SARGES, Maria de Nazaré & BARROSO, Daniel Souza - Ao Fim de Uma Bela Época

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José Jobson de Andrade Arruda Vera Lucia Amaral Ferlini Maria lzilda Santos de Matos Fernando de Sousa [orgs.] DE COLONOS A IMIGRANTES I(E)migração portuguesa para o Brasil

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  • Jos Jobson de Andrade Arruda Vera Lucia Amaral Ferlini

    Maria lzilda Santos de Matos Fernando de Sousa

    [orgs.]

    DE COLONOS A IMIGRANTES I(E)migrao portuguesa para o Brasil

  • Copyright 2013 Jos Jobson de Andrade Arruda/ Vera Lucia Amaral Ferlini/ Maria Izilda Santos de Matos/Fernando de Sousa

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    PUBLISHERS: Joana Monteleone/Haroldo Ceravolo Sereza/Roberto Cosso

    EDIO: Joana Monteleone

    EDITOR ASSISTENTE: Vitor Rodrigo Donofrio Arruda

    PROJETO GRFICO, CAPA E DIAGRAMAO: Joo Paulo Putini

    ASSISTENTE ACADMICA: Danuza Valim

    ILUSTRAO DE CAPA: Bruno Ricardo Souza Vilagra

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, R)

    D266c

    DE COLONOS A IMIGRANTES: I(E)MIGRAO PORTUGUESA PARA O BRASIL Jos Jobson de Andrade Arruda/ Vera Lucia Amaral Fcrlini/ Maria Izilda Santos de Matos/ Fernando de Sousa (orgs. ) So Paulo: Alameda, 2013 6 02p .

    Inclui bibliografia ISBN 978-85-7939-206-1

    1. Histria - Brasil e Portugal. 2 . Movimentos migratrios -Brasil e Portugal. 3 Estudos populacionais . 1. Jos Jobson de Andrade Arruda et al.

    lJ-01274 CDD: 981.05 C D U: 94(81)

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    Rua Conselheiro Ramalho, 694- Bela Vista CEP 01325-000- So Paulo, SP Te!. (11) 3012-2400 v.rww.alamedaeditorial.com.br

  • Ao fim de uma bela poca : mig rao ibri ca , tra ba lho e redes socia is em Belm no lim ia r do scu lo XX1

    Primeiras pa lavras . . .

    Maria de Nazar Sarges Daniel Souza Barroso U n ivers i dade Federa l d o Pa r

    PENSAR A AMAZNIA da passagem do Oitocentos ao sculo xx remete-nos a um perodo em que a

    regio ocupava grande ateno internacional, em razo dos excelentes resultados que a exportao

    da borracha trazia economia regional. Um complexo econmico dedicado exportao da goma elstica, conformado ainda nos meados do sculo XIX, acarretou em profundas transformaes na

    estrutura demo-econmica de Belm, em particular, e do Par, em geral. Nesse bojo, pensar a regio

    naquele perodo tambm pode nos remeter presena de indivduos migrados de outro lado do

    Atlntico ou do nordeste brasileiro que aportavam em Belm e em Manaus, na busca da melhoria de

    sua condio social, fruto do trabalho na lavoura ou nos seringais .

    Entre esses sujeitos que vieram parte deles, procura das possibilidades de ascenso socioe

    conmica ensejadas pela maior liquidez econmica existente naquele contexto, estavam os portu

    gueses e os espanhis, que ao chegarem Amaznia reconstruram suas vidas entre as sombras das

    mangueiras e a gua das chuvas vespertinas que at hoje marcam sua presena na cidade de Belm.

    Encontramo-los caminhando pela cidade com tabuleiros de peixe, vendendo ovos e frangos ou carregando pianos, mas tambm se divertindo, se al imentando ou mesmo em momentos de tenso, resul

    tantes da aspereza da sobrevivncia cotidiana . Ainda podemos encontr-los em documentos arqui

    vados nos acervos do Centro de Memria da Amaznia,2 do Arquivo Pblico do Estado do Par, nos

    romances e nas crnicas de jornais, o que nos possibilita revisitar sua presena no cotidiano de Belm .

    O presente artigo fruto de d iscusses desenvolvidas no grupo de pesquisa "Populao, Famlia c Migrao na Amaznia'; da Faculdade de Histria da Universidade Federal do Par. Articula-se, igualmente, ao projeto de pesquisa "Imigrao portuguesa e al ianas matrimoniais: patrimnio, casamento e famlias em llelm (c .18so-C.1920'; financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e coordenado pela Prof." Dr." Cristina Donza Cancela (PPHIST/UFPA).

    2 O Centro de Memria da Amaznia (CMA) um rgo suplementar da Universidade Federal do Par (uFPA), que possui a guarda do acervo histrico do Tribunal de Justia do Estado do Par, abarcando aproximadamente 35 quilmetros lineares de documental notarial, compreendida do final do sculo xvm at 1970.

  • 524 JOS JOBSON DE. A. A R R U DA V E RA LUCIA A . F E R LI N I MARIA I Z I LDA S . DE MATOS F E R N A N D O DE S O U SA (ORGS. )

    No presente estudo, analisamos comparativamente a insero dos migrantes de origem portuguesa e espanhola no mercado de trabalho de Belm nas primeiras dcadas dosculo xx. O artigo

    encontra-se estruturado em trs sees. De incio, empreendemos um esforo de contextualizar os fluxos migratrios direcionados Amaznia, entre o final do sculo XIX e o alvorecer do xx. A seguir,

    expomos algumas das principais caractersticas do mercado de trabalho de Belm em 1920, sem per

    der de vista tratar-se de uma poca de crise da economia da borracha. Portanto, focamos nas profis

    ses que os ibricos exerciam preferencialmente, sem deixarmos de perceber as possveis implicaes

    daquele evolver nas suas experincias de trabalho. Por ltimo, a partir do estudo de casos, adentra

    mos em parte de seu "cotidiano do trabalho", evidenciado sociabilidades e tenses que permearam a

    insero desses imigrantes no mercado de trabalho da cidade de Belm.

