suave-mente reina (das Waltende) vigorando a partir do ser e, presumi-velmente, em favor do ser59.

Que agora tudo se concentre no espiritual, isto é, que agora se dêum recolhimento que encontre o seu meio, o seu centro, na relação doser com a essência do homem, isto é o evento. Trata-se de um eventoque não pode ser constatado historiograficamente como um fato ouum conjunto de fatos observáveis, datáveis, computáveis, calculáveis.Por isso, a palavra de Hölderlin nomeia, poeticamente, um eventooculto, “que se alonga distante daqui em um vindouro, que só pou-cos, ou talvez só aquele que o diz e o pensa, conseguem pressentir”60.

Por graça deste evento, “nós ficamos pobres, para nos tornarmosricos”. Mas, que pobreza é esta? Não é outra senão a “pobreza no espí-rito”? O que é ser pobre? O que é ser rico? Qual a essência da pobrezae da riqueza? Segundo a representação usual, pobreza e riqueza, pobree rico, se definem a partir da posse, do ter: “Pobreza é um não-ter e,precisamente, um carecer do necessário. Riqueza é um não estar priva-do do necessário, um ter além do necessário”61.

59. HÖLDERLIN, Friedrich. Apud: Heidegger, Martin. “Die Armut”. In: HeideggerStudien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot, p. 7.

60. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 8.

61. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 8.

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Entretanto, esta representação usual da pobreza e da riqueza nãonos ajuda a captar o essencial, pois o essencial não se dá na dimensãodo ter, e sim na dimensão do ser: “A essência da pobreza repousa, noentanto, em um ser. Verdadeiramente ser pobre diz: ser de tal modo,que não careçamos de nada, a não ser do desnecessário”62.

A verdadeira pobreza consiste em não poder ser sem o desnecessá-rio e inteira e unicamente a ele pertencer.

A indigência de nossa época nos constringe e constrange para anecessidade do desnecessário. Ela, por assim dizer, como que nos obri-ga a ficarmos pobres. Ao ficarmos pobres e à medida que ficamosassim pobres, porém, nós nos tornamos ricos. Nós nos libertamos daconstrição e do constrangimento da indigência. Daí, a força libertadorado desnecessário: “O desnecessário é aquilo que não vem da indigên-cia, isto é, aquilo que não vem da constrição e do constrangimento,mas sim do livre”63.

O livre é o que permanece intocado, guardado, o que não foi al-cançado pela utilização. Somente o livre liberta. Libertar significa, aqui,poupar, no sentido de tratar com cuidado, atenção e carinho. Comoutras palavras: “deixar repousar em sua própria essência, através dodesvelo que custodia e salvaguarda”64. Vê-se que é muito mais do queo mero não tocar, o não-utilizar e o não explorar.

No mais próprio custodiar repousa o livre. O liberto é aqueleque é deixado em seu ser e que é protegido da constrição e doconstrangimento da indigência. O libertador da liberdade, deantemão, dá as costas à indigência ou a contorna. A liberdade é

62. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 8.

63. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 8.

64. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 8.

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o que gira a indigência. Só na liberdade e no seu libertar prote-tor reina a necessidade. (...) Somente a liberdade é, em si, anecessidade. (...) A liberdade é a necessidade, à medida que é oque liberta, que é o necessitado não por meio da indigência, queé o des-necessário65.

Agora, o que é ser pobre se determina assim: “não carecer, a não serdo desnecessário – nada mais carecer do que do livre-libertador”.

Este carecer, entretanto, tem o modo de ser do pertencer, do nãopoder ser a não ser na relação com ele: “Ser pobre – isto é: carecerunicamente do desnecessário, isto é, unicamente pertencer ao liberta-dor, ou seja, estar de pé na relação com o libertador”66.

Entretanto, o que é, no pensar, este livre, que é libertador? Heideggerresponde:

Agora, porém, é justamente o ser, que todo ente, a cada vez esempre de novo, deixa ser, o que é e como é, o libertador, o quedeixa cada coisa repousar em sua essência, isto é, o que a cadacoisa trata com cuidado e carinho67.

Por graça do evento, a possibilidade impossível se transforma emimpossibilidade possível, isto é, nós ficamos pobres:

Caso a essência do homem propriamente se põe de pé na rela-ção com o ser libertador, isto é, caso a essência humana careçado desnecessário, então o homem se tornou pobre no sentidomais próprio68.

65. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 8s.

66. Heidegger, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 9.

67. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 9.

68. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 9.

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E isso quer dizer: o homem se centrou e se concentrou no espiritu-al, vale dizer, na relação ser-homem, que é o próprio ser como evento.Na linguagem da Carta sobre o humanismo, o homem se tornou opastor do ser:

O homem foi “lançado” pelo próprio ser na verdade do ser, afim de que, ec-sistindo nesse lançamento, guarde a verdade doser; a fim de que, na luz do ser, o ente apareça como o ente queé. Se e como o ente aparece, se e como Deus e os deuses, ahistória e a natureza ingressam, se apresentam e se ausentam daclareira do ser, isso não é o homem quem decide. O advento doente repousa no destino do ser. Para o homem, a questão é, seele encontra o que é “destinado” à sua essência, correspondenteao destino do ser. Pois é de acordo com esse destino, que, comoec-sistente, ele tem de guardar a verdade do ser. O homem é opastor do ser. É somente nessa direção que pensa Ser e tempo, aofazer, “na cura”, a experiência da existência ec-stática69.

Ao se tornar o pastor que, em sua pobreza, cuida da verdade doser, o homem se torna rico. A riqueza, aqui, não é algo que se acrescen-ta à pobreza, como uma conseqüência da pobreza. Ela não é, de modoalgum, algo que lhe segue, como um efeito. Antes, o ser pobre é,verdadeiramente, o ser rico:

À medida que nós, a partir da pobreza, não carecemos de nada,temos tudo, de antemão, nós estamos na superabundância do ser,a qual super-flui, de antemão, toda premência da indigência70.

Ser verdadeiramente pobre é ser verdadeiramente rico: é ser e estarde pé na plenitude do mistério fontal do ser, que se doa, discreta ehumildemente, como evento-apropriador:

Riqueza jamais é só posse; menos ainda conseqüência da posse,pois ela é sempre o seu fundamento. Riqueza é a superfluênciadaquilo que garante a posse do próprio ser, em abrindo o cami-nho para sua apropriação e permanecendo inesgotável na ofertada maturação para o próprio.

69. HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo, op. cit. p. 50s.

70. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 9.

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Superfluência, porém, não é superfluidade que está sempre di-ante do saturado como o que lhe resta. O autêntico supérfluo éo superfluir que a si mesmo superflui e assim se supera. Numatal superação o superfluente aflui a si mesmo de volta e experi-menta que não se satisfaz a si mesmo, porque sempre já se temsuperado. Mas este jamais-se-satisfazer-a-si-mesmo por ser sempresuperante é a origem, o salto originário.A riqueza é essencialmente fonte, em cuja proximidade, somen-te e então, o próprio se torna propriedade. A fonte é o desdo-bramento do uno por e para a inesgotância da sua unidade. Ouno assim é o simples.Só pode ser rico quem sabe usar livremente a riqueza e sabeantes vê-la como tal na sua essência. Isso o pode somente quempode ser pobre no sentido da pobreza, que não é nenhuma pri-vação. Pois, a privação sempre se enreda num não-ter, que gos-taria de tudo ter com imediatez, com igual imediatez, com queela não o tem, isto é, sem a propriedade para ter. Esta privaçãonão brota do vigor da pobreza. A privação que quer ter nãopassa de indigência, que continuamente se apega à riqueza, sempoder saber da sua verdadeira essência, sem querer assumir ascondições da sua apropriação.A pobreza essencial é o vigor, a coragem do simples, que só é naoriginariedade.Essa pobreza admira a essência da riqueza e sabe dali a sua lei.O querer ser rico deve ir através da superfluente superação de si.Essa via, porém, é e quer ser aprendizagem71.

O evento-apropriador é o acontecer da união ser-homem. É amor,no sentido de que a pobreza do homem não quer ser a não ser nacarência do ser e que a riqueza do ser não quer ser a não ser na carênciado homem. A vontade do evento é o amor. Sua irradiação, alegria.Entretanto, “a pobreza é a aflitiva alegria, de nunca ser pobre o bastan-te. Nesta silenciosa inquietação repousa sua serenidade, que está acos-tumada a consolar-se de toda a penúria”72.

71. HEIDEGGER, M. Erläuterung zu Hölderlin Dichtung, p. 174 (Trad. de BUZZI, A., in:Itinerário, a clínica do humano. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 106-107).

72. HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim:Duncker & Humblot, p. 10.

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FONTES FRANCISCANASE FORMAÇÃO

Fr. Dorvalino Fassini

Introdução

Quando em 1958, João XXIII anunciou a celebração de um novoConcílio ecumênico, convocando toda a Igreja a uma profunda reno-vação através do famoso princípio voltar às origens, todos nós francis-canos, de modo geral, vivíamos profundamente distanciados dos tex-tos originários como a Sagrada Escritura e as Fontes Franciscanas (FF)1.

Só pensar que, na prática, nossa formação cristã e franciscana acon-tecia sem nenhum contato imediato e direto com esses escritos, hoje,causa perplexidade, ou, no mínimo, estranheza. Imaginar que toda aformação e profissão na Ordem desde, mais ou menos, o fim do sécu-lo XIV até meados do século passado, processou-se sem jamais nós, osfrades, havermos lido uma página sequer dos Escritos de São Franciscoou das FF é estranho e quase inacreditável. Por isso, cabia (cabe) muitobem, também à nossa Ordem, a convocação que João XXIII fazia atoda a Igreja.

A partir de então, começou-se um belo e frutuoso trabalho detradução, publicação e divulgação dessas Fontes. Aos poucos, tanto na

1. Nesse artigo entendemos FF os Escritos de São Francisco, Santa Clara e demais textosde autores do século XIII e XIV que testemunham a aventura evangélica desses santose de companheiros seus e que se encontram, por exemplo, nos volumes Fontes Franciscani,Santa Maria degli Angeli, Assisi, Ed. Porziuncola, 1995, Fontes Franciscanas e Clarianas,Petrópolis, FFB-Vozes, 2004; Fontes Franciscanas, Santo André, Ed. Mensageiro deSanto Antônio, 2005.

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formação cristã em geral, como, também, na formação especificamentefranciscana podia-se beber diretamente do espírito originário, seja daSagrada Escritura, principalmente do Evangelho, bem como das FF,em especial dos Escritos de São Francisco.

Nesse pequeno e simples estudo queremos analisar, ainda que delonge e de forma um tanto caseira, a relação das FF com a formaçãofranciscana, isto é, com a formação daqueles que seguem a Forma devida que em Francisco ganhou corpo e veio a denominar-se, simples-mente, Vida franciscana.

Embora, hoje ninguém mais duvide de que existe profunda liga-ção entre ambas pergunta-se: qual é, em que consiste ou como se dáessa relação? O que vem em primeiro lugar: as FF ou a nossa forma-ção? Dá para separar as duas? Caso afirmativo: quem deve servir a quem:as FF à nossa formação ou, vice-versa, essa às FF? Ter as FF comoservas de nossa Formação é compreensível, e o fazemos freqüentemen-te, mas o que seria o inverso: nossa formação servir às FF? E se não forpossível separar as duas realidades, como seria ou se dá sua união? Essasquestões nos remetem a outras mais fundamentais e primárias: o quesão FF, o que é e como efetuar a formação franciscana?

Tentaremos abordar esses questionamentos perguntando, primei-ramente, o que são FF, depois sua relação com a formação e, final-mente, qual o caminho natural e próprio para fazer das FF nossa for-mação.

1. Fontes franciscanas, o que são?

Todos nós, cristãos, religiosos e franciscanos, não temos maioresdificuldades de aceitar a existência de escritos, textos ou livros todoespeciais referentes à origem de nossa vida cristã e franciscana que cos-tumamos chamar de textos “religiosos”, “sagrados”, “espirituais”, “ins-

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pirados”, “revelados” ou simplesmente, hoje, de Fontes. A dificuldadeestá na compreensão de seu ser, de sua natureza, e, consequentemente,da maneira justa e adequada de portar-nos com eles.

A compreensão mais usual, hoje, é a que vem da historiografia. Ahistoriografia, graças a seu método crítico de discernir o autêntico doespúrio, tornou-se uma ciência de valor incalculável na busca da verda-de histórica dos fatos e ocorrências para toda a humanidade, tambémpara a Igreja, como, também, para a Ordem franciscana. Graças a elaeliminaram-se, por exemplo, entre nós, diversos escritos espúrios, fan-tasiosos, falsamente atribuídos, muitas vezes, a São Francisco ou a au-tores estranhos à autenticidade e veracidade das hoje chamadas FF2.

Segundo a historiografia, as FF são os textos que registram e teste-munham a história, a vida de São Francisco e dos primeiros francisca-nos em sua dimensão factual. Para ela o valor e a importância dessestextos residem tão-somente, enquanto e na medida em que estabele-cem a verdade histórica de nossa origem franciscana, mas apenas en-quanto verificável pelos critérios, meios e recursos das ciências positi-vas humanas e naturais. Por isso, para a historiografia, textos ou passa-gens das FF que, por exemplo, não retratam ou contradizem a verdadefactual acerca da origem da vida de Francisco ou da Ordem seráficacarecem inteiramente de valor para o estudo do Franciscanismo e desua espiritualidade. Além disso, e a partir dessa compreensão, todosesses textos, mesmo quando autênticos e verídicos, sob o ponto devista da historiografia, constituir-se-iam apenas em valioso acervo de

2. Merece menção o fadigoso e não menos precioso trabalho de Kajetan Esser, fradealemão que, durante quarenta anos, com a ajuda de outros frades, dedicou-se à pesquisade inúmeros manuscritos com o objetivo de oferecer à toda a Ordem uma edição críticados Escritos de São Francisco. Essa veio à luz em 1976 com o título Die Opuscula des hl.Franziskus von Assisi. Neue textkritiche Edition. Grotaferrata (Romae), Editiones CollegiiS. Bonaventurae ad Claras Aquas. O grande e maior de todos os benefícios dessa ediçãoé que oferece a todos a possibilidade de entrar em contato com um texto isento defantasias e de subjetivismos. Assim, por exemplo, ficou patente que a conhecidíssimaoração “Senhor fazei de mim um instrumento de vossa paz” não é de Francisco.

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dados e informações acerca dos ideais, objetivos e intenções do sujeitoFrancisco e dos primeiros companheiros. Tudo, enfim, ficaria resumi-do às pessoas desses nossos fundadores3.

Como veremos mais adiante, nesse artigo, para nós FF são teste-munhos escritos acerca de uma nova forma de vida, nascida de umainspiração inteiramente evangélica e manifestada principalmente emSão Francisco e seus primeiros companheiros. Como tais, esses escri-tos vieram até nós como nascentes ou fontes de um vigor que trans-cende a história e as pessoas em sua dimensão meramente factual e que,por isso, costumamos chamá-los de inspiração divina. Dessa forma ainspiração divina está na raiz do evento Franciscanismo e de todas as assimchamadas FF. Ela não é apenas anterior a esses testemunhos, mas é, tam-bém, sua possibilidade, bem como a possibilidade do sujeito-Francisco,ou do sujeito-grupo denominado Ordem franciscana. Esse vigor, tam-bém denominado pela tradição de inspiração franciscana, é anterior etranscende igualmente a subjetividade dos autores desses textos com suasvirtudes ou defeitos, intenções honestas ou fraudulentas, objetivosmeritórios ou desprezíveis. Pode-se e deve-se, com razão, afirmar quenão é Francisco e muito menos seus seguidores que têm o carismafranciscano, mas, antes, esse é quem con-verte, tem, contém, man-tém, segura, sustenta, alimenta, forma e in-forma aqueles4.

3. Maiores considerações acerca desse assunto o leitor pode encontrar no livro Leituraespiritual e formação franciscana. Petrópolis,Vozes, 1996, de nossa autoria.

4. Na Legenda dos Três Companheiros (LTC), por exemplo, os autores escrevem: Haec suntquaedam scripta per tres socios... de perfectione originis et fundamenti ordinis in ipso et inprimis fratribus. Literalmente: Estas são certas coisas escritas por três companheiros... acerca daperfeição da origem e do fundamento da Ordem nele (Francisco) e nos primeiros frades. Algunstradutores, como, por exemplo, na edição Fontes Franciscanas e clarianas. Petrópolis, FFB-Vozes, 2004, p. 789, entendem que se trata da perfeição de Francisco e não da perfeiçãoda origem e do fundamento da Ordem. Por isso traduzem: Estes são alguns episódios, escritospor três companheiros do bem-aventurado Francisco... sobre sua perfeição ... na origem daOrdem. O latim, porém, é muito claro: de perfectione originis et fundamenti ordinis, isto é: daperfeição da origem e do fundamento da Ordem, e não dele, Francisco.

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A inspiração divina franciscana passa a ser, portanto, a realidadeverdadeiramente real, a força originária que toca e move o sentir, opensar, o fazer e o viver dos seus autores. É a força, a fonte originária daqual e para a qual, sempre de novo, Francisco e todos os seus seguido-res se voltam a fim de compreender sua (dela) operação e assim sempremais e melhor a ela dispor sua vontade, seu coração, seu entendimentoe todas as suas forças.

Nascidas da inspiração divina, isto é, diretamente do encontro como Evangelho, com Jesus Cristo, antes do espírito da época ou dostempos, as FF são devedoras ao espírito do Senhor e seu santo modo deoperar5. Por isso, em vez de meras e belas peças de museu a lembrar-nos um passado maravilhoso, mas passado, elas se constituem na ins-piração, na forma de vida, sempre atual e atuante para todos quantos,movidos por esse mesmo vigor, decidem-se a seguir os mesmos passosde Francisco. Nelas o modo de expressar-se e de descrever a realidade,a escolha das palavras e dos exemplos, certamente, vêm profundamen-te marcados com as características da época e até mesmo da boa ou mávontade de seus autores, mas o conteúdo do sentido da vida nelaspulsante procede da fonte que os transcende. Essa última, a inspiraçãooriginária, é, pois, o verdadeiro autor, o critério justo, a medida corre-ta para a compreensão desses escritos; jamais as idéias, os sentimentos,os projetos ou pensamentos do sujeito-autor (Francisco e companhei-ros), e, muito menos, os pensamentos, as aspirações, os costumes só-cio-político-econômico-religiosos daquela época, a Idade Média doséculo XIII.

Vale aqui o que São Paulo diz em suas cartas: Asseguro-vos, irmãos,que o Evangelho pregado por mim não é invenção humana. Não o recebinem aprendi de ninguém, mas através de uma revelação de Jesus Cristo6.

5. Regra Bulada (RB) 10,9.

6. Gl 1,11-12.

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Ajuda-nos a compreender a natureza própria das FF o pensamen-to de Oscar Wilde acerca da arte: A arte não pode ser submetida ao seusujeito, pois, neste caso, não é arte, mas biografia, e biografia é a malhapela qual a realidade escapa (Oscar Wilde, pensador e poeta irlandês).

Parafraseando esse pensamento, podemos dizer que as FF não po-dem ser submetidas ao sujeito São Francisco, muito menos aos seusautores ou a quem quer que seja, pois neste caso tornar-se-iam meranarração de fatos particulares das várias fases da vida de Francisco: umasimples e mera biografia, jamais uma história sagrada7, preparada, con-duzida e operada pelo Senhor, como ele mesmo atesta com nitidez ereiteradamente em seu Testamento:

O Senhor me concedeu a mim, frei Francisco começar a fazer peni-tência assim... o Senhor me deu tal fé nas igrejas... o Senhor medeu e me dá tanta fé nos sacerdotes... o próprio Altíssimo me reve-lou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho... 8.

É nesses textos, portanto, que os seguidores de Francisco vão en-contrar os arcanos de sua identidade, de sua vocação e missão. Pois, éneles que pulsa o vigor da verdade mais real, verdadeira e comum, quevigora, anima e sustenta a caminhada de toda a Ordem através dasvicissitudes e relatividades do tempo, lugares e pessoas.

Uma boa explicação dessa realidade originária de todas as FF, e quecostumamos chamar de espiritual ou espírito, encontramos no livroHistórias do Rabi, de Martin Buber:

Este livro pretende introduzir o leitor a uma realidade lendária.Devo denominá-la lendária, porque os relatos que chegaram aténós e aos quais me propus dar forma adequada não são, comocrônicas, fidedignos. Remontam a pessoas entusiasmadas que,

7. Por história sagrada entendemos, aqui, a aventura nascida e vivida, do começo aofim, na e da dinâmica da necessidade de responder cada vez mais dedicada e fielmenteà gratuidade do encontro, da fé e do amor de quem nos amou por primeiro. Talresposta, Jesus descreve maravilhosamente bem no Sermão das Bem-aventuranças.

8. Testamento (T) 1;4;6;14.

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em recordações e apontamentos, preservaram aquilo que seuentusiasmo percebeu ou acreditou ter percebido, isto é, umaporção de coisas que realmente ocorreram, mas que somente oolhar do fervor podia apreender, como também muitas que, damaneira como foram contadas, não aconteceram e nem podiamter acontecido, mas que a alma entusiástica sentiu como algomanifestamente acontecido, relatando-as, portanto, como tais.É por esta razão que devo chamá-las de realidade: a realidade daexperiência de almas ferventes, uma realidade engendrada emtotal inocência, sem lugar para a invenção ou para o capricho. Éque essas almas não informavam de si mesmas, mas daquilo quesobre elas atuava. O que podemos deduzir de seu relato não é,pois, somente um fato da psicologia, mas também da vida. Algoexaltante sucedeu e produziu o efeito que produziu: a tradição,ao transmitir o efeito, testemunha também aquilo que o causou– testemunha o encontro entre homens entusiasmadores e ho-mens entusiasmados, a relação entre estes e aqueles. Isto é lendaverdadeira e tal é a sua realidade.Em última análise, todas as grandes religiões e movimentos re-ligiosos visam engendrar uma vida em entusiasmo, e precisa-mente num entusiasmo que nenhuma vivência pode sufocar que,portanto tem sua origem num relacionamento ao eterno, acimae além de toda a vivência individual 9.

A colocação mais significativa dessa passagem de Buber é que ostextos-fonte nasceram de pessoas entusiasmadas e entusiasmadoras, istoé, de pessoas movidas de entusiasmo. Entusiasmo, porém, aqui, nadatem a ver com a força anímica, oriunda da exacerbação subjetiva dapessoa. Tem a ver, sim, com seu significado originário, atestado já nosentido etimológico dessa palavra. De fato, entusiasmo vem da palavragrega én-theos ou én-thous e significa cheio de Deus, ou, talvez, me-lhor: estar no movimento (no embalo) de Deus10.

9. BUBER, Martin. Histórias do Rabi. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995, p. 19-20.

10. Belo exemplo de pessoa entusiasmada, nesse sentido de “én theous”, é São Paulo.Pelo que se sabe, São Paulo nunca teve um encontro com Cristo no sentido histórico-físico-geográfico, no estilo de uma ocorrência registrável pelos sentidos ou instrumen-

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Isso significa que nesses textos temos a possibilidade de estar dian-te de uma realidade que não precisa necessariamente ser real como fatoe mesmo assim ser verdadeiramente real; uma realidade que é real comoexperiência humana e, como tal, sumamente universal, comum e pró-pria do humano em todas as suas mais diversas e variadas concreções;uma realidade nada subjetiva, fantasiosa ou particular por situar-se aci-ma e além de toda a vivência individual uma vez que sua origem dá-senum relacionamento que vem do eterno com o homem em forma devisita, encontro ou toque. Mas, por não ser subjetiva não se pode con-cluir que seja objetiva, no sentido de verificável a modo de objetofisico-material-biológico.

