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SAMIZDAT 10 EMILY DICKINSON uma vida e obra repleta de lirismo e melancolia www.samizdat-pt.blogspot.com novembro 2008 ficina

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SAMIZDAT

10

EMILYDICKINSON

uma vida e obra repleta de lirismo e melancolia

www.samizdat-pt.blogspot.com

novembro2008

ficina

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Edição, Capa e Diagramação:

Henry Alfred Bugalho

Autores

Carlos Alberto Barros

Dênis Moura

Giselle Natsu Sato

Guilherme Rodrigues

Henry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

Marcia Szajnbok

Maria de Fátima Santos

Maristela Scheuer Deves

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

Zulmar Lopes

Textos de:

Emily Dickinson

Machado de Assis

Robert Frost

Imagem da capa:http://www.flickr.com/photos/totemik/2376276117/sizes/l/

www.samizdat-pt.blogspot.com

SAMIZDAT 10novembro de 2008

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público ou royalty free.

As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira res-ponsabilidades de seus autores ou tradutores.

Editorial

Após uma edição especial de Terror, na qual os autores puderam explorar o bizarro e o macabro, esta décima edição da SAMIZDAT é bem mais lírica.: com um número recor-de de poemas, com as traduções de dois grandes autores da Nova Inglaterra — Emily Dickinson e Robert Frost — e al-guns poemas do mestre da Literatura Brasileira, Machado de Assis, cujo centenário da morte se celebra neste ano.

Também a partir desta edição contamos com a partici-pação de dois novos integrantes: Dênis Moura e Maristela Scheuer Deves, que prometem enriquecer ainda mais a diver-sidade deste grupo.

Henry Alfred Bugalho

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SumárioPor quE Samizdat? 6

Henry Alfred Bugalho

ENtrEViStarui zink 8

miCroCoNtoSHenry Alfred Bugalho 12Denis da Cruz 13Volmar Camargo Junior 14

rEComENdaÇÕES dE LEituraEsmagado pelo Sistema 16

Henry Alfred Bugalho

autor Em LÍNGua PortuGuESamachado de assis, Poeta 18

CoNtoSCompanhia Limitada 22

Volmar Camargo Junior

o Paradoxo da morte 24Henry Alfred Bugalho

toque de Saída 28Joaquim Bispo

o Gato Jeremias 32Maria de Fátima Santos

reencontro 34Guilherme Rodrigues

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Pastel de Vento 36Zulmar Lopes

Encontro com Joaquim maria 38Giselle Natsu Sato

as Noivas de Preto 42Maristela Scheuer Deves

traduÇÃoa Estrada não Percorrida 46

Robert FrostPoemas de Emily dickinson 48

tEoria LitErÁriaVocê conhece o indriso? 52

Volmar Camargo Junior

a atualidade do Conto 54Henry Alfred Bugalho

CrÔNiCaangústias urbanas 56Giselle Natsu Sato

Novas tendências 57Joaquim Bispo

PoESiaNáufrago 58Marcia Szajnbok

Lua-Sol-Eu 59Guilherme Rodrigues

Poemas 60Maria de Fátima Santos

Laboratório Póetico 62Volmar Camargo Junior

Esquecimento 63Volmar Camargo Junior

três Poesias 64José Espírito Santo

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Poemas 65Pedro Faria

Ninfa 66Dênis Moura

SoBrE oS autorES da Samizdat 67

Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista. Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.

Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-dado.

Escreva-nos para:[email protected]

SEÇÃO DO LEITOR

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66 SAMIZDAT agosto de 2008

inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus prin-cípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessário suprirmir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de de-mais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária, igualitária, mas logo

se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiram, fazer parte da máquina administrativa - que esti-pulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo -, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas idéias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa do que "autopublicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.

Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exenplo dum samizdat. Corte-sia do Gulag Museum em Perm-36.

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7www.samizdat-pt.blogspot.com

E por que Samizdat?

A indústria cultural - e o mercado literário faz parte dela - também realiza um processo de exclusão, base-ado no que se julga não ter valor mercadológico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-se que contos, poemas, autores desconhecidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridades na hora de ser absorvido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regime exclu-dente, torna-se a via para produtores culturais atingi-rem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos - como TV,

revistas, jornais - onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escreve (quando há) surge em ques-tão de minutos.

Ao serem obrigados a bur-larem a indústria cultural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão influen-te quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há gran-

des tiragens que substitua o prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofisticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica mensal, escrita, editada e publicada pelos integrantes da Oficina de Escritores e Teoria Literária. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profis-sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

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88 SAMIZDAT agosto de 2008

Entrevista

rui ziNK

Rui Zink (Lisboa, 1961) é um escritor português com extensa e variada obra publicada de que salienta os romances Hotel Lusitano (1987), Apocalipse Nau (1996), O Suplente (1999) e Os Surfistas (2001), e os livros de contos A Realidade Agora a Cores (1988) e Homens-Aranhas (1994). Lança o seu último ro-mance, O Destino Turístico, em finais deste Outubro. Recebeu o Prémio do P.E.N. Clube Portu-guês pelo romance Dávida Divi-na (2004), e tem representado o país em eventos como a Bienal de São Paulo, a Feira do Livro de Tóquio ou o Edimburgh Book Festival. Professor universitário, é dado como o introdutor dos cursos de escrita criativa em Portugal.

Mais informações no seu site: http://ruizink.com/

Assisti a um vídeo seu num programa (creio que seja de televisão), chamado Sempre em Pé, no qual você compara a atuação do professor com o fazer stand up comedy. No Brasil há muito dis-so, de o professor “atuar” em escolas particulares e nos chamados “cursinhos pré-vestibular”. A minha pergunta é a seguinte: o professor, o bom pro-fessor, é o que dá mais prioridade ao “o que” ensina, ou o que prioriza o “como” ensina? Há um meio-termo para isso?Rui Zink: Há uma infini-dade de meios-termos. O bom professor começa por compreender quem é e adaptar a panóplia de métodos disponíveis – mui-tos deles contraditórios – à sua personalidade. A regra é parecida com a escrita: eu faço o que posso, não o que quero ou gostava de fazer. Sem comunicação eficaz não há aprendizagem, sem nada para dizer também não. Mas uma antecede a outra. Preciso de saber se os interlocutores entendem o que digo antes de começar a dizer, né?

Você é professor, escritor e leitor em Língua Portu-guesa. Qual é a sua opi-nião sobre a nova reforma ortográfica? R. Z.: Sou inteiramente a

favor. Só peca por tímida. Quero que os meus filhos possam viajar pelo mundo em português e ganhem dinheiro falando português. Isso só é possível graças ao Brasil, desde há mais de um século o nosso maior em-baixador.

Um aluno ou um escritor em início de carreira de-vem ser penalizados por escrever com pontuação incorrecta, mas a mesma que é usada por escrito-res aclamados como Lobo Antunes?R. Z.: Sim, um aluno deve ser penalizado. Primeiro dominar as regras, depois quebrá-las. Lobo Antunes, tal como antes dele Joyce, Faulkner, Guimarães Rosa, Raymond Queneau, etc., domina-as com mestria. O caso dum escritor é dife-rente do de um aluno, mas qual o interesse de escrever “tal e qual” outro escritor? Escritor, para mim, é aque-le que cumpre o ditado: “Quem conta um conto acrescenta um ponto.” Tudo o mais é redundante. E, sim, a maioria dos nossos tele-escritores são nesse sentido redundantes. Porque se limitam a pisar caminho trilhado, a pôr os pés nas marcas alheias, tanto no que dizem como no modo como dizem.

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O que o fez iniciar os cursos de escrita criativa?R. Z.: A poetisa Ana Ha-therly, minha mentora, sabia que eu tinha estado nos EUA e me interessava pelo assunto. E desafiou-me a fazer isso com alunos da [Universidade] Nova, em 1991. Acredito que o jogo com as palavras e as ideias pode ajudar as pessoas a tornarem-se melhores escri-tores do que eram e, sobre-tudo, melhores leitores.

É possível aprender a ser escritor, ou seja, é possí-vel estudar para sê-lo? Há “técnicas” para isso? R. Z.: É possível aprender e apreender técnicas, tal como é possível aprender a tocar piano ou a pintar ou a dançar. Naturalmente que dar o passo extra depende de algo que não se pode ensinar e que a pessoa tem ou não em bruto dentro dela. Mas o treino, a técnica e a teimosia ajudam, e não há artista digno desse nome sem nenhuma destas três coisas.

Qual é o seu primeiro conselho a um aspirante a escritor? R. Z.: Ler e copiar, copiar muito. E, já agora, viver.

Concorda com o apelo à concisão de Saul Bellow? Onde termina uma nar-rativa literária concisa e começa uma listagem de frases ligadas por um mesmo tema?R. Z.: Boa questão. Obvia-mente o apelo de Bellow tem uma batota: ele fê-lo depois de ter escrito pro-

lixos calhamaços. Mas a busca da palavra exacta parece-me tão aconselhável como a busca da nota certa. Senão somos como aquele aluno a quem o professor pediu quanto eram 2+2 e que responde 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, e fica espantado por chumbar, já que deu a res-posta certa.

Um escritor principiante deve ousar experimentar novas estruturas narra-tivas ou deve ater-se às consagradas pela literatu-ra?R. Z.: E porque não ambas? Com peso e medida umas vezes, sem peso nem medi-da outras.

Ter um “estilo próprio” é coisa a acalentar como virtude ou é um vício de escrita a combater? R. Z.: É um objectivo a acarinhar. Mas não ser-ve de nada pensar muito nisso. Ou se chega ou não se chega. Só é escritor, para mim, quem alcança uma voz própria.

Existe má literatura? Que critério tem para dizer que um texto é boa ou má literatura? R. Z.: Sim, existe. Aquela que maltrata a linguagem ou se limita a reproduzir ideias e frases gastas de tan-to uso. Margarida Rebelo Pinto, José Rodrigues dos Santos e Miguel Sousa Ta-vares não são (até à data) bons escritores, o que não significa que os seus li-vros não entretenham nem desmereçam de ser lidos ou comprados. Mas não são

bons e quem achar o con-trário (a começar pelos pró-prios) está lamentavelmente equivocado. Mas eu próprio gosto de ler maus livros, tal como há bons autores que não me convenço a ler.

Uma história construída com o objectivo de trans-mitir uma ideia política, filosófica ou científica pode ser boa literatura? Como?R. Z.: Pode. É o caso de Gonçalo M. Tavares, Musil, Brecht, Soeiro Pereira Go-mes. Mas é raro.

Quando acha que al-guém escreve muito bem, aconselha-o a continuar a escrever, ou a publicar? Ou seja, para si, é a escri-ta que deve ser incentiva-da ou a publicação?R. Z.: A escrita é íntima, a publicação não. Se acho que uma pessoa tem talen-to para cantar, aconselho-a tentar gravar um disco, pois é simpático partilhar. Além de que, publicando e tendo eco (aplausos, bombons, dinheiro), a pessoa tem in-centivo para trabalhar mais e crescer.

Prosperar na carreira de escritor é uma questão de talento, sorte ou persis-tência? R. Z.: Depende do que se entende por “prosperar”. De qualquer modo, uma conju-gação das três ajuda sem-pre. Não há receitas.

Ao escrever, o que o decide a optar por um conto ou por um roman-ce: o tamanho da história

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a contar; a intensidade pretendida; ou o quê?R. Z.: O tempo que eu acho que a história pede. O Bicho da Escrita não aguen-tava mais de oito páginas, embora pudesse ser estica-do por duzentas. O Destino Turístico exige uma leitura prolongada – sobretudo um longo primeiro capítulo (que vai até metade do livro e dura tanto como os doze seguintes).

Na sinopse que você mes-mo dá (foi você mesmo?) ao livro Homens-Aranha, você menciona o fato de que “as melhores histó-rias” são as que ao autor não é necessário inven-tar nada. Há quem diga, embora não recorde quem o diga, que a literatura não deve ser autobiográfi-ca. Até onde a “vida real” deve ser a massa da fic-ção?R. Z.: Tal como eu não pos-so pintar a cor verde com tinta vermelha, também não posso imaginar sem ser a partir da pessoa que sou e fui. O que somos é a ma-téria-prima a utilizar, mas obviamente que é apenas o trampolim, não o salto. E todos nós já lemos livros em que tivemos a percep-

ção de que o escritor não fazia ideia do que estava a falar e nos soaram a falso, não é?

Após o sucesso de O Có-digo Da Vinci, multipli-caram-se as obras sobre “mistérios” ligados a sei-tas, escondidos pela Igreja ou por antigas irmanda-des. Esse filão não acaba por tornar-se repetitivo? Os escritores estão escre-

vendo sobre isso ape-nas porque viram que tem leitura ou porque os temas atuais estão esgotados? R. Z.: Quem não quer ser papagaio não lhe vista a pele.

Existe mesmo uma indús-tria cultural que controla os destinos do mundo ca-pitalista, ou isso é intriga da oposição? Independen-te de existir ou não, em um cenário de poucos lei-tores (como o Brasil), é vá-lido que se leia porcarias desde que se esteja lendo? Ou é isso que “eles” que-rem que pensemos? R. Z.: Comer um hambúr-guer é melhor que não co-mer, ou mesmo que comer caviar podre. Mas obvia-mente que a leitura que me ajuda a crescer como leitor pode, um dia, já só servir para me impedir de crescer. Isto tanto funciona para os livros de entretenimento como para a papa Nestlé. É triste se um adulto pleno, que já não vive com a mãe

e tem a dentição completa, só comê papinha c’a mamã dá.

Ultimamente têm proli-ferado nas livrarias, pelo menos do Brasil, os ro-mances ambientados em culturas bem distintas da nossa, com destaque para as histórias que se pas-sam em países de maioria muçulmana. Isso se deve à natural curiosidade para com o que é diferen-te do que conhecemos? É um modismo? Ou faltam bons livros ambientados no Brasil/Portugal?R. Z.: Nihil obstat, desde que o autor tenha dado o seu melhor. Um autor é livre de escrever sobre o que quiser com o seu tem-po livre. E uma pessoa não escreve sobre o que quer, escreve sobre o que pode. Há assuntos sobre os quais eu gostava de versejar, mas sinto/sei que não consigo. Felizmente, com sorte, apa-rece sempre alguém que o faz melhor.

Em mais de 100 anos de Prêmio Nobel, apenas um único autor de língua portuguesa foi laureado. A que você atribui esta indiferença global em re-lação aos autores lusófo-nos? É uma questão quali-tativa, lingüística, política ou o quê? R. Z.: Os suecos são um povo maravilhoso, mas não encontrei nenhuma passa-gem da Bíblia onde diga: “E a Academia Sueca dirá qual é o melhor escritor do mundo.” Obviamente a limitação é deles, que lêem poucas línguas, e a vergo-nha é para eles, não para

A leitura é um prolongamento, por letras, de um acto que fazemos desde o nascimento até à morte: ler o mundo, ler os sinais, unir os pontos no desenho, não para atingir o desenho que o autor imaginou, mas um outro, sempre um outro.