    Amaznia: o destino de migraes nacionais e i n ternacionais A partir de meados do sculo X I X , a Amaznia foi o destino de um intenso e contnuo fluxo

    migratrio, constitudo principalmente por migrantes de origem ibrica (sobretudo deportugueses)

    e "nordestin: e de predominncia masculina. Entre 1872 e 1920, a populao da cidade de Belm -

    capital do Estado do Par, esse um importante polo social, poltico, econmico e cultural da regio

    - praticamente quadruplicou. A cidade possua 61 .997 habitantes em 1872, 96 . 560 em 1900 e 236-402

    no ano de 1920.3 Belm se expandia em muitos vetores: estrutura demogrfica, delimitao do espao urbano, importncia geopoltica, econmica e cultural.4 E, assim como outras capitais de uma nas

    cente Repblica, assistia transformao do espao pblico e do modo de vida, propagao de uma

    nova moral e montagem de uma nova estrutura urbana - o cenrio de controle das classes pobres e

    do aburguesamento de uma classe abastada.5

    Naquele perodo, a localizao estratgica de Belm - s margens da Baa do Guajar e prxima

    ao Oceano Atlntico - e a importncia de seu porto, aliadas intensa dinmica e aos excelentes re

    sultados que a borracha estava trazendo economia regional, transformaram, paulatinamente, o co

    tidiano da cidade. O crescimento da extrao do ltex (matria-prima da borracha) e da importncia

    de sua exportao na balana comercial do Estado ocorreu concomitante ao aumento da populao

    por imigrao, o que torna difcil dissociarmos o aumento do nmero de habitantes do redimensio

    namento produtivo e econmico da regio - isso sem desconsiderarmos outros fatores intervenientes

    como o possvel aumento nas taxas locais de fecundidade e as secas no Nordeste, por exemplo.6

    IBGE. Sinopse do Recenseamento de 1920. Rio de Janeiro: Tipografia de Estatstica, 1926.

    4 Cf. PENTEADO, Antnio Rocha. Belm: estudo de geografia urbana. Vol. 1. Belm : Editora da UPPA , 1968. SARGES, Maria de Nazar. Belm: riquezas produzindo a Belle-poque (1870-1912). 3' ed. Belm: Paka-'Iatu, 2010 [2ooo] , p. 27.

    6 Para uma viso geral da populao de Belm, entre o final do sculo XIX e o incio do xx, ver dentre outros: BARROSO, Daniel Souza. "Famlia e Imigrao: o casamento, em Belm, no incio do sculo xx". Anais do x vn Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu/MG: Associao Brasileira de Estudos Populacionais, 2010 .

  • DE COLO N O S A I M I G RANTES 5 2 5

    Entre os vrios migrantes que aportaram em Belm naqueles anos estavam os ibricos . As mi

    graes dos portugueses e dos espanhis tm, entre si, diferenas de contingentes e de perfil que

    precisam ser destacadas. Em primeiro lugar, a migrao portuguesa para o Par foi desde sempre

    muito mais expressiva que a espanhola. Em segundo lugar, comparativamente, a migrao portugue

    sa era mais seletiva quanto ao gnero. A grande maioria dos migrantes dessa naturalidade era do sexo

    masculino, sendo a migrao espanhola bem mais equilibrada no que diz respeito a esseaspecto. Os

    Recenseamentos de 1872 e de 1920 podem nos ajudar a demarcar melhor essas diferenas.

    Em 1872, segundo os dados do Censo, havia 3 .361 portugueses na cidade de Belm. Eles repre

    sentavam, proporcionalmente, 77,3% dos estrangeiros habitantes na cidade, 6,32% dos livres e 5,42%

    de sua populao total. Os espanhis, por seu turno, tinham uma presena mais modesta, perfazendo

    apenas 89 indivduos oficialmente arrolados/ Em 1920, o nmero de habitantes da cidade passou a

    ser constitudopor 92,5% de brasileiros e 7,s'Yo, estrangeiros; desses 68% eram de origem portuguesa. Representativamente acabou sendo uma mudana aparentemente pouco expressiva, mas cujos efeitos

    reais podem ter sido eclipsados pela Grande Naturalizao de 1891 e pela intensificao da migrao

    interestadual . A razo sexual da populao migrante apoia ofato da migrao direcionada ao Par ter

    sido majoritariamente masculina. No mesmo ano, enquanto a razo de masculinidade da populao

    total de Belm era 104,1, a razo de masculinidade especfica da populao migrante era 402,4.8

    O mercad o de tra balho em Belm nos meados do scu lo XX Ao longo dos anosde 1910 e 1920, a economia amaznica enfrentou uma grave crise. A queda

    no preo bruto da borracha decorrente da concorrncia internacional, somada ainda dinmica da arrecadao federal no Brasil, que s no ano de 1910 se apropriou mais de 6o% de todos os lucros obtidos com a exportao do produto, tiveram impactantes consequncias para a economia regional.

    Inclusive, os outrora competidores estados do Amazonas e do Par tiveram de se unir na busca por

    uma soluo para contornar a crise.9 Esse o cenrio em que buscamos visualizar os portugueses e os

    espanhis inseridos no mercado de trabalho da capital paraense. O Recenseamento de 1920, por meio de seu quadro socioocupacional, evidencia as principais

    atividades econmicas presentes na cidade de Belm, mesmo que se trate apenas de um mercado de

    trabalho, com a licena do termo, "formal' O quadro apresentado pelo Recenseamento claramente

    7 As i nformaes u ti l i zadas do Recenseamento de 1872 foram retiradas de uma base de dados d igital d isponibilizada pelo Cebrap. Nessa base, alguns dados da verso original do Recenseamento foram corrigidos, o que pode fazer com que certos "nmeros" apresentados ao longo de nosso texto no coincidam com aqueles presentes nos quadros originais do Censo de 1872.

