SACHS, Ignacy. Desenvolvimento e Cultura

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151 o&s - v.12 - n.33 - Abril/Junho - 2005 Desenvolvimento e Cultura. Desenvolvimento da Cultura. Cultura do Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO E CULTURA. DESENVOLVIMENTO DA CULTURA. CULTURA DO DESENVOLVIMENTO 1 Ignacy Sachs* Só existem duas coisas : a cultura e a natureza. E a própria natureza só existe por causa da linguagem. Tudo está na linguagem. Até Deus. Como digo : Deus é uma criação do homem. É o criador, criado pelo homem. Porque ele é eu – dizer – o – seu- nome. Se não digo, ele não é nada. Para mim não tem outra coisa. É tudo cultura. Gilberto Gil (Almanaque Brasil, junho de 2004) O economista não é apenas aquele que sabe de economia. É aquele que pode sair do pensamento econômico, aquele que se liberta da sua própria formação para a ela melhor regressar. Mia Couto (Espaço África, setembro-novembro 2003) desenvolvimento e a cultura são dois mega-conceitos situados na interesecção de várias disciplinas, que conquistaram um lugar central nas ciências sociais do século XX pelo seu caráter holístico e pluridimensional. Tudo indica que permanecerão nesta posição no século que se inicia, embora o conceito de desen- volvimento seja hoje contestado, mais no seu aspecto ideológico do que no seu aspecto analítico. A cultura constitui, sem dúvida alguma, o construto fundamental da antropo- logia, enquanto as relações do desenvolvimento com a economia são mais frágeis; para os adeptos das teorias econômicas ahistóricas e atópicas baseadas no fundamentalismo do mercado, o desenvolvimento é um conceito simplesmente redundante. Este trabalho procura examinar as relações entre o desenvolvimento e a cultu- ra, e as oportunidades que se abrem para políticas públicas ao passar dos conceitos à ação. Começaremos por descrever, brevemente, a evolução da idéia do desenvolvi- mento nos últimos 60 anos, passando depois à análise dos vários sentidos da cultura, um termo por excelência polissêmico 2 . DESENVOLVIMENTO: UMA IDÉIA-FORÇA Costuma-se considerar o artigo de Paul Rosenstein-Rodan sobre a industrializa- ção da Europa Oriental e Meridional, publicado em 1943 3 , como o texto fundador da moderna teoria do desenvolvimento, cujas origens mais remotas se referem à idéia iluminista do progresso. Na época, o autor coordenava um grupo de trabalho do Royal Institute of International Affairs de Londres encarregado de preparar planos de re- construção dos países ocupados pela Alemanha nazista. O grupo congregava nume- rosos refugiados da Polônia, Hungria, países balcânicos e centro-europeus. O * Prof. Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris 1 Estudo preparado para o escritório do PNUD no Brasil. Agradeço a colaboração de Ana Letícia Fialho. 2 A elaboração do conceito da cultura, tal como o conhecemos hoje, precedeu o do desenvolvimento. O trabalho essencial aconteceu na primeira metade do século XX, enquanto a elaboração do conceito moderno de desenvolvimento só começou durante a Segunda Guerra Mundial na Grã-Bretanha, quando os refugiados dos países europeus foram convidados a formular planos de reconstrução para o pós- guerra. Pensamos, no entanto, que a ordem lógica conduz a discutir primeiro a evolução da idéia do desenvolvimento e depois a da cultura. 3 Rosenstein-Rodan, P. “Problems of Industrialization of Eastern and South-Eastern Europe”, Economic Journal, 1943.

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Artigo debate sobre as relações entre cultura e desenvolvimento.

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    Desenvolvimento e Cultura. Desenvolvimento da Cultura. Cultura do Desenvolvimento

    DESENVOLVIMENTO E CULTURA.DESENVOLVIMENTO DA CULTURA.CULTURA DO DESENVOLVIMENTO1

    Ignacy Sachs*

    S existem duas coisas : a cultura e a natureza. E a prpria natureza sexiste por causa da linguagem. Tudo est na linguagem. At Deus. Comodigo : Deus uma criao do homem. o criador, criado pelo homem.Porque ele eu dizer o seu- nome. Se no digo, ele no nada. Paramim no tem outra coisa. tudo cultura.

    Gilberto Gil (Almanaque Brasil, junho de 2004)

    O economista no apenas aquele que sabe de economia. aquele quepode sair do pensamento econmico, aquele que se liberta da sua prpriaformao para a ela melhor regressar.

    Mia Couto (Espao frica, setembro-novembro 2003)

    desenvolvimento e a cultura so dois mega-conceitos situados na interesecode vrias disciplinas, que conquistaram um lugar central nas cincias sociaisdo sculo XX pelo seu carter holstico e pluridimensional. Tudo indica quepermanecero nesta posio no sculo que se inicia, embora o conceito de desen-

    volvimento seja hoje contestado, mais no seu aspecto ideolgico do que no seu aspectoanaltico. A cultura constitui, sem dvida alguma, o construto fundamental da antropo-logia, enquanto as relaes do desenvolvimento com a economia so mais frgeis; paraos adeptos das teorias econmicas ahistricas e atpicas baseadas no fundamentalismodo mercado, o desenvolvimento um conceito simplesmente redundante.

    Este trabalho procura examinar as relaes entre o desenvolvimento e a cultu-ra, e as oportunidades que se abrem para polticas pblicas ao passar dos conceitos ao. Comearemos por descrever, brevemente, a evoluo da idia do desenvolvi-mento nos ltimos 60 anos, passando depois anlise dos vrios sentidos da cultura,um termo por excelncia polissmico2.

    DESENVOLVIMENTO: UMA IDIA-FORA

    Costuma-se considerar o artigo de Paul Rosenstein-Rodan sobre a industrializa-o da Europa Oriental e Meridional, publicado em 19433, como o texto fundador damoderna teoria do desenvolvimento, cujas origens mais remotas se referem idiailuminista do progresso. Na poca, o autor coordenava um grupo de trabalho do RoyalInstitute of International Affairs de Londres encarregado de preparar planos de re-construo dos pases ocupados pela Alemanha nazista. O grupo congregava nume-rosos refugiados da Polnia, Hungria, pases balcnicos e centro-europeus.

    O

    * Prof. Escola dos Altos Estudos em Cincias Sociais de Paris1 Estudo preparado para o escritrio do PNUD no Brasil. Agradeo a colaborao de Ana Letcia Fialho.2 A elaborao do conceito da cultura, tal como o conhecemos hoje, precedeu o do desenvolvimento.O trabalho essencial aconteceu na primeira metade do sculo XX, enquanto a elaborao do conceitomoderno de desenvolvimento s comeou durante a Segunda Guerra Mundial na Gr-Bretanha, quandoos refugiados dos pases europeus foram convidados a formular planos de reconstruo para o ps-guerra. Pensamos, no entanto, que a ordem lgica conduz a discutir primeiro a evoluo da idia dodesenvolvimento e depois a da cultura.3 Rosenstein-Rodan, P. Problems of Industrialization of Eastern and South-Eastern Europe, EconomicJournal, 1943.

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    Ao refletir como superar as terrveis destruies causadas pela Segunda GuerraMundial, eles no podiam abstrair os graves problemas estruturais com os quais sedebatiam, entre as duas guerras mundiais, os pases da periferia europia do mundocapitalista de ento: estruturas agrrias anacrnicas, populao rural fortementesubempregada e vivendo em grande pobreza, relaes de troca (na poca chamadasde tesouras de preos) desfavorveis entre produtos agrcolas e industriais, industri-alizao incipiente, dificilmente lograda graas interveno estatal e s polticasprotecionistas, assim mesmo alto desemprego urbano, relaes difceis com os inves-tidores privados estrangeiros e insero dependente na economia internacional dura-mente atingida pela crise de 1929. A problemtica com que eles trabalhavam amesma com que se defrontam ainda hoje os pases perifricos.

