SAULO TARSO RODRIGUES A GLOBALIZAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA E … · 2018-05-20 · 2.3 A...

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1 SAULO TARSO RODRIGUES A GLOBALIZAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA E A PROBLEMÁTICA CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS Tese apresentada ao Curso de Doutoramento da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Sociologia. Área de Concentração: “Sociedades Nacionais Perante os Processos de Globalização”. Linha de Pesquisa: “Direitos Humanos” Orientador: Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos Centro de Estudos Sociais Faculdade de Economia Universidade de Coimbra Portugal 2006

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SSAAUULLOO TTAARRSSOO RROODDRRIIGGUUEESS AA GGLLOOBBAALLIIZZAAOO CCOONNTTRRAA--HHEEGGEEMMNNIICCAA EE AA PPRROOBBLLEEMMTTIICCAA CCOONNTTEEMMPPOORRNNEEAA DDOOSS

DDIIRREEIITTOOSS HHUUMMAANNOOSS

Tese apresentada ao Curso de Doutoramento da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Sociologia.

rreeaa ddee CCoonncceennttrraaoo:: SSoocciieeddaaddeess NNaacciioonnaaiiss PPeerraannttee

ooss PPrroocceessssooss ddee GGlloobbaalliizzaaoo..

LLiinnhhaa ddee PPeessqquuiissaa:: DDiirreeiittooss HHuummaannooss OOrriieennttaaddoorr:: PPrrooff.. DDrr.. BBooaavveennttuurraa ddee SSoouussaa SSaannttooss

Centro de Estudos Sociais Faculdade de Economia

Universidade de Coimbra Portugal

2006

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AGRADECIMENTOS No caminho percorrido at a elaborao deste trabalho de pesquisa, houve muitas pessoas que foram importantes. No entanto, impossvel colocar todos aqueles que direta ou indiretamente participaram deste momento. Por isso, incorrendo no erro do esquecimento, gostaria de deixar os meus agradecimentos para aqueles que esto presentes nas minhas lembranas. O meu agradecimento ao meu orientador, Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos, pelo aceite do meu projeto no ano de 2002, e pela dedicao em ler, reler, colaborar e argumentar para a melhoria do trabalho de pesquisa. Alm do mais, fica meu agradecimento especial pela possibilidade que me deste de crescimento pessoal e intelectual.

Ao Prof. Dr. Jos Manuel Pureza, pela oportunidade do convvio em seus brilhantes seminrios, que foram fundamentais para escolha e escrita deste trabalho, bem como pela cordialidade com a qual recebeste no somente a mim, mas a todos os brasileiros que passaram pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Aos funcionrios e investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, pela

disponibilidade e gentileza que sempre dispuseram, o que foi de muita importncia para as pesquisas realizadas. Aos professores do Mestrado Antnio Cassimiro, Arriscado Nunes, Elsio Estanque e Maria Ioannes Baganha , aos professores visitantes e aos colegas Vilma, Maria Joo, Leonel, Lvia, Tnia , Larissa, Humberto e, especialmente pelos meus companheiros Clves, nio e Carlos, pela convivncia respeitosa e construtiva. Agradeo ainda a minha amiga Vera pela disponibilidade em me ajudar em vrios momentos em que precisei. Gostaria ainda de deixar meu agradecimento Profa. Dra. Edir Pina, pelo material concedido, e Prof. Slvia Melhorana, pelo auxlio metodolgico. Obrigado a todos vocs, amigos. Agradeo ainda ao meu tio Elias Brandt, pela ajuda sempre presente.

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Dedico este trabalho:

A Deus, que, apesar de minhas tristezas e questionamentos em relao aos Teus caminhos, sei que sempre estivestes comigo e que foste Tu que me levaste concretizao deste sonho. Muito Obrigado.

A minha amada, pelo seu companheirismo, amizade e todo amor que revigora a minha esperana em dias felizes. Voc me traz felicidade plena todos os dias quando acordo e vejo o seu rosto, antes mesmo de ver o nascer do sol. A minha me, pela dificuldade que teve na vida, mas nunca me deixou faltar amor, perseverana e, acima de tudo, garra para poder me dar o que ela no pde ter. Ao meu pai Alzir Noll, pela presena sempre constante na minha vida. A minha sempre amada irm, Liara Noll, pela alegria que me deste quando nasceste e, principalmente, pelo ponto de apoio que foste quando mais precisei.

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NDICE INTRODUO..........................................................................................................................................08 CCAAPPTTUULLOO 11:: AA FFOORRMMAAOO DDOO MMOODDEERRNNOO CCOONNCCEEIITTOO DDEE DDIIRREEIITTOOSS HHUUMMAANNOOSS AA PPAARRTTIIRR DDOO PPAARRAADDIIGGMMAA DDOO EESSTTAADDOO MMOODDEERRNNOO 1.1 A formao do Estado Moderno...........................................................................................................11 1.1.1 O Estado Moderno e o conceito de Estado Soberano.......................................................................35 1.1.2 O Estado Moderno e a Esfera Poltica...............................................................................................41 1.1.3 Thomas Hobbes e o Leviat: O fundamento do Estado Absolutista..................................................47 1.2 O Paradigma do Estado a partir da Paz de Vestflia: A problemtica da ordem internacional.............53 1.3 A formao do moderno conceito de Direitos Humanos: Uma anlise a partir das bases ideolgicas e polticas do paradigma do Estado Liberal ...................................................................................................69 CCAAPPTTUULLOO 22:: PPRROOBBLLEEMMAASS CCOONNTTEEMMPPOORRNNEEOOSS DDOOSS DDIIRREEIITTOOSS HHUUMMAANNOOSS:: UUMMAA DDIISSCCUUSSSSOO AA PPAARRTTIIRR DDOO CCOONNCCEEIITTOO DDEE DDIIRREEIITTOOSS HHUUMMAANNOOSS UUNNIIVVEERRSSAAIISS 2.1 A Sociedade Internacional e o novo paradigma da Governao Global: The Global Governance.....81 2.2 A ONU e o idealismo da paz e segurana internacional.......................................................................88 2.3 A construo dos Direitos Humanos no plano internacional.................................................................95 2. 4 A Interveno Humanitria e o novo conceito de segurana e paz internacional (?)........................106 2.5 A Interveno Humanitria e o princpio da no interveno nas Relaes Internacionais: seus desdobramentos tericos e polticos............................................................................... .........................110 2.6 A Interveno Humanitria e a legitimidade nas Relaes Internacionais: uma abordagem realista dos novos critrios de tica e justia no ps-guerra fria...................................................................................116 2.7 As verdades duradouras......................................................................................................................120 2.8 Uma reflexo crtica do modelo de Governao Global......................................................................124 2.8.1 Quem determina a Governao Global dos Direitos Humanos?......................................................124 2.8.2 Uma anlise (neo)realista da Governo Global dos Direitos Humanos..........................................128 2.8.3 O modelo de racionalidade ocidental: uma crtica ao conceito ocidental de Direitos Humanos a partir da Sociologia das Ausncias, de Boaventura de Sousa Santos...............................................................142 2.8.4 O Estado Moderno e a governao global dos direitos humanos na era da globalizao neoliberal: os paradoxos da governao global ..... ...................................................................................................150

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CAPTULO 3: A GLOBALIZAO CONTRA-HEGEMNICA E A INTERCULTURALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS: UMA ANLISE DO CASO INDGENA NO BRASIL 3.1 Os horizontes reflexivos da globalizao.............................................................................................157 3.2 Um conceito intercultural de direitos humanos....................................................................................166 3.3 a interculturalidade e o direito humano autodeterminao dos povos..............................................173 3.4 A inerculturalidade dos direitos humanos e a problemtica do universalismo e do relativismo cultural.......................................................................................................................................................180 3.5 A teoria do multiculturalismo e a realidade intercultural dos direitos humanos: da igualdade diferena....................................................................................................................................................191 3.5.1 O liberalismo poltico e a crtica ao multiculturalismo: da diversidade e igualdade para a intolerncia cultural.......................................................................................................................................................193 3.5.2 Os referenciais emancipatrios do multiculturalismo........................................................................198 3.6 A tica e os direitos humanos: uma discusso filosfica necessria para a questo da interculturalidade dos direitos humanos....................................................................................................210 3.7 Os Direitos Humanos: uma conquista poltica e filosfica...................................................................216 3.8 A interculturalidade e o princpio da dignidade humana: uma abordagem a partir dos aportes filosficos do direito natural.......................................................................................................................220 3.9 A interculturalidade dos direitos humanos e a teoria democrtica.....................................................235 3.10 Os direitos interculturais dos povos indgenas: uma anlise do caso brasileiro...............................246 3.10.1 Formas contra-hegemnicas de luta pelo direito autodeterminao do povo indgena brasileiro....................................................................................................................................................258

CAPTULO 4: AA PPRROOBBLLEEMMTTIICCAA PPOOLLTTIICCAA DDOOSS DDIIRREEIITTOOSS HHUUMMAANNOOSS:: UUMMAA DDIISSCCUUSSSSOO AA PPAARRTTIIRR DDAA DDEEMMOOCCRRAACCIIAA CCOONNTTRRAA--HHEEGGEEMMNNIICCAA 4.1 O enfrentamento das questes democrticas como pressuposto para uma (nova) teoria dos direitos humanos....................................................................................................................................................262 4.2 Os dilemas da democracia: velhos e novos paradigmas na teoria democrtica.................................268 4.3 A problematizao da teoria democrtica hegemnica.......................................................................282 4.4 Os paradoxos da teoria poltica hegemnica.......................................................................................297 4.5 Os princpios da igualdade e liberdade a partir dos critrios da (justia) democrtica........................309 4.6 Uma anlise poltica das democracias latino americanas...................................................................313 4.7 Os pases latino- americanos e o (no) estado de direito democrtico .............................................317

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4.8 O Estado brasileiro e o (no) desenvolvimento dos valores democraticos.........................................324 4.9 A crise da cincia jurdica liberal frente efetivao dos novos direitos coletivos: abordagens tericas sobre os direitos humanos a partir do paradigma do pluralismo jurdico...................................................327 4.9.1 O pluralismo jurdico e o novo marco de efetivao dos direitos humanos......................................337 4.9.2 Da teorizao prtica: maneiras de efetivao do pluralismo jurdico...........................................352 4.10 As sociedades perifricas e os novos sujeitos coletivos: as alternativas para a instituio do pluralismo democrtico e s prticas plurais participativas. O caso do MST.......................................356 4.10.1 O MST e a efetivao da nova ordem constitucional democrtica no Brasil..................................370 CAPTULO 05: ASPIRAO CONTRA-HEGEMNICA NA CONCEPCO E PRTICA DOS DIREITOS HUMANOS: UM ESTUDO DE CASO A PARTIR DAS PRTICAS DO POVO INDGENA BORORO E DO MST