    8 l!lGE. Recenseamento de 1920. Tomo IV: Populao do Brasil segundo o sexo, o estado civil e a nacionalidade. Rio de janeiro: Tipografta de Estatstica, 1926, p. 712 .

    9 SARGES, Maria de Nazar & NASCIMENTO, Wilson Brito. "O Par e Amazonas so irmos: a Amaznia unida na crise da borracha e a imigrao estrangeira". ln: SOUSA, Fernando de et ai (orgs . ) . Um passaporte para a Terra Prometida. Porto: Fronteira do Caos, 2011, p. 273-286.

  • 526 JOS JOBSON DE A. ARRUDA VERA LUCIA A. FERLI N I MARIA I/ i LDA S . D t MATOS FERNANDO DE SOUSA (ORGS.)

    enviesado por uma perspectiva geracional e, sobretudo, por uma perspectiva de gnero. Primeiramente, haja vista algumas ocupaes, de acordo com o Censo, no estarem disponveis aos mais jovens, como

    evidente os trabalhos mais especializados, sejam eles mecnicos ou no. Alm disso, o arrolamento

    das ocupaes femininas acaba por invisibilizar a efetiva atuao das mulheres no mercado de trabalho

    formal de Belm, sendo a grande maioria delas colocada como "sem profisso defini d: Essa indefinio da ocupao de determinados indivduos, que ser retomada mais adiante, pode ser indicativa de que

    algumas ocupaes eram socialmente aceitas como "trabalhos': e outras no.

    Consoante o Recenseamento de 1920, a agricultura, a construo civil, o comrcio, os transpor

    tes (em especial, os martimos) e o vesturio eram as cinco atividades mais exercidas pelos homens de

    Belm. J entre as mulheres, o vesturio, a agricultura, o magistrio e os servios domsticos eram suas

    atividades mais comuns. Esse quadro, de carter mais geral, evidencia uma cidade ainda caractersti

    ca do Brasil oitocentista, onde os espaos urbanos e rurais, decerto mais bem delimitados a altura do

    Censo, confluam no espao de Belm. No obstante, particularmente o que concerne s ocupaes

    masculinas, podemos observar uma cidade cada vez mais votada ao setor tercirio da economia, onde a

    prestao de servios, o comrcio e as profisses liberais passavam a ter cada vez mais destaque.10 Essa possvel tendncia a um rearranjo no mercado de trabalho de Belm, conquanto no possa

    ser dissociada da tendncia maior de urbanizao presente nas principais capitais do Brasil, natu

    ralmente um reflexo do evolver econmico vivenciado pela regio desde os anos do Oitocentos . O

    dinamismo econmico e o crescimento demogrfico acentuado (decorrente, em grande parte, desse

    intenso fluxo migratrio), podem ter transformado paulatinamente o mercado de trabalho em Belm

    no s com a abertura e a intensificao de novas atividades econmicas, como tambm pelo perfil

    cada vez mais cosmopolita das pessoas e dos servios englobados nele.

    Esse panorama mais geral, por mais que permita-nos apreender o mercado de trabalho de

    Belm como um todo, no nos possibilita perscrutar vrias de suas nuances. Para alm da compreen

    so das particularidades das ocupaes de acordo com a gerao, o sexo e a origem brasileira ou es

    trangeira, pouco podemos extrair do Recenseamento. Nesse sentido, para o propsito deste artigo sua

    utilizao limita-se perspectiva de contextualizar as caractersticas do mercado de trabalho da cida

    de, no qual portugueses e espanhis estavam imersos. Com vistas a analisarmos a presena desses mi

    grantes, lanamos mo de uma srie composta por 5 - 792 registros de casamento civil. Diferentemente

    de seus congneres paroquiais, os registros civis apresentavam, tanto para o noivo como para a noiva,

    referncias s ocupaes. a partir deles que a anlise de desenvolver. importante destacarmos, logo de incio, que o trabalho com os casamentos possui como o tra

    balho qualquer outra fonte histrica, potencialidades e limites. Se por um lado, eles do ensejo a um

    trabalho mais detido com marcadores sociais, ao apontar com maior preciso as idades e a naturalidade dos sujeitos em questo, por outro lado, acabam impondo anlise um recorte socioeconmico

    e, por mais paradoxal que possa parecer, igualmente geracional. No apenas nem todas as pessoas

    10 IllGE. Sinopse do Recenseamento de 1920. Rio de janeiro: Tipografia de Estatstica, 1926, p. 136-137-

  • DE. COLO N O S A I M I G RANTES 5 2 7

    tinham acesso ao casamento, com tambm permaneciam no mercado matrimonial por um perodo

    especfico de suas vidas, no sendo comum contrarem npcias nem muito jovens, nem muito velhos .