    Os acordos de Ialta tornaram caducos os planos ocidentais para a reconstruodaquela parte da Europa que passaria a integrar o mundo sovitico, porm as refle-xes amealhadas, os avanos analticos e tericos logrados foram aproveitados nodebate sobre a superao do subdesenvolvimento na sia, Amrica Latina e frica,iniciado pelas Naes Unidas logo aps a guerra. Tanto mais, que vrios protagonis-tas do grupo de trabalho mencionado acima passaram a trabalhar na Secretaria daONU e demais organizaes internacionais, como funcionrios ou consultores.

    s assim que se explica o avano extremamente rpido da teoria do desen-volvimento no perodo1950-1956, com uma safra de livros e artigos importantes,que, ao nosso ver, merecem maior ateno ainda hoje4. A estes escritos de autores,predominantemente europeus, vieram se acrescentar rapidamente os trabalhos depesquisadores indianos e latino-americanos, estes ltimos inspirados pelo trabalhopioneiro da CEPAL.

    O surgimento da teoria do desenvolvimento coincidiu, assim, com uma trans-formao radical da geopoltica mundial ocorrida entre 1940 e 1960. Como observouGeoffrey Barraclough (1964), entre 1940 e 1960 nada menos do que 40 pases comuma populao de 800 milhes mais de um quarto dos habitantes do mundo revoltaram-se contra o colonialismo e obtiveram a sua independncia : Jamais emtoda a histria da humanidade ocorrera uma inverso to revolucionria a uma talvelocidade5.

    Este perodo foi, ao mesmo tempo, profundamente marcado pela competiodos dois sistemas antagnicos em lia que se empenhavam em conquistar a prefern-cia do terceiro mundo , expresso forjada em 1955 por autores franceses6. Em quepesem, no entanto, as fundamentais diferenas polticas que separavam o bloco sovi-tico e o mundo ocidental, ambos os lados faziam um diagnstico bastante coinciden-te em relao aos desafios com que se defrontavam os pases perifricos: a necessi-dade de queimar etapas no processo de modernizao, o que exigia, antes de mais

    4 A ttulo de exemplo mencionarei livros to fundamentais como Nurkse, R. (1953), Problems ofCapital Formation in Underdeveloped Economies, Basil Blackwell, Oxford; Boeke, J.H. (1953), Economicsand Economic Policy of Dual Societies as Exemplified by Indonesia, Institute of Pacific Relations, NewYork; Mandellbaum, K. (1955), The Industrialization of Backward Areas, Basil Blackwell, Oxford;Lewis, W. A. (1956), The Theory of Economic Growth, Allen and Unwin Limited., London; Myrdel, G.(1956), An International Economy. Problems and Prospects, Harper and Brothers, New York. Pode-seincluir, ainda, outros autores que se tornaram ilustres com contribuies importantes teoria dodesenvolvimento: N. Kaldor, T. Balogh, T. Scitowsky, K. Polanyi (todos de origem hngara), os polo-neses M. Kalecki e O. Lange, os britnicos J. Robinson e M. Dobb, os franceses G. Balandier, A. Sauvye F. Perroux, os norte-americanos S. Kuznets, B. Hoselitz, H. Leibenstein, W. W. Rostoff, os indianosA. K. das Gupta, V. K.R.V. Rao, K.N. Raj, os latino-americanos R; Prebish, C. Furtado, H. Flores de laPea, e ainda T. Haavelmo, J. Timbergen, ambos futuros prmios Nobel, H. W. Singer; E. H. Jacoby.Em 1955 foi publicado o importante estudo comparativo de Kuzneti, S., Moore, W. E, Spengler, J. E.,intitulado Economic Growth: Brazil, India, Japan, Duke University Press, Durham. Uma boa partedestes autores figura na antologia sobre problemas do crescimento econmico de pases subdesen-volvidos, que organizei em 1956 junto com J. Zdanowicz e que foi publicada em polons em 1958.(Problemy wzrostu ekonomicz nego krajow slabo rozwinietych, PWE, Varsvia, 671 pginas).5 Citado a partir da traduo brasileira (Introduo histria contempornea, Editora Guanabara, Riode Janeiro, 5a Edio, 1987, p. 147).6 Balandier, G., (sous la direction de), 1956, Le tiers monde sous-dveloppement et dveloppement,INED, Paris.

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    nada, uma forte acelerao do ritmo de crescimento econmico, puxado pela indus-trializao e ajudado por reformas agrrias7. O princpio de proteo s indstriasnascentes fazia parte do consenso, da mesma maneira que o planejamento.

    que, com as memrias ainda vivas da grande depresso e das terrveis sequelasda guerra e a preocupao de contrapor um modelo eficiente ao modelo sovitico8, ocapitalismo reformado do Ps-guerra colocava o pleno emprego como objetivo cen-tral do crescimento econmico, dando uma grande nfase previdncia social (oWelfare State), e adotava o planejamento como o mtodo de conduo do processode desenvolvimento. Quando, ainda em plena guerra, Von Hayek escreveu a sua ditribecontra o planejamento9 ele estava isolado numa posio de dissidncia. A necessida-de de planejar era reconhecida por todos. O prprio governo norte-americano chegoua exigir, no comeo da dcada de 60, dos pases participantes da Aliana para oProgresso, que preparassem planos de desenvolvimento.

    Os dois lados acenavam aos pases perifricos com uma promessa otimista. Aoseguirem o receiturio proposto, conseguiriam reduzir em poucas dcadas a distnciaque os separava dos pases mais desenvolvidos. O bloco sovitico reclamava a expe-rincia da URSS para apregoar a superioridade do socialismo como o nico sistemacapaz de acelerar a histria e superar o sudesenvolvimento, no espao de uma gera-o, pela gesto coletiva das foras de produo. O capitalismo reformado atribua asmesmas virtudes a uma economia mista e dirigida, com preponderncia de mercadodevidamente regulado, destacando o papel dos empresrios schumpeterianos.

    No plano epistemolgico, os receiturios propostos por ambos os lados padeciamdo economicismo, ou seja, sobreestimavam o papel do crescimento econmico noprocesso de desenvolvimento - no que este possa ocorrer sem crescimento econ-mico, sua condio necessria porm no suficiente. Outrossim, ambos compartilha-vam a f nas virtudes do mimetismo, convidando os pases perifricos a trilhar traje-trias percorridas pelos pases j industrializados e, no caso do bloco sovitico, emvias de industrializao acelerada. O conceito de desenvolvimento endgeno estavaainda por ser inventado.

    As referncias aos aspectos no econmicos do desenvolvimento eram, emgrande parte, retricas, embora vrios autores tenham insistido sobre a relevnciadas instituies. Coube a Myrdal a observao de que a distino entre fatores econ-micos e no econmicos era, afinal de contas, irrelevante. Era melhor distinguir osfatores relevantes e no relevantes.

    Nas dcadas subsequentes, a idia do desenvolvimento evoluiu no sentido dacomplexificao crescente, transformando-se num conceito pluridimensional, median-te acrscimo dimenso econmica as dimenses social, poltica, cultural e ambiental.

    O reconhecimento da dimenso ambiental, ocorrido no comeo da dcada de7010, constituiu um marco importante. As Naes Unidas passaram a trabalhar com oconceito de eco-desenvolvimento, mais tarde rebatizado como desenvolvimento sus-tentvel, baseado no trip de objetivos sociais, condicionalidade ambiental e viabili-

    7 Convm lembrar que as foras de ocupao norte-americanas no Japo derrotado impuseram que-le pas uma reforma agrria, que aconteceu tambm em Taiwan e na Coria do Sul. Havia consensosobre a necessidade de superar as anacrnicas estruturas de propriedade e relaes de produo nocampo. As divergncias entre os dois blocos giravam ao redor do grau de radicalismo das reformas eda questo se, e como, os latifundirios deveriam ser indenizados.8 Outra vez, preciso entender o contexto histrico no qual estvamos no imediato ps-guerra: aosolhos de uma grande parte da opinio pblica mundial, o modelo sovitico estava dando provas deeficincia econmica e social, ao passo que o capitalismo carregava a pecha da grande crise e dassuas consequncias polticas. Como escreveu E. H. Carr (The Soviet Impact in the Western World,Londres, 1946, p. 44): Se todos somos agora planejadores, isso em grande parte o resultado,consciente ou inconsciente, do impacto da prtica e da realizao soviticas., citado por Barraclough,op. cit., p. 209.9 The Road to Serfdom, Londres, 1944.10 A primeira conferncia das Naes Unidas sobre o meio-ambiente reuniu-se em Estocolmo emjunho de 1972, tendo sida precedida por um importante seminrio sobre o meio-ambiente e o desen-volvimento realizado em junho de 1971 em Founex, na Suia. Ver sobre a histria do conceito dedesenvolvimento sustentvel Zacca, E. (2002), Le dveloppement durable, dynamiques et constitutiondun projet, Presses Interuniversitaires Europennes, Bruxelas.