Aproveitando as colocações de Buber poderíamos dizer que as FFem vez de serem textos históricos, geográficos, econômicos, pastorais,doutrinários etc., são textos pertencentes ao fenômeno religioso. Mas,fenômeno religioso, antes de fato ou ocorrência, indica tarefa, respon-sabilidade, busca ou questão, como muito bem o diz Frei HermógenesHarada nessa passagem:

Tarefa de uma questão engajada, sincera e radical, na qual deve-mos abrir-nos incondicionalmente para uma dimensão inteira-mente nova. Dimensão que, à primeira vista, parece-nos vaga,indeterminada, apenas como que indicando uma direção; nãoporque seja nada, um vazio, ilusão ou opiniões particulares demil e um diferentes enfoques e pontos de vista, mas sim, porquese trata de uma realidade anterior a nós, abissalmente mais vas-ta, mais profunda e mais originária do que todas as nossas pos-sibilidades e medidas. Dimensão que não é, portanto, subjeti-va, mas que, também, não é objetiva, no sentido de ser passívelde nossas objetivações, mesmo que essas objetivações recebam,

tos humanos, semelhante ao que tiveram os demais Apóstolos. Nem por isso o encontroque teve com o Senhor no caminho de Damasco é menos real, profundo, intenso,íntimo, marcante e decisivo que aquele que os demais Apóstolos tiveram. Não fosse real,verdadeiro – como ele mesmo atesta –poderia arrogar-se o direito, o dever e a missão –como os demais – de “Apóstolo”, isto é, de testemunho de Jesus Cristo crucificado?Como poderia testemunhar alguém que nunca tivesse encontrado?

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hoje, a conotação sagrada de cientificidade e logicidade. Umadimensão que é real, realíssima, mais real do que todas as nossasobjetividades e subjetividades, por ser a condição da possibili-dade do nosso ser e conhecer11.

Ora, não é essa realidade, que costumamos chamar de espírito, o“real” único e verdadeiro das Fontes Franciscanas?!

2. Fontes franciscanas em ou nossa formação?

Como assinalamos no início desse artigo, a formação que formal-mente nós, frades menores, mais antigos, durante séculos fomos rece-bendo e promovendo até a década de 60 do século passado, nada oupouco tinha a ver com as FF. Por isso, no dizer de frei Celso MárcioTeixeira, herdamos um franciscanismo ideologizado e híbrido12. Umfranciscanismo que proced(e)ia muito mais de outras vertentes, como,por exemplo, do monaquismo, dos planos de evangelização e de pas-toral da Cúria romana e das Dioceses, das inúmeras declarações papais,da ascética, da moral, do direito canônico, da teologia comum e usualda Igreja, da filosofia, da sociologia, da psicologia etc., do que, pro-priamente, da experiência evangélica de Francisco.

Com isso nossa formação foi tornando-se cada vez mais vaga, diluí-da, ambígua, equivocada, fragmentada, juridicista, moralista, pastoralistaetc. Assim, aos poucos e hoje quase não se percebe mais com muita clarezacomo ou em que nós franciscanos nos diferenciamos dos demais religio-sos ou clérigos, e, às vezes, até mesmo dos cristãos seculares. Em muitoscasos o frade menor não passa(va) de um monge ou cura de almas, um

11. Crenças, religiões, igreja e seitas: quem são? Em: Mensageiro de Santo Antônio,Santo André, 1995, p. 9-10.

12. TEIXEIRA, Frei Celso Márcio, ofm, A graça de celebrar 800 anos do Carisma Francis-cano. p. 2. Artigo publicado no site: www.franciscanos.com.br (Província da ImaculadaConceição).

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agente de pastoral ou promotor do bem-estar social e humano, semelhan-te a qualquer outro sacerdote ou secular.

A própria formação passou a ser compreendida, em muitos casos,mais como habilitação para o simples desempenho de ofícios, deverese atividades do que como contínua busca e generosa acolhida da inspi-ração originária de Francisco13. O que mais importava era ter um bomgestor e realizador de tarefas e funções, um bom defensor de conquis-tas doutrinárias do que propriamente um eterno peregrino do espíritooriginário franciscano. Em outras palavras, ser frade, segundo essa com-preensão, seria mais iniciativa e agenciamento nosso do que operaçãodo Senhor. Por isso, começou-se a falar e pensar que ser franciscano eraingressar ou entrar na Ordem e não, como Francisco, em receber benig-namente e sempre de novo esta vida, esta Ordem14.

Nossa sorte é que a Ordem está assentada sobre a rocha firme deum carisma profunda e limpidamente evangélico. Por isso, durantetodos esses séculos de esquecimento, continuamos sendo orientados evivificados pela luz e pelo vigor de sua presença, pulsante e atuanteatravés de muitos outros vestígios ou vertentes, como, por exemplo, oburel, as sandálias, o nome, os lugares “franciscanos”, os monumentos,as artes e pela tradição oral, principalmente, pelos famosos I Fioretti deSão Francisco.

Oriunda de muitas outras fontes, nossa formação carece(ia) de umnúcleo central, um coração, raiz ou razão que tudo interligue, orientee vivifique. Por isso, também, tornou-se uma formação frágil e depouco fôlego, necessitando sempre de “novidades” e experimentos pro-

13. Em certos ambientes ou ocasiões, por exemplo, soa muito forte a questão: “Quefranciscano queremos hoje?” Ou: “que tipo de franciscano a ‘Igreja’, o mundo precisa,hoje?”, como se quem devesse dar as regras de nossa formação fosse a “Igreja” e omundo.

14. Cf. Regra Não Bulada II; T 16.

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curados em escolas de outros carismas, outras espiritualidades ou ciên-cias, esquecendo que seguindo muitos caminhos nunca se chega a lu-gar nenhum, e, jamais, de jeito nenhum, à fonte.

Por isso, o pronome nossa, do título em nossa formação, está sereferindo a toda série de fatores, princípios, conceitos e métodosformativos esdrúxulos que, durante séculos, até os dias de hoje, à se-melhança de pó, vem se assentando e se agregando à formação originá-ria. A essa não restou outra saída senão retirar-se para as camadas pro-fundas do esquecimento, quando não do menosprezo, por ser consi-derada antiquada, medieval, obscurantista etc. Assim, o que era nossaformação passou a não ser e o que não era passou a ser.

Na década de 60, do século passado, esboçou-se o início de umareação. Movidos pelo espírito renovador do Concílio, os franciscanosnão apenas redescobriram as FF, mas também começaram a traduzi-las e usá-las em sua formação. Começou-se a abrir os livros sagrados denossa vida e nossa história, buscando neles ajuda a fim de melhor con-duzir essa que é a primeira e a mais importante de todas as nossastarefas ou missões: a formação.

Mesmo assim, a nosso ver, todo esse esforço ainda não desfez,nem transformou o caráter híbrido, vago, e diluído de nossa formaçãocom todas aquelas suas e demais características e conseqüências acimamencionadas. A formação do nosso ser franciscano ainda está muitodistanciada das FF. Ou seja, de um lado temos a nossa formação e deoutro as FF. Quando muito ou apenas nos servimos de algumas desuas passagens, escolhidas a dedo, para ilustrar e comprovar uma for-mação que concebemos e montamos a partir de outras origens. Nãoacreditamos no que elas verdadeiramente são: a fonte, a origem denosso vir-a-ser. Provavelmente uma das causas dessa atitude esteja nomedo que se tem hoje de tudo quanto seja medieval. É que,preconceituosamente, sem pouca análise crítica, pensa-se que tudo o

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que procede da Idade média seja infantil, fantasioso, obscurantista,dogmatizado, fundamentalista, etc.

Esse medo é real, pois sempre estamos correndo o risco de entrarpara um modo deficiente de ser franciscano; um caminho eivado desubjetivismos, onde não se segue o rigor e a seriedade da responsabilida-de de fazer o que deve ser feito até à consumação de nossa possibilidadefinita, para que o salto no desconhecido não seja facilitado e banalizadopela ausência de conhecimento e saber bem fundamentados15.

Tentemos compreender melhor essa questão passando a ver a rela-ção FF-formação no início da Ordem, isto é, como ela se dava emFrancisco e companheiros.

Primeiramente devemos considerar que Francisco nunca ousou teroutro formador senão a inspiração originária que se engendrava em seucoração, se aclarava em sua mente, se fortalecia, florescia e amadurecia emsuas atitudes temperadas sempre com firmes propósitos de fidelidade aosinúmeros toques vindos daquela realidade que o encantava e atropelavacada vez mais na busca de seus ideais de grandeza humana. Já no processode sua conversão a ninguém revelava seu segredo nem buscava conselho deninguém nesse assunto, a não ser só a Deus, que começara a dirigir seu cami-nho16. Ao Papa, que receava aprovar-lhe a Regra, por considerá-la demasi-adamente rigorosa, e queria propor-lhe outras formas de vida, responde-lhe que não se deve temer que morram de fome os filhos e reis do Rei eternoque, nascidos, segundo a imagem de Cristo Rei, de uma mãe pobre, pelavirtude do Espírito Santo, devem ser gerados pelo espírito da pobreza numaReligião paupérrima17.

15. HARADA, Frei Hermógenes, Em comentando I Fioretti, reflexões franciscanasintempestivas, Bragança Paulista: Edusf, 2003, p. 18.

16. LTC 10, 8.

17. 1B 3,10.

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Sem deter-nos em outras considerações acerca dessa passagem,notemos, porém, a insistência de Francisco acerca do princípio origi-nário de todo processo formador franciscano: o frade menor é filho erei do Rei eterno, que nasce, segundo a imagem de Cristo Rei, pelavirtude do Espírito Santo e que, por conseguinte, deve gerar-se peloespírito da pobreza.

Ora, rei e filho do rei regem-se por nenhuma outra regência senãopela luz e pela orientação de sua índole régia; do contrário, se devessemorientar seus passos e tomar suas decisões através de outros princípiosou príncipes não seriam reis e muito menos filhos de reis.

Mas, a relação FF-formação em Francisco vem magistralmentedescrita naquela passagem, talvez a mais significativa de todas, querevela o primeiro encontro explícito de Francisco com o Crucificadode São Damião, onde o autor conclui dizendo que

desde aquela hora, seu coração de tal modo ficou ferido e derre-tido ante a memória da Paixão do Senhor, que sempre, enquan-to viveu, levou em seu coração os estigmas do Senhor Jesus,como posteriormente apareceu claramente pela renovação dosmesmos no seu corpo, admiravelmente realizados eclarissimamente demonstrados18.

Francisco cresceu tanto na disposição de bem acolher essa forma(formação) de vida que, segundo São Boaventura, o verdadeiro amorde Cristo havia-o transformado de tal maneira em sua própria ima-gem que trazia consigo a imagem do crucificado19.

Através desses dois testemunhos não é difícil de perceber aqueleprincípio ou método originário de formação seguido por Nosso Se-nhor, nosso verdadeiro e único mestre e a Virgem Maria, sua e nossamãe.

18. LTC 13-14.

19. Cf. 1B 13,5.

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De Cristo atestam os evangelistas que, desde que entrou nessemundo até seu último suspiro, nenhuma outra coisa procurava senãoconhecer e cumprir a vontade do Pai; de sua e nossa mãe também seassinala que vivia ruminando em seu coração todas as coisas que dizi-am respeito ao Menino20. Assim, tornou-se inevitável que tambémFrancisco, por haver seguido à risca esse mesmo caminho, viesse a cons-tituir-se para todos os frades a Forma minorum o Espelho da perfei-ção21. Assim, era através dele e somente nele que os primeiros fradesbuscavam o fogo que lhes aquecesse a mente, a luz que lhes iluminassea alma e a estrela que lhes orientasse os passos que deviam seguir nopercurso da nova vida.

Após a morte do santo pai, os capítulos e os ministros gerais trata-ram de impedir que a imagem viva do espírito evangélico, a Formaminorum, resplandecente e atuante em seu primeiro e verdadeiro for-mador, se apagasse de suas mentes. Cuidaram, por isso, de assegurá-lapara as gerações futuras pedindo e ordenando que todos os Irmãosrecolhessem e redigissem os prodígios, os milagres bem como os fatosinsignes que revelavam a inspiração originária dessa nova Forma de vidaevangélica22. Assim, continuaria ele vivo, através de seus escritos e das as-sim hoje conhecidas e denominadas FF. Por isso, seus autores insistem quetodas essas coisas foram escritas a fim de edificar os que querem imitar seuspassos e manter sempre viva para os pósteros a memória23 de tão impor-tante, preciosa e fundamental aventura evangélica. São Boaventura, porsua vez, assegura que, entre os diversos objetivos de sua obra, está o de fazercom que os verdadeiros amigos da santa Pobreza sejam instruídos, pelo seuexemplo, a viver de acordo com Jesus Cristo e a sentir, com insaciáveldesejo, a sede da feliz esperança24.

20. Cf. Lc 2,51.

21. 1C 90,3 atesta: Todos podem olhar no espelho de sua vida.

22. Cf. Legenda dos Três Companheiros (LTC) 1.

23. LTC 1,7; 1,12; 1Celano (1C) 1,1.

24. Legenda maior de São Boaventura (1B) 1,1.

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Todas essas expressões, como fazer a memória, cuidar da edificaçãodos irmãos etc. nada tem a ver com moralização ou doutrinação, muitomenos com a busca de uma formação piegas ou meramente formalista.Tem a ver, sim, antes e acima de tudo, com a dinâmica própria dohumano, entendida, no caso, como um contínuo vir-a-ser da existên-cia franciscana, ou seja, nossa formação.

Assim, os escritos do próprio seráfico pai, juntamente com as ricase variadas legendas (FF), constituíam-se nos primórdios da Ordem nomais significativo, senão único, manual que regia e edificava os Ir-mãos. Consequentemente não havia entre eles o binômio formador xformando, mestre x discípulo uma vez que todos tinham-se, pura esimplesmente, como aprendizes e discípulos do único mestre e se-nhor: o espírito originário da Ordem25.

As Legendas ou Vidas de São Francisco com seus Escritos, principal-mente a Regra, foram se constituindo em verdadeiros anúncios e teste-munhos daquela Forma de vida para a qual Francisco entregara todoseu ser, do começo até o fim de sua conversão. A Forma minorum, aRegra viva que antes ganhara corpo e forma em Francisco agora podiaser vista, admirada, contemplada, abraçada, recebida e seguida atravésdesses escritos.

Infelizmente, como vimos, todo esse fervor por parte das primei-ras gerações de Frades para manter a memória da Ordem e uma for-mação originada pelo confronto imediato e direto, corpo a corpo,com nossa Forma de Vida, pulsante nesses textos, durou pouco. Àmedida que a Regra e as Legendas iam sendo esquecidas e cedendo

25. A ausência desses binômios não significa que se deva, hoje, eliminar os cargos ouserviços de “mestre” ou “formador”, mas de exercê-los na dinâmica evangélica daminoridade e da fraternidade (Cf. Mt 23,1-12). Assim o mestre mestreará não comomestre, mas como discípulo e o formador formará não como aquele que sabe, mas comoformando, isto é, como aquele que precisa sempre de novo aprender o aprender a serdiscípulo.

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lugar a outras formas de vida, vindas de fontes estranhas ao nosso gê-nero de vida, a Forma minorum passou a constituir-se em mero efeitolingüístico e cultural. Não se constituía mais em razão, nascedouro oufonte da formação dos Irmãos. Francisco de forma passou a ser a gloriaminorum. Agora ao invés da busca e do estudo do seguimento do espíritode sua experiência evangélica importava tê-lo como santo da Ordem ehonra dos Frades. Em vez de olhar para Francisco, os frades olham para aIgreja, com suas cada vez mais complexas e numerosas interpretações, paraas inúmeras e cada vez mais numerosas ciências humanas, como a teo-logia, a filosofia, a psicologia, a sociologia etc. etc.

Agora, talvez, o leitor possa entender o título da segunda partedessas reflexões. A maneira como vem formulado pretende indicarduas formas ou possibilidades diferentes de compreender e realizar arelação entre as FF e a formação. A primeira – FF em “nossa” formação– vê e elabora uma formação que traça seus princípios, conceitos, con-teúdos, metodologias etc. a partir de inúmeras procedências, distanci-ada ou alheia às FF. Essas existiriam apenas para servir, ajudar, ilustrar eorientar a formação que nós elaboramos. E, certamente, essa foi umadas melhores conquistas que se fez e está se fazendo nessa caminhadade quase cinqüenta anos de renovação conciliar.

Quando hoje se fala em formação franciscana, tanto inicial comopermanente, é quase inconcebível entendê-la sem o uso das FF e semuma escolha “criteriosa” de passagens que venham exemplificar e com-provar a formação que concebemos e empregamos. Assim, por exem-plo, é difícil que um franciscano faça seu retiro sem nada ler ou usardas FF.

Por isso não dá para dizer que nossa formação seja basicamenteuma formação franciscana. Trata-se, antes, de uma formação de fran-ciscanos ou seja, uma formação franciscana pela metade. E, segundoum educador cristão do século XIX, em se tratando de formação evan-

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gélica, uma formação pela metade é pior do que nenhuma26.Exemplificando: para um homem é melhor permanecer solteiro doque casar e viver em contínuas infidelidades matrimoniais.

Por isso o título da segunda parte desse estudo, em forma de pergun-ta, pretende lançar uma dúvida ou questão: se essa maneira de conceber eprocessar a formação, colocando as FF ao serviço dessa nossa formação, éjusta, correta, saudável e adequada? Para uma formação realmente originá-ria basta que se tenha as FF apenas como meio, recurso, subsídio e susten-táculo para outra formação, oriunda de outras origens? Não vale aqui omesmo princípio que se costuma aplicar ao Evangelho? Ou seja: São asFF que devem se adaptar à nossa formação ou, antes, não é essa que deve-ria adaptar-se àquelas? Quem deve inspirar quem? Por isso, a segunda par-te desse subtítulo: As FF, nossa formação.

Aproveitamos, aqui, para ilustrar nossa reflexão, o que dizia umfrade holandês que trabalhou muitos anos na formação:

Muitos, em vez de seguir o santo, atrelam-no atrás de sua carro-ça, querendo que ele lhes traga vantagem nas suas lutas, propa-gandas e ideologias. Em vez de proclamar Francisco seu condu-tor, invertem os papéis: “São Francisco pensa como eu”; em lu-gar de “eu devo pensar como Francisco” colocam o seu “eu” nolugar do mestre. Nesse caso não temos verdadeiro amor a SãoFrancisco, mas um egoísmo interesseiro27.

Tentemos ver essa diferença com alguns exemplos. Uma coisa é omédico dizer: “A medicina em minha vida” e outra, bem diferente: “Amedicina, minha vida”; uma coisa é o esposo dizer: “Maria em minhavida” e outra: “Maria, minha vida”; uma coisa é dizer: “Jesus Cristo,Evangelho, São Francisco em minha vida” e outra dizer: “Jesus Cristo,Evangelho, São Francisco, minha vida”.

26. Pe. Faustino Mennel, fundador das Irmãs franciscanas de Bonlanden.

27. WOUTERS, Frei Ildefonso, ofm, Os franciscanos no RS, Porto Alegre: Província SãoFrancisco de Assis, 1976, p. 14.

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No primeiro caso medicina, Maria, Jesus Cristo, Evangelho e SãoFrancisco estão em nossas mãos e ao nosso serviço, assim como oempregado ou a enxada está nas mãos e ao serviço de seu patrão ou doagricultor. Assim, apesar da muita boa vontade em querer dar um fun-damento franciscano e seguro à nossa formação, através desses exem-plos, percebe-se que as FF viraram objeto da ação de nossa subjetivida-de. Já no segundo caso dá-se o contrário: o médico, o esposo, nós éque nos colocamos nas mãos e à disposição da medicina, de Maria, deJesus Cristo, do Evangelho, de São Francisco e, no caso, das FF. Elas,como foram nos primórdios da Ordem, voltariam a ser o que são:nosso primeiro e único formador.

3. Leitura espiritual, caminho da formação franciscana

Mas, como, ou o que fazer para que as FF sejam, de novo, nossaformação? Qual o caminho que devemos seguir para que nossa forma-ção, nossa existência franciscana, à semelhança da água que borbulhada fonte, profluam, de novo, do sopro vital e originário do Francisca-nismo, pulsante e atuante nos textos de nossa Forma de vida?

Para responder a essa questão, precisamos, antes, recordar mais umavez a natureza e a atuação própria das FF.

Todos esses escritos, por conterem e re-velarem a inspiração origi-nária da Vida franciscana, conduzem seu leitor para a proximidademais intensa da profundidade do Mistério divino, fonte e origem daVida franciscana. São textos dos quais borbulha e nos quais atua arealidade mais profunda e radical que está para além, ou, melhor, paraaquém de toda e qualquer realidade proveniente da subjetividade doleitor, da subjetividade de quem os escreveu ou de quem quer que seja.Por serem fontes, são o princípio, a paisagem da qual brota nosso vir-a-ser franciscano e, consequentemente, toda a nossa formação e não

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meros meios, recursos para qualquer outra formação, por maissubstanciosa ou profícua que pareça.

Por isso, a natureza desses escritos dita também o caminho de sualeitura e estudo. Pois, como diz um grande mestre:

Compreende melhor a Escritura, aquele que, despojado de todoespírito, procura o sentido e a verdade da Escritura nela mesma,isto é, no espírito em que foi escrita e pronunciada: no Espírito deDeus... E São Paulo diz: Ninguém pode conhecer e saber o que háno homem senão o espírito que está no homem, e ninguém podesaber o que é o Espírito de Deus e o que há em Deus, senão oEspírito que é de Deus e é Deus (1Cor 2,11). Por isso um escrito,ou uma glosa, diz muito acertadamente que ninguém é capaz decompreender ou de ensinar o que São Paulo escreve, se não tiver oespírito em que São Paulo falou e escreveu28.

Formar-se partindo das FF, portanto, não é outra coisa senão des-pojar-se de seu (nosso) próprio espírito e de todos os outros espíritos,venham de onde vierem, para tão só e unicamente dispor-se ao espíri-to que vige e atua nas próprias Fontes. Esse empenho, trabalho ouexercício a tradição cristã e da Ordem denominou de leitura espiritual.

O caminho da leitura espiritual pode ser vislumbrado na sétimaadmoestação de São Francisco:

1Diz o Apóstolo: A letra mata, mas o espírito vivifica. 2São mor-tos pela letra os que cobiçam saber só as palavras, a fim de seremtidos mais sábios entre os outros e poderem adquirir grandesriquezas, para dá-las aos parentes e amigos. 3E são mortos pelaletra aqueles religiosos que não querem seguir o espírito da letradivina, mas só cobiçam saber mais palavras e interpretá-las paraos outros. 4E são vivificados pelo espírito da letra divina os quenão atribuem a si toda a letra que sabem e cobiçam saber. Mas,pela palavra e pelo exemplo, devolvem-na ao altíssimo SenhorDeus, de quem é todo o bem.

28. MESTRE ECKART, O livro da divina consolação. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 73-74.

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Segundo essa admoestação, Leitura espiritual, portanto, não se iden-tifica em apenas e simplesmente ler textos “espirituais”, “religiosos” ou“sagrados”. Na leitura espiritual o acento não está na “coisa” que se lê,mas no modo, na postura ou conduta, isto é, no espírito do leitor.Pois, como diz a Admoestação, pode-se estar na leitura procurandoseguir não o espírito da letra divina, mas tão somente a si, seus interes-ses, seus (pre)conceitos e saberes29.

O próprio da leitura espiritual, o que faz uma leitura ser espiritual,ou seja, o que conduz e orienta o leitor na leitura espiritual é a dinâmi-ca do toque e da nobreza nascida do vigor do encontro. Por isso, naleitura espiritual o leitor, partindo de sua total e absoluta pobreza (sineproprio), lê mais ouvindo do que projetando, mais interrogando doque afirmando, definindo ou formalizando, mais considerando e ad-mirando tudo sem nada menosprezar, mesmo que algo pareça ridícu-lo, impossível, antiquado ou absurdo; nessa leitura tudo se pondera ese reflete na tentativa de intuir e acolher entre as palavras, as frases e osperíodos o espírito do Senhor e seu santo modo de operar evangélico-franciscano. Trata-se, pois, de uma leitura que se faz a partir do “den-tro”, do coração do próprio texto, participando do espírito que o movee o per-faz. Em verdade, na leitura espiritual em vez de esforçar-se paracolher e ou definir o sentido da existência franciscana, como se fosseum algo ou mesmo um ideal, a exemplo do próprio Senhor, que emtudo seguiu a vontade do Pai; a exemplo de Nossa Senhora que passoua vida toda ruminando as coisas referentes ao Filho; a exemplo denosso seráfico pai que desde o encontro com o Crucificado até o fimviveu carregando em sua alma os estigmas da Paixão do Senhor, o

29. Assim, o Evangelho ou os Escritos de São Francisco, livros suma e essencialmenteespirituais, podem ser lidos e tratados como simples objetos de meu interessehistoriográfico, pastoral, econômico, político, religioso, psicológico, ascético, moralista etc.Por outro lado, um livro de conteúdo essencialmente material, como um livro de físicaou biologia, poderia ser tratado e lido espiritualmente, isto é, numa atitude de aberturapara a realidade que o transcende.