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Coordenador da entrevista:Joaquim Bispo

Perguntas feitas por:Henry Alfred BugalhoJoaquim BispoMaria de Fátima SantosMaristela Scheuer DevesVolmar Camargo Junior

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Guimarães Rosa, Clarisse Lispector, Jorge Amado, Lígia Fagundes Telles, João Cabral de Melo Neto, Drummond de Andrade, Moacyr Scliar, Rubem Fonseca…

O que falta e o que sobra na ficção contemporâ-nea, em geral, e na ficção contemporânea em língua portuguesa, em particu-lar? R. Z.: Sobra truque barato para agarrar o leitor, sobre-tudo a leitora, falta algum trabalho crítico sobre a lin-guagem. Os escritores não podem cair na armadilha de dizer o que acham que o leitor quer ouvir – isso é tarefa de político.

O que reserva o futuro ao mercado editorial? O li-vro impresso está “conde-nado” a desaparecer? Des-membrando a pergunta: qual é a sua visão sobre o fenômeno da publicação on-line? R. Z.: Nada contra o online, excepto o facto de não re-ceber a minha percentagem, à qual eu tenho direito, pois não roubei ninguém e filhos tenho só dois. Há espaço para ambos, mas as gerações futuras não vão ter o “amor ao papel” que quem nasceu no meio do século passado tem. Nada de grave.

Que pensa de adaptações para outras mídias – coi-sa que parece ter ficado tão comum ultimamente: literatura para o cinema, quadrinhos (aqui) ou ban-da desenhada (aí) para o cinema, true stories para o cinema?

R. Z.: Prefiro sinergias a adaptações. Mas tenho o maior respeito por todas essas formas, de que sou consumidor – e, de muitos autores, admirador.

Qual a resposta à pergun-ta que uma comunidade de escritores principian-tes ou/e pouco conheci-dos devia ter feito, mas não fez?R. Z.: A resposta à pergun-ta só pode, obviamente, ser uma pergunta: “Qual o sen-tido do dito ‘ler é escrever, escrever é ler’?” A leitura é um prolongamento, por letras, de um acto que faze-mos desde o nascimento até à morte: ler o mundo, ler os sinais, unir os pontos no desenho, não para atingir o desenho que o autor imagi-nou, mas um outro, sempre um outro.

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1212 SAMIZDAT agosto de 2008

microcontos

Presente de NatalHenry Alfred Bugalho

O menino desembrulhou o presente.— E aí, filhão, gostou?— Eu queria o azul! — e foi brincar com as bolas coloridas da árvore.

NeuróticaHenry Alfred Bugalho

Matou o marido com uma escova-de-dentes.

autoconhecimentoHenry Alfred Bugalho

Partiu para a Índia em busca de si mesmo, mas só encontrou uma intoxicação alimentar.

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Vontade de mandarDenis da Cruz

Rui não conseguia que a esposa obedecesse suas ordens.Então, teve dois filhos, pois assim poderia mandar neles.Hoje, sua prole tem 14 e 16 anos e nunca foram obedientes.

quero te dizer que te amoDenis da Cruz

Minha querida esposa, eu queria dizer que... ah? Aca-bou o gás? Claro, claro, vou pedir outro. Eu queria... O quê? A pia tá entupida? Certo, eu já arrumo, mas antes queria dizer que... Meus sapatos? Eu não podia entrar no quarto com os sapatos? Ah sim, perdão, mas saiba que... Hoje cedo? Uma toalha molhada sobre a cama? Sim, era minha, perdão... Mas, por favor, deixe eu dizer que eu te... Eu esqueci de novo de abaixar a tampa da privada? Que coisa importan-te, né? Sempre me esqueço dessas coisas importantes, nao é? ... Ah, claro, igual quando deixo camisa pen-durada pela casa, cueca tirada toda do avesso, esque-ço de tirar o chinelo de andar dentro de casa para andar fora e de o de andar fora para entrar dentro de casa. Perdão... Mas eu queria dizer... queria dizer... Bem... Querida esposa, VÁ À MERDA...

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1414 SAMIZDAT agosto de 2008

Colóquios entre roedores, ou não

Coelho — E aí, rato! Como andam os processos contra as empresas?Rato — Contra a dos computadores eu ganhei ano passado. Mas difícil mesmo está contra a dos desenhos animados. Os advogados deles são umas cobras. E tu, coelhinho, conseguiu alguma coisa da revista?Coelho — Nada. Quer dizer, consegui o telefone de umas gatas...

microcontos

Rato — Mas e então, coelhinho... como é a experiência de pôr ovos de páscoa?Coelho — EU NÃO PONHO OVOS!!!

Volmar Camargo Junior

Coelho — Vem cá. Eu rôo as coisas muito mais que você, e não sou roedor. Como é que pode?Rato — A mídia pode acabar com a re-putação das pessoas. Não vê o caso dos morcegos? Viveram séculos alegando que eram ratos com asas.

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Rato — Er... O que que há, velhinho?Coelho — Odeio essa piada.

Rato — Tá vendo aquele pombo? Odeio pombos.Coelho — Por quê? São tão bonitinhos.Rato — São uns porcos, isso sim! Imagina que trans-mitem muito mais doenças que nós, e as pessoas jogam milho pra eles na praça.

Coelho — To me sentindo tão estranho... Tipo um vazio, sabe?Rato — Coitado. Se alimentou direito?Coelho — Sim.Rato — Tá com problemas no trabalho?Coelho — Não.Rato — Doença na família?Coelho — Nada.Rato — Grana?Coelho — Nem.Rato — O que é então? Coelho? Coelho? Por que tá me olhando assim?Coelho — É que você tem umas orelhinhas tão sexy...

Rato — Sabia que o melhor amigo do Bambi era um coelho?Coelho — E você, sabia que os ratos são os animais geneticamente mais parecidos com os seres humanos?Rato — Tá. Já chega. Você não sabe brincar.

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recomendações de Leitura

Esmagadopelo Sistema

Henry Alfred Bugalho

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Debaixo das Rodas

Autor: Hermann Hesse

Editora: Civilização Brasileira

Publicação: 1971

O segundo romance de Hermann Hesse, Debaixo das Rodas, é conhecido como sendo a biografia intelectual do autor.

Hermann Hesse foi um iconoclasta. Ainda jovem, ele fugiu do seminário no qual estudava, pondo um fim a uma promissora carreira na área acadêmica. Tornou-se livreiro e passou a investir em sua carreira literária. Publicou o primeiro romance, Peter Camenzind, aos vinte e seis anos e se tornou uma celebri-dade instantânea. Fortemente influenciado pelo budismo, Hesse viajou pela Ásia, visi-tou o Sri Lanka e a Indonésia. Relacionou-se com C. G. Jung e Thomas Mann. Recebeu em 1946 o prêmio Nobel de Literatura e se converteu num dos grandes autores alemães de todos os tempos. Esta breve biografia é apenas a súmula duma vida de luta contra os ideais burgueses ocidentais.

Este segundo romance, Debaixo das Rodas (Unterm Rad), está longe da maturi-dade obtida em Sidarta, O Lobo da Estepe ou O Jogo das Contas de Vidro. Hermann Hesse ainda busca sua voz, sua identidade, e o faz ao refletir sobre seu passado e sobre sua primeira grande ruptura com a sociedade.

O protagonista do romance, Hans Giebenrath, é um espe-lho do jovem Hesse, um rapaz promissor aceito por uma das melhores escolas secundaristas

da Alemanha. No seminário, ele conhece Hermann Heilner, o Outro de Hans, um poeta indomável. Juntos eles desa-fiam a instituição e se tornam objeto das reprimendas dos superiores.

No entanto, Hans Gieben-rath não possui a fibra neces-sária para suportar a rígida disciplina, ele é esmagado pelo sistema, é atropelado pelas rodas da instituição.

Hermann Hesse parece prenunciar a grande tema que ocuparia os intelectuais estru-turalistas da geração de 68: o espaço da escola enquanto forma de dominação. Foucault e Althusser estão de acordo quando afirmam que a escola funciona como uma instância disciplinar, e que no interior da estrutura educacional se reproduz um esquema que fortalece a sistema de classes — educação melhor para quem possui maior poder aquisitivo, e uma educação pior para o proletariado. Hans Giebenrath tem a oportunidade de estu-dar numa escola de elite, mas, mesmo assim, a instituição é representada como castradora. Os alunos são estimulados a seguirem as regras, enquanto que a criatividade e esponta-neidade são tolhidas.

Para Hans Giebenrath, a solução é a morte; para Hesse, a solução foi a fuga.

Estranhamente, este é dos poucos romances de Hesse que não possui edição recente

— a última é de 1974. Mas a escola continua e continuará exercendo sua função discipli-natória, e permanecerá como uma das instâncias de estrati-ficação social.

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1818 SAMIZDAT agosto de 2008

autor em Língua Portuguesa

Marcia Szajnbok

machado de assisPoEta

Machado de Assis dispensa apresentação. Neste ano, centenário de sua morte, muito se tem comentado na imprensa, tanto sobre o homem, quanto sobre sua extensa obra. Dela fazem parte alguns dos melhores textos em prosa já produzidos em língua portuguesa. Seus contos e romances são leitura obrigató-ria, quer nas lições do colégio, quer por gosto da literatura. Escritor completo, entretanto, Machado de Assis não escreveu apenas pro-sa. Há também teatro e poesia, gêneros aos quais não se dedicou tanto, o que nem por isso lhe diminui a qualidade de suas produ-ções.

Classificam-se, em geral, os textos macha-dianos num primeiro momento, romântico, que inclui Helena, Ressureição, Iaiá Garcia, e num segundo, por vezes considerado realista, por vezes inclassificável, onde estão as obras que se lhe consideram primas, como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, entre tantas outras. Se classificar os textos em prosa já suscita discussões, no que tange à sua poesia as classificações são ainda menos precisas. Que os primeiros poemas enquadram-se bem nos cânones do romantis-mo, não há dúvida. Mas seus temas passam pelo indianismo, e sua forma, mais tardia, se aproxima dos parnasianos. Independente dessas questões acadêmicas, o que Machado de Assis nos traz com seus versos é aquilo

que, em síntese, toda poesia carrega em si: a possibilidade de produzir no leitor, por uma combinação mágica de forma e conte-údo, um frêmito, uma emoção, um estado de alma. Eis aqui uma pequena amostra desse aspecto menos popularizado, do texto de Machado de Assis:

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muSa CoNSoLatriX

Que a mão do tempo e o hálito dos homens

Murchem a flor das ilusões da vida,

Musa consoladora,

É no teu seio amigo e sossegado

Que o poeta respira o suave sono.

Não há, não há contigo,

Nem dor aguda, nem sombrios ermos;

Da tua voz os namorados cantos

Enchem, povoam tudo

De íntima paz, de vida e de conforto.

Ante esta voz que as dores adormece,

E muda o agudo espinho em flor cheirosa,

Que vales tu, desilusão dos homens?

Tu que podes, ó tempo?

A alma triste do poeta sobrenada

À enchente das angústias,

E, afrontando o rugido da tormenta,

Passa cantando, alcíone divina.

Musa consoladora,

Quando da minha fronte de mancebo

A última ilusão cair, bem como

Folha amarela e seca

Que ao chão atira a viração do outono,

Ah! no teu seio amigo

Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita,

Em vez de algumas ilusões que teve,

A paz, o último bem, último e puro!

(Crisálidas, 1864)

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2020 SAMIZDAT agosto de 2008

Lua NoVa

Mãe dos frutos, Jaci, no alto espaço

Ei-la assoma serena e indecisa:

Sopro é dela esta lânguida brisa

Que sussurra na terra e no mar.

Não se mira nas águas do rio,

Nem as ervas do campo branqueia;

Vaga e incerta ela vem, como a idéia

Que inda apenas começa a espontar.

E iam todos; guerreiros, donzelas,

Velhos, moços, as redes deixavam;

Rudes gritos na aldeia soavam,

Vivos olhos fugiam p’ra o céu:

Iam vê-la, Jaci, mãe dos frutos,

Que, entre um grupo de brancas estrelas,

Mal cintila: nem pôde vencê-las,

Que inda o rosto lhe cobre amplo véu.

E um guerreiro: “Jaci, doce amada,

Retempera-me as forças; não veja

Olho adverso, na dura peleja,

Este braço já frouxo cair.

Vibre a seta, que ao longe derruba

Tajaçu, que roncando caminha;

Nem lhe escape serpente daninha,

Nem lhe fuja pesado tapir.”

E uma virgem: “Jaci, doce amada,

Dobra os galhos, carrega esses ramos

Do arvoredo coas frutas que damos

Aos valentes guerreiros, que eu vou

A buscá-los na mata sombria,

Por trazê-los ao moço prudente,

Que venceu tanta guerra valente,

E estes olhos consigo levou.”

E um ancião, que a saudara já muitos,

Muitos dias: “Jaci, doce amada,

Dá que seja mais longa a jornada,

Dá que eu possa saudar-te o nascer,

Quando o filho do filho, que hei visto

Triunfar de inimigo execrando,

Possa as pontas de um arco dobrando

Contra os arcos contrários vencer.”

E eles riam os fortes guerreiros,

E as donzelas e esposas cantavam,

E eram risos que d’alma brotavam,

E eram cantos de paz e de amor.

Rude peito criado nas brenhas,

— Rude embora, — terreno é propício;

Que onde o gérmen lançou benefício

Brota, enfolha, verdeja, abre em flor.

(Americanas, 1875)

muNdo iNtErior

Ouço que a Natureza é uma lauda eterna

De pompa, de fulgor, de movimento e lida,

Uma escala de luz, uma escala de vida

De sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, — a natureza externa, —

Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida

Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna

Entre as flores da bela Armida.

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traVESSa

Ai; por Deus, por vida minha

Como és travessa e louquinha!

Gosto de ti — gosto tanto

Dessa tua travessura

Que não me dera o meu encanto,

Que não dera o meu gostar,

Nem por estrelas do céu.

Nem por pérolas ao mar!

Alma toda de quimeras

Que acordou no paraíso

Vinda do leito de Deus;

E que rivais de teus olhos

Só tens dois olhos — os teus!

Pareces mesmo criança

Que só vive e se alimenta

De luz, amor e esperança.

Ave sem medo à tormenta

Que salta e palpita e ri,

As travessas primaveras

Assentam tão bem em ti!