    Posto isso, vejamos a Tabela 1 :

    TABELA 1 . Cod i ficao sociop ro fi ss i ona l dos n u b e n tes homens em Be lm ( 1 908 - 1 9 2 5)

    SETOR PRIMRIO

    Agricu ltu ra 151 2,6% f----------- - -- - -- - - ------!------Pecu r ia 01

    Pecur i a e Agricu ltu ra 32

    Pesca 07 ------ - --- - - -------- --Extrativi smo 09

    SETOR SECUN DRIO

    01 - --- - ---

    0,6%

    0, 1% ---0,2%

    Mine rao

    Meta i s 20 0,3%

    Made i ra e mob i l i r io 50 0,9% - - -------------------------+----+-----Txti l , vestu r io e a l imentao

    Construo civ i l

    Me ios de tra nsporte (Man ufatu ra )

    Outros a rtesa natos

    SETOR TERCIRIO

    Profisses l i bera is

    Servio Pb l i co

    Educao

    Sade

    Segu ra na

    Mar timos

    Igreja

    73

    95

    43 - --625

    238

    556

    46

    121

    292

    1,3%

    1,6%

    0,7%

    10,8%

    4, 1%

    9,6%

    0,8%

    2,1%

    5%

    567 9,8%

    02 r-- -- ---------- - - ---------- ----Comrcio 1 .883 32,5%

    ------------+---+--------Transportes e comun i caes 274 4,7%

    Outros servios 263 4,5% ! -- - - - - ! - +

    J o rna l e i ro 115 2% - ---------- --- --- - ------- Desemp regado 01

    Ocupao ignorada 327 5,6%

    Total 5.792 100%

    Fonte : CMA/U FPA. Cartrio P riva tivo de Casa m e n tos d a Comarca d a Cap i ta l ( 1 908- 1 9 2 5)

  • 528 JOS J03SON DE A. ARRUDA VI'RA LUCIA A. F I' RUN I MAR IA I Z I LDA S . D E MATOS FERr'>I ANDO DE SOUSA (ORGS.)

    A Tabela 1 sinaliza, logo em um primeiro olhar, a expressiva concentrao das profisses masculinas em atividades ligadas ao setor tercirio. Ainda evidenciado que as atividades ligadas ao

    comrcio aglutinavam grande parte dos nubentes, sendo significativo tanto em relao ao setor terci

    rio, quanto no cmputo geral das ocupaes. Outras atividades, a exemplodos martimos, dos em

    pregados na administrao pblica e dos artistas tambm eram recorrentes. Embora os casamentos

    pesquisados sejam provenientes de um cartrio que abrangia espacialmente toda a regio da comarca

    da capital, incluindo seus permetros rurais e urbanos, e as localidades adjacentes Belm, observa

    mos que, em linhas gerais, as profisses predominantes apresentavam um perfil essencialmente urba

    no; as atividades ligadas ao setor primrio perfaziam somente a 3 ,5% do total das ocupaes exercidas

    pelos nubentes. As ocupaes vislumbram, em certa medida, parte da lgica urbana e econmica de Belm

    no perodo, porm destoam da expressiva presena das atividades agrcolas na cidade. Praticamente

    um tero dos homens maiores de idade que habitavam Belm, em 1920, estava diretamente ligado a

    atividades agrcolas ." Isso sem contarmos com os envolvidos com a pecuria, a caa e a pesca. Alm

    disso, devemos considerar, de antemo, que ao momento do casamento grande parte dos nubentes

    muito possivelmente ainda no estaria em seu estado de maior amadurecimento profissional, uma

    vez que a idade de casamento daqueles indivduos comumente oscilavaentre os 20 e os 35 anos. Mas,

    tambm no podemos deixar de destacar que quase todos eles estavam empregados, o que denota a

    importncia de um trabalho estvel para a contrao de npcias. Conquanto a exposio desta codificao seja importante no sentido de demonstrar parte do

    mercado de trabalho de Belm acessvel para pessoas, em sua maioria, entre os 20 e os 35 anos de idade, algumas ressalvas precisam ser feitas. Em primeiro lugar, cabe-nos analisar as classificaes pro

    fissionais encontradas. Tomemos, por exemplo, as ocupaes ligadas ao comrcio. Essas ocupaes

    compreendiam um rol amplo de atividades que poderia abranger: empregados do comrcio; guarda

    livros; caixeiros; comerciantes, negociantes etc. Como essas atividades foram arroladas por cartor

    rios, cujos critrios desconhecemos, torna-se difcil mensurarmos com exatido as diferenas entre

    uma e outra. Tambm o caso da categoria "artista", utilizada para designar um grupo essencialmente

    heterogneo que exercia atividades manuais e artesanais . As terminologias empregadas para designar

    as profisses dos nubentes eram imprecisas e analiticamente limitadas. Uma limitao que, certamen

    te, se fazia ainda mais manifesta no designar das atividades femininas.

    Provavelmente, os cartorrios responsveis pelo registro dos casamentos, assim como os recen

    seadores da poca, no possuam demasiada preocupao em descrever, detidamente, as atividades

    exercidas pelas mulheres, o que ainda agravado pelo diminuto mercado de trabalho formal acessvel

    aos segmentos femininos da populao. O Recenseamento de 1920 aponta que 83,7% das mulheres habitantes em Belm ou no possuam uma profisso declarada, ou no possuam profisso algu

    ma. Com expressividade menor, h referncias a mulheres na confeco de vesturio, em servios

    11 Ibidem.

  • DE COLO N O S A I M I G R A N T E S 5 2 9

    domsticos, na agricultura e no magistrio - nesta ordem de relevncia. As demais ocupaes fe

    mininas so bem menos representativas.12 A limitao do mercado de trabalho formal disponvel s

    mulheres no se aplicava, de igual maneira, ao mercado de trabalho informal.'3 Em relao aos casamentos, as ocupaes femininas mais recorrentes eram as prendas e os

    servios domsticos. Outras ocupaes no raro encontradas foram: alunas e professoras da Escola

    Normal ; costureiras; lavradoras; farmacuticas, comerciantes e proprietrias. Embora o cmputo

    geral das ocupaes femininas aponte ao exerccio de atividades ligadas ao lar, isso no significa

    que todas as atividades desenvolvidas pelas mulheres se restringissemto- somente ao espao pri

    vado. Essa perspectiva deve ser matizada em dois aspectos. Em primeiro lugar, porque poderia

    haver uma congruncia entre os espaos de moradia e de trabalho, a exemplo da coexistncia de

    residncias e casas comerciais no mesmo prdio, ou mesmo de pequenos ateliers no espao do

    mstico. Em segundo lugar, porque o termo "servios domsticos" no alude, necessariamente, o

    desenvolvimento de atividades no lar de residncia da nubente, afinal, os servios poderiam bem

    ser realizados na casa de outrem.