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leitor esforça-se para deixar-se colher e tomar pela origem e pelo fun-damento da Ordem30. Enfim, em vez de agente ou sujeito da leiturafaz-se seu paciente, isto é, aquele que, a exemplo do artista, sofre epadece o agir e o atuar da inspiração originária.

A outra leitura, descrita pela admoestação como letra que mata,poderíamos chamá-la de leitura objetiva, isto é, uma leitura que se faz“de fora”, “de longe”, “sobre”, a modo de jornalista ou de quem ficasobrevoando e descrevendo a partir de sua visão, de seus recursos eobjetivos pessoais.

Essa última leitura, diz Francisco, mata. Mata porque impede queo princípio originário do texto nos visite e faça sua habitação em nós,que é a dinâmica e a essência de todo encontro. Ou, como diz a pró-pria Admoestação, porque só cobiça mais palavras para interpretá-laspara os outros. Seria semelhante a alguém que casasse com uma bela enobre senhora somente para proveito próprio, como, por exemplo,para subir de status e poder exibir-se perante os outros. Nesse casoestaria “matando” a jovial alegria da gratuidade do encontro, descritopelo Senhor como entrar no Reino dos céus.

Leitura espiritual é, pois, exercício ou “coisa” do espírito. E espíri-to, para nós cristãos, é sempre, sem mais e nem menos, eco, ressonân-cia ou ato e atuação do ser de Deus; a pura doação que Ele faz de simesmo, na soltura, total, cordial e generosa da efusão do seu ser, criandotodas as criaturas, em graus de intensidade diferentes e diferenciados,participantes de seu ser31. Nesse sentido, leitura espiritual – formação

30. Cf. LTC Rubrica. Nessa passagem os autores fazem questão de asseverar que aconversão de Francisco foi tão admirável que permitiu que a origem e o fundamento daOrdem pudessem entrar nele e per-fazer todo seu percurso, do começo ao fim. Querdizer, quem pôde realizar-se plenamente, até o sumo, foi a origem e o fundamento daOrdem e não Francisco. Esse realizou-se na realização daqueles.

31. Da Criação, uma fantasia, Frei Hermógenes Harada, em Scintilla, Revista de Filo-sofia e Mística medieval, Instituto de Filosofia São Boaventura, Sociedade Brasileira deFilosofia Medieval, Curitiba, PR, p. 159.

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– é, sem mais e nem menos, empenho em ou para vir-a-ser o que jásomos por graça: filhos queridos de Deus, o Pai do céu, como Francis-co gostava de proclamar32 .

Textos espirituais, portanto, só se compreendem quando lidos nadinâmica do interesse. Não interesse no sentido usual da busca de van-tagens, lucros e favores pessoais, como quando, por exemplo, se per-gunta: qual seu interesse nessa viagem?

Aqui se trata do interesse no sentido mais originário, que significair para dentro da coisa, ela mesma, assim como se expressa o latim comas palavrinhas: inter (para dentro) e esse (ser). Textos espirituais, por-tanto só se compreendem se e quando o leitor se dispuser a ir paradentro do mistério do encontro que conduz e perfaz o texto. É comonos vitrais de uma igreja. De fora, por cima ou de longe, nada se per-cebe ou se pode captar, nada encanta ou arrebata. É preciso tirar assandálias, despojar-se de si mesmo e entrar na catedral do mistério queconduz e perfaz o texto; mistério que, no decorrer dos séculos, vemconduzindo, orientando, formando e in-formando a Ordem e todos

32. Nesse sentido o “texto-fonte” mais próximo é aquele que pulsa na pessoa dopróprio vocacionado e do irmão. Pois os membros da Ordem se fazem irmãos porquesão dados uns aos outros como tais pelo vigor do mesmo espírito evangélico (Cf. T 14).Assim, estão sempre sendo ungidos e formados como tais por essa única e mesma forçaoriginária e orientados e conduzidos pela luz da mesma e única inspiração evangélica.

Belo exemplo dessa mútua e recíproca leitura (formação) vemos na vocação de FreiBernardo, primeiro companheiro de Francisco. Levado pelo estranhamento, durantequase dois anos esteve lendo e querendo descobrir o “segredo” da “nova vida” deFrancisco. E, na medida em que ia lendo, era “lido”, colhido e acolhido pela inspiraçãooriginária. Por isso, quando diz a Francisco que quer viver como ele, Francisco, estavavivendo, o faz já movido por “esse” espírito. Por outro lado, também Francisco, porestar no movimento dessa mesma inspiração, sente a necessidade de ler de novo emelhor ainda, agora na pessoa de Bernardo, a forma de vida que recebera do Senhor.Por isso, em vez de dar ou ensinar a Bernardo uma resposta, propõe irem até a igrejinhada Poriciúncola a fim de lerem juntos, e de novo, o Evangelho da Pobreza de Cristo edos Apóstolos que ele, Francisco, já ouvira e recebera anteriormente na missa de SãoMatias, na mencionada igrejinha (Cf. LTC 25-29).

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os vocacionados a essa Forma de vida. Só assim, o leitor poderá sertomado e arrebatado pelo encantamento do encontro com o vigor desuas imagens, figuras e apresentações. Enfim, leitura espiritual – for-mação franciscana – a partir das fontes é, sem mais e nem menos,exercitar o ver e o sentir simples e imediato na disposição de aberturaao encontro daquela realidade, força ou espírito que um dia nos en-cantou ou atropelou, como encantou e atropelou Francisco, Clara etantos outros.

Por isso, o caminho formativo, indicado pela segunda parte dotítulo do segundo capítulo desse estudo Fontes Franciscanas, nossa For-mação, situa-se dentro da dinâmica do sine próprio, expresso em nossaRegra33 e ardorosamente defendido por Francisco até o fim de suavida, principalmente em seu Testamento. Tal caminho nada tem depronto, definido e conhecido. Tudo – conceitos, princípios, conteú-dos, metodologia etc. – está por ser considerado, refletido, procuradoe elaborado, sempre novo e de novo por cada leitor e cada época. As-sim, todo aquele que – com ou sem letras, com cursos ou sem cursos,jovem ou velho – tocado ou iluminado por algum raio dessa Formade vida, se dispuser a bem ouvir, bem ler e bem acolher, ao longo dosanos de sua vida, devota e benignamente, esses Escritos, não há dúvidaque verá um dia desabrochar e florescer também nele o corpo, o ser daexistência evangélica denominada franciscana. Ora, isso, sem mais enem menos, pura e simplesmente, sem nada pôr e nem tirar, não é,por acaso, Formação?!

Não há dúvida de que esse seja realmente o caminho por excelên-cia da Formação franciscana. Pois, se alguém quisesse conhecer pro-fundamente o pensamento de Platão, por exemplo, ou, melhor ainda,

33. Cf. RB I,2: A Regra e a Vida dos Frades menores é esta: observar o santo Evangelho deNosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, “sine proprio” (literalmente: sem o pró-prio, geralmente traduzido por sem nada de próprio).

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quisesse conhecer e viver o próprio Evangelho, o que seria melhor: ler,estudar, pesquisar tudo o que outros estudaram, pesquisaram e procla-mam ou, pura e simplesmente, mergulhar por anos a fio, diretamentee corpo a corpo, nos textos do próprio Platão ou do Evangelho? Evi-dentemente, o segundo é o melhor, senão o único e verdadeiro cami-nho para se chegar ao pensamento de Platão e ao coração da boa-novade Jesus Cristo34.

Mas, para retomar esse caminho originário da formação francisca-na é preciso recordar que nas FF, seguindo o Evangelho, o conceito deformação, sua metodologia, sua prática etc. pouco ou nada têm a vercom a busca de informações, saberes, dados, conteúdos ou doutrinas,muito menos com adestramentos ou de modelos prefixados. Tem aver, antes, com o processo de transformação ou conversão que nasce,cresce e amadurece a partir do vigor do encontro, da Fé, da Entrega edo Amor. Encontro cuja dinâmica leva e conduz o vocacionado paradentro da atmosfera da audiência diligente e da obediência única eexclusiva àquela dimensão que o toca, visita e convoca; àquela dimen-são (que para nós franciscanos brilha de modo pleno e consumado napessoa de Jesus Cristo, pobre e crucificado) para a qual se dispôs seguir

34. Cf. Fontes Franciscanas em nossa Formação, uma experiência do espírito, comunica-ção feita por Ir. Rosa Ada Morelli, no Congresso internacional São Francisco e as FontesFranciscanas, promovido pelo IFAN, no Colégio Bom Jesus, de Curitiba, de 12 a 14de outubro de 2007.

Acerca do modo próprio de se fazer leitura espiritual, o leitor encontrará diversas orien-tações no livro Leitura espiritual e formação franciscana, de nossa autoria, Vozes, 1996.Mesmo assim, vale registrar, aqui, como foi que Francisco começou a “ler” a realidade,o espírito que começara a persegui-lo. Logo após a visita do Senhor em forma de sonho,no caminho de Espoleto, ele retorna a Assis, isto é, para sua origem, a fim de ler einterpretar de novo e de outra forma o sonho que tivera. Isso porque da primeira vezo fizera de modo carnal, isto é, a partir de sua visão e de seus parâmetros. A partir deentão começa a pensar diligentemente sobre a visão que tivera; começa, também, arecolher-se em si mesmo, considerando e admirando sua força com tanta diligência que,naquela noite, nem mais quis dormir (Cf. LTC 6).

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como seu único caminho, sua única verdade, sua única vida, e que, porisso, à semelhança do casamento, jamais admitirá presença e interfe-rência de terceiros35.

Concluímos, enfim, com um exemplo em forma de pergunta.Alguém que, diária e continuamente, se expusesse ao sol não viria, poracaso, a se aquecer e a se iluminar com o calor e a luz de seus raios? E,para que se processe tal transformação, por acaso a pessoa precisariasaber e conhecer o que vem a ser o sol, sua história, natureza e proprie-dades? O mesmo não aconteceria com o seguidor de Francisco que secolocasse à disposição do calor e da luz dos raios iluminadores de seuespírito ressoante nas Fontes Franciscanas? Com o tempo não veriaflorescer também nele, como outrora em Francisco, aquela Forma devida evangélica que o transformou de filho de Pedro de Bernardoneem filho do Pai nosso que está no céu?

Conclusão

As FF constituem-se no mais explícito e significativo testemunhoda forma, da Regra, do espelho da vida evangélica franciscana originária.Nelas, por elas e com elas pode-se ouvir ressoar o ato da paixão deJesus Cristo que comoveu Francisco, Clara e toda aquela primeira ge-ração de franciscanos; nelas, por elas e com elas pode-se respirar e trans-pirar aquele sopro evangélico que transformou e conduziu Francisco etodos os seus seguidores de todos os tempos. Nem sempre, porém,nós, seus seguidores, fomos fiéis à sua fidelidade. Vejamos, em formade resumo, como através dos tempos veio se dando nossa (in)fidelidade.

35. Cf. Fontes Franciscanas em nossa Formação, uma experiência do espírito, comunica-ção feita por Ir. Rosa Ada Morelli, no Congresso internacional São Francisco e as FontesFranciscanas, promovido pelo IFAN, no Colégio Bom Jesus de Curitiba, de 12 a 14 deoutubro de 2007.

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– Primeiramente a forma, a Regra de vida, o Espelho da perfeiçãoevangélica transpiravam tão forte e originariamente em Francisco que,enquanto ele viveu, era nele que todos os frades encontravam sua for-mação. Francisco era a forma minorum.

– Logo após a morte de São Francisco os frades continuaram apôr-se à disposição da forma de vida evangélica de Francisco, agoraatravés da leitura ou da escuta, principalmente da Regra, do Testamen-to, mas, também dos demais textos, hoje denominados de Fontes Fran-ciscanas.

– Essa fidelidade, porém, não durou muito tempo. A partir, maisou menos, do século 15 até meados do século passado os frades foramesquecendo e ignorando quase que completamente as FF no processode sua formação. Essa passou a beber água de outras fontes e a orien-tar-se com a luz de outras inspirações.

– A partir do Vaticano segundo, celebrado em meados do séculopassado, inaugurou-se um tempo de reaproximação do processo for-mador dos frades com as FF. Os frades começa(ra)m a utilizar-se dasFF para subsidiar e comprovar “sua” formação.

– Enfim, espera-se que surja um novo tempo segundo o qual,atendendo os novos sinais do Reino dos céus, as FF sejam retomadas,novamente, como nosso primeiro senão único formador, como Cris-to e seu Evangelho eram o único formador dos Apóstolos e Franciscoo único formador de seus Irmãos. Tempo em que a atual crise da For-mação nos leve a vislumbrar a necessidade de uma viragem – conver-são – no que diz respeito à essência de todo o processo formador:passar do empenho de nossa formação para torná-la, cada vez mais emelhor e tão somente, um puro corpo de recepção devota, diligente,benigna, humilde e atenta do espírito originário franciscano e de seusanto modo de operar36.

36. Cf. RNB cap. II que tem como título Da recepção e das vestes dos irmãos.

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Finalmente, concluímos com uma citação de Frei Marcos Auré-lio. Comentando a passagem de 2C 191-192, onde Francisco atravésde uma parábola exorta os Irmãos à unidade originária, uma unidadeque deve dar-se entre frades letrados e iletrados, homens de ciência e osque sabem agradar a Deus sem a ciência, diz Frei Marcos:

Não se pode concluir que Francisco tenha aceitado a ciênciacomo meio para a ação franciscana, mas a conclusão mais provávelseria aquela de que o letrado, ao entrar no movimento franciscanotinha que se converter ele mesmo à forma de vida minorítica e à suasimplicidade. Os novos membros da Ordem deviam se formar se-guindo a forma de vida da Ordem e não transformar a Ordem aoseu modo de vida. Os sábios e os letrados não deviam ter outrameta e outro método do que o de serem simples e ignorantes37. Osábio que se apresentava para receber o hábito da pobreza, ele con-vocava a renunciar, não apenas aos bens materiais, mas também,de certa maneira, à ciência, para que, desapegado de tudo, seoferecesse nu aos braços do Crucificado e chorasse seus peca-dos38 na solidão e no silêncio39.

37. Nota do articulista: Ignorante aqui não significa abobado, mas aquele que está nadinâmica do sábio que sabe que não sabe.

38. Nota do articulista: Mais do que pecados morais, aqui se trata de pecado religioso,isto é, de não amar Aquele que nos amou por primeiro.

39. Fernandes Frei Marcos Aurélio, ofm, Pensadores Franciscanos, paisagens e sendas,IFAN, 2007, p. 113.

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DA INACESSIBILIDADE EDA JOVIALIDADE

Leonardo Ulrich SteinerBispo da Prelazia de São Félix do Araguaia

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, éisto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram termina-das – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Ver-dade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra montão.”1

Vamos mudando, transformando, responsabilizando-nos, com as ilu-minações, aberturas, inspirações, que nos atingem. É graça! Ilumina-ções, inspirações, nascidas das trilhas, das veredas, que o espírito susci-tou e suscita no coração de seus amados. “No trilhar, as veredas levamao seu destino os habitantes da Terra”2 , abrindo-lhes cada vez de novopaisagens ainda não visitas, não experimentadas.

Não estamos prontos, estamos sempre a caminho! Caminho que oSenhor concede e faz fazer. Faz fazer em dialogando com o mestre e oscompanheiros da mesma busca. A mesma busca que nasce do encontro!

1. Da inacessibilidade

Diz o Apóstolo: esta manifestação será realizada, a seu tempo pelobem-aventurado e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos Senhores,

1. GUIMARÃES ROSA, J., Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Editora NovaFronteira, 32a. ed. 1988, p. 16.

2. HARADA, H. em Pensadores franciscanos. Bragança Paulista: Edusf, 2007, p. 11.

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D. FR. LEONARDO ULRICH STEINER

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o único que possui a imortalidade, que habita numa luz inacessível, queninguém viu nem pode ver! (1Tm 6,16).

O pivô da questão é entender que os textos espirituais, o Evange-lho, só falam do encontro. Os textos espirituais, o Evangelho nãoestão falando de fatos-coisas, não é narração das histórias do passado!São Histórias de encontro!

O Pai habita numa luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver! OPai habita numa luz inacessível?3 O que quer dizer que Deus habita numaluz inacessível? Não é acessível, não é tocável, não se pode alcançar?

3. Primeira admoestação de São Francisco: Disse o Senhor Jesus aos seus discípulos: “Eu souo caminho, a verdade e a vida. Ninguém chega ao Pai senão por mim. Se me reconhecêsseis,conheceríeis também o Pai. Doravante o conheceis porque o vistes. Disse-lhe Filipe: “Senhor,mostra-nos o Pai e isto nos basta”. Jesus respondeu-lhe: “Há tanto tempo estou convosco e nãome conheceis? Filipe, quem me vê, vê também meu Pai. (Jo 14,6-9). “O Pai habita numaluz inacessível” (1Tm 6,16), e: “O espírito é Deus” (Jo 4,24) e “ninguém jamais viu a Deus”(Jo 1,18). Se Deus é espírito, só em espírito pode ser visto; pois “o espírito é que dá a vida, acarne não aproveita para nada” (Jo 6,63). Mas também o Filho, sendo igual ao Pai, nãopode ser visto por alguém de modo diferente que o Pai e o Espírito Santo. Por isso são réprobostodos aqueles que viram o Senhor Jesus Cristo em sua humanidade sem enxergá-lo segundo oespírito e a divindade e sem crer que ele é o verdadeiro Filho de Deus. De igual modo são hojeem dia réprobos todos aqueles que – embora vendo o sacramento do corpo de Cristo que, pelaspalavras do Senhor, se torna santamente presente sobre o altar, sob as espécies de pão e vinho,nas mãos do sacerdote – não olham segundo o espírito e a divindade, nem crêem que se trataverdadeiramente do corpo e do sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Atesta-o pessoalmente oAltíssimo quando diz: “Este é o meu corpo e o sangue da nova Aliança” (cf. Mc 14,22); e:“Quem comer a minha carne e beber o meu sangue terá a vida eterna” (cf. Jo 6,55). Por issoé o Espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, quem recebe o santíssimo corpo e sangue doSenhor (cf. Jo 6,62). Todos aqueles que não participam desse espírito e, no entanto, ousamcomungar, “comem e bebem a sua condenação” (1Cor 11,29). Portanto, “ó filhos dos ho-mens, até quando tereis pesado coração?” (Sl 4,3). Por que não reconheceis a verdade “nemcredes no filho de Deus” (Jo 9,35)? Eis que ele se humilha todos os dias (Fl 2,8); tal como nahora em que, “descendo do seu trono real” (Sb 18,5) para o seio da Virgem, vem diariamentea nós sob aparência humilde; todos os dias, desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos dosacerdote. E como apareceu aos santos apóstolos em verdadeira carne, também a nós se nosmostra hoje no pão sagrado. E do mesmo modo que eles, enxergando sua carne, não viamsenão sua carne, contemplando-o contudo com seus olhos espirituais creram nele como no seuSenhor e Deus (Cf. Jo

20,28), assim também nós, vendo o pão e o vinho com os nossos olhos

corporais, olhemos e creiamos firmemente que está presente o santíssimo corpo e sangue vivo everdadeiro. E desse modo o Senhor está sempre com os seus fiéis, conforme ele mesmo diz: “Eisque estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28,20).

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Usualmente, quando falamos de inacessível, estamos representan-do um lugar ou uma coisa que está longe, bem longe ou de difícilacesso. Inacessível eram os doces que nossa mãe fazia e escondia emcima do armário quando éramos crianças e não podíamos alcançar; alua até os anos sessenta; os estudos na universidade quando moráva-mos no interior; o velho distante. Inacessível como contrário do aces-sível, do próximo, do possível, do alcançável, tocável, do poder domi-nar e possuir. Acessível como poder relacionar-se com a pessoa que nasua aparência é distante. Inacessível significa, então, algo que por estarlonge de mim ou no lugar a onde eu não consigo chegar, torna-seimpossível de ser pego, ser possuído ou ser tocado por mim, a partirde mim. Mas que se eu tivesse uma escada ou houvesse um modo, umcaminho, eu o alcançaria, eu tocaria.

A inacessibilidade de Deus seria, então, como o ainda não possí-vel, mas um dia possível, pelo menos depois da morte.

Esse tipo de inacessibilidade na realidade não é o inacessível do qualfala Paulo de Tarso e afirmado por Francisco de Assis. Esse tipo deinacessibilidade a partir de mim, de fato, poderia ser alcançado. Só não o éde fato, por não ter no momento uma possibilidade. Nesse caso dizemos:é inacessível. Mas quem sabe um dia agente chega lá, se conseguirmos umdia abrir um caminho. Esse tipo de inacessível é ainda acessível ao homemcomo possibilidade. O texto de 1 Timóteo está falando de outro tipo deinacessibilidade. É a inacessibilidade do encontro.

O encontro do qual, na dimensão do espiritual, se fala dainacessibilidade, é outro do que aquele que costumamos chamar de:encontro de jovens, encontro de família, encontro dos presbíteros,encontro de paróquias, e assim por diante. Esses encontros são sinais ememória do encontro do qual falam os textos espirituais.

Encontro como inacessibilidade é um modo todo próprio de abertu-ra da pessoa humana. Encontro como inacessibilidade não tem divisão e

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poderia ser descrito no encontro da relação eu-tu. Martin Buber buscademonstrar o encontro do na fala encontro entre o tu-eu.4 Entre o eu-tu,o encontro é sem proximidade e sem divisão. O outro é somente tu eenche o céu e a terra. Não porque não existe nenhum outro, mas porquetudo vive na luminosidade do tu.5 Viver na luminosidade do tu é nemmesmo pronunciar o nome tu. O dizer, o descrever, o pintar, vem depoisda experiência do encontro. O eu e o tu apenas se encontram, apenas estãoaí. Por isso, a verdadeira relação entre o eu e o tu nasce do encontro. Nãoexiste uma pré-compreensão. É somente encontro, onde cada um é ilumi-nado e ilumina o outro, dando sentido de totalidade, isto é, cria todo ouniverso. No encontro não existem momentos, nem antes, nem depois.É! O antes e o depois são a partir do encontro. Nesse sentido o encontrotem um sentido de absoluto, sem momentos, puro movimento, puroacontecer, onde tu e eu não são o eu e o tu, mas ao mesmo tempo nãodeixam de ser na diferença.

Nesse sentido, o encontro é puro toque, puro golpe, é tudo numtoque, num só golpe. No tudo, tudo é, o cada um, no que é, sem nadadeixar de ser, o é, sem ainda saber que é. E, em sendo, o homem ésomente toque de encontro. E tudo é sustentado na gratuidade domistério do próprio toque, que se deixa tocar e se desvela numa unida-de onde tudo apenas é.

O encontro, como foi descrito, pode ainda dar a impressão determos a possibilidade de fazer acontecer o encontro. Na experiênciacristã, encontro significa uma impossibilidade da nossa parte: a inicia-tiva é de Deus, não nossa. Ao abrimos a Sagrada Escritura nos surpre-ende o modo da narrativa.