Assentam sim, como as asas

Assentam no beija-flor,

Como o delírio dos beijos

Em uma noite de amor;

Como no véu que se agita

De beleza adormecida

A brisa mole e sentida!

Foi por ver-te assim — travessa

Que eu pus a minha esperança

No imaginar de criança

Dessa formosa cabeça...

Foi por ver-te assim — Que os sonhos

Eu sei como os tens eu sei.

Puros, lindos e risonhos.

Um coração novo e calmo

Onde a lei do amor — é lei;

Foi por ver-te assim, que eu venho

Pôr em ti as fantasias

De meus peregrinos dias.

Como a esperança no céu:

Em ti só, que és tão louquinha,

Em ti só pôr a minha vida!

(in Poesias Dispersas, pub. original O Espelho, 18 dez. 1859)

fonte dos textos: http://portal.mec.gov.br/in-dex.php?option=com_content&task=view&id=11300&Itemid=1338&sistemas=1

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho

Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo

Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,

E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,

Um segredo que atrai, que desafia — e dorme.

(Ocidentais, 1901)

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2222 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Volmar Camargo [email protected]

ComPaNHia Limitada

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João Barros, engenheiro civil, levou seu currículo a uma empreiteira.

No primeiro dia de tra-balho, o chefe mandou-o descarregar uma caçamba de areia, carregar cinqüenta sacos de cimento, empilhar dez milheiros de tijolos fura-dos e, antes do fim da tarde, devia lavar as ferramentas. Indignado, João Barros pediu demissão.

— Não estudei quinze anos para trabalhar de ser-vente de pedreiro.

— Entendo... mas os meus pedreiros trabalham aqui há mais tempo que isso.

— O azar é deles. Se puder fazer o favor de devolver meu currículo...

— Assinou um contrato, rapaz. É meu funcionário, e não quero demiti-lo. Agora volte para a obra e só retor-ne aqui quando tiver calos nas mãos.

Então ignorou a presença de João Barros voltando para a planilha sobre a mesa. O engenheiro vociferou.

— Vou botar você na justi-ça, filho-da-puta.

O chefe levantou-se de-vagar. Serenamente, andou até João com o currículo na destra, e, com a canhota, desferiu-lhe um murro na cara. Jogou o papel aos pés do rapaz.

João Barros com o nariz

arrebentado e a camisa en-sopada de sangue deixou do escritório batendo a porta. Ao pisar na rua, ligou para o advogado da família.

“Quero tirar até as meias desse corno!”

Em todas as instâncias, após todos os recursos, cumpriu-se a justiça. Venceu João Barros.

O ex-chefe precisou vender a empreiteira para pagar a indenização. Vol-tou a ser pedreiro. Rodou a cidade procurando trabalho. Em todos os edifícios em andamento havia a placa de uma nova construtora, “João-de-Barro Engenharia & Cia. Ltda”. E o ex-chefe foi recusa-do em todas as obras.

João Barros fez a empresa triplicar seu capital. Em pou-co tempo, estava muito rico. A cidade virou um canteiro de obras. Prefeito, Governa-dor, até Ministro contratou a “João-de-Barro Engenharia & Cia. Ltda” para obras públi-cas. Pastores, padres e pais-de-santo mandaram erguer novos templos. Veio para o local uma emissora de tele-visão, um jornal de grande circulação, e um estúdio de cinema. A cidade cresceu. E João virou Dr. Barros.

Mesmo bem sucedido, Dr. Barros não era feliz. Sofria com um vazio inexplicável. Como compensação, gra-tificava a si mesmo com

qualquer coisa que pro-porcionasse prazer. Certa noite, guiando seu esportivo, embrenhou-se na zona de to-lerância. Distraído, pensando se queria uma companheira ou duas, atropelou alguém.

Desceu.

— Você está bem? – per-guntou sem obter resposta.

Ligou para a emergência, e no mesmo instante ouviu-se a sirene à distância. Abai-xou-se para sentir a pulsação do indivíduo. Pondo-lhe os dedos no pescoço, olhou pela primeira vez para o rosto da vítima. Não teve dúvidas. Era o ex-chefe.

A ambulância chegou em poucos minutos. Os para-médicos encontraram, esten-dido no asfalto, um homem morto, vítima de atropela-mento. Estava completamente nu.

A sensação de vazio nunca mais incomodou Dr. Barros.

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2424 SAMIZDAT agosto de 2008

O Paradoxo da MorteHenry Alfred Bugalho

[email protected]

Contos

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— Lisa quer sair para fazer cocô, querido — era verdade, a cachorrinha estava chei-rando a coleira, dependurada perto do interfone.

Antônio coçou a barri-ga roliça e peluda, botou o controle remoto de lado e, sôfrego, se levantou. Maria fazia as unhas na cozinha, pé apoiado na cadeira, algodão entre os dedos.

— Estou indo — ele vestiu uma camiseta e calçou as Havaianas. Engatou a guia na vira-lata e saiu,

— Vou deixar a porta aber-ta, ‘tá? Já voltamos.

— Só não deixe Lisa mijar em frente à pizzaria. O dono me deu uma bronca ontem.

— Lisa vai mijar onde qui-ser — Antônio riu, fechando a porta.

Estava quente, um pouco nublado, mas um mormaço de matar. Por isso, Antônio resolveu dar uma voltinha expressa, só ao redor do quarteirão. Lisa fez xixi na frente da pizzaria, cocô num canteiro perto da esquina. Iniciaram o caminho de volta.

Lisa tentou brigar com um buldogue no elevador, a vizinha gostosa ria, achando graça na peleja, o buldogue babava, sem achar graça alguma. Ao sair do elevador, Antônio reparou que a porta estava entreaberta. Lisa latia, em desespero. Encontrou

Maria no chão da cozinha, mergulhada em sangue.

Antônio se ajoelhou na poça, segurando a cabeça da esposa, murmurando frases sem sentido como:

— Tudo vai ficar bem, amor.

— A polícia já está chegan-do.

— Amanhã é aniversário da Juliana, você não pode nos deixar.

Mas a mulher já estava morta, a polícia ainda não havia sido chamada e a festa de aniversário da filha teria de ser adiada indefinidamen-te. Lisa uivava, pranteando a dona falecida.

Antônio consultou o relógio, em meia hora, Julia-na chegaria da aula de balé. Ligou para a emergência, chorando, repetia que mulher não estava respirando, deu endereço, telefone, sem muita clareza, sem muita certeza se estava passando os dados corretamente. Em seguida, ligou para a polícia, relatou o assassinato, e conjeturou que o criminoso talvez ainda estivesse nas redondezas. Por fim, ligou para o celular da filha.

— O que aconteceu, pai?

— Ju, um acidente. Sua mãe não está nada bem. Vá para a casa da Rafaela e fique lá até eu te ligar, mais tarde, OK?

— É algo sério?

— Bem sério, mas tudo vai ficar bem. Confie em mim.

Os paramédicos chegaram e logo constataram que não podiam fazer nada. A polícia também apareceu, isolou o local e fez perguntas a Antô-nio. O rabecão do IML levou o corpo.

Por ser uma cena de cri-me, Antônio foi autorizado a juntar apenas uma muda de roupas e a cachorra. Passou pela casa de Rafaela, para conversar com Juliana.

— Como a mãe está?

— Amanhã você vai vê-la, Ju. Temos de ser fortes... — ele abraçou a filha, beijou-lhe a fronte — Durma aqui hoje à noite. Estarei na casa da tia Paula. Se precisar de alguma coisa, ligue.

De fato, na casa da irmã, Antônio só deixou a trau-matizada cadelinha e voltou para a cena do crime. Subiu até seu andar e refez todos seus passos, do momento em que saiu da casa, deu a volta no quarteirão, e retor-nou ao apartamento. Tentou rememorar qualquer imagem inusitada, ou pessoa estranha entrando ou saindo do pré-dio. Mas nada.

O ideal seria aguardar a perícia policial.

Mas a polícia também não tinha nenhuma conclusão satisfatória, sem digitais, sem quaisquer indícios de arrom-

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2626 SAMIZDAT agosto de 2008

bamento (é óbvio, a porta estava aberta), sem testemu-nhas, sem suspeitos, ou seja, de antemão, um crime inso-lúvel.

Este tipo de resposta ja-mais satisfaria Antônio. Sua mulher foi assassinada, porra! O mínimo que ele queria era pôr as mãos no culpa-do, e que ele apodrecesse na cadeia!

Naquela manhã, Juliana viu o cadáver da mãe, chorou muito. Implorou ao pai que descobrisse quem era o as-sassino, ele jurou que o faria, abraçaram-se.

Maria foi velada, vieram parentes de longe, primos, tios, pai, mãe; pãozinho francês com margarina sendo mastigado na copa da casa funerária, piadas sussurradas pelos cantos, rezas sobre a morta. Maria foi sepultada, os parentes voltaram para suas cidades, Juliana pra casa da tia Paula, e Antônio para seu apartamento, tentar cum-prir com o que prometera à filha.

Perto da mesa de jantar, aquela mancha negra, sangue coagulado; Antônio se deitou sobre ela, na mesma posição em que encontrou a esposa; cerrou as pálpebras, respirou fundo. Há vinte anos não fa-zia isto, desde quando era um adolescente, crente em tudo que era esotérico ou místico. Havia praticado meditação, ioga e aspirado ao nirvana. Teve experiências estranhas,

mas após se encontrar, possi-velmente no plano astral, com um demônio, abandonou to-das as crenças na imortalida-de da alma, em reencarnação, e todas estas bobajadas que não passavam de devaneios da mente.

Mas que não eram deva-neios porcaria nenhuma.

Ouvindo sua respiração, livrando-se dos pensamentos, aquietando a angústia de seu coração, Antônio começou a voltar, mentalmente, no tempo.

Uma hora atrás, a poça no chão.

Duas horas atrás, a poça no chão.

Um dia atrás, a poça no chão.

Dois dias atrás, ele, ao lado da esposa morta.

Minutos antes, Maria, esvaindo-se em sangue, ago-nizando.

Antes, um homem, mas-carado, luvas, faca na mão, degolando Maria.

Antes, ele, pondo a guia em Lisa e saindo.

Antes, ele, coçando o saco diante da TV.

Antes, o casal almoçando.

Antes, Juliana saindo de casa para ir ao balé.

Antes, Maria e Antônio se espreguiçando na cama.

Antes, Antônio roncando, Maria se masturbando em silêncio.

Antônio abriu os olhos, donde lágrimas escorriam. O sol nascia pela persiana da janela da sala; olhou ao seu redor, e a cozinha esta-va diferente de quando ele havia chegado; a mancha no chão havia desaparecido. Ele se levantou, caminhou até o quarto e gentilmente abriu a porta, ele e Maria dormiam.

Não era sua mente que havia voltado no tempo apenas, era ele, em pessoa, que havia voltado. O coração de Antônio saltou no peito. Estava aí uma oportunidade não somente para descobrir o assassino, como para também evitar o crime.

Ele tinha de descobrir um lugar para se esconder naque-le apartamento minúsculo.

Lembrou-se que Juliana sairia de casa antes que ele e Maria deixassem o quarto. Por isto, sentou-se em silên-cio na sala, pegou um livro com capa reluzente (nunca sequer havia sido folheado antes) e fingiu ler.

A porta do quarto de Juliana se abriu e a menina saiu, pijamas e remelas:

— Nossa, pai, você está len-do? E nestas horas da manhã!

— Sempre há hora para se começar a criar o hábito. Talvez você também devesse tentar.

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— Sai fora, pai! — Juliana riu, e desapareceu no banhei-ro, xixizinho e escovar de dentes.

A menina se trocou e saiu, bolsa com vestido e sapati-lhas a tiracolo.

— Tchau, pai, te amo!

— Eu também, Ju, se cuida.

Aproveitou e se atocaiou no quarto da filha, ele e a esposa nunca entravam lá, então, seria um bom escon-derijo para aguardar até o momento do crime. Conferiu o relógio, faltava bastante tempo ainda.

Olhou pela janela, o mun-do corria normalmente lá fora, o tempo em seu ritmo normal, realmente não era devaneio, Antônio havia vol-tado. Ele sorriu.

Ouviu ruídos na cozinha, Maria preparava o almoço. A televisão foi ligada, era ele assistindo TV. Ruído de ta-lheres, almoçavam. Arroto na sala, era Antônio coçando o saco. Lisa acordou, raspava na porta do quarto de Juliana.

— Amor, o que a Lisa quer ali? — Antônio perguntou.

— Não sei. Dá um biscoi-to que ela esquece — dito e feito, Lisa não mais arranhou a porta.

Alguns minutos depois, Antônio ouviu a voz de Ma-ria falando para Antônio:

— Lisa quer sair para fazer cocô, querido.

Antônio na sala de levan-tou, preguiçoso; Antônio, es-condido no quarto, encostou o ouvido na porta; Antônio pôs a guia na cadela, saía.

— Vou deixar a porta aberta, ‘tá? Já voltamos — dis-se Antônio.

Maria pediu que Antônio não deixasse Lisa mijar em frente à pizzaria, Antônio respondeu que ela mijaria onde quisesse. Saiu.

Antônio, no quarto da filha, abriu uma fresta na porta. Agora, vinha a questão, o assassino estava armado, ele, mãos nuas. Percorreu o quarto de Juliana à procura duma arma: o porquinho de moedas? Não! Os patins rol-ler? Não! A raquete de tênis? Aí estávamos começando a conversar.

Antônio se pôs à espreita, raquete na mão, aguardando o momento certo.

Alguém entrou no aparta-mento.

— Amor, já voltou? — Ma-ria perguntou da cozinha.

O bandido botou a faca no pescoço de Maria:

— Não grita não, moça! É só abrir as pernas, é rapidi-nho.

Enfurecido, Antônio correu para fora do quarto, raquete pronta para atingir a cabeça do bandido.

O criminoso deslizou a faca no pescoço de Maria,

sangue escorreu. Num malfa-dado golpe, Antônio atingiu o ombro do assassino, este respondeu metendo a faca no bucho de Antônio. Ele caiu; o assassino fugiu.

Antônio, agonizando, abraçou Maria, agonizando. Morreram, juntos.

Antônio volta do rápi-do passeio com Lisa, abre a porta e encontra dois corpos, um da sua esposa, o outro, dele mesmo.

Desaba a chorar, mas não sabe se pela esposa morta, ou se por ver-se morto estando vivo.

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2828 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Joaquim Bispo

toque de Saída

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Quando o telemóvel emi-tiu o trinado de nova men-sagem, Susana saltou para o agarrar e sentiu o coração acelerar-se. Se este não a enganava, o toque festivo prenunciava que iria ser a rapariga mais feliz da turma.