    A incluso de um repleto rol de atividades femininas na categoria genrica "ocupaes domsticas" restringe, em muito, a anlise destas atividades, vislumbra uma multiplicidade de peque

    nas tarefas de autossuficincia exercidas cotidianamente/4 inseridas em uma infra-economia, ao que

    Braudel denominou de vida ou civilizao material.'5 Como desconsiderar, por exemplo, as mes

    solteiras e vivas chefes de famlia, ou ainda aquelas "atividades de improviso"?'6 De qualquer modo,

    no podemos nos esquecer dos papis sociais idealizados s mulheres, no limiar do sculo xx. As "boas esposas" e "boas mes" deveriam cuidar da manuteno do lar, se no no sentido de prov-lo

    materialmente, pelo menos no sentido de preservar a boa ordem do espao domstico.

    12 Ibidem.

    13 Em Belm, no nal do scu lo xrx, o mercado de trabalho era permeado por relaes de gnero que estabeleciam, entre homens c mulheres, hierarquias e alteridades nas definies das profisses. Para as mulheres, o mercado de trabalho era baseado em servios de casa; raramente havia ofertas de emprego para mulheres fora do espao domstico. Cf. FONTES, E. "Prefere-se portuguesas: mercado de trabalho, racismo e relaes de gnero em Belm do Par ( lSSo-1896) ': Caderno do Centro de Filosofia e Cincias Humanas, Belm, 12 (1!2), p. 67-84, j an ./dez. 1993.

    14 SAMARA, Enide Mesquita & MATOS, Maria lzilda Santos de. "Manos femeninas: trabajo y resislencia de las mujeres brasileflas ( 1890-1920)". In: DUBY, G. & PERROT, M. (dir. ) . Historia de las mujeres en Ocidente. Tomo s : E/ siglo xx. Madri: Taurus, 1993, p. 709-7 17.

    15 BRAUDEL, Fernand . Civilizao material, economia e capitalismo: sculos xv-xvw. (V o!. 1 : Os jogos das trocas) . So Paulo: Martins f-ontes, 2009 [ 1 967 J , p. 12 .

    16 No clssico Women, work and family, Louise Tilly e Joan Scott cunharam o conceito de "the economy of makeshift': Trata-se do desempenho, por pane de mulheres casadas, de pequenas atividades (costura, cozinha, limpeza etc . ) com o objetivo de complementar a renda famil iar. Ao utilizarmos o termo "trabalhos de improviso" (que tambm poderia ter sido traduzido como "trabalhos provisrios" ) , fizemos referncia ao conceito proposto e analisado pelas autoras (TILLY, Louise & SCOTT, Joan. Women, work and family. Nova York: Rinehart anel Winston, 1978) .

  • 530 JOS JOBSON DE A. ARRUDA VERA LUCIA A. F ERLI N I MARIA IZ I L DA S . D E MATOS FERNANDO DE SOUSA (ORGS.)

    Os migra n tes ibricos no mercado de tra balho de Belm Entre 1908 e 1920, 769 homens portugueses casaram-se em Belm. Os espanhis, de 1908 a

    1925, perfaziam 260 sujeitos. A diferena entre esses nubentes, existente no mercado matrimonial de Belm, refletia a prpria diferena de contingente que portugueses e espanhis apresentavam na populao da cidade. Os lusitanos faziam-se em maior quantidade e, por esse motivo, casavam-se tambm em maior nmero que os hispnicos . No caso particular desses migrantes a proporcionalidade

    entre a cifra de nubentes e sua representatividade na populao total de Belm, no se dava apenas

    em termos contingenciais, mas, igualmente, em funo da maior ou da menor presena de mulhe

    res. Enquanto no caso dos portugueses, como j se demonstrou em estudos anteriores,'7 havia uma

    quantidade muito maior de homens casando, embora entre os espanhis o quadro fosse equilibrado,

    balizando uma tmida maioria entre as mulheres.

    No constituindo uma exceo, os casamentos dos ibricos tambm invisibilizavam as ocupa

    es femininas, adjudicando a praticamente todas as nubentes, os servios domsticos. Em rarssimos

    casos, encontramo-las no exerccio do magistrio ou em atividades ligadas agricultura ou ao comr

    cio. No caso dessas duas ltimas, suas atividades coadunavam com a de seus futuros cnjuges. Longe

    de representar mera casualidade essa "coincidncia" pode ser um indcio de certas questes de fundo,

    dificilmente apreensveis sem documentao histrica suficiente. Um olhar mais acurado sobre esses

    casos evidencia que no apenas as ocupaes, como tambm os endereos dos nubentes eram os mes

    mos. possvel, ou melhor, provvel, que os noivos j coabitassem antes mesmo do casamento, e que trabalhassem conjuntamente, talvez mesmo em seu espao de moradia, nas atividades destacadas.