No Evangelho de Lucas o primeiro encontro é o do anúncio donascimento de João Batista. Lá está Zacarias no exercício de suas fun-

4. BUBER M., Io e tu, in: Il Principio dialogico e altri saggi. Milano: San Paolo, 1993.

5. Cf. BUBER, M. Io e tu, p. 64.

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ções oferecendo o incenso no santuário do Senhor. E apareceu-lhe um

anjo do Senhor, de pé, à direita do altar do incenso. Ao vê-lo Zacariasse perturbou e teve medo. Mas o mensageiro lhe disse: Não tenhas medo,Zacarias, porque foi ouvida a tua oração. Isabel, tua mulher, vai dar àluz um filho a quem darás o nome de João (Lc 1,5-18).

E no sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado da parte de Deuspara uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem, prometi-da em casamento a um homem, chamado José da casa de Davi. O nomeda virgem era Maria. Entrando, disse-lhe o anjo: Alegra-te, cheia degraça. O Senhor é contigo. ... O anjo lhe falou: Não tenhas medo Maria,porque encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberas em teu seioe darás à luz um filho e lhe darás o nome de Jesus... (Lc 1,26-34).

E poderíamos perpassar todos os evangelhos e, surpresos, podería-mos numa frase repetir: Não fostes vós que me escolhestes, fui eu que vosescolhi. A iniciativa é sempre de Deus que nos amou primeiro! (1Jo4,19). Não fomos nós que amamos a Deus, mas ele nos amou primei-ro. Nisto consiste a sua inacessibilidade.

É a narrativa do encontro onde a iniciativa não está na possibilida-de da pessoa. No encontro somos encontrados, não encontramos. Noencontro chegamos sem depois, chegamos sempre tarde.

Essa impossibilidade absoluta de nós, a partir de nós mesmos nosachegarmos a ele diz uma realidade absolutamente positiva: O Senhornos amou antes de toda e qualquer possibilidade nossa; que ele veio anós a partir dele mesmo; que ele nos tocou; que ele nos veio livremen-te ao e de encontro. Nenhuma possibilidade da nossa parte de buscar-mos; ele nos buscou, nos tocou, isto é, ele nos amou primeiro. Ainacessibilidade de Deus como encontro está no amor.

O encontro, como antecipação de Deus, por ele nos ter amadoprimeiro vem dito por Nicolau de Cusa como: Deus est non aliud.

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Deus é não-outro6 . Isto é: Deus é tão diferente de e ao mesmo temponão é diferente de, tão próximo de nós, tão um de nós, tão anterior anós que dele nem sequer podemos dizer que ele é inteiramente dife-rente, outro que nós mesmos! Deus est non-aliud = radical-outro! Oradical outro diz do modo da antecipação de Deus. Não apenas tomaa iniciativa, não apenas se antecipa, não apenas nos amou primeiro,mas espanta o modo como ama por primeiro. Na antecipação do amor,ele se fez não-outro.

O não-outro é palpável, perceptível, no mistério da encarnação.Deus nascido da mulher torna-se tão papável, tão visível, tão audívelque já não falam mais profetas, mas o Filho como nosso filho. Acriança envolta em faixas e deitada numa manjedoura é o não-outro!O menino envolto em faixa e deitado numa manjedoura é a luz quebrilha nas trevas, na escuridão da noite do medo, das incertezas huma-nas, dos conflitos e desânimos. A criança envolta em faixas e deitadana manjedoura é singeleza de Deus, simplicidade de Deus, pobreza deDeus, nobreza e ternura de Deus. O recém-nascido, carne da nossacarne, osso dos nossos ossos, sangue do nosso sangue, é antecipação, éo amor livre e gratuito, visibilizado no meio de nós: não-outro!

O não-outro é a inacessibilidade! Ele se tornou acessível, tão aces-sível a ponto de nós o podermos chamar de Abba, o podermos pegarna mão e comer, fazer Dele o que bem quisermos. Se assim nos é dadofazer é porque ele gratuitamente, livremente se nos deu, na nossa hu-manidade e fragilidade. Essa gratuidade não é nossa conquista, não énosso domínio, não o é porque ainda de fato não encontramos ummeio de dominá-lo, mas porque pertence à essência íntima da gratuidadeda liberdade de encontro.

6. Cf. NICOLAU DE CUSA, De non-aliud. Philosophisch-Theologische Schriften,Bd II, Wien, 1989.

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Inacessibilidade de Deus porque amou antes que fosse amado,desejou antes que fosse desejado, tocou antes que fosse tocado, veio aoencontro antes que fosse percebido. E tudo gratuitamente, sem desejode ser correspondido, sem cobranças, sem obrigações, sem arrependi-mentos, sem cobranças de ser amado, sem nada que não conotasseapenas que livremente, gratuitamente ama.

A impossibilidade absoluta de nós, a partir de nós mesmos nosachegarmos a ele diz, então, uma realidade absolutamente positiva:que ele nos amou antes de toda e qualquer possibilidade nossa; que eleveio a partir dele mesmo; que ele nos tocou; que ele nos veio livre-mente ao e de encontro. Isto é: que, se ele se nos tornou acessível, tãoacessível a ponto de nós o podermos chamar de Abba, é porque elegratuitamente, livremente se nos deu. Essa gratuidade pertence à es-sência íntima da gratuidade da liberdade de encontro. Nesse sentido: aresposta que nós vamos dar a Deus, o nosso sim do encontro é tam-bém inacessível ao próprio Deus, pois, o amor do encontro jamaispode ser possuído, conquistado como uma coisa sobre a qual tenho apartir de mim um poder e domínio! É inacessível, pois trata-se dedoação livre de benevolência.

Diante da doação livre de benevolência, São Francisco diz: Portan-to, “ó filhos dos homens, até quando tereis pesado coração?” (Sl 4,3) (Adm1). Como se dissesse: será que não se percebe que a única possibilidadenossa de ver a Deus inacessível é gratidão profunda diante desse amorhumilde de Deus que vem de encontro?

Gratidão é próprio de quem se apercebe agraciado, cuidado, aco-lhido. Gratidão nasce em quem foi e é amado gratuitamente. Umamor sem porque, sem para que, sem justificativas, sem saber por queamou. Ama! Quem se apercebe de tal cuidado, de tal graça, de não sermerecedor de tal graça e de tal acolhida, da gratuidade do amor, étocado pela gratidão que o não-outro suscita. A suavidade do coração-doação de livre benevolência busca a correspondência amorosa. Cor-

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respondência como busca do mesmo modo de amar na liberdade, nagratuidade.

Com outras palavras: a inacessibilidade num sentido rigoroso eabsoluto só pode se referir ao fenômeno de encontro de pessoas: nadoação da liberdade.

Por isso atitudes como essa: prove que eu creio; quero ver como éisso; é impossível de compreender, desânimo etc. etc... são todas atitu-des de quem acha que é de sua competência poder fazer o encontroacessível a partir de si. O encontro só é acessível na recepção grata ehumilde de amor.

Tu Senhor, palavra eterna e criadora, esperança e o esperado dasnações, o implorado por todas as gerações és agora, hoje e sempre oEmanuel, Deus conosco; palavra visível, princípio, início, sentido detudo o que somos e temos! Palavra não mais anunciada pelos anjos,nem pelos profetas, mas viva e visível, audível, no meio de nós comopalavra criança. Palavra sem força, sem poder, sem grito, sem som,apenas gemido e silêncio na criança que dorme.

Tu Senhor, palavra eterna criança, criadora de um novo céu e umanova terra não mais te imploramos, nem sequer te buscamos, nem mes-mo te nomeamos. Silenciosamente apenas te olhamos, te admiramos, tecuidamos, te reverenciamos. Pois, como a um filho te ouvimos e te carre-gamos com nossos olhos, em nossos braços, em nosso regaço.

2. Da jovialidade7

Diz o apóstolo: Embora fosse de divina condição, Cristo Jesus não seapegou ciosamente a ser igual em natureza a Deus Pai. Porém, esvaziou-se de

7. O presente texto tem como título original: Jesus Cristo pobre: a cruz como jovialidadeda gratuidade na finitude. Foi extraído da apostila O Seguimento de Nosso Senhor JesusCristo, “o modo de viver religioso”; textos de Hermógenes Harada compilados por FernandoManzon, bispo de Piracicaba, SP. Com algumas pequenas modificações e as citações daSagrada Escritura, incluímos na publicação em agradecimento pelos 80 anos.

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sua glória e assumiu a condição de um escravo fazendo-se aos homens seme-lhante. Reconhecido exteriormente como homem humilhou-se, obedecendoaté à morte e até a morte humilhante numa cruz. (Fl 2,6-11)

A cruz como jovialidade da gratuidade na finitude – O cristianis-mo anuncia o sentido da cruz. Como? Pelo “mysterium paupertatis”,que é a encarnação, eucaristia e cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Orei da glória não achou coisa mais preciosa do que a condição humana-cruz, por isso deixou tudo o que era glória, onipotência..., se fez ho-mem.

A pobreza “evangélica” é o sentido do ser amado, vivido, realizadoe ensinado por Jesus Cristo confirmado pela morte na cruz. Esse sen-tido se chama pobreza porque o seu modo de ser pode começar a serdescrito como: “sine proprio”, sem o próprio. Costuma-se entenderesse sem o próprio como nada possuir, isto é, nada ter, nada poder,nada ser. Essa compreensão usual deixa escapar um ponto essencial,pois “sine próprio” não diz nada ter, nada poder, nada ser. Diz antes:tudo ter, tudo poder, tudo ser “sine próprio”, isto é, somos tudo por-que tudo recebemos; estamos na imensa fluência do Pai, somos unoscom ele; inteiramente dispostos, abertos, embalados, sustentados por,pulsando, agindo, pensando, sentindo, sendo nele, com ele, por ele.Essa sintonia, essa união, esse com-o-Pai, esse ser-no-Pai, é a essência, aidentidade do homem, a sua grandeza, a sua imortalidade. É a inocên-cia originária, Adão no Paraíso, total obediência à vontade do Pai.

A nossa dificuldade é entender com precisão esse modo de ser ori-ginário, pois o entendemos já a partir do modo de ser onde não hámais essa obediência paradisíaca. Entendemos esse ser-no-Pai como sefosse a realização plena do estado de onipotência, onisciência, do bem-estar material e “espiritual” do humanismo super-homem. Pensamos:Adão não morria, não adoecia, não precisava trabalhar, podia tudo oque queria. Era realizado! ... E se a “coisa” fosse bem diferente? Se arealidade fosse assim que o homem originário morria, se machucava,

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envelhecia, tinha que trabalhar, se não comia tinha fome... Mas, en-tão, onde está a sua grandeza, a sua imortalidade se ele era mortal comoqual quer um de nós? A sua grandeza, a sua imortalidade estava em eleser-um-com o Pai, com todo o seu entendimento, com toda sua von-tade, com todas as suas forças, com todo o seu sentimento, com todoo seu ser.

Com infinita gratidão e amor tudo recebia como graça de amor doPai. Esse encontro com o Pai, buscado, querido, trabalhado, acolhido econquistado sempre de novo era a sua imortalidade; “Sine próprio”, isto é,nada ser, nada ter, nada poder a não ser pura e limpidamente encontrocom o Pai. Essa existência interpretava todos os seres, todos os aconteci-mentos, todas as necessidades da vida e do universo, os trabalhava, oselaborava, os transformava, os dominava, os coordenava para um mundoe uma humanidade cada vez melhor: um novo céu e uma nova terra. Essaexistência era força e dinâmica do encontro como Pai.

Um dia, porém, o homem quis mais. O encontro com o Pai erapouco. “O que me adianta o amor do Pai que me amou primeiro, seeu continuo morrendo, se continuo na dependência da minha morta-lidade, se não sou como deuses imortal a meu modo? Ele não é amor?Por que me dá uma porcaria de encontro que não enche a barriga denenhum mortal? Que ele me faça imortal, que ele me tire da cruz damortalidade e assim prove que ele me ama realmente; só então acredi-tarei nele e o amarei”.

Foi então que a pobreza, isto é, a existência-encontro com o Paicomeçou a ser desprezada como indigna do homem, como algo quedeveria ser combatido, até o dia em que Jesus Cristo carregando todasas “cruzes” (negatividades) do universo, esmagado sob o peso de mor-talidade, na cruz, gritou ao Pai que o ama incondicionalmente.

Não é esta a identidade perdida do homem, muito querida porDeus? Não é em Jesus Cristo, na cruz, que o homem se encontra com

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a sua origem mais originária: a semelhança com Deus? Pois então sealguém quiser ser discípulo dele, está na necessidade de negar-se a simesmo, tomar sua cruz todos os dias e seguir o Senhor Crucificado.

A cruz é o símbolo fundamental do viver cristão!

Símbolo aqui não significa tanto um sinal, uma indicação, massim o vigor de identidade da realidade ela mesma. Como entenderisso? Símbolo vem do verbo grego syn-bállein. Syn significa: recolhi-mento, ajuntamento no vigor do uno, na dinâmica do uno. Syn é aunidade interior de um movimento. A palavra bállein está na palavramoderna ballet, balística e significa lançar. Lançar como no movimen-to do ballet. Os elementos do ballet se lançam em diferentes movi-mentos, posições, abrem-se, fecham-se em círculos, formando semprede novo diversos caminhos, novas constelações de movimento. É omovimento do lance, da jogada, o bállein.

No entanto, em tão diversas modalidades de movimento, em tan-tas diferenças há sempre uma coerência que une, ordena todos essesmovimentos na unidade dinâmica, precisa e graciosa que não é nenhu-ma coisa, não é nenhuma norma, mas sim o vigor reinante na totalida-de do ballet: o syn. Syn é, pois, o fundamental da vida do ballet.

Nossa vida é também um ballet. Fazemos isso e aquilo. Lançamo-nos nisso e naquilo, de vários modos, de diferentes posições... O queune todas essas diferenças na unidade interior do fundamental da nos-sa vida, como seguidores de Jesus Cristo? A jovialidade da cruz!

Jovialidade aqui não deve ser entendida como alegria do sorriso dapublicidade, nem como aquilo que se opõe a tristeza e a dor. É antessinônimo de cordialidade.

Jovialidade vem da palavra jovial + idade. “idade” significa: a es-sência, a força, o vigor de alguma coisa. Jovialidade é, pois, o vigor, aessência do ser jovial.

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Jovial por sua vez não deve ser entendido no sentido de um sujeitosempre sorridente, uma espécie de bobo-alegre. Jovial vem de Jovis.Jovis é Deus, o divino. Pois Jovis é o Deus supremo dos gregos, oDeus da força do dia.

A palavra juventude vem também de Jovis. Juventude aqui nãodeve ser entendida como qualidade de uma idade biológica. Antes de-vemos interpretar a juventude a partir da jovialidade. É jovem nãoaquele que tem idade nova, mas sim aquele que tem o vigor de Jovis,o vigor de Deus. E nesse sentido que Deus é aquele que alegra a nossajuventude, isto é, a vitalidade do nosso ser.

Jovialidade é, portanto, o vigor de Deus, o modo de ser específicode Deus, a qualidade de Deus. Como é esse modo de ser de Deus, omodo de ser da jovialidade? É como a cruz de Jesus Cristo.

Como é a cruz de Jesus Cristo? O que nos diz a cruz de NossoSenhor Jesus Cristo?

A cruz consiste na condenação da parte de Deus do próprio empe-nho da cruz. O Crucificado se sente rejeitado por Deus: Meu Deus,meu Deus, porque me abandonaste?

Mas, é nessa terrível e cruel condenação que está a jovialidade? Oque se deu então na cruz de Jesus Cristo para ser recordação, isto é, oreviver da cordialidade, participação da jovialidade?

No momento da rejeição, Cristo nada mais tem de si, tudo nele ésem valor, a própria autenticidade, o próprio sacrifício. Nessa totalpobreza, sem direitos, sem méritos, Jesus Cristo tenta doar-se ao Paique o condena. Suspenso entre o céu e a terra, sem terra e sem céu, semDeus, ele tentando só amá-lo, gratuita, cordialmente, apenas atraídopela afeição, sem por que, sem nada saber, só, amor: Nas tuas mãos euentrego o meu espírito.

Imitar assim, re-produz o modo de ser de Deus; amar assim domesmo jeito que Deus ama todos os seres. Deus nos ama, não porque

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somos bons, não porque lhe retribuímos o bem, mas apenas, simples-mente, porque ele e bom. No instante em que Cristo imita o Pai e oama apesar de, por causa da condenação, Deus diz: Eis o meu filho quetem o mesmo modo de ser do meu amor; eis o meu filho que amacomo eu amo, na jovialidade, na gratuidade, na cordialidade de ser. Eisa revelação do meu amor.

É esse amor que é a jovialidade, é esse amor que dá o ser, a vida atodas as coisas, que tudo conserva, faz crescer, se consumar no mistériode ternura e benignidade da Vida, que dá sentido à morte, ao sofri-mento, salvando tudo como a manifestação do amor de Deus. Essajovialidade de amar nada exige, de nada se faz senhor, não se eleva,apenas ama, livre, gratuitamente como a mãe ama o seu filho. Essemodo de amar é humildade de Deus, a servidão, o servir, a submissãode Deus no amor. Por isso, Deus é o servo e o súdito de toda humanacriatura. E aquele que o imita, que tenta ser do mesmo jeito, é o servo,o submisso, o humilde, o irmão menor de todas as coisas.

A cruz é o desabrochar da ex-sistência de Jesus Cristo, o radical-mente sem por que, sem para quê, abertura originária como o mediumda acolhida, a gratuidade. Esse medium, a gratuidade é o medium doPai: Eu e o Pai somos um.

Mas o que é afinal a gratuidade? Não é possível responder a essapergunta, porque a gratuidade não é como algo, alguma coisa. Ela só éna concreção como vigor e pudor da própria concreção: a jovialidade.Na impossibilidade de dizer o que é a gratuidade, deixemo-nos referirao aceno da jovialidade como o risco de dizer demais ao nada dizer.

“A rosa é sem por quê. Ela floresce ao florescer”, é o verso de AngelusSilesius.8 A rosa aberta sem por quê no orvalho da manhã: a alegriaque acolhe o coração do mortal no frescor e na nascividade da inocên-

8. Angelus Silesius, pseudônimo de Johan Schäffler que viveu de 1624 a 1677.

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cia matinal. Por que a rosa e útil ao homem, por que o homem des-cansa, por que se alegra na sua cercania? O mortal descansa, respiramais livre, se alegra, renasce, porque é acolhido e recolhido nodesvelamento da inocência da natureza: no recato e na jovialidade deser. A natureza aqui, no entanto, não é uma região do ente em oposi-ção ao homem. natureza é a nascividade, a liberdade do mistério. E aprópria estrutura da presença que constitui o frescor, a limpidez, ainocência, a transparência e a graça de todas as coisas. É, a partir dessaliberdade do mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, o rigor,a coragem, e sinceridade: liberdade do mistério e a jovialidade de ser.

A jovialidade é paciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidadenão é jactanciosa, não se ensoberbece, não é desconte, não é interessei-ra, não se irrita, não guarda rancor; não se alegra com a injustiça, mascompraz-se na verdade: tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudotolera (1Cor 13,4-7). Isso é a jovialidade, o aceno de gratuidade, areferência da essência do mistério que perfaz a presença de Deus: avontade do Pai. É só nisso que é tudo, apenas nisso que é o modo deser de Deus, e nisso que consiste e pobreza evangélica ou pobreza emespírito.

Se é assim, a vontade do Pai, a vigência de Deus, a pobreza evangé-lica é como a rosa, sem por quê. O seu poder não é poder de domina-ção, mas a presença acolhedora da gratuidade que tudo libera e vivificana ternura, no vigor e no recato de sua jovialidade. Por isso, ao se darna gratuidade não humilha, não se gloria, não domina o agraciadocomo doador, como superior, mas ao se dar se retrai na sua humildadecom recato, qual um servo para com o seu senhor! É a sua única “do-minação” é a limpidez da sua gratuidade na inocência nasciva, que seexpõe como graça, como liberdade da doação.

A revelação do mistério dessa jovialidade do amor de Deus, e Deusdo de amor, é a cruz de Jesus Cristo. Portanto, longe de ser um “maso-

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quismo” da passividade religiosa, a cruz é a exposição originária domanancial da vida, na limpidez e no vigor de sua inocência. Por ser acruz exposição do vigor da inocência originária do mistério, ela estádisposta simplesmente ali, sem nenhuma defesa, abandonada: a liber-dade da gratuidade. E isto é o poder da autofidelidade do mistério, opoder de sua auto-identidade: ele pode ser ele mesmo e nada mais.

A acolhida da jovialidade do mistério é ser-criatura. Ser-criatura éser irmão de Jesus Cristo, e saber, ser como ele, Filho do Pai, da von-tade do Pai, isto é, do mistério da gratuidade na gratuidade do misté-rio. É ser a partir e dentro do medium de liberdade, ter a mesma natu-reza, isto é, nascividade, na qual o Pai e o Filho e a criatura são recolhi-dos na referência do mistério.

É na gratuidade do mistério que tudo floresce singelo na perfeitaalegria de ser: na graça. E, na graça dessa jovialidade, a dor da Terra doshomens é acolhida como encarnação, como ósculo de reconciliaçãodo céu e da terra, na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O que é a gratuidade? Na impossibilidade de dizer o que é agratuidade, silenciemos dizendo na singeleza: Ela é a jovialidade, é cruzde Nosso Senhor Jesus Cristo, é pobreza evangélica.

3. Da casa da gratuidade

A palavra de Jesus no encontro e na jovialidade repercutem demodo todo próprio.

Um pai tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: pai dá-me aparte da herança que me cabe. E ele repartiu a sua herança.Poucos dias depois o filho mais novo reuniu o que era seu epartiu para um país distante, onde dissipou a sua fortuna, vi-vendo dissolutamente. Depois de ter esbanjado tudo, sobreveioàquela região uma grande fome: e ele começou a passar penúria.Foi pôr-se a serviço de um dos habitantes daquela região, que o

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mandou cuidar dos porcos. Desejava fartar-se das vargens queos porcos comiam, mas nem mesmo isso lhes davam. Entãocaiu em si e disse: “Quantos empregados do meu pai têm pãocom fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora,vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus econtra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como aum dos teus empregados”. Então ele partiu e voltou para seupai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu com-paixão. Correu-lhe ao encontro abraçou-o e cobriu-o de beijos.O filho disse ao pai: pai pequei contra o céu e contra ti; já nãosou digno de ser chamado de teu filho. Mas o pai disse aosservos: trazei de pressa a melhor túnica e vesti-o; colocai umanel no dedo e calçado nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o; comamos e festejemos. Este meu filho estava morto e tornoua viver, estava perdido e foi encontrado. E começaram a festa. Ofilho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se dacasa ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e per-guntou-lhe o que estava acontecendo. Ele explicou: teu irmãovoltou e teu pai mandou matar um novilho gordo, porque oreencontrou são e salvo. Encolerizou-se e não quis entrar. Masseu pai saiu e insistiu com ele. Então ele respondeu ao pai: Eutrabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquerordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejarcom meus amigos. Quando chegou este teu filho, que esbanjouteus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado. Disse-lhe o pai: Filho tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu éteu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu ir-mão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encon-trado (Lc 15,11-32).

Acostumamo-nos à exortação, à convocação e à conversão que otexto provoca; e, assim, recordamos o distanciamento, o estar longeda casa, de ter esbanjado a herança de filhos de Deus que nos cabia;diante da narrativa somos conduzidos ao retorno, somos aqueles queno arrependimento de termos vivido dissolutamente agora voltam parao aconchego do perdão e da misericórdia. Mas dissemos tudo da pará-bola ouvida?

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Jesus se encontra com os pecadores e faz refeição com eles, é mise-ricórdia para eles. Jesus visita os pecadores e se senta à mesa com eles,se faz misericórdia. É diante dos pecadores e dos fariseus e mestres daLei que Jesus conta a parábola do pai que tinha dois filhos.

A família é tudo no tempo de Jesus: lugar de trabalho e sobrevi-vência, fonte de identidade, garantia de seguridade e proteção. Era muitodifícil sobreviver fora da família. Mas também era muito difícil umafamília subsistir isolada das demais. As aldeias eram formadas por fa-mílias unidas por laços de parentesco, de vizinhança e solidariedade.Juntos preparavam os casamentos de seus filhos, se ajudavam mutua-mente para as colheitas, para reparar os caminhos, se uniam para pro-teger a viúvas e os órfãos. Os problemas e os conflitos familiares reper-cutiam na aldeia. 9 Quando Jesus começa a falar, todos sabem dasdificuldades, mas o pedido do filho mais novo é imperdoável. Aoexigir a parte de sua herança, ele está declarando a morte de seu pai,rompe a solidariedade da família e joga por terra a sua honra. Comoum pai vivo vai repartir a sua herança? Como dividir a herança colo-cando em perigo a sobrevivência de sua família? O que o filho maisnovo pede é uma loucura, um disparate.