Nessa manhã, regressara à escola para iniciar o 8º ano. Longe de o sentir como uma maçada, a perspectiva de rever as amigas fizera-a saltar da cama cheia de entusiasmo. Não foi pre-ciso a mãe insistir para se levantar. Tomou duche de um jacto e vestiu-se a correr. Irritou-se por não encontrar um soutien completamente confortável. Estavam todos a deixar de servir. Escolheu um vestido rosa por sobre umas calças de ganga e os ténis azuis. Deu um pouco mais de tempo ao cabelo, sempre solto sobre os ombros. A mãe torceu o nariz à escolha da roupa, enquanto ela engo-lia uma tigela de flocos. Pôs três cadernos e uma caixa de esferográficas na mochila e desceu as escadas rapida-mente. Gostou de sentir no rosto, outra vez, o ar fresco da manhã. Vieram-lhe à me-mória as recordações de sons e cheiros de outras manhãs de outros anos escolares. Era bom voltar à escola.

Aos dez para as oito, estava a cruzar o portão da escola. A Mariana já lá estava. Quando chegou a Catarina, abraçaram-se as três, pulando e gritando de alegria. Era tão bom revê-las,

depois de quase três meses sem se encontrarem. Só os diferentes planos dos pais as separavam. As férias fami-liares levavam-nas sempre para sítios díspares. Susana começara por ir à terra do pai, lá para as Beiras e de-pois estivera em Armação de Pêra quase um mês. Lá, encontrou os amigos de ou-tros anos e teve umas férias divertidas, mas estas duas eram especiais. Já as tinha por amigas desde o primeiro ano. Se uma se atrasava, as outras duas esperavam para entrarem as três na sala de aula ao mesmo tempo. Iam juntas ao centro comercial, ao cinema, e a um ou outro concerto, mas com o apoio logístico dos pais.

Depois das primeiras tro-cas de novidades de viva voz, que por telemóvel já tinham feito o resumo, passaram ao encontro com outros cole-gas. Cada nova entrada era uma festa. Beijos, abraços e gritos. O que mais surpre-endeu Susana, neste regresso à escola, foi o ar tão - como dizer? - infantil dos colegas rapazes. Parecia que, em vez de crescerem, ficavam mais pequenos. E continuavam com as conversas parvas do costume. Felizmente que havia novos ingressos. Um deles era alto, cabelo preto e uma postura de grande auto-confiança. Riram-se as três, nervosamente, quando ele olhou de longe para elas. Al-gumas perguntas percorriam o íntimo de cada uma.

– De que escola terá vindo? – perguntou Mariana, sem esperar resposta. «Que idade terá?», pensou Susana.

Mais nervosas ficaram quando confirmaram que o rapagão iria ficar na mesma turma.

Nas apresentações da aula de Português B, ficaram a saber que se chamava Filipe e que tinha quinze anos. No intervalo seguinte, ficaram a espiá-lo pelo canto do olho e quando ele se aproximou puderam ver-lhe o dourado dos olhos cor de mel. Tro-caram piadas e números de telemóvel. Filipe era muito divertido, com um sentido de humor estimulante. E já ti-nha mudado a voz, o que era um progresso no timbre das conversas do grupo. Parecia que tinham passado de nível neste jogo real.

Quando, ao jantar, o tele-móvel retiniu em tom festivo, Susana agarrou-o com nervo-sismo e tão atabalhoadamen-te que se lhe escapou da mão e caiu, separando-se a tampa e a bateria. Voltou a montá-lo e leu a nova mensagem:

kurti bue falar kntg kerx ir oh xinema xabad?

Reparando na agitação da filha, a mãe perguntou-lhe:

– O que é que se passa, Susana?

– Nada, mãe, foi a Catari-na que nos arranjou bilhetes para ir ver o Harry Potter no

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3030 SAMIZDAT agosto de 2008

sábado. Posso ir?

Susana ficou sem saber se o rubor que lhe queimava a face era por ter mentido à mãe, se por perceber que este ano escolar iria ser muito diferente dos anteriores.

Com o pretexto de orga-nizar os cadernos, foi para o quarto logo a seguir ao jantar e deitou-se em cima da cama a imaginar como seria o sábado: o que levaria vestido, se ele lhe pegaria na mão, se trocariam algum beijinho. Ele seria atrevido ou tímido? Hesitava na resposta: dizer que sim, sem mais, ou dizer que ainda não sabia se podia ir, para ter tempo de o ava-liar melhor. Até podia dizer que no dia seguinte falariam sobre a ida ao cinema.

O telemóvel retiniu de novo e Susana, de novo, saltou a apanhá-lo. Tinha a certeza que era o Filipe, já impaciente. Mas não. Era a Mariana. Feliz da vida, porque o Filipe lhe tinha enviado uma mensagem a convidá-la para ir ao cinema.

– Que bom, Mariana! E o que lhe vais dizer? – interes-sou-se Susana, com o tom mais natural do mundo.

– O que já disse. Que sim, claro! Achas que eu ia dizer que não? Vamos ver o Harry Potter ao centro comercial.

Susana desculpou-se di-zendo que tinha que ajudar a mãe e acabou rapidamente a conversa radiosa da ami-

ga. Virou-se de barriga para baixo e deixou as lágrimas escorrer para a colcha. Sen-tia-se a rapariga mais infeliz do mundo. Logo agora, que pensava que iria viver um romance bonito. E magoava-a que tivesse sido a própria amiga a trai-la, mesmo sem o saber.

Revoltada, pegou no tele-móvel, alterou a identidade para «anónimo», e escreveu:

Veja por onde anda a sua filha. Sabe aonde ela vai saba-do?

Seleccionou o número de telemóvel da mãe da Mariana, mas hesitou antes de enviar. Não podia fazer esta maldade à amiga. Ela não tinha culpa nenhuma e, mesmo que tivesse, era uma amiga de muitos anos. Apa-gou a mensagem, pensativa.

Passado um bocado e aceite o fracasso, começou a sentir que, vistas bem as coisas, até tinha sido útil não ter respondido logo ao Filipe e ter, assim, percebido que tipo de rapaz ele era. Uma ideia começou a germinar na sua cabeça. Para alguma coisa haviam de servir as te-lenovelas. Pegou no telemóvel e escreveu:

Eu ate gostava Filipe mas te-nho que ficar em casa porque os meus pais vao para fora e eu tenho que tomar conta dos caes. Não queres vir tu ca a casa? Vamos para o meu quar-to e vemos o senhor dos anéis que eu saquei da net. Sim? Mas

não digas nada as colegas.

Com um convite destes, não duvidava que Filipe arranjaria uma desculpa para cancelar a sessão de cinema com a Mariana. E quando ele ali chegasse no sábado, a imaginar uma tarde de «mar-melada», havia de as encon-trar às três, a rir da cara dele, pelo logro em que caíra, e tudo acabaria em galhofa.

Ou não... Mais uma vez, hesitou antes de enviar a mensagem. Voltou a cabeça e encarou-se no espelho do roupeiro. Viu uma miúda, apenas, a querer brincar aos crescidos. E, não estava a gostar de se ver nestes papéis mesquinhos de adultos en-cornados. Uma coisa eram as histórias das telenovelas, ou-tra, as situações com pessoas reais. Apagou a mensagem e escreveu:

Sabado não posso desculpa

Enviou a mensagem para o Filipe, desligou o som do telemóvel e foi-se deitar que no dia seguinte era mais um dia de escola e queria che-gar cedo para estar com os amigos. Todos.

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ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-lugar. Apenas no século XXI uma vintena de autores, que jamais se encontraram fisicamente, poderia conceber um projeto semelhante.

O livro, sempre tido em conta como umas das principais fontes de cultura, tornou-se apenas um bem de consumo, tornou-se um elemento de exclusão cultural.

A proposta da Oficina Editora é resgatar o valor natural e primeiro da Literatura: de bem cultural. Disponibilizando gratuitamente e-books e com o custo mínimo para livros impressos, nossos autores apresentam a demonstração máxima de respeito à Literatura e aos leitores.

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3232 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Maria de Fátima Santos

o Gato JeremiasQueria escrever-lhe.

Colocar uma folha de pa-pel branca, sem linhas nem quadrados, em cima da secretária ou num canto da mesa da cozinha. Ao lado da folha, a sua fotografia. Aquela em que está, de mãos sujas, segurando o Jeremias.

Jeremias, o nosso gato cin-zento, enorme.

Queria, pois, escrever-lhe uma carta sob o seu olhar. O olhar com que me olha-

va, segurando o gato, num fim de tarde de Maio. Sorria na fotografia. Sorria-me. Fui buscar uma caneta. Uma qualquer, desde que escreves-se em azul. Um azul de tinta, muito azul. Um azul como o azul do céu do começar a noite naquele Maio em que a fotografei segurando o gato com as mãos sujas de fari-nha.

Porque desceu ela a escada em vez de entrar em casa?

Nada nunca mais foi. Des-de esse dia de Maio, nunca nada mais foi.

Era preciso que eu lhe escrevesse. Eu queria escre-ver-lhe. Já tinha a folha de papel e a caneta que escrevia naquele tom de azul.

O que eu escrevi foi uma carta assim.

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Minha querida

Tenho tantas saudades!

Nunca consegui perceber o que aconteceu naquela tarde.

Tu fazias bolos. Vi a massa estendida sobre a larga mesa da cozinha.

O compartimento onde agora te escrevo e que nessa tarde atravessei em direcção ao jardim para fotografar as roseiras floridas.

Lembras-te?

Já lá em baixo, entre os cliques da máquina, ouvi o teu zangar-te com o gato. O Jeremias saltara sobre a mesa. Ouvi-te descrever o que acontecia:

- Olha o que fizeste!A massa toda salpicada com as tuas patas, Jeremias!

Dizias,imitando um zanga-do que era um pobre imita-do.

Assomaste à porta que derramava vidrinhos sobre o jardim. Trazias o Jeremias abafado nos teus braços. Do cimo da escada, gritaste ao quase escuro do jardim:

- Olha, amor, o Jeremias anda a ajudar. Tiras uma foto?

E sorrias. Este sorriso com que estás na fotografia.

Depois, só tu o saberás contar. Por isso te escrevo. Para que me contes. Para

que me expliques o que até hoje ninguém me soube, ou sequer tentou, explicar. E eu não entendo. Continuo sem entender como é que tu fa-zias bolos, sorrias, pegavas no Jeremias, pedias fotografias e, um instante depois, coisa de no mesmo instante de eu registar o teu sorriso, tu já não sorrias, o Jeremias miava atordoado e os bolos queima-vam-se na cozinha.

Foi muito depressa, sabes? Eu nunca percebi.

Entro na cozinha e...

Desde esse dia de Maio, nunca nada mais foi. E eu tenho tantas saudades!

Eu sei que a carta era uma fantasia minha. Uma forma de acalentar a saudade. Gri-tar a precariedade deste estar vivo que tanto desatentamos. Deixei-a na mesa da cozinha onde a escrevi, tal qual a acabei. A folha escrita naque-le tom de azul aberta sobre a mesa.

Hoje, ainda nem há nada, relancei o olhar sobre o papel enquanto mordiscava um scone.

A folha estava escrita numa cor verde-água.

Debrucei-me mais.

A caligrafia não era a minha. Reconheci a letra e arrepiei-me.

Percorri cada palavra, agi-tado e incrédulo.

Depois de ler, sosseguei.

Dizes-me que naquele anoitecer, me vinhas oferecer um scone acabado de sair do forno, que o gato saltou assustado com o flashe o que te fez desequilibrar. Dizes que, ainda deitada nos de-graus da escada, me tentaste falar, mas já só dizias as pala-vras que eu não sabia ouvir.

Pedes-me que fique des-cansado, que estás bem. E no final, antes de me enviares beijos, escreves: toma conta do gato Jeremias.

Guardei a carta numa pasta.

Lá fora as rosas estão lin-das e o sol de Verão acaricia o pêlo do Jeremias estirado no cimo da escada em frente da porta da cozinha.

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3434 SAMIZDAT agosto de 2008

Aquele rapaz sentado à mesa do bar tinha me chamado à atenção. Prin-cipalmente por tomar um refrigerante de uva! Poderia tomar qualquer coisa, mas refrigerante de uva era o mais barato do mercado! Isso já seria suficiente para mui-tas mulheres desistirem logo de cara. Prova de que é um pobretão falido.

Tinha o olhar sereno de um sábio. Era calmo e trans-parecia ter lido vários livros,

conhecedor de muitas coisas. Achei que poderia tomar o refrigerante por gosto. Uma mente revolucionária, talvez. Ir na contramão de todos ou fazer algo que todos querem fazer, mas ninguém faz.

Usava óculos com lentes redondinhas, projetando sua visão mais à frente. Vestia roupas simples, nada de marca, como pude perceber. E assim mesmo não perdeu a elegância. Também nada de moda. Personalidade. As

roupas simples deram-lhe um toque a mais.

Seus braços fortes, suas mãos bonitas segurando o copo com a firmeza que se deve pegar uma mulher.

Discretamente, fiquei olhando e tomando meu suco, lançando olhares sexy e quando olhasse faria um velado (mas não tanto) sinal.

Ele olhou algumas vezes, mas, admito, tive vergonha

rEENCoNtroGuilherme Rodrigues

Contos

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e desviei o olhar. Situações assim me deixam toda sem jeito. Agora tomo coragem para o segundo plano.

Dei mais um tempo e pude refletir: ele me atraiu porque prestei atenção nos detalhes, fui além do refri-gerante de uva. Uma mulher se fizesse o que fiz logo se interessaria. Ainda mais com um topete jogado ao vento. Bem poderia ser um aviador. Olhando tudo de cima.

Tive a idéia de pedir um cigarro:

– Com licença, você teria um cigarro?

– Não fumo, moça.

– Ah... Queria tanto fu-mar...

Dito isto, o rapaz saiu da mesa. Em seguida voltou com um maço de cigarros.

– Que gentileza! Que fofu-ra! Muito obrigado!

“Droga! Agora tenho que fumar.”

Eu não gostei. Gostaria... Se eu fumasse, mas foi real-mente muito gentil. Outras poderiam tê-lo chamado de trouxa.

Para retribuir, tinha que fumar. Abri o maço com dificuldade e até quebrei mi-nha unha. Ele olhou, prestava atenção nas minhas mãos de-sajeitadas para abrir o maço. Talvez percebera que eu não levava a menor afinidade

com o cigarro.

– Até hoje não inventaram um maço fácil de abrir – eu disse com uma risada força-da tentando disfarçar.

– É... Você pode se sentar, se quiser.

– Obrigada... Você... traba-lha por aqui? É aviador?

– Hahaha... Que criativi-dade!

– Seu topete não deixa en-ganar – disse e sendo espre-mida por um muro.