    De todo modo, mesmo que casos como esses desnudem algumas nuances do trabalho feminino

    em Belm, no limiar do Novecentos, trata-se apenas de referncias fragmentadas, no passveis de

    tratamento serial. Destarte, por mais que possamos apontar aqui ou ali do que as mulheres se ocu

    pavam, no podemos delinear claramente suas principais atividades, ainda que suponhamos que a

    maioria delas fosse atinente ao trabalho domstico, ao magistrio ou ao trabalho familiar (como pode

    ter sido o caso das mulheres que trabalhavam no comrcio e, sobretudo, na agricultura) . No sendo

    as abordagens (com o perdo do termo! ) "qualitativas" o mote de discusso deste artigo, centramos

    as reflexes na presena de homens portugueses e espanhis no mercado de trabalho de Belm; alm

    disso, homens que, como j destacamos, estavam em sua grande maioria entre os 20 e os so anos de

    idade. Vejamos a Tabela 2:

    17 CANCELA, Cristina D. & BARROSO, Daniel S. "Casamentos portugueses cm urna capitaldaArnaznia: perfil demogrfico, normas e redes sociais (Belm, 1891-1920)': Histria Unisinos, So Leopoldo, 15(1) , j an./abr. 2011, p. 60-70.

  • DE COLO N O S A I ."-1 1 G R A N T ES 531

    TAB E LA 2. Cod i ficao soc iop rof i ss ion a l dos homens portu g ueses ( 1 908- 1 9 2 0)

    SETOR PRIMRIO

    Agr icu l tu ra e pesca 12 1,6% -------------L

    SETOR SECUNDRIO

    Txti l , vestu r io e a l imentao 26 3,4%

    Construo civi l os 0,7%

    I n dustr ia l 0 7 0,9% ---------------- -----------

    Made i ra e mob i l i rio 10 1,3%

    Outros a rtesanatos 75 9,8%

    SETO R TERCIRIO

    Comrc io 529 68,8%

    Profisses l i bera i s 12 1,6% - --------Transporte e comun i caes 30 3,9%

    Igreja 01 0, 1%

    Outros servios 28 3,6% --- ----- -----------Ocupao ignorada 34 4,4%

    ------Tota l 769 100,0%

    - -

    Fonte : CMA/U FPA Cartr io Pr ivat ivo de Casa m e n tos da Coma rca da Cap i ta l ( 1 908- 1 9 2 5)

    A Tabela 2 revela uma grande concentrao dos homens portugueses pesquisados em atividades ligadas ao setor tercirio, essencialmente no comrcio. Aproximadamente 70% de todos eles tiveram suas ocupaes descritas claramente como comerciais, desde auxiliares do comrcio a grandes

    negociantes, passando por guarda-livros e vendedores ambulantes. Em um segundo plano, destacam

    -se as atividades que, em menor intensidade, poderiam tambm estar associadas praa mercantil de

    Belm, como aquelas englobadas nas categorias "Outros artesanatos': "Transporte e comunicaes e

    "Txtil, vesturio e alimentao': As demais ocupaes eram rarefeitas, sendo muito pouco represen

    tativas no geral. O quadro ocupacional dos portugueses apresenta, em relao ao quadro ocupacional geral, algumas aproximaes e distanciamentos que precisam ser considerados.

    No que diz respeito s aproximaes, apontamos que, ora com maior ora com menor variao

    percentual, o quadro dos portugueses e o quadro geral, so certamente semelhantes . As diferenas

    entre um e outro residem na macia participao dos lusitanos nas atividades correlacionadas ao

    comrcio e da pouca presena desses migrantes em determinados setores - a exemplo do servio

    pblico ou dos martimos, que perfaziam cada um deles, cerca de 10% de todos os casos. Se, por um lado, no conseguimos precisar o porqu da quase ausncia dos portugueses nesses setores, por outro lado, a sua efetiva participao no setor mercantil, em suas mais variadas escalas, pode ser mais fcil

  • 532 JOS JOBSON DE A. ARRUDA VERA LUCIA A. F ERLI N I MARIA I Z l l.DA S . DE MATOS F E R N A N D O DE SOUSA (ORGS. )

    de justificar. Para alm da simples associao portugueses/ comrcio, o amlgama da grande maioria dos migrantes lusitanos em atividades mercantis pode ter razes ainda mais profundas.

    A insero dos migrantes portugueses no mercado de trabalho formal de Belm, no limiar do sculo xx, estava diretamente associada ao carter do processo migratrio que os levou Amaznia

    e, de igual maneira, s caractersticas particulares que pautaram as relaes sociais entre portugueses

    e paraenses naquele perodo. A sociedade local tinha fortes laos com Portugal, os lusos eram os

    imigrantes em maior quantidade e o fluxo migratrio ocorria em cadeia, ou seja, era marcado pela "predileo" de gnero e pela existncia de indivduos, em geral parentes, que davam apoio logsti co migrao.'8 E eram esses indivduos, os quais aqui denominaremos de " intermedirios sociais",

    que tornaram a migrao lusa um caso bem especfico dentre as outras migraes direcionadas Amaznia entre o final do sculo xrx e o incio do Novecentos .

    Por "intermedirios sociais" apreendemos, tal como Renato Pinto Venncio, pessoas que

    poderiam interceder social, poltica e economicamente diante de indivduos de condio social mais

    elevada, em prol daqueles menos favorecidos.'9 Eram, portanto, responsveis pelo dinamismo de ex

    tensas redes sociais que poderiam interligar pessoas nos extremos da hierarquia social. Mas de que

    modo a noo de "intermedirios sociais" poderia nos ajudar a compreender no apenas a insero

    dos portugueses no mercado de trabalho de Belm nas primeiras dcadas do sculo xx, mas, princi

    palmente, os meandros e as diversas nuances que permearam aquele processo migratrio?

    Num interessante balano da produo historiogrfica sobre as migraes, o socilogo ame

    ricano Douglas Massey apresenta um quadro em que ganha destaque o importante papel exercido

    por parentes ou demais pessoas conhecidas da articulao de uma migrao.20 Ora, esses parentes ou

    pessoas conhecidas nada mais so do que os j referidos " intermedirios sociais': Em alguns casos,

    as articulaes poderiam incluir tanto o auxlio na partida,21 quanto no seu estabelecimento no novo

    local de moradia. Considerando as relaes existentes entre o Par e Portugal, plausvel pensarmos

    que alguns indivduos de origem portuguesa tenham, muito possivelmente, organizado a migrao de

    seus conterrneos a Belm, assegurando-lhes todo um apoio logstico onde se incluiria, naturalmente,

    um emprego no setor mercantil, onde os lusitanos faziam-se presentes de modo expressivo. Mas, e

    quanto aos espanhis? Vejamos a Tabela 3 :

    18 Sobre essa classifteao ver: TILLY, Charles. Migration in Modem European History (mimco) . Disponvel em: . Acesso em: 20 ago. 2011 .

