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SAMIZDAT 17 www.revistasamizdat.com junho 2009 ano II ficina Especial

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SAMIZDAT

17www.revistasamizdat.com

junho2009ano II

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Edição, Capa e Diagramação:

Henry Alfred Bugalho

Revisão Geral

Joaquim Bispo

Assessoria de Imprensa

Mariana Valle

Autores

Barbara Duffles

Caio Rudá

Carlos Alberto Barros

Dênis Moura

Giselle Natsu Sato

Henry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

Léo Borges

Mariana Valle

Maristela Scheuer Deves

Volmar Camargo Junior

Autores Convidados

Ricardo Thadeu

Rodolfo Bispo

Textos de:

François Rabelais

Martins Pena

Imagem da capa:http://www.flickr.com/photos/mrdodgy8/517654846/sizes/l/

www.revistasamizdat.com

SAMIZDAT 17junho de 2009

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty free ou sob licença Creative Commons.

Os textos publicados são de domínio público, com consenso ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de Copyright dos EUA (§107-112).

As idéias expressas são de inteira responsabilidade de seus autores.

Editorial

Aquecimento global, guerras, criminalidade urbana, impos-tos, dívidas, crise financeira global: os jornais estão recheados de más notícias, e a cada dia que passa tudo parece piorar.

Desde cedo na História da Humanidade, o riso é um fator de coesão social, libera as tensões e nos faz achar graça na-quilo que, normalmente, são tabus.

Nesta edição, os autores da SAMIZDAT se debruçaram e se arriscaram neste gênero tão menosprezado e subestimado que é o Humor. Um gênero considerado menor, mas que exi-ge muito do escritor; causar o riso não é tão simples quanto pode parecer a princípio.

Como toda edição especial, esta também passou por uma porção de percalços: Max Mallmann, romancista e roteirista de “A Grande Família”, não conseguiu nos enviar as respos-tas para a entrevista em tempo hábil; também não consegui concluir o artigo sobre o riso na Literatura, além de vários outros pequenos contratempos; no entanto, mesmo assim, a edição especial de Humor traz uma gama enorme de estilos de textos humorísticos, desde o pastelão até a comédia mais cerebral.

Nós da Revista SAMIZDAT esperamos lhes causar algu-mas boas gargalhadas. E como diz a canção de Bob McFerrin: “Don’t worry. Be happy!”

Henry Alfred Bugalho

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SumárioPor quE Samizdat? 6

Henry Alfred Bugalho

miCroCoNtoSHenry Alfred Bugalho 8Caio Rudá de Oliveira & Ricardo Thadeu 10Caio Rudá de Oliveira 10Joaquim Bispo 11

autor Em LÍNGua PortuGuESao Juiz de Paz na roça 14

Martins Pena

CoNtoSum quase-palhaço 22

Carlos Alberto Barros

História do grego onanágoras 24Joaquim Bispo

a Verdadeira História do Velho do Saco 26Volmar Camargo Junior

o dilema do morto-Vivo 28Henry Alfred Bugalho

o alvo Simbiótico 30José Espírito Santo

Propaganda do produto revolucionário das organizações tabajaras para daniel Dantas e afins: 32

Mariana Valle

mistério outonal 34Léo Borges

Como substituir amores 38Barbara Duffles

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O Admirador – Parte 3: Suspeitos 40Maristela Deves

a Peruca 42Giselle Sato

autor CoNVidadoRodolfo Bispo 46

traduÇÃoFrançois rabelais e o mundo às avessas 48

Henry Alfred BugalhoGargântua 50

François Rabelais

CrÔNiCaFirewall para mercedes 55

Joaquim Bispo

use Óculos 57Caio Rudá de Oliveira

Prêmio ig Nobel 58Caio Rudá de Oliveira

um vez idéia, sempre idéia 60Caio Rudá de Oliveira

oito horas de sono, dois litros de água e menos de duas mil calorias 61

Volmar Camargo Junior

a arma mais perigosa da terra 62Volmar Camargo Junior

Eu só quero chocolate 64Maristela Scheuer Deves

o dia em que o mundo não acabou 66Henry Alfred Bugalho

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PoESiaa Poesia é uma graça 68

Caio Rudá de Oliveira

Laboratório Poético: dois pecados (um, pela metade), e mais outras coisas sem sentido 70

Volmar Camargo Junior

Eu-tu-Nada 72Dênis Moura

SoBrE oS autorES da Samizdat 73

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inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus prin-cípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessário suprimir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de de-mais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária, igualitária, mas logo

se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiam, fazer parte da máquina administrativa - que esti-pulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo -, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas idéias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa do que "autopublicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.

Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exemplo dum samizdat. Corte-sia do Gulag Museum em Perm-36.

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E por que Samizdat?

A indústria cultural - e o mercado literário faz parte dela - também realiza um processo de exclusão, base-ado no que se julga não ter valor mercadológico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-se que contos, poemas, autores desconhecidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridades na hora de ser absorvido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regime exclu-dente, torna-se a via para produtores culturais atingi-rem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos - como TV,

revistas, jornais - onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escreve (quando há) surge em ques-tão de minutos.

A serem obrigados a burlar a indústria cultural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão influen-te quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há gran-

des tiragens que substituam o prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofisticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica mensal, escrita, editada e publicada pelos integrantes da Oficina de Escritores e Teoria Literária. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profis-sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

www.revistasamizdat.com

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88 SAMIZDAT junho de 2009

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Os moradores dum bairro de classe média na Cidade do México ficaram estarreci-dos ao descobrirem que Dona Dolores, uma das senhoras mais benquistas na vizinhan-ça, havia matado e empalha-do o marido.

“Nós nem percebemos nada diferente”, afirma uma testemunha que prefere não revelar sua identidade. “Todo os dias, nós víamos Don Mi-guel sentado na varanda do prédio, por isto, tudo parecia estar normal”.

Na verdade, Dona Dolores havia assassinado a pauladas o marido, Don Miguel, dez anos atrás, após ele ter chegado bê-bado em casa, agredido-a e a violentado, segundo a versão de Dona Dolores. “O pior é que eu amava o desgraçado! Jamais conseguiria viver sem ele, então, resolvi empalhá-lo e deixá-lo em casa para me fazer companhia. E, acredi-te em mim, ele é um marido

muito melhor morto do que vivo”.

Dona Dolores e Don Mi-guel possuíam uma loja de ta-xidermia, onde vendiam ani-mais silvestres e domésticos empalhados.

Quem descobriu o crime foi uma criança, quando, uma tarde, jogava futebol na rua e a bola acidentalmente caiu na varanda. “Nós chamamos por Don Miguel, pedindo para ele nos devolver a bola, mas ele não respondeu. Foi quando eu subi lá e o vi daquele jeito”.

Os peritos criminais fica-ram surpresos com o cuida-do que Dona Dolores teve na hora de empalhar as partes íntimas de Don Miguel. “Era a parte mais importante do corpo”, ri Dona Dolores.

“É um verdadeiro trabalho de mestre”, afirmam os peri-tos, que cogitam a possibilida-de de leiloar Don Miguel para algum museu.

8

Gazeta de Notícias

Henry Alfred Bugalho

mulher mata e empalha marido

Arqueólogos encontraram o que pode ser considerado o maior piolho do mundo, com quatro metros de comprimento por três de largura.

O insecto, classificado como Phthiraptera gigantos, foi des-coberto durante as escavações para a construção de um ba-nheiro público, a sul de Paris.

Alguns historiadores se adiantaram em afirmar que se trata de um dos vários piolhos lendários de Gargântua, que aterrorizaram a França durante a Baixa Idade Média, atacando mulheres e crianças cabeludas.

o maior piolho do mundo

junho de 2009

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A socialite Thabatha (“com dois ‘h’s, sim senhor!”) está viajando para o Congo esta semana para cumprir uma promessa: se sua Poodle so-brevivesse até aos quinze anos, ela faria algum ato de solidariedade.

Juju – a Poodle – comple-tou o décimo-quinto aniver-sário mês passado, por isto, Thabatha se viu na obrigação de arcar com a promessa.

“Conhecer a África será um grande sonho”, afirma a socialite, que acrescenta “sem-

pre que eu ouvia relatos de canibalismo, eu ficava choca-da. Agora será a minha vez de fazer a minha parte”.

A promessa de Thabatha será de levar bons modos e ensinar etiqueta a uma tri-bo de canibais incrustada na selva do Congo. “Entendo que o canibalismo seja um rito tradicional daquele povo; mi-nha intenção não é mudar a cultura deles, mas sim acabar com aquela imagem de al-guém com um fêmur huma-no na boca e com a cara toda ensanguentada”.

Para as aulas de etiqueta Thabatha está levando dúzias de talheres de prata, porcela-na chinesa, guardanapos e to-alhas bordadas.

Quando questionada se ela não tinha medo de ser co-mida pelos canibais, ela logo respondeu: “Isto seria um luxo! As minhas amigas iriam morrer de inveja!”

A polícia desbaratou, na noite de ontem, a maior qua-drilha de tráfico de drogas do Rio de Janeiro e fez uma apreensão recorde de cocaína, maconha e ecstasy.

“Estamos muito contentes com o eficaz trabalho da po-lícia”, declarou o delegado da divisão de narcóticos “e pre-tendemos dar uma boa desti-nação para o que foi apreen-dido: revenderemos a droga a preços populares e doaremos uma parte para comunidades carentes; o que sobrar, vai fi-car na delegacia mesmo – a maconha é da boa e os inves-tigadores estão loucos para queimar tudo até à última ponta.”

O prefeito da cidade con-fessou estar estarrecido com as declarações do delegado: “Pô, e eles nem me convida-ram pra festinha!”, reclamou ele.

O papa fez revelações bombásticas à imprensa esta tarde numa coletiva de im-prensa. “Sou gay, ateu e apoio o uso da camisinha”.

Este comentário causou co-moção na cúpula do Vaticano, que delibera qual será o des-tino papal.

Segundo a bula “Pastor Ae-ternus”, proclamada durante o Concílio Vaticano I, o papa não erra e, quando ele se di-rige à comunidade cristã, é sempre infalível. Isto tem sus-citado profundas reflexões te-ológicas e atiçado grupos de minorias ao redor do mundo.

Em San Francisco, centenas de milhares de homossexuais se reuniram para comemorar o anúncio do papa, enquan-to que em Berlim grupos de neo-nazistas atearam fogo em quatro igrejas e em cinco sa-cerdotes católicos.

“Isto pode alterar o rumo da Igreja e dos países cató-licos”, afirma o porta-voz de uma das ONGs mais impor-tantes em combate à AIDS.

“Que o papa era viado, todo mundo sabia! Ele já comeu metade dos cardeais!” garante uma fonte anônima.

o papa é pop

Canibal, mas sem perder a classe apreensão recorde de drogas

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1010 SAMIZDAT junho de 2009

ria muito com poucoCaio Rudá & Ricardo Thadeu

Ânus 70

Há muito tempo, numa discoteca muito, muito distante havia aquela cara, que abalava as noites de sextas-feiras ao chacoalhar freneticamente sua estrutura óssea em contratempos, antecipando a filosofia dream-theateriana. Era Lé de Zé Pelim, madeixas inimigas dos pentes e calças tão apertadas que por pouco não o rachavam ao meio, aproveitando a fissura glútea.

Em certa ocasião, ele que esperava por Darth Vader para lhe vender as balinhas de menta, ia amarrando os cadarços da mente, com um Hollywood entre os

dedos. As luzes da bola cintilante dependurada do teto encandeavam os olhos de Lé de Zé Pelim, alterando levemente o fenótipo de seu “azinho-azinho”.

Da multidão, o amigo Vader surgiu e lhe entregou os comprimidos. Ele os ingeriu depressa. Lentamente, as luzes cintilantes que encandeavam seus olhos passaram a ser projetar, tal qual lâmpadas fluorescentes com som acoplado. E num devaneio interplanetário, lá estava Lé de Zé Pelim duelando com seu amigo de outrora, Darth Vader.

O embate durou centenas de milhões de anos-sem-luz, e, aproveitando o tropeço

dos cadarços amarrados, o traficante estelar conseguiu desferir um golpe mortal no cambaleante Lé, cujo final foi o contato brusco com o chão.

No meio da pista da dança, um Ramone distraído foi testemunha do cumprimento da profecia. Como se tivessem apertado o review do vídeo cassete de não sei quantas cabeças, Lé de Zé Pelim retornou à posição inicial.

– Hey, ho! É um milagre brasileiro! – vociferou sem acordes punk o Ramone.

– Que a força esteja com você! – e sublimou o Lé de Zé Pelim.

Consulta Médica

O doutor:

- O senhor precisa comer ferro. Está com suspeita de anemia.

Nova consulta, raio-x, desenhos estranhos, objetos pequenos, cortantes:

- Mas que diabos. O que aconteceu com o senhor?

- Sabe como é, doutor. O feijão tá caro, o quiabo também...

Negócio da China

Em um camelo paraguaio de sotaque fran-cês:

− Esse relógio é à prova d’água?

− É, mas melhor não testar.

Apesar da queda do sr. Dow Jones, a tran-sação ocorreu sem maiores turbulências. No final, o turco vendedor acena seu kipá.

− Hasta la vista, monsieur.

Sono

Vou escrever até...

Conto de Natal

Não pude escrevê-lo pois passei mal de-pois da ceia.

http://www.flickr.com/photos/aidan_jones/1438403889/sizes/m/

Caio Rudá

10 SAMIZDAT junho de 2009

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11www.revistasamizdat.com

o carneiro e o loboNo tempo em que os animais falavam,

o Bush e o Saddam estavam a beber num regato.

– Estás a sujar-me a água! – disse o Bush.

– Eu? – ripostou o Saddam – Eu, como, se é daí que vem a corrente?

– Se não és tu, é o bin Laden!

E certeiro, espetou-lhe um corno no fígado.

No tempo em que os animais falavam

IdentificaçãoQuando a coligação árabe invadiu alguns países ociden-

tais, distribuiu pelos seus soldados baralhos de cartas onde cada carta tinha a fotografia de um ocidental procurado pela coligação. Isso ajudava os soldados a identificar com rigor os elementos perseguidos, que aos olhos árabes parecem todos iguais. Bush era o sheik de espadas e Blair a odalisca de paus.

Joaquim Bispo

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ConfissãoSaddam foi apanhado num domingo. Na

terça-feira, descobriu-se que possuía do-cumentos que o ligavam ao comando da al-Qaeda. Quinta-feira, encontraram a docu-mentação que provava inequivocamente que o Iraque possuía armas de destruição maciça, e no sábado, confessou que foi ele que lançou duas bombas atómicas sobre o Japão.

o ambiente sob suspeita – Sr. Presidente, temos que assinar o Protocolo de Quioto:

pela primeira vez em 10 000 anos, o gelo desapareceu do Monte Kilimanjaro.

– Não assino nada. Se o gelo desapareceu, havemos de encontrá-lo. Ele pode fugir, mas não se pode esconder!

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12SAMIZDAT junho de 200912

Joaquim Bispo

Os tempos perigosos que correm alteram até as rotinas mais arreigadas. No meu bairro, havia uma velhota que todos os sábados ia à mercearia comprar milho para dar aos pombos. Certo sábado, vi-a comprar, para além do habitual saquinho de milho, dois pacotinhos de lenços de papel. Disse que tinha visto vários pombos a espirrar e com o bico a pingar, coitadinhos.

***

Parece que a gripe das aves não constitui grande perigo para o Homem, se este não tiver contactos próximos com aves infectadas. Notícias do Olimpo fazem saber que Leda, por precaução, já pôs o cisne a dormir no sofá!

http://farm1.static.flickr.com/53/175937525_157a348300.jpg?v=0

Gripe das aves

Joaquim Bispo

As palavras têm, por vezes, sonoridades e construções ortográficas que sugerem ou-tras, com significados muito diversos. Pode, por isso, usar-se a sonoridade e a entoação para dizer algo que, não ofendendo ninguém, formal-mente, contém uma ferroada subjacente.

Um dia, um colega de trabalho chegou dizendo que, no meio duma discussão no autocarro, uma mulher atirou para outra: «Vá para a Bósnia, sua Herzegovina!»

O exemplo foi inspirador,

de modo que, uns tempos depois, usei a seguinte arma de arremesso para terminar em beleza um desentendi-mento no trânsito: «Ó meu caro amigo, sabe o que é que eu lhe digo? – Vodafone!»

O outro ficou uns bons três minutos, de olhos em alvo, a digerir a mensagem, contaram-me depois!