– Eu não sou aviador, não. Deve ser muito bom. Na verdade, trabalho na livraria na outra quadra.

Um palpite certo!

– Hum... Vende livros. Eu adoro ler.

– Recomendarei bons li-vros quando for. O que você faz?

– Trabalho na loja de rou-pas “Vestir-se”, uma quadra pra lá.

– Do lado oposto de mim. Qual seu nome?

– Mariana. E o seu?

– Fernando...

– Quando precisar de roupas, você sabe, lá tem de diversos tipos.

Ele já estava impaciente de me olhar gesticular com o cigarro para lá e para cá, falar e não acendê-lo, tan-

to que nem agradeceu pelo convite. Pedi um isqueiro à garçonete.

– Coff... Coff... Coff...

E com a cara vermelha, cuspi a fumaça.

– Engasguei – disse muito sem graça.

Ele queria que eu fumasse para ter a prova.

– Por que você faz isso?

– Isso o quê? – tentei me esquivar.

– Você não fuma.

– Sim, eu fumo.

Ele olhou sério e desapro-vador.

– Eu só queria... Me apro-ximar de você... E conversar, te conhecer... ¬– disse entris-tecida.

Então, pegou na minha mão e afagou-a.

(NOTA: Este texto é o pri-meiro de uma longa história que terá uma continuida-de, se possível, a cada mês. Aguardem!!!)

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3636 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Zulmar Lopes

PaStEL dE VENto

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Os fenômenos emergentes da fronteira imaginária que dividem emoção e razão nos levam a considerar todas as alternativas e subalternativas referentes a este paradigma. Segundo Paul Freeman, tais acontecimentos derivam de fatores extra sensoriais e não corroborariam de um méto-do altamente qualificado e posterior a todos os estudos intrisicamente desapegados ao sistema de múltiplas va-riantes e constâncias.

Pesquisas comprovam que todo este maniqueísmo ultra-reflexivo referente aos auspí-cios osculados ao simulacro em nada pavimentarão os caminhos que levam a dis-cernir a similaridade do que é verdadeiramente falacioso. A dialética enfronhada em casos semânticos nos levam ainda a crer que, passadas vá-rias gerações, a postura em-blemática de nossos delatores permanece inadvertidamente alterada.

Para finalizar, desejo res-saltar que o cruzamento de dados horizontalmente cana-lizados pelo método bifur-cativo desenvolvido pelo Dr. Willian Lark em nada afeta-rão as pesquisas já publica-das, pois Lark desconsiderou o fator extra-primordial da causa preludiana ao fenôme-no associativo em questão.

Difícil compreender não? Provavelmente pelo fato dos parágrafos acima não pas-sarem de um amontoado de frases sem sentido, traves-tidas em um discurso inte-ligente. Trata-se apenas de um exercício na arte de ser verborrágico, de enfeitar o pavão literário, com palavras bonitas e difíceis e, em con-trapartida, muito pouco ou nada dizer. Portanto cuidado com os discursos empolados. Seu conteúdo em geral é tão encorpado quanto um pastel de vento, daqueles com muita massa e quase nenhum re-cheio.

Em tempo: Paul Freeman e Dr. Willian Lark são figuras fictícias.

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3838 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Giselle Natsu Sato

Encontro com Joaquim maria

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Desci a rua do Ouvidor pensando em minhas maio-res paixões, as boas graças femininas e a literatura. Não necessariamente nesta ordem:

- O cavalheiro deixou cair este envelope, por muito pouco não se perde, precisei correr para acompanhar seus passos.

- Meu manuscrito! Não sei como agradecer, nem dei conta, o senhor não imagina a importância do que acabou de salvar.

- Ainda bem que percebi a tempo, há uma procissão e as ruas estão tomadas de devotos.

- Um verdadeiro absurdo, em pleno século XIX! Retor-nei há bem pouco da Europa, as diferenças são alarmantes.

- Devia ter visto antes. Atualmente temos pavi-mentação, iluminação a gás, transporte coletivo, tudo seguindo os parâmetros das capitais européias. Tempo de ‘’galas novas’’...

- Não quero parecer arro-gante, no entanto, a sociedade carioca carece de bom gosto. Os cafés e teatros nunca che-garão aos pés dos Parisienses. O povo mantém hábitos pro-vincianos, não sabem viver na capital.

- Infelizmente, somos uma nação predominantemente rural e analfabeta.

- Certamente. Porque haveria de ser diferente? Sem

querer ofender, sou extrema-mente bem nascido, afortu-nado com a melhor educa-ção que um jovem poderia sonhar. Sou versado em cinco idiomas. Inclusive o latim, falo fluentemente, melhor que muito padre.

- Percebi no instante em começamos o agradável coló-quio. Inclusive, só de ouvi-lo falar, sinto a influência européia.

- Meu caro, onde apren-deu a expressar tão bem suas idéias? Salvo pequenos desli-zes naturais, fala o português quase perfeito.

- Sou autodidata, aprendi com muito sacrifício. Tinha tudo para não dar certo. Graças aos livros, sou capaz de manter um diálogo com um homem como o senhor.

- Compreendo, o senhor trabalha em uma oficina. Maneja o maquinário ou algo equivalente?

- Sim, algo equivalente. Trabalho com livros, livros o tempo inteiro. Sabe que o senhor é uma inspiração? Sempre encontro tipos inte-ressantes, dignos de atenção redobrada.

- Como assim? Que tipo de influência, além de ser um exemplo, um ideal a ser copiado...

- O senhor é muito mo-desto. ‘’Haja à vista’’, a inspi-ração preciosa, sou eterna-mente grato.

- Por sinal, o que posso fazer para demonstrar minha gratidão?

- O senhor já agradeceu, é o suficiente.

- Se algum dia preci-sar, freqüento a livraria Garnier,quase diariamente.Fica logo adiante, no final da Rua do Ouvidor.O único lugar decente desta cidade.

- Quase uma pequena Paris. Senhor?

- Que esquecimento! Oliveira Neves, mas pode me chamar por Joaquim Maria. Meu nome de batismo.

- Machado, muito prazer. Que coincidência, homôni-mos! Quase esqueci, tenho uma reunião daqui a pouco no Jornal do Commercio . Com licença, preciso ir andando. Passar bem,senhor Oliveira.

Que homem estranho, ofereci uma pequena ajuda e partiu furioso . Homônimos, era só o que me faltava! Um quase negro, um pouco mais letrado, pensando que me engana. O que esperava? Que o convidasse para um café? Decerto imaginou que havia algum dinheiro no envelope. Devolveu esperando uma boa recompensa, depois fez ares de ofendido.

Ah! As jovens senhoras, fina flor da sociedade. Que visão! La jeunesse dorée , apreciando as modas , fazen-do compras, tomando o ar

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4040 SAMIZDAT agosto de 2008

fresco. Algumas são cortesãs disfarçadas em busca de ro-mance. Se a sorte for benfa-zeja, ofereço meus préstimos, carrego alguns pacotes e falo um pouco de francês. Voilá! Convido para um chá na confeitaria, acompanho até a residência...

Finalmente a livraria, um lugar com certa exclusivida-de, longe dos pobretões que embaçam as vitrines. Sinto que estou no meu mundo, escritores, intelectuais, polí-ticos:

- Joaquim, Joaquim Maria. Quanto tempo! Que bons ventos trouxeram meu me-lhor amigo de volta?

- Pacheco Leitão! Que pra-zer, cheguei semana passada. Mas já estou querendo voltar.

- Joaquim, não seja tão severo! Faz parte da nata da sociedade, freqüenta festas maravilhosas, cassinos, usu-frui do bom e do melhor. E nem mencionei os bordéis! Não é suficiente?!

- Sim, o suficiente para quem se contenta com pou-co. Quero muito mais, hoje entrego meu primeiro ro-mance para impressão.

- Um amigo escritor é uma honra e tanto. Está com sorte, hoje chegou o últi-mo de Machado: Memórias Póstumas de Brás Cubas. É uma obra-prima, todos estão comentando. Se bem que Machado sempre surpreende.Quando pensamos que já

lemos o melhor, eis que surge algo desconcertante.

Senti um pequeno des-conforto ao ouvir aquele nome, o segundo Machado em uma tarde. Para não ser grosseiro, folheei o livro, um pouco desatento. No primei-ro parágrafo, senti que não conseguiria descansar, até completar toda leitura.

Extraordinário estilo, per-feito em todos os aspectos, tão bom que senti vergonha do meu manuscrito.

Fui para casa terminar a leitura do romance. Não pude controlar a inveja, o rancor, o ódio pelo tal es-critor brasileiro. Seis anos jogados no lixo, meus sonhos desfeitos em uma tarde, minha existência reduzida ao limbo. Por um Machado, um machado destruidor de sonhos.

No dia seguinte, mais calmo, soube que o escritor, recém eleito meu favorito, estaria na livraria. O espaço estava apinhado de gente vinda de todos os pontos da cidade. Muitos aplausos anunciaram a chegada. A turba ruidosa, movimentava-se impedindo a visão de seu semblante. Quando consegui espaço suficiente, reconheci o homem que havia salvo meu envelope. Quis morrer naquele instante:

- Pacheco, está abafado de-mais, preciso sair um pouco e respirar.

- Mas logo agora? Vai perder a leitura, Machado vai nos dar a honra do primeiro capítulo.

- Então fique e aproveite, não precisa me acompanhar. Insisto que fique, é seu autor preferido.

- Imagine, nunca aban-donaria o amigo, faço com-panhia até que melhore e retornamos.

- Pacheco, deixe-me em paz! Preciso respirar, estou angustiado.

- Não precisa ser grosseiro,não quer ser visto com um simples comercian-te. Hoje está no meio dos seus, não precisa da compa-nhia do velho amigo Pache-co. Não tenho seus estudos, meus pais não me mandaram para Europa. Minha mãe achou um desperdício, meu pai mal sabe assinar o nome, e agora esta desfeita...

Deixei meu amigo falando sozinho, nunca tive paciência para ouvir sermão, muito menos do Pacheco. Perdi a noção do tempo enquanto caminhava, o peito transpas-sado de vergonha. Não havia percebido a fina ironia no breve diálogo com o mulato ardiloso.

Enxerguei o romance por um novo ângulo. Agora eu via a desfaçatez mas-carada nos diálogos dos personagens,a personalidade complicada dos protagonis-tas, a estratégia da redação

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confusa e angustiante.

Senti que naquele instan-te nascia minha verdadeira vocação. A vida ganhava um novo sentido, tecia planos de publicar uma crítica devas-tando cada obra. Planejava vasculhar cada linha, sonha-va de olhos abertos com o reconhecimento público.

A aversão machadiana crescia como um tumor pes-tilento. Esquecido da vida, os sentidos embotados pela vin-gança, não percebi o veículo descontrolado. Por ironia do destino, um importado inglês, mal conduzido por um jo-vem inexperiente.

Morri.

Joaquim Maria morreu, morreu atropelado em plena Praça da Constituição. Há poucos metros da famosa Ti-pografia Dois de Dezembro. Na hora do acidente, lotada de escritores e intelectuais.

Meu último pensamen-to... a existência inútil. Não deixei qualquer legado. Nem filhos, nem obras, nem sau-dades, nem amigos... Fui um farsante, pedante, esbanja-dor e mentiroso. Expulso da própria casa após a desco-berta das vilanias praticadas na Europa. Agora, uma alma incompetente.

Contudo, carrego o con-solo, um sonho questionável e anônimo: Ter sido a inspi-ração, ainda que fugidia, de Joaquim Maria Machado de Assis.

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4242 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Maristela Scheuer Deves

as Noivas de Preto

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Aquelas velhas fotografias de noivas vestidas de preto sempre tinham me intrigado, desde que eu as encontrara em um velho baú no sótão da casa de meus avós. Eu tinha uns doze ou treze anos na ocasião. Curiosa como todos são nessa idade, corri perguntar à minha avó quem eram aquelas mulheres e por que tinham se casado assim. Sua reação, no entanto, deixou-me intrigada.

Em vez de responder à minha inocente pergunta, ela ficou olhando demoradamen-te as fotos, com uma expres-são esquisita. Não consegui identificar exatamente o que via no seu rosto, mas parecia ser uma mistura de medo e curiosidade. Depois de alguns minutos em silêncio, quis saber onde eu encontra-ra aquelas imagens. Contei-lhe do baú, e ela pediu que devolvesse as fotos ao seu lugar e não mais pensasse no assunto.

Insisti, mas sem resultado. Como eu não era de desistir facilmente, procurei o meu avô. Sua reação não foi mui-to melhor ao olhar o que eu tinha em mãos, mas pelo me-nos ele deu-me uma explica-ção: aquelas eram sua avó, ou seja, minha tataravó, e suas irmãs. Haviam se casado de vestidos e véus pretos porque estavam de luto, o pai delas havia morrido pouco tempo antes. Fiquei a matutar co-migo mesma por que é que elas não haviam esperado um pouco mais para casar-se,

pois então poderiam usar o branco tradicional. Também achei estranho todas elas terem contraído núpcias na mesma época, mas vovô me disse para ir brincar, deixan-do que ele fizesse suas coisas.

Por alguns dias, ainda en-chi meu pai e minha mãe de perguntas, mas como as res-postas variavam de um “eu é que sei?” a “vai ver, era moda na época”, acabei desistindo e esquecendo o assunto. Em outra ocasião, fui fuxicar nas coisas guardadas no sótão, mas não encontrei mais as fotografias, até mesmo o baú havia sumido de lá. Achei estranho, mas não dei muita importância ao assunto.

Nas últimas semanas, porém, a lembrança daquelas noivas vestidas de preto vem me atormentando. Sonho com elas todas as noites, e penso nelas em cada minuto do meu dia. Não sou mais uma criança: estou com 24 anos e vou casar-me em poucos dias. Até já comprei meu vestido, lindo, resplan-decente, branco como a neve. Minha mãe chorou quando o viu, e a princípio creditei seu choro à emoção de que sua única filha iria se casar. Mas agora sei que não era isso. E sei, também, o porquê daqueles vestidos negros que há tanto tempo despertaram a minha curiosidade...

Descobri por acaso, en-quanto procurava velhas fotos minhas para o painel de momentos marcantes

de minha vida, que ficará em exposição na entrada do salão de festas. Embai-xo das dezenas de álbuns com registros feitos desde a minha infância, encontrei um envelope amarelado pelo tempo. Curiosa, abri-o. Lá, uma única foto, de um casal cujo rosto risonho eu reconheci: meus pais, muito mais jovens do que agora, no dia do seu casamento. Nesse momento, percebi que nunca antes havia visto imagens daquela data, e compreendi também o motivo: o vestido que minha mãe envergava, de seda e com lindos borda-dos, era negro.