Primeira Parte: do percurso metodolgico

5.1. Metodologia .......................................................................................................................................395 5.1.2 Caracterizao do estudo de caso...................................................................................................396 5.1.3 Etapas da pesquisa..........................................................................................................................398 5.1.4 Perfil da amostra ..............................................................................................................................398 5.1.5 Instrumentos para coleta de dados: levantamento bibliogrfico e anlise documental....................399 5.1.6 Aplicao de questionrios e realizao das entrevistas.................................................................400

Segunda Parte: Estudo de caso sobre o conflito do povo indgena Bororo e o Poder Pblico do Estado de Mato Grosso

5.2 O povo indgena Bororo e o contraposto entre violaes de direitos humanos e resistncias: um estudo de caso sobre prticas contra-hegmonicas no Estado do Mato Grosso......................................401

Parte I contexto e histria do povo bororo

Histria da nao Bororo...........................................................................................................................401 Dispora: Breve Relato..............................................................................................................................402 O povo Bororo e sua Relao com o Territrio.........................................................................................407 Os Bororos Orientais e contexto regional: Sculos XVIII e XIX................................................................412

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Parte II o olhar sobre o conflito

O Municpio de Poxoru e seus Distritos...................................................................................................420 Histria do esbullho da terra: o Distrito de So Joo de Jarudri..............................................................421 Jarudri Bororo.........................................................................................................................................424 Luta pela terra............................................................................................................................................427 Processo 3408/79......................................................................................................................................428 Processo 1209/81......................................................................................................................................430 Processo 5051/83......................................................................................................................................432 Processo 8862/98......................................................................................................................................433 Terceira Parte: Estudo de caso sobre o conflito entre o MST e o Poder Judicirio no Estado

da Bahia 5.3 O MST e as prticas sociais contra-hegemnicas na busca pela redefinio do conceito de direitos humanos: um estudo de caso....................................................................................................................439 5.3.1 O processo histrico de excluso a partir do direito de propriedade................................................439 5.3.2 A violncia no campo: entre a violncia tradicional e a violncia simblica.....................................443 5.3.3 O conflito judicial entre o MST e o Poder Judicirio: suas consequncias jurdicas e polticas.......447 CONCLUSO ..............................................................................................................................469 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................................472 ANEXOS......................................................................................................................................520

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INTRODUO A presente tese de doutoramento tem por objetivo estudar a problemtica contempornea dos direitos humanos a partir do referencial terico proposto por Boaventura, denominado de Globalizao contra-hegemnica. Para tanto, vrios paradigmas foram confrontados com o objetivo de traar um panorama dos grandes enfrentamentos epistemolgicos pelos quais perpassam os estudos tericos no mbito da cidadania contempornea. Traados tais enfrentamentos o nosso interesse centrou-se no estudo das prticas empricas no mbito dos movimentos sociais, sendo que no presente trabalho dois movimentos foram estudados. Com isso, tentou-se verificar se tais movimentos estabelecem prticas contra-hegemnicas no mbito dos direitos humanos. claro que em torno desta questo fundamental centraram-se outras: existe um processo de deslegitimao no Estado contemporneo? possvel afirmar que o processo histrico de constituio do Estado capitalista e da cidadania liberal-individualista apenas contribuiu para um processo histrico-poltico de excluso? Tais prticas contra-hegemnicas de atores sociais subalternos tm contribudo para a conceitualizao de uma outra cidadania e, portanto, para o prprio aprofundamento do conceito de direitos humanos? Em relao ao Estado brasileiro, possvel afirmar que se mantm uma profunda deslegitimao das instituies polticas e jurdicas frente ao processo histrico de acumulao capitalista, tornando uma letra morta os dispositivos constitucionais que aprofundam a efetividade da cidadania? De que forma os movimentos sociais subalternos, que, em nosso caso, se concentram no povo indgena Bororo e no MST, contribuem para tal discusso e para a formao de uma forma contra-hegemnica dos direitos humanos a partir de sua prtica cotidiana? Para tal enfrentamento, o presente trabalho encontra-se estruturado em cinco captulos.

No captulo primeiro, intitulado A ffoorrmmaaoo ddoo mmooddeerrnnoo ccoonncceeiittoo ddee ddiirreeiittooss hhuummaannooss aa ppaarrttiirr ddoo ppaarraaddiiggmmaa ddoo EEssttaaddoo MMooddeerrnnoo,, ttrrss ggrraannddeess eeiixxooss nnoorrtteeaarraamm aass ddiissccuusssseess.. PPrriimmeeiirraammeennttee,, ffooii aabboorrddaaddoo oo ssuurrggiimmeennttoo ddoo mmooddeerrnnoo ppaarraaddiiggmmaa ddoo EEssttaaddoo,, aa ppaarrttiirr ddooss aappoorrtteess ddoo ccaappiittaalliissmmoo mmooddeerrnnoo.. Destacam-se, neste captulo, os fundamentos polticos e filosficos sobre o Estado Moderno. Baseado nas linhagens tericas provenientes dos pensamentos de Jean Bodin, Thomas Hobbes e Nicolau Maquiavel, procurou-se analisar as causas da fixao filosfica e poltica da idia de poder centralizado, o que foi importante para a concepo do Estado Moderno. Alm do mais, dois outros pontos foram abordados. Primeiramente a problemtica da ordem internacional a partir do paradigma da Paz de Vestflia, centrada nos paradigmas do idealismo e do realismo poltico e, por ltimo, o surgimento do moderno conceito de direitos humanos a partir das bases ideolgicas do liberalismo poltico e, portanto, do Estado capitalista.

O captulo segundo, intitulado Prroobblleemmaass ccoonntteemmppoorrnneeooss ddooss ddiirreeiittooss hhuummaannooss:: uummaa ddiissccuussssoo aa ppaarrttiirr ddoo ccoonncceeiittoo ddee ddiirreeiittooss hhuummaannooss uunniivveerrssaaiiss,, aabboorrddoouu as mudanas ocorridas no modelo de Estado Westphaliano. Para isto, est organizada uma relao entre ele e o fenmeno da Globalizao. Coloca-se neste item, a natureza dos processos de globalizao, que, dentre outras coisas, modificam substancialmente os cnones da ordem Westphaliana, principalmente aquele em que se acreditava que o Estado era o nico sujeito do Direito Internacional. O fenmeno da globalizao trouxe

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para a arena da poltica internacional a fora das estruturas supranacionais, das grandes corporaes, das organizaes no-governamentais, entre outros atores. Esta nova realidade transformou os valores Westphalianos, dado o reconhecimento dos atores no-estatais como sujeitos do Direito Internacional. Alm do mais, buscou-se analisar um dos principais efeitos do sistema ps-vestfaliano, qual seja, a universalizao e juridicizao dos direitos humanos. No entanto, tal categorizao universal dos direitos humanos trouxe grandes contradies epistemolgicas, que se podem denominar em dois grandes eixos: a problemtica da universalizao e juridicizao dos direitos humanos a partir da ideologia da governao global que definiu padres mnimos de direitos, tidos, portanto, como globais, instituindo, a partir disto, um novo conceito de paz e segurana internacional (base, portanto, para o conceito de interveno humanitria); e a questo da interculturalidade e multiculturalidade dos direitos humanos e sua relao com o conceito de democracia multicultral. Portanto, neste captulo buscamos fazer uma crtica aos principais fundamentos epistemolgicos da governao global e, tambm, ao moderno conceito de direitos universais, crtica esta centrada no conceito de sociologia das ausncias, proposto por Boaventura de Sousa Santos.

O captulo terceiro, o qual denominamos A globalizao contra-hegemnica e a

interculturalidade dos direitos humanos: uma anlise do caso indgena no Brasil, buscamos enfrentar os problemas relacionados interculturalidade dos direitos humanos e sua relao com a democracia. Para tanto, partimos da anlise dos principais problemas incutidos tanto nos conceitos de direitos interculturais, como, tambm, de direitos universais. Analisamos, para tanto, os referenciais tericos do multiculturalismo e a crtica feita a tal paradigma pelo liberalismo poltico, discutindo, a partir disto, os referenciais tericos do princpio da dignidade humana a partir do paradigma do direito natural de matriz kantiana. Neste item, buscamos, tambm, fazer uma anlise da teoria democrtica a partir do conceito de interculturalidade dos direitos humanos e, por ltimo, a partir das discusses sobre o direito autodeterminao dos povos, analisamos o caso brasileiro no que diz respeito aos direitos indgenas. Neste captulo especfico, o nosso referencial terico foi proposto pelos horizontes reflexivos da globalizao, que possibilitaram o que Boaventura chama de Globalizao Contra-Hegemnica.

O quarto captulo foi o enfrentamento das questes polticas dos direitos humanos. Intitulado tal captulo de AA pprroobblleemmttiiccaa ppoollttiiccaa ddooss ddiirreeiittooss hhuummaannooss:: uummaa ddiissccuussssoo aa ppaarrttiirr ddaa ddeemmooccrraacciiaa ccoonnttrraa--hheeggeemmnniiccaa,, ttooddaa nnoossssaa ddiissccuussssoo ffiiccoouu nnooss aappoorrtteess ddoo qquuee BBooaavveennttuurraa cchhaammaa ddee ddeemmooccrraacciiaa rraaddiiccaall oouu ccoonnttrraa--hheeggeemmnniiccaa.. PPaarraa iissssoo,, ddiissccuuttiimmooss oo eessggoottaammeennttoo eeppiisstteemmoollggiiccoo ddoo mmooddeerrnnoo ccoonncceeiittoo ddee ddeemmooccrraacciiaa lliibbeerraall,, jjuunnttaammeennttee ccoomm oo eessggoottaammeennttoo ddaa cciinncciiaa jjuurrddiiccaa lliibbeerraall,, aa ppaarrttiirr ddooss nnoovvooss ddiirreeiittooss nnooss ppaasseess ppeerriiffrriiccooss.. PPoorr iissssoo,, ttrraaaammooss ooss pprriinncciippaaiiss rreeffeerreenncciiaaiiss tteerriiccooss ddaa ddeemmooccrraacciiaa hheeggeemmnniiccaa,, cceennttrraaddoo,, pprriinncciippaallmmeennttee,, eemm aauuttoorreess ccoommoo SScchhuummppeetteerr,, DDoowwnnss,, BBbbbbiioo,, WWeebbbbeerr ee DDaahhll.. AAllmm ddiissssoo,, bbuussccaammooss,, aa ppaarrttiirr ddoo eessggoottaammeennttoo ddaa cciinncciiaa jjuurrddiiccaa hheeggeemmnniiccaa,, ddiissccuuttiirr ooss aappoorrtteess ddee rreeccoonnssttrruuoo ddooss ddiirreeiittooss hhuummaannooss nnoo mmbbiittoo ddaa eeffeettiivviiddaaddee,, ppaarrttiinnddoo ddoo ppaarraaddiiggmmaa ddoo pplluurraalliissmmoo ppoollttiiccoo,, ppaarraa,, ppoorr llttiimmoo,, aannaalliissaarrmmooss oo ppaappeell ddooss mmoovviimmeennttooss ssoocciiaaiiss ccoommoo aattoorreess eemmaanncciippaattrriiooss ee,, eessppeecciiffiiccaammeennttee,, aannaalliissaannddoo oo ccaassoo bbrraassiilleeiirroo aa ppaarrttiirr ddoo MMoovviimmeennttoo ddooss SSeemm TTeerrrraa ee ssuuaa rreellaaoo ccoomm oo EEssttaaddoo DDeemmooccrrttiiccoo ddee DDiirreeiittoo.. No ltimo captulo, intitulado Aspirao contra-hegemnica na concepo e prtica dos direitos humanos: um estudo de caso a partir das prticas do povo indgena bororo e do MST, a