***Conheci um japonês, de

gestos tão bruscos como os dos samurais dos filmes, que se chama Yátá ! A sua es-posa, não tão dócil como as gueixas dos filmes, chama-se

Komo Yátá?!***Ontem vi um livro com o

seguinte título: O que fazer depois de morrer

Ora aí está um assunto com o qual devemos pre-ocupar-nos. É, com certeza, fundamental que cada um programe meticulosamente e com antecedência as activi-dades que vai desenvolver depois de morrer para que, quando chegar a altura, não fique para ali indeciso e enfadado sem saber como ocupar o tempo!

Significantes

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1414 SAMIZDAT junho de 2009

autor em Língua Portuguesa

o Juiz de Paz

na roçaMartins Pena

http://www.flickr.com/photos/dinamarco/2476046936/sizes/o/in/set-72157604941341523/

14

Comédia em 1 ato

PERSONAGENS

JUIZ DE PAZ

ESCRIVÃO DO JUIZ (DE PAZ)

MANUEL JOÃO, lavrador [guarda nacional]

MARIA ROSA, sua mulher

ANINHA, sua filha

JOSÉ [DA FONSECA], amante de Aninha

INÁCIO JOSÉ

JOSÉ DA SILVA

FRANCISCO ANTÔNIO

MANUEL ANDRÉ

SAMPAIO (lavradores)

TOMÁS

JOSEFA [JOAQUINA]

GREGÓRIO

[Negros]

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[A cena é na roça.]

ato ÚNiCo

CENa i

Sala com uma porta no fundo. No meio uma mesa, junto à qual estarão cosendo MARIA ROSA e ANINHA.

MARIA ROSA - Teu pai tarda muito.

ANINHA - Ele disse que tinha hoje muito que fazer.

MARIA ROSA - Pobre homem! Mata-se com tanto trabalho! É quase meio-dia e ainda não voltou. Desde as quatro horas da manhã que saiu; está só com uma xícara de café.

ANINHA - Meu pai quando principia um trabalho não gosta de o largar, e minha mãe sabe bem que ele tem só a Agostinho.

MARIA ROSA - É verdade. Os meias-caras agora estão tão caros! Quando havia valon-go eram mais baratos.

ANINHA - Meu pai disse que quando des-manchar o mandiocal grande há-de com-prar uma negrinha para mim.

MARIA ROSA - Também já me disse.

ANINHA - Minha mãe, já preparou a jacu-ba para meu pai?

MARIA ROSA - É verdade! De que me ia esquecendo! Vai aí fora e traz dous limões. (ANINHA sai.) Se o MANUEL JOÃO viesse e não achasse a jacuba pronta, tínhamos campanha velha. Do que me tinha esqueci-do! (Entra ANINHA.)

ANINHA - Aqui estão os limões.

MARIA ROSA - Fica tomando conta aqui, enquanto eu vou lá dentro. (Sai.)

ANINHA, só - Minha mãe já se ia demo-rando muito. Pensava que já não poderia falar co senhor JOSÉ, que está esperando-me debaixo dos cafezeiros. Mas como minha mãe está lá dentro, e meu pai não entra nesta meia hora, posso fazê-lo entrar aqui. (Chega à porta e acena com o lenço.) Ele aí vem.

CENa ii

Entra JOSÉ com calça e jaqueta branca.

JOSÉ - Adeus, minha ANINHA! (Quer abraçá-la.)

ANINHA - Fique quieto. Não gosto des-tes brinquedos. Eu quero casar-me com o senhor, mas não quero que me abrace antes de nos casarmos. Esta gente quando vai à Corte, vem perdida. Ora diga-me, concluiu a venda do bananal que seu pai lhe dei-xou?

JOSÉ - Concluí.

ANINHA - Se o senhor agora tem dinheiro, por que não me pede a meu pai?

JOSÉ - Dinheiro? Nem vintém!

ANINHA - Nem vintém! Então o que fez do dinheiro? É assim que me ama? (Chora.)

JOSÉ - Minha ANINHA, não chores. Oh, se tu soubesses como é bonita a Corte! Tenho um projeto que te quero dizer.

ANINHA - Qual é?

JOSÉ - Você sabe que eu agora estou pobre como Jó, e então tenho pensado em uma cousa. Nós nos casaremos na freguesia,

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1616 SAMIZDAT junho de 2009

sem que teu pai o saiba; depois partiremos para a Corte e lá viveremos.

ANINHA - Mas como? Sem dinheiro?

JOSÉ - Não te dê isso cuidado: assentarei praça nos Permanentes.

ANINHA - E minha mãe?

JOSÉ - Que fique raspando mandioca, que é ofício leve. Vamos para a Corte, que você verá o que é bom.

ANINHA - Mas então o que é que há lá tão bonito?

JOSÉ - Eu te digo. Há três teatros, e um deles maior que o engenho do capitão-mor.

ANINHA - Oh, como é grande!

JOSÉ - Representa-se todas as noites. Pois uma mágica... Oh, isto é cousa grande!

ANINHA - O que é mágica?

JOSÉ - Mágica é uma peça de muito ma-quinismo.

ANINHA - Maquinismo?

JOSÉ - Sim, maquinismo. Eu te explico. Uma árvore se vira em uma barraca; paus viram-se em cobras, e um homem vira-se em macaco.

ANINHA - Em macaco! Coitado do ho-mem!

JOSÉ - Mas não é de verdade.

ANINHA - Ah, como deve ser bonito! E tem rabo?

JOSÉ - Tem rabo, tem.

ANINHA - Oh, homem!

JOSÉ - Pois o curro dos cavalinhos! Isto é

que é cousa grande! Há uns cavalos tão bem ensinados, que dançam, fazem mesu-ras, saltam, falam, etc. Porém o que mais me espantou foi ver um homem andar em pé em cima do cavalo.

ANINHA - Em pé? E não cai?

JOSÉ - Não. Outros fingem-se bêbados, jo-gam os socos, fazem exercício - e tudo isto sem caírem. E há um macaco chamado o macaco major, que é coisa de espantar.

ANINHA - Há muitos macacos lá?

JOSÉ - Há, e macacas também.

ANINHA - Que vontade tenho eu de ver todas estas cousas!

JOSÉ - Além disto há outros muitos diver-timentos. Na Rua do Ouvidor há um cos-morama, na Rua de São Francisco de Paula outro, e no Largo uma casa aonde se vêem muitos bichos cheios, muitas conchas, ca-britos com duas cabeças, porcos com cinco pernas, etc.

ANINHA ? Quando é que você pretende casar-se comigo?

JOSÉ - O vigário está pronto para qualquer hora.

ANINHA - Então, amanhã de manhã.

JOSÉ - Pois sim. (Cantam dentro.)

ANINHA - Aí vem meu pai! Vai-te embora antes que ele te veja.

JOSÉ - Adeus, até amanhã de manhã.

ANINHA - Olhe lá, não falte! (Sai JOSÉ.)

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CENa iii

ANINHA, só - Como é bonita a Corte! Lá é que a gente se pode divertir, e não aqui, aonde não se ouve senão os sapos e as en-tanhas cantarem. Teatros, mágicos, cavalos que dançam, cabeças com dous cabritos, macaco major... Quanta cousa! Quero ir para a Corte!

CENa iV

Entra MANUEL JOÃO com uma enxada no ombro, vestido de calças de ganga azul, com uma das pernas arregaçada, japona de baeta azul e descalço. Acompanha-o um negro com um cesto na cabeça e uma en-xada no ombro, vestido de camisa e calça de algodão.

ANINHA - Abença, meu pai.

MANUEL JOÃO - Adeus, rapariga. Aonde está tua mãe?

ANINHA - Está lá dentro preparando a jacuba.

MANUEL JOÃO - Vai dizer que traga, pois estou com muito calor. (ANINHA sai. M. JOÃO, para o negro:) Olá, Agostinho, leva estas enxadas lá para dentro e vai botar este café no sol. (O preto sai. MANUEL JOÃO senta-se.) Estou que não posso comi-go; tenho trabalhado como um burro!

CENa V

Entra MARIA ROSA com uma tigela na mão, e ANINHA a acompanha.

MANUEL JOÃO - Adeus, senhora MARIA ROSA.

MARIA ROSA - Adeus, meu amigo. Estás muito cansado?

MANUEL JOÃO - Muito. Dá-me cá isso?

MARIA ROSA - Pensando que você viria muito cansado, fiz a tigela cheia.

MANUEL JOÃO - Obrigado. (Bebendo:) Hoje trabalhei como gente... Limpei o mandiocal, que estava muito sujo... Fiz uma derrubada do lado de FRANCISCO ANTÔ-NIO... Limpei a vala de Maria do Rosário, que estava muito suja e encharcada, e logo pretendo colher café. ANINHA?

ANINHA - Meu pai?

MANUEL JOÃO - Quando acabares de jantar, pega em um samborá e vai colher o café que está à roda da casa.

ANINHA - Sim senhor.

MANUEL JOÃO - Senhora, a janta está pronta?

MARIA ROSA - Há muito tempo.

MANUEL JOÃO - Pois traga.

MARIA ROSA - ANINHA, vai buscar a janta de teu pai. (ANINHA sai.)

MANUEL JOÃO - Senhora, sabe que mais? É preciso casarmos esta rapariga.

MARIA ROSA - Eu já tenho pensado nisto; mas nós somos pobres, e quem é pobre não casa.

MANUEL JOÃO - Sim senhora, mas uma pessoa já me deu a entender que logo que puder abocar três ou quatro meias-caras destes que se dão, me havia de falar nisso...

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1818 SAMIZDAT junho de 2009

Com mais vagar trataremos deste negócio. (Entra ANINHA com dous pratos e os dei-xa em cima da mesa.)

ANINHA - Minha mãe, a carne-seca aca-bou-se.

MANUEL JOÃO - Já?!

MARIA ROSA - A última vez veio só meia arroba.

MANUEL JOÃO - Carne boa não faz conta, voa. Assentem-se e jantem. (Assentam-se todos e comem com as mãos. O jantar consta de carne-seca, feijão e laranjas.) Não há carne-seca para o negro?

ANINHA - Não senhor.

MANUEL JOÃO - Pois coma laranja com farinha, que não é melhor do que eu. Esta carne está dura como um couro. Irra! Um dia destes eu... Diabo de carne!... hei-de fazer uma plantação... Lá se vão os dentes!... Deviam ter botado esta carne de molho no corgo... que diabo de laranjas tão azedas! (Batem à porta.) Quem é? (Logo que MA-NUEL JOÃO ouve bater na porta, esconde os pratos na gaveta e lambe os dedos.)

ESCRIVÃO, dentro - Dá licença, Senhor MANUEL JOÃO?

MANUEL JOÃO - Entre quem é.

ESCRIVÃO, entrando - Deus esteja nesta casa.

MARIA ROSA e MANUEL JOÃO - Amém.

ESCRIVÃO - Um criado da Senhora Dona e da Senhora Doninha.

MARIA ROSA e ANINHA - Uma sua cria-da. (Cumprimentam.)

MANUEL JOÃO - O senhor por aqui a estas horas é novidade.

ESCRIVÃO - Venho da parte do senhor juiz de paz intimá-lo para levar um recruta à cidade.

MANUEL JOÃO - Ó homem, não há mais ninguém que sirva para isto?

ESCRIVÃO - Todos se recusam do mes-mo modo, e o serviço no entanto há-de se fazer.

MANUEL JOÃO - Sim, os pobres é que o pagam.

ESCRIVÃO - Meu amigo, isto é falta de patriotismo. Vós bem sabeis que é preciso mandar gente para o Rio Grande; quando não, perdemos esta província.

MANUEL JOÃO - E que me importa eu com isso? Quem as armou que as desarme.

ESCRIVÃO - Mas, meu amigo, os rebeldes têm feito por lá horrores!

MANUEL JOÃO - E que quer o senhor que se lhe faça? Ora é boa!

ESCRIVÃO - Não diga isto, Senhor MA-NUEL JOÃO, a rebelião...

MANUEL JOÃO, gritando - E que me im-porta eu com isso?... E o senhor a dar-lhe...

ESCRIVÃO, zangado - O senhor juiz man-da dizer-lhe que se não for, irá preso.

MANUEL JOÃO - Pois diga com todos os diabos ao senhor juiz que lá irei.

ESCRIVÃO, à parte - Em boa hora o digas. Apre! custou-me achar um guarda... Às vossas ordens.

MANUEL JOÃO - Um seu criado.

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ESCRIVÃO - Sentido nos seus cães.

MANUEL JOÃO - Não mordem.

ESCRIVÃO - Senhora Dona, passe muito bem. (Sai o ESCRIVÃO.)

MANUEL JOÃO - Mulher, arranja esta saia, enquanto me vou fardar. (Sai M. João.)

CENa Vi

MARIA ROSA - Pobre homem! Ir à cidade somente para levar um preso! Perder assim um dia de trabalho...

ANINHA - Minha mãe, pra que é que mandam a gente presa para a cidade?

MARIA ROSA - Pra irem à guerra.

ANINHA - Coitados!

MARIA ROSA - Não se dá maior injustiça! Manoel João está todos os dias vestindo a farda. Ora pra levar presos, ora pra dar nos quilombos... É um nunca acabar.

ANINHA - Mas meu pai pra que vai?

MARIA ROSA - Porque o juiz de paz o obriga.

ANINHA - Ora, ele podia ficar em casa; e se o juiz de paz cá viesse buscá-lo, não ti-nha mais que iscar a Jibóia e a Boca-Negra.

MARIA ROSA - És uma tolinha! E a cadeia ao depois?

ANINHA - Ah, eu não sabia.

CENa Vii

Entra MANUEL JOÃO com a mesma calça e jaqueta de chita, tamancos, barretina da Guarda Nacio-nal, cinturão com baioneta e um grande pau na mão.

MANUEL JOÃO, entran-do - Estou fardado. Adeus, senhora, até amanhã. (Dá um abraço.)

ANINHA - Abença, meu pai.

MANUEL JOÃO - Adeus, menina.

ANINHA - Como meu pai vai à cidade, não se es-queça dos sapatos franceses que me prometeu.

MANUEL JOÃO - Pois sim.

MARIA ROSA - De ca-minho compre carne.

MANUEL JOÃO - Sim. Adeus, minha gente, adeus.

MARIA ROSA e ANI-NHA - Adeus! (Acompa-nham-no até à porta.)

MANUEL JOÃO, à porta - Não se esqueça de me-xer a farinha e de dar que comer às galinhas.

MARIA ROSA - Não. Adeus! (Sai MANUEL JOÃO.)

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2020 SAMIZDAT junho de 2009

CENa Viii

MARIA ROSA - Menina, ajuda-me a levar estes pratos para dentro. São horas de tu ires colher o café e de eu ir mexer a farinha... Vamos.

ANINHA - Vamos, minha mãe. (Andan-do:) Tomara que meu pai não se esqueça dos meus sapatos... (Saem.)

CENa iX

Sala em casa do juiz de paz. Mesa no meio com papéis; cadeiras. Entra o juiz de paz vestido de calça branca, rodaque de riscado, chinelas verdes e sem gravata.

JUIZ - Vamo-nos preparando para dar audiência. (Arranja os papéis.) O escri-vão já tarda; sem dúvida está na venda do Manuel do Coqueiro... O último recruta que se fez já vai-me fazendo peso. Nada, não gosto de presos em casa. Podem fugir, e depois dizem que o juiz recebeu algum presente. (Batem à porta.) Quem é? Pode entrar. (Entra um preto com um cacho de bananas e uma carta, que entrega ao juiz. JUIZ, lendo a carta:) “Il.mo Sr. - Muito me alegro de dizer a V. S.ª que a minha ao fa-zer desta é boa, e que a mesma desejo para V.S.ª pelos circunlóquios com que lhe vene-ro”. (Deixando de ler:) Circunlóquios... Que nome em breve! O que quererá ele dizer? Continuemos. (Lendo:) “Tomo a liberdade de mandar a V.S.ª um cacho de bananas-maçãs para V.S.ª comer com a sua boca e dar também a comer à Sr.ª Juíza e aos Srs. JUIZinhos. V.S.ª há-de reparar na in-significância do presente; porém, Il.mo Sr., as reformas da Constituição permitem a

cada um fazer o que quiser, e mesmo fazer presentes; ora, mandando assim as ditas re-formas, V.S.ª fará o favor de aceitar as ditas bananas, que diz minha Teresa Ova serem muito boas. No mais, receba as ordens de quem é seu venerador e tem a honra de ser - MANUEL ANDRÉ de Sapiruruca.” - Bom, tenho bananas para a sobremesa. Ó pai, leva estas bananas para dentro e en-trega à senhora. Toma lá um vintém para teu tabaco. (Sai o negro.) O certo é que é bem bom ser juiz de paz cá pela roça. De vez em quando temos nossos presentes de galinhas, bananas, ovos, etc., etc. (Batem à porta.) Quem é?

ESCRIVÃO, dentro - Sou eu.