    19 VENNCIO, Renato Pinto et al . "() Compad re Governador: redes de compadrio em Vila Rica em fins do sculo xv m". Revista Brasileira de Histria, So Paulo, 26(52) , 2006, p. 287.

    20 MASSEY, Douglas et al. "Theories of intcrnational m igration : a rcview and appraisal". Population and Development Review, Nova York, 19(3) , set. 1993, p. 431-466.

    21 Quanto imigrao portuguesa para a Amaznia, j foi analisado um caso nesse sent ido cm : VIEIRA JUNIOR, Antnio Otaviano & BARROSO, Daniel Souza. "Histrias de 'movimentos': embarcaes e populao portuguesas na Amaznia joanina". Revista Brasileira de Estudos de Populao, So Paulo, 27(1) , jan . -jun . 2010, p. 193-210.

  • DE COLO N O S A I M I G R AN T E S 533

    TAB E LA 3. Cod i fi cao soc io p ro fi ss i ona l dos homens espa n h i s ( 1 908 - 1 9 2 5)

    SETOR PRIMRIO

    Agr icu l tura

    --- - . j_ 04__1_ 1,5%

    SETOR SECU N DRIO

    -dea -;b 1 l 1-o------- l Cou ro 06 2,3% f--------------------t-------' Txti l , vestu rio e a l ime ntao 10 3,8%

    Construo civ i l 02 0,8%

    Outros a rtesanatos 63 24,2%

    SETOR TERCIRIO

    Profisses l i bera i s

    Emp regados pb l icos

    Educao

    Comrc io

    Transporte e comun i caes

    Foras Pb l i ca s f----- .. ------

    ---

    Jo rna l e i ros

    04 1,5%

    os 1,9% = .....

    -----

    ------

    01 0,4%

    94 36,2% '

    2 1

    02

    18

    8, 1%

    0,8%

    6,9% 1--------------- ----- -- t-------------Outros servios 14 5,4%

    Ocupao ignorada 14 5,4%

    Tota l 260 100%

    Fonte: CMA/U FPA. Ca rt r io Priva tivo de Casa m e n tos d a Com a rca d a Cap i ta l ( 1 908- 1 9 2 5)

    A Tabela 3 revela que assim como entre os portugueses, entre os espanhis ocorria tambm uma concentrao ocupacional nas atividades ligadas ao comrcio, mesmo que em menor proporo.

    Pelo menos u m em cada trs dos espanhis pesquisados estava ligado ao setor mercantil. Podemos destacar, igualmente, entre os espanhis, aimportante presena deles na categoria "Outros artesana

    tos". Outras categorias, a exemplo da dos "Jornaleiros" e a de "Transporte e comunicaes", tambm aglutinavam um bom nmero desses imigrantes . importante salientarmos que o quadro ocupacional dos espanhis era ainda mais parecido com o quadro socioocupacional geral, do que o dos portu

    gueses. Ainda assim, h entre eles uma tendncia geral a empregarem-se em ocupaes ligadas, direta ou indiretamente, ao comrcio, mesmo em menor intensidade que os portugueses.

    Era no setor mercantil que havia uma grande rivalidade entre os ibricos; portugueses e espanhis envolviam-se em embates na busca por melhores locais na praa mercantil e pelo monoplio do comrcio. A notria presena majoritria dos ibricos que atuavam no setor do comrcio, especialmente no retalhista, causou um desconforto aos brasileiros que os viam como exploradores e

  • 534 J OS JOBSON D E A. ARRU DA V E RA LUCIA A. F E R L I N I MARIA I Z I L.DA S . DE MATOS F E R N A N D O D E SOUSA (ORGS.)

    concorrentes em um mercado de trabalho que deveria ser nacional, assim acreditavam os brasileiros, no caso, os paraenses. Essa disputa no mundo do trabalho gerou uma tenso constante entre os "ga

    legos" e os nativos, sobretudo no espao pblico onde os vendedores ambulantes das mais diferentes

    nacionalidades obtinham meios para a sua sobrevivncia. medida que o processo migratrio se acentuava o espao pblico da cidade era tomado pelos trabalhadores de ruas, conforme se pode

    observar pela Tabela 4:

    TABELA 4. Vendedores a m b u la n tes reg i s t rados na I n tendncia de Be lm ( 1 902- 1 903 )

    Ms Nmero Variao ----------\-------+-------

    Dez. de 1902

    Jan . de 1903

    Fev. de 1903 ----- --------!----

    Mar. de 1903

    Abr. de 1903

    Ma io de 1903

    228

    292 64

    250 -42 1 -- -------------

    294 44

    256 -38

    321 65 1--------- -- - - ------- ------------J u n . de 1903 335 14

    -----------r------- ----- -- -J u l . de 1903 269 -66

    Fonte: LEMOS, Antn io . Relatrios apresentados ao Conselho Municipal de Belm na sesso de 15 de novembro de 189 7- 1902. Belm: A. A. S i lva, 1 902, p. 1 25

    Era nesse espao do comrcio ambulante intenso e bastante difcil de ser controlado que os

    trabalhadores disputavam a sua insero no mundo do trabalho. Nele, encontramos vendedores de

    flores, carregadores, e vendedores de peixe, de legumes e de verduras, que vendiam suas mercadorias

    em tabuleiros improvisados e desprovidos de qualquer higiene; vendedores de leite que iam com suas

    vacas de casa em casa; vendedores de tecidos em "lojas ambulantes que vendiam, em carros e tabulei

    ros, fazendas francesas, inglesas e diversas miudezas':22 enfim, uma gama de produtos que tornavam a

    cidade uma grande tenda colorida. nesse cotidiano da cidade que vamos encontrar uma notcia que bem espelha a situao de crise econmica resultante da queda dos preos da borracha.