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nossa discusso centrou-se no estudo de caso, abordando trs momentos distintos: na primeira parte do captulo abordamos a metodologia da pesquisa, ou seja, fizemos uma construo metodolgica de como os questionamentos foram enfrentados; j na segunda parte do captulo, o nosso enfoque centrou-se no estudo de caso envolvendo o povo indgena Bororo e o poder pblico do Mato Grosso; e, por ltimo, na terceira parte do captulo quinto, o nosso enfoque foi no estudo de caso envolvendo o MST e poder judicirio do Estado da Bahia. Em ltima anlise, a proposta do presente trabalho de pesquisa demonstrar tanto os referenciais tericos que refletem na crise de alguns paradigmas no que diz respeito aos direitos humanos, como, tambm, trazer disucsso novas formas de reconstruo dos mecanismos emancipatrios do moderno conceito de cidadania a partir de conceitos e paradigmas contra-hegemnicos, utilizando-se, como referenciais, o conceito proposto por Boaventura, de Globalizao Contra-Hegemnica, sociologia das ausncias, bem como a partir do que Gramsci denominou de filosofia da prxis.

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CCAAPPTTUULLOO 11 AA FFOORRMMAAOO DDOO MMOODDEERRNNOO CCOONNCCEEIITTOO DDEE DDIIRREEIITTOOSS HHUUMMAANNOOSS AA PPAARRTTIIRR

DDOO PPAARRAADDIIGGMMAA DDOO EESSTTAADDOO MMOODDEERRNNOO

Dois elementos, portanto, podem ser descritos como fatores que contriburam e impulsionaram o surgimento do Estado centralizado. O primeiro deles foi a nova forma de economia que surgiu economia de mercado capitalista que instituiu outro modo de pensar e um novo indivduo mais individualista e racional. Separa-se a mentalidade que at ento predominava na sociedade medieval, voltada totalmente para os ensinamentos religiosos e espirituais. Isso quer dizer, em outras palavras, que a ideologia capitalista determinou tanto o paradigma do Estado em seu primeiro vis (absolutista) como instituiu as mudanas sociais necessrias para a formao do vnculo jurdico conhecido pela modernidade ocidental como cidadania. (Tarso Rodrigues)

1.1 A FORMAO DO ESTADO MODERNO Para podermos entender o que h no presente, necessrio faz-se olharmos para o passado. O distanciamento do homem e, principalmente, do conhecimento cientfico em relao s suas razes histricas tem levado a uma profunda crise ou mal-estar social (Franco Jnior, 2003, p. 171), por isso, (re)desperta-se a necessidade urgente de voltarmos nossas atenes para a histria. No caso da civilizao ocidental, no difcil identificar qual o momento histrico de nossas atenes: a Idade Mdia. Nas palavras de Franco Jnior (2003, p. 171): De certa forma, a crise da civilizao ocidental deve-se ao descompasso entre o externo (contemporneo) e o interno (medieval). uma excessiva valorizao do primeiro em detrimento do segundo. uma espcie de esquizofrenia coletiva e social. Enfim, conhecer a Idade Mdia conhecer melhor os sculos XX e XXI, visto que, como afirma Bedin (2001, p. 31), o perodo medieval foi um momento histrico importante para o desenvolvimento das relaes internacionais, pois foi atravs dele que surgiu o seu principal ator: o Estado Moderno e, a partir deste paradigma, deu-se, tambm, o surgimento do moderno conceito de direitos humanos.

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No podemos esquecer que grande parte da herana ocidental est diretamente ligada herana medieval. O patrimnio lingstico ocidental quase todo medieval; o patrimnio poltico do ocidente tambm proveniente boa parte da Idade Mdia;1 os valores sociais, como o individualismo, a valorizao da pessoa em si, independente de sua colocao nas hierarquias social, econmica, poltica ou cultural vieram tambm da herana do medievo.2 Encontramos ainda o patrimnio cultural,3 intelectual,4 cientfico5 e psicolgico6 ocidental diretamente ligado ao perodo da Idade Mdia. Portanto, conhec-la conhecer a ns mesmos. O Estado7, como forma de poder centralizado, uma experincia do mundo moderno. Durante a Idade Mdia8, no se teve uma forma de poder central. No perodo medieval9, o que existiu foi a fragmentao dos poderes, em reinos e feudos. (Bolzan e Streck, 2000, p.23). 1 Ensina Franco Jnior (2003, p. 160) que, diferentemente do que quase sempre se pensa, a democracia ocidental em maior parte medieval do que de origem grega. A democracia grega era produto de pequenas cidades-estados de reduzida popupalo no exerccio do direito cidadania o que permitia uma participao direta no processo poltico-decisrio. Ao contrrio, os Estados Nacionais contemporneos, com uma populao civil muito maior, baseiam-se no esquema contratual e representativo que surgiu efetivamente com as monarquias feudais. A partir desta idia de contrato social, o poder do rei era limitado, prevalecendo-se a idia de que ele deveria governar em nome do povo. Desta forma, com este princpio juristas medievais, ao recuperar e interpretar o Direito Romano a partir do sculo XII destacaram dele o princpio (da poca republicana de Roma)segundo o qual o povo a fonte da autoridade pblica. 2 Outra herana social deixada pela Idade Mdia o cumprimento feito com a mo direita estendida apertando a outra mo direita. Este era uma forma de estabelecer a paz social do perodo feudal, quando se demonstrava que a pessoa qual se prestava o presente gesto possua a boa vontade no estabelecimento de uma relao socivel. 3 Franco Junior (2003, p. 163) destaca alguns deste costumes culturais: cala comprida (sculo V), ferradura em animais (sculo X), colher (sculo XI), lcool (sculo XI), camisa com boto (sculo XII), culos (sculo XII), carrinho-de-mo, ferro fundido, luneta, serra hidrulica, macaco-elevador, espelho de vidro (todos do sculo XIII) entre outros. 4 Entre outros, fazem parte as universidades, a pedagogia, a concesso de titulos (submetida a uma banca examinadora) a concesso de exerccio profissional, bem como de bolsas examinadoras. 5 Na base do conhecimento cientfico, esta a viso racionalista do universo, produto da viso e concepo crist sobre Deus, presente no perodo medieval. 6 No sculo V, com Santo Agostinho surge o conceito de pessoa, ntimo, bem como do amor enquanto relacionamento igualitrio, fsico e espiritual entre duas pessoas. 7 No que diz respeito ao conceito de Estado, como afirma Dallari (2001, p. 115), impossvel encontrar um denominador comum que satisfaa todas as correntes doutrinrias. Assim, para Duguit o Estado visto como uma fora material irresistvel, limitada e regulada pelo Direito; j para Heller, o conceito de Estado parte das premissas de unidade e dominao, o que segue nas linhas de Burdeau, para quem o Estado a institucionalizao do poder. Porm, para outros, o conceito de Estado, ao invs de ter uma conotao poltica, abrange o vis jurdico. Desta forma, para autores como Ranelleti, Jellinek e Del Vechio, o Estado a unidade de um sistema jurdico, apontando para esta definio a preponderncia do fator jurdico. (Dallari, 2001, p. 117). Para Weber (1979, p. 09), o Estado s pode ser definido sociologicamente com referncia ao seu meio especfico, a coao fsica, e no atravs de seus fins, que podem ser os mais diversos existentes. Assim, o Estado Moderno a comunidade humana que, dentro de um determinado territrio (o territrio elemento definidor), reclama (com xito) para si o monoplio da violncia fsica legtima. especfico de nosso tempo que a todas as outras associaes e indivduos se concedido o direito violncia fsica na medida em que o Estado permite. O Estado a nica fonte de direito violncia. Para Dallari (2001, p. 118), o Estado a ordem jurdica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado territrio. Porm, como afirma Bobbio (1997, p. 65), a palavra Estado se imps atravs da difuso e pelo prestgio do Prncipe de Maquiavel. 8 Por perodo de Idade Mdia compreende-se o perodo histrico entre a queda do Imprio Romano, no sculo V, e o surgimento do Renascimento, que ocorre durante o sculo XV (Bedin, 2001, p. 31), (Oliveira apud Bedin, p. V). 9 Algumas formas estatais pr-modernas podem ser destacadas do perodo medieval (Bolzan e Streck, 2000, p. 20), (Dallari, 2001, p. 62-68) ( Menezes, 1996, p. 106-129): a) O Estado Antigo (teocrtico), onde no se diferencia o pensamento poltico

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Neste sentido, como falei noutro lugar, o Estado como forma de poder soberano e institucionalizado, ps-medieval10, vindo a surgir11 com as relaes de produo que foram institudas a partir do capitalismo12 emergente, (Rodrigues e Modelli, 2006, p 04). Como afirma Severo Rocha (1985, p. 54), o Estado, genericamente, o componente poltico de dominao em uma formao social, territorialmente demarcada, caracterizado pelo monoplio da fora fsica institucionalizada. O tipo de Estado a que estou me referindo para efetuar essa ampla caracterizao o Estado capitalista engendrado na Europa Ocidental.