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    dade econmica. Desta maneira, foi reintroduzido no debate sobre o crescimentoeconmico o seu substrato material do qual as cincias sociais se abstraam. As no-es de tempo e de espao sofreram tambm uma profunda modificao. Passamos atrabalhar com escalas de tempo e de espao mltiplas.

    Com a importncia dada aos impactos sociais e ambientais do crescimentoeconmico, tornou-se claro que o desenvolvimento era um conceito muito maisabrangente do que o crescimento econmico. Na realidade, este podia sustentar tan-to o desenvolvimento autntico, caracterizado por situaes triplamente positivas nosplanos social, ambiental e econmico, quanto diferentes modalidades de mau-de-senvolvimento (maldveloppement), no qual o crescimento econmico, mesmo for-te, se traduzia em impactos sociais e/ou ambientais negativos.

    Nos assim chamados trinta anos gloriosos 1945-1975, os pases ocidentaisconheceram um crescimento econmico razovel e quase pleno emprego, porm osimpactos ambientais foram catastrficos. A revoluo ambiental surgiu comoconsequncia desta situao. Da mesma maneira, podemos imaginar um crescimentoeconmico ambientalmente bengno porm acompanhado de alto desemprego e fe-nmenos de excluso social. O crescimento, mesmo forte, pode ser socialmente per-verso, alguns falam de crescimento empobrecedor (immiserising growth), comoaconteceu nos anos do milagre brasileiro. Justifica-se, assim, a introduo, ao ladodo conceito de desenvolvimento triplamente vencedor, do conceito de mau desen-volvimento ou, ainda, adaptando uma idia de Clifford Geertz, de involuo 11.

    Portanto, para caracterizar e avaliar o desenvolvimento, torna-se necessriousar uma bateria de indicadores alm da taxa do crescimento do PIB. No legtimofalar em desenvolvimento se, concomitantemente com o crescimento econmico, ocor-rem deterioraes com respeito ao emprego, pobreza e s desigualdades sociais12.Da mesma maneira um crescimento baseado na apropriao predatria dos recursosnaturais e caracterizado por altos nveis de emisso poluente no se enquadra noconceito de desenvolvimento13.

    A revoluo ambiental e a sua internalizao no debate socio-econmicoabriu uma caixa de Pandora de questes que passaram a integrar a temtica dodesenvolvimento, a comear pela redefinio dos seus objetivos. O qualitativo foireabilitado, introduzindo conceitos como o duplo compromisso tico de solidariedadesincrnica com a gerao presente e de solidariedade diacrnica com as geraesfuturas, estilos de desenvolvimento e qualidade de vida.

    As metas quantitativas do crescimento econmico e do consumo material dei-xaram de ser consideradas como um objetivo em si, passando a ser tratadas comoum meio evidentemente necessrio, porm insuficiente para promover o desenvolvi-mento encarado como o processo de criao de uma civilizao do ser na partilhaequitativa do ter, na formulao lapidar de J. Lebret.

    O objetivo central passa a ser a satisfao das necessidades humanas funda-mentais, que no devem, no entanto, ser identificadas por estudos tecnocrticos esim autodefinidas pelas sociedades humanas, num processo democrtico, a partir deuma anlise das potencialidades do seu meio e dos seus anseios. O desenvolvimentono resulta da transposio mimtica de experincias alheias e, sim, de um esforoendgeno baseado na auto-confiana (self-reliance14).

    11 Em ingls podemos falar de growth with dedevelopment.12 O Instituto Mundial de Pesquisas sobre a Economia do Desenvolvimento da Universidade das Na-es Unidas (Wider/UNU) acaba de lanar trs importantes estudos sobre as desigualdades que aspolticas de liberalizao domstica e de abertura unilateral e excessiva, preconizadas pelo Consensode Washington, tanto agravaram: Inequality: Growth and Poverty in an era of Globalization andLiberalization (Edited by Giovanni Andre Cornia); Growth, Inequality and Poverty: Prospects for Pro-Poor Economic Development (Edited b Anthony Shorrocks and Rolph van der Hoeven) e Perspectiveson Growth and Poverty (Edited by Rolph van der Hoeven e Anthony Shorrocks).13 A escolha dos indicadores de impactos ambientais do crescimento econmico sobre os sistemasvitais do planeta (clima, solo, gua etc.) mais complexa do que no caso de indicadores sociais, e objeto de uma extensa literatura que no ser discutida neste trabalho.14 A palavra self-reliance se traduz dificilmente para as lnguas latinas. O termo autoconfiana,proposto por Fernando Henrique Cardoso no abarca todas as dimenses deste conceito, que remete autonomia do processo decisrio e insiste sobre a virtude de contar sobre as suas prprias foras, oque no deve ser confundido com autarquia.

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    Por ocasio da stima sesso extraordinria da Assemblia Geral das NaesUnidas, convocada em 1975 para discutir a Nova Ordem Econmica Internacional, afundao sueca Dag Hammarskjld publicou um relatrio sobre o desenvolvimento ea cooperao internacional intitulado Que fazer , um verdadeiro manifesto emfavor do desenvolvimento alternativo, baseado em cinco pilares15. O desenvolvimen-to, como j dissemos, devia ser endgeno por oposio ao mimtico, auto-confian-te e autnomo no processo decisrio por oposio ao dependente, operando a partirda lgica das necessidades e no do mercado (da demanda efetiva), refletindodiretamente sobre valores de uso sem passar pelos valores de troca, proceder emharmonia com a natureza e estar aberto ao cmbio institucional. Um dos postu-lados centrais do relatrio era o estreitamento das relaes entre os pases do tercei-ro mundo com vistas a uma self-reliance coletiva, que passava inclusive pelacriao de um sindicato dos pases pobres e de uma OCDE do Sul.

    Trinta anos mais tarde o relatrio-manifesto no perdeu a sua atualidade (o queno significa que no necessite de um aggiornamento)16, a julgar pelo fato que as conclu-ses do relatrio da ONG ATTAC, publicado em 2004, discutindo o futuro do desenvolvi-mento17, se assemelham em muitos pontos com os postulados do Que fazer .

    A Fundao Internacional para Alternativas de Desenvolvimento18 (FIPAD) sur-giu como um desdobramento do Que fazer . As atividades desenvolvidas por essaFundao e seus dossis, que chegaram a circular em mais de 20 mil exemplares,funcionaram sem dvida como o mais importante frum para aprofundar e ampliar areflexo sobre alternativas de desenvolvimento iniciada por Que fazer . A suacontribuio mais significativa foi a reflexo sobre a emergncia da sociedade civilorganizada como o terceiro sistema do poder. A FIPAD se empenhou, a partir de 1978,num grande projeto sobre a participao do Terceiro sistema na elaborao eimplementao de uma estratgia de desenvolvimento das Naes Unidas para adcada de 80 e alm, cujas principais concluses foram resumidas num artigo semi-nal de Marc Nerfin intitulado Nem prncipe nem mercador: o cidado Uma introdu-o ao terceiro sistema19.

    Sem dvida, a reflexo desenvolvida pela FIPAD trilhou o caminho para aredefinio, nos anos 90, do conceito de desenvolvimento como efetivao euniversalizao do conjunto dos direitos humanos, das assim chamadas trs geraesde direitos direitos polticos, civis e cvicos; direitos econmicos, sociais e culturais;direitos coletivos como o direito ao meio- ambiente, infncia etc20.