E o pai? Nada diz. Respeita o pedido descabido do filho e repartea herança. Que tipo de pai é esse que não impõe a sua autoridade, quenão exige do filho que permaneça em casa? Como pode aceitar a lou-cura do filho perdendo a própria dignidade e colocando em perigotoda a família?

Num país distante, atingido pela fome, só, sem família, sem pro-teção, termina como escravo de um pagão cuidando de porcos. A suadegradação não poderia ser maior: sem liberdade, sem dignidade algu-ma, numa vida infra-humana em meio aos animais impuros. Ao tra-

9. PAGOLA, José Antonio. Jesús, aproximación historica. Madrid: PPC, 2007, pp.127-130.

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balhar com animais impuros, nem pode comer o que comem essesanimais impuros. A casa paterna, nesta situação, começa a receber con-tornos vivos e familiares.

Toca-nos profundamente a veneranda figura do ancião que vê ofilho quando ainda está longe, distante do vilarejo e invadido de com-paixão. A compaixão transformada em corrida de encontro. Esque-cendo a sua dignidade diante das outras famílias da aldeia, abandona acasa, o recinto familiar, corre ao encontro de braços abertos e combeijos. Não deixa que o filho permaneça prostrado a seus pés, mas obeija efusivamente esquecido do estado de impureza em que ele seencontra. O amor não espera, corre, abre os braços, cobre de beijosmais que o amado a sua amada, a amada ao seu amado. São beijosconforme o Evangelho de pura compaixão, sem paixão. Uma mãegerando novamente o filho.

Ao voltamos nossos olhos para a cena, vemos o filho distendendoa sua vida diante do pai; não humilhado, mas humilde. A transparên-cia da veste do filho na pintura de Rembrandt deixa ver a alma desejo-sa do coração paterno.10 Não ouve do coração paterno nenhuma afir-mação: finalmente você reconheceu, finalmente você voltou! Não!Nada! Nenhuma palavra de interrogação, nenhum porque, nenhumasatisfação, nenhuma cobrança, nenhum sinal de desgosto, nenhumarepreensão, nenhuma expressão de desapontamento, nenhuma inter-jeição, nem mesmo qualquer coisa que pudesse insinuar: por que fi-zeste isso? Não! Nada! Também não: como é bom vê-lo! Nada! Nemmesmo diz: eu aceito a você, que bom que você voltou, eu te perdôo.Nenhuma palavra ao filho. É que o amor não interroga, não sabe dopor que, não tira satisfação, não cobra, não repreende, não expressa

10. BOEMANA, D. W. von, Rembrandt Gemälde. Gesamtwerk. trad. Hella Arndt,Wiesbaden: Emil Vollmer Verlag, 1968. Rembrandt von Rijn nasceu aos 15 de julho1606 em Leiden, Holanda e morreu em 1669. A obra do Filho pródigo é a sua última.

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desapontamento. O amor é gratuidade, é jovialidade, não tem tempopara a interrogação.

E mesmo, porque todas as palavras seriam superficiais demais paradizer, expressar proclamar, cantar o transbordamento do coração dovelho pai. O coração cheio de misericórdia, o coração que era só mise-ricórdia. Ele, o velho ancião, nada diz ao filho. No amor, na jovialida-de, na gratuidade a presença, a proximidade é tudo, mesmo a palavrachega depois.

Os beijos e abraços maternos, nascidos de entranhas, são diante detodo o povoado sinais de acolhimento, perdão, e, ao mesmo, tempoproteção e defesa.

E nós que ainda vemos como o pai corre, como abraça e comocobre o filho de beijos, ouvimos o silêncio próprio de Deus, ondetudo é somente acolhimento, receptividade, vida pulsando, puro en-contro, amor, gratuidade. A palavra vem depois do silêncio, do encon-tro, depois do face-a-face, depois de olhos nos olhos. Só então, depoisde tudo acolhido, recolhido, tudo abraçado, tudo beijado, depois detudo ser somente amor-liberdade, gratuidade, rompe-se o silêncio:

Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocaium anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilhogordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meufilho estava morto e tornou a viver: estava perdido e foi encon-trado.

A melhor túnica, anel no dedo, sandálias nos pés, novilho gordo...sim, tudo para restaurar a dignidade de filho dentro da família. A melhortúnica da casa, provavelmente a do próprio pai;11 o anel no dedo, poislhe confere mais uma vez a dignidade de filho; e o calçado nos pés,porque é novamente um homem livre e não escravo. Mas também énecessário refazer a dignidade do filho, agora na família e na aldeia.

11. PAGOLA, J. A. Op. cit. p. 130.

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Organiza a festa, um grande banquete para todo o povoado: matarum novilho. Matar um novilho entre a família camponesa da Galiléiaera raro e muito dispendioso. Mas a dignidade do filho, a expressãoilimitada, infinita de contentamento, tudo vale. Tudo é celebração,das mais nobres, das mais finas, das mais delicadas, a celebração dagratuidade. Chegou o filho amado! Só o amor é capaz de fazer reentraro filho na casa, na habitação da jovialidade. E na festa mais uma vez sesente como o pai sai de si, dá de si, se doa, se presenteia, não se resguar-da, não se cuida, mas é todo cuidado, todo desvelamento, todo recep-ção, todo intimidade, todo dado, doado. É só gratuidade! Tudo por-que este meu filho estava morto e tornou a viver: Estava perdido e foiencontrado.

O texto da Escritura continua e encontra o filho mais velho forade casa. O filho mais velho estava no campo. Ao voltar ...encolerizou-se enão quis entrar.

Infelizmente faltava o filho mais velho. Chegou à casa ao entardecer,depois de um dia cumprindo fielmente seu trabalho. Ao ouvir a mú-sica e as danças e saber da volta do irmão, fica desconcertado. A voltado irmão não lhe traz alegria como a seu pai, mas ressentimento. Ficade fora, não participa da festa. Nunca tinha saído de casa como oirmão, mas agora se sente um estranho diante da família e dos vizinhosreunidos para acolher o irmão. Não havia se perdido num país distan-te, mas se encontra perdido em seu próprio ressentimento.

Incomodado com a medida sem limites do pai em relação ao ir-mão, rejeita o convívio amoroso e livre. Rejeita o amor próprio do paie começa a reivindicar. Mora com o pai, mas não tem a magnanimida-de do pai, o coração misericordioso do pai. Os anos todos passados naintimidade do pai não o fizeram como o pai na pulsação, na vibraçãode um amor-livre, na gratuidade, na cordialidade; gratuidade que en-che e pervade todas as coisas e todos os momentos de encontro edesencontro.

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E lá vai o pai mais uma vez! Mais uma vez deixa a casa, mais umavez corre ao encontro, e convida o filho para que entre na casa. Nãogrita, não dá ordens. Como uma mãe, mais uma vez abraça e cobre debeijos, suplicando para que entre e participe da festa. Abraça e beija aestreiteza, a não liberdade do filho mais velho.

O filho não se deixou tomar pela medida da desmedida dagratuidade do pai:

Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qual-quer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu feste-jar com meus amigos. Quando chegou este teu filho, que es-banjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho ce-vado.

Uma explosão de rancor, dureza, fechamento, mesquinhez, apesarde trabalhar e participar cotidianamente da vida do pai. Acabou nãovivendo em família, na familiaridade, não convive! Passou a vida cum-prindo ordens do pai como um escravo, mas não soube desfrutar deseu amor como filho. A sua vida de trabalho sacrificado endureceu seucoração. Humilha o pai e denigre o irmão, denunciando a sua vidalibertina com prostitutas. Apesar de tão certinho em tudo fazer, careceda alma paterna. Não entende a cordialidade do pai em relação aoirmão morto. Ele não sabe, como o pai, acolher e perdoar, isto é, nãoama como ama o pai, na gratuidade, na jovialidade.

E o amor-liberdade o cobre, então, de abraços e beijos, lhe falacom uma ternura especial. O chama de teknon, que quer dizer “meuquerido filho”, ou “meu menino”. Com o coração de pai ele vê tudodiferente, pois o filho que chegou de um país distante não é um depra-vado, um libertino, mas sim o filho morto que tornou à vida; não é odesgarrado, não é o esbanjador, não é o prostituído, ele é filho! Porisso, diz: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Masera preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto etornou a viver; estava perdido e foi encontrado. Nada é para mim, tudo

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é para ti. Nada me pertence, tudo é teu. Eu nada tenho, tudo é teu.Tomei do que é teu porque aquele que é teu, o teu irmão, o morto,voltou a viver; aquele que é teu, o teu irmão, aquele que se perdera foiredescoberto. Nas palavras do pai ecoa um silêncio que leva ao espan-to, reverência e admiração! Perdemos as palavras, e vemos o amor dasentranhas, a gratuidade, a jovialidade!

A parábola não fala dos dois filhos, nos fala do Pai dos dois filhos.Não fala das desventuras e fechamento dos dois filhos, mas da magna-nimidade, da generosidade, da nobreza, da ternura, singeleza, cordiali-dade, da jovialidade, gratuidade, do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo.Com outras cores e gestos, o Deus amor-liberdade, sai sempre da pró-pria casa, ora recebendo de braços abertos, estreitando ao peito e co-brindo de beijos o mais novo; ora saindo da casa para encontrar o maisvelho, ensimesmado, e dizer: tudo te pertence; ora reconhecendo ofilho quando ainda está longe, sentindo compaixão, correndo e estrei-tando-o junto a si, como se desejasse mais uma vez colocá-lo dentrode seu próprio seio e gerá-lo qual mãe; ora saindo da casa para acordara quem está adormecido de sua pertença como filho.

Por mais que amássemos nossos filhos, nós não conseguiríamosser essa explosão de afeto, cuidado, ternura; não seríamos essa arreben-tação, essa explosão tão delicada e cuidada. Não seríamos jamais esseamor-liberdade, essa jovialidade, gratuidade! Só Deus pode ser assim.Talvez Lucas tenha dado um pouco de vida, cor, gestos, palavras, paraentrevemos ali o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo: a gratuidade, ajovialidade que nos sustenta, revigora e deixa-ser. Deixa ser na gratuidadede ser!

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A SUPERAÇÃO NO PRIMADO DAVONTADE

Denise Quintão

A afirmação de que depois de Aristóteles toda história é metafísicaimpõe uma reconsideração. O que se dá a ser reconsiderado, antes detudo, é justamente o sentido de metafísica, pois não se pode entenderesta atitude histórica, apenas a partir da perspectiva interna, que sus-tenta todas as possibilidades de realização, oferecidas pela sua própriadinâmica de constituição: isto é, não se pode entender metafísica ape-nas meta-fisicamente. Toda dificuldade reside no fato de que aambivalente compreensão metafísica (meta-física) reduziu, ao longode seu percurso, a ambigüidade infinitamente plural do real numa ti-rania monovalente, onde tudo só pode ser na medida em quecorresponde à lógica de um princípio fundado numa razão subjetiva,privilegiando, desta forma, apenas, a eficiência e a operatividade dasrealizações. Na procura avassaladora de ser cada vez mais lógica, ametafísica deixou para trás a grandeza inicial, na qual se desvelou, con-solidando a sua atualização enquanto esquecimento da origem.

Nesse sentido, o espírito religioso recolheu-se e tornou-se obscuroao olhar do homem contemporâneo. Pelo esquecimento da unidadeoriginária1, a metafísica distingue e discrimina, entre si, o pensamentocristão, judeu e mulçumano. Posta dessa forma, a questão torna-sepuramente lógica e, assim, tem sido enfrentada na atualidade contem-

1.Toda unidade é e realiza a tensão entre identidade e diferença, dinâmica dedesvelamento e velamento, que Heidegger chama de esquecimento originário.

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porânea. A unidade religiosa da Idade Média, vista pelo modo de serda tecno-ciência, fragmenta-se em abstrações, isoladas do todo. Essaatitude decorre de um longo percurso histórico de despotencializaçãodo espírito2 e engendra, nos homens de hoje em dia, uma onda deceticismo, ateísmo e fundamentalismo. Só há fé no e pelo todo. Ne-nhum homem pode sentir fé pelas partes. Isto é crença, é desejo, mui-tas vezes ambição, outras ingenuidade, mas nunca fé. Raimundo Luloviajou três meses, a pé, da Espanha para Paris a fim de assistir as aulasde Duns Escoto. Lá chegando entrou maltrapilho na sala. No fim daaula, Raimundo Lulo permaneceu sentado, cansado da viagem. DunsEscoto perguntou-lhe de maneira provocadora: E Deus, que parte dagramática é? Raimundo respondeu: Deus não é parte, Deus é todo3.

Se aceitamos a unidade primordial em que as diferentes reali-zações medievais emergem, pode a identidade do mundo medievalser compreendida como cristã, de maneira que o modo de ser ju-daico e mulçumano possam ser considerados expressões daontologia humana, originariamente cristã? Seria esta interpreta-ção um facismo? Bom, se entendemos o sentido da palavra “cristão”positivamente, isto é, como um conceito regulador e definidor doreal, então, para esta estrita percepção metafísica, a noção de unidadepassa a ser contraditória e impossível, a Idade Média torna-se umacolcha de remendos escolásticos, e a escolha de um desses remendos,para designar esta época histórica, se mostra como um comportamen-to arbitrário e interessado, próprio do esquecimento histórico de um

2. Constitui o modo de ser finito do espírito, a errância. A condição criativa do homemmanifesta-se numa tensão constitutiva com o seu oposto. A dificuldade, cada vez maispredominante, da realização criativa é o que muitos filósofos contemporâneos chamamde niquilismo.

3. Se a resposta de Raimundo Lulo substancializasse a palavra todo, inserindo um artigodefinido antes, “o todo”, então, o sentido de todo não remeteria mais para a misteriosadinâmica criadora.

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tipo de desenvolvimento da lógica metafísica4. Isto não significa que omodo de ser cristão se dê na exclusão de qualquer arbitrariedade einteresse; ao contrário, ser cristão se constitui no embate contínuo comnão ser cristão, de modo que ser cristão supera o ser cristão e o não sercristão, enquanto posições tomadas. Ser cristão, na perspectiva his-tórica da superação constitutiva do ser, pensada no primado davontade, almeja a identidade, a infinitude. O enfrentamento contí-nuo das dificuldades, dos limites, das certezas e das dúvidas faz apare-cer, no cristão, o vigor da dignidade humana, que se expande, trazendoà lembrança a unidade em que o ser foi concebido. Na unidade, teoriae prática não são mais duas distinções.

Todo problema é que a orientação abstrata da lógica, que, predo-minantemente, sustenta, hoje, o nível da formalização do pensamentoveicula através de uma aparência liberal, na qual o senso comum, afuncionalidade, a atualidade contemporânea das realizações se desta-cam como marcas de uma intelectualidade flexível e condescendente.A lógica da metafísica, na contemporaneidade, entende as diversas re-alizações da religiosidade, na Idade Média, como expressões culturais eétnicas de uma época histórica, admitindo, em certas circunstâncias, ainfluência co-recíproca entre elas. A liberalidade desta mentalidade tendea relacionar analogicamente as diferenças, excluindo das relações, quepropõe, a radicalidade de toda e qualquer identidade, ou seja, Criadornão é criatura, teologia não é filosofia, razão não é fé, nem ente éessência, nem espírito é corpo, ou finito é infinito, substituindo iden-tidade por igualdade. Mas idêntico não é o mesmo que igual. Seridêntico ao outro é ser, na diferença de si mesmo, o mesmo que ooutro é, de maneira que ser idêntico não exclui a diferença do outro. Aidentidade originária do real é intuída em quase todas as épocas e civi-lizações, não só ocidentais, como orientais. A dinâmica relacional da

4. A lógica da fenomeno-logia é um outro tipo de desenvolvimento da lógica dametafísica, enquanto superação.

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Trindade, a pericorese, fonte criadora para e da fé cristã, realiza-se nummovimento de identificação em que tudo é tudo, cada vez, na singula-ridade de cada um. O Pai é o Filho e o Espírito Santo, sem deixar deser Pai ao ser outro. O mesmo ocorre com todas as pessoas trinitárias,o Filho e o Espírito Santo. A dinâmica pericorética da Trindade refletea si mesma na constituição primordial de tudo que está sendo, isto é,mostra e oculta, nos perfis singulares5, o envio da identidade originá-ria. Sem a comunhão que irmana, originariamente, todos os seres, nãopode haver a irrepetibilidade de cada real e de cada realização. Umamargarida perdida à beira da estrada que atravessa a floresta é única,guarda e segreda, na sua extraordinária singularidade, a identidade e adiferença de todos os seres. Nela, encontramos a face dos seres amadose o perdão dos inimigos. Pequena e frágil, é o sinal de uma vastidãoincompreensível. No acolhimento da identidade originária, as relaçõesentre os diferentes não se constroem por uma relativa proximidade,que, por meio de comparações, seleciona, apenas, as diferenças ade-quadas a uma igualdade ideológica entre as partes. A igualdade, deque fala a lógica da ideo-logia6, não desce fundo até a raizinalcançável do real, mas se compõe pela articulação abstrata departes, artificialmente, extraídas do ser. A proximidade na e da iden-tidade é plena, é cheia de infinitas e diversas possibilidades de ser, quese desvelam e se ocultam7 na unidade totalizante do real. Hoje, a técnica,na sua compulsão simplificadora aboliu uma das pontas dessa dicotomia

5. Singular é uma palavra da experiência comunitária, que traduz uma preocupação dedizer a concentração do todo em cada realização. A experiência comunitária permitecompreender a mística do primado da vontade.

6. A palavra ideologia está sendo usada no seu sentido amplo, abrangente, isto é,designa a perspectiva parcial de toda decisão lógica que exclui a profundidade fenome-nal do todo. Pode haver um outro tipo de lógica que não seja interessada ou parcial? Éo que pretende a lógica da fenomeno-logia.

7. O desvelamento e o ocultamento não são sucessivos, nem alternativos, mas simulta-neamente constitutivos de uma mesma dinâmica.

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metafísica, de tal maneira que só há criatura (sem Criador), razão (semfé), filosofia (sem teologia), ente (sem essência), corpo (sem alma) efinitude (sem infinitude). A infinitude admitida pela ciência, não re-mete para o mistério da unidade, mas se define contrapondo-se aofinito, por uma equação, e, desta forma, chega, ao coração dos ho-mens, desprovida de qualquer apelo do mistério, na medida em que apretensa exatidão de uma fórmula procura sempre desfazer a tensãoambígua e ontologicamente constitutiva do real. A apologia do corpo,que prega a mentalidade contemporânea, seja a da ciência, seja a dafilosofia, sutilmente despreza o espírito, reduzindo tudo a uma vidasem o mistério da tensão unificadora entre transcendência e imanência.Assim, na ordem da lógica metafísica, filosofia cristã não é sinônimode filosofia medieval, uma vez que admitir isto seria desconhecer afilosofia judaica ou árabe.

A maioria dos manuais de filosofia medieval contemporâneos, es-critos fora da preocupação ontologicamente comunitária de encontrara identidade nas diferenças, assume a postura lógico-científica de umaindividualidade, que exclui a alteridade, na constituição íntima e pro-funda de cada real8, e vê as diversas doutrinas, que nesta época seconstituíram, marcadas pela autonomia de um perfil individual. Hoje,fala-se muito em alteridade9. No entanto, a alteridade contemporâneaé ideológica e toma o outro como um estranho, uma outra individu-alidade de um outro indivíduo que constitui a individualidade de um,também, outro indivíduo. Este modo de pensar, apesar das vestesmodernas, vive, ainda, às expensas da rígida estrutura do pensamento

8. O texto refere-se à profundidade ontológica e pré-ontológica do todo que se realizae se manifesta na unidade ôntica. Não há diferença real entre ôntico, ontológico e pré-ontológico. A distinção é feita tendo em vista o entendimento da lógica da metafísica,do modo como foi compreendida pela neo-escolástica.

9. Nessa perspectiva lógica, a alteridade aparece, hoje, como constitutiva dos conteúdosque articulam o real. Na mensagem cristã, a alteridade, o próximo, remete para omistério abissal da fraternidade, da comunhão originária entre todos os seres.

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neo-escolástico, que já não apresenta a riqueza e a liberdade das refle-xões escolásticas. Isto é, pelo entendimento lógico, pode-se entenderAverróes nele mesmo e por ele mesmo, sem encontrar, no pensamentodo filósofo árabe, a presença comum10, e ontologicamente constitutiva,de qualquer outra possível compreensão do real. Entendido dessa for-ma particularizada, o conhecimento passa a ser interessado e dirigido aum só aspecto da diferença. Diferença, para a lógica da metafísica, éentendida como parte e não como dinâmica do todo, que integra,em unidade, identidade e diferença. Vista dessa maneira, a diferençade Averróes é uma parte individualizada e interessada da Idade Média,cuja compreensão não exige, necessariamente, o estudo de outros pen-sadores da Idade Média cristã, da Antigüidade, ou mesmo dacontemporaneidade. Levada a finco, esta atitude pode alcançar umaidiotia destrutiva do vigor e da vitalidade das realizações. Então, parafazer frente à intensificação gradativa da estreiteza desse modo de co-nhecer, a modernidade contemporânea imaginou aberta, para diversosconteúdos individuais e independentes entre si, a estrutura de qual-quer expressão do pensamento radical, seja a arte, seja a música, seja afilosofia ou a poesia. Foi a experiência que a lógica metafísica fez daabertura da obra, como resistência11 ao processo cognitivo de frag-mentação abstrata do real em conteúdos específicos, entendendo, noentanto, a força originária desta abertura, apenas, no nível ôntico, eraramente ontológico, das realizações. Exemplo desta busca de liberta-ção é a teoria da obra aberta de Umberto Eco e as diversas concepçõesdo estruturalismo, que viam a obra de arte como uma estrutura aber-ta, capaz de aceitar uma diversidade de jogos simbólicos, desde quelogicamente compostos. Passou a ser quase um crime intelectual não

10. Comum, aqui, nesse contexto, refere-se à dinâmica originária da comunhão entreos seres.

11. A resistência é constitutiva de todo processo de realização, seja a resistência à conser-vação, seja a resistência à superação.

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aceitar certos entendimentos de uma obra, em respeito à celebradaabertura. Esta atitude reduziu gravemente o empenho de penetra-ção no mistério de toda obra e trouxe uma promiscuidade de pen-samento inibidora do movimento de superação. Qualquer aborda-gem passou a ser igualmente aceitável. Esta é uma visão ideológica esuperficial da liberdade das interpretações e da profundidade constitutivadas realizações. Mas a abertura da obra não significa permissividadehermenêutica. A abertura da obra se dá antes de qualquer conteúdoou mesmo de qualquer ontologia e, por isso, oferece, cada vez, umhorizonte de compreensão do todo. No retraimento e nas atualiza-ções do pensamento de Averróes estão, originariamente dispos-tos, os envios do pensamento radical, expressos nas elaboraçõesde São Tomás, Avicenas, Platão, Aristóteles e Descartes, Kant,Husserl, Heidegger e de todo pensamento que está por vir, já dado,desde sempre, na dinâmica de realização do real.