Porm, no que tange ao medievo, algumas consideraes devem ser feitas, visto que este

perodo histrico produziu o principal ator das relaes internacionais O Estado13 Moderno. Alm disto, da religio, da moral, da filosofia ou de doutrinas econmicas; b) Estado grego, cujas caractersticas principais so o Estado (plis) como sociedade poltica de maior expresso, presidido por uma elite (classe poltica), com imensa participao nas decises polticas do Estado; c) O Estado romano, onde se apresenta base familiar de organizao, sendo a noo de povo restrita a determinada faixa da populao; d) O Estado medieval, onde, como afirma Dallari (2001, p. 67), conjugaram-se para a caracterizao do Estado medieval o cristianismo, as invases brbaras e o feudalismo. 10 De acordo com Bolzan e Streck (2000, p. 25), quando se fala em Estado Moderno, questiona-se se houve uma continuidade ou uma descontinuidade no processo histrico de centralizao politica do Estado. Para Bobbio (1997, p. 67 e ss) (Bolzan e Streck, 2000, p. 23 e 24), h argumentos a favor da continuidade e da descontinuidade do processo histrico. No que tange a favor da continuidade, o maior deles o processo inexorvel de concentrao do poder de comando sobre um determinado territrio bastante vasto, que acontece atravs da monopolizao de alguns servios essenciais para a manuteno da ordem externa e interna, tais como a produo do direito atravs da lei, e do aparato coercitivo necessrio aplicao do direito. (Bobbio, 1997, p. 68). No que tange descontinuidade, o nome Estado um novo nome para uma realidade nova: a realidade do Estado precisamente moderno, a ser considerado como uma forma de ordenamento to diverso dos ordenamentos precedenes que no podia mais ser chamado com os antigos nomes. Assim, diz o mestre italiano, o nome Estado deve ser usado com cautela para as organizaes polticas existentes antes do novo ordenamento centralizador, institucionalizado, denominado por Maquiavel de Estado. (Bolzan e Streck, 2000, p. 25). 11 De acordo com Pallieri, o nascimento do Estado Moderno se deu concretamente e com preciso no ano de 1648, ano pelo qual foi assinada a Paz de Westflia. Esta, que muitos autores indicam como o momento culminante entre a separao entre o Estado Medieval e o Estado Moderno, foi consubstanciada em dois tratados assinados nas cidades Westfalinas de Munster e Onsbruck, onde se fixaram atravs destes tratados, os limites territoriais resultantes das guerras religiosas, principalmente da guerra dos Trinta Anos, movida pela Frana e seus aliados contra a Alemanha. A Frana, governada pelo Rei Lus XIV consolidou por aqueles tratados inmeras aquisies territoriais. A Alemanha beneficiou-se, entretanto, como todos os demais Estados, pelo reconhecimento de limites dentro dos quais teria poder soberano. (Dallari, 2001, p. 53). Sobre a questo dos Tratados de Westflia, ver tambm (Bedin, 2001). 12 Esa nova relao de produo, surgida a partir do sculo XI e que se generaliza nos sculos XIV e XV, faz com que haja um crescimento significante dos centros urbanos mediante o flerescimento do comrcio. Este novo modo de produo capitalista d origem a uma nova classe: a classe bruguesa. 13 Sob o ponto de vista da poca do aparecimento do Estado, trs teorias podem ser citadas: (Dallari, 2001, p. 52 e ss). a) Para muitos autores, o Estado, assim como a prpria sociedade, sempre existiram, pois, desde que o homem vive na terra, acha-se integrado a uma organizao social; b) Uma segunda ordem admite que a sociedade humana sempre existiu, sem o Estado durante certo perodo; c) A terceira teoria admite que o conceito de Estado um conceito histrico concreto, visto que surge com a prtica da soberania, o que ocorre no sculo XVII. Ainda, segundo Menezes (1996, p. 47), quanto ao surgimento do Estado, pode-se acresentar a teoria natural pela qual o Estado se formou naturalmente, e as teorias contratuais, mediante as quais o Estado nasceu pela vontade dos homens, destacando-se, entre todos, Hobbes, Locke e Rousseau. A respeito ver tambm (Bedin, 2002, p. 30 e 31), (Bobbio e Bovero, 1996, p. 75 e ss). Para Bobbio (1997, p. 58), dentro de uma concepo sociolgica a respeito do surgimento do Estado, pode-se destacar duas teorias: a teoria marxista e a teoria funcionalista. A concepo marxista da sociedade distingue em cada sociedade histrica, ao menos a partir de uma fase do desenvolvimento econmico, dois momentos. No que diz respeito ao Estado, pertence ao momento da caracterizao de determinada poca, que compreende as relaes econmicas forma de produo capitalista. A concepo funcionalista que descende de

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apesar das dificuldades em se determinar uma data14 precisa para o surgimento do Estado, pode-se perceber que esse processo se iniciou na Baixa Idade Mdia, entre os sculos XIII e XIV e foi concludo nos sculos XVI e XVII. (Bedin, 2000, p. 107), (Rodrigues e Modelli, 2006. p. 05).

A Idade Mdia, como perodo histrico, foi primeiramente um perodo de total descentralizao e fragmentao do poder. Para Bolzan e Streck (2000, p. 21), as principais caractersticas do medievo foram a permanente instabilidade poltica, econmica e social; a distino e choque entre o poder espiritual e poder temporal, a fragmentao do poder mediante a infinita multiplicao de centros internos de poder poltico, e relaes de dependncia pessoal, hierarquia e privilgios. Ensina Dallari (2001, p. 70) que o perodo medieval tinha uma pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontvel multiplicidade de ordens jurdicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesistica, o direito das monarquias inferiores, um direito comunal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenaes dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Mdia pelas corporaes de ofcios. Esse quadro, como fcil de compreender, era a causa e conseqncia de uma permanente instabilidade poltica, econmica e social, gerando uma intensa necessidade de ordem e de autoridade, que seria o germe de criao do Estado Moderno. Para Bedin, (2001, p. 32), no deve ater-se somente questo da descentralizao poltico-econmica como forma de caracterizao deste perodo histrico que antecedeu a formao do Estado Moderno. Assim, para o autor este perodo histrico compreende cinco caractersticas bsicas: a) perodo bastante amplo, que envolve mais ou menos mil anos; b) perodo histrico de transio entre o mundo moderno e o mundo antigo; c) perodo histrico marcado por formas de sociabilidade predominantemente agrrias ou rurais; d) perodo sobre hegemonia do poder secular; e) e, por ltimo, um perodo complexo, que pode ser subdividido em vrios outros perodos de menor durao. 15 A primeira caracterstica da Idade Mdia que se caracteriza por um perodo histrico que abrange mais ou menos mil anos, porm sem uma data definida para seu incio e fim (Franco Jnior, 2003, p. 15). Costuma-se, no entanto, como afirma Bedin (2003, p. 33) determinar o seu incio no sculo V d.C. chegando ao seu trmino no sculo XV. Porm, mesmo com referncias dos estudos cientficos, no se possui um consenso sobre o incio e fim deste perodo. Esta impreciso bem sintetizada por Franco Jnior (2003, p. 15) (Bedin, 2001, p. 33) que afirma:

Parsons concebe o sistema global em seu conjunto como diferenciado em quatro subsistemas, caracterizados igualmente pelas funes essenciais que cada um deles desempenha para a conservao do equilibrio social, fazendo, assim, que sejam reciprocamente interdependentes. 14 Como afirma Bolzan e Streck (2000, p. 22), desnecessrio referir-se a uma data precisa delimitando a passagem do feudalismo (ou da forma estatal medieval) para o capitalismo, onde comea a surgir o Estado Moderno em sua primeira verso (Absolutista). 15 Ainda, como afirma Bedin (2001, p. 52), neste perodo houve uma profunda transformao da mentalidade do homem, que desenvolveu uma nova maneira de relacionar-se com Deus, uma nova concepo de homen no universo e uma nova autopercepo de si prprio. Ver tambm (Franco Jnior 2002b).

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Trata-se de um perodo da histria europia de cerca de um milnio, ainda que suas balizas cronolgicas continuem sendo discutveis. Seguindo uma perspectiva muito particularista (s vezes poltica, s vezes religiosa, s vezes econmica), j se falou, dentre outras datas, em 330 (reconhecimento da liberdade de culto aos cristos), em 392 (oficializao do Cristianismo), em 476 (deposio do ltimo imperador romano), e em 698 (conquista muulmana de Cartago) como ponto de partida da Idade Mdia. Para seu trmino j se pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492 (descoberta da Amrica) e 1517 (incio da Reforma Protestante).

No entanto, como ressalta Bedin (2001, p. 34), o que podemos observar, mesmo entre desencontros de datas, que o perodo medieval possuiu alguns contornos delimitados, visto que o perodo histrico existente entre o fim do Imprio Romano e o surgimento do Renascimento.16 A segunda caracterstica do perodo medieval que foi ele considerado um momento de transio entre a Idade Antiga e a Idade Moderna. Na verdade, a Idade Mdia constitui, para a prpria igreja, uma etapa transitria na sua evoluo histrica, uma etapa que pertence irrevogavelmente ao passado e, por isso, no pode ser restaurada. (Zilles, 1993, p. 15).

A idade Mdia vista, de acordo com Bedin (2001, p. 37), como um tempo de inflexo e de interrupo da histria da humanidade. Talvez pudssemos caracteriz-la utilizando as palavras de Franco Jnior (2003, p. 13), que afirma ter sido este perodo como perodo de barbrie, ignorncia ou superstio ou ainda, como a poca de ignorncia, de embrutecimento, de subdesenvolvimento generalizado, muito embora tenha sido a nica poca de subdesenvolvimento durante a qual se construram catedrais. (Pernoud, 1989, p. 13).

Ainda, para Zilles, (1993, p. 15) em relao ao humanismo renascentista, o perodo medieval

significou a decadncia tanto das artes quanto das letras; para a teologia protestante, significou a degradao do cristianismo primitivo; e, para o iluminismo do sculo XVIII, o obscurantismo da f e a opresso da razo. Entendida como um mero intervalo cronolgico, a Idade Mdia parece uma espcie de conjunto vazio na srie das pocas histricas: nem arte, nem cincia, nem filosofia. (Zilles, 1993, p. 15). Apesar de todas estas definies do perodo medieval, o mais importante que, com suas caractersticas prprias (tanto do ponto de vista social como econmico e poltico), o perodo da Idade Mdia serviu de preparao e antecipao, sob muitos aspectos, da Idade Moderna.

A terceira caracterstica fundamental do perodo medieval que ele foi constitudo basicamente por formas de sociabilidade rurais ou agrrias. (Bedin, 2001, p. 39). Ao contrrio do mundo Antigo e Moderno, a Idade Mdia baseou-se essencialmente na ligao entre o homem e o solo. (Pernoud, 1989, p. 79). Neste perodo de vida agrcola, tinha-se uma total descomercializao dos processos econmicos, bem como se observava um nvel baixo de alfabetizao, sendo a leitura e a escrita monopolizada pelo

16 Deve-se lembrar que a histria um processo que na maioria das vezes possui longos perodos de transio no se podendo efetuar uma leitura simplista quanto s datas de incio e fim de um perodo histrico.

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clero e limitada ao latim. Alm do mais, a populao era extremamente desnutrida, desprovida de qualquer conforto ou segurana, o que tornava as expectativas de vida abaixo dos nveis viveis.17

Com base nestas caractersticas, pode-se afirmar que o perodo medieval possua caractersticas das sociedades primitivas principalmente por uma certa atemporalidade, no por aquilo que j se chamou a sua indiferena ao tempo, que julgo menos real que o j afirmado, mas, pela lentido da sua vida coletiva. (Anderson, 1998, p. 143). Bedin (2003, p. 40) pode constatar duas tendncias bsicas deste perodo histrico: a ruralizao da sociedade e a estagnao econmica, poltica e social, fazendo com que, com base nestes aspectos, designa-se este perodo como Idade das Trevas. De qualquer forma:

o certo que assim economicamente configurada, a Idade Mdia foi transformando os centros urbanos, at ento existentes, em verdadeiros ncleos pr-urbanos, centros de comrcio no diferenciados legalmente ds reas circundantes. Por isso muitos destes ncleos passaram a ser mais o que se poderia chamar de Wike, povoaes com apenas uma rua ao longo de uma estrada ou curso de gua ou, portus, que situavam em rios propriamente de cidades. Mas mesmo nos casos em que as cidades permaneceram como cidades italianas elas continuaram a perder terreno para o campo e a decair em riqueza e importncia. (Bedin, 2003, p. 41).