    Este breve sobrevo da evoluo do conceito de desenvolvimento mostra comoele se complexificou e enriqueceu neste meio sculo. Uma das consequncias desteprocesso foi o alongamento da litania de adjetivos agregados ao substantivo. Da atendncia de cort-los e falar do desenvolvimento como conceito pluridimensional ouainda de desenvolvimento integral21. Porm o mrito dos adjetivos, quando usados

    15 O relatrio foi publicado em vrias lnguas, como nmero especial da revista Development Dialogue.O diretor do projeto foi Marc Nerfin e os conselheiros principais Ahmed Ben Salah, Juan Somava e oautor deste trabalho.16 Por exemplo, trabalhos recentes sobre a gesto de bacias hdricas mostraram que possvel dese-nhar sistemas mistos que se pautam em parte pela lgica das necessidades e em parte pela lgica demercado. Pesquisadores indianos propuseram que os volumes de gua necessrios manuteno daboa sade do ecossistema e satisfao das necessidades em gua potvel para as populaesribeirinhas fossem administrados fora da economia de mercado (comunicao pessoal de ShekharSingh).17 ATTAC (2004), Le dveloppement a-t-il un avenir? Pour une socit conome et solidaire, Coordinationet redaction de Jean-Marie Harribey, Mille et une nuits, Paris.18 Marc Nerfin, diretor do projeto da Fundao Dag Hammarskjld, assumiu a presidncia da novaFundao. Fernando Henrique Cardoso participou ativamente dos trabalhos da Fundao e foi, a umcerto momento, o seu co-chairman.19 IFDA Dossier 56, Novembro-Dezembro, 1986.20 Ver Sachs, I. (1998), Desenvolvimento enquanto apropriao dos direitos humanos, in EstudosAvanados, So Paulo, vol. 12, N 33, pp. 149-156.21 Em francs tout-dveloppement , uma maneira de reatar com uma belssima definio do desen-volvimento proposta por Jacques Maritain e citada por Rubens Ricpero na sua conferncia RaulPrebisch, pronunciada na Unctad no dia 14 de setembro de 2004 : a promoo de todos os homense do homem todo (tous les hommes et tout lhomme).

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    seletivamente, de apontar as dimenses julgadas mais pertinentes no momento. Aoaceitar-se esta ltima regra do jogo, podemos considerar que, no termo de meiosculo de transformaes, convm acompanhar o conceito de desenvolvimento dostrs eptetos seguintes: (socialmente) includente, (ambientalmente) sustentvel,(economicamente) sustentado22.

    Em outras palavras, o desenvolvimento deve ser abordado no apenas pelo pris-ma do crescimento do PIB, mas, tambm, pela tica de gerao em nmeros suficien-tes de oportunidades de trabalho decente, na terminologia da OIT (ou seja, razoavelemtneremunerado e com relaes e condies de trabalho dignas), j que o trabalho decenteconstitui a principal ponte entre o econmico e o social. A condicionalidade ecolgicadeve ser explicitada e respeitada se queremos legar s geraes futuras um planetahabitvel. Ao duplo postulado tico de solidariedade sincrnica com as geraes pre-sentes e diacrnica com as geraes futuras, devemos, por fim, acrescentar o postula-do de vialibidade econmica e de crescimento regular da economia para evitar asvariaes bruscas de conjuntura (stop and go). obvio que o crescimento material nopoder ser continuado indefinidamente por causa da finitude do nosso planeta. Masenquanto persistirem as abismais diferenas sociais entre pases e dentro dos pases eestivermos ainda longe da repartio equitativa do ter, o crescimento ecologicamenteprudente deve ser continuado. At quando? Isto depender da nossa capacidade deconseguir a homogeneizao relativa das condies de vida das populaes do planeta,mediante uma reduo drstica das desigualdades sociais23.

    Assim construdo, o conceito de desenvolvimento/mau-desenvolvimento,configura o campo das situaes concretas intermedirias que combinam elementosde desenvolvimento e de mau-desenvolvimento em propores variveis24 e permiteque se faam juzos de valor a respeito de trajetrias histricas.

    Da mesma maneira, a partir deste marco conceitual, possvel construir proje-tos voltados para o futuro, sempre usando o desenvolvimento como norma e o mau-desenvolvimento como o desempenho a evitar.

    DOS CONCEITOS REALIDADE: OS CAMINHOS EDESCAMINHOS DO DESENVOLVIMENTISMO

    Transformado em ideologia, o conceito de desenvolvimento deu origem s doutri-nas de desenvolvimentismo, que tiveram sua poca de glria seguida de desencanta-mento. Este, em parte, pode ser imputado s prticas de voluntarismo excessivo e spromessas no cumpridas de um estadismo que, em vrios pases, degenerou em fen-menos de privatizao do Estado, embora as crticas formuladas ao desenvolvimentismopelos seus detratores, adeptos do fundamentalismo do mercado, sejam exageradas25.Este no o lugar de proceder a uma anlise minunciosa dos avanos e retrocessos dosdiferentes matizes do desenvolvimentismo nos ltimos 50 anos. Esta anlise deve serfeita por historiadores do desenvolvimento, numa perspectiva comparativa.

    Antecipando sobre os resultados desta anlise, nos limitaremos a registar aquio fracasso ou, pelo menos, o insucesso dos principais paradigmas de crescimentoeconmico e de desenvolvimento que foram aplicados neste perodo.

    O socialismo real (ou seja, o paradigma posto em prtica nos pases dobloco sovitico) entrou em agonia em 1968, quando, ao invadirem a

    22 Ver Sachs, I. (2004) Desenvolvimento includente, sustentvel e sustentado, Editora Garamond, Riode Janeiro, no prelo.23 O modelo latino-americano construdo pelo grupo de Bariloche em resposta ao relatrio do Clube deRoma Limits to Growth argumentou, com razo, que o volume do PIB mundial necessrio para satis-fazer as necessidades bsicas de todos os habitantes do planeta dependeria do grau de audcia daspolticas destinadas a reduzir as desigualdades sociais.24 O pior dos mundos representado por situaes de crescimento negativo do PIB combinado comimpactos sociais e ambientais tambm negativos, ou seja, pela ausncia de desenvolvimento ou a suaregresso franca.25 O debate recente no Brasil sobre o legado de Getlio Vargas foi sob este ponto de vista emblemtico.

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    Tchecoslovquia, os tanques soviticos puseram um termo ltima tentativa deconstruir um regime socialista com rosto humano , e morreu com a queda domuro de Berlim. H quem acredite, ainda, no potencial de socialismo de merca-do na sua verso chinesa, que, no entanto, mais e mais se assemelha a umcapitalismo vermelho26 .

    O capitalismo reformado, que tanto prosperou no mundo ocidental durante ostrinta anos gloriosos tambm chamados de idade de ouro do capitalismo (1945-1975), em base ao trinmio pleno emprego/estado do bem-estar social/planejamen-to, deixou de ser interessante aos olhos dos capitalistas na dcada de 70, quando aalternativa socialista representada pelo bloco sovitico perdeu a sua credibilidade.

    A contra-reforma neo-liberal, que tomou a forma do Consenso de Washingtonem relao aos pases perifricos, no cumpriu as suas promessas. A economia mun-dial desacelerou e quase todos os pases perifricos sofreram retrocessos sociais gra-ves. O desemprego, o subemprego e a excluso social explodiram, as desigualdadessociais se aguaram, no s nos pases perifricos27. O que o Consenso de Washingtonconseguiu foi freiar o desenvolvimento dos assim chamados NICs (pases novamenteindustrializados), cuja concorrncia tornara-se preocupante aos pases do centro, eimpedir que outros pases perifricos seguissem o seu exemplo28.

    Em realidade, registrou-se um forte contraste no desempenho econmico dospases perifricos que aplicaram o receiturio do Consenso de Washington este foi ocaso do Brasil e da maioria dos pases Latino-Americanos e o grupo de pases asi-ticos que no entrou cegamente no jogo e conseguiu, assim, evitar o desastre29. Esteatingiu o seu ponto culminante na Argentina. Em certo sentido, a descida da Argenti-na ao inferno significou para o Consenso de Washington o que a queda do muro deBerlim representou para o paradigma do socialismo real (sem que os fundamentalistasdo mercado tenham renunciado ao seu discurso).