JUIZ - Ah, é o escrivão. Pode entrar.

CENa X

ESCRIVÃO - Já intimei MANUEL JOÃO para levar o preso à cidade.

JUIZ - Bom. Agora vamos nós preparar a audiência. (Assentam-se ambos à mesa e o juiz toca a campainha.) Os senhores que estão lá fora no terreiro podem entrar. (En-tram todos os lavradores vestidos como ro-ceiros; uns de jaqueta de chita, chapéu de palha, calças brancas de ganga, de taman-cos, descalços; outros calçam os sapatos e meias quando entram, etc. TOMÁS traz um leitão debaixo do braço.) Está aberta a audiência. Os seus requerimentos?

fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/martins-pena/o-juiz-de-paz-da-roca.php

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Luís Carlos Martins Pena (Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1815 – Lisboa, 7 de dezembro de 1848) foi dramaturgo, diplo-mata e introdutor da comédia de costumes no Brasil, tendo sido considerado o Molière brasilei-ro.

Sua obra caracterizou pioneira-mente, com ironia e humor, as graças e desventuras da socie-dade brasileira e de suas insti-tuições. É Patrono da Academia Brasileira.

Filho de João Martins Pena e Francisca de Paula Julieta Pena, pessoas de poucas posses. Com um ano de idade, tornou-se órfão de pai; aos dez anos, de mãe. Seu padrasto, Antônio Maria da Silva Torres, deixou-o a cargo de tutores e, por destinação destes, ingressou na vida comercial, concluindo o curso de Comércio aos vinte anos, em 1835. Depois, passou a freqüentar a Academia Imperial das Belas Artes, onde estudou arquitetura, estatuária, desenho e música; simultanea-mente, estudava línguas, histó-ria, literatura e teatro. Em 4 de outubro de 1838, foi representa-da, pela primeira vez, uma peça sua, “O juiz de paz na roça”, no Teatro São Pedro, pela célebre companhia teatral de João Cae-tano (1808-1863), o mais famoso ator e encenador da época. No mesmo ano, entrou para o Minis-tério dos Negócios Estrangeiros, onde exerceu cargos diversos, tais como amanuense da Secre-taria dos Negócios Estrangeiros, em 1843, e adido à Legação do

Brasil em Londres, Inglaterra, em 1847. Durante todo este perí-odo, contribuiu para a literatura brasileira com cerca de trinta peças, das quais aproximada-mente vinte sendo comédias, o que o tornou fundador do gênero da comédia de costumes no Brasil, e as restantes constituin-do farsas e dramas. Também, de agosto de 1846 a outubro 1847, fez críticas teatrais como folhe-tinista do Jornal do Commercio. Em Londres, contraiu tuberculo-se; e, em trânsito para o Brasil, veio a falecer em Lisboa, Portu-gal, com 33 anos de idade, em 7 de dezembro de 1848.

Em sua obra, de período imedia-tamente anterior ao Romantismo (no Brasil), debruçou-se sobre a vida do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX e explorou, sobretudo, o povo co-mum da roça e das cidades. Com a ajuda de sua singular veia cômica, encontrou um ambiente receptivo que favoreceu a sua popularidade. Construiu uma galeria de tipos que constitui um retrato realista do Brasil da época e compreende funcioná-rios públicos, meirinhos, juízes, malandros, matutos, estrangei-ros, falsos cultos e profissionais da intriga social. Suas histórias giram em torno de casos de família, casamentos, heranças, dotes, dívidas e festas da roça e das cidades.

Após sua morte, ainda vieram a público algumas de suas peças, como “O noviço” (1853) e “Os dois ou O inglês maquinista”

(1871). Sua produção foi reunida em Comédias (1898), edita-do pela Editora Garnier, e em Teatro de Martins Pena (1965), 2 volumes, editado pelo Instituto Nacional do Livro. Folhetins – A semana lírica (1965), editado pelo então Ministério da Edu-cação e Cultura e pelo Instituto Nacional do Livro, abrange a colaboração do autor no Jornal do Commercio (1846-1847).

Martins Pena deu ao teatro bra-sileiro cunho nacional, influen-ciando, em especial, Artur Aze-vedo. Sobre sua obra, escreveu o crítico e ensaísta Sílvio Romero (1851-1914): “...se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos pri-meiros 50 anos desse século XIX, que está a findar, e nos ficassem somente as comédias de Martins Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral de toda esta época”.

Uma das pricipais salas do Teatro Nacional Cláudio Santo-ro, em Brasília, leva seu nome.fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Martins_Pena

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2222 SAMIZDAT junho de 2009

Não era o que eu espe-rava. A cada visão, uma nova realidade surgia. Cores, formas, gente, vida! E quão bom era isso!

Cheguei sem muitas pretensões: um rapaz curioso, sorrindo a todos, tentando ser simpático e achando que viveria um dia como qualquer outro. Engano, completo engano. Assim que entrei no local – um misto de “muvuca”, parque de diversões e fes-

ta cultural –, percebi que algo mágico aconteceria; no mínimo, alguma situa-ção inusitada.

Cumprimentei os rostos conhecidos – pare-ciam todos muito satisfei-tos. Caminhei em várias direções, sem saber ao certo aonde ir. Enquanto caminhava, uma gritaria chamou-me a atenção. Na verdade, uma bela apresentação se desenro-lava. Dois quase-palhaços

tomavam as atenções de todos, principalmente crianças. Fui me apro-ximando, cada vez mais perto... Acomodei-me ao lado do quase-picadeiro. Admirando os sorrisos sinceros de uma centena de crianças, fui surpreen-dido por uma frase bem sugestiva:

– Ah! Então você está por aqui! – era um dos quase-palhaços “me re-conhecendo”. E ele tinha

Contos

Carlos Alberto Barros

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um quase-palhaço

um baita chicote na mão! Eu iria discordar?!

O fato é que fui in-timado a atuar como voluntário no próximo número do espetáculo. Bem... acabei indo... As gargalhadas da criançada eram um convite irresis-tível!

O número consistia em manobra extrema-mente arriscada. Tentarei explicar...

Um dos quase-palha-ços, o vestido de coelho (chamemos de Coelho para facilitar), deveria passar, com toda habi-lidade possível, por um arco (bambolê) suspenso no ar por uma garotinha. Mas... antes disso... deve-ria transpor uma barreira humana formada por quatro “voluntários” – eis onde eu estava. O outro quase-palhaço, o do chi-cote (chamemos apenas de Chicote), organizava a bagunça (ou bagunçava a organização?!). Ele me co-locou, vejam só, de testa colada com outro rapaz – simpático, até. Do nosso lado, outra dupla igual a nós. No meio, não sei exatamente como, Chi-cote apertou um menino que, creio eu, servia mais para rir da situação que para qualquer outra coi-sa. Na ponta dessa “fila”, a garotinha suspendia alto, em sua “outra mão esquerda” (palavras de

Chicote), o aro entregue por ele. Como se pode notar, a arquitetura do número se fazia estra-nha e arriscada. O que aconteceria ali, só Deus, Coelho e Chicote sabiam. O restante do povo ria, como toda a criançada, ou chorava, como eu (mentira, não chorei não, mas fiquei com um boca-do de vergonha).

Tudo pronto, Coelho tomou distância, Chi-cote estalou seu chicote no chão, rufaram-se os tambores (na verdade ouvia-se um rock clás-sico que multiplicava a drama de tudo)... e eu, lá. Lá vinha Coelho, e eu, lá. Em velocidade descomu-nal, comparável à mais habilidosa tartaruga, ele vinha. Vinha, e não che-gava nunca. “Meu Deus, vem logo, Coelho!”, era o que eu pensava. Enfim, chegou. Com destreza olímpica, Chicote auxi-liou Coelho a subir na cabeça dos voluntários. Na minha cabeça! Que situação! E o povo rin-do! E eu rindo! “Vai logo, Coelho!”, eu queria gritar, mas usava todas minhas forças para mantê-lo no ar, como o mais belo pássaro em vôo livre. Os outros ajudavam. Tudo muito, muito arriscado! A garotinha ergueu mais o bambolê, que só não se fazia mais medonho por não estar envolto em

chamas.E ia Coelho, quase

um Chapolim Colorado, passando por dentro do arco! Primeiro foram as orelhas, depois a cabeça suada e seu sorriso in-fantil – e o arco ficando para trás. A garotinha se preocupava. Chicote or-questrava os movimentos delicados. E eu empur-rando: “Vai, Coelho!”

Tudo se deu em longos minutos – justificáveis pela periculosidade do número! Ao final, despe-jamos “carinhosamente” o Coelho no chão cimenta-do. Quase como mágica, imediatamente depois de ele ser despejado, o pú-blico mostrou o orgulho por seus quase-palhaços em longa e calorosa salva de palmas! Estranha-mente, o bocadinho de vergonha que eu sentia transformou-se numa prazerosa satisfação. Algo como experimentar um belo de um algodão doce! E quantas crianças ale-gres eu via, quanta felici-dade!

De fato, não era o que eu esperava... Para quem chegou sem pretensões, tornar-se um quase-palhaço já estava de bom tamanho. Contudo, ficou aquele “gostinho de quero mais”.

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2424 SAMIZDAT junho de 2009

Contos

Joaquim Bispo

História do grego onanágoras

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Na antiga Grécia, por volta do ano 400 a.C., vivia um pobre homem de nome Onanágoras. Habitava sozinho num monte pedregoso batido pelo vento. Alimentava-se de nabos, mel e figos, no tempo deles. Apesar da enorme pobreza e soli-dão, viveu relativamente feliz por muitos anos.

Até que lhe sobreveio uma crise de meia-idade. Começou a andar cabis-baixo, sorumbático e sem vontade de ir aos figos. Ao fim de algum tempo, resolveu fazer uma pe-regrinação a Delfos para consultar a divindade sobre o seu problema.

Pôs um saco de nabos e um pote de mel numa cesta e pôs-se a cami-nho. Ao fim de alguns

dias, chegou ao templo; purificou-se e fez as suas oferendas ao deus Apolo, na pessoa da Pitonisa. E expôs o que o entristecia:

– Ó brilhante Apolo, há muitos anos que vivo só num monte pedregoso. Tenho apenas por com-panheira a minha mão direita, com a qual tenho mantido uma relação fiel e gratificante. Com ela tenho vivido feliz nestes últimos quarenta anos. Mas, ultimamente, tenho sentido apelos perturba-dores. Apetece-me mudar, conhecer mundo, variar. O que é que hei-de fazer?

A Pitonisa aspirou as exalações proféticas do abismo hiante, entrou em transe frenético e, depois de revirar os olhos, sibi-lou:

– Toma para ti uma concubina!

– Mas, como posso eu, se não tenho senão uma colmeia, uma leira de nabos e uma figueira?! – admirou-se Onanágoras.

A sacerdotisa olhou para o saco de nabos e para o pote de mel que o pobre grego trouxera e, embora não costumasse pormenorizar muito os seus oráculos, desta vez condescendeu em especi-ficar:

– Toma como concubi-na a tua mão esquerda!

Onanágoras agradeceu o conselho e voltou para o seu monte pedregoso. E viveu feliz por mais vinte e cinco anos.

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2626 SAMIZDAT junho de 2009

a verdadeira história do

Velho do Saco

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Volmar Camargo Junior

Contos

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a verdadeira história do

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Uma realidade em Pe-reirópolis é que muito de seu território é ocupado por lavouras. Uma dessas fazia fundo com um campo de propriedade do Exérci-to. Anos mais tarde, a tal fazenda foi desapropriada e incorporada pelo municí-pio, tornando-se um lote-amento urbano. Hoje é o Bairro Setembrino da Silva. Diferente de outros bairros que têm seus nomes por causa de eventos históricos ou em homenagem a polí-ticos locais, aquele bairro foi batizado por um acaso curioso. Ou melhor, por causa da curiosidade desse personagem.

Seu Setembrino da Silva era daquelas pessoas que já são idosas quando os idosos ainda eram jovens. Havia quem o chamasse “Setem-brino Matusalém”. Outros, ainda mais maldosos, fala-vam que se fossem somadas as idades do Seu Setembrino e da Dona Maricota, aquela do Sabão Milagroso, o re-sultado passava de trezentos anos. Morava numa casinha isolada em uma quadra de terra doada a ele por um compadre, que, aliás, era seu único vizinho. Conhe-cido pelas invencionices, o velho Setembrino passava dias enfurnado num galpão no fundo do pátio, de onde só saía para comer ou para dormir; o segundo menos que o primeiro. Passado um tempo, o velho aparecia com uma nova criação, que eram coisas interessantes, mas não menos absurdas:

um espantalho que se me-xia quando os pardais se achegavam na horta, ou sis-temas de irrigação, ou ala-vancas para abrir e fechar o galinheiro ou ainda um distribuidor de ração para os pombos-correio que ele criava. As matérias-primas de suas obras-primas eram coisas que ninguém mais quer. Por isso, quando não estava inventando algo, ca-minhava pelas ruas da Vila da Pereira – que futuramen-te viria a ser Pereirópolis – carregando um saco de sucata às costas. Não, não é coincidência: Seu Setembri-no deu origem à lendária figura do Velho do Saco.

Um dia, nas andanças entre uma empreitada e outra pelo lugar onde atu-almente é o bairro que tem seu nome, o velho Setembri-no entrou em um terreno baldio para dar vazão aos seus reflexos parassimpáti-cos. Enquanto obrava, obser-vou o lugar com os olhos atentos de sempre. E sua busca não foi infrutífera: o inventor encontrou um objeto cilíndrico formado por muitos gomos de metal – como um ananás, só que menor – enferrujado, mas ainda inteiro. No lugar da coroa do tal ananás, uma alça comprida e um pito que unia a essa alça uma argola. Terminou o “serviço” e levou o achado para casa.

De tudo quanto foi ma-neira, o velho tentou des-montar a coisa, e o “ananás” não cedia um milímetro. Deu nele com golpes de

marreta, usou uma serra de cano, bateu com um facão até deixar a ferramenta sem fio, e nada. O com-padre e vizinho, alarmado pela barulheira e por não ter visto o Setembrino por muitos dias, resolveu dar uma conferida, para ver se estava tudo bem. Encontrou o homem sesteando, esco-rado na parede do galpão, sentado em um mochinho – um banquinho sem orelhas, coisa que era muito comum nas casas de gente simples. Dentro do recinto havia um braseiro aceso. Curioso, o compadre entrou pé-por-pé para ver o que o Setem-brino estava inventando daquela vez. Transtornado pelo susto, apagou o bra-seiro com um balde d’água, correu pra fora do galpão e levou – arrastou, melhor dizendo – o seu Setembrino pra longe de casa o mais rapidamente que pôde.

Depois daquilo, nem compadre, nem ninguém convencia o Setembrino de que o “ananás” que ele pôs na boca do fogão à lenha era, na verdade, uma grana-da. Para a sua sorte, era só o casco vazio, sem pólvora. Mas, por via das dúvidas, o Exército fez uma inspeção rigorosa no campo onde ele a havia encontrado e nas imediações. Nunca foi pu-blicado nenhum relatório, mas, dizem as línguas dos curiosos que foram acha-das mais três, e que uma explodiu. Contudo, até hoje ninguém confirmou oficial-mente.

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2828 SAMIZDAT junho de 2009

O Dilema do Morto-VivoHenry Alfred Bugalho

Contos

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zes/o/— Sinto muito, senhor Jor-

ge, mas não podemos liberar o seu auxílio-doença. Consta em nossos bancos de dados que o senhor está morto — a funcionária do INSS fitava a tela do computador.

— Mas, minha filha, eu ‘tô vivo! Bem aqui na tua frente!

— Não há nada que eu possa fazer, seu Jorge.

Desorientado, Jorge deixou o posto do INSS e foi para casa.

— Maria, você não sabe da

última — resmungou Jorge.

— Fala, meu véio... — Ma-ria lavava roupa no tanque.

— Não vou recebeu o dinheiro da licença-médica. ‘Tão falando que estou mor-to.

— Como assim, Jorge?

— Não sei, só disseram que eu havia morrido.

— Amanhã, você volta lá e confirma esta história.

E foi o que Jorge fez. Na manhã seguinte, retornou ao INSS, porém, obteve a mesma

resposta.

— Estranho, não? — Maria coçava a cabeça.

No entanto, Jorge não res-pondeu, absorto em pensa-mentos. Passou o dia calado, não quis assistir à novela, foi dormir cedo. Mas o sono não veio, Jorge rolava na cama, atormentado com a idéia de que eles estivessem certos.

— E se eu estiver morto, Maria? — perguntou ele.

— Deixa disto, Jorge, você ‘tá vivo! — retrucou Maria,

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O Dilema do Morto-Vivodormitando.