Minha mãe surpreendeu-me com a foto nas mãos e, perante meu olhar indagador, pôs-se novamente a derramar lágrimas. Mesmo sem enten-der o que estava acontecendo, abracei-a e confortei-a, como se a mãe fosse eu. Não pedi explicações quando ela se acalmou, mas ela as deu mes-mo assim. Sabia que era hora, e que não podia adiar mais.

– Quando eu me casei com seu pai – começou ela –, ninguém me disse nada. Sofri muito com o que aconteceu, e sei que você também vai sofrer, minha filha, mas pelo menos você vai estar prepa-rada.

Antes de prosseguir, ela levantou-se e foi até uma gaveta trancada. Tirou uma chavezinha de uma corrente pendurada no pescoço e a abriu. Lá de dentro, pegou

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4444 SAMIZDAT agosto de 2008

uma caixa de madeira, que colocou sobre a mesa, cha-mando-me para ver o conte-údo. Ali estavam as antigas fotos que eu vira ainda crian-ça, num baú no sótão dos meus avós. E também outras, muitas outras, todas mostran-do noivas vestidas de preto. Lá estavam minha avó, todas as minhas tias por parte de pai... Aturdida, fiquei passan-do uma a uma, sem saber o que dizer.

– Sim, minha pequena. Todas as mulheres da nos-sa família, pelo lado do seu pai, carregam essa maldição – disse. Vendo que eu abria a boca para perguntar algo, apressou-se em prosseguir – Nós não escolhemos nos casar de preto. Na verdade, nós não nos casamos de preto. Meu vestido e meu véu eram tão alvos quanto os seus. Mas, na hora da ceri-mônia, quando eu coloquei a aliança no dedo, ele começou a mudar...

Ela trocara de roupa no meio da festa, contou, com a desculpa de usar algo mais confortável. A verdade era que, para seu desespero, ele estava ficando a cada minu-to mais escuro. Pensou que as primeiras fotos estariam boas, pelo menos, mas, pou-cos dias depois de as receber do fotógrafo, nelas também o vestido passara a ficar preto.

– Queimei quase todas elas, junto com o vestido que eu tinha gostado tanto. Guardei apenas essa. Foi só

depois de tudo ter acontecido que minha sogra, sua avó, contou-me que isso acontecia há quatro gerações. Desde que uma tia-avó do seu avô fora rejeitada pelo restan-te da família por se casar grávida, obrigada a casar de véu negro, ela amaldiçoou a todos, dizendo que, dali por diante, nunca mais uma mu-lher da família se casaria de branco. E, até hoje, isso vem se cumprindo...

Tenho menos de uma semana até o dia do meu casamento. Tento afastar os meus pensamentos mórbidos, dizer a mim mesma que isso é fantasia, que deve haver alguma explicação lógica. Talvez tenha sido mesmo luto, talvez... Mas minha mãe não mentiria para mim. Não faria com que eu me angus-tiasse sem necessidade.

Não contei a meu noi-vo, para ele não pensar que estou enlouquecendo. Mas hoje pela manhã, acariciando o esvoaçante tecido de meu lindo vestido de sonho, vi uma pequena mancha mais escura em um canto, sob um babado. Outra apareceu na pontinha do véu. Pensei em cancelar o serviço do fotógrafo, para garantir, mas achei melhor encomendar com urgência um vestido de reserva, cor de champanhe, para usar assim que sair da igreja...

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ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-lugar. Apenas no século XXI uma vintena de autores, que jamais se encontraram fisicamente, poderia conceber um projeto semelhante.

O livro, sempre tido em conta como umas das principais fontes de cultura, tornou-se apenas um bem de consumo, tornou-se um elemento de exclusão cultural.

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4646 SAMIZDAT agosto de 2008

tradução

Robert Frosttradução: Henry Alfred Bugalho

a Estrada não percorrida

Estradas se bifurcavam num amareladobosque,

E me ressenti não poder ambas percorrerSendo um só viajante, por muito me detiveE observei uma até quão longe pudeAté onde na vegetação ela se encurvava.

Então segui pela outra, tão boa quanto,E talvez por ter melhor reclame,Por ser gramada e ansiar uso;Mesmo que os que por ela passaramDesgastaram-na do mesmo modo.

E, naquela manhã, em ambas igualmentejaziam

Folhas que passo algum pisara.Ó, deixei a primeira para outro dia!Mesmo sabendo que caminho leva a

caminho,Duvidei se um dia conseguiria voltar.

Com um suspiro isto direiEm algum ponto, há muito tempo distanteDuas estradas num bosque se bifurcavam,

e euA menos percorrida trilhei,E isto fez toda a diferença.

http://www.flickr.com/photos/24443965@N08/2389237724/sizes/l/

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Robert Lee Frost (San Francisco, Califórnia, 26 de março de 1874 - 29 de janeiro de 1963) foi um dos mais importantes poetas dos Estados Unidos do século XX. Frost recebeu quatro prêmios Pulitzer.

BiografiaO pai bebia, jogava e era excêntrico e irascível. A mãe era o oposto: re-ligiosa e culta, foi quem apresentou ao filho o mundo da literatura. Com a morte do pai em 1885, a família muda-se para a Nova Inglaterra, região à qual Frost e sua poesia seriam permanentemente associados no futuro (embora o poeta também tenha passado longas temporadas em Michigan e na Flórida).Em 1890, publica seu primeiro poema, começa a dar aulas e realiza pequenos serviços em fazendas e moinhos. A vida que levava nesse período moldou sua personalidade poética: Frost foi um dos poetas norte-americanos que melhor com-binou em seus versos o popular e o moderno, o local e o universal.Em 1895, inicia-se uma nova fase

em sua vida: casa-se com Eli-nor White em 19 de dezembro; o primeiro filho nasce no ano se-guinte (teria seis ao todo), e passa a envolver-se cada vez mais com a vida no campo: em 1901 já admi-nistra sua própria fazenda. Adquire o hábito de escrever seus poemas à noite, na mesa da cozinha. A partir de 1906, quando começa a lecionar em tempo integral na Pinkerton Academy, a vida profissional de Frost não se dissociaria mais do ramo das letras. Começa a proferir palestras e conferências, atividade que não abandonaria até a morte.Entre 1912 e 1915 viveu na In-glaterra, país onde publicou seus dois primeiros livros de poemas, A Boy’s Will (1913) e North of Boston (1914). Os livros foram bem recebi-dos pela crítica européia, e Frost é apresentado a poetas famosos, como Ezra Pound, Ford Madox Ford e W. B. Yeats.Em 1915 volta aos Estados Uni-dos, e no mesmo ano publica em seu país natal seus dois primeiros livros. Com a carreira literária cada vez mais sólida, recebe o Pulitzer

em duas ocasiões (1924, por New Hampshire, e 1931, por Collected Poems).A morte da esposa em 1938 e o suicídio da filha Carol em 1940 cau-saram um impacto tremendo em sua estabilidade emocional. Em 1941, muda-se para Cambridge, onde viveria pelo resto da vida, o tempo todo assessorado por sua secretária Kathleen Morrison (logo em seguida à morte da esposa, Frost a pedira em casamento, mas Kathleen recusou).As viagens como conferencista in-cluíram uma visita ao Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo) em agosto de 1954. Em 1957 volta a visitar a Eu-ropa, ocasião em que conhece gran-des nomes da literatura da época: W. H. Auden, E. M. Forster, Cecil Day Lewis, Graham Greene. Plenamente reconhecido como um dos maiores poetas norte-americanos do século, Robert Frost morre em 29 de janeiro de 1963.

ObrasA produção literária de Frost é variada e abundante. Sua poesia inclui sonetos, poemas em forma de diálogo, poemas curtos, poemas longos. Escreveu três peças teatrais (A Way Out, In an Art Factory e The Guardeen). São numerosíssimos os registros de suas conferências. A correspondência, os ensaios e as histórias merecem o mesmo comen-tário. Frost tem a capacidade de dar um tratamento simples e ao mesmo tempo profundo a temas elementa-res (fogo, gelo, natureza), tirando verdadeiras “lições de moral” de suas observações do mundo natural (lições nem sempre otimistas, como se pode notar em Nothing Gold Can Stay). Tal traço, aliado à modernida-de de sua linguagem (Frost era um defensor do uso da linguagem ver-nácula nas obras literárias), fez com que Frost jamais deixasse de figurar entre os escritores prediletos dos norte-americanos, ao lado de nomes como Whitman, Emerson e Thore-au. Seu poema The Road Not Taken é peça obrigatória em qualquer antologia poética de língua inglesa. Prova adicional de sua popularidade são as várias referências em filmes como Sociedade dos Poetas Mortos e Daunbailó.

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4848 SAMIZDAT agosto de 2008

tradução

tradução: Henry Alfred Bugalho

Poemas de Emily dickinson

uma Porta acabou de ser aberta numa rua

Uma porta acabou de ser aberta numa rua –

Eu, perdida, estava passando –

E um átimo de quentura foi liberado,

E de riqueza e companhia.

A porta se fechou repentina, e eu,

Eu, perdida, estava passando –

Perdida em dobro, mais pelo contraste,

Esclarecedora miséria.

deus a cada pássaro deu um pão

Deus a cada pássaro deu um pão,

Mas apenas migalhas para mim;

Não ouso comê-las, mesmo esfaimada, -

Minha aguda luxúria

Possuí-las, tocá-las, constatar o feito

Que fez meu este bocado, -

Feliz demais em minha sorte de pardal

Para almejar mais.

Pode haver fome por aí,

Eu não deixarei de ouvir,

Tantos largos sorrisos à minha mesa,

Meu celeiro parece estar bem cheio.

Imagino como o rico deve se sentir, -

Um indiático – um barão?

Considero que eu, com apenas migalhas,

Sobre todos eles soberana sou.

Coração, nós o esqueceremos!

Coração, nós o esqueceremos!

Eu e ti, hoje à noite.

Deves te esquecer do acalento que ele nos deu,

Que eu me esquecerei do lume.

Quando o houveres feito, diga-me te suplico,

Que aos meus pensamentos toldarei;

Apressa-te! Que enquanto te tardas,

Dele ainda me lembrarei!

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Porque eu não pude parar para a Morte

Porque eu não pude parar para a Morte –

Ela gentilmente parou para mim –

Na Carruagem, apenas nós –

E a Imortalidade.

Nós viajamos lentamente – Ela não tinha pressa

E eu tive de pôr de lado

Meu trabalho e meu lazer,

Por Delicadeza –

Passamos pela Escola, onde Crianças se exercitavam

No Recreio – no Pátio –

Passamos pelos Campos dos Grãos Maduros –

Passamos pelo Sol Poente –

Ou melhor – Ele passou por nós –

O Orvalho veio tremulante e cálido –

Apenas como Fina Trama, minhas Vestes –

Meu Xale – apenas Tule –

Estacamos diante duma Casa que parecia

Uma Elevação do Solo –

Do Telhado pouco se via –

A Cornija – a tocar o Chão –

Desde então – por Séculos – e ainda

Mais breve que o Dia

Constatei que as Cabeças dos Cavalos

Voltavam-se para a Eternidade –

Se eu puder evitar que um coração se parta,

Eu não terei vivido em vão;

Se eu puder evitar a agonia duma vida,

Ou acalentar uma dor,

Ou assistir um desfalecido melro

A voltar a seu ninho,

Eu não terei vivido em vão.

http://farm4.static.flickr.com/3094/2598687689_474d0cd7a4_o.jpg

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5050 SAMIZDAT agosto de 2008

Não posso viver contigo

Não posso viver contigo,Isto seria vida,E vida está aliAtrás da patreleira

O capelão guarda a chave,Pondo acimaNossa vida, sua porcelana,Como uma taça

Descartada pela dona-de-casa,Démodé ou esfacelada;Um novo Sevres apraze,Os velhos se quebram.

Eu não poderia morrer contigo,Pois um deve esperarPara cerrar os olhos do outro,Tu não podes.

E eu, eu permanecereiE ver-te-ei expirar,Sem meu direito de expirar,Privilégio da morte?

Nem eu poderei ressuscitar contigo,Porque tua facePoderia tirar de JesusA nova graça

Brilho nítido e estrangeiroEm meus olhos nostálgicos,Exceto que tu, ao invés d`ele,Reluziu bem mais perto.Julgar-nos-ão – como?Pois tu serviste o Paraíso, tu sabes,Ou tentaste;Eu não consegui,

Porque tu concentraste a vista,E eu não tenho mais olhosPara uma excelência mórbidaComo o Paraíso.

E se tu decaísses, também,Mesmo que meu nomeTenha soado mais altoNa fama celestial.

E se tu fosses salvo,E eu condenada a estarOnde tu não estás,Isto seria o inferno para mim.

Então devemos nos manter apartados,Tu aí, eu aqui,Com a porta entreaberta apenasQue são oceanos,E orar,E aquele pálido sustento,Desespero!

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Emily Dickinson (Amherst, Mas-sachusetts; Estados Unidos; 10 de Dezembro de 1830 - 15 de maio de 1886) foi uma poetisa americana.

BiografiaNasceu numa casa cujo nome era The Homestead, construída pelos avós Samuel Fowler Dickinson e Lucretia Gunn Dickinson, no ano de 1813. Samuel Fowler era advogado e foi um dos principais fundadores do Amherst College. Era a segunda filha de Edward e Emily Norcross Dickinson.Proveniente de uma família abas-tada, Emily teve formação escolar irrepreensível, chegando a cursar durante um ano o South Hadley Female Seminary. Abandonou o seminário após se recusar, publi-camente, a declarar sua fé.Quando findou os estudos, Emily retornou à casa dos pais para deles cuidar, juntamente com a irmã Lavínia que, como ela, nunca se casou.