    Uma questo polmica diz respeito incapacidade dos social-democratas eu-ropeus de resistirem contra-reforma liberal, mesmo nos pases em que estavamou esto no poder, apesar da retrica da Terceira via30 . Proclamar a recusa dasociedade de mercado ao aceitar incondicionalmente a economia de mercado ,como mostra a experincia, uma contradio em termos, que pesa sobre o futuro daUnio Europia.

    A enumerao dos paradigmas falidos, descartados ou esgotados, no seriacompleta sem individualizar o caso de crescimento econmico rpido, sustentado pordesigualdades sociais crescentes, em parte disfaradas pelo recurso inflao paratratar os conflitos distributivos, como ocorreu no Brasil nos anos do milagre . Esteparadigma foi bem sucedido em termos de ritmo de crescimento do PIB e de transfor-mao da estrutura produtiva atravs da industrializao rpida, que resultou nacriao de um aparelho de produo completo, dotado inclusive de uma importanteindstria de bens de capital. O fato de se tratar de um pas de tamanho continentalcontribuiu para esta transformao, que trazia, no entanto, no seu bojo, conflitos

    26 Um amigo meu, numa visita recente China, topou com uma estalagem chamada de Capitalismovermelho. No sei se o seu dono era cientista social.27 Para uma anlise dos efeitos sociais deletrios do Consenso de Washington, veja-se entre outros obem documentado informe da OIT, ILO (2004): Economic security for a better world, Genebra e ostrs volumes j citados do Wider.28 Veja-se sobre este ponto a anlise de Luiz Carlos Bresser Pereira (citada a partir da palestrarealizada por ele em Paris no dia 21 de setembro de 2004).29 J. Stiglitz, na poca ainda economista-chefe do Banco Mundial, foi um dos primeiros crticos doConsenso de Washington.30 Uma verdadeira tentativa de terceira via aconteceu na ndia sob a inspirao de J. Nehru, com aimplantao de uma democracia calcada no exemplo britnico, junto com uma economia planejadaque adaptou o modelo de planejamento sovitico e atribuiu um papel determinante no processo dedesenvolvimento ao setor pblico. O modelo indiano de capitalismo de Estado era bem diferente domodelo de intervencionismo, posto em prtica no Japo e voltado ao fortalecimento dos empresriosprivados. Para uma anlise destes dois modelos, veja-se I. Sachs (1963), Patterns of Public Sector inUnderdeveloped Economies, Asia Publishing House, New Delhi; traduo portuguesa sob o ttulo Ca-pitalismo do Estado e desenvolvimento: padres de setor pblico em economias subdesenvolvidas,Ed. Vozes Limitada, 1969, Petropolis, RJ.

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    sociais e danos ambientais que explicam, em boa parte, a quase estagnao da eco-nomia brasileira no ltimo quartel de sculo, em violento contraste com o desempe-nho nas dcadas 1930-1980.

    O caso brasileiro paradigmtico, na medida em que o crescimento econmi-co rpido, sustentado por desigualdades sociais crescentes, est ocorrendo hoje emdois pases continentais, atuais campees da taxa de crescimento do PIB, ou seja, aChina e a ndia.

    Os avanos epistemolgicos no aperfeioamento do conceito de desenvolvi-mento descritos na primeira parte deste estudo se contrapem assim a um balanodecepcionante das trajetrias histricas da maioria dos pases perifricos neste meiosculo, pendendo mais para o mau-desenvolvimento do que para o desenvolvimentoautntico. luz desta constatao, compreende-se o desencanto das vtimas desteprocesso de mau-desenvolvimento e a crtica severa dirigida contra as polticas nacio-nais e internacionais, postas em prtica, ineficincia, para no dizer perfdia, dosmecanismos de ajuda dos pases industrializados aos pases perifricos e ao fracassodas sucessivas dcadas de desenvolvimento promovidas pela ONU, da qual oltimo avatar so as Metas do Milnio.

    Isto no significa, porm, que devamos abandonar o instrumentrio intelectualelaborado ao redor do conceito de desenvolvimento e esquecer o seu papel normativo,como postulam os partidrios de anti-ps-desenvolvimento e de decrescimento (dcroissance), particularmente vocais na praa de Paris31. Na realidade, as investidascontra o conceito de desenvolvimento vm de duas fontes: por um lado, esto osdesencantados pela falta de progresso e pela quebra das promessas feitas aos pasesperifricos e s massas deserdadas, e, por outro, os fundamentalistas verdes, partid-rios da ecologia profunda e adversrios de crescimento econmico como tal. Naprtica, as duas correntes convergem com a posio dos economistas neoliberais que,por acreditarem numa economia ahistrica e atpica, universalmente vlida, e auto-administrada pelo mercado, tratam o desenvolvimento como um conceito redundante.

    Em vez de abandonarmos o conceito de desenvolvimento aos seus detratores,devemos desfraldar a bandeira de um novo desenvolvimentismo32 na busca deprojetos nacionais de desenvolvimento, articulados ao redor da identidade nacional evoltados para a promoo do desenvolvimento de todo o homem e de todos os ho-mens, ou seja, o processo de ampliao das escolhas para que pessoas faam ousejam o que elas prezam na vida33 . Para tanto, necessrio promover um exercciodemocrtico de voluntarismo responsvel, retomando a construo interrompida dosEstados-naes34, os quais tm ainda um longo futuro pela frente, ao contrrio do queproclamam os idelogos do globalismo.

    Jean-Paul Sartre dizia que o homem um projeto. A fortiori a sociedade huma-na deve aspirar a se dotar de um projeto. Como observou L. Mumford, as faculdadesde comunicao lingustica e de sonho deram ao homem um instrumento de antecipa-o, de inveno, de projeo, de transformao criadora e de verdadeira conscinciaantecipadora, transformando-o no mais plstico dos animais, nica espcie a viversimultaneamente num meio fsico e simblico35.

    31 Para uma refutao das suas teses, veja-se o livro j citado de ATTAC.32 o ttulo de um artigo de Luiz Carlos Bresser Pereira, publicado na Folha de So Paulo no dia 20 desetembro de 2004.33 UNDP (2004), Cultural Liberty in Todays Diverse World, p. 6: Human development is the processof widening choices for people to do and be what they value in life.34 Um dos livros de Celso Furtado tem como ttulo A construo interrompida.35 Mumford, L. (1974), La transformation de lhomme, Paris, Payot. Veja-se tambm Rapaport, A.(1974), Conflict in Man-made Environment, Harmondsworth, Penguin Books, p. 51: Uma casa nopassa de um ninho complicado. Uma auto-estrada uma trilha de vaca amelhorada. Uma represahidroeltrica assemelha-se a uma empresa de castores. Uma rede de pescador corresponde a umatela de aranha. Mas o outro ambiente, o simblico, no tem anlago no mundo no-humano. Entre osanimais no existem precursores de poemas picos, de monumentos, de cotaes de bolsas, demarchas de protesto, de credos, de astronomia ou de astrologia.

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    Desenvolvimento e Cultura. Desenvolvimento da Cultura. Cultura do Desenvolvimento

    A DIMENSO CULTURAL DOPROJETO NACIONAL

    A formulao de um projeto nacional de desenvolvimento implica um processode inveno do futuro, o que o torna naturalmente tributrio da cultura. Celso Furtadotem insistido, com razo, sobre esta articulao entre os dois conceitos centrais dascincias sociais contemporneas. Tanto mais que o projeto nacional transcende, porfundamentais que sejam, as questes da transformao produtiva, da gerao deoportunidades de trabalho decente e da ocupao territorial; ou melhor, as relacionacom as escolhas de estilos de vida, as maneiras de habitar o tempo36, de produzir oconsumo37, de ser, de conviver, de brincar38. No s de po vive o homem. Como disseRen Dubos alm da satisfao puramente orgnica que os animais experimentam,existe uma outra forma da alegria de viver a felicidade esta aparentemente reser-vada aos seres humanos39.