Neste sentido, o que se tem uma atomizao da vida, visto que, se tem um definhamento das cidades e centros urbanos, bem como a estagnao da sociedade medieval, o que determinou uma maior vinculao do homem propriedade rural, adquirindo o status de servo ou vassalo, e a propriedade, o de feudo. Portanto, estes laos, que vincularam os homens e a terra, determinaram as relaes centrais do perodo medieval, formando basicamente as relaes de dependncia.

Outra caracterstica marcante da Idade Mdia foi a dominao do poder secular sobre o temporal (Bedin, 2001, p. 43) (Rodrigues e Modelli, 2003, p. 19) (Franco Jnior, 2003, p. 67 e ss). Nascida nos quadros do Imprio Romano, a Igreja foi preenchendo os vazios deixados por ele com a sua queda,18 at identificar-se com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido como religio oficial. A igreja passa a ser a herdeira do Imprio Romano, pois, com a sua queda, passou ser ela a nica instituio formalmente organizada com a capacidade de produzir uma fuso do legado romano e das contribuies germnicas. Para tanto, a igreja necessitava organizar sua prpria hierarquia atravs da realizao da superviso dos ofcios religiosos, orientao quanto s questes da doutrina religiosa e combate ao paganismo.19 Para a formao e organizao desta hierarquia houve uma grande contribuio das 17 Esse cenrio foi o resultado de pelo menos trs acontecimentos fundamentais: a) colapso do Imprio Romano do Ocidente, como sistema centralizado de governo; b) deslocamento mecio de populaes devido s invases dos chamados povos brbaros; c) afastamento das principais linhas de comunicao da rea do Mediterrneo, nas relaes entre as populaes da Europa Ocidental e entre elas e as outras terras. (Bedin, 2003, p. 40) 18 O Imprio Romano teve incio no sculo I a.C e entrou em declnio no sculo IV d.C. 19 A concentrao de todas estas atividades nas mos de apenas alguns cristos era aceita com grande naturalidade por parte dos fiis, visto que tudo estava determinado no texto bblico. Cristo dera aos apstolos autoridade para expedir demnios ,

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heresias que paradoxalmente contribuam, tambm, para colocar em risco a existncia da prpria Igreja Crist. Qualquer idia ou crena que parecesse hertica era submetida apreciao do bispo local, mas as questes sobre doutrina eram debatidas nos conclios.20 No entanto, esta figura dos conclios, como ressalta Franco Jnior (2003, p. 69), no eliminava a tendncia que se fazia sentir desde os primeiros tempos da busca pela constituio de uma monarquia eclesistica. Havia, para tanto, uma fundamentao religiosa: um s Deus, uma s f, uma s igreja. Durante a Alta Idade Mdia, em virtude de seu prestgio, a Igreja constituiu-se no arcabouo natural do Imprio Carolngio e de suas pretenses imperialistas e unitrias. Comeou-se a estreitar as relaes entre Estado-Igreja, com o predomnio do primeiro. O monarca continuava a presidir os snodos, punia os bispos e regulamentava as leis eclesisticas, bem como a liturgia, intervindo, desta maneira, nas questes doutrinrias. Os bispos, por sua vez, eram nomeados pelo soberano, o que contrariava a tradio cannica. No entanto, a partir do sculo IX, inspirada no Direito Cannico e em Santo Agostinho, ganhou terreno a teoria do agostinianismo poltico, que afirmava a superioridade espiritual sobre a temporal e, em conseqncia, dos bispos sobre os monarcas. Este movimento cultural, chamado de Renascimento Carolngio (Franco Jnior, 2003, p. 73), elevara o nvel dos bispos. A Igreja passou a ser, neste sentido, o princpio integrador da Idade Mdia, bem como a instituio dominante. Alm disso, ao contrrio do Estado Romano, que estava em fragmentao, a Igreja era um organismo vigoroso e saudvel. (Perry, 1997, p 153). Tambm teve ela grande importncia poltica no que tange estruturao da vida social neste perodo histrico, tendo-se legitimado atravs do monoplio da comunicao com Deus. (Bedin, 2001, p. 45) (Franco Jnior, 2003, p. 22). Tornou-se, atravs deste vis legitimador, responsvel por todos os homens e pela distribuio da salvao, o que lhe conferiu um grande poder sobre toda a esfera social, constituindo-se na grande instituio oficial do mundo medieval. Aos poucos, a Igreja ir ocupar o espao do poder imperial, determinando e consolidando a clericalizao da sociedade. Este:

foi um movimento muito importante que se concretizou de duas formas: quantitativamente, porque a proporo de clrigos em relao ao conjunto da populao torna-se muito superior quela que existia no paganismo ou mesmo que viria a existir em outras sociedades; qualitativamente, porque o clero torna-se um grupo social diferenciado dos demais, possuidor de privilgios especiais e de grande poderio poltico-econmico. (Bedin, 2001, p. 47).

curar doenas e difundir sua doutrina. Os apstolos, por sua vez, transmitiram esse poder aos bispos, isto , aos ancios da comunidade, que, por sua vez, transmitiram esse poder aos seus auxiliares. (Franco Jnior, 2003, p. 68). 20 O primeiro deles foi celebrado em Nicia em 325 e visava posicionar-se diante do arianismo corrente para o qual Cristo, por ter sido criado pelo Pai, no era da mesma substncia Dele, sendo inferior. Houve outros conclios durante o perdo medieval: dois no sculo IV, dois no sculo V, um no sculo VI, um no sculo VII, um no sculo VIII, um no sculo IX, trs no sculo XII, trs no sculo XIII, um no sculo XIV, dois no sculo XV e dois no sculo XVI.

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O fortalecimento do papado tornou-se to efetivo que se imps, tambm, nas relaes internacionais entre os Estados Soberanos, visto que inexistia um poder soberano unitrio, funo esta que foi, de certa forma, delegada ao representante de Deus, submetendo-se, inclusive, a autoridade do rei e dos bispos sua autoridade, tornando-se um lder da sociedade feudal. No sculo XIII, portanto, a Igreja reunia todos os pressupostos para a o exerccio do poder papal sobre toda comunidade. Em relao aos clrigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funes, reconhece novas ordens religiosas. Em relao aos leigos, julga em vrios assuntos, cobra o dzimo, determina a vida sexual (casamento, abstinncias), regulamenta atividade profissional (trabalhos lcitos e ilcitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras, atitudes), estipula valores culturais. (Franco Jnior, 2003, p. 77) (Bedin, 2001, p. 47). Em suma, a Igreja passou a determinar e organizar todas as esferas da vida social do medievo, adquirindo o seu representante o papa um poder acima dos monarcas. Por ltimo, alm das quatro caractersticas analisadas, o perodo medieval foi um perodo complexo, que pode ser subdividido em perodos menores: Primeira Idade Mdia, Alta Idade Mdia, Idade Mdia Central e Baixa Idade Mdia. 21

A Primeira Idade Mdia,22 do ponto de vista demogrfico, foi uma continuidade da situao do Imprio Romano, cuja populao conhecera um claro recuo desde o sculo II. De acordo com Franco Jnior (2003, p. 19), com a crescente desorganizao do Estado Romano foram rareando as importaes de gnero alimentcios, que tinham por sculos permitido a existncia de uma grande populao urbana. Com isto, foram esvaziando-se as cidades, tendo cada regio que passar a produzir tudo aquilo de que necessitasse.

Este fenmeno aumentou, por outro lado, a insegurana, visto que bastava uma m colheita para

que aumentasse a mortalidade local. Tambm o recuo demogrfico deste perodo foi marcado pelo aumento das epidemias, que, como a malria e a varola, causaram uma enorme contingncia na mortalidade. Do ponto de vista econmico, o perodo dos sculos IV-X23 caracterizou-se, como afirma Doehaerd (apud Franco Jnior, 2003, p. 33), por uma escassez endmica.. Tinha-se uma baixa produtividade agrcola e artesanal, conseqentemente uma baixa disponibilidade de bens para consumo. Esta escassez econmica teve como ponto de partida, justamente, o recuo demogrfico iniciado no perodo da Primeira Idade Mdia.

21 No que tange subdiviso do perodo medieval, pode ser dividida em pelo menos 04 perodos: Primeira Idade Mdia, que abrange o perodo da queda do imprio de Roma (sc. V) at o incio do sculo VIII; a Alta Idade Mdia, que se estende do sculo VIII at o sculo X; a Idade Mdia Central, que abrange do sculo X at meados do sculo XIII; e a Baixa Idade Mdia, que envolve o perodo do sculo XIII at o final do sculo XIV. (Bedin, 2001, p. 49), (Martel e Hauser, 1999, p. 218). 22 No vamos nos ater ao estudo minuncioso deste perodo, bem como do perodo da Alta idade Mdia, visto que para este trabalho nos interessa a anlise do perodo da Idade Mdia Central e da Baixa Idade Mdia, que produziram os principais fatores que deram surgimento ao Estado Moderno. 23 Que abrange, com isto, a Alta Idade Mdia.

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Alm do mais, tinha-se uma enorme distncia social entre as vrias camadas, onde no topo estava a aristocracia senatorial. J as camadas mdias rurais e urbanas cada vez mais diminuam. A primeira, devido generalizao do patrociniun lao de dependncia que criava entre um campons e um proprietrio j a segunda possua dois fatores. O primeiro deles constitui-se no processo de ruralizao da sociedade romana, o segundo era determinado pelo pesado nmero de impostos determinados pelo Estado, que, como afirma Franco Jnior (2003, p. 84), cobrava para manter a prpria vida citadina. No que tange Alta Idade Mdia, primeiramente, sob o ponto de vista demogrfico, houve uma certa retomada do crescimento, conseqncia da expanso territorial crist sobre as regies pags. Contudo, permanecendo de forma desigual no tempo e no espao. Em muitos locais, ainda permanecia a fome e, com isso, uma acentuada porcentagem da mortalidade, o que demonstrava, tambm, a baixa produtividade e a deficincia econmica deste perodo histrico.

Alm do mais, as caractersticas sociais do perodo da Primeira Idade Mdia estavam tambm aqui presentes. Tanto juridicamente (separao de livres e no livres) quanto economicamente, havia uma grande linha divisria que demarcava as desigualdades. Na realidade, a sociedade estava polarizada entre os proprietrios fundirios, de um lado, e os camponeses, de outro.