O movimento que integra, logicamente, as diferenças do real, con-servando as partes em seu enfoque ab-strato, exige a autonomia deuma realização diante de outra autonomia, propiciando relações quese articulam por parataxe ou por sintaxe. Na perspectiva desta ordemlógico-sintática, passa a ser possível, reconhecer a influência de umarealização sobre outra (aliás, este é o fundamento dainterdisciplinariedade). A síntese é sempre, por mais profunda que sejaa expectativa que a embala, uma ordem que articula realizações indivi-duais. A doutrina de São Tomás abre-se e acolhe a doutrina de Averróes,seletiva e adequadamente, de tal maneira que Averróes e São Tomás semostram e permanecem como diferentes, enquanto a identidade serecolhe na e da analogia para a identidade imemorial. A análise dostextos neo-escolásticos sobre a Idade Média não admite encontrar avigência da identidade entre a doutrina de Averróes e a de São Tomás.Só encontram, nas obras de São Tomas, São Tomás, mesmo quandoadmitem a influência de Averróes em São Tomás. Enquanto a autono-

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mia da lógica fecha a individualidade de cada realização, o sentido pri-mordial e próprio de individualidade é aberto, é comunitário, poisnão há propriedade fora da comunhão de ser todos em cada um. Apropriedade é, portanto, um desprendimento, e impróprio é oimpulso de retenção e conservação, constitutivo de toda realiza-ção. Ora, constitui o ser tanto o próprio, quanto o impróprio, de talmaneira que não há desprendimento sem retenção, nem retenção semdesprendimento. Mas próprio e impróprio são, ainda, faces da identi-dade. A profundidade do real supera, na simultaneidade de próprio eimpróprio, as diferenças e remete para o mistério insondável, de ondebrotam inesperadas possibilidades de compreensão. Mas, até mesmopara a lógica, seria ilógico entender o real como um “amontoado” derealizações individuais; por isso a ordem que, entre elas, a lógica esta-belece é interativa e reflete os princípios constitutivos e organizacionaisde um fundamento que estrutura e sustenta o real, mas não é o real.Embora, a interatividade da lógica, no nível da elaboração do pensa-mento, não leve em conta nenhum desprendimento, nenhuma supe-ração e permaneça interessada na conservação da individualidade decada real, ela vive da tensão que integra, na raiz do real, superação econservação. A superação que propõe a interatividade da lógica temem vista a organização ôntica do real. Realiza-se de forma individuale sucessiva e não singular e simultânea.

No entanto, com-apreender (esta dinâmica só se mostra na e pelaexperiência comunitária, esquecida e lembrada no prefixo com-\) omovimento medieval como um só desdobramento do advento, aco-lhendo sua realização histórica como experiência originariamente reli-giosa da comunidade de uma época, cujo vigor primordial remete paraalém e aquém das decisões e das escolhas de um seguimento, é o que seoferece como possibilidade de superação dos limites, constitutivos detoda realização lógica da metafísica. E, pode haver uma realização dametafísica que não seja lógica? A metafísica para ser metafísica deixa

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aparecer, na diferença de si mesma, a não metafísica, que se oferececomo superação da própria metafísica em que surge. A não metafísicado pensamento pré-socrático encontrava sua força de realização nametafísica que, retraída, guardava e preparava o acontecer da história.A metafísica surge no embate de ser e não ser metafísica. A criatividadedo real não está somente naquilo que aparece como real, mas, primor-dialmente, no embate gerador do real. Na metafísica medieval, aabertura da superação se desvela e atualiza como mística.

O pensamento medieval, mesmo aquele que é elaborado a partirda lógica é, predominantemente, místico. Para o modo de ser medie-val, as diferenças são filhas de um mesmo mistério. Trata-se, portanto,de um modo de ser que se entrega ao fluxo contínuo de superação edesprendimento do pensamento de todas as épocas. Sempre entende-mos que os limites metafísicos não são transparentes para os medievaispor carecerem eles de “evolução”, profundidade ou avanço no pensar.Não é verdade, pois os medievais são animados (anima, alma) pelo elãdo mistério, mais do que pela metafísica que lhes serve de solo. Guar-dam como desejo íntimo a imensidão livre e abissal, na qual se encon-tram inteiramente mergulhados, ou como diz Santo Agostinho, pen-sador místico que deu as bases da doutrina cristã, os homens não ces-sam nunca de querer a liberdade infinita, onde as possibilidades serecolhem em silêncio e se projetam como real. O grande salto que ocontemporâneo herdou do medieval está, justamente, no desafio decompreender que não se pode querer a liberdade infinita como quemquer ter alguma coisa que ainda não tem. A liberdade infinita não sedeixa apreender por nenhum desejo de domínio, posto pela finitudedo querer humano, nem se deixa determinar por uma subjetividade,quer individual, quer coletiva12. A liberdade infinita instala-se em cada

12. O sentido de fundo que ampara a palavra “coletivo” provém de um processo deindividualização.

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homem como a vontade íntima de todo homem, originária eontologicamente dada. A vontade que torna o homem humano não éresultado de uma decisão subjetiva, mas advém do mistério. É que nohumano do homem a semelhança de Deus se realiza. Por isso, o empe-nho do homem, em tornar-se o que lhe foi dado ser, busca escutar,atento, aos apelos dessa estranha intimidade. Só pelo desprendimento,pela paixão da entrega, pela obediência, o homem pode se libertar dadominação, que o seu querer exerce sobre si. Os limites no lidar coma infinitude da vontade criadora são postos pelos múltiplos modoscomo a finitude do criado se instala, sempre inesperadamente, em cadahomem. A vontade criadora faz ressoar no homem o apelo dainfinitude e doa-se como farol, que ilumina o percurso de supera-ção e conservação das diferenças e dos limites existenciais e histó-ricos. Por mais firme que seja uma decisão há sempre de se esperarpelo inesperado e crer no mistério, pois só nesta prontidão o empenhodo homem pode perseverar. O inesperado chega para todo homem, oque espera e o que não espera. Mas somente no desprendimento dospré-conceitos ou das decisões pré-estabelecidas o homem se põe à es-pera das transformações. Pobre de ter e haveres espirituais, a vontadede Deus pode nele ecoar.

A dificuldade em reconhecer esta aliança não torna o homem me-nos homem, mas mostra como intempestiva a transformação. A cadahomem é dado um tempo de ouvir e compreender. Compreendendo,o homem se transforma. Ora, o contemporâneo é cheio de proprieda-des e posses, cheio de desejos, como pode querer não querer? Comopode não querer, nem o querer, nem o não querer? Como pode sim-plesmente nem querer, nem não querer? Como pode ser tomado pelosilêncio do vazio se o alarido das coisas, que imagina ter, se sobrepõeao ser? As rápidas mudanças que presenciamos na contemporaneidadesão oriundas da técnica e não significam uma transformação espiritual,que torna o homem capaz de se abrir à virada do pensamento. A von-

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tade humana, finita, funda-se e identifica-se, em Santo Agostinho,como posse da liberdade infinita que Deus é. Como pode o homemcontemporâneo aceitar ser ele posse da liberdade? É que ser posse daliberdade não significa estar sob o domínio de alguma coisa. A liberda-de não é algo ou alguma coisa. Ser posse da liberdade é um movimen-to originário, que deixa aparecer no perfil humano, a dinâmica comu-nitária da Criação que tudo irmana. Este é o sentido de posse na famo-sa definição de Boécio sobre a eternidade: A posse simultânea de todasas coisas na vida infinita de Deus. A questão se coloca de forma pre-mente quando procuramos pensar radicalmente os afazeres do cotidi-ano: na vida do dia-a-dia de todos nós, filhos da técnica, como pode-mos fazer a estranha experiência de ser a posse de Deus, uma pos-se sobre a qual Deus não exerce um domínio determinador, massimplesmente acolhe com um amor gerador? Para a mentalidadeda técnica, se ao menos posse de Deus significasse poder, no sen-tido subjetivo, das decisões de conteúdo, Deus serviria para algu-ma coisa. Talvez para melhorar o clima, para resolver questõesinternacionais ou encontrar a cura de certas doenças. Mas, para afuncionalidade moderno-contemporânea, Deus não serve paranada. Que sentido, então, o homem contemporâneo encontra emgerar filhos, criar animais, cultivar o solo, possuir propriedades? O queé ser amigo ou viver um amor? Será que tudo se resume a ter? E ter ésomente colocar alguma coisa sob domínio? Quando o ter prevalece,o homem se desfaz facilmente da responsabilidade de ser.

Ter é ser, reúne no imediato o envio distante e religioso de ser. Ter,enquanto sentido primordial de ser, é celebração do mistério que, con-tinuamente, se doa nos seres, permanecendo como vazio gerador. Ter,no sentido subjetivo de exercer um domínio, esconde-se, no mundoda técnica, como ilusão, e se apresenta como verdade irredutível, daqual não se pode duvidar. Ter uma propriedade é ter o registro dapropriedade e isto vale erga omnis. Ora, neste raciocínio não cabe ne-

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nhuma dúvida. Mas a verdade, em que tudo vem a ser, não é determi-nante, nem determinada, não é nada, porque é tudo. O desprendi-mento revela-se ao empenho de ser como a forma radical de ter, lem-brança constante do amor que simplesmente amou, antes da diferençaentre ser e ter. O esquecimento do amor, que embala o ser, encontrano ter a autonomia de um poder subjetivo, instância última e decisivasobre qualquer coisa. O ter da razão, como fundamento do ser, des-preza o ser que da liberdade emana em Graça e torna tudo que tocauma produção, sem a grandeza do mistério. A morte da natureza, amorte dos homens pelos homens, a decadência do mundo anunciam aera do pecado contra o espírito, contra a vontade que consagra o ho-mem à vida eterna da liberdade. Só na liberdade do desprendimentohá encontro gerador entre os seres, a fraternidade entre diferentes serevela, a harmonia entre os homens prevalece e a natureza resplandece:o animal se oferece ao trabalho humano, ao afeto dos homens e seentrega como alimento pela força amorosa da transformação. Ser pos-se de Deus é ser amor de Deus. Aos seres não espirituais não é dadorecusar ser posse de Deus para ser posse de Deus. Somente o homem,para ser amor de Deus, tem de ser capaz de recusar o que desde semprejá era: amor de Deus. Esta é a natureza espiritual da condição humana,uma natureza que se assemelha a e reflete, no seu modo próprio de ser,a tensão entre ser e não ser, geradora do real.

Mas que significado encontramos em Deus? Deus é sentido pri-mordial. Nele são concebidos todos os significados, de todas as épo-cas, de cada civilização, inclusive da civilização da técnica, pois Deustambém está presente na ação que tudo entorpece e desfigura. Qual-quer ação, para ser ação, encontra sua força em Deus, mesmo a açãoque mata. Sem Deus, sem a vida do mistério, não há mundo, não háhomem, nem bom nem mau. É uma ingenuidade achar que teoriascientíficas podem explicar o aparecimento da vida, aqui, tomada emseu sentido amplo. No e do mistério que habita a ciência e a técnica

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irrompe, de forma incompreensível, o desejo avassalador de vida e demorte que alimenta os sonhos humanos. No mistério da técnica, tam-bém, repousa a esperança.

Toda ação transcende aquilo que faz. A ação funcional da técnica émais do que técnica e do que funcionalidade. A transcendência da ação,de qualquer ação, fala sempre do mistério, do não sabido. Por isso,nenhum conceito satisfaz o empenho do homem em atender ao apeloda vontade em seu coração. Somente, a humildade do perdão e o aban-dono da caridade são capazes de lidar com o mistério, que supera qual-quer decisão ou posição, e traz paz ao coração dos homens. Nietzsche,na sua famosa oração “Ao Deus Desconhecido”, clama por Deus, oparente incompreensível. Conhecer Deus é servir ao desconhecido.Nesta doce sabedoria de um mistério em que tudo se gera e deonde tudo provém está a radicalidade de ser homem.

Os medievais são antes de tudo místicos, servos do mistério enão conquistadores do mistério. Qualquer que fosse a posição dou-trinária, eram arrebatados por uma paixão que os lançava, continua econcomitantemente, para dentro e para fora de toda e qualquer com-preensão do real. Faziam a experiência da superação da metafísica emtoda metafísica elaborada. A verdade jamais poderia ser evidente oumesmo uma só, mas sempre ambígua, sempre generosamente una eplural.

A ambigüidade para a lógica metafísica não é real, mas abstrata.Pensando assim, a lógica da modernidade acaba marcando as realiza-ções da mística como primitivas e secundárias frente à metafísica e asreflexões da filosofia como subalternas à ideologia, na medida em quenão reconhece a recíproca e una constituição que há entre mística emetafísica, filosofia e teologia. É justamente a rigidez discriminadora eexcludente desta interpretação lógico-metafísica que levou acontemporaneidade ao questionamento explícito da superação da

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metafísica. A questão da superação da metafísica é uma lembrança querisca a noite escura da técnica. O questionamento que a superação,constitutiva de qualquer real, provoca na metafísica surgiu da gravida-de do esquecimento que a própria metafísica, ao longo dos séculos,vem consolidando em relação à unidade originária. Os medievais vivi-am, de diversas formas, a unidade da mística e da metafísica, da filoso-fia e da teologia, do espírito e do corpo, do ente e da essência, namedida em que o envio originário da vida se mostra e se oculta naexperiência amorosa do divino. Divino aqui não diz um processo deentificação, mas refere-se a uma dinâmica de realização do real,onde todo ordinário se mostra como extraordinário.

A radicalidade da pregação de Cristo se anuncia como um im-pulso de superação, apontando, sempre, para a fraternidade pri-mordial. Seja metafísico, seja místico, o cristão tem como luz umapaixão: a caridade. A paixão da caridade revela-se como via de supera-ção das dificuldades, quer pessoais, quer históricas. Comunitária, apaixão da caridade está concentrada no mandamento que Cristo nosdeixou: “amar o próximo como a si mesmo”. Não se pode amar opróximo, sem amar a Deus, nem amar a Deus, sem amar o próximo.A lembrança desta identidade originária deve abraçar, nos mais brevesdos pensamentos, nos mais frugais dos gestos, a vida do cristão. Sercaridoso está além da factualidade de fazer o bem, seja para o bem, sejapelo bem, seja conforme o bem. Estas são apenas expressões do amorque Cristo é. Ser caridoso é deixar-se colher pela vontade de Deus quehabita o fundo da alma de cada homem. caridade é, antes de tudo, adisposição infinitamente generosa de aceitar as diferenças, obedientes àpresença íntima e desconhecida da vontade de Deus em nós. Odespojamento das presunções e do orgulho, que escravizam a almahumana, permite ao homem viver na finitude de sua humanidadea infinitude da liberdade de Deus. Santo Agostinho alerta que a pre-sunção e o orgulho de ser e ter, junto com a concupiscência que pene-

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tra o vazio deixado pelas ambições de ter e ser, são as tentações quelevam o espírito a uma mortal decadência. Para o cristão, não háamor sem liberdade, não há liberdade sem entrega radical à voz davontade criadora. Tomados por este sentido místico de ser, osescolásticos disputavam questões, sempre permeadas pela compre-ensão amorosa de pertencerem, todos os homens, a uma só filiação.Os medievais eram homens, o que significa que sofriam das mes-mas tentações que todos os homens, de todas as épocas. Quandose fala do espírito de uma época, no entanto, refere-se à mentali-dade, à atitude, que conduz, historicamente, as realizações, as açõese as decisões humanas, conferindo, cada vez, um perfil singular àcomunidade dos homens.

A racionalidade moderna separa a influência filosófica dos árabesda fé teológica dos cristãos, a despeito do maior pensador do movi-mento cristão, Santo Agostinho, ter deixado como ensinamento oprincípio que remete para o amor de Deus a unidade entre fé e intelec-to: fides quaerens intellectum. Essa assertiva de Santo Agostinho nãoapresenta a fé como primordial ao intelecto. Na originariedade dacondição humana, fé é intelecto, é pensamento. Sem fé, o pensa-mento não se sustenta. A fé de Deus13 realiza-se como intelecto. Aquestão que se coloca no primado da vontade, antecede à relação deidentidade nesta afirmação pensada: o que é fé de Deus? É vontadecriadora, elã amoroso que, em si, nada detém, mas que doa, de si, todapossibilidade de ser. Pode-se imaginar um ato de amor que não seja dedoação? A vontade de Deus é amor, um amor, ao mesmo tempo,compreensível e incompreensível para a inteligência do homem. In-compreensível porque a finitude humana nunca pode alcançar a pro-fundidade misteriosa desse amor. Diante do milagre da vida, não há

13. O genitivo, aqui, tem mão dupla, tanto diz a fé que Deus é, como a fé que o homemrecebe por graça de Deus.

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explicação que satisfaça as ambições de poder e a ânsia de conhecer.Compreensível na medida em que todo homem é tocado pela vida doamor de Deus e lançado para fora de si mesmo em atendimento aoapelo primordial da Sua vontade, que nele habita. Tudo que é e estásendo se dá e se busca na ordem intelectível da vontade de Deus, naharmonia do amor. O intelecto de Deus supera14 o inteligível do espí-rito humano e se retrai como mistério. A superação não nega o inteli-gível, ao contrário, o movimento de superação inclui aquilo que supe-ra. Mas, a inteligência do homem, mesmo com todo avanço da técni-ca, não pode explicar a plenitude intelectível de Deus, seja pelo conhe-cimento, seja pelos princípios morais, pois a ordem de Deus não podeser traduzida em conteúdos de qualquer natureza. A ordem de Deus épuro sentido, abertura que se instaura, cada vez, numa disposiçãosingular, em que o ser aparece na tensão ambígua e constitutiva deseu envio originário. No sentido, há uma remissão cordial ao misté-rio que sempre se retrai em tudo que de si gera. A cordialidade dá otom do canto que entoa o diálogo dos homens com Deus e cuida dapromessa de permanência e conservação da aliança. O homem cordialé aquele que se dá inteiro em cada ação, em cada pensamento, em cadaatenção, em nada se poupa. Cordialidade é totalidade, inteireza,radicalidade.

Não há vontade sem intelecto. O primado da vontade não indi-ca uma prevalência da vontade sobre intelecto. Deus é todo, a si-multaneidade da eternidade, identidade radical. Em Deus tudo é igual-mente Deus. Por força da infinitude, não há partes, diz RaimundoLulo. Algo só prevalece sobre outro na fragmentação da finitude. A

14. Não se pretende aqui exaurir o sentido inesgotável e misterioso da dinâmica desuperação. Mas devemos lembrar que superar não é negar ou rejeitar, mas transformara partir do que já é. Quando se diz que o Intelecto de Deus supera a inteligênciahumana é para se compreender que o Intelecto de Deus é e não é a inteligência dohomem.

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vontade de Deus é identidade radical, simultaneidade de todas ascoisas, sem a primazia de uma sobre a outra. O primado da vonta-de pensa a identidade originária entre Deus e o homem, na reali-zação singular de cada um. O que constitui a condição espiritual dohomem é a infinitude nele presente. Pela infinitude da vontadelivre, a dignidade do homem mostra sua natureza divina. A vonta-de livre de Deus no homem torna-o espírito semelhante ao Cria-dor. Enquanto espírito, o homem é sempre arrebatado pelo apeloda comunhão originária. A comunhão originária é dinâmica radi-calmente livre em que as diferenças não se realizam como limites,mas como possibilidade de ser.

Só o ser do espírito pode sofrer crises, ainda que a crise seja deniilismo. Na crise, a vontade de Deus ressurge em meio aos escom-bros trazendo a esperança e o ardor de um novo recomeço. Isto éliberdade. Adverte Cristo que o único pecado sem perdão seria aqueleque, se possível fosse, tentasse contra a própria condição espiritual dohomem, pois seria tentar contra Deus. Se o homem pudesse deixar deser homem, estaria violando a semelhança com Deus, por Deus con-cedida. O homem pecaria diretamente contra a própria natureza livrede Deus. A vontade de Deus espelha-se na criação. Deus se doa, livre-mente, em tudo que cria. Deus é a criatura, dirá Eckhart algumasdécadas mais tarde que Duns Escoto. O primado da vontade lembrao caminho da unidade, em que os homens reencontram, sempre denovo, a força e o vigor de ser no todo.

Duns Escoto apresenta uma concepção do homem fundada nosentido místico do primado da vontade. A vontade é o que de maisradical há no homem, sussurra, continuamente, no mais fundo docoração, despertando a lembrança da união originária e esperando queo homem atenda ao apelo do divino que traz em si mesmo. É Deus nohomem, enquanto vontade criadora, força radical de identidade, quefaz com que o homem seja homem e como homem permaneça. No

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chamado da vontade de Deus, o homem se reconhece criado àsemelhança15 de Deus. Ciência, técnica, ética, tudo se torna possível apartir da transparência para o sentido que recebeu, originariamente, davontade de Deus. Nenhuma vontade humana pode existir fora davontade de Deus, nem mesmo a vontade de matar. Esta identida-de, no entanto, não se sustenta em nenhum conteúdo moral. A vonta-de de Deus no homem é a força da liberdade, que faz dele um ser doespírito. A partir da vontade, inspirado por ela, o homem constrói acompreensão moral da existência, de acordo com as possibilidades dadasem cada vez. Não se trata, aqui, de um relativismo moral ou de umapermissividade, ao contrário, a imitação da semelhança de Deus emer-ge de uma concentração fora de qualquer medida. Quanto mais próxi-mo da semelhança de Deus, mais o homem se esvazia de princípios,regras e conteúdos de vida. A vontade em Duns Escoto não é apenasontológica, mas originária16, pode transformar a disposição singularde cada homem, pela força inexorável de seu toque amoroso. Se omestre franciscano pensasse a natureza íntima da vontade, no homem,como meramente ontológica, a força da sua condição de ser perderia ovigor de transformação. A vontade de Deus só pode ser originária e,sendo originária, é ontológica e ôntica.

Porque provém do mistério insondável, da identidade abissal, avontade não pertence ao homem, ao contrário, o homem pertence àvontade, presença divina capaz de transformar as decisões e mudar oscaminhos do espírito. A dinâmica de transformação da vontade deDeus, no homem, não pode ser explicada pela inteligência humanacomo uma troca. Mérito não é o critério. O empenho de permanência

15. A semelhança do homem com Deus só é possível pelo vigor da identidade radical,pois a semelhança se constitui na tensão de identidade e diferença. A tensão geradora daunidade brota no seio da Pura identidade, mistério de Deus.

16. Por ser originária a vontade é, também, ontológica e ôntica.

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na fé já é transformação, graça recebida. A dificuldade é que sempre seespera um resultado já previsto, pedido, um acontecimento querido.Aceitar o primado da vontade é aceitar o desconhecido como abri-go e moradia. Ao sentir-se recolhido pela vontade de Deus, o homemdesprende-se do seu querer, dos seus desejos, das suas vontades. Bem emal são escolhas de vida, mas o que habita no fundo de todos oshomens é a vontade livre de Deus, clamando-lhes a filiação em toda equalquer situação da existência humana. Pela presença da vontade deDeus em si, o pior dos homens morre como homem. Este é o sentidoda dignidade humana que o cristão acolhe em todo e qualquer ho-mem. Arrebatado por uma vontade maior que si mesmo, tudo que,diante dela, o homem pode fazer é orar para que, por ela, seja sempreabraçado: “Senhor, eu não quero compreender sua verdade, mas pene-trar Seu Mistério” (Santo Anselmo). Por maior que seja, a vontade dohomem não pode querer o que lhe é dado querer.

Deus criou o mundo por sua livre vontade. A vontade de Deus éDeus, isto significa que as criaturas foram todas criadas à imagem docriador, e o homem à sua imagem e Semelhança, revela a sabedoria doGênesis. Em que consiste exatamente a semelhança que se estabeleceentre homem e Deus? A semelhança se ilumina no irromper contí-nuo e transformador da singularidade, sempre última, de cadahomem. A transformação não descaracteriza a concentração final decada homem, ao contrário, possibilita a diversidade infinita da vida e asuperação dos limites. Pela força da transformação, não há um per-fil último e definitivo de cada homem. Haecceitas não põe um pontofinal no homem. Na constante conquista de si mesmo, o homempode mudar o rumo da sua existência.