— Você tem que ir a um cartório, Jorge. Lá eles podem dizer se você está morto ou vivo. Se estiver morto, eles vão ter um atestado de óbito, com seu nome e data de fale-cimento — assegurou Luizão do boteco.

Jorge seguiu o conselho. Foi ao cartório e perguntou ao notário se havia um docu-mento atestando sua morte.

— Que disparate, senhor! Se você está vivo, como espera que eu encontre algo provando seu falecimento?

— É o que dizem por aí! Só quero confirmar.

O tabelião se conformou, procurou e encontrou a pro-va que Jorge ansiava.

— Em que dia morri? — indagou Jorge, curioso.

— 15 de setembro de 1980.

— Quando eu tinha vinte anos — concluiu Jorge.

Em 15 de setembro de 1980, Jorge voltava de via-gem com seu pai, sua mãe e a irmã caçula. O pai, cami-nhoneiro, os havia levado a Aparecida do Norte, cumprir uma promessa. Na contra-mão, um motorista de ônibus bêbado perdeu a direção e atingiu o caminhão onde Jorge e sua família estavam.

Todos morreram.

Jorge cuidava os túmulos onde ele e seus parentes esta-vam sepultados. Inequivoca-damente, estava escrito “Jorge de Lima”, data de nascimento e morte. Não havia dúvidas.

Algo macabro havia ocor-rido para que Jorge estivesse andando por aí, houvesse se casado com Maria, tido filhos, arranjado emprego. Se ele estivesse morto, como tudo indicava, qual explica-ção haveria?

Coisa do diabo? Ou um milagre de Jesus?

— Maria, tomei uma de-cisão... — Jorge estava tris-te. — Não gosto nada desta situação. Um defunto não pode ficar perambulando pelas ruas. Vocês vão ter que me enterrar.

Contrataram os serviços duma funerária e organiza-ram o velório. Jorge se deitou no caixão e, quando chegava algum dos seus amigos para ver o finado, ele lhes dava uma piscadela.

O padre fez um sermão, mas os rapazes não queriam fechar o esquife.

— Vai pessoal, estou morto há quase trinta anos, só falta completar o serviço!

Levaram o caixão para o cemitério, Maria chorava, os coveiros cobriram de terra o ataúde. Um dia muito triste pra todos.

— Dona Maria, não pode-mos liberar a pensão do seu marido — disse a funcionária do INSS. Nossos bancos de dados indicam que seu mari-do está vivo.

— Não, moça, ele ‘tá mor-to. Morreu trinta anos atrás.

— Há um Jorge de Lima falecido aqui, mas é outra pessoa. Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer.

Um detetive...

Uma loira gostosa...

Um assassinato...

E o pau comendo entre as máfias italiana e chinesa.

O COvildos

inOCenteswww.covildosinocentes.blogspot.com

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3030 SAMIZDAT junho de 2009

Contos

José Espírito Santo

o alvo simbiótico

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O meu nome é Zork e sou batedor-explorador sénior, sou um guarda avançado de primeira categoria espe-cializado na observação de espécies com potencial. A minha função é de extrema utilidade pois a minha raça, com o pragmatismo que a caracteriza, há muito que desistiu de suportar sozinha a subsistência e confortos e caprichos.

Aprendemos que é bem mais simples e eficaz iden-tificar outros com o poten-cial simbiótico adequado e transformá-los gradualmente em nossos servos. De início, a vítima, tecnologicamente menos evoluída, não compre-ende o jogo latente que está a decorrer. Depois... bem, depois é já tarde demais. Como uma mosca espanta-da e aturdida e enredada na teia, quando percebe o que se passa, já nada pode fazer, não se liberta. Na verdade se chamarmos as coisas pelos nomes próprios, não existi-rá aqui qualquer simbiose ou relação simbiótica. Exis-te sim, parasitismo. E isso mesmo, digo-o sem qualquer pudor: somos parasitas!

Naquela tarde preparava-me para desempenhar as tarefas para as quais me tinham treinado. Ia ser fácil pois o ponto de observação no piso de cima do edifício ficava mesmo junto ao enor-me balaústre e era muito bom. A visão, soberba, per-feita, abrangia praticamente cento e oitenta graus. Além disso era um recanto aco-

lhedor e agradável de modo que certamente permitiria iniciar o relatório com todo o conforto.

Observei-os e vi como tratavam os “pequenos” com amor e carinho, nunca os deixando sós e desprotegi-dos em momento algum. Vi como falavam a toda a hora, constantemente, frequente-mente, com eles. E quanto falavam… oh Deuses, que entusiasmo, quase parecia um vício! E forneciam-lhes com solicitude, sem reclamar, toda a energia necessária. E na presença da mais peque-na sujidade, logo acorriam e limpavam com extremo cuidado.

Vi como são preocu-pados. A certa altura um “pequeno” caiu e o seu servo levou prontamente as mãos à cabeça proferindo expressões para as quais não possuímos ainda tradução:

– Ai meu Deus! E agora? – disse ele.

Depois, curvou-se e tomou rapidamente o “paciente” em mãos inspeccionando-o com cuidado, para verificar se estaria de boa saúde ou necessitaria de algum trata-mento. Noutra das observa-ções, constatei que além de preocupados também sabem ser extremamente leais e obedientes. O “pequeno” estava aos gritos com sua voz fina irritada. E o gigante só dizia: «Sim senhor, queri-da; desculpa querida; eu sei amor». Tudo isto é verídico, eu próprio o vi com o meu

sistema de sensores. E tudo isto me bastou.

Os “pequenos” eram sem dúvida os seres mais afor-tunados de todo o universo. Mas não continuariam assim por muito tempo. Tudo o que necessitávamos era colocar em prática o plano: substitui-los gradualmente por elementos da nossa es-pécie no domínio dos servos gigantes prestáveis e solícitos. Tendo chegado a este ponto, a minha atenção, objectivos e prioridades mudaram e obtive dados mais detalha-dos. E foi então que surgiu um contratempo inesperado e todas as dificuldades a ele inerentes. Afinal não iria ser assim tão fácil. Porque os “pequenos” eram compostos por várias subespécies, todas elas incompatíveis entre si.

Resignado, coligi os nomes delas e coloquei-os no meu relatório:

NOKIA

SIEMENS

MOTOROLA

SONY-ERICSSON

SAMSUNG

...

Agora, a minha próxima tarefa vai ser analisar em detalhe cada uma dessas ver-tentes raciais a fim de explo-rarmos com eficácia todas as suas vulnerabilidades.

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3232 SAMIZDAT junho de 2009

Contos

Mariana Valle

Propaganda do produto revolucionário das

organizações tabajaras*para Daniel Dantas e afins:

Cansado de ter sua pri-são preventiva decretada injustamente? Você não aguenta mais aparecer na TV com aquelas algemas horrorosas e ordinárias? Seus problemas acaba-ram! Chegaram as Alge-mas Gilmar Mendicator! Cravejada de strass, a pulseira Brilhantes é tão luxuosa que nem vai pa-recer que você está preso! Já a versão em acrílico transparente fará com que suas mãos pareçam

estar soltinhas da silva, até nas imagens exibidas em telas de HD TV.

Ligando agora, você ainda ganha um incrível par de algemas de pelú-cia laranja, para vestir as delicadas mãozinhas de sua irmã, esposa ou outro laranja qualquer com um ar super fashion!

Faça seu pedido agora! Ligue para 1711 -7171, para comprar suas Alge-mas Gilmar Mendicator. E ganhe de brinde essas

fantásticas algemas de pelúcia laranja! Ou peça pelo site: http://www.stf.tabajaras.com/

*A invenção do produ-to/propaganda é minha. Só me apropriei do nome “Organizações Tabajaras” porque eu posso, afinal ex-moradora da Ladeira dos Tabajaras é pra sempre das organizações!

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ficinawww.oficinaeditora.org

O lugar onde

a boa Literatura é fabricada

A Oficina Editora é uma utopia, um não-lugar. Apenas no século XXI uma vintena de autores, que jamais se encontraram fisicamente, poderia conceber um projeto semelhante.

O livro, sempre tido em conta como uma das principais fontes de cultura, tornou-se apenas um bem de consumo, tornou-se um elemento de exclusão cultural.

A proposta da Oficina Editora é resgatar o valor natural e primeiro da Literatura: de bem cultural. Disponibilizando gratuitamente e-books e com o custo mínimo para livros impressos, nossos autores apresentam a demonstração máxima de respeito à Literatura e aos leitores.

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3434 SAMIZDAT junho de 2009

Folhas bege-sêmen caíam dos arvoredos da praça, criando enormes volumes e evidenciando a greve dos garis logo no início da nova estação. A névoa que surgia por de trás da casa de arquite-tura obsoleta, cuja infil-tração das paredes era escondida por artesanatos postos à venda, possuía um doce mistério: po-deria ser fruto do clima outonal, mas também existia a possibilidade se ser a fumaça química de combate aos mosquitos do carro da prefeitura. A brisa gélida que acom-panhava esta neblina brincava sutilmente com os cabelos pintados da bonita e ociosa moça da janela, ora embaraçando-os em nós, ora incomo-dando seus olhos cor de

manjericão.

Com os cotovelos na sacada, tentando, vez por outra, acertar com cuspes um besouro que andava por entre o monte de fo-lhas na calçada, a garota era cúmplice da chegada do outono e seu friorento ar romântico. Entretan-to, não o contemplava só: um mendigo, deitado num dos bancos da pra-ça, admirava a tal chega-da de forma semelhante. Além dele, um rapaz, em outro banco, tam-bém curtia ambos: tanto o surgimento da frente fria quanto a bela loira na janela. Esta, por sinal, parecendo ainda mais deslumbrante ao emer-gir daquela fumaceira

branca. O olhar de Lisa, que misturava preguiça e enfado, fitou o estra-nho. Sem reconhecê-lo como alguém da cidade, procurou analisá-lo me-lhor: achou-o horroroso. Porém, ficou intrigada com o fato de ele, além de ser feio e gordo, estar mais mal vestido que o mendigo. Ao perceber que o rapaz piscava os olhos com certa insistên-cia em sua direção, Lisa acreditou que este ousava paquerá-la. O que ela não sabia era que aquilo não passava de um tique nervoso. A jovem, então, fez cara de zanga, soltou os cabelos que estavam enroscados nas alças da janela e fechou-a.

Recostou-se no armá-rio e ficou admirando-se

Contos

Léo Borges

mistério outonal

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35www.revistasamizdat.com

no reflexo do espelho. Lisa, loira da metade dos fios em diante e corpo – vá lá – muito cobiçado na cidade, julgava-se ex-tremamente atraente para os caipiras da região. Vivia praticamente só por conta das constantes idas dos pais à fazenda, por causa de sua avó ter resolvido ir morar num asilo depois que desco-briu que seu avô compra-ra um bordel e, motivo principal, por ser uma garota realmente muito chata.

Olhava por entre o decote de sua blusa de botões parte de seus di-minutos seios. Acreditava ferrenhamente no poder de sedução deles, apesar de serem absurdamente pequenos, formosos como duas uvas maduras. Colo-cando-se de lado, aprovei-tou para analisar a lateral de sua coxa esquerda. Percebeu algumas celuli-tes e, então, virou-se para analisar a outra, tentando salvar o momento de ad-miração. Também havia marcas que denunciavam certo acúmulo de gordu-ra. Contrariada, ficou em quatro apoios, envergan-do o corpo e esticando as pernas. Viu que assim as famigeradas celulites praticamente sumiam, mas, para sua decepção, eram as estrias que agora se tornavam visíveis.

Lisa queria ser modelo e acreditava que só não era pelo alto índice de desemprego no país, por causa do dólar, do con-flito no Iraque, da guerra civil no Sudão e da pesca

predatória na costa do Chile. Enfim, pelo que via na TV. Embora não fosse uma mulher ante-nada, sabia que o mundo estava em crise e era por isso, achava ela, que só lhe ofereciam empregos de telemarketing. No campo afetivo, sua mente fútil dizia que era mu-lher para poucos homens. No máximo três porque senão virava orgia. Tal-vez um ator ou, deixando sua imaginação circense aflorar, um adestrador de leões. Como se conside-rava uma tigresa, quem sabe um desses não lhe daria jeito?

Foi quando alguém bateu à porta, quebran-do suas idéias idiotas. Mancando devido a uma cãibra na panturrilha ocasionada pelas acro-bacias narcisistas, Lisa foi atender achando que seria dona Marlene, a se-nhora da casa geminada à sua que vendia cigarros, bananas, artesanatos e, vez por outra, chamava-a para pedir dinheiro em-prestado ou só para falar mal da vizinhança. Para seu espanto, entretanto, era o mesmo rapaz que havia visto na praça.

– Pois não? – atendeu surpresa. Em seus olhos via-se perplexidade e len-tes azuis.

– Estou olhando esses objetos de barro e quero levar um para guardar como lembrança desta cidade. Aquele ali – falou o forasteiro, apontando para a maior peça do lo-cal, um belo busto femi-nino com o rosto repleto

de mini-bolinhas –, ador-nará bem meu escritório. Lembrarei com isso que este lugar, apesar de não constar no Google, existe.

O inebriante e sedu-tor estilo matuto de Lisa passara impiedosamente a guarda do rapaz, evo-luindo para uma chave-de-braço.

– Ah, desculpe, mas você tá todo errado, tá ligado?... Não trabalho com esses troços. Eu sou só a vizinha e proprie-tária da casa da dona Marlene, que é a artesã. Por sinal as vendas de-vem estar fracas porque o aluguel dela está atra-sado. Como seu ateliê é também a sua casa, ela atende até de noite, assim como eu... quero dizer... enfim, ela deu uma saída mas já volta. E, com rela-ção àquela obra, eu servi como modelo – destacou orgulhosa. – As bolinhas no rosto são as espinhas. Dona Marlene é insupor-tavelmente detalhista...

– Isso é o que me im-pulsiona a empreender todo esse empenho em adquiri-la. Da praça já havia consolidado visual-mente a sua eloqüência. E se essa maravilha eu já armazenei na mente, por que não a sua estátua segurando a porta lá do meu escritório?

Lisa ficou desconcer-tada com tantas palavras difíceis e achou que Julia-no fosse um grande nerd. Logo percebeu que de fato era mesmo. Mas, viu também que o rapaz pro-curava ser afável e essa

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3636 SAMIZDAT junho de 2009

postura fez com que a garota mudasse seus pen-samentos. Então, de repul-sa passou a nutrir certo interesse pelo camaradi-nha. Esquadrinhando o rosto do jovem, Lisa viu que ele não era tão feio e seu jeito intelectual-canalha ajudava a melho-rar o lastimável conjunto. Juliano usava óculos de grau elevado, tinha a barba por fazer, não era alto, possuía mau hálito, estava fora de forma e ainda tinha o cacoete que o fazia piscar os olhos forçosamente a cada meio minuto. Apesar de tudo isso e também da roupa amassada que lhe conferia uma aparência de espantalho, o cara até que tinha seu charme. A moça gostou muito do jeito dele, mas procurou não demonstrar e tentou ser natural.

– Quer um suco de laranja enquanto a espe-ra? Está muito gostoso. O suco. Você também. Brin-cadeira! Entre e fique à vontade. Qual seu nome, gato? O meu é Melissa, mas pode me chamar de Lisa.

Juliano ficou com água na boca ao ver Lisa an-dando para a cozinha. Es-tava muito excitado. Não exatamente pelo fato de o destino estar lhe conce-dendo uma deliciosa nin-feta de bandeja, mas sim por saber que mataria sua sede com um gostoso suco da fruta. Caminhou com o olhar pelas pernas da jovem – contornando as varizes, obviamente – até onde estas formavam

os pés. Adorava pés. Mas também adorava bunda. Então procurou fazer o caminho inverso, subindo com o olhar. Subiu, su-biu, subiu, mas não teve tempo de contemplar o monte glúteo, pois Lisa já estava de frente, voltando com o copo de suco.

Por um rasgo no short, a calcinha branca da gata pornograficamente esca-pava. Um som exagera-damente caipira de uma dupla sertaneja desconhe-cida invadia a sala, vindo de um aparelho na estan-te. Um pouco tonto pela hipnose que a bela ima-gem do corpo de Lisa lhe causara, e também pela irritante música, Juliano apoiou-se em um qua-dro na parede onde Lisa aparecia ao lado de um homem montado sobre um jegue. Com o toque o quadro caiu. Constrangi-do, o rapaz rapidamente o recolocou no lugar.

– É seu pai? – pergun-tou para tentar disfarçar, apontando para a ima-gem no quadro rachado.

– Meu namorado – mentiu a jovem, pois se tratava apenas do bem-dotado caseiro da fazen-da dos pais.

Juliano coçou o quei-xo, intrigado em querer saber, afinal, quem era o namorado.