    A formulao do projeto indissolvel da consolidao da identidade nacional,cimentada pela cultura comum. Na viso de Amilcar Cabral, a libertao nacional era,necessariamente, um ato de cultura, na medida em que o domnio imperialista tevecomo necessidade vital praticar a opresso cultural40. Por analogia, o desenvolvimen-to nacional necessariamente um ato de cultura e s faz sentido quando parte darealidade de cada nao, outra idia-fora de Amilcar Cabral.

    Voltamos aqui ao primeiro postulado do Que fazer , o desenvolvimento deveser endgeno, o que no significa autrquico ou fechado s mestiagens fecundas.Como diz Mia Couto a respeito da frica, mas a idia vale certamente para o Brasil onosso continente feito de profunda diversidade e de complexas mestiagenspoisno h cultura humana que no se fundamente em profundas trocas de alma41. E oautor explica como esta mestiagem se faz:

    A capulana pode ter origem exterior, mas moambicana pelo modo que aamarramos. E pelo modo como este pano passou a falar conosco. O coco indonsio, a madioca mais latino-americana que a Jennifer Lopez, mas oprato que preparamos nosso, porque o fomos caldeando nossa maneira.

    O potencial de desenvolvimento de um pas depende, em primeira instncia, dasua capacidade de se pensar; em segunda, da sua habilidade de colocar em obra oprojeto; e, s em ltima instncia, do grau de desenvolvimento do seu aparelhoprodutivo. Mia Couto tem razo ao dizer que o maior empobrecimento provm dafalta de idias, da eroso da criatividade e da ausncia interna do debate. Mais do quepobres, tornamo-nos infrteis, lamentando a falta, em Moambique, da capacidadede gerar um pensamento original e soberano, que no anda a reboque daquilo queoutros j pensaram.

    Neste apelo em favor do desenvolvimento endgeno ele no est isolado. Faze-mos nosso e extrapolamos para alm da frica o programa proposto por A.D. Traor:

    para domesticar o desenvolvimento, ou seja, parar de fazer com que sejaum instrumento de transformao social, econmica e poltica, em nossoprejuzo, torna-se essencial de pens-lo e de pratic-lo em funo do quesabemos fazer com os recursos que esto nossa disposio, numa pers-

    36 Habiter le temps o ttulo de um belo livro de Jean Cheneaux (1996), Bayard, Paris, que exploravrios aspectos da temporalidade e convida a pensar o tempo como o alicerce constitutivo da condiohumana. Ver tambm Le temps et les cultures, Unesco, 1976, Paris.37 Michel de Certeau estudou, no seu livro Linvention du quotidian (UGE, Paris, 1978), as diversasprticas e formas de produo do consumo quotidiano.38 Convm lembrar aqui a obra de J. Huizinga (1972), Homo ludens: Essai sur la fonction sociale dujeu, Gallimard, Paris, sobre a funo didtica e no apenas ldica do jogo. Ao brincar no s brinca-mos mas aprendemos a ser homens.39 Dubos, R. (1977), Choisir dtre humain, Denoel, Paris, p. 206.40 Cabral, A. (1999), Nacionalismo e cultura, Edies Laiovento, Santiago de Compostela.41 Couto, M. A fronteira da cultura, Espao frica, Setembro/Novembro 2003, pp. 95-102.

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    pectiva que nos prpria ou pelo menos na qual nos reconhecemos. Cadaaspecto de nossa existncia se presta a este trabalho de redefinio e dereorientao: a educao, a sade, a alimentao, a moradia, o vesturio, oEstado, a governana, a descentralizao, a democracia e, sem dvida, aluta contra a pobreza.42

    Michel de Certeau, autor de um livro intitulado A cultura no plural43, distin-guiu seis empregos diferentes da palavra cultura. Para operacionalizar a interfaceentre o desenvolvimento e a cultura, conceito eminentemente polissmico, nos con-tentaremos com trs facetas da cultura:

    A CULTURA SEGUNDO OS ANTROPLOGOS

    Para os antroplogos a cultura se define como o complexo que inclui conheci-mentos, crenas, arte, moral, leis, costumes, ou qualquer outra capacidade ou hbi-tos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade44 ou ainda o conjuntodas prticas, das tcnicas, dos smbolos e dos valores que se devem transmitir snovas geraes para garantir a reproduo de um estado de coexistncia social45 . Acultura assim definida contm, na interpretao de Alfredo Bosi, a idia do porvir, adimenso de projeto, implcita no mito de Prometeu.

    Na leitura de De Certeau, a cultura se afigura como um conjunto das prticascotidianas e mltiplas artes de fazer, combinatrias das operaes dos usurios (con-sumidores), do uso subversivo que fazem dos objetos e da apropriao do espao46.Ao realar essa criatividade cotidiana da cultura popular, o autor pe em guarda con-tra a ameaa que pesa sobre ela, em virtude da ao colonizadora da mdia, queimpe padres passivos de consumo e assim transfoma o povo em pblico 47.

    claro que a palavra cultura deve ser usada no plural e analisada na sua evo-luo contnua. Vrias culturas e contraculturas48 coexistem na cultura nacional, dan-do lugar mestiagem j mencionada, mas gerando tambm conflitos, atritos e atexcluses, que as sociedades multiculturais, frequentemente, enfrentam. Por isso, aexpanso das liberdades culturais, parte dos direitos humanos fundamentais, consti-tui-se num dos objetivos fundamentais do desenvolvimento, como destaca o Relat-

    42 Traor, A. D. (1999), Lteau lAfrique dans un monde sans frontires, Actes Sud, p. 137. Veja-setambm o livro do grande historiador africano Joseph Ki-Zerbo (2003), A quand lAfrique? Entretienavec Ren Holenstein, Editions de lAube, La Tour dAigues.43 La culture au pluriel, 1993, Seuil, Paris, pp. 167-170.44 Sobre esta definio formulada por Edward Tylor, em 1871 e publicada no seu livro PrimitiveCulture, citada aqui na traduo de Roque de Barros Laraia (2004, 17a edio), Cultura, um conceitoantropolgico, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, p 25, diferentes escolas de antropologia propuse-ram inmeras variaes. Ver em particular A. L. Kroeber e C. Kluckholn (sem data), Culture. A criticalreview of concepts and definitions, A Vintage Book, New York; Benedict, R (1934), Patterns of Culture,The Riverside Press, Cambridge, Massachussets; Firth, R., editor (1964), Man and Culture, an Evaluationof the Work of Bronlislaw Malinowski, Harper and Row, New York e Kroeber, A.L. (1969), El estilo y laevolucin de la cultura, Ed. Guadarrama, Madrid. No posso deixar de registrar aqui a minha dvidapessoal com o livro de S. Czarnowski, discpulo de Durkheim, 1938, Kultura, reproduzido em obrascompletas do autor, Studia z historii kultury, volume I, 1956, PWN, Varsvia.45 Alfredo Bosi, Dialtica da colonizao, Companhia das Letras, So Paulo, 1996, p. 16.46 O estudo do homem no seu cotidiano nos remete histria etnolgica, que tanto se desenvolveusob o impulso da escola histrica dos Annales. Veja-se Le Goff, J. (1973) Lhistorien et lhommequotidien in Melanges, en lhonneur de Fernand Braudel, tome II, pp. 233-243 e Burguire, A. (1988),L anthropologie historique, in Le Goff, J. (sous la direction de), La nouvelle histoire, Editions Complexe,Bruxelas, P. 137-163. Burguire observa que, embora recente, esta disciplina teve precursores nahistoriografia do sculo XVIII e cita Legrand dAussy, Histoire de la vie prive des Franais, publicadaem 1782.47 Este tema foi retomado no contexto brasileiro num artigo recente pelo embaixador Samuel PinheiroGuimares (Macunama, subdesenvolvimento e cultura, mimeo, setembro, 2004). O texto aponta avulnerabilidade ideological potencializada pela hegemonia cultural das grandes potncias e a conscin-cia colonizada das elites dirigentes tradicionais. Insiste sobre a auto-estima como componente funda-mental do projeto nacional.48 Ver Roszak, Th. (1968), The Making of a Counter Culture, Doubleday and Co., New York.