Pensar e ser são um só, diz Parmênides, e quase dois mil anosdepois Santo Anselmo. Ao pensar a semelhança, ao se identificar como divino, o homem está vivendo a semelhança que recebeu de Deus, ecom isto está demonstrando a existência de Deus. Como o pensar é

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um empenho criativo, o homem está sempre sendo, cada vez de ma-neira diferente, a semelhança que é. O cavalo se desvela, em cada sin-gularidade última, como cavalo, na repetição do modo de ser cavalo,por todas as gerações eqüinas, sem conflitos, sem angústias, semquestionamentos. Por mais diferente que um cavalo seja do outro, oseu modo de ser cavalo é marcado por uma repetição comportamental.Os pássaros têm seus ninhos e as raposas suas tocas e isto nunca muda.Não há inesperado para os seres não espirituais. O homem é filhodo Inesperado, desvela-se como homem pela liberdade com que en-frenta os envios do mistério. O que é o inesperado? Para o cavalo amorte não é inesperada, nem esperada, tampouco a doença, a tormen-ta ou a alegria. O Inesperado é o mistério de Deus que o homem,pela semelhança do espírito concedida, encontra no acontecer davida. O horizonte do pensamento limita, cada vez, o embate entre ofinito e o infinito no homem, o que faz do modo de ser homem umacaminhada errante. Errância, aqui, diz transformação e plenificação doque sempre já foi, no que está sendo. E, em tudo que pensa e faz, ohomem nunca se encontra totalmente em si mesmo, por isso semprese põe em fuga, à procura de si mesmo. A condição própria de serhomem não está nas diferentes formas de civilização e cultura, mas naconquista contínua, livre, comunitária, histórica e pessoal de seu modo deser homem. O esforço do homem em atender à voz do mistério em si,projeta e expande uma força intensa de relação, identificação e diferencia-ção, tornando humano tudo que está ao seu redor. Transformando o queestá à sua volta em obra, o homem se faz homem e instala o mundo. Omundo do homem é movido pela experiência desafiante e religiosa deser semelhante a um mistério que não pode conhecer. A aceitação daoriginariedade religiosa de ser homem é a coragem que o ser do espí-rito leva consigo, na busca por si mesmo. Ao assumir a religiosidadeprimordial de seu modo de ser, o homem faz a experiência da liber-dade do espírito. Compreende-se como um ser cujo destino é misté-

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rio. Ser da liberdade, liberta o mundo, libertando-se, espiritualmente.Libertar não significa abandonar, mas amar o amor em tudo que teme não tem, em tudo que é e não é. Só, consigo mesmo, o homem nãotem onde colocar a cabeça, e

mais uma vez, antes de ir adiante e olhar para frente, elevo, nasolidão, as mãos para ti, em quem me refugio, a quem altaressolenes consagram, no mais fundo do coração, a fim de que,todo o tempo, minha voz me chamasse de novo. Sobre tudoarde em letras profundas as palavras: ao Deus desconhecido.Dele eu sou, ainda que até agora me tenha entregue ao bandodos sacrílegos.

Dele eu sou – e sinto os laços, que lutam para derrubar-me, e defato me forçam a servi-lo, mesmo na fuga. Quero conhecer-te Desco-nhecido. Tu, que tocas fundo a minha alma e qual onda penetras emminha vida. Tu, incompreensível parente meu. Eu quero conhecer-Te,até mesmo, servir-Te. (Oração ao Deus Desconhecido de Nietzsche,tradução Emmanuel Carneiro Leão).

TRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕES

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ZEN E O COMEÇO*

Eiko Hanaoka (-Kawamura)

Na tentativa de traduzir o termo alemão “Anfang”, começo, parao japonês e consultando um dicionário, encontraremos quatro com-binações diferentes de caracteres. Em seu dicionário Jitou, S. Shirakawaexplica a etimologia da primeira opção, da seguinte maneira: XXXX éuma combinação de dois caracteres, XXXX (vestimenta) e XXXX (es-pada). O primeiro denota as regras cerimoniais que estabelecem asindumentárias cerimoniais a serem usadas nas festividades religiosas.Outra combinação de caracteres é XXXX, significando uma invocaçãoritual, encenada anualmente no começo da estação do plantio, quandose purificam ritualmente os utensílios agrícolas. A terceira opção trazum só caractere, sem nenhuma combinação. Era usado para denotaruma festividade religiosa e significa, literalmente, o pescoço humano.A quarta opção XXXX representa um jorrar e simboliza um começoprimal. Essa última opção possui ainda dois outros significados, “pri-meiro começo” e “causa”. Assim como arche no grego clássico, “come-ço” significa em japonês o ponto cronológico primal da origem detoda criação e o princípio de sua existência. Num contexto religioso,porém, o termo “começo” é usado para fins purificadores e invocatórios.

A língua alemã usa a palavra “começo” em sentidos que não possu-em correspondentes em japonês. O japonês pode, sem dúvida, dizeralgo assim como “o primeiro passo é o mais difícil” ou “acaba bem o

* Extraído e traduzido do livro Zen and Christianity – From the Standpoint of AbsoluteNothingness. Kyoto: Maruzen Kyoto Publication Service Center, 2008, com a permis-são da autora.

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EIKO HANAOKA (-KAWAMURA)

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que começa bem” (que concebe o começo como parte de um todo),como fazem os alemães. Há ainda outros exemplos, que possuem umaqualidade mais polarizante como “ri melhor quem ri por ultimo” ou“quem planeja uma viagem de 100 quilômetros vai sentir que 99 são ametade da distância”. A língua japonesa não conhece, porém, o termo“Anfang” nem no sentido de começo de um único item dentro deuma multidão e nem como o oposto à palavra “fim”. Olhando paracomeço e fim num nível mais profundo, como veremos a seguir, essesdois termos são na verdade idênticos, não estabelecendo nenhuma di-ferença superficial.

Seguindo essas reflexões iniciais, farei uma exposição sobre o ZenBudismo e o termo “começo” e veremos que Zen volta-se tanto para onosso coração e a nossa mente como para a nossa razão e a nossa com-preensão.

Tomarei a seguir “Anfang” no sentido do que é originariamenteuno e indiviso. Assumirei esse termo também na acepção de origemde todas essas coisas estranhas que se dispersaram do uno. A explicaçãodessa interpretação baseia-se num texto do século XII, escrito pelomestre Zen chinês Kakuan. As “Dez pinturas do boi e seu pastor”mostram plenamente como começo e fim são, em princípio, um euno. Poder-se-ia reformular essa expressão e chamar de começo o quefoi originalmente uno; o fim seria então o que se dispersou do unooriginal. É o detalhe e o todo, é tanto identidade como diferença. Oprimeiro capítulo vai tratar desses conceitos.

Para dar seguimento a essa exposição, farei um resumo de comoessa questão foi tratada numa variedade de textos Zens e, na segundaseção, vou referir-me à expressão “O uno é o múltiplo”. Buscarei de-pois elucidar nossa questão, usando uma seleção de poesia escrita pormonges Zen japoneses. Primeiro vou olhar um poema de Ryokan quesurge na virada do século XVIII para o XIX. Apresentarei, por fim,vários haiku de Matsuo Bashô, poeta Zen do século XVII.

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1. Discutindo o problema através das “Dez pinturas do boi eseu pastor”

As dez pinturas do boi e seu pastor do mestre Zen Kakuan sãouma série de dez pinturas acompanhadas por versos. Em sua obra,Kakuan descreve o processo para alcançar a iluminação do verdadeirosi-mesmo de cada um. Esse verdadeiro si-mesmo (self) é pintado nasséries de pinturas do boi e seu pastor, e a imitação do processo estáentreaberta para cada um. Trata-se de um processo evolutivo em váriosestágios. Cada pintura ilustra uma certa etapa desse processo, que per-mite a todo mundo tornar-se, pouco a pouco, o seu próprio si-mes-mo. Cada pintura singular ilustra claramente cada uma das etapas.

A série começa com “a busca do boi”. Vemos um menino pastorentre árvores e rochedos e montanhas ao longe: o menino está olhan-do para o boi. Embora desconhecido para si mesmo, o menino já estáolhando para o seu verdadeiro si-mesmo. Na segunda pintura,intitulada “Vendo as pegadas”, o menino descobre e traça as pegadasdo boi. Tais traços simbolizam, no Budismo, os sutras e, no Cristia-nismo, a Bíblia. A terceira pintura mostra a visão do boi. Vemos so-mente a parte de trás do animal enquanto este se afasta do meninoque, por sua vez, continua a sua busca, sem dela desistir. Nessa terceirapintura, o menino, simbolizado pelo boi, descobriu seu verdadeiro si-mesmo e começa a compreender a verdade. A quarta pintura chama-se“Agarrando o boi”. Vemos aqui todo o animal e não apenas a sua partetraseira. Uma corda reúne o menino e o boi de maneira bem tensacomo se o boi pudesse a qualquer momento romper a corda e o meni-no não parasse de lutar para segurá-lo. Na quinta pintura, “domesti-cando o boi”, vemos o boi seguindo obedientemente atrás do meninoa caminho. A corda os une sem tensão. Mas eles ainda não se tornaramum só. O menino e seu verdadeiro si-mesmo ainda estão separados. Asexta pintura é o “voltar para casa no lombo do boi”: o menino relaxa

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e toca flauta no lombo do boi, que vai seguindo placidamente. Está acaminho de casa. Poderíamos dizer que está indo de volta para o seupróprio começo. A sétima pintura é chamada “O boi esquecido, omenino pastor permanece”. Na verdade, tudo o que vemos nessa pin-tura é o menino: ele aparece ali de joelhos, rezando para a lua, umsímbolo da iluminação. Esse é o momento em que os espíritos seelevam e o praticante está inteiramente ciente de uma realização defi-nida não obstante o real perigo de tornar-se arrogante ou indiferente.Pois é agora que ele tem de dar um passo ainda mais decisivo. Para essepasso, é necessário deixar passar todas as conquistas conseguidas atéagora, abandonar tudo para o que vinha trabalhando até então e o queconquistou mediante a experiência religiosa. Fazendo isso, ou bem semorre a “grande morte” ou bem se cai no abismo. Toda a caminhadasó poderá continuar quando ele der esse passo decisivo. A oitava pin-tura é “esquecendo boi e pastor”. Kakuan simboliza essa etapa do pro-cesso de realização com o desenho de um círculo vazio. Essa pinturamostra outra coisa. Nenhuma árvore, nenhuma rocha, nenhum boi,nenhum menino, não obstante todos eles “estejam aí”. Mostrandojustamente esse único símbolo do círculo quer-se simbolizar o habitardo si-mesmo, depois da “grande morte”, na esfera do nada absoluto.Depois da “grande morte”, tudo se repete de novo e de novo, na aber-tura absolutamente infinita – e é o si-mesmo que realiza isso ao tor-nar-se o seu verdadeiro si-mesmo. Duas pinturas da série simbolizamesse processo de “repetição”. A nona pintura é assim chamada “voltan-do à fonte e ao começo”. Kakuan usa a natureza para simbolizar essaetapa do processo. A décima pintura é “chegando ao mercado commãos abertas de alegria”. Kakuan simboliza as condições da liberdade,mostrando o menino – ou melhor o menino tornado velho – numaoutra jornada, com uma trouxa sobre os seus ombros. Existem váriasinterpretações visuais da estória de Kakuan e os detalhes podem variarum pouco. Por exemplo, nessa versão da décima pintura, vemos um

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ancião, andando ao lado do menino, ambos carregando pertences. Maseles são uma e mesma pessoa. Aqui, várias idades do menino aparecemsimultaneamente.

O mais importante dessa narrativa é que, em qualquer uma daspinturas, seja a décima, a quarta ou a primeira, em todas elas encontra-se a natureza do Buddha. Essa parábola elucida meus delineamentosacima, dos sentidos da palavra “Anfang”: alguém, no ponto de partidade uma prática religiosa ou de uma caminhada. No começo, o si-mesmo está quase desperto (o si-mesmo como equivalente ao si-mes-mo do nada) e, assim, todos os estágios da caminhada contém esse “si-mesmo”. Nesse modo, cada pintura, cada parte dessa parábola contémtodas as outras.

Agora, se, enquanto princípio, o “Anfang” está contido em cadapintura, então o mesmo deve ser verdadeiro para o “agora da eternida-de”. Pois no Zen, o “começo” é considerado um despertar religiosocom vistas à verdadeira existência, e esse despertar religioso, denomi-nado “coração – Buddha” (bodhicitta) é uma expressão do “agora daeternidade”. Tomado como “agora da eternidade”, o “começo” perma-nece invisível no mundo dos fenômenos, e, não obstante, permaneceresguardado em cada uma das dez pinturas. As primeiras sete pinturasmostram o praticante à caminho de seu verdadeiro si-mesmo nos sím-bolos do boi e da natureza (mesmo que o boi não apareça mais nasétima pintura). A oitava pintura mostra um círculo simbolizandoiluminação. O “começo” do praticante religioso no começo de suaprática, a figura do praticante, o boi e a natureza – todos eles tornam-se aqui, originariamente, um só. Na nona pintura, aparece o começodo despertar religioso no modo da natureza e na décima pintura nomodo do menino e do ancião, cada um respectivamente com seu ver-dadeiro si-mesmo.

Lin-chi, um mestre Zen chinês do século IX e conhecido no Japãocomo Gigen Rinzai, comentou o tema do despertar religioso, aqui

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indicado, num escrito chamado, “à caminho da iluminação, estando,ao mesmo tempo, na iluminação”. “Não estando na iluminação”, eledisse, “e, ao mesmo tempo, não estando de modo algum a caminhoda iluminação”.

O começo do despertar religioso não foi pintado na nossa série deforma alguma numa maneira realista. Podemos, no entanto, dizer queesse começo é tanto o “coração” (citta) como o lado interior do prati-cante. Esse começo é também o “coração” como tal, o centro da aber-tura absolutamente infinita, que se entreabre por todos os seus lados.E não obstante bodhicitta permaneça invisível, está sempre presenteenquanto continuar o exercício religioso. Somente os seus modos, assuas aparências é que variam. Cada estágio do exercício religioso é, elemesmo e simultaneamente, um começo.

Se agora o processo do exercício religioso é, em cada etapa dodesenvolvimento e progresso, idêntico ao começo, tanto no princípiocomo no tempo, então também essas dez pinturas – não obstante suasdiferenças superficiais – são em princípio o mesmo. Por isso, podería-mos dizer que a experiência do instante e da iluminação singular, bemcomo outros modos de iluminação, são o resultado de uma prática aolongo de toda uma vida. Esses dois modos são o mesmo enquanto arealização se realiza, no perdurar de seu em realizando-se. O mesmo éverdadeiro para o Cristianismo.

Para esclarecer isso, permitam-me trazer uma citação do Zazenshin,uma parte do texto do mestre Zen Dogen Kigen, do século XIII:

As águas são tão claras que se pode ver o fundo.Um peixe nada ali como um peixe.O céu é tão claro queUm pássaro voa ali como um pássaro.

Dogen fala de um peixe que nada como um peixe e de um pássaroque voa como um pássaro. Essa condição dos dois animais é conheci-da, em sânscrito, como tathata, significando “sendo como o ser-tal”,

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o modo como as coisas são. Nessa condição, o que é e o que deveriaser estão unidos, numa abertura absoluta. Depois de abandonar o ego,na “grande morte”, o verdadeiro si-mesmo do homem encontra-senessa mesma condição. Poderíamos então dizer que o começo, ou seja,o fundamento existencial de cada si-mesmo, é como esse peixe nadan-do no rio, nadando em tathata, nadando no “sendo como ser-tal” eque o começo de cada si-mesmo é como o pássaro voando nos céus,em tathata, voando no “sendo como ser-tal”. Isso equivale, no pensa-mento europeu ocidental, à idéia de que seres vivos existem tanto in-gênua e naturalmente como reflexivamente.

2. “O uno é o múltiplo” como expresso no Zen

Dissemos que o despertar religioso, bodhicitta, e que cada estágiodo exercício religioso são idênticos um ao outro. Isso significa aindaque a natureza é idêntica tanto ao começo como ao processo do exer-cício. Esse fato aponta, porém, para a relação entre o uno originário eas realidades que dele se dispersaram ou, em outras palavras, apontapara a questão do uno e do múltiplo. Essa é uma das questões filosó-ficas mais importantes. Na Europa antiga, encontramos essa questãotratada por Heráclito, na Idade Média, por Nicolau de Cusa. Voudiscutir essa questão usando a expressão “o uno e o múltiplo”.

O terceiro patriarca, Sousan Kyochi (morto 606) escreveu em seuShinjin-mei: “O uno é o múltiplo e o múltiplo uno”. Para o patriarcaessa era a verdade eterna (tathata). Contudo, a compreensão do uno edo múltiplo não estava definida uniformemente. Ao contrário, havi-am diferentes interpretações, até mesmo contrárias a essa acima citada,e o trabalho de interpretação continua até hoje. Vou referir-me a ape-nas dois intérpretes; Sonin Kajitani (1914-1995) considerava que ouno era cada coisa singular e, simultaneamente, cada coisa singular, eratambém o múltiplo. Sogen Omori (nascido em 1904), declarou que

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os aspectos da diferença eram simultaneamente uno e compreendeu ouno como o múltiplo, contendo dentro de si mesmo todos os dife-rentes aspectos da diversidade. Um comentador posterior desse sutra,Taka Nakagawa interpretou a expressão “o uno é o múltiplo” seguin-do o sutra Hui-neng do século VI (conhecido no Japão como EnoRoshi). Seguindo Hui-neng, Nakagawa escreveu que o múltiplo é su-bitamente uno consigo mesmo e que o si-mesmo opera subitamentecom o múltiplo. Nesses exemplos, o uno ou é qualquer coisa dada (epor isso um individual) ou, ao contrário, é o múltiplo complexo, con-tendo toda diversidade, ou ainda o uno é visto como o si-mesmoindividual e o todo e, portanto, tanto como item singular como otodo da criação.

A Escola Kegon, Hua-yen em Chinês, na sua obra “Cinco modosde ensinar segundo a classificação da escola Hua-yen” vê o uno como osi-mesmo unificado em si mesmo e o universo como o inesgotável.

Essas várias interpretações do termo “o uno” resultam em doismodos possíveis de observação: de acordo com o primeiro modo deinterpretação, o uno é a unidade de todo e cada individual ou o si-mesmo (o mestre zen Sonin Kajitani e Taka Nakagawa favoreceramessa visão); na segunda possível interpretação, uno está para o um ori-ginário. Antes de começar a praticar o Zen, pensava que o uno de “ouno é o múltiplo” significasse o singular individual. Contudo, ao metornar praticante, comecei a compreender que o singular individual ésimultaneamente o uno. Percebi ademais que, enquanto começo, ocoração inteiro (bodhicitta) era também o múltiplo de todas as coisas.O uno originário (ou o coração inteiro) – visto como começo equiva-lente à origem – é idêntico ao todo da criação. Ademais, o uno origi-nário e todo o mundo não se relacionam entre si nem como opostos enem como polaridades, mas como mutuamente idênticos. Sem dúvi-da, essa não é uma resposta suficiente à questão do que verdadeira-mente é, pois o uno originário e o mundo da multiplicidade são ape-

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nas o dentro e o fora da mesma realidade. Olhando essa realidade ape-nas desde o aspecto ou lado do mundo dos fenômenos, onde sujeito eobjeto estão separados um do outro, percebemos o mundo do múlti-plo como o mundo dos fenômenos. Contudo, fazendo a experiênciado mundo num modo completamente diferente, ou seja, como aber-tura infinita, pode-se fazer de todo o coração ou de todos os fenôme-nos de si mesmo o uno.

A humanidade vive na abertura absolutamente infinita, no modocomo o mestre Zen Gigen Rinzai descreveu no século IX. A humani-dade está ou bem sempre a caminho, sem sequer ter deixado sua casa,ou bem deixou a sua casa sem contudo nunca estar a caminho. Na experi-ência da vida quotidiana, encontramo-nos, porém, no ponto em que essesdois modos se interseccionam, no ponto onde a dimensão vertical da iden-tidade original e a dimensão horizontal dos fenômenos múltiplos conectam-se uma com a outra em todas as áreas. É nesse ponto que a abertura abso-lutamente infinita se entreabre. Aí, o uno originário e todo o múltiplodo mundo dos fenômenos são um só.

Aí eles são idênticos um com o outro mesmo que, para uma ob-servação superficial, pareçam opostos, tal como vimos no caso das dezpinturas do pastor e o boi. Dentro desse mundo em que sujeito e objetoestão separados um do outro, o maior problema é a sua diferença. Já nomundo em que a separação ainda não teve lugar, a principal área de realiza-ção é o uno das coisas, ou seja, a unidade. Não importa se o uno originárioera constituído pelo singular ou pelo todo e não importa qual desses doisé o múltiplo; tanto o uno como o múltiplo são sempre interdependentes,pois eles se interseccionam por toda parte. No modo da abertura absolu-tamente infinita, não muda nada se a unidade é constituída pelo uno oupelo múltiplo. No mundo da separação entre sujeito e objeto, o termouno (na expressão uno e múltiplo) significa coração inteiro ou o uno com-pleto face à multiplicidade das coisas singulares. Abertura absolutamenteinfinita de “tudo é um” refere-se àquele uno que abriga o múltiplo emsi mesmo.

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Quando o uno da fórmula “o uno é o múltiplo” é entendido emsua simultaneidade, aquele que o compreende existe dentro da abertu-ra absolutamente infinita entreaberta na intersecção das dimensõeshorizontais e verticais. O uno e o múltiplo são idênticos um ao outroem cada intersecção dessas dimensões. Em outras palavras, enquantoarche, o uno originário e o múltiplo, enquanto processo de vir a serque se realiza dentro dos fenômenos, são na sua base mutuamenteidênticos, não obstante a sua oposição superficial. É que, nessa instân-cia, o começo e o processo não constituem uma oposição polar. Cadaum singular do mundo dos fenômenos veio a ser desde o começo daidentidade originária. Cronológica e fundamentalmente, é o começoque define toda criação singular.

O uno do ser do que existe e do próprio ser pode ser visto como ooperar da natureza na criação. Esse uno originário do velado e do reve-lado no operar da natureza corresponde ao uno originário acima discu-tido, o uno entre o começo e o todo da criação nesse mundo, sendopossível apenas na abertura absolutamente ilimitada, que aparece emcada experiência singular de cada e todo indivíduo. Podemos apropri-ar-nos desse uno originário do começo e seu espraiar-se no mundo dodevir, em nossa experiência original, ou seja, no ponto em que si-mes-mo e natureza são um com a dimensão transcendental do passadoeterno e do futuro eterno. Esse fato aparece não apenas nas palavrasfaladas do Zen Budismo mas também em sua literatura. O uno douno e múltiplo ou do começo enquanto bodhicitta e realidade nessemundo, encontra sua expressão nos termos – um pouco abstratos –zen-budistas como “um é tudo”. Nesses termos, o processo de medita-ção Zen encontra variadas expressões, cada uma de acordo com o sen-timento do praticante. Na literatura Zen, porém, essa identidade ex-prime-se em termos menos abstratos. Esses testemunhos literários ex-pressam o uno entre o si mesmo e os fenômenos não apenas no mododo sentimento pessoal do praticante mas também o uno do mundo

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ou da natureza. É muito mais fácil e vivo exprimir desse modo e tam-bém de nos tornarmos parte do uno. Sutras e textos Zen budistassurgem como se do intelecto, do sentimento e da volição do pratican-te. Mas igualmente resguardado nesses textos literários encontra-se ocoração ou o espírito do homem que, valendo-se dessa caneta, encon-trou a si mesmo no uno com toda a criação, de maneira que essestextos colocam-se em palavras a partir dos sentimentos do autor.

3. Diferença e identidade do começo e de toda a criação

A relação entre o começo e toda a criação no mundo dos fenôme-nos encontra-se mencionada no poema do monge zen Ryokan (1758-1831):

Ao longo da água corrente do riacho da montanha, eu procura-va a sua fonte. E quanto pareceu-me que a tinha encontrado, vi-me perdido. Percebi, pela primeira vez, que um tal começo éinalcançável. Águas límpidas jorravam por toda parte e por todolugar que encavava com meu bastão.