– O que está por cima – esclareceu Lisa, vendo a dúvida nos olhos do visitante.

– Que sorte a dele, ter uma mulher assim: até

certo ponto inteligente, relativamente atraente e, com doses cavalares de boa vontade, sincera.

Melissa sentia-se cada vez mais envolvida com o estilo debochado da-quele sujeito.

– Sinceridade é algo incerto, pois se eu lhe disser que visto um sutiã preto realçando meus de-liciosos peitos, isso pode ser verdade para você, caso não saiba, de fato, qual a sua cor – instigou a moça, permitindo que um lascivo interesse aflo-rasse como não acontecia há pelo menos três horas.

– Primeiro, você está sem sutiã; segundo, se você usasse sutiã este se-ria provavelmente branco para combinar com a cor da sua calcinha, e, tercei-ro, seus peitos são peque-nos demais para serem considerados “deliciosos” – asseverou o jovem, mostrando segurança nas palavras.

Com inequívoca fir-meza, Juliano desmontou a arrogância de Melissa. Ao final da última pala-vra, beijaram-se. Uma das mãos do forasteiro logo promoveu uma apropria-ção indébita da cintura de Lisa, passando por cima da blusa de seda. Tentou escapulir para dentro, mas sua falta de intimidade com os bo-tões impediu um primei-ro avanço. Melissa abriu mão de seu orgulho bobo e não só permitiu como implorou que Juliano a explorasse por inteiro.

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Um pouco assustado com o frenesi da gata, ele a derrubou com carinho sobre o sofá. Na queda, Lisa bateu com a cabeça na quina do móvel, mas não pôde gemer porque Juliano ainda a beijava. As coxas da garota, ape-sar de não definidas e porcamente depiladas, formavam delicioso con-vite. Todavia, as mãos do rapaz, mesmo munidas do ingresso, quase foram barradas diante da brutal inexperiência no assunto.

Lisa, por sua vez, ba-bava e mordiscava com ardor o pescoço do amante, utilizando toda a saliva que sobrara após o ataque ao besouro. Com descabida violência, a garota erguia a camisa de Juliano, passando a mor-der com intensa luxúria seu peito e também a barriga, faminta como um cágado procurando por alface numa horta. Gemidos de muita dor, e às vezes de prazer, ecoa-vam pela sala.

Escorregando de ma-neira profissional pelo corpo do rapaz, Lisa agachou-se e pôs-se a abrir sua calça. Enquanto superava os obstáculos têxteis, a loira discursou sobre como o destino pregava peças: minutos atrás, quando observara Juliano na praça, achou-o tenebrosamente feio e sem qualidades. A partir daí, um engano, uma con-versa, um suco de laranja, um conhecimento maior e já foi o suficiente para ela se colocar ali, ajoelha-da diante dele numa sub-

missa posição para uma boa sessão de sexo oral.

Ao término do mo-nólogo, uma profunda sensação de prazer inva-diu o corpo de Juliano. Nem tanto pela chupada quente e gostosa da garo-ta, mas mais pelo fato de esta atividade fazer inter-romper aquele falatório ridículo e sem propósito. Experiente, Lisa conse-guia fazer com que seu aparelho ortodôntico não machucasse o rapaz. Ela seguia na eficiente acro-bacia com a língua em atos que mostravam, com absoluta certeza, que por aquela boca muitos com-pradores de artesanato já haviam passado.

Ciente de que sua festinha ficaria restrita a um boquete, caso Melissa não cessasse a exuberante performance, Juliano pu-xou-a pelos cabelos loiros com inegável virilidade. Não conseguiu trazê-la na primeira tentativa, pois a excessiva quanti-dade de tinta amarela nos fios fez sua mão escor-regar. Essa mesma mão resolveu, então, terminar de destruir o short já rasgado da garota, porque até então, pela delicadeza, o rapaz não conseguira nada e ambos ainda con-tinuavam vestidos.

Possuindo-a carinhosa-mente, Juliano finalmente provou o sabor de Lisa e viu que esse era ainda melhor que o do suco. O corpo da jovem, quente como um forno siderúr-gico, fazia Juliano entrar em outra estação – a do verão, muito provavel-

mente. Lisa seguia na mesma cadência, com inconfundíveis gritos, pa-lavras sem nexo e frases com erros graves de con-cordância verbal. O rapaz curtia cada segundo, pois tinha noção de que comer outra igual àque-la demoraria um bom tempo, caso não apelasse novamente para o Miami Night Girls. O orgasmo para Lisa chegava sob a forma de choques pelo corpo. Menos intensos, é claro, do que aqueles que ela sentia quando mexia no chuveiro elétrico com as mãos molhadas.

Olhando para o reló-gio, Juliano percebeu que já estava muito atrasado para a saída do ônibus pirata com os outros estudantes do seminário “Como aumentar a po-pulação das áreas ru-rais”. Viu, porém, que ter desvendado o mistério trazido pelo outono vale-ria qualquer esporro que certamente ele ainda ia receber do supervisor de turmas.

O pensamento de am-bos viajava leve e gostoso após o coito. Lisa, fitando os olhos de Juliano, re-fletia: “Que romântico! Mesmo depois do amor ele ainda continua fler-tando comigo!... Ah, não, porra... é só o cacoete...”. Enquanto que Juliano também se confrontava com um dilema filosófico altamente revelador: “É... acho que no cuzinho não vai dar tempo...”.

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3838 SAMIZDAT junho de 20093838

Contos

Barbara Duffles

Como substituir amores

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Logo no primeiro dia em que chegou, Lolinha conquistou o coração de Aquiles. Loura, seios fartos, boca convidativa, cintura fina. E não tinha somente estes atributos de mulher fútil. Aquiles via nela duas das qualidades que mais admirava nas fêmeas: não tagarelava e sabia ouvir o companheiro. Como todo relacionamento, o início foi de muita paixão. Noi-tes e noites rolando na

cama com Lolinha, Aquiles não queria saber de mais nada. Chegou a fingir uma gripe para faltar ao traba-lho e garantir alguns dias de luxúria com sua loura. Seu programa preferido era tomar banho de ba-nheira com ela: adorava como o corpo de Lolinha ficava escorregadio na água, um convite para mo-mentos inigualáveis a dois.

Também como todo

relacionamento que dá certo, da paixão voluptu-osa veio o amor incondi-cional. Aquiles e Lolinha continuavam enroscados dia e noite, mas agora os encontros tinham pitadas de romantismo rasgado. Aquiles levava flores, pre-parava jantares a dois em seu pequeno apartamento. Cada vez mais apaixonado, ele se declarava de forma emocionada, fitando os olhos sempre abertos dela,

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desejando ainda mais a boca convidativa da moça.

Como alguns relacio-namentos que dão certo e depois se perdem, o amor foi corrompido por uma dose exagerada de ciúme. Tão grande era o sentimento de Aquiles por Lolinha, que ele se trans-formou num obsessivo de marca maior. Com medo de perder sua mulher para os amigos, Aquiles nunca a apresentou a ninguém. Os dois passavam a maior parte do tempo juntos e sozinhos, sem interferên-cias externas. Os amigos cochichavam a respeito dele às escondidas. Nin-guém acreditava que Aquiles tinha mesmo a tal mulher incrível da qual ele tanto se gabava. Afinal, nenhum deles havia visto Lolinha. Chegaram a fazer um bolão no escritório, onde as más línguas apos-tavam que “ela”, na verda-de, era “ele”.

Aquiles não se impor-tava com o que diziam, pensava só em Lolinha, em ficar com ela, em aprovei-tar seu silêncio em paz. Sim, silêncio, pois, como já foi dito, ela não tagarela-va e estava sempre atenta ao que dizia o namorado. Mas a verdade é que Loli-nha não falava. Nada, na-dinha. Um júbilo para os ouvidos de Aquiles, falador profissional que sempre

se irritou com mulheres verborrágicas.

Só que, como a maior parte dos relacionamen-tos, a rotina chegou, abriu a porta e sentou no sofá. Após tanto tempo isola-dos do mundo, Aquiles e Lolinha não tinham mais o que conversar. Ou me-lhor, ele é que não tinha o que dizer, já que ela não emitia sons mesmo. Aque-le silêncio todo de repente virou um suplício. Aquiles começou a desejar que ela falasse. A boca outrora convidativa de Lolinha se transformou num bura-co negro desinteressan-te. Num dia de angústia incontrolável, empurrou a mulher contra a quina da parede. E então foi o fim.

Num estouro que se ou-viu até nos andares de bai-xo, Lolinha desapareceu. Esparramados no chão, pe-daços de plástico que um dia formaram o corpo da boneca inflável de Aquiles. Desesperado, ele agarrou-se aos restos mortais de sua amada, jurando nunca mais comprar outra.

Uma semana depois, o correio entregou um pacote no apartamento de Aquiles. Era Silvinha, uma morena de arrasar quar-teirão.

Nova Yorkpara Mãos-de-VAca

GUIAHenry Alfred Bugalho

O Guia do Viajante Inteligente

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4040 SAMIZDAT junho de 2009

Contos

Maristela Scheuer Deves

o admiradorParte 3: Suspeitos

404040 SAMIZDAT junho de 2009

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Sim, decidiu ela. Mes-mo com medo, iria ao enterro para ver quem estava lá e como o autor dessa brincadeira mór-bida iria se sair sem o seu corpo para sepultar. Acabaria, de uma vez por todas, com o plano dele. “Aliás, já está na hora de descobrir quem ele é”, murmurou para si mes-ma, relembrando, com uma seqüência de cala-frios, o desenrolar daque-la história.

Desistira de tentar avisar os pais e os ami-gos que estava bem. O melhor a fazer, até à hora de ir ao cemitério, era sumir para que ele não a encontrasse. Só assim estaria segura de que não haveria, mesmo, um cadáver para ser coloca-do no caixão. Tentando controlar-se, correu ao quarto e pegou uma mo-chila. Olhou para o ce-lular; melhor não levá-lo, decidiu. Depois de tantos dias trancada em casa, sentiu-se estranha ao pegar o elevador. Notou que o porteiro a olhou espantado, sem responder

ao seu cumprimento. “Vai ver achou mesmo que eu estava morta”, pensou, desanimada.

Fez sinal a um táxi que passava e deu o endereço de um hotel do outro lado da cidade. Lá, trancou-se no quarto, sentindo-se finalmente segura. Abriu a agenda na intenção de listar possíveis suspeitos, mas, a princípio, não conseguia imaginar ninguém que lhe quisesse fazer mal.

A não ser... Não, ele não seria capaz disso! Ou, pelo menos, não teria criatividade para tanto. A idéia, porém, insistia em martelar-lhe a mente: o ex-namorado, com quem terminara após descobrir uma traição e que não aceitara a separação na época. Lembrou-se como ele costumava ligar-lhe sempre, insistentemente, até que decidira trocar o número do telefone...

Mas, não, a solução lhe parecia fácil demais. Ti-nha de ser outra pessoa. Mas quem? Começou a repassar na mente todos

os colegas e ex-colegas de trabalho, os vizinhos do prédio, mesmo os amigos da época de faculda-de. Ninguém parecia se encaixar no perfil. Ainda olhava para a página em branco da agenda quando sobressaltou-se com uma batida na porta. “Enco-menda para a senhorita”, anunciou a voz que reco-nheceu como a do rapaz que carregara a sua mo-chila até ao quarto.

O já costumeiro arre-pio voltou a percorrer-lhe o corpo – afinal, não pedira nada, e ninguém sabia que estava ali. A sensação mostrou-se correta quando abriu a porta e recebeu a rosa vermelha. “Só faltam seis horas. Não falte ao nosso encontro”, dizia o cartão.

(continua no mês que vem...)

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4242 SAMIZDAT junho de 2009

Contos

Giselle Sato

a Peruca 4242 SAMIZDAT junho de 2009

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a Peruca

Roberto Carlos dos San-

tos Pinto. Por razões óbvias

mantinha apenas o primeiro

nome no crachá onde exi-

bia com orgulho a função

de ‘’Gerente’’. Trabalhava em

uma loja de departamentos,

no maior Shopping da Zona

Norte carioca. Vinte e dois

anos de serviço. Nenhuma

falta ou atraso. Promoções,

prêmios e metas vencidas

no “Curriculum” invejável.

Baixinho e atarracado adora-

va ser chamado de Robertão.

Bigode bem aparado, unifor-

me ligeiramente apertado e a

hipótese não confirmada do

uso contínuo de peruca.

Havia bolsas de apostas e

um “Bolão” para quem conse-

guisse provar a existência da

falsa cabeleira. Infelizmente

o desafio parecia impossí-

vel. As demonstradoras de

produtos capilares viviam

oferecendo tratamentos gra-

tuitos, mas nunca puderam

tocar em um fio de cabelo

do gerente. Apesar de soltei-

ro nunca aceitava os convites

dos colegas para um chopi-

nho no final do expediente.

A rotina casa/trabalho/casa

era mantida sem exceções.

Era um solitário. Filho único

cuidava da mãe doente e um

tanto senil.

Até à chegada de Juliana

tudo parecia cinza desbo-

tado. A morena exibiu o

maravilhoso gingado no

uniforme rosa e o mundo de

Robertão vibrou em cores.

Jú trabalhava para a “Lingerie

Du Corpo”, arrumava a seção,

ajudava as freguesas e exibia

os dentes branquíssimos no

sorriso simpático. O corpo

perfeito para qualquer roupa

íntima. A mulata de olhos

cor de mel e boca carnuda

enfeitiçou o gerente:

-Bom dia, bem-vinda à

loja; sou Roberto, muito

prazer.

Estendeu a mão e apertou

os dedinhos da moça, delicia-

do com o perfume, a pele, a

voz e o jeitinho suave de Jú:

- Vou trabalhar aqui este

mês, muito prazer senhor

Roberto.

- Mas que pena...

-Como? Fiz alguma coisa

errada para o senhor não

gostar de mim?

-Imagine, pena que ficará

só um mês. Tão simpática

e agradável. Se precisar de

alguma coisa sou o gerente. E

pode me chamar de Roberto.

Nada de senhor!

- Ah, que bobagem a mi-

nha. Muito obrigada. Já vou

indo, preciso organizar os

lançamentos.

Durante todo o dia, Ro-

berto deu um jeito de passar

perto da secão feminina só

para olhar Juliana. Não con-

seguiu disfarçar o interesse

e a loja inteira percebeu e

passou a comentar. Principal-

mente as funcionárias anti-

gas, furiosas com a novata:

- Ridículo, deve ter idade

para ser filha dele.

- Não precisa exagerar, só

acho que ele não se enxerga.

- Está com inveja Maria?

Ciúme?

- Eu? Ciúme do Robertão?

Está doida Lú? Olha a cara

de bobo apaixonado.

- Ele vivia de olho em

você e agora só pensa em Jú.

Homem é tudo igual! Safado!

Finalmente chegou sexta-

feira... Após o fechamento da

loja, o tradicional chopinho.

Pela primeira vez o gerente

apareceu no barzinho. Es-

banjou simpatia conversando

animadamente com todos,

pagando rodadas e sendo

sempre muito solícito com

Juliana. Ora pegava uma be-

bida, oferecia um petisco, um

guardanapo, sempre atento e

dedicado. Jú parecia delicia-

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4444 SAMIZDAT junho de 2009

da com as atenções. Os cole-

gas foram saindo aos poucos

e só restaram os dois. Rober-

tão e Juliana. E a conversa foi

ficando mais íntima:

- Moro aqui perto e você?

- Com meus pais em Bel.

- Bel?

-Belford Roxo. Lá na bai-

xada...

-Nossa! No mínimo umas

três horas de ônibus, não tem

medo de assalto? A esta hora

sozinha é muito perigoso.

-Não percebi o tempo

passar, são quase duas horas

da manhã e não sei o que

vou fazer...

- Pode ficar lá em casa,

moro sozinho. Quer dizer,

minha mãe é bem velhinha

e não incomoda nada. Tem

quarto sobrando, seu namo-

rado não precisa ficar com

ciúmes.

- Que namorado? Estou

solteira, e vou aceitar seu

convite, estou super cansada,

Robertão...

A residência dele ficava na

rua em frente ao shopping.

Dez minutos e estavam na

casinha humilde mas bem

conservada. Fez questão de

mostrar todos os cômodos:

muita coisa antiga, móveis

pesados e um cheiro de gato

insuportável. Juliana olhou

com repulsa os seis gatos

empoleirados pelas poltro-

nas, mesas e até em cima da

geladeira. A morena disfar-

çou a ‘’cara de nojo’’, Roberto

era só gentileza :

- Quer tomar um banho,

minha querida? Pego uma

toalha limpa para você.

- Aceito. Com este calor

fico tão suada... Você adivi-

nhou meus pensamentos.