Para a compreenso dos fatores que determinaram o surgimento do Estado contemporneo como forma de poder soberano e central,24 necessria se faz a anlise, principalmente, do perodo da Idade Mdia Central que abrange parte do sculo X at a segunda metade do Sculo XIII que compreende a maturidade da civilizao medieval (poca do feudalismo), e a Baixa Idade Mdia que vai das ltimas dcadas do sculo XIII at o final do sculo XIV sendo este o perodo de crise da sociedade feudal. (Bedin, 200l, p. 49).

Como ensina Severo Rocha (1985, p.74):

O nascimento do Estado Absolutista na Europa ocidental, de acordo com o estgio de aglutinao de determinados fatores em cada Estado nacional, ocorre durante o perodo de decadncia maior do feudalismo, durante os sculos XIV e XV. Trata-se de um perodo caracterizado pela superao da agricultura feudal, aparecimento de manufaturas, desenvolvimento do comrcio internacional, etc.

A Idade Mdia25 Central foi o perodo histrico no qual ocorreu a sociedade feudal26 em sentido estrito.27 Este perodo de Idade Mdia Central abrange, outrossim, mais ou menos trezentos e cinqenta

24 De acordo com Severo Rocha (1985, p. 57), dentro do pensamento jurdico o poder do Estado apresenta as seguintes caractersticas: a capacidade de organizao, a unidade e indivisibilidade do poder, o princpio da legalidde e legitimidade e a soberania. Esta vista como o poder mais alto do Estado, a qualidade do poder supremo. 25 Para uma maior anlise do perodo da Idade Mdia, ver: (Franco Jnior, 2002a), (2002b). 26 Ver tambm: (Franco Jnior, 2002a, e 2002b), (Bonavides, 2002a) (2002b), (Bolzan e Streck, 2001)

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anos da histria da humanidade e representa o momento de consolidao definitiva das macrotendncias surgidas com o fim do Imprio Romano e com a invaso dos chamados povos brbaros. Por isso, representa o momento de amadurecimento das tendncias referidas, configurando-se em uma espcie de sntese estabilizadora de sua institucionalidade, que impulsionou a consolidao definitiva da ordem social medieval, a plenitude de suas possibilidades econmicas e o desenvolvimento mais avanado de seus contornos jurdicos e polticos.

Neste sentido, a Idade Mdia Central o perodo histrico de grande estabilidade e de

florescimento dos diversos setores da sociedade, que, aps chegarem ao limite de seu desenvolvimento no final do sculo XIII, preparam, ao entrarem em crise, os primeiros passos da sociedade e do Estado Moderno. (Bedin, 2001, p. 51).

A Idade Mdia Central conheceu importantes mudanas nos elementos que tinham caracterizado a fase anterior. Em primeiro lugar houve a passagem da agricultura dominial para a senhorial. Uma segunda transformao foi o revigoramento do comrcio, possibilitado pela existncia de um excedente agrcola. O comrcio passou a desempenhar um papel central na vida do ociente medieval, mesmo que uma parcela muito pequena estivesse diretamente ligada s atividades comerciais. Mesmo assim, como afirma Franco Jnior (2003, p. 39), esse segmento social ganhava crescente importncia. Uma terceira transformao no perodo dos sculos XI a XIII foi o que Gimpel (apud Franco Jnior, 2003, p. 41) chamou de Revoluo Industrial Medieval. O ponto inicial foi o crescimento demogrfico e comercial, que justamente fomentou o desenvolvimento urbano. Com o crescimento dos centros urbanos, as duas maiores indstrias medievais foram a da construo civil e a txtil. A primeira se beneficiou tanto com o crescimento populacional, como, tambm, da prtica social ostentatria que levava o clero e a aristocracia, a construirem cada vez mais castelos, mosteiros e igrejas. Em relao indstria txtil, os maiores centros estavam localizados em Flandres, na Itlia e na Inglaterra. Por ltimo, durante a Idade Mdia Central ocorreu uma acentuada monetarizao da economia, em decorrncia da grande diversidade de espcies monetrias, cada uma circulando em uma rea restrita. Surgidas as primeiras casas bancrias, buscou-se uniformizar as moedas, facilitando os negcios entre pessoas de diferentes regies. Em suma, a Idade Mdia Central foi uma poca de mudanas, de expanso econmica, o que levou parte da historiografia por muito tempo a falar num capitalismo medieval. (Franco Jnior, 2003, p. 45). O que se deve deixar claro que, apesar deste fator de crescimento econmico, o capitalismo28 no era nem o nico sistema econmico, nem sequer o sistema que dominava o conjunto da Europa.

27 O feudalismo, nascido no sculo X, teve seu perodo clssico entre os sculos XI e XIII. Este perodo considerado o mais rico da Idade Mdia e o momento em que a sociedade feudal se apresenta fortemente fechada, agrria e fragmentada politicamente (Bedin, 2001, p. 49), (Franco Jnior, 2002a, p. 12). 28 A expresso capitalismo para este perodo histrico um pouco problemtica. Mas, como afirma Franco Jnior (2003, p. 45), contudo, adotando-se uma definio ampla de capitalismo por exemplo, sistema econmico centrado na posso privada de capital (mercadorias, mquinas, terras, dinheiro, conhecimento tcnico) empregado de maneira a se reproduzir

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Porm, apesar desta grande expanso econmica, o perodo medieval entre os sculos X e XIII determinou uma forma particular de organizao poltico e socio-econmico: o feudalismo.29 O sistema feudal, espalhou-se por toda a Europa e foi marcado, basicamente, pelo vnculo de homem a homem, pelo que a classe dos senhores feudais guerreiros designavam uma populao e um territrio, sendo que os habitantes eram obrigados a cultivar a terra para si e tambm para o senhor feudal.

Como afirma Bolzan e Streck (2001, p. 21):

Em geral prevalecia um sistema simples de cultivo chamado trs campos ideais ou materiais: um campesino cultivava uma parcela para si, outra para o seu senhor e uma terceira para repor as sementes de ambas. Os camponeses no podiam abandonar a terra. Militarmente, o senhor feudal protegia o territrio, incluindo sua populao. O senhor feudal detinha o poder econmico, o poltico, o militar, o jurdico e o ideolgico sobre seus servos. Para ampliar suas riquezas, os senhores feudais apelavam para as guerras de conquista e de matrimnios.

O feudalismo, como lao de coeso dos vnculos polticos existentes para sustentar a ordem

social, um sistema de dependncia territorial nas relaes entre homens, associado, na prtica, autoridade poltica e influncia religiosa. Os homens punham-se debaixo da proteo dos prprios, ficando, em troca, ligados ao solo e sujeitos prestao de servios. Assim faziam camponeses, guerreiros e at nobres e reis, que concediam a terra a seus servidores, mediante o cumprimento de certas obrigaes, especialmente militares. Por isto, o domnio das ideias feudais impediu maiores avanos e progressos polticos, no obstante lhes deverem as instituies modernas contingentes valiosos. (Menezes, 1996, p. 117).

Para Le Goff (1993, p. 296), o feudalismo o sistema de organizao econmica, social e

poltica baseado no vnculo de homem a homem, na qual uma classe de guerreiros especializados os senhores subordinados uns aos outros por uma hierarquia de vnculos de dependncia, domina uma massa campesina que explora a terra e lhes fornece com que viver.

Neste sentido, um homem confia-se a outro homem que escolhe para seu amo, e que aceita

entrega voluntria. O vassalo deve ao amo fidelidade, conselho, ajuda militar e material. O amo, o senhor, deve ao seu vassalo fidelidade, proteo e sustento. O sustento pode ser assegurado de diversas maneiras. Geralmente, faz-se atravs da concesso ao vassalo de uma terra, benefcio ou feudo. Com isso, rapidamente, a hierarquia entre os indivduos corresponde uma outra hierarquia, a dos direitos sobre

continuamente, ficando os desprovidos dele obrigados a vender sua fora de trabalho poderamos talvez aceitar sua existncia nos ltimos sculos da Idade Mdia. 29 Oque se deve chamar de feudalismo o conjunto de formao social dominante no Ocidente da Idade Mdia Central, com suas facetas poltica, econmica, ideolgica, institucional, social, cultural e religiosa. Em suma, uma totalidade histrica, da qual o feudo foi apenas um elemento. (Franco Jnior, 2003, p. 89)

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a terra, devida a uma fragmentao extrema dos direitos de propriedade. Por ltimo, dada a fragmentao do prprio poder pblico, existe em cada pas uma hierarquia de instncias autnomas, que exercem, em proveito, prprio poderes normalmente detidos pelo Estado. (Fourquin, 1970, p. 11).

De acordo com Bedin (2001, p. 51), o perodo da Idade Mdia Central perodo pelo qual se

desenvolveu o feudalismo como forma de organizao social teve como principais caractersticas30 o aprofundamento das relaes de dependncia, o enrijecimento das hierarquias sociais, a fragmentao do poder central e a privatizao do poder de guerra.

Sob o primeiro aspecto - relao de dependncia31- foi um fenmeno iniciado com a queda do

Imprio Romano incio da sociedade medieval e desenvolvimento do Imprio Carolngio. Estas relaes de dependncia foram a forma de proteo e garantia encontrada pelo homem para a sua sobrevivncia diante da descentralizao das organizaes polticas do medievo e da inexistncia de formas de vida urbana e de garantias de sociabilidade e relacionamento.

Portanto:

as formas polticas centralizadas e os modelos urbanos e convivncia, ao entrarem em declnio, reforaram em cada ser humano o sentimento e a necessidade de procurar um protetor, que lhes garantisse a existncia de um mnimo de tranquilidade e o alimento necessrio sobrevivncia (...) Delineadas desta forma, as relaes de dependncia passaram, aos poucos, a envolver os diversos mbitos da sociedade medivel (econmico, poltico e militar) e a percorrer todos os andares de seu edifcio social, configurando uma forma singular de sociedade: a sociedade feudal em sentido estrito. (Bedin, 2001, p. 56). E foi esta institucionalizao das relaes de dependncias que conferiram ao feudalismo a sua marca mais original. (Bloch, 1979, p. 296).

Deve ficar bem claro, como ressalta Bedin (2001, p. 57), que foi justamente sob o impacto das

relaes de dependncia que a estrutra do feudalismo, como modo de organizao social, pde nascer e evoluir, diferenciando-se das sociedades anteriores, que foram tipicamente escravocatas. A sociedade feudal foi uma sociedade vasslica e no escravocata, baseada nos las de dependncia de homem para homem.