Em torno de Emily, construiu-se o mito acerca de sua personalidade solitária. Tanto que a denomina-vam de a “Grande Reclusa”. É importante que se diga, que este comportamento de Emily coadu-nava-se com o modelo de conduta feminina que era apregoado no Massachusetts de Oitocentos. Emi-ly, em raros momentos, deixou sua vida reclusa, tanto que em toda sua vida, apenas fez viagens para a Filadélfia para tratar de proble-mas de visão, uma para Washing-ton e Boston. Foi numa destas viagens que Emily conheceu dois homens que teriam marcada influência em sua vida e inspira-ção poética: Charles Wadsworth e Thomas Wentworth Higginson.Emily conheceu Charles Wadswor-th, um clérigo de 41 anos, em sua viagem à Filadélfia. Alguns críticos creditam a Wadsworth, como sendo o alvo de grande parte dos poemas de amor escritos por Emily.Quase tudo que se sabe sobre a

vida de Emily Dickinson tem como fonte as correspondências que ela manteve com algumas pessoas. Entre elas: Susan Dickinson, que era sua cunhada e vizinha, colegas de escola, familiares e alguns intelectuais como Samuel Bowles, o Dr. e a Mrs. J. G. Holland, T. W. Higginson e Helen Hunt Jack-son. Nestas cartas, além de tecer comentários sobre o seu cotidiano, havia também alguns poemas.Foi somente em torno do ano de 1858 que Emily deu início a confecção dos «fascicles» (livros manuscritos com suas composi-ções) , produzidos e encadernados à mão.É intensa a sua produção de 1860 até 1870, quando compôs centenas de poemas por ano. Em 1862, en-via quatro poemas ao crítico Tho-mas Higginson que, não compre-endendo inteiramente sua poesia, a desaconselha de publicá-los.A partir de 1864, surpreendida por problemas de visão, arrefece um pouco o ritmo de sua escrita. Uma curiosidade na obra de Emily Dickinson é que apesar de ter escrito em torno de 1800 poemas e quase 1000 cartas, ela não chegou a publicar nenhum livro de versos, enquanto viveu. Os registros que se tem, é que apenas anonimamen-te, publicou alguns poemas.Toda a sua obra foi editada pos-tumamente, sendo reconhecida e aclamada pelos críticos.Emily faleceu em 15 de maio de 1886 em Amherst, Massachusetts.A edição crítica completa, organi-zada por Thomas H. Johnson, con-tando com 1775 poemas, ocorreu apenas em 1955, após seu acervo ter sido transferido para a Univer-sidade de Harvard. Posteriormen-te acrescida de outros poemas, em 1999, surge outra edição, organi-zada por R. W. Franklin, com 1789 poemas.Atualmente a casa, onde ela nasceu e viveu, The Homestead é aberta para visitação no período de Março a Dezembro.

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5252 SAMIZDAT agosto de 2008

teoria Literária

VoCÊ CoNHECE o iNdriSo?

Volmar Camargo Junior

Por mais que pareça, Indri-

so não é nome de gente. Quer

dizer... pode até ser, se você é

daquelas pessoas que coleciona

nomes curiosos para dar aos

filhos. Nesse caso, inclua aí em

sua lista os nomes Ode, Soneto,

Rondó, Quadrinha, Haicai ou,

quem sabe, Poetrix. Indriso é,

na verdade, uma forma poé-

tica.

Isidro Iturat, o criador

desse inusitado tipo de poema,

nasceu na Espanha em 73, é

escritor, professor de língua e

literatura espanholas. Desde

2005 vive aqui no Brasil, na

capital paulista. Segundo o

autor, o indriso nasceu quan-

do ele refletia sobre a forma

tradicional do soneto e, expe-

rimentando, num “processo de

condensação estrófica”, escre-

veu este poema:

Luna Menguante

El centauro se asoma por la

ventana

y la mujer dormida está

hablando en sueños.

Llora y ríe, porque un cen-

tauro la rapta.

Cabalga en su sueño la

mujer dormida,

cabalga en su sueño y es

cabalgada.

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VoCÊ CoNHECE o iNdriSo?

En la selva, nadie la oye

cuando chilla.

Llora y ríe como nunca en

su vigilia.

El centauro la mira... por la

ventana.

Pois, na definição teórica de

seu criador, o indriso

“...es un poema que consta

de dos tercetos y dos estrofas

de verso único (3-3-1-1). To-

lera cualquier tipo de medida

en el cómputo silábico, lo

que hace de él una forma a

la vez fija y dinámica: en el

eje vertical, la disposición no

variable de la estrofa; en el eje

horizontal, las variaciones en

la cantidad. Admite además

todos los grados y géneros de

rima.”

Em bom tupiniquês:

O indriso é um poema

composto de dois tercetos e

duas estrofes de verso único

(3-3-1-1), que permite um uso

livre da rima e o número de

sílabas nos seus versos.

(http://www.indrisos.com/

ensayosyarticulos/definition.

htm#7)

Assim como o poetrix, o

indriso é uma criatura moder-

na, a releitura de uma forma

tradicional, que, a despeito do

grande valor que estas últimas

sempre tiveram e continuam

tendo, desenvolvem-se sozi-

nhas, percorrem outros cami-

nhos e atraem adeptos. Outra

semelhança entre estes dois

“entes” é que são precisamente

delimitados no espaço-tempo:

podemos, inclusive, encontrar

com seus criadores – ambos

vivem em território tupini-

quim. Para o poeta amador

medieval, discutir sobre o

sonetto com seus criadores

devia ser o máximo. Entretan-

to, a História e a Literatura, e,

é claro, estes mesmos poetas,

a este século legaram somente

as criaturas. Quem sabe, no

futuro, dirão de Isidro Iturat

algo como na Wikipédia atual

dizem de um certo Jacopo da

Lentini, a quem alguns atri-

buem a criação do soneto.

Em tempo, uma coisa que

eu adorei foi a origem da

nomenclatura: uma menininha

de três anos, tentando dizer

o nome do Isidro, insistia em

chamá-lo “Indriso”. Mais um

acaso curioso de um poema

que nasceu, ao que parece, por

geração espontânea.

Como eu não resisto a es-

sas novidades (a última rendeu

a primeira coletânea poética

do pessoal da Oficina e da

SAMIZDAT...), durante esse mês

vou arriscar alguns indrisos.

Na próxima edição do “Labo-

ratório Poético” já sei qual será

o cardápio.

- Sobre os Indrisos e seu

criador, Isidro Iturat, acesse:

http://www.indrisos.com. Aqui

é possível encontrar a obra El

Manantial, a primeira cole-

tânea do autor, inteiramente

disponível on-line (http://www.

indrisos.com/manantialarchi-

vos/portadamanantial.htm).

Além disso, na seção colabora-

tors (http://www.indrisos.com/

colaboradores/indicecolabora-

doresother.htm), há exemplares

em outros idiomas além do

espanhol. Inclusive tupiniquês.

- O símbolo no topo do ar-

tigo está na página inicial do

indrisos.com. Achei tri bonito.

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5454 SAMIZDAT agosto de 2008

O conto é provavelmente a primeira forma narrativa da Humanidade. Sua origem se confunde com a necessidade intrínseca do ser humano de contar uma história a seus pares.

Tudo começa com uma his-tória, o que há para ser conta-do, o enredo. O conto é curto o suficiente para entreter e não entediar quem o ouve ou lê, mas longo o suficiente para ocupar o tempo dos ouvintes/leitores.

Esta unidade temporal é a base do conto: uma história, um evento, com brevidade.

Mas os gêneros longos, como a epopéia e, posterior-mente, o romance, precipi-taram o conto a um poço de desprezo. A brevidade da forma se tornou sinônimo de frivolidade; a unidade serve para acusação de ser uma forma simplória.

Quase todo escritor canô-nico, por mais que tenha se

aventurado a escrever contos, necessitou duma obra longa para legitimar seu talento. São raros os exemplos de autores meramente contistas, e podemos incluir Maupas-sant, Pushkin, Borges e Dalton Trevisan nesta lista, mas mes-mo estes também tiveram de ceder às obrigações de gêneros mais longos.

E é a ilusão de facilidade que motiva vários escritores iniciantes a escreverem contos; na verdade, basta produzir um

teoria Literária

a atuaLidadE do CoNto

Henry Alfred [email protected]

http://www.flickr.com/photos/j_d_l/2067406764/sizes/o/

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55www.samizdat-pt.blogspot.com

texto de duas ou três páginas para poder batizá-lo de conto. As reflexões teóricas de gran-des autores também não con-tribuem para uma definição consensual, por isto, chegou-se à conclusão de que conto é qualquer coisa de indefinível, que apenas o autor é quem possui o privilégio de afirmar se um texto é conto ou não.

Os norte-americanos são bastante pragmáticos, esti-pulam o limite máximo do conto em vinte mil palavras; os latino-americanos são bem mais românticos, apresentan-do rebuscadas teorias sobre o conto, sempre lançando a questão e a solução para o nível subjetivo.

Mas todos parecem concor-dar em um ponto: o conto é uma unidade, fala dum único assunto. Para termos uma idéia do que isto significa, bas-ta vislumbrarmos a vida duma pessoa — nascemos, crescemos, freqüentamos uma escola, muitos se casam, têm filhos, vão ao trabalho, envelhecem, morrem... —; se apanharmos a totalidade desta vida, ou boa parte dela, podemos escrever um romance, no entanto se apanharmos apenas um destes aspectos, casar-se por exemplo, ou parte deste aspecto, então poderemos escrever um conto.

O romance abrange uma totalidade, que pode ser a soma das partes da vida dum personagem, ou a soma de trechos das vidas de vários personagens; o conto, por sua vez, procura a singularidade,

o ponto crítico, o momento único. O romance é um filme, precisa do tempo para contar sua história; o conto é uma fotografia, apresenta toda sua mensagem quase que instan-taneamente, agarra o leitor na primeira linha e o liberta na última, não tolera arestas, não pode ser cansativo.

Durante milênios, o conto possuiu um papel acessório. Tratava-se dum exercício literário, no qual os autores podiam testar suas habilidades narrativas. Contudo, da meta-de do século XX em diante, o conto começou gradativamente a assumir um novo papel.

O romance, enquanto diver-timento burguês, exige tempo e contemplação. O leitor se recolhe a seu quarto, ou senta-se numa poltrona e por horas mergulha naquele mundo.

Mas o conto está de acordo com o ritmo do mundo indus-trial, frenético, em constante mudança. O leitor encontra um conto que o agrade, lê-o por alguns poucos minutos e parte para o próximo tex-to. O leitor contemporâneo anseia por mais informações, pela maior quantidade de dados que possa adquirir no menor tempo. O conto supre esta necessidade; é dinâmico, rápido e facilmente assimilado. Pode até causar grande trans-formação num leitor, mas a sua pequena extensão promete uma acessibilidade.

Geralmente, os melhores contos são justamente aqueles

que não são fáceis, que mesmo consumindo alguns poucos minutos, acabam por reverbe-rar por dias ou anos na mente do leitor.

Poucas formas são tão atu-ais quanto o conto, e poucas possuem tanto potencial de exploração criativa e tamanhas exigências para o autor.

O desafio do contista é falar muito em poucas linhas, o do leitor, compreender o verdadeiro valor da narrativa curta.

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5656 SAMIZDAT agosto de 2008

Crônica

Giselle Natsu Sato

aNGúStiaS urBaNaS

A violência atingiu um grau absurdo, somos reféns dentro das nossas casas e cidades. O jornal estampa crimes covardes, vidas rouba-das em finais infelizes.

Ações policiais mal-sucedidas , tiros que não deveriam ter sido disparados. Falta de preparo, ansiedade, desespero, não é hora de apontar culpados. Precisamos de soluções imediatas.

Vivo reclusa em uma vila no subúrbio, minha casa tem grades imensas, muros que deveriam me proteger. Mas não é isto que ocorre, recebo os jornais, ouço as notícias, vizinhos comentam os crimes diários. Sigo apavorada, cer-cada de favelas e fantasmas. Refém do medo.

Cruzo avenidas sempre atenta aos estranhos, as cal-

çadas transformaram-se em campo minado. Não é exage-ro, a guerrilha urbana é fato.

Adorava passear pelas ruas do centro da cidade aos sábados. Percorria as ruelas fervilhando de gente anima-da, famílias fazendo com-pras e provando delícias nos quiosques de comida árabe. O burburinho soava como música, felicidade encontrada na simplicidade de caminhar no meio do povo.

A última vez que ousei repetir o passeio, a magia havia sido substituída por seguranças, avisos de cuida-do, vendedores desconfiados e muitas lojas fechadas. Sinto que minha cidade não é mais tão bonita, perdeu o viço e a liberdade.

Bairros transformaram-se em uma grande vitrine

de marginalidade e descaso público. Turistas não encon-tram a princesinha do mar, tropeçam nos mendigos e prostitutas. São assaltados e prometem jamais retornar.

A memória é curta ou copia os três macacos. Sur-da, cega e Muda. Talvez seja hora de levantar o tapete e limpar a sujeira acumulada. Definitivamente, não pode-mos levar a vida no compas-so de um samba.

Pátria amada, mãe gentil, seus filhos estão perdendo a luta. Temem o próprio irmão, clamam por justiça e sonham com a paz.

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Ultimamente, muitas são as mulheres, das que apare-cem nas televisões ou que aspiram a isso, que mandam encher os lábios com silicone ou os envenenam com Botox. Algumas exageraram ou a coisa não correu bem - pen-sei eu - porque ficaram com uma boca a fazer lembrar o ânus de um macaco. A com-paração ouvi-a, há tempos, ao observador e provocador humorista Herman José, e reflecte na perfeição o que está a acontecer.

A explicação é muito psicanalítica mas credível. Sempre a boca do rosto foi associada à boca do corpo; os homens associam-nas, as mulheres sabem dessa asso-ciação. Daí, humedecerem a do rosto e pintarem-na, para mais se assemelhar as uns

lábios vaginais receptivos.

Mas, o coito anal tem vindo a ganhar adeptos e as-pirantes a praticantes. Quem de tal duvide, que faça uma revisão dos filmes pornográ-ficos dos últimos vinte anos. Neles se percebe que a per-centagem de sexo anal, em tempo de filme, tem vindo sempre a crescer.

Et voilà. As novas tendên-cias aconselham a mudar o aspecto da boca, de vagina para ânus.

Algumas mulheres têm-no conseguido de maneira magistral.

aNGúStiaS urBaNaS

Joaquim Bispo

NoVaS tENdÊNCiaSht

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5858 SAMIZDAT agosto de 2008

Poesia

NÁufraGo

náufragoera preciso que se agarrassea qualquer pedra, ou planta, ou algaque alcançasse, com o pé, apoioum só ponto que fosseou que enchesse de ar o peitoaté se tornar, ele próprio, bóia...

era preciso que houvesse algoera imperativo que achassea pedra, a planta, o apoioera ugente que se lembrasseao menos, de respirar...

sem saber como ir para cima ou para baixosem saber onde o sul, onde o nortepor momentos fechava os olhos, entorpecido,imaginava-se em doces braços amorosos...

porque quando vinham as enormes vagase o escuro do céu sem luar e sem estrelasse confundia com o escuro da profundeza infinita- do mar, de si mesmo, de tudo -era preciso, antes, acreditar...

a água lhe congelava as entranhasjá não sentia dor, nem frio, nem medobastava deixar-se ir ao sabor das correntesa alma presa ao corpo por fio tão tênue...

náufragonum momento qualquer, se decidiu

num momento sem importânciasem marca, sem sentidonum instante comum- pudera ser outro -deixou-se, simplesmente, ir com as águasdeixou-se...

seu corpo-água se desfazendoos pensamentos-água desintegrandoos sentimentos-água se diluindonaquele mar de coraçõessalgadosafogadosretorcidos...

náufrago e marum sópara sempre

Marcia [email protected]

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Guilherme Rodrigues

Lua-SoL-Eu

A Lua solitáriaQue ama o SolSempre tão bela no céuQueria vestir véuE se casar.