Quando Roberto voltou

com a toalha, Ju estava no

chuveiro com a porta aberta

e a cortina de plástico trans-

parente revelando tudo:

-Vem, vem que a água está

uma delícia. Robertão não

pensou duas vezes, arrancou

as roupas e entrou no box do

banheiro apertado. Agarrou

o corpo desejado, tocou cada

pedacinho com carinho. Ton-

to de tesão, esqueceu comple-

tamente seu maior segredo.

Jú acariciou o rosto de

Robertão, o pescoço e os ca-

belos... saíram em suas mãos

provocando um grito horri-

pilante. Juliana segurando a

peruca e gritando, despertou

a mãe de Roberto. A idosa

entrou no banheiro estarre-

cida com a cena: o filho nu e

sem conseguir sair do lugar.

Com uma mulher igualmen-

te pelada, segurando um chu-

maço de pêlos molhados. Al-

guns segundos depois, Juliana

corria pela casa procurando

as roupas. Roberto levou a

mãe de volta para o quarto

e tentou convencê-la de que

tudo havia sido um pesade-

lo. A velha senhora estava

em pânico e precisou tomar

calmantes. Escutou quando

Jú bateu o portão da entrada

com força. Ainda era madru-

gada, ficou preocupado com

a moça na rua deserta mas

estava tão envergonhado que

não conseguiu tomar qual-

quer atitude.

No dia seguinte a Loja in-

teira sussurrava o fato, Julia-

na foi transferida para outro

Shopping na mesma tarde.

Saiu feliz, carregando na bol-

sa os 500 reais do prêmio do

‘’Bolão’’ e a peruca enrolada

em um saco plástico. Rober-

tão assumiu a calvície pela

primeira vez. Caminhou pe-

las seções exibindo a careca

brilhante. Ignorou os risinhos

e olhares dos colegas. Ao

final do dia estava mais ani-

mado com os elogios ao seu

novo visual. Havia descoberto

o charme dos carecas.

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Ele tinha diante de si

a mais difícil das missões:

cumprir a vontade de Deus

Henry Alfred BugAlHo

O Rei dos Judeus

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4646 SAMIZDAT junho de 2009

autor Convidado

Rodolfo Bispo

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decoração

No outro dia, fui a uma loja de decoração e fiquei muito espantado, porque havia lá mobília de Estilo Colonial. Para mim, colonial significa colonialismo, exploração, escravatura, tortura, homicídio, valas comuns.

– Eh, pá, isso é o ideal para a salinha da televi-são! Eu quero decorar a minha casa assim!

Se o Estilo Colonial é uma boa ideia para deco-ração, eu quero que a Inquisição Espanhola seja um «fashion statement»:

– Ofélia, essa mini-saia é tão… não sei… tão… Inquisição Francesa!

– Tá parva?! Esta saia é, claramente, Inquisição Espanhola! Não vê que dá com os sapatos… estes sapatos que se usam agora… Estilo Genocídio no Ruanda? Ai, adoro Genocídio no Ruanda! Quem me dera poder decorar com este estilo a minha sala! Ai, a sério, estou tão farta daquele Estilo Colonial que lá tenho! Não

está tão associado a morte, escravatura e des-truição quanto eu gostaria.

Eu acho que esta coisa do Estilo Colonial come-çou num navio negreiro. No escuro do porão, um escravo segredava a outro:

– Espero que o mundo nunca esqueça esta injustiça terrível, que esta página horrenda da História sirva de inspiração para… talvez uma moda qualquer, talvez decoração!

Deve ter sido isso. Mas por quê parar no Estilo Colonial? Por que não um passo de dança Esti-lo Acidente de Viação na A5?

– Eh, pá, espectacular! Muito «fashion», «man»!

Ou, por exemplo, o Estilo de Penteado Cancro nos Intestinos! Hã? Boa?

(Texto de sketch de áudio)

Yellow Submarine aluga-se – t4+1 boas áreas

Cheguei ao computador e todos os botões estavam errados, trocados, equivocadamente posicionados. Ao lado do P esta-va um botão azul de uma camisa que usei uma vez para uma cerimónia de circuncisão a laser. No lugar da barra de espaços estava um espaço para alugar. E em vez do ESC tinha a ESC 2+3 (Escola Secundária de Cashkaische (Cascais dito com aparelho nos dentes)).

Quando vi que no ecrã havia dois limpa-vidros, percebi.

Saí do carro e jurei nunca mais conduzir bêbado.

migalhas das torradas

O carcaças da minha vizinha! O caraças da minha vizinha manda-me com as migalhas das carcaças para a pontinha da janela; a beirada da minha vidraça fica forrada com a porrada de migalhas e restos das toalhas das carcaças do caraças da loiraça da minha vizinha.

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Rodolfo Bispo (1981) é pintor por paixão e formação, no entanto, tem encontrado na escrita a forma de ex-pressão adequada a mensagens menos sintéticas. Alimenta um blog pessoal desde 2003: http://www.peludo-eazul.blogspot.com/ Desde 2007, tem-se deixado seduzir pelo stand up, e a escrita de humor em geral, tendo sido passados vários sketches seus no programa de rádio Cómicos de Garagem: http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/comicos-de-garagem/ Integra, também, o grupo humorístico que produz o blog: http://aultimasopa.blogs.sapo.pt/ Ultimamente, entusiasma-se com a brevidade, de possibilidades acutilantes, do Twitter: http://twitter.com/RodBispo

Vai um em anexo

Anexei o senhor meu punho ao ficheiro facial fronteiro na zona nariguda da fronha feia de um cavalheiro que ministra um cargo político.

Fiquei com os nós imundos de Honestidade, Confiança, Rigor e outras mentiras com que a besta do senhor se maquilha antes de vir de se vender na Assembleia.

Ele que vá perguntar as horas a outro eleitor. A lata desta gente!

ontem fui a uma exposição

Nas exposições de arte contemporânea, gosto muito de ver toda a gente descon-textualizada. Pessoas normais a ver coisas muito estranhas. Espantadas:

– Mas o que é isto? Isto é arte? Esta não percebo. Mas é só isto?

Desta vez, aquilo de que gostei mais foi pintar vinte símbolos fálicos e depois convidar os meus pais e os meus sogros para me virem dar os parabéns.

(Quatro posts do blog pessoal)

Comprei uma boneca insuflável; na primeira volta tive um furo!

Se o caso "Jesus na cruz" fosse agora, não era publicitado! Não dava em Bíblia! Era só uma notícia da Faixa de Gaza no jornal da TVi!

"Deus escreve direito por linhas tortas" não faz sentido! É como um elogio ofensivo:

– A sua filha é tão bonita que podia ser prostituta!

Vi na montra duma loja: "Últimas liquida-ções!" – Serão saldos ou execuções sumárias?

Aquela velhota ainda tem as maminhas firmes, ou aquilo é rigor mortis?

Mais depressa se apanha o mentiroso que o coxo. Sou pescador e para mim tanto me faz, apanhar um ou outro! Tudo o que vem à rede é Google!

Há males que vêm por bem... Sim, mas prova-velmente passam por bem, contornam e seguem para mal!

Olhai os lírios do campo...espera, são silvas!

Levei o portátil ao barbeiro...

– Alguém sabe limpar teclados? Isto está cheio de cabelos!

Do mal, o menos, podia ter ido ao Peepshow!

(Posts no Twitter)

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4848 SAMIZDAT junho de 2009

tradução

François rabelaise o mundo às avessas

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Henry Alfred Bugalho

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François rabelaise o mundo às avessas

Poucos autores foram tão geniais, renovadores e mal compreendidos quanto François Rabelais. Nasci-do numa quinta próxima a Chinon, em 1494, filho dum advogado local, Rabe-lais ingressou cedo na vida monástica. No entanto, por causa de suas ideias e obras, ele bateu de frente com a Igreja, com os teólogos e os eruditos da Sorbonne.

Atuou como médico e, mais do que isto, redigiu e publicou livros na área de Medicina, mas foi por causa do conjunto dos livros de “Gargântua e Pantagruel” que Rabelais se imortalizou e revolucionou a Literatura.

Segundo o mais impor-tante trabalho sobre a obra de Rabelais, escrito por Mikhail Bakhtin, a grande novidade de “Gargântua e Pantagruel” não residia nos temas abordados — como o grotesco, a escatologia, a carnavalização do mundo ou o mundo às avessas —, mas sim na renovação feita por ele da língua france-sa, ao introduzir termos e expressões derivados direta-mente do grego e do latim, e ao utilizar uma ortografia própria, que serviriam, em parte, como inspiração para mudanças posteriores do idioma. Bakhtin defende que o sucesso imediato da obra-prima de Rabelais se deveu ao caráter popular dele, já que Rabelais conse-

guiu trazer para a Literatu-ra a linguagem e a vida da praça pública e do mercado, rompendo, em parte, com a natureza elitista da escritu-ra. O sucesso de “Gargântua e Pantagruel” seria o refle-xo do povo retratado a si mesmo, ao mesmo tempo em que isto seria a fonte da controvérsia entre Rabelais e os eruditos de sua época.

Os dois primeiros livros da obra, Pantagruel (publi-cado em 1532) e Gargântua (publicado em 1534), surgi-ram sob o pseudônimo de Alcofibras Nasier, um ana-grama de François Rabelais, e foram imediatamente con-denados pela Sorbonne e pela Igreja Católica. Nestes dois volumes, são apresen-tados o nascimento e a cria-ção dos gigantes Gargântua, o pai, e Pantagruel, o filho, duma maneira bastante cômica, escatológica e, às vezes, herética. O persona-gem Gargântua já existia anteriormente, numa obra anônima e bastante popu-lar, e Rabelais bebeu desta fonte para elaborar sua série, sofisticando bastante a narrativa original e intro-duzindo novos elementos.

No terceiro livro da série, inicia-se a narração do dilema de Panurge, um dos companheiros de bebedeira de Pantagruel, sobre se ele deveria se casar ou não. Para obter uma resposta, eles decidem empreender

uma viagem em busca da “Botelha Sagrada”. Esta viagem prossegue pelos quarto e quinto livros, nos quais Pantagruel, Panurge e Frei Jean, um ex-monge, se deparam com uma série de aventuras por mares desco-nhecidos.

Nestes cinco livros, Ra-belais desenvolve toda uma concepção do mundo, unin-do aspectos sacros, eruditos, elevados ao baixo, munda-no, vulgar, grotesco.

François Rabelais morreu em Paris em 1553. Um dos mais controversos autores da História se despediu da vida terrena com a célebre e disputada frase: “Parto para ver o Grande Talvez... Fechem as cortinas, a farsa acabou”.

Fontes:

- BAKHTIN, Mikhail, Cul-tura Popular na Idade Média e Renascimento. São Paulo: HUCITEC, 1987.

- The concise dictionary of foreign quotations

http://books.google.com/books?id=3KLz2QEdQaoC

- Wikipédia

http://en.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois_Rabelais

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tradução

GargântuaFrançois Rabelaistradução: Henry Alfred Bugalho

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Gargântua

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Capítulo Vi. Como Gargântua nasceu dum jeito muito estranho

Enquanto eles agra-davelmente debatiam sobre beber, Gargamele começou a se sentir mal das partes baixas; então Grangousier se levantou da grama e a reconfortou honestamente, pensan-do que era o bebê a lhe fazer mal, e lhe disse que seria melhor que ela des-cansasse sob o salgueiro, pois em breve ela estaria bem e era conveniente ter nova coragem para a chegada iminente do pimpolho, e que apesar de a dor poder ser severa, ela logo acabaria, e que a alegria que se sucederia amenizaria toda a dor, de modo que nem memória dela restaria.

— Coragem de ovelha! — ele disse — Dê a luz a este menino, e logo fare-mos outro.

— Há! — ela disse — com que facilidade vocês homens falam! Bem, por Deus, vou me esforçar, porque você me pede. Mas suplico a Deus que lhe seja cortado!

— O quê? — disse Grandgousier.

— Há, ela disse, você é um bom homem! Você entendeu bem.

— Meu membro? — ele disse — Pelo sangue das cabras! Se bem lhe apete-ce, faça com que tragam uma faca.

— Há — ela disse — Deus me livre! Que Deus me perdoe! Não disse isto com sinceridade, e não faça nada do que digo. Mas eu terei trabalho o bastante por hoje, se Deus não me ajudar, por causa de seu membro e para agradá-lo.

— Coragem, cora-gem! — ele disse — não se preocupe e deixe que quatro bois façam o trabalho. Vou tomar mais uma bebida. Se lhe recair algum mal, você me terá por perto: dê um assovio que estarei com você.

Pouco tempo depois, ela começou a suspirar, a se lamentar e a chorar. Subitamente, de todos os cantos vieram as parteiras e, apalpando por debai-xo, encontraram algumas

saliências nojentas, e pensaram que era o bebê. Mas era o fiofó dela que havia lhe escapado, por causa do amolecimento do intestino — chamado de entranhas — porque havia comido muitas tripas, como havíamos declarado anteriormente.

Então, uma velha feia da companhia, que tinha a reputação de ser uma grande médica, vinda de Brisepaille, perto de Saint Genou, sessenta anos atrás, fez-lhe um cons-tipante tão horrível que suas pregas se obstruíram e se fecharam tanto, que, até com os dentes, seria difícil abri-las, o que é algo horrível de se pen-sar: mesmo imitando o diabo, que na missa de Saint Martin, transcreveu o bate-papo de duas gale-sas, esticando o pergami-nho com os dentes.

Por este inconveniente, soltaram-se os cotilédo-nes de seu útero, através do qual a criança saltou pra cima e entrou na veia cava. Então, escalando o diafragma até os ombros (onde a veia se divide em duas), ela tomou o cami-

ou a muito horrível vida do grande Gargântua, pai de Pantagruel

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5252 SAMIZDAT junho de 2009

nho da esquerda e saiu pela orelha esquerda.

Assim que nasceu, não chorou como as outras crianças: “Miez, miez”, mas gritou em voz alta, “beber! beber! beber!”, como se convidasse todo o mundo a beber. E o barulho era tão alto que podia ser ouvido ao mes-mo tempo nos países de Beausse e Bibaroys.

Questiono-me se você não acredita totalmente neste estranho nascimen-to. Se não acredita, não me importo; mas um ho-mem de bem, um homem de bom senso, acredita em tudo que lhe contam e em tudo que lhe chega por escrito. Isto é contra nossa lei, nossa fé, nossa razão, contra as Santas Escrituras? De minha parte, não encontro nada na Bíblia Sagrada que seja contra isto. Mas, se esta foi a vontade de Deus, você diria que ele não o fez? Ah, misericórdia, não emburreça jamais seu espírito com estes vãos pensamentos, pois eu lhe digo que nada é impossível para Deus e, se ele quisesse, todas as

mulheres dariam à luz, doravante, pela orelha.

Não foi Baco engen-drado desde a perna de Júpiter?

Não nasceu Roque-taillade do calcanhar de sua mãe?

Crocmoush da pantufa de sua babá?

Não nasceu Minerva do cérebro, através da orelha de Júpiter?

Adônis da casca de uma árvore de mirra?

Castor e Pólux duma casca de ovo que havia sido posto e chocado por Leda?

Mas você se espanta-ria e estupefaria mais se eu lhe expusesse aquele capítulo de Plínio, aquele no qual ele fala de nasci-mentos estranhos e con-trários à natureza; ainda que eu não seja tão men-tiroso quanto ele foi. Leia o sétimo livro de sua História Natural, cap. III, e não me perturbe mais a cabeça.

Capítulo Vii. Como Gargântua recebeu seu nome e como ele bebia vinho

O bom homem Gran-gousier bebia e se regala-va com os outros, escutou o horrível grito que seu filho deu ao entrar na luz do mundo, exigindo: “Be-ber! Beber! Beber!” Então disse: “Que garganta!” Ao ouvirem isto, os assisten-tes disseram que a crian-ça deveria se chamar Gargântua, porque esta havia sido a primeira pa-lavra dita pelo pai após o nascimento, em imitação ao exemplo dos antigos hebreus, com o qual ele concordou, e agradou bastante também à mãe. E, para acalmar a criança, eles lhe deram de beber em abundância, e a car-regaram até à fonte e a batizaram, como é o cos-tume dos bons cristãos.

E ordenaram que trou-xessem dezessete mil, novecentas e treze vacas de Pautille e Brehemond para amamentá-la ordi-nariamente, porque era impossível encontrar amas suficientes no país, considerando a grande quantidade de leite ne-

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cessária para alimentá-la; apesar de alguns médicos escotistas terem afirmado que sua mãe a amamen-taria e que ela poderia tirar de suas mamas mil, quatrocentos e dois barris e nove canecas de leite por vez; o que não é provável, e esta pro-posição foi considerada mamariamente escanda-losa e ofensiva a ouvidos pios, e com um toque de heresia.