Foi justamente atravs da institucionalizao do feudo que foram sendo estabelecidas estas

relaes de homem para homem relaes de dependncia onde se formavam obrigaes mtuas 30 Ainda como caracterstica principal, vigorou o tipo de dominao carismtica de carter pessoal, onde a relao de poder era totalmente contrria ao modelo de dominao instituido pelo Estado contemporneo no seu primeiro vis absolutista- que se tinha como uma dominao legal-racional (Bolzan e Streck, 2001, p. 23). 31 Foi justamente com a instituio do feudo, que consistia no pedao de terra concedido gratuitamente ao vassalo pelo senhor feudal para que ele pudesse produzir a sua subsistncia, que se estabeleceram as relaes de dependncia e de obrigaes vnculos entre o senhor feudal (tambm chamado de suserano) e o vassalo ( tambm denominado de servo). (Bedin, 2001, p. 57) (Franco Jnior, 2002b, p. 15).

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entre o senhor feudal e seu servo. Estabelecidas as relaes entre eles, pode-se dizer que o senhor feudal e o vassalo tornavam-se responsveis por um conjunto de obrigaes que possuam carter acentuadamente tico-moral. (Bedin, 2003, p. 59).Para Dalarri (2001, p. 69), na sociedade feudal vai ocorrer uma confuso entre o setor pblico e o privado, mediante trs institutos jurdicos: a vassalagem, o benefcio e a imunidade. Pela vassalagem os proprietrios menos poderosos colocavam-se a servio do senhor feudal, obrigado a lhes fornecer apoio nas guerras e a entregar-lhes uma contribuio pecuniria, recebendo em troca sua proteo. Em relao ao benefcio, contratado entre o senhor feudal e o chefe de famlia que no possusse patrimnio, era a este destinada uma faixa de terra para cultivar, dela extraindo o sustento de sua famlia, entregando em troca, ao senhor feudal, uma poro de sua produo.32 Porm , no era somente a produo que o vassalo entregava ao senhor feudal. Eram tambm obrigados a trabalhar:

durante trs dias da semana nas terras do senhor, deviam pagar impostos ao rei, dzimos Igreja, uma infinidade de taxas em moeda ou em produtos de suas colheitas particulares, prestar servios domsticos na casa ou castelo do senhor e nas igrejas, lutar nas guerras quando convocados pelo senhor. No bastasse tudo isso, tinham ainda de curvar-se a uma srie de obrigaes, proibies e atitudes de vassalagem em algumas regies at infames, como submeter-se ao jus primae noctis tambm conhecido como direito de pernada pelo qual o senhor da terra podia exigir relaes sexuais de toda a jovem alde de seu feudo na noite em que ela se casasse. (Trindade, 2002, p. 19)

Assim, em troca do feudo o vassalo devia o consilium (aconselhamento, a participao no tribunal senhoral) e sobretudo o auxilium, o servio militar quando requisitado pelo senhor dentro de certas condies (nmero de certos cavalheiros, tipo de equipamento, nmero de dias de convocao, etc). Alm do aspecto militar, o auxilium implicava ajuda econmica em determinadas circunstncias: pagamento de resgate do senhor caso ele fosse aprisionado, cerimnia de adubamento do filho primognito do senhor, casamento da filha primognita do senhor, partida do senhor para a cruzada. Respeitados os direitos e obrigaes recprocos, os laos feudo-vasslicos eram vitalcios. Rompidos pela morte de uma das partes, cessavam os compromissos da outra. (Franco Jnior, 2002b, p. 93). Por ltimo, mediante o instituto da imunidade, concediam-se benefcios iseno de tributos s terras concedidas aos vassalos, visto que a vassalagem era uma relao jurdica de carter pessoal, enquanto que o benefcio tinha o sentido de estabelecimento de um direito real, mas, ambos, implicando o reconhecimento do poder poltico do senhor feudal e contribuindo para que o feudo tivesse sua ordem jurdica prpria, desvinculada do Estado. (Dallari, 2001, p. 69).

32 Estabelecido o benefcio entre o chefe da famlia e o senhor feudal, este adquiria sobre o ltimo e a sua famlia o direito de vida e de morte, podendo assim estabelecer as regras de seu comportamento social privado.

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Lembra Franco Jnior (2003b, p. 92) que estas relaes entre o senhor e o servo eram estabelecidas atravs do contrato feudo-vasslico. Tratava-se de uma expresso, talvez a mais importante e conhecida dos laos de parentesco artificial que soldavam as relaes naquela sociedade de forte esprito coletivista: algum se tornava moo (vassalus) de um ancio (senio), estabecendo-se um pseudoparentesco entre pai e filho. Estes laos feudo-vasslicos eram estabelecidos mediante trs atos formais, que justamente correspondiam s necessidades recprocas e, com isso, justiticavam sua existncia. O primeiro ato era a homenagem, ou ato de um indivduo tornar-se homem de outro. O segundo era o ato de fidelidade que se fazia mediante juramento feito sobre a Bblia, selado com um beijo das partes. O terceiro era a investidura, pela qual o indivduo que se tornava senhor feudal entregava ao vassalo algum objeto que simbolizava o feudo que lhe concedia. Desta forma, estabelecidos os laos entre senhor e vassalo:

este devia o consilium (aconselhamento, a participao no tribunal senhoral) e sobretudo o auxiliun , o servio militar quando requisitado pelo senhor dentro de certas condies (nmero de cavaleiros, tipo de equipamento, nmero de dias de convocao etc.). Alm do aspecto militar, o auxiliun implicava ajuda econmica em determinadas circunstncias: pagamento de regate do senhor caso ele fosse aprisionado, cerimnia de adubamento do filho primognito do senhor, casamento da filha primognita do senhor, partida do senhor para a cruzada. Estes laos estabelecidos, deve-se lembrar, que tornavam-se vitalcios, rompendo-se pela morte de uma das partes. (Franco Jnior, 2003, p. 93).

Porm, explica Bedin (2001, p. 59) que este conjunto de obrigaes, materializado atravs do

feudo, foi desenhando no decorrer do perodo medieval uma espcie de teia, visto que toda a sociedade feudal estava de alguma forma envolvida. Muitas vezes, o senhor feudal era vassalo de outro senhor feudal, terminando esta cadeia quando chegava ao monarca. Desta forma, o prprio rei era o senhor feudal o principal deles.

Quanto segunda caracterstica do perodo da Idade Mdia Central enrijecimento das

hierarquias sociais33, a sociedade mdia se organizou para manter apenas trs classes sociais, que mantinham a funo constante de orao, luta e trabalho (Bedin, 2002, p. 63) (Franco Jnior, 2002a, p. 35).Organizadas desta maneira, as suas estruturas sociais passaram a ser cada vez mais rgidas, tendo cada indivduo um funo pr-estabelecida. Desta maneira, surgiu a concepo da trifuncionalidade da ordem social, ou, em outras palavras, a idia de que uns nascem para orar (os clrigos, oradores que devem ser virtuosos) outros para combater (guerreiros, bellatores que defendem, como lobos, a sociedade de todos os inimigos) e outros para trabalhar (trabalhadores, laboratores que, pelo seu servio, como os bois, fazem os outros viver.) (Bedin, 2003, p. 63) (Franco Jnior, 2003, p. 35).

33 Bedin (2001, p. 63)

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Da, portanto, a segunda caracterstica especfica da sociedade feudal: o enrijecimento das hierarquias sociais.34 Esse enrijecimento das hierarquias sociais tornou-se ainda maior medida que cada um desses grupos de pessoas foi sendo designado de ordo ou de ordem, pressupondo a constituio de um grupo isolado dos demais, investido de responsabilidades especficas. (Bedin, 2001, p.63) 35

No que diz respeito fragmentao36 do poder central, esta foi uma das principais caractersticas

do medievo. Esta caracterstica, como afirma Bedin (2001, p. 66), uma conseqncia do desenvolvimento dos laos de dependncia. medida que estes laos foram se aprofundando, as relaes polticas vo sendo substitudas por relaes privadas de fidelidade entre o senhor feudal e seus vassalos. Assim, o poder imperial vai perdendo a capacidade de ao sobre seus territrios, passando agora os senhores feudais a exercerem atribuies que antes eram do Estado. (Rodrigues e Modelli, 2006, p. 17). Em consequncia disto, o mapa poltico da Europa Ocidental pulverizou-se numa infinidade de pequenos territrios, unidades administrativas, judiciais, militares e fiscais, verdadeiros micro-Estados (Franco Jnior, 2003, p. 41).

Alm disto, o prprio poder dos senhores feudais foi se tornando cada vez maior, o que

transformou o prprio rei em um senhor feudal, passando este a ser o suserano supremo. Porm, mesmo sendo este o monarca, como ensina Franco Jnior (apud Bedin, 2002, p. 67), o rei mandava apenas em seus vassalos, no tendo ele o controle total e direto sobre a populao. Em suma, por ser soberano, o rei no desapareceu com o Feudalismo, mas adaptou-se s novas condies tornando-se suserano.

Esta fragmentao, do ponto de vista poltico, representou mais uma pulverizao do poder de

uma sociedade que j havia sado do fracasso da tentativa unitria do que o resultado de projeto global de sociedade poltica. Desta forma, a sociedade feudal passou a articular-se a partir de uma grande pluralidade de micropoderes e de uma estrutura poltico-clerical estabelecida pela Igreja.

O poder central, fragilizado foi paralisado entre os micropoderes regionais e/ou os poderes locais

dos senhores feudais e o macropoder exercido pela igreja e, em certo sentido pelo imprio. (Bedin, 2001, p. 69). Disto, surgiu a grande complexidade da sociedade feudal que possui reis ou monarcas, os quais no possuem, de fato, nunhum dos atributos que se reconhece com os dum poder soberano; ele no pode ditar leis gerais, receber impostos sobre a totalidade do reino, nem recrutar um exrcito. (Pernoud, 1989, p. 68).

A partir desta fragmentao, o monarca feudal nada mais era do que um senhor feudal coroado.

Encontrando-se as monarquias totalmente desagregadas, fortaleceu-se o poder da igreja e, em

34 Essa estrutura tripartida da sociedade feudal entrou em declnio ao longo do sculo XI, momento em que foi substituda pela condio de ordo para conditio e, por volta de 1200, por estado ou status, o que representou a laicizao da sociedade. (Le Goff, 1983, p. 09). 35 Ver tambm: (Franco Jnior, 2002b, p. 33). 36 Em decorrncia desta fragmentao do poder, o que tornava as monarquias totalmente desagregadas, h o fortalecimento do poder da Igreja e, principalmente, do papado.

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decorrncia, o poder do papado. Por ltimo, tem-se como caracterstica do feudalismo a privatizao da defesa e da guerra. Esta caracterstica era o desdobramento imediato da fragmentao do poder central, pois, no existindo um poder centralizado, quando ocorrido um conflito, poderia ele ser feito pelas prprias foras militares organizadas pelos senhores feudais. Devido a isto, a sociedade feudal era uma sociedade dominada por senhores guerreiros, pelos cavaleiros hbeis e eficazes, sempre prontos para uma interveno rpida no caso de guerra ou de invaso estrangeira. (Bedin, 2001, p. 71).