Esse poema nos fala de um homem buscando a fonte de um córregoda montanha. Justo quando acreditara ter finalmente localizado a fon-te, vê-se tomado por um grande desapontamento. É que se descobriucompreendendo que tal fonte não existe. Por onde fosse que tocassecom seu bastão, água fresca jorrava de todo lugar. O poema refere-seao começo do despertar religioso e o processo do seu exercício e práti-ca. O poema nos mostra que, embora não haja um começo especialou um ponto fixo para o começo, insiste-se sempre ainda e com em-penho em buscar um ponto inicial. O correr da água aparece por todaparte onde corre o riacho da montanha. No Zen Budismo, esse jorrarsignifica o despertar religioso como bodhicitta. O jorrar simboliza ade-mais a iluminação. Iluminação não é, portanto, uma meta alcançadaapós se ter cumprido a última etapa. É bem mais a meta velada e

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resguardada dentro de cada uma das etapas do processo que, assimcomo o começo, igualmente velado e abrigado em cada uma das eta-pas do processo, pode ser uma espécie de iluminação capaz de servircomo meta da etapa em questão.

É, sem dúvida, um fato que a mesmidade originária do começo e dailuminação tornou-se evidente ao longo de cada etapa do exercício religio-so na vida quotidiana e que isso significa também o eterno agora, manifes-to em cada momento da vida. Olhando dessa maneira para o nosso pro-blema, tempo e eternidade são basicamente um só. A unidade de tempo eeternidade aparece somente quando a humanidade vive na unidade comtoda a criação, vivendo-a com todo o seu coração e toda a sua alma. Per-mitam-me citar ainda uma vez o mestre Zen Dogen.

As águas são tão claras que se pode ver o fundo.Aqui, um peixe nada como um peixe.O céu é tão vasto e claro.Aqui, um pássaro voa como um pássaro.

Estamos lidando aqui com os animais em geral e com peixes epássaros em particular. Mas eles são um só com os seus arredores eambientes. Cumprem o seu destino como peixe e como pássaro. Opeixe pode nadar para onde a imaginação o conduz. Para onde for, opeixe nadará como peixe. O mesmo vale para o pássaro, enquanto umpássaro que voa como um pássaro, indistinto de seu elemento.

Ao que nos concerne, a unidade de tempo e eternidade na aberturaabsolutamente infinita aponta, por um lado, em direção a nossa exis-tência individual e, por outro, em direção ao nosso ser parte da huma-nidade – numa unidade harmoniosa com o nosso entorno. Um haikude Matsuo Bashô, poeta Zen do século XVII, esclarece isso de maneirabem precisa.

Silenciosamente, a cigarra canta entre os rochedos.

A inspiração para esse poema provém de uma visita de Bashô a umtemplo na montanha em maio de 1689. Lá ele ouviu o canto claro e

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gritante da cigarra. Nesse poema, encontramos não apenas a imagemprofunda e silenciosa do chão do tempo. Remoto, encontramos tam-bém o coração quieto do próprio Bashô. É como se esse coração can-tasse em uníssono com a voz clara e sem pressa da cigarra, removido daazáfama e alarido do mundo das ocupações. O começo se entreabrecomo uma abertura absolutamente infinita. E o coração de quem lêessas linhas, de início, apenas escuta. Escuta simplesmente a unidadedo canto da cigarra e do próprio Bashô. Depois, porém, o coração doleitor começa a cantar com eles.

Nas primeiras páginas do célebre diário de viagem de Bashô Okuno hosomichi (A estreita estrada para o norte distante), encontramos aseguinte passagem, muito conhecida no Japão.

O tempo é um andarilho peregrino na eternidade. Aqueles quecaminham indo e vindo são também andarilhos. Os que vivemem navios e os que envelhecem polindo o distante, todos elesestão diariamente a caminho. Vivem na casa da viagem. Os maisvelhos costumam morrer nesse estar a caminho. Há um tempoatrás, fui também convidado pelo vento, que movimenta asnuvens, a ir-me. Fiquei vagando para lá e para cá e, enquantoderivava ao longo da costa, acabei, no outono passado e logoapós o ano ter dado a sua volta, voltando sozinho para casa a fimde limpar as teias de aranha de minha casa à beira do rio. Haviaplanejado ultrapassar a barreira em Shirakawa, sob um céu ne-buloso, enlouquecido, possuído por um deus que transforma oscorações humanos em joguetes com a nossa própria vontade econvidado pelo Deus das flechas. Por isso, encontrava-me im-potente. Enxuguei as lágrimas na minha roupa, amarrei a cordado meu chapéu de bambu, coloquei mocha nos meus pés… e,durante todo o tempo gasto nesses afazeres, ficava pensandocomo seria a lua lá em Matsushima e como colocaria a casa nasmãos de quem a cuidasse e me mudaria para a casa de campoem Sanpu.

Essa passagem provém da descrição feita por Bashô de uma desuas viagens que o levou para Michinoku, situado no norte das ilhas

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do Japão. Essa viagem durou dois anos e meio. Bashô descreve esseperíodo como “uma jornada da eternidade para a eternidade”. De seuscompanheiros de viagem conta que alguns dos que conduziam os bar-cos ou cavalos passavam a sua vida em rota e muitos morriam ao lon-go dela. Bashô também nos narra sobre si mesmo, sobre seus senti-mentos e sobre o tempo de andança como também sobre seus planospara voltar ao rio Sumidagawa. Conta ainda de uma correnteza fresca,movida por poderes além dele mesmo.

Quatro dias antes da sua morte, ele escreveu o seguinte haiku:À caminho, tomado pela doença – sonhos de viajante por entrecampos secos.

Esses haikus nos mostram tanto o mundo dos fenômenos (o âm-bito da viagem) como o começo enquanto abertura absolutamenteinfinita, aberta para a unidade em cada passo que ele dá. Quando es-quecemos de nos ocuparmos de nós mesmos, quando nossos coraçõesse tornam um com toda a criação, o mundo da abertura entreabre-separa nós e a situação de vida caracterizada por “O uno é o múltiplo”aparece, tornando-se uma presença em nossos corações. Um outro haikude Bashô demonstra vivamente a unidade do seu coração com a natu-reza e a criação.

No ramo murcho – um corvo à luz do outono, à caminho danoite.

Bashô escreveu esse haiku aos 36 anos. Fez algumas modificaçõesdez anos depois e o publicou finalmente nessa forma, cinco anos antesda sua morte. Ele nos descreve uma paisagem outonal, um corvo pou-sado num galho murcho, cercado de escuridão. Não se trata, todavia,apenas de uma imagem de solidão resignada e emoldurada por coisascíclicas fenecendo, chegando a um fim e redescobrindo novos come-ços. [Essas palavras são] também ele mesmo Bashô, sua própria formano anoitecer da sua vida. Ele escolhe justamente um corvo, mesmosem saber de sua dissolução num futuro não tão distante. Para nós,

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esse haiku separa claramente as imagens da natureza e a imagem dopoeta idoso. Contudo, ambas as imagens nos tocam por causa de suaunidade. Quando o coração do haiku toca as cordas de nossos cora-ções e os deixa ressoar no som, então a forma do corvo no galho secodescreve nossas próprias formas, nós mesmos. Nesse haiku, o corvo é,sem dúvida, um corvo, e Bashô é, sem dúvida, Bashô, assim como oleitor dessas linhas é, indubitavelmente, o leitor. Nós, leitores, nós, osque falam e escutam, sabemos muito bem que esses três encontram-senuma unidade. Como esse haiku toca o leitor em sua parte mais inte-rior, a abertura absolutamente infinita haverá de entreabrir-se justa-mente aí.

Com esse haiku, sabemos que a abertura absolutamente infinita seabre – simplesmente porque um corvo é um corvo e, não obstante, ocorvo é também a forma de Bashô e, igualmente, a forma de cada umque lê esse haiku. Somente quando os três corações – do corvo, doBashô, do leitor encontram-se mutuamente independentes e nãoobstante simultaneamente unos é que a abertura absolutamente infi-nita tornar-se-á aparente, sendo o coração uno de todas as coisas e, aomesmo tempo, o seu começo.

Conclusão

Vimos o problema do Zen Budismo e o termo “começo” a partirde vários ângulos. Vimos como o mestre Zen Kakuan tratou esse pro-blema, na sua série “Dez pinturas do Boi e seu Pastor”. Vimos depoiso mesmo problema num poema de Ryokan e em vários haikus deMatsuo Bashô. Desses exemplos ficou claro que o começo desenvol-ve-se dentro de si mesmo, seguindo a sabedoria do tempo e do princí-pio e, inversamente, que cada fenômeno desse mundo carrega dentrode si o começo. Hoje em dia, esquecemos o sentido de nossas ações eisso independentemente de qualquer tipo de ação. Todas as ações pro-

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vêm do começo e tornam-se aparentes no mundo dos fenômenos atravésde disseminação, separação e do uno. Cada passo de nossas realidades ébasicamente idêntico ao uno originário, a esse tipo de unidade que ésimultaneamente o começo e o fim cronológico de todos os seres eigualmente o princípio de sua existência. Se fôssemos capazes de per-ceber em detalhe as estruturas desse mundo, ou seja, o modo em queesse mundo se revela e se vela, e se fôssemos capazes de viver no “aquie agora”, no “uno é o múltiplo”, seria bem mais fácil encontrar nortespara a solução dos problemas do mundo em que vivemos.

Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback

O BOI E SEU PASTOR

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O BOI E SEU PASTOR*

I – Procurando o boi

Por que e onde procurar? Afinal, o boi nun-ca foi perdido. Quem se perdeu de si mesmofoi o pastor, tornando-se estranho para o seupróprio boi ao perder-se num longeempoeirado.

As montanhas do começo ficam cada vezmais distantes. Sem se dar conta, o pastor acha-se emaranhado em encruzilhadas. Cobiça de

ganho e medo de perda ardem como fogo em chamas e as oposiçõesentre certo e errado, justo e injusto lançam-se umas contra as outrascomo pontas de lança num campo de batalha

Poema de louvor

Sozinho no imenso, caminha o pastor,Perdido no meio da floresta densa, ele busca o seu boi.

* A presente tradução foi feita a partir de uma versão alemã publicada sob o título ZenGeschichte aus dem alten China. Der Ochs und sein Hirte, na tradução de Kôichi Tsujimurae Hartmut Buchner (Pfullingen: Neske, 1958). Fizemos aqui uma tradução livre,seguindo os comentários de Daizohhutsu R. Ohtsu que acompanham a edição alemã,mas também os de Daisetz Teitaro Suzuki, “The ten Cow-Herding Pictures”, publica-do em Essays in Zen Buddhism, (London: Rider and Company, 1970) e os da profes-sora Eiko Hanaoka em seu livro Zen and Christianity – From the Standpoint of AbsoluteNothingness (Kyoto: Maruen Kyoto Publication Service Center, 2008).

http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Ochse_und_sein_Hirte

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Montanhas ao longe, águas correndo distantes,E o caminho misturado à vegetação infinita.

Com o corpo morto de fatiga e o coraçãoDesesperado, o pastor não sabe para onde ir.

No cair da tarde, só escuta as cigarrascantando na floresta de plátanos.

2

Voltado apenas para fora, o pastorProcura com todas as suas forças.

Sem perceber, os pés pisam o pântanofundo e lamacento.

Quantas vezes sobre gramas perfumadas,durante o pôr do sol,não cantou sem porquê o Hsin-feng, o canto do pastor?

3

Lá no começo não há pegadas. Quemhaveria de ali procurar?

Errante, chega num lugar escondido e remoto,Na névoa densa, trepadeiras se trançam.

Ressabiado ele volta logo para casa segurandoO boi pelo nariz.

Ao mesmo tempo, o seu canto soa desencorajadoSob as árvores à margem da água.

O BOI E SEU PASTOR

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II – Encontrando as pegadas do boi

A leitura do sutra e a escuta da doutrinalevaram o pastor a intuir alguma coisa sobre osentido da verdade. Ele descobriu as pegadas.Entende agora que as coisas, por mais distintasque sejam a sua forma e o seu modo, possuemvalor de ouro e que a essência de cada coisa nãoé distinta da sua própria essência. Não obstan-te, ele não consegue diferenciar o autêntico doinautêntico, e ainda menos o verdadeiro do não

verdadeiro. Ele ainda não consegue adentrar o portal. É apenas emsentido provisório que se pode dizer que descobriu as pegadas.

Poema de louvor

1

À beira d’água e sob as árvores, encontram-seEspalhadas as pegadas do que se perdeu.

A mata cresce densa e perfumada: terá o pastorencontrado o caminho?

Por mais distante que o boi tenha ido rumoAo remoto de uma montanha profunda:

O seu nariz alcança o céu amploE nada pode escondê-lo.

2

Perto da árvore seca, à beira da falésia,Correm muitos caminhos de errância.

http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Ochse_und_sein_Hirte

248 Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

Como no ninho do pássaro, recoberto de mato,Ele circula na pequena gruta.

Perceberá ele a sua própria errância? Quando os pés,Em busca, seguem as pegadas,

Ele então perde-se do boi, deixando-oescapulir.

3

Muitos procuram o boi, mas só poucoso viram.

Nas montanhas ao norte ou abaixo no sul, onde opastor o encontrou?

Um caminho do claro e do escuro,vai e vem sobre cada coisa.

Se o pastor encontra a si mesmo num tal caminhoentão não precisa mais buscar.

III – Vendo o boi

No instante em que o pastor escuta a voz,ele corre para trás e encontra, no raio fugidiodo olhar, o começo. Os sentidos oscilantes eincertos apaziguam-se na consonância serenacom esse começo. Desvelado, o boi governaem sua totalidade cada fazer do pastor. Ele vi-gora no seu modo essencial como o sal na águado mar ou como a tinta na cor do pintor.

Quando o pastor abre os olhos para o distante e olha, ele nada mais vêdo que a si mesmo.

http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Ochse_und_sein_Hirte

O BOI E SEU PASTOR

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Poema de louvor

1

Num galho ao alto, canta claro e límpidoUm rouxinol.

O sol brilha quente e doce sopra o vento.À margem verdejam os prados.

O boi está ali inteiramente nele, não há mais lugar algumonde possa esconder-se.

Tão magnífica é essa cabeça com chifresem pé: que pintor saberia imitá-la?

2

Figura e voz do boi são ouvidase entrevistas.

O pintor do boi, Daissung, tornou-se entãoUm fantástico mestre.

Sua imagem é, da cabeça ao rabo, comoO boi do coração.

Mas quando a prova fica mais severa, ele percebeComo ainda está incompleto.

3

O rosto do pastor depara-se com o nariz do boi.Agora ele não precisa mais seguir os mugidos.

Nem branco nem azul é esse boi.

Calmo o pastor consente, permitindo-seum doce sorriso.

Para a paisagem adorável não há pincelou lápis.

250 Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

IV – Agarrando o boi

Hoje, o menino pastor encontrou pelaprimeira vez o boi, de há muito escondido namata selvagem.

Só que o mundo habitual e agradável des-sa mata o atraía tanto para dentro que ficou difí-cil segurá-lo. Ele ainda não conseguia escapar danostalgia do bosque perfumado e viçoso. Neleainda persistia o tinho teimoso e a animalidade

selvagem o dominava. Se o pastor quiser trazê-lo para um ânimo calmoe autêntico, será preciso domá-lo com o rigor do chicote.

Poema de louvor

1

Com a energia de todo o seu ser,o menino pastor capturou por fim o boi.

Mas tanto mais selvagem era a sua vontadeMais ingovernável era o seu poder.

O boi logo escapole, adentrandoregiões fundas e indevassáveis.

Ele logo corre para as névoas e nuvensE quer esconder-se.

2

Segura bem a corda, não deixa o boi ir embora!

Muitos males e os mais refinados ainda nãoforam superados.

http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Ochse_und_sein_Hirte

O BOI E SEU PASTOR

251Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

Mesmo quando o pastor o puxa cuidadosopelo nariz com a corda,

O boi se vira de vez em quando para tráse quer voltar para a mata.

3

Onde os matos perfumados alcançam o céu,O menino pastor captura o boi.Mas ele não deve largar a mãoDa corda que segura o nariz do boi.

O caminho de volta vislumbra-se claroPara o pastor –

Ele precisa, no entanto, parar muitas vezes com o boiNo rio azul e nas verdes montanhas.

V – Domesticando o boi

Se aparece um pensamento, então a essesegue-se inexoravelemente um outro –Infini-to um após outro. No crescer, torna-se verda-deiro; na errância, torna-se, ao contrário, nãoverdadeiro. Tudo que vigora no mundo nãoprovém do mundo mas acontece unicamentea partir do coração em começo. Segure firme acorda e não permita nenhuma hesitação!

Poema de louvor

1

O menino pastor não pode deixar por nenhummomento a corda e o chicote.

Senão o boi haveria de rapidamentePerder-se no ermo empoeirado.

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Se o boi for domesticado com doçuraE trazido para a sua calma,

Ele haverá de seguir o pastorSem corrente ou cadeia.

2

Às vezes o boi pára na montanha eDescansa lá um bom dia.

Às vezes prossegue na via tão movimentadaque se suja da poeira dos cavalos.

Nunca se alimenta do pasto que crescenos campos de outros homens.

Ir e vir – ele não precisa de nenhum esforçodo pastor. O boi é que o leva com toda calma.

3

Numa criação paciente, o boi acostumou-seAo pastor e tornou-se terno.

Mesmo atravessando a poeira,Ele não se suja.

Domesticação vagarosa. Com as quedas constantes,O menino pastor ganhou toda a sua força.

Sob as árvores, outros homens encontravamSeu riso potente.

VI – Voltando para casa no lombo do boi

A luta já passou. Mesmo ganhos e perdastornaram-se um nada. O pastor canta uma can-ção camponesa dos lenhadores e toca na suaflauta, à maneira camponesa dos jovens da al-deia. Ele senta-se no lombo do boi e olha o

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O BOI E SEU PASTOR

253Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

céu azul. Se alguém o chama, ele não se vira. Se alguém o toca nobraço, ele não pensa em parar.

Poema de louvor

1

O pastor volta para casa no lombo do boi,sereno e desapegado.

Na névoa que puxa o cair da noite para o longeSoa o canto de sua flauta.

Compasso por compasso, verso por verso, entoaA sintonia sem fim do menino pastor.

Escutando o canto, ele não precisa maisDizer como vai o pastor.

2

Ele indica com a mão o lugar lá na frenteDa represa – lá encontra-se o lar.

Ele saiu do embaçado e do nevoeiro e soprabaixinho as flautas de madeira.

Assim os campos transformam-se em cantosda volta ao lar.

Quem consegue ouvir esse canto, não acha maisTão bonitas as peças do Mestre Bai-ya.

3

Sentado no boi, sem se virar, voltapara casa de coração feliz.

Com o chapéu de bambu e as vestes de palhaadentra a névoa do anoitecer.

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Passo a passo. O vento frio sopra calmoE doce.

O boi nem olha para o matoEnfadonho.

VII – O boi foi esquecido, o menino pastor permanece

Não existem dois Dharmas. Somente ul-trapassando, o boi pode virar guia de caminho.Ele parece um laço ou uma vara com o qual alebre fisga um peixe. Com o pastor acontecealgo como se um ouro brilhante irrompessede um mineral ou como se a lua, liberando-sedas nuvens, aparecesse em seu brilho. Luzia

uma luz fria já antes do dia do nascer de um mundo.

Poema de louvor

1

O pastor já voltou para casa no lombo do boi.

Não há mais nenhum boi. O pastor senta-sesozinho, desapegado e calmo.

Dorme quieto, pois o sol vermelho escaldanteJá está bem alto no céu.

Inúteis são o chicote e a corda, jogados para lá,Sob o teto de palha.

2

Embora o pastor tenha trazido o boi das montanhas,Não se vê mais o boi no estábulo.

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O BOI E SEU PASTOR

255Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

O manto de palha e o chapéu de bambuTornaram-se inúteis.

O pastor vive cantando e dançando, todoDesapegado, não mais ligado a nada.

Entre céu e terra, tornou-seSeu próprio senhor.

3

O pastor está de volta à casa, agora por toda parteSó há o lar.

Quando se esquecem as coisas e o eu, a pazgoverna durante todo o dia.

Creia no cimo “acesso ao segredo profundo”.

Nesse cimo o homem não pertenceMais ao mundo dos homens.

VIII – Esquecendo boi e pastor

Toda cobiça mundana foi esquecida e tam-bém todo sentido de sacralidade esvaziou-se semdeixar pegadas. Não fique satisfeito no lugarem que mora o Budha. Passe correndo pelolugar em que mora o Budha. Não se pendu-rando em nenhum dos dois, não se pode nun-ca ver o seu interior, nem mesmo quem tivessemil olhos. A sacralidade de oferecer flores a

pássaros é somente vergonha.

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256 Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

Poema de louvor

1

Chicote e corda, boi e pastor tornaram-se nada,Deixando nenhuma pegada.

Nenhuma palavra alcança ou consegue mediro céu azul e vasto.

Como a neve poderia permanecer sob a chamaEncarnada da lareira em brasa?

Somente chegando num tal lugar é que um homemPode corresponder aos antigos mestres.

2

Vergonha! Eu queria salvar o mundo. Surpresa!Não há mundo mais para se salvar.

Nenhuma palavra é capaz de dizerComo se sente nessa situação o pastor.

Predecessores – sucessores: aqui não hánenhum deles.

Enigma! Quem pode herdar essa verdade,Quem pode pervertê-la?

3

Com um golpe só, o céu grandeIrrompe como tambor

Sagrado é quando o mundano desaparece sem deixar pegadas.No não caminhado termina o caminho.

Diante do templo brilha a lua clara e sopra o vento.

Toda água de todos os rios minam no mar imenso.

O BOI E SEU PASTOR

257Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

IX – Voltando à fonte e ao começo

Do começo é-se puro e não há poeira. Lápode-se ver o alternar de surgimento e desapare-cimento dos seres e habitar a calma recolhedorada não ação. Lá não se consegue iludir-se com aimagem fugidia e enganadora do mundo e ne-nhum exercício é mais necessário. As correntezasfluem azuis, as montanhas erguem-se verdes. Ele

repousa nele mesmo e olha o transformar-se das coisas.

Poema de louvor

1

De volta à fonte e ao começo, o pastor tudo realizou.

Nada é melhor do que ser sempre no lugarComo cego e surdo.

Em sua casinha, ele se senta e não vêCoisa nenhuma lá fora.

Sem limites flui o rio como ele flui. Vermelhafloresce a flor, como ela floresce.

2

Nunca o ato maravilhoso fica ao serviçoDo ser e do nada.

O que quer que veja e escute, não precisa maisDa surdez e nem da cegueira.

Ontem o corvo dourado voou para o mar,Hoje o círculo de fogo iluminaA aurora como outrora.

http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Ochse_und_sein_Hirte

258 Scintilla, Curitiba, volume especial n. 6.03.2009, p. 245-260

3

O pastor já usou toda a força do coração ePercorreu todos os caminhos até o fim.

Nem sequer a iluminação mais translúcida superaA surdez e a cegueira.

Debaixo das sandálias de palha termina o caminho,Que ele outrora já conheceu.

Nenhum pássaro canta. Flores vermelhas florescemEm magníficos tumultos.

X – Chegando ao mercado com mãos abertas de alegria

O enorme portal está bem fechado e mes-mo o santo mais sábio não pode vê-lo. Ele jáenterrou bem fundo a sua essência iluminada ese permitiu retrair-se dos sábios de há muitovenerados. Às vezes, vem ao mercado com suatrouxa. Às vezes, volta com um cajado para asua casinha. Quando lhe apetece visita um bare uma venda de peixe para que os homens bê-

bados possam iluminar-se para si mesmos.

Poema de louvor

1

Com peito aberto e pés nus ele chega ao mercado.O rosto pintado de terra, a cabeça coberta de cinzas.Suas bochechas estão inchadas de riso potente.

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O BOI E SEU PASTOR

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Sem ocupar-se de segredos e admirações,Ele deixa as flores florescerem.

Amigavelmente vem esse homemDe uma raça estranha.

Às vezes seu rosto mostra claramente traçosDe um cavalo, às vezes, traços de um jumento.

Se balança o bastão de ferro rápido como o vento –Portas e portais logo se abrem amplos e espaçosos.

3

O bastão de ferro cai reto do ombro sobre o rosto.

Ás vezes ele fala huno, às vezes chinês, comRiso potente em suas bochechas.

Quando um homem compreende como encontrar-seConsigo mesmo e permanecer desconhecido para si –

O portal para o palácio haverá de abrir-se imenso.

Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback

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