Nestas circunstâncias, ele foi cuidado até um ano e dez meses; depois deste tempo, pelo con-selho dos médicos, co-meçaram a carregá-lo, e foi feita uma bela char-rete de bois, inventada por Jean Denyau. Nela, levaram-no para passear e ele se alegrava muito; e o exibiam, pois ele tinha uma bela face e dezoito queixos. Quase nunca chorava, mas cagava a toda hora. Pois ele era incrivelmente fleumáti-co de bunda, tanto por causa de sua complei-ção natural quanto pela disposição acidental que lhe adveio por tomar os vinhos setembrinos. Mas ele não bebia sem moti-vo; se acontecesse de ele

estar amuado, nervoso, chateado, ou feliz, se ele tripudiasse, se reclamasse, se chorasse, traziam-lhe a bebida para restaurar-lhe o ânimo, e imediatamen-te ele se acalmava e se alegrava.

Uma de suas gover-nantas me disse, jurando pela figa, que ele se acos-tumou tanto a isto, que o mero som de canecas e jarros faziam-no entrar em transe, como se des-frutasse das alegrias do paraíso. De modo que, considerando sua com-pleição divina, para ale-grá-lo, de manhã, faziam ressoar copos com uma faca, ou garrafões com suas rolhas, ou as canecas com suas tampas, e aque-les sons o deixavam feliz, saltitante, e ele se debatia no berço, balançando a cabeça, monocordiando os dedos e baritonando com o cu.

Fonte:

http://www.ed4web.collegeem.qc.ca/prof/rtho-mas/pm/gargantua.pdf

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Joaquim Bispo

Firewall para mercedesCrônica

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Há quem se queixe de que os Mercedes nunca fazem piscas. Dizem que os condu-tores de carros desta marca são de arrogância e sobran-ceria extremas, e por isso compraram um carro que pensam que os coloca acima das regras da estrada e das normas de cidadania, mesmo quando não passa de uma lata velha de marca, como se ela lhes conferisse um qualquer «estatuto Mercedes». Dizem que têm desprezo pelos peões que, para atra-vessar a rua, esperam em vão que o carrão passe, e pelos automobilistas que, no cru-zamento à frente, aguardam que o Mercedes passe, quan-do o condutor, afinal, vira antes sem fazer piscas. Que obrigam várias pessoas a esperar, em vão, consciente e intencionalmente. Que fazer piscas é que não, que está acima dos seus princípios. Dizem que ignoram acintosa-mente os automobilistas que atrás deles têm que fazer tra-vagens, guinadas apressadas ou perdem tempo sem razão. Que antes uma falência que fazer piscas.

Nada de mais errado – informaram-me. Os condu-tores de Mercedes são, duma maneira geral, pessoas com um alto sentido de cidadania. Fazem sempre piscas, cada vez que mudam de direc-ção, mesmo que não vejam peões ou automóveis atrás ou à frente de si. Tomam por princípio que, mesmo que não o estejam a ver, pode haver um peão ou um automobilista dependentes da

sua trajectória e, em confor-midade, accionam os piscas, exaustivamente, a cada curva mais acentuada. Essa é a sua postura cidadã. Simplesmen-te, o sistema do carro não permite que os piscas sejam vistos no exterior. É um pro-blema de estatuto assumido pela marca, há muitos anos. Cada Mercedes está equipa-do com um detector que foi programado com os dados biomédicos médios de um condutor de Mercedes. A antena do detector está alo-jada na estrela de três pontas inscrita num círculo, que constitui o símbolo da mar-ca. Cada vez que o condutor dum Mercedes faz piscas, o detector analisa o sinal e, se a origem for um verdadeiro condutor de Mercedes, blo-queia a transmissão do sinal. É uma espécie de «firewall» para prevenir que um qual-quer condutor desses carros pífios que por aí se arrastam se faça passar por um ver-dadeiro piloto de Mercedes. Sim, piloto é uma designação muito mais adequada a quem conduz uma dessas máquinas transcendentes.

Dizem que tudo começou com uma alteração que um mecânico habilidoso introdu-ziu num Mercedes, a pedido do dono. Era um cliente que sentia o apelo do «estatuto Mercedes» e temia que uma distracção ao volante o le-vasse a mostrar consideração pelo próximo. Rapidamente, o exemplo foi seguido por centenas de outros condu-tores de Mercedes, até que a marca integrou essa novi-

dade nos modelos seguintes, para os interessados, ou seja, todos. Outras marcas segui-ram o exemplo da Mercedes e hoje é frequente ver carros de diversas marcas a não fazer piscas, tanto que se chegou a falar em «estatuto BMW» e «estatuto Audi». A propagação do fenómeno vulgarizou demasiado o con-ceito de «estatuto», pelo que se desenvolveu um processa-dor mais abrangente que foi designado por «espírito Mer-cedes». Este sistema computo-rizado pode ser instalado por qualquer condutor, mesmo que não possua melhor máquina que um «carocha». Ou que, como no caso dum condutor de táxi que, embo-ra pilotando um Mercedes, não tem, em geral, «estatuto Mercedes». Socorre-se, então, do «espírito Mercedes», às vezes, melhorado com vários «up grade», não sinalizando a marcha, ultrapassando pela direita, queimando sinais ver-melhos, parando a um metro do passeio, estacionando a ocupar três lugares.

Sabendo destas infor-mações, não há razão para continuar a considerar incivilizados os pilotos dos Mercedes. E se alguma vez virem um carro desta marca a fazer piscas, tomem uma coisa como certa: o carro foi roubado. Não duvidem disso só pelo facto de verem um bronco ao volante. Também há ladrões de automóveis que têm esse ar. Mas aconse-lho a que não vão logo cha-mar a Polícia. É que o carro pode ter a «firewall» avariada.ht

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Crônica

Caio Rudá de Oliveira

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Não raro nos pegamos a observar, com aquele olhar profundo, para incautos sujei-tos que andam distraidamen-te na calçada, ou que estão na fila do banco - completos inocentes. Eles não imaginam que, a poucos metros de si, alguém pode estar a traçar minuciosamente seu perfil psicológico, lição básica do manual “A arte de bisbilho-tar”.

Nesse tipo de construção da imagem alheia, os ócu-los são um item crucial na determinação das caracterís-ticas, conferindo um certo ar de intelectualidade a quem os usa. Tanto acredito nessa

afirmativa que me rendi ao fenômeno da estereotipagem ao comprar meus novos ócu-los. A intenção foi substituir a armação antiga, leve, fina e mais arrojada, por uma mais cheia, clássica, bem ao estilo escritor, cuja aparência me colocaria mais de acordo com o propósito da literatu-ra.

Certamente Drummond não seria reconhecido pelo seu talento se não usasse óculos. Também João Ubaldo Ribeiro e Manuel Bandeira. Benditos são esses óculos que servem de auxílio à visão, verdadeiros olhos, e que também colaboram com a

imagem de cult, genuínos passaportes para o sucesso artístico.

Quer ser ouvido? Use óculos. Suas palavras irão soar como conselhos de um sábio. Quer ser referência? Use óculos. Sua figura se valoriza com eles em sua cara. Quer ser jornalista? Use óculos. Suas matérias estarão na capa de jornal. Quer ser escritor? Use óculos. Você irá entrar para a Academia Bra-sileira de Letras. Quer ban-car o inteligente sem saber patavina? Use óculos. É um verdadeiro fato alquímico; do cobre ao ouro, da ignorância à sabedoria.

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Prêmio iG NoBELCrônica

Caio Rudá de Oliveira

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Eu tento entender a hu-manidade; eu juro que tento. Porém tem certas coisas que fogem da compreensão de qualquer ser humano. Para mim, o mundo perdeu a sua capacidade de surpreender.

Na História, sempre houve o contraponto entre bobos e inteligentes. Os pri-meiros servindo de matéria para o estudo dos segundos, que por sua vez oferecem resultados e melhorias para o bem comum. Uma espécie de mutualismo. Ultimamen-te, no entanto, as coisas têm se confundido. Tem surgin-do toda sorte de pseudointe-lectuais e também cientistas aos quais adjetivar ‘estúpi-dos’ é de um eufemismo ímpar. Portanto, fica difícil definir os bobos e os inte-ligentes. Deve haver alguns poucos que se encaixam fielmente nessas categorias, mas hoje eu aposto numa maioria híbrida. E como se sabe, híbridos são animais estéreis.

Logo, inférteis são tam-bém suas produções, ar-tísticas ou científicas. Não contribuem lá com muita coisa. No máximo garantem o troféu eu-fiz-algo-em-minha-vida ao seu mentor. Assim, tudo bem que não acrescentem nada, mas também ser uma experiên-cia tão inútil que não vale toda a demanda de esforços, dinheiro e tudo o mais é o fim da picada. Os artis-tas ainda têm a licença de transcender, ousar e não ter

lógica. Ciência é feita de método e aplicação práti-ca; um pouco de seriedade cai bem. No entanto, esses preceitos básicos para se fazer ciência parece terem sido esquecidos pelos novos Einsteins. Todo ano, inúme-ras experiências e pesqui-sas, no mínimo, inúteis são realizadas. Alguns, além de sem serventia são engraça-dos, chegam a ser patéticos e beiram o bizarro. E para completar, já que a espé-cie humana é por demais oportunista, até existe prê-mio para contemplar esses gênios e seus experimentos interessantes. É o tal do Ig Nobel Prize, ou Prêmio Ig Nobel.

Desde 1991, são distri-buídos prêmios em diversas categorias para as ‘pesquisas que fazem as pessoas rirem e depois pensarem’, como sugere o lema do grupo que organiza as cerimônias. Ce-rimônias essas que, pasmem, são realizadas com a cola-boração da Universidade de Harvard.

Todo tipo de despro-pósito já foi catalogado e premiado. Só não sei se o critério é recompensar os mais dementes ou os me-nos, dentro do contexto dos cientistas malucos. Esses professores Pardais, aliás, são laureados em uma festa pomposa, semelhante ao pa-rodiado Prêmio Nobel. Vale citar alguns desses destem-peros:

Em 2007, na categoria Paz, o Air Force Wright Laboratory foi o vencedor, por sugerir a pesquisa de uma ‘bomba-gay’ que faria as tropas inimigas sentirem uma atração sexual mútua. No mesmo ano, na catego-ria Linguística, Juan Manuel Toro, Josep B. Trobalon e Nuria Sebastian-Galles rece-beram as honras por des-cobrirem que ratos às vezes não conseguem diferenciar gravações de japonês e ho-landês tocadas reversamente. Em 1995, cientistas japone-ses e seu treino de pombos para distinguirem pinturas de Picasso das de Monet também foram laureados, em Psicologia. Três anos mais tarde, foi concedido prêmio em Estatística a Je-rald Bain e Kerry Siminoski, do Canadá, por seu estudo sobre o peso, tamanho do pênis e comprimento do pé. Também entra na lista uma tese de Ph.D. sobre a história das lojas de donuts canadenses, um spray para detectar a infidelidade de um marido, um dispositi-vo ao qual se amarra uma mulher prestes a dar à luz e gira em alta velocidade para auxiliar o parto, imãs que levitam um sapo e tam-bém um lutador de sumô, a descoberta de que o buraco negro preenche todos os requisitos para a localização do inferno. E é daí para pior.

Resta saber quem são os mais débeis: os cientistas ou quem os premeia. ht

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uma VEz idéia, SEmPrE idéia

Crônica

Caio Rudá de Oliveira

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brasileiro que se preze se achou no direito de dar o seu pitaco sobre o recente acordo ortográfico. Se pela conjuntu-ra ou por real interesse pela coisa, já é outra história.

O fato é que só os blogues devem amontoar uma quan-tidade de informação desse assunto suficiente para uns dois anos de leituras. Tem gente que é contra ou a favor mas não sabe por quê, tem gente que não sabe o que é mas tem opinião formada e tem gente que sabe mas não tem. Esse último, meu caso.

Pelo menos até hoje.

Reformas no idioma, a priori, buscam uma melhora. Prefiria crer que a unifica-ção da língua portuguesa não fosse uma brincadeira de menino e se vários espe-cialistas, de diversos lugares, decidiram por agir de tal maneira é porque há motivos que o justifiquem. Mas agora vejo o despropósito desse acordo. Vão acabar com o acento da palavra idéia. Poxa, afinal é a marca do meu blogue que está em jogo. O agudo para mim é tão parte do vocábulo quanto o i ou d.

Sem ele, ficará algo mutilado, como uma árvore sem suas folhas.

Sei que não vou aderir a essa ideia, e vou ficar com minha antiga idéia. Se eu ceder, daqui a pouco vão querer arrancar o acento de “Rudá” também. Então, peço a todos adesão ao Manifesto Anti-castração de Idéia, pois além do agudo, estão levando junto o assento da palavra.

Por último, vai haver punição por não escrever dentro das novas regras ou, no máximo, vou ser o burro que acentuará idéia?

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uma VEz idéia, SEmPrE idéia

oito HoraS dE SoNo,doiS LitroS dE áGuaE mENoS dE duaS miL CaLoriaS

Crônica

Volmar Camargo Junior

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Gato é o bicho mais inútil que existe. Eu queria saber de onde é que esses bichos tiram tanta disposi-ção pra dormir. Três quin-tos do seu dia eles passam dormindo, um quinto se lambendo e o outro quinto destruindo alguma coisa dentro de casa – ou arru-mando confusão na rua. Os gatos são adolescentes a vida inteira.

As normas (quem disse?) da vida saudavelmente cor-reta dizem que os humanos normais e civilizados de-vem dormir de sete a oito horas diárias. Eu não tenho saco para dormir. Acho que a gente perde muito, muito, muito tempo inerte, só respirando, babando e

deixando o organismo tra-balhar sozinho... acho isso perigoso demais (já p*idei dormindo tão alto que acordei com o barulho). Se neguinho for prestar aten-ção, oito horas é um terço do dia. Isso significa que, se eu for seguir à risca essa contagem de horas dormi-das, um terço da minha vida vai ser babando e p*idando inconscientemen-te. Fazendo as contas meio por cima, então, eu tenho dezenove “anos úteis”. Vai ver é por isso que a maior parte dos adolescentes (i.e.: os vivos) são tão imprestá-veis: nos anos teen (dos tre-ze aos dezenove, segundo a língua do viúvo da Lady Di), dorme-se em média doze das vinte e quatro

horas possíveis de um dia. É uma provável explicação para terem tanta disposi-ção para não fazer nada, e espaço livre no HD mental para enfiar música de gosto duvidoso e sentimentos de auto-piedade. Isso, é claro, os que não turbinam sua chatice com álcool y otras cositas más.

Eu durmo pouco, como muito e só bebo água no café. E, de vez em quando, misturada com outras coi-sas que na adolescência eu não curtia.

Ah, sim. Eu já fui adoles-cente. E fiz todas as im-pertinências pertinentes à idade. Minha mãe não tem saudade dessa época.

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a arma maiS PEriGoSa da tErra

Crônica

Volmar Camargo Junior

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Se acontecer, coinci-dentemente, de dez pesso-as estarem em um mes-mo recinto, e uma delas bocejar, automaticamente, outro pobre coitado, por adesão inconsciente, irá fazer o mesmo até que todos os membros daque-le grupo estejam conta-minados pelo bocejo.

Se, além desses, hou-ver décimo primeiro, e este infeliz for jornalista, ferrou tudo. Em menos de vinte minutos, está feita a primeira epidemia de bocejo. No vigésimo segundo minuto, haverá pessoas que conhecem aqueles dez mandando e-mail para as redações dos jornais, dizendo que

não conseguem parar de bocejar. Todos os jornais, concorrentes do empre-gador daquele décimo primeiro indivíduo, o jornalista, que estava lá e viu os dez bocejando, vão atrás de mais infor-mações e, como mosca em rolha de xarope, vão descobrir que o bocejo se espalha a uma velocidade alarmante. Os governos são orientados a man-ter os bocejadores em quarentena, e os amigos, parentes, vizinhos e par-ceiros de canastra dos dez primeiros bocejado-res sejam mantidos sob criteriosa vigilância. E, se você apresentar os sinto-mas de abrir largamente

a boca, respirar pesada e fortemente, sentir zum-bir leve e continuamente os ouvidos, lacrimejar os olhos, haverá o despertar de um duro complexo de culpa, porque você é um portador do bocejo, e todos os que o virem serão irremediavelmente contaminados.

Isso, é claro, até que a notícia epidêmica esfrie, como aconteceu à gripe aviária, à febre aftosa, à doença da vaca-louca, e surja outra coisa com que os jornalistas se ocupem.