Sol, sozinho, ardente!

Lua e Sol se amam.Se vêem em eclipsesMas nunca ficam juntos.

A Lua sempre tão belaPassa noites em claroPelo seu amor.

Sozinha, sempre alegre, espalha amor.

Olhando.Eu, solitário,Me convençoQue assim devo ficar.

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6060 SAMIZDAT agosto de 2008

Poesia

maria de fátima SantosPoEmaS

poema ii - maresias

Tinhas um ar descalço.

Odoravas salgado,

Nu.

Algas e sargaço.

Sobravam flores de ti.

Papoilas,

Malmequeres,

Crisantos,

Rosas vermelhas.

A flor do cravo,

Orquídeas.

Colar de sombra.

Desmedidas.

E tu com ar descalço,

E tu sabida a sal,

A ondas de levante.

Sobrada da paisagem,

Soltada de desnorte,

Caminhada de longe,

Trazida sei lá de onde,

Sereia, mulher, menina

Sonhavas horizontes¬

poema i - requium

Arrumas os sapatos

Os olhos pardos

As mãos cismando

O salto muito alto

Arrumas um só par

Um depois do outro

Sem cordões nem fivelas

Lisos, envernizados

Sapatos encarnados

Cor do fogo

Papoilas esfusiantes

Sapatos cor do sangue

Vermelhos

Arrumados

Teus olhos recordando.

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poema III - flache

Ela encostou-se.Um cotovelo.Tu mastigavas um rissol.Viscoso.Feio. Insaboroso.

Ela encostou de leve.Um cotovelo sobre a madeira do balcão.Um cotovelo vestido de vermelho.

Lá fora chovia em amarelo.Lá fora chovia frio.O sol esmaecia em fim de dia.E ela quase nem encostada.E ela com olhos cor da chuva.Os olhos dela.Amarelos.E o cotovelo vestido de encarnado.E tu a mastigar.E tu a descobrir o traço.

O risco rosa a contornar-lhe o lábio.A boca num sorriso tonto.E tu olhando coresO rosada da línguao amarelo dos olhoso negro das pestanas.

E o teu rissol a escorrermole.E o cotovelo dela a roçar o balcãoE os olhos dela cor de melE o risco no contorno da boca,cor-de-rosa.

Lá fora chove em muito cinzento.

Tu sabes que foi um roçar diverso.

Engoles o rissol engordurado e sais.

http://www.flickr.com/photos/fotopakismo/2382910144/sizes/o/

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6262 SAMIZDAT agosto de 2008

Volmar Camargo [email protected]

LaBoratÓrio PoÉtiCo

Distância

entre nós

um dois

espaço

Poesia

o tempo, o verbo e o verso

Um ilude,

E o outro finge;

O terceiro acontece.

o Sonho

Sonho que o sonho é o fim.

Cego, estranho, falho,

Esqueço o que sonho de mim.

o Verso e o Nada

Haveria canção no Universo

Se inverso fosse este nada,

E nada estivesse em verso.

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63www.samizdat-pt.blogspot.com

ESquECimENtoVolmar Camargo Junior

Não tenho paciênciaPara a contemplação.Cada quadro dessa galeriaRevela a justeza por que caminho,As asperezas, as doloridasCoisas, as jamais calejadas mãos,Os impossíveis desapegos,As tantas outras impropriedadesQue esqueço.

Não tenho paciênciaPara o sono.A perfídia do leitoAbsorve cada hora perdida,Cada fio de cabelo,Os princípios e os fins,As cãibras eOs tantos sonhos vãosQue esqueço.

Não tenho paciênciaPara a poesia.A tortura, a morte, a dor,O rancor e a solidãoNão se enamoram de mim,E nem eu pretendo dizer“ouço estrelas”, ora,Fujo desse destino tolo e dessa cruzQue esqueço.

Não tenho paz.Andam ao meu redor e imploram que eu as

queira bem.Eu ando, eu fujo, eu juro, eu tentoMas tropeço e caio sempre no mesmo lugar.Então, vencidoPelas coisas mortas,Pelas horas mortas,Pelas letras mortas,Esqueço.

Vencido, sou o nunca.Sou o nada.Sou o pó de uma rua velha,Numa casa velha,Num mundo invisível e velho.Querer é um eco, que ecoa, e ecoaNesse templo vazio e ocoQue as coisas, as pálpebras e as palavras sabemQue esqueço.

Não, eu não tenho mais paciência.Urge a fome que há em mimE tudo será engolidoE não terá gosto algum o que me nutreComo sensaborões são o pó, o nada, o nunca,A poesia, o sono e a vida.Sim, eu sonho com esse óbolo,Todas as noites, por horas, e ao levantarEsqueço.

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6464 SAMIZDAT agosto de 2008

três Poesias

José Espírito Santo

Hoje sou...

Tronco oco pouco do nada,

flutuar ao abandono para lugar nenhum,

muitos diversos tantos e tanto não tanto um...

Sou início efémero de tarefa que acabei

e substâncias variadas de ser que já não sei,

um rasto gasto e vão em olhar do devir ausente

Sou vida ocupada procurando de mim,

forçar danado em rotina estática, retina de fim,

uma percepção terrena, plena perfeita ilusão de gente

Sou o Hoje, o eu e o tu, sou assim

Luz pálida de diferente dizer de adeus,

Restos que voam de restos de mim...

Poesia

Sentir

Como leve tocar nas barbas do riso do ventoComo um ter de corpo em escarnecer do tempo,és vitória doce e ser outro ser como se de nós fosse

Como observar nítido com o olhar fechado,em mundo infinito, em dor e amor e grito calado,és um ser de não mais ter, és tanto tão querer

Como nós, assim és tu: sentir de sentir imperfeitosolta argamassa, pedaço de raça, escura que é a taça...

de que sou feito!

Bichinho de Conta

De feitos defeitos nicho bem apertado e fechado

De leite deleite por tantos portantos por conta

És diz que diz não diz, léxico, disléxico controlado

O mais são ignorados direitos, vida de outra ponta

Cor, de cor, acção, decoração de coração!

És entrada e saída de lixo e não te interessas

Desaire, de Zaire, transmitido, exclusivo directo

Falta demorada de tecto, de morada, detecto

Sempre de ti partes e a ti enroscado regressas

Cor, de cor, acção, decoração de coração!

Bichinho de conta, em mundo “faz de conta” falcão

Nessa com posição decomposição de composição

Jogando tudo e o todo e os outros todos pro vento

Quando mais conta na conta teu gordo provento

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PoEmaSPedro Faria

o quarto escuro

Num quarto escuro você está enclausuradaPorta alguma você vê ou desejaSatisfeita está, com sua morada.

Um dia, porém, em seu peito flamejaCalor tal, que a impele à retiradaDe si mesma, onde sua alma é presa.

Muito tempo passa, mas chave certa encontraPara abrir tal negríssima portaQue à sua vista cansada desponta.

Tal tristeza, que em seu coração aportaPois dum mundo novo visão a assombraQue você deseja cair morta.

Súbita coragem em seu coração nasceTal a Estrela da Manhã num lindo céuQue leva a melancolia ao escape.

Por longo corredor você caminha, e véuNegro, como batina de padreAscende de sua visão, a um fogaréu.

Vendo duas portas, uma delas abertaE a outra, tão duramente cerradaEscolhe a segunda, ignora o alerta.

Pois a primeira, a todo bem lhe guiavaEscolheu mal, e agora enxergaO quarto escuro, a porta era a errada.

Pela floresta

Em densa floresta, uma noite me encontreiSaída nenhuma minha vista alcançavaSozinho, com medo, caí e chorei.

Dantesca situação na qual me encontravaEra tal, que nunca me esquecereiDa solidão que sobre mim pairava.

Porém, no meio desse infernal perigoMaravilha minha vista alcançaE do medo me torno inimigo.

Pois num vale próximo me chamaPara perto, uma flor em domo de vidro.Dele, excelsa luz emana.

Encantado, minutos passei encarandoA bela flor, que não vi ao ladoDe cabelos longos, homem estranho.

- “Da flor sou guardião” -, disse irritado“Ela me escolheu, então vá andando”“De onde veio, para o outro lado”.

Entristecido, segui a trilha lentamenteImagem da flor, como que marcadaA fogo assombrava minha mente.

Por horas andei, até minha cabeça cansadaExigir-me descanso, então parei finalmenteE deitei-me sobre a grama esverdeada.

Num sonho me veio profético avisoO melro me disse: “Refaça o caminho”“Em tomar a flor não há mais perigo”.

“Ela agora jaz em sua redoma, sozinha,Livrou-se de seu guardião antigoMas procura outro para completar seu destino”

Corri então pela trilha, com notável destrezaAté a luz brilhante que me cegaSó para encontrar horrível surpresa:

Guardião a flor já tinha, de mim se esqueceraMeu coração foi tomado de grande tristezaE condenado fiquei à eterna espera.

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6666 SAMIZDAT agosto de 2008

NinfaDênis Moura

“Sagueava” pelo Universo estrada

Arrastando comigo o lancinar

Da parte minha que faltava,

A buscar nas flores e nas melodias

O bálsamo à vida, o ópio à existência.

De uma brisa impacto, ao sabor dos meus tímpanos,

Se infiltra em mim a Música Monalisa de uma Ninfa Paisagem.

Ao querer do vento, vago a erigir altares à tão escultural voz.

Toco suas notas que nem Rodin poderia ter talhado.

Mas foge-me... Não! Afasta-se apenas...

Fujo-lhe por admiração. Nego-lhe meus sentidos

Por cuidá-los imerecidos de tão “ambroesia” contemplação.

Aqui estou, sitiado por sereias a lançarem-me em cantos,

Sugando à fonte da vida, suas moradas,

Aos pélagos profundos, à morte em seus líquidos.

Enlaço-me ao busto da mais bela (penso ser a Ninfa)

E sua cauda índia leva-nos a uma verdade: um Oceano em copo d’água...

Separamo-nos.

A Música chama-me cada vez mais viva.

Resvalo-me dela, reverente. Parece-me que eu é que

Chamo-me a ela, somente. Então me atrevo:

Minha romaria lhe seguirá a onisciência de sua divindade,

A felicidade em seu rosto e o prazer de seu corpo...

Penso ter Neruda desembarcado em minha alma,... não!

Foste unicamente Tu, querida, razão que faz um Vate fecundar metáforas!

Poesia

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67www.samizdat-pt.blogspot.com

SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

SOBRE OS AUTORES DASA-

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E OS

AUTO

RES

DA

SAM

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Carlos Alberto Barros

Paulistano, filho de no

rdestinos, desenhis-

ta desde sempre, artis

ta plástico formado,

escritor. Começou sua

vida profissional como

educador e, desde entã

o, já deixou seu ras-

tro por ONG’s, Escolas

e Centros Culturais,

através de trabalhos a

rtísticos e pedagógi-

cos – experiências que

têm forte influência

sobre seus escritos. A

tualmente, organiza

oficinas de ilustração

para crianças, estuda

pós-graduação em Histó

ria da Arte e escreve

para publicações na in

ternet.

[email protected]

om

http://desnome.blogspo

t.com

Dênis Moura é paulistano de pia, cearence de mar e poeta de amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberespaço, mais com bits de imaginação que com telescópios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social, com a demo-cracia participativa eletrônica, onde o povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias sua primeira obra, um Romance de Ficção Científica, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize, o clique, o blogue e o leia!

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6868 SAMIZDAT agosto de 2008

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Guilherme RodriguesEstudante Letras na

Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre grande paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas em que se dedica cada vez mais.

Giselle SatoGiselle se autodefine apenas como uma contadora de his-

tórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de bordo — cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora viajar (felizmente!) e fala alguns idiomas.

Atualmente se diverte com a literatura, participando de concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente pa-norama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo que é comumente jogado para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.

[email protected]://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

José Espírito Santo

Informático com licenciatura e pós

graduação na Faculdade de Ciências da

Universidade de Lisboa, trabalha há largos

anos em formação e consultoria, sendo

especialista em Bases de Dados, Sistemas

de Gestão Transaccional e Middleware de

“Messaging”. A paixão pela escrita surgiu

recentemente, tendo no ano de 2007

produzido os livros “Esboços” (contos) e

“Onde termina esta praia” (poesia). Vive

com a família em Portugal em Alverca, uma pequena cidade um pouco a norte de

Lisboa. [email protected]

http://www.riodeescrita.blogspot.com/

Henry Alfred Bugalho

É formado em Filosofia pela UFPR, com

ênfase em Estética. Especialista em Literatura e

História. Autor de quatro romances e de duas

coletâneas de contos.

Mora, atualmente, em Nova York, com sua

esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

[email protected]

www.maosdevaca.com

Joaquim BispoEx-técnico de televisão,

xadrezista e pintor amador, licenciado recente em His-tória da Arte, experimenta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

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69www.samizdat-pt.blogspot.com

Maristela Scheuer Deves

Zulmar Lopes

Zulmar Lopes é carioca. Formado em jorna-

lismo pela Universidade Gama Filho, trabalha

como assessor de imprensa. Alma provinciana e

coração suburbano, encontra-se provisoriamen-

te exilado na cosmopolita Copacabana, bairro

fonte de inspiração de personagens e situações

que compõem seus contos. Escreve para fugir

do marasmo.

Marcia Szajnbok

Médica formada pela Facul-

dade de Medicina da Univer-

sidade de São Paulo, trabalha

como psiquiatra e psicanalista.

Apaixonada por literatura e lín-

guas estrangeiras, lê sempre que

pode e brinca de escrever de vez

em quando. Paulistana convicta,

vive desde sempre em São Paulo.

[email protected]

Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado em Letras pela Universidade de Cruz Alta, não leciona por sua própria vontade. Entrou na ECT em 2004, e desde então já morou em meia dúzia de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente vive com a esposa Natascha em Canela, na Serra Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie, uma gata voluntariosa e cínica.

[email protected]://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Maria de Fátima SantosNasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde

viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licencia-da em Física tem sido professora de Física e Química. Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pe-quenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama “meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

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7070 SAMIZDAT agosto de 2008

Também nesta edição,textos de

Carlos alberto Barros

dênis moura

Giselle Natsu Sato

Guilherme rodrigues

Henry alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

marcia Szajnbok

maria de fátima Santos

maristela Scheuer deves

Volmar Camargo Junior

zulmar Lopes