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    Desenvolvimento e Cultura. Desenvolvimento da Cultura. Cultura do Desenvolvimento

    rio do PNUD sobre o Desenvolvimento Humano 200449. O multiculturalismo baseadona liberdade cultural, que nada tem a ver com o apego tradio petrificada, leva auma perspectiva diametralmente oposta s teses de Samuel Hutington sobre o cho-que das civilizaes e a superioridade da cultura branca50.

    A cultura, segundo os antroplogos, um conceito holstico. Porm, no seubojo surgem culturas particulares que caracterizam a maneira de exercer certas pro-fisses e funes sociais, assim falamos da cultura jurdica, econmica, poltica etc.Por extenso, pode-se falar da cultura do desenvolvimento, assunto ao qualretornaremos na parte final deste trabalho.

    CULTURA E NATUREZA

    A segunda dimenso da cultura pertinente para o nosso propsito aquela dosconhecimentos acumulados pelas sociedades humanas sobre o meio-ambiente emque vivem e do qual extraem os seus meios de vida (na definio de Karl Polanyi,livelihoods), num relacionamento idealmente simbitico entre a humanidade e a na-tureza51 que, na prtica, se traduz muitas vezes pela apropriao predatria dos re-cursos naturais.

    A histria da cultura material teve um notvel desenvolvimento nas ltimasdcadas. Outra vez a cole des Annales se destacou. Fernand Braudel deu a primeiragrande sntese da histria da cultura material dos sculos XV-XVIII, no volume da suamonumental obra sobre a civilizao material, economia e capitalismo, dedicado sestruturas do cotidiano52.

    O conceito de recurso natural um conceito histrico e cultural: o conheci-mento que leva a transformar elementos do meio ambiente em recursos para umaproduo considerada til. recurso hoje o que no era recurso ontem, ser recursoamanh o que no ainda recurso hoje e assim por diante. As estratgias de desen-volvimento devem sempre ser intensivas em conhecimento, outro vnculo com a cul-tura. Um pas como o Brasil deve ser esforar por definir estratgias intensivas emconhecimento e em mo de obra e poupadoras de capital e de recursos escassos. Estaequao difere da dos pases industrializados.

    Cada gerao reescreve a histria universal, colocando-lhe novas perguntas.Precisamos de uma histria ecolgica da humanidade, explorando, sistematicamente,a matriz ecossistemas/culturas de maneira a comparar a variedade das respostasdadas por diferentes culturas ao desafio constitudo por ecossistemas similares e ograu de adaptabilidade de uma cultura a diferentes ecossistemas materializados nainveno de uma enorme variedade de formas de atendimento s suas necessidadesbsicas em matria de alimentao, habitat, energia, vesturio etc.

    A compilao de uma tal matriz teria uma grande utilidade pedaggica eheurstica na busca de caminhos para o desenvolvimento ambientalmente sustent-vel. A matriz pode ser lida de duas maneiras:

    49 Uma outra dimenso, difcil de medir e mesmo de definir, vitalmente importante: a liberdadecultural central para a aptido das pessoas a viver como gostariam () A liberdade cultural dizrespeito liberdade das pessoas a escolherem as suas identidades e a levar a vida que prezam, semserem excludas de outras escolhas para elas importantes como a educao, a sade ou as oportuni-dades de emprego. Citado a partir da edio em ingls, p. 6.50 Veja-se a respeito a palestra de Carlos Lopes proferida na UFAL em setembro de 2004, O desafiotico de um desenvolvimento com diversidade. As duas obras questionadas de S. Hutington so: TheClash of Civilizations and the Remaking the World Order, 1996, Simon & Schuster, Londres e Who areWe? Americas Great Debate, Simon & Schuster, Londres.51 Ver Dubos, R. Symbiosis between man and earth, Science, volume 193, n 4252, 6 de agosto de1976.52 Braudel, F. (1979), Civilisation matrielle, conomie et capitalisme XV-XVIII sicle, tome I, Lesstructures du quotidian: le possible et limpossible, Armand Colin, Paris. Veja-se tambm o artigo doarquelogo Pesez, J-M. (1988), Histoire de la culture matrielle , in Le Goff, J. (sous la directionde), La nouvelle histoire, Editions Complexe, Bruxelles, pp. 191-227, o qual destaca as contribuiesdos arquelogos e historiadores russos e poloneses ao estudo da histria da cultura material.

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    horizontalmente, mostrando a variedade das respostas dadas aos desafios davida quotidiana por diferentes culturas vivendo em ecossistemas similares, porexemplo, comparando as culturas dos povos da floresta tropical mida na Am-rica Latina, frica, sia e Oceania;

    verticalmente, mostrando a adaptabilidade de uma cultura (por exemplo a cul-tura rabe) aos diferentes meios naturais (do litoral atlntico at a Indonsia,passando pelo Saara).A partir dos conhecimentos, assim articulados, poderia-se definir linhas de co-

    operao internacional entre pases que compartilham ecossistemas semelhantes eexplorar novas respostas aos desafios de sempre, pautadas no princpio de prudnciaecolgica e no conceito de possibilismo cultural, rejeitando os determinismos geogr-ficos rgidos. Nesta perspectiva, os pases tropicais constituem, no dizer de PierreGourou, terras de boa esperana mais do que tristes trpicos 53.

    CULTURA COMO ATIVIDADE CRIADORA

    A palavra cultura refere-se tambm ao conjunto das atividades criadoras eartsticas no mbito das artes eruditas e populares e das prticas ldicas.

    Pelo que j foi dito, trata-se de um setor da maior importncia para a consolida-o da identidade nacional, para o estmulo da auto-confiana e para a organizaodo tempo de no-trabalho, que constitui um componente fundamental dos nossosmodos de vida e do nosso desenvolvimento pessoal. De Certeau contesta com razoa convico que impera no Ocidente h quatro sculos, de que o desenvolvimentopessoal esteja conectado essencialmente com o trabalho produtivo54, embora conve-nha distinguir o lazer dos que desfrutam de um trabalho decente daqueles que estocondenados aos campos de concentrao da ociosidade forada dos desempregados(a imagem do romancista italiano Carlo Levi).

    Segundo o presidente do BNDES, Carlos Lessa, 12 a 15 por cento da fora detrabalho no Brasil opera para atender as horas de no-trabalho dos cidados, o quemostra que o no-trabalho fonte de atividades ecnomicas diversas, geradoras deemprego e renda, as quais podem ser estimuladas pela criao de ambientes propcios convivialidade; Carlos Lessa sugere, por exemplo, a recuperao de praas pbli-cas55. Nas cidades litorneas as praias constituem um espao privilegiado e democr-tico de convivialidade56.

    Carecemos de dados consistentes sobre o peso econmico das assim chama-das indstrias criativas e das atividades culturais em geral. Segundo Mrcio AugustoFreitas de Meira, Secretrio do Minc, citando estudos da Fundao Joo Pinheiro rea-lizados h alguns anos, a economia da cultura representa pelo menos 2% do PIBnacional, ou seja, movimenta pelo menos 1 bilho de dlares/ano (dados de 2001).Segundo o autor, um estudo mais atualizado aumentaria este patamar significativa-mente. Uma publicao da Fundao Carlos Chagas57 estimou em 3,8% a participaoda cultura no PIB do Estado do Rio de Janeiro. Por sua vez, em 2001, o ento Ministroda Cultura Francisco Weffort estimou que para cada milho gasto em cultura o pasgerava 150 postos de trabalho.