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“NÓS” EStá morrENdo

Crônica

Léo Borges

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É com grande pesar que constato mais um lento e agonizante padecer na lín-gua portuguesa. Desta vez é o pronome pessoal “nós” que está na UTI, em coma profundo. E sua morte não foi decretada por nenhum acordo ortográfico, deu-se misteriosamente através de um silêncio tácito, onde (vai saber) a preguiça foi a mentora. Quase nin-guém mais o utiliza, sendo gradativamente substituído pelo famigerado “a gente”.

– Quem vai?– A gente.A sonoridade tônica e

incisiva do “nós”, que em tempos idos possuía es-paço nas rodas, agora só é encontrada em algumas poucas rimas poéticas, fa-zendo par com um avulso “sós”, como no “Roman-ce de nós”, de Luiz Filipe Castro:

“(...)Que resta do amora quem é como nós?Envergonha-me pôrem verso: «somos sós;(...)”Arriscar esse bonito

pronome numa conversa informal hoje em dia é algo não apenas esdrúxulo como também petulante.

– Nós vínhamos deva-gar.

(que sujeito metido...)– A gente vinha devagar.(ah, bom!)O problema é que as

pessoas ainda acham que o “nós” pode se recuperar e que o “a gente” vai dei-xar de ser esse assassino impiedoso. Enquanto isso não acontece, o pessoal vai se confundindo com as flexões. “Nós” está morren-

do, mas sua concordância verbal inadvertidamente permanece, criando ora-ções ridículas:

– A gente vamos.– Nós vai.Não dá para negar que

o “a gente” destruiu a plas-ticidade pomposa das três letrinhas. E não podemos nem falar em economia de sílabas pois “nós” só possui uma. O “a gente” vem sendo, sem trocadilho, um agente exterminador pronominal: está asfixian-do o “nós”, mas já detonou o oblíqüo “nos” e, como se não bastasse, arruinou também o formoso “co-nosco”. Nada de “ele nos encontrou”. Agora é “ele encontrou a gente”. Ela veio conosco? Negativo. Ela veio com a gente.

“Nós” está tomando o mesmo destino do robusto e vistoso “vós”. Esta segun-

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da pessoa do plural mor-reu, como se diz, Cristo era menino. Só o ouvimos agora nas liturgias, quan-do Cristo era menino (ou mesmo adulto). “Porquanto vós todos sois filhos da luz, e filhos do dia; nós não somos da noite, nem das trevas”. Tessalonicenses 5:5. Não sei se é por causa dessa verve bíblica do “vós” que quando ele é citado já lembro do Charlton Hes-ton, do Yul Brynner ou do meu avô me chamando para a missa dominical.

O “você” (corruptela do reverente “vossa mercê”) tomou, aos poucos – quan-do está pluralizado – o lu-gar do “vós”. E, sem maio-res alardes, o internetês tratou de simplificar tudo isso em algumas consoan-tes frugais: “vcs” (vocês) ou “vc” (no singular). Como no inglês, onde “you” (você) é grafado com uma sim-plicidade atroz: “u”.

Por falar em “você”, o “tu” não se rendeu facil-mente a este pronome. Tanto ele quanto o “ti” possuem uma blindagem regionalista notável. Em determinados locais do Brasil o “você” quase não tem vez: “Tu vais à festa de Nando?”, “Abração pra ti!”.

Dos pronomes pessoais do caso reto só mesmo o “eu”, o “ele” e o “eles”, de uma forma geral, ainda se mantêm vivos. Mas, mes-mo assim, sofrem com a sanha do resumo de infor-mações. Muitos não falam “eu não sei”, simplesmente dizem: “sei não”. Não tar-dará o tempo em que “eu” também sucumbirá ante a virose que já assolou os pronomes “nós” e “vós”. Estes, pelo menos, em am-bientes poéticos e religio-sos, ainda são venerados.

Eu SÓ quEro CHoCoLatEMaristela Scheuer Deves

Uma balança me deu, não faz muito tempo, uma notícia assustadora: estou com quase 56 quilos. Melhor dizendo, algumas vezes estou umas gramas acima disso, outras, ainda bem, um pouco abaixo. Sei que as gordi-nhas de plantão vão rir da minha idéia de que estou “pesada” demais, mas para mim, que até meus 25 anos era magérrima, esses quilinhos em excesso preocupam.

Minha média de peso, por muitos anos, não passou dos 47 quilos. Depois, nos últimos anos, subiu para 50, oscilou por um bom tempo na faixa até 52, subiu trai-çoeiramente para 54 e agora... 56! Quem me conhece bem vai dizer que a balança demorou a acusar o que eu como: no almoço e na janta até que sou comedida, mas na hora dos lanches, sai de baixo... O vilão da história, é claro, é o chocolate.

Mas, meu Deus, eu adoro essa delícia derivada do cacau, e fico numa dúvida cruel entre seguir engordando nesse ritmo (minha ex-cinturinha fina parece a cada dia assustadoramente maior) ou abrir mão de um costume já consagrado: meus chocolates diários, geralmente no finalzinho da tarde. E mais alguns chocolates durante o dia, e a pizza com cobertura de chocolate ao menos uma vez por semana, e o chocolate em pó comido de colhe-rada, e a musse de chocolate de sobremesa, e o bolo de

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Eu SÓ quEro CHoCoLatE

chocolate, e...

Que atire a primeira pedra quem não fica com água na boca ao passar pela seção de chocolates no supermercado e nem come um brigadeiro es-condido de vez em quan-do. Ah, eu ia esquecendo: minha dieta também inclui eventualmente os brigadei-ros, e, frequentemente, uma caixinha da delícia que são os achocolatados - seja ele Nescauzinho, Toddynho ou qualquer outro do gênero. Hummmmmm!!!!!!!!!!

Muitas vezes já me perguntaram se eu não enjoo, mas acho que nunca vou enjoar. Claro, às vezes não consigo comer de uma vez os dois bombons ou as quatro barrinhas (das

pequenas, viu, não sou nenhuma esganada!) que compro na lancheria ou no mercadinho da esquina, mas dali a pouco a vontade volta.

E agora que está chegan-do o inverno, ai, que von-tade de fazer um delicioso fondue... de chocolate, é claro. Sem falar na ma-quinha de café, com três opções (isso mesmo, TRÊS!) de chocolate quente, que instalaram tentadoramente no corredor da empre-sa onde trabalho. Como resistir? Não pensem que eu não como outras coisas; refrigerantes e muita pizza também fazem parte do meu cardápio. Mas, tem coisa melhor – não mais saudável, isso eu sei que

tem, mas melhor?

Alguém deveria inven-tar algo saudável, não-engordante, e igualmente gostoso; aí talvez me con-vencesse a deixar de lado as milhares de calorias da dieta atual. Por enquanto, encolho a barriga e sigo curtindo a minha vida de não-mais-magra-mas-ainda-não-gorda, comendo tudo o que posso e rezan-do para que de alguma forma aquilo tudo não se acumule na minha cintura.

Bem que a minha mãe me aconselhava, quando eu reclamava que era magri-nha demais: “Melhor assim. Se um dia você engor-dar, vai sentir saudade de quando te chamavam de palito...”

Crônica

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6666 SAMIZDAT junho de 2009

o dia Em quE o muNdo NÃo aCaBou

Crônica

Henry Alfred Bugalho

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o dia Em quE o muNdo NÃo aCaBou

Você lembra o que estava fazendo no dia 11 de agosto de 1999?

Eu me lembro...

Durante o começo de mês de agosto, e até um pouco antes, começaram a ser divulgadas notícias de que o mundo acabaria quando do eclipse solar em 11 de agosto. A fonte era “fidedigna”: o pai de todas as calamidades futuras, Nostradamus.

Eu e um amigo nos sen-tamos na pracinha do con-domínio onde morávamos, sob a sombra duma árvore e aguardamos. “Se o mundo acabar, tudo bem”, pensá-vamos, “se não acabar, tudo bem também”. Passamos o dia inteiro conversando e esperando, esperando e conversando.

Nesta nossa espera, havia um quê de resignação, de estoicismo. De que adianta-ria querermos lutar contra os desígnios celestes, ou do Universo, ou de Deus? Se era para o mundo acabar, que diferença dois seres insignificantes como nós faríamos para mudar isto?

Mas havia pessoas que não aceitaram passivamente este fato. Entre elas, havia um outro grupo de amigos que, na virada da noite de 10 para 11 de agosto, reuni-ram-se para se salvar.

Não sei inspirados em qual ensinamento esotérico, em qual religião, em qual obra de misticismo, eles

concluíram que desenhar um círculo no meio da sala e todos se amontoarem dentro dele bastaria para salvá-los do fim.

Imagino que tipos de pensamentos passaram pelas cabeças deles: será que eles acreditavam que o círculo de proteção os salvaria, mas que, fora dele, toda a raça humana se ex-tinguiria? Qual é o sentido de sobreviver uma dúzia de pessoas enquanto todo o restante da civilização deixava de existir? Ou será que pensavam que o gesto deles serviria para salvar toda a Humanidade?

Um sobre o outro, eles vararam a madrugada, por vezes reclamando da po-sição incômoda, por vezes tentados a se levantarem, abandonar o círculo de pro-teção, e ir tomar água ou ir ao banheiro, mas sempre com a proibição:

— Não rompa o círculo! Você vai matar a todos nós!

O que os fazia imedia-tamente mudar de ideia e permanecer lá, com cãibras, com torcicolo, segurando o xixi, gemendo, à espera do fim do mundo.

Mas o mundo não aca-bou. O sol nasceu e atra-vessou a cortina da sala, fazendo com que aquele amontoado de gente desper-tasse.

Foi uma alegria! O mun-do estava salvo! Nostrada-mus havia errado na profe-

cia (ou ela apenas teria sido adiada)?

Ou quem sabe não tenha sido o ato altruísta deles que nos salvou do terrível fim?

O mundo acabará um dia, isto é um fato; assim como o nosso sistema solar, a galáxia, o próprio Uni-verso se extinguirá um dia. Alguns mais alarmistas pre-vêem o fim para 2012, mas, quando o mundo novamen-te não acabar, vão prorrogar nosso tempo de existência por mais alguns anos.

Fico pensando no que eu faria se tivéssemos certe-za de quando seria o fim; acho que faria exatamente a mesma coisa que já fiz um dia: eu me sentaria sob a sombra duma árvore e aguardaria, com o mesmo pensamento de antes - “Se o mundo acabar, tudo bem; se não acabar, tudo bem também”. ht

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6868 SAMIZDAT junho de 2009

Quadrilha

Ratinho amava Ana Prego que trazia os produtos pra Zé Bala

que foi chefe de Tonha que tinha caso com Neguinho que ameaçou Tininha

que não tinha antecedentes criminais.

Ratinho foi para a Colômbia, Ana Prego para o presídio,

Zé Bala morreu de tiroteio, Tonha ficou para cafetina,

Neguinho teve overdose e Tininha matou Dom-dom

que era recém-chegado no morro, ameaçando tomar sua boca.

Caio Rudá

a poesia é uma graçaPoesia

Sabia-o Vivaldi

nem tudo são flores

é que o ano é primavera

verão, outono e inverno

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Rime

moi je suis

un épi de maïs

jaune et petit

êtes-vous ici?

exactement à Paris

il me dit

tu es jaune et petit

ah, je ris

je suis un épi de maïs

pour la attention, merci

et sans doute, tu m’as com-pris

Haikai

miojo

yakisoba

takafora

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Volmar Camargo Junior

Laboratório Poético:

DOIS PeCADOS (um, PeLA metADe),

E maiS outraS CoiSaS SEm SENtido

Poesia

ira

Ai, moléstia maldita

que tira o gosto de tudo

e do resto todo o sentido

Ai, penúria ordinária

rasga-me de dentro a fora

expulsa minhas entranhas

Dor da minha imundície, raio que me parta

Porra, que merda de dor filha da puta!

Preguiça

precis..

escrev...

um poe...

intei...

Ah, cansei!

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doce Nostalgia

Leite condensado, caramelizado

Com flocos crocantes

Coberto com o delicioso sabor do passado.ht

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monólogo

“abre aspas

Tenho dito.

fecha aspas”

Vadiagem

É manhã.

É dia.

E daí?

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Dênis Moura

Eu-tu-NadaPoesia

Unidos no tempo corpo e palavras...

Nós um, “eu-tu”, num eu completo e só;

Andrógino das Eras bimetálicas,

Bipartido por Zeus (o sublevava).

Fulminar de um relâmpago sem dó,

Que sublimou-nos nas etéreas mágicas.

Cindidos no tempo corpo e palavras,

Mas tão iguais, tal duas formas pálidas,

De novo reencontrados numa mó,

Sonhei que tu (eu?) a mim (tu) amava(s),

(Talvez só se busquem as antagônicas)

Pela primeira vez me senti só.

Outra vez sem tempo, corpo ou palavras,

Depois de tudo reduzido a pó,

Nos vemos hirtos de tais formas trágicas,

(Unidimensional paixão de um Jó),

Extremas, impensadas, desarmônicas,

De tudo que entre nós tu não falavas.

Tempo, corpo, palavra... (E(e)ra mágica?)

Numa “tecnoEra” que sei de co,

Quando teu feminino desprezavam,

Te venerei mui além das palavras

Num platonizar que me arrastava

Para, em nós ou na garganta, um nó.

Romântico, ingênuo ou bem pior,

Penso nas coisas que me apaixonava:

Quando um imã uma vez é dividido,

Pra uni-lo em mesmas faces, nem mágica;

Um pedaço tem que inverter seu lado,

Para que ambos voltem a ser um só.

Em corpos separados (eu gostava...)

Pela natureza (... muito...)(melhor?),

Entrego minhas (de ti?) palavras

Ao tempo (...realmente.) nas etéreas

Mágicas. Bipartido eu só sinto:

Eu um, tu uma, eu incompleto e só!

Terra da Luz, 26 de agosto de 1997 – 14h.

7272 SAMIZDAT junho de 2009

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SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

Henry alfred BugalhoFormado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em

Estética. Especialista em Literatura e História. Autor de quatro romances e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-rinha.

[email protected]

Edição, diagramação e capa

Joaquim BispoEx-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador,

licenciado recente em História da Arte, experimenta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

[email protected]

Revisão

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7474 SAMIZDAT junho de 200974 SAMIZDAT junho de 2009

mariana VallePor um amor não correspondido, a carioca de

Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o papel com erotismo. E também com seu choro. Em reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade. Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro e outras divulgadas nos links listados em seu blog pessoal: www.marianavalle.com

Assessoria de imprensa

Volmar Camargo JuniorInconformado com a própria inaptidão para di-

zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de parte de suas horas diárias de sono, tentando domar a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa, fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por um cenário natural de extrema beleza – Canela, na Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio, é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo, torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.

[email protected]://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Colaboração

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Caio rudáBahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda

Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera um dia entender o ser humano. Enquanto isso não

acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,

reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

Barbara DufflesJornalista, escritora e roteirista, é autora do livro

“Não Abra” e do blog “Não Clique”. Apesar das nega-tivas, esta carioca quer, sim, ser lida - como todo es-critor. Tem dias de conto, de crônica e de pílulas sem sentido. Suas paixões: cinema e livros com cheiro de novo - se bem que adora se perder nos sebos da vida.

maristela devesGaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-

meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu a ler. Escreve principalmente contos nos gêneros misté-rio, suspense e terror, além de crônicas.

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7676 SAMIZDAT junho de 2009

Giselle SatoAutora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-

rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine apenas como uma contadora de histórias carioca. Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente panorama da socie-dade em que vivemos.

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dênis mouraPaulistano de pia, cearence de mar e poeta de

amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberes-paço, mais com bits de imaginação que com telescó-pios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social, com a democracia participativa eletrônica, onde o povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias sua primeira obra, um Romance de Ficção Científi-ca, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize, o clique, o blogue e o leia!

Carlos BarrosPaulistano, filho de nordestinos, desenhista desde

sempre, artista plástico formado, escritor. Começou sua vida profissional como educador e, desde então, já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-gicos – experiências que têm forte influência sobre seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-ria da Arte e escreve para publicações na internet.

[email protected]://desnome.blogspot.com

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José Espírito SantoInformático com licenciatura e pós graduação na

Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, trabalha há largos anos em formação e consultoria, sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”. A paixão pela escrita surgiu recentemente, tendo no ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e “Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a fa-mília em Alverca, uma pequena cidade um pouco a norte de Lisboa, Portugal.

Léo BorgesNasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor

público e amante da literatura. Formado em Comu-nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas “Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

ficinawww.oficinaeditora.org

O lugar onde

a boa Literatura é fabricada

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Também nesta edição, textos de

Barbara Duffles

Caio rudá

Carlos alberto Barros

dênis moura

Giselle Natsu Sato

Henry alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

Léo Borges

mariana Valle

maristela Scheuer deves

Volmar Camargo Junior

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