Se a Idade Mdia Central foi o ponto culminante do modelo feudal de organizao social, a Baixa

Idade Mdia constitui-se em um momento de extrema crise37 e de esgotamento dos fundamentos do feudalismo. Este conjunto de fatos, preparou o momento para o surgimento do mundo moderno.38Esta crise marca, portanto, o incio das novas formas de sociabilidade e afirmao de nova configurao social, no mais balizada pelo feudo, pela terra e pelas relaes de dependncia, mas pelo comrcio e pela indstria, pela cidade e por relaes sociais mais livres, que contriburam diretamente para o surgimento, mais tarde, do moderno conceito de direitos humanos. (Bedin, 2001, p. 80)

Desta maneira, o perodo da Baixa Idade Mdia constituiu-se em um total esgotamento dos

pressupostos e fundamentos da sociedade feudal, como tambm da prpria Idade Mdia como perodo histrico, bem como de uma etapa da caminhada da humanidade. Assistiu-se, no perodo dos sculos XIII ao sculo XIV, ao florescimento do comrcio, surgimento das cidades, rupturas com as formas de sociabilidades agrrias e rurais, bem como o declnio do poder da igreja sobre a sociedade, surgindo, com isto, os primeiros passos para o surgimento e afirmao do Estado Moderno.

Lembra Bedin (2001, p. 74) que o perodo designado por Baixa Idade Mdia foi uma espcie de

transio ou etapa entre a Idade Mdia e a Idade Moderna. Um estgio em que a sociedade feudal ainda no tinha morrido ou se esgotado completamente e a nova forma de sociedade a sociedade moderna ainda no tinha nascido. Dito de outra forma, esse perodo constitui-se, ao mesmo tempo, no outono da Idade Mdia e na primavera dos tempos modernos.

A sociedade medieval, como perodo histrico que antecedeu a Idade Moderna, teve seu apogeu

e sua crise, ou em outras palavras, a sua maturidade e seu apogeu.39 Em determinado perodo, foram se desmobilizando todas as formas de organizao social at ento existentes. A vida social foi aos poucos se desmilitarizando, as funes administrativas e militares sofreram uma separao definitiva e as unidades polticas de carter nacional se impuseram ao regionalismo feudal. Aumentaram o comrcio e a circulao da moeda, as cidades cresceram e o feudo perdeu a funo scio-militar exclusiva de produzir e sustentar o guerreiro. (Bedin, 2001, p. 75).

37 Esta crise constituiu-se em um colapso total do sistema de organizao feudal, que atingiu os diversos mbitos da realidade, envolvendo aspectos econmicos, demogrficos, sociais, polticos e clericais. Dito desta forma, no foram apenas conturbaes internas tpicas de uma sociedade, mas sim uma mutao histrica, onde se deu a transio para o Estado Centralizado. 38 Bedin (2001, p. 73). 39 Bedin (2001, p. 75).

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Com a perda de seus principais fundamentos, comeou-se a reverter a lgica da sociedade medieval e a direcionar-se para um novo momento histrico. Pode-se afirmar que o prprio feudalismo, a partir do esgotamento de seus pressupostos, gerou a crise da sociedade medieval que, ao longo dos sculos XI e XIII, j estava sob profundas transformaes e que teve seu apogeu no sculo XIV. Desta forma, constituiu-se em um colapso total do sistema feudal, em todos os seus pressupostos e fundamentos, generalizando-se como uma crise orgnica, atingindo, portanto, todos os setores da sociedade medieval.

Para Bedin:

foi uma crise de grandes propores, que se projetou nos diversos mbitos da realidade, envolvendo aspectos econmicos, demogrficos, sociais, polticos e clericais: aspectos econmicos derivados da explorao agrcola predatria e extensiva, que fora tpica do Feudalismo e que inviabilizou o aumento de produo: aspectos demogrficos oriundos das grandes tragdias, da fome e da peste; aspectos sociais advindos da ruptura da rigidez hierrquica anterior, seja pela crise demogrfica, seja pelo empobrecimento das camadas superiores a partir da crise econmica do perodo ou pela ruptura do prprio conceito de ordem; aspectos polticos resultantes da tomada ou reconstituio dos poderes pblicos centralizados; aspectos clericais advindos do questionamento da supremacia do poder da Igreja e de seu representante supremo. (2001, p. 77).

Todos estes fatos ocasionaram a morte da sociedade feudal e o nascimento da sociedade

moderna em todos os fatores: renascimento do comrcio, aumento das cidades, declnio do papado e, principalmente, a reafirmao do poder poltico centralizado, dando nascimento ao Estado Moderno. Primeiramente, este modelo de organizao sofreu uma grave crise orgnica, marcada pela fome, peste e guerra. O ndice populacional comea a diminuir neste perodo. Nas palavras de Martel e Hauser (1999, p. 215):

A fome e a misria faziam suas primeiras vtimas e ameaavam a sade dos medievos. A peste negra ataca novamente, desta vez em sua investida mais letal. Ela se dissemina mais fcil e rapidamente, pois h maior comunicao entre as regies pelo comrcio, pela navegao de longa distncia e tambm pela maior proximidade das populaes, dada as expanses desmedidas ocorridas na Idade Mdia Central.

Lembra Franco Jnior (2002, p. 29) que a peste negra, surgida no perodo da Baixa Idade Mdia,

tinha duas formas de apresentar-se em seus sintomas. Primeiramente apresentava-se mediante a forma bubnica (assim chamada por provocar um inchao), possuindo uma letalidade em torno de 60 a 80%, a maioria dos atingidos falecia entre duas a quatro semanas aps a contaminao. A peste pneumnica, transmitida homem a homem, possuia 100% de letalidade, fazendo suas vtimas depois de apenas dois ou trs dias de contrada a doena.

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Desta forma:

a peste propagou-se de sul para o norte, quase sempre do litoral para o interior. Ela caminhava mais rapidamente pelas principais vias de comunicao e penetrava mais facilmente em regies de alta densidade demogrfica, produto da Idade Mdia Central. Democrtica e Igualitria, a peste atingiu indiferentemente a todos (...)Ricos e pobres, organismos bem e mal alimentados, eram suscetveis peste. A diferena residia no fato de se estar mais ou menos exposto ao contgio. (Franco Jnior, 2003, p. 31).

Neste perodo da peste negra, as perdas humanas variaram, conforme a regio, de dois teros a

um oitavo da populao. No geral, estima-se que na Europa Ocidental 30% da populao foi morta em decorrncia desta doena. A peste negra foi a pior catstrofe populacional da histria ocidental: num intervalo de tempo bem menor, matou, em termos absolutos, mais do que a Primeira Grande Guerra Mundial e, em termos relativos, considerando-se a populao europia nos dois momentos, mais do que a Segunda Guerra Mundial. (Franco Jnior, 2002, p. 31).

Para Leg Goff (1989, p. 10), a Idade Mdia terminou tropeando em cadvares, e a grande

descoberta humana foi realmente a morte. Da em diante o lamento da vida cresce com a mesma intensidade que a conscincia do valor espiritual da morte fsica: a muralha da aniquilao corporal, que os cristos transpem com dificuldade cada vez maior.

O Feudalismo, como forma de organizao social, passou por profundas transformaes, visto o

esgotamento de seus pressupostos. A crise do feudalismo marcou um novo tempo para a sociedade medieval, visto que aumentaram os centros urbanos, desenvolveu-se o comrcio, com isto marcando o surgimento de uma nova conscincia por parte das pessoas do perodo medieval.

Portanto:

a crise da sociedade feudal, marca o incio de novas formas de sociabilidade e a afirmao de nova configurao social, no mais balizada pelo feudo, pela terra e pelas relaes de dependncia, mas pelo comrcio, pela indstria, pela cidade e por relaes mais livres que do origem a uma economia monetria e no mais a uma economia de subsistncia como era a da sociedade feudal. (Bedin, 2001, p. 81).

Ocorre a generalizao do comrcio, que se expande nos sculos XIV e XV. Esta intensificao

decorre diretamente do prprio processo de urbanizao da sociedade europia daquele perodo. Agora, o medievo vai experimentar uma nova forma de produo, no mais baseada na economia agrcola e, sim, na produo capitalista, dando origem a uma nova classe de homem: a classe burguesa, 40 que

40 Burgueses era a denominao genrica dos habitantes dos burgos, pequenas cidades que surgiam nos cruzamentos de rotas comerciais, ou ao longo destas rotas, s vezes fortificados para proteger as caravanas contra os bandos de salteadores que se proliferavam nas estradas daquele tempo. Porm, com o tempo, estes citadinos conseguiram acumular riquezas, e nos

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posteriormente lutar pela implementao dos pressupostos polticos necessrios ao moderno conceito de cidadania. Surge, ento, a figura do comerciante, que conjuntamente com o crescimento das cidades,41 produz um sistema novo de valores que at ento inexistiam. (Rodrigues e Modelli, 2003, p. 24).

Lembra Bedin (2001, p. 81) que as feiras internacionais surgidas neste perodo histrico

contriburam e foram fundamentais para o renascimento do comrcio. Estas feiras constituam-se em eventos, nos quais os comerciantes e artesos levantavam barracas e quiosques com o intuito de exibir suas mercadorias. Outro fator contribuiu para que o comrcio tivesse fora no perodo medieval: o prprio processo de urbanizao da sociedade europia, pois aumentou-se a demanada de novos produtos para o consumo em nveis cada vez mais elevados, dando origem ao modo capitalista de produo e a uma nova classe social.

A partir destas inovaes o comrcio renasce e comea a fluir na sociedade medieval,

comeando primeiramente no Mediterrneo oriental e logo aps espalhando-se para toda a Europa. (Perry, 1999, p. 166). O grande efeito do modo capitalista de produo foi a produo de um novo homem, com um novo perfil de valores, diferentemente dos existentes no perodo do feudalismo. Esta nova classe social a burguesia no estava mais ligada terra, mas a uma nova profisso que seus membros desenvolviam: o comrcio.

Agora, esta nova classe de homens possua dinheiro e liberdade e seu mundo era marcado, no

mais pela igreja, o castelo ou o feudo. Seus membros libertaram-se dos preconceitos dos aristocratas feudais, que consideravam o comrcio e o trabalho manual como degradantes, e do clero, que amaldioava a busca da riqueza como obstculo salvao. Os citadinos tinham esprito crtico, eram dinmicos e progressistas: uma fora em favor das mudanas. As origens da burguesia, de classe mdia urbana, que teria um papel crucial na moderna histria europia, encontram-se nas cidades medievais. (Bedin, 2001, p. 85).

De modo geral, o que se observava com o capitalismo:

era um deslocamento progressivo (nem sempre muito claro, mas no sculo XVIII j era preponderante) da antiga estratificao social por ordens e estamentos, baseado no privilgio de nascimento, para uma diferenciao em que contava mais a insero de classe, isto , a posio efetiviamente ocupada pelas pessoas na economia, burgue