    22 SARGES, Maria de Nazar. Belm: riquezas produzindo a bel/e poque . . . op. cit. , p. 28.

  • DE COL O N O S A I M I G RA N T E S 535

    J no a primeira nem a segunda vez, que s portas da nossa redao aparecem moos patrcios a implorar um bolo para comer, pois o trabalho lhes falta para que por ele possam conseguir o dinheiro necessrio ao seu sustento.

    Alguns, com as lgrimas nos olhos, tm-nos tambm implorado para intercedermos junto do Consulado de Portugal a fim de poderem conseguir uma passagem que lhes d direito a voltar s terras ptrias.''

    Essa apenas uma das muitas tenses que se impem aqueles que chegaram ao Par na con

    dio de imigrante, mas tantas outras situaes do cotidiano se esparramam nos papis dos arquivos

    policiais, como o caso de Alfredo e Delfina :

    Alfredo Cid e Delfina Alves moravam prximo: ele, na Rua Manoel Barata, 90 ; ela, Rua Tiradentes, 32. Em 1920, eles tinham, respectivamente, 19 e 18 anos de idade. Haviam comeado a namorar dois anos antes, em 1918, no bairro onde moravam: o Reduto. Menores de idade e ainda no emancipados, Alfredo e Delfina precisariam de autorizao paterna para poder contrair npcias. O pai de Alfredo, com quem o mesmo trabalhava numa sapataria de propriedade familiar, consentia com o casamento de seu filho. Por sua vez, Jos Rodrigues Alves opunha-se ao casamento de sua filha Delfina, declarando ser "pobre, mas honrado" e que se sacrificava ao mximo para dar educao a sua prole. Segundo Jos Alves, o pretendente de sua filha era um "precoce perdido social': um "vagabundo, sem profisso alguma". Alfredo Cid refutava essa "acusao" alegando que possua "profisso honesta e definid', com rendimentos suficientes para constituir famlia.'4

    Esse relato nos remete a pensar que dentro de uma relao conjugal, o marido e a esposa exer

    cem papis familiares inerentes ao grupo social que pertencem, sob influncia de valores morais espe

    cficos.25 Entretanto, no final do sculo XIX e o limiar do sculo xx, assistiu-se a uma reconfigurao

    do "pacto matrimonial", que acarretou uma mudana do papel social do marido passando de admi

    nistrador de bens para provedor e protetor do lar/6 Portanto, o provento ao lar era um papel social de

    gnero associado especificamente ao masculino, o que aj uda-nos a melhor entender a preocupao de Jos Rodrigues Alves com o casamento de sua filha com Alfredo Cid, um "vagabundo, sem profisso

    23 jornal Lusitano, 24 de setembro de 1921, p. 2 .

    24 CM A . 2" Vara Cvel (Cartrio Odon) . Suprimento de consentimento para casamento, onde foi requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido Jos Rodrigues Alves. 1920.

    25 SAMARA, Eni de Mesquita. "Casamento e papis familiares em So Paulo no sculo x1x". Cadernos de Pesquisa da Fundao Carlos Chagas, So Paulo, no 37, 1981 , p. 17-25 .

    26 NAZZARI, M. O desaparecimento do dote: mulheres,famlias e mudana social em So Paulo, Brasil, 16oo-1900. So Paulo: Companhia das Letras , 2001 ( 19 91 ] .

  • 536 JOS JOBSON DE A. AR RU DA V E RA L U C I A A. F E R U N I MARIA I Z I LDA S. DE MATOS F E R N A N D O DE SOUSA (ORGS. )

    alguma'; e a refutao desse quela acusao, confirmando possuir uma "profisso honesta e definida'' que lhe permitiria constituir e sustentar uma famlia.

    O imbrglio em que se envolveu Alfredo Cid apenas um exemplo de algumas das tenses que

    permearam as relaes de trabalho dos migrantes de origem espanhola e paraense no mercado de

    trabalho de Belm, nas primeiras dcadas do sculo xx, ainda que na esfera familiar e da intimidade.

    O dinamismo econmico e o crescimento demogrfico acentuados (decorrente, sobretudo, de um in

    tenso fluxo migratrio) , associados ao que a historiografia convencionou de chamar de a "Economia

    da Borracha", transformaram paulatinamente o mercado de trabalho em Belm no s com a abertura

    e a intensificao de novas atividades econmicas, como tambm pelo perfil cada vez mais cosmopo

    lita das pessoas e dos servios englobados nele.

    Consideraes fina is A vivncia dos estrangeiros em solo amaznico deve ser entendida no contexto de uma eco

    nomia que precisava de mo de obra para atender o mercado internacional, embora as cidades no

    estivessem em condies de abrigar um contingente cada vez maior de imigrantes. Essa parcela sig

    nificativa de estrangeiros ao se deparar com um novo ambiente enfrentava alguns obstculos quase

    que "naturais" a esse processo migratrio, como a diversidade cultural e as dificuldades de insero

    no mercado de trabalho, entre outros. A tentativa de compreender a complexidade das relaes de

    trabalho entre os imigrantes portugueses e espanhis com a sociedade paraenseleva-nos a delinear

    um quadro geral dessa questo que abre possibil idades de novas investigaes.

    a1.pdfa2.pdfa3.pdf