    O seu estmulo passa pela expanso da infraestrutura cultural do Brasil, que ainda incipiente. Segundo dados do IBGE, 52,7% dos 5.560 municpios no tm livra-rias, 21,3% no tm biblioteca pblica, 79,4% no tm emissora de rdio AM, 61,7%

    53 Veja-se Sachs, I. (2000) Brsil : tristes tropiques ou terre de bonne esprance ? Tropicalit,tropicologie et dveloppement in Hrodote. Revue de Gographie et de Gopolitique, Paris, n 98 (Nthmatique : Nation Brsil), 3e trimestre 2000, pp.184-201 e Sachs, I. (2002), Dos tristes trpicosaos trpicos alvissareiros, no livro com o mesmo ttulo organizado por Lcia Carvalheira Cunha eSebastio Vila Nova, Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, Recife, 2002, p. 23-69.54 De Certeau, M. (1993), La culture au pluriel, Seuil, Paris, p. 171.55 Entrevista com Carlos Lessa, Nao e povo. Na praa, Carta Capital, 1 de setembro de 2004.56 Seria interessante estimar o volume de atividades econmicas que giram ao redor da praia comoespao de vida.57 Prestes Filho, L. C. A Economia da Cultura, a fora da indstria cultural no Rio de Janeiro. (acompletar)

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    Desenvolvimento e Cultura. Desenvolvimento da Cultura. Cultura do Desenvolvimento

    no tm emissora de rdio FM, 50,7% no tm lojas de discos, 92,4% no tm salasde cinema, 35,9% no tm videolocadoras, 82,2% no tm museus, 81,2% no tmteatros nem salas de espetculos58. A ampliao desta infraestrutura afigura-se comouma tarefa urgente e um campo atraente para parcerias pblico-privadas.

    A recente conferncia da UNCTAD, realizada em So Paulo em junho de 2004,apontou a importncia das indstrias criativas nos pases perifricos. O sucesso re-tumbante dos pavilhes de arte popular e de arte indgena na Mostra doRedescobrimento mostrou as potencialidades do Brasil em matria de artesanatoartstico, um complemento significante de renda das famlias rurais no contexto dasua pluriatividade. A expanso econmica do setor cultural afigura-se, portanto, comouma frente significativa da batalha pela gerao de empregos e promoo de empre-endimentos de pequeno porte que encontram, neste setor, oportunidades excepcio-nais. O caminho passa pela promoo regular de concursos para artistas popularescom numerosos prmios de aquisio (para constituir acervos para exposies emuseus) e bolsas de aperfeioamento (transformando-os em Mestres capacitadores emultiplicadores de seus saberes e fazeres), abertura de escolas vocacionais de segun-do grau, incentivo s cooperativas de artesos e organizao do seu acesso ao merca-do (compras pblicas, rede de hotis e restaurantes, exportao).

    Dito isso, a atividade artstica tem um significado que transcende a economia domercado. Ela deve ser encorajada por todos os meios como um vetor da plena realiza-o do desenvolvimento das pessoas, uma maneira extremamente positiva de usar otempo de no-trabalho, de promover a convivialidade e de cimentar a identidadenacional. O ato criativo vale por si s. Certas tribos da Oceania organizavam concorri-das e disputadas competies de desenho sobre a areia da praia. A efemeridade dasobras que em poucas horas viriam a ser apagadas pela mar em nada diminua o prazere a emoo dos artistas e o prestgio dos vencedores. A criao materialmente desinte-ressada, empreendida por artistas amadores de todas as idades e em todas as reasartsticas, merece toda a ateno mesmo quando no resulta em atividades econmi-cas. Ao estimul-la, o Estado contribuir efetivao do direito fundamental cultura.

    Portanto, o desenvolvimento da cultura no deve ser postergado s calendasgregas, quando houver folgas no oramento nacional. Ao contrrio, numa viso dodesenvolvimento livre dos preconceitos redutores do economicismo e da preocupaoexclusiva com o consumismo, a cultura merece uma alta prioridade no projeto nacio-nal. Ela no uma flor na lapela, um luxo de gente rica e sim uma necessidadefundamental e uma fonte de alegria, vivenciada como tal em todas as sociedadeshumanas, inclusive as que esto submetidas s privaes materiais mais extremas.

    Coube a Marshall Sahlins a demonstrao de que mesmo as sociedades maisprimitivas, longe de ocupar todo o seu tempo na luta pela obteno de meios desubsistncia, dispem de tempo para atividades no econmicas, conviviais, ldicas eculturais, contentando-se com um consumo material extremamente frugal e compor-tando-se como as primeiras sociedades de abundncia59. Assim, o tempo de traba-lho no um recurso escasso nas sociedades primitivas. Isto nos leva questo dosmodelos culturais de uso do tempo, fundamental para descrever e entender os esti-los de desenvolvimento60 que consistem em combinaes de usos de tempo compadres de consumo e modos de viver.

    58 Dados extrados de Perfil dos Municpios Brasileiros, citados por Desafios do Desenvolvimento,nmero 2, Setembro de 2004.59 Sahlins, M.D. (1972) Stone Age Economics, Aldine, Chicago. Neste livro, fundamental para aelaborao de uma economia antropolgica, Sahlins cita uma tribo onde cada dia de trabalho eraseguido por um dia de descanso. Se por uma razo qualquer se deveria trabalhar vrios dias seguidos,este perodo de trabalho intenso era seguido pelo mesmo nmero de dias de descanso. Veja-se,ainda, a ttulo de um exemplo entre muitos, o belo livro de Laurens Van der Post (2003), Le mondeperdu du Kalahari, Payot, Paris, uma verdadeira elegia pela cultura desaparecida dos Boshimans, osquais, vivendo num meio material particularmente hostil, sabiam se contentar com pouqussimosbens materiais e tinham, no entanto, uma rica vida musical.60 Sobre a noo de estilo, veja-se o livro j citado de Kroeber, A.L. (1957), Styles and Civilization,Cornell University Press, Ithaca e Fourasti, J. (1970), La civilisation de 1975, PUF, Paris. Para distin-guir entre o gnero de vida do padro de vida, este autor utiliza indicadores no mensurveis emdinheiro, mas suscetveis de quantificao, sem incluir avaliaes puramente qualitativas.

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    Ignacy Sachs

    A percepo do tempo e a sua valorizao variam entre as diferentes culturas e,portanto, constituem uma das suas caractersticas marcantes. Vale a pena citar nestecontexto uma reflexo de Gilberto Freyre:

    Com o mundo a caminhar, pela automao cada dia mais rpida, para umacivilizao antes de lazer organizado, ou coordenado, mas no dirigido, doque de trabalho arregimentado, o sentido hispnico de tempo ou o ritmohispnico de vida pode vir a ser um sentido de tempo ou um ritmo de vidaque os homens de outras civilizaes precisem aprender do hispano. O hispanopode vir a ser o mestre de uma sabedoria tida, durante muitos sculos, noOcidente, por hediondo vcio: o vcio da soberania do homem sobre o tem-po, no gozo da vida e na apreciao dos seus valores, com as suas inevit-veis decorrncias de impontualidade e de lentido61.

    OS MODELOS CULTURAIS DO TEMPO

    Grupos sociais, gneros e faixas etrias ostentam modelos culturais distin-tos. Porm todos eles podem ser analisados a partir da articulao dos tempos dehomo faber, homo civis e homo ludens, sem esquecer o tempo de repouso biologi-camente condicionado. O tempo de homo faber se subdivide em tempo de ativida-des econmicas heternomas na economia de mercado e de atividades econmi-cas autnomas fora do mercado (a distino de Ivan Illich62, retomada tambmpor Andr Gorz).

    Os usos do tempo se organizam em funo de uma escala de valores cultural-mente transmitida (o peso vivo do passado) e socialmente validada, e so condiciona-dos pelo acesso aos diferentes tipos de espaos capazes de acolher as atividadesempreendidas (casas para morar, ruas para andar, oficinas para trabalhar etc.). Porisso, devemos considerar os tempos-espaos de desenvolvimento63 como a matriz dareflexo sobre o projeto nacional.

    O estudo dos modelos culturais de tempo est em grande parte por fazer emuito lucraria ao ser abordado numa perpectiva comparativa. Dele dependemos paracompreendermos melhor onde se situam os patamares de mudana de comporta-mentos econmicos. Em que momento e sob que condies as populaes adotam aracionalidade do mercado64?

    Como elas modificam a repartio entre os tempos de trabalho e de no-traba-lho e a diviso de trabalho entre os gneros e as geraes, em funo do progressotcnico, da evoluo dos mercados, da existncia de escolas, creches? Em particular,como o progresso tcnico incidente sobre as atividades econmicas fora do mercado

    61 Freyre, Gilberto (1975) O Brasileiro entre os outros hispanos, Jos Olympio, Rio de Janeiro, p.XLVII. Ver tambm Gourevitch, A. Y. (1975), Le temps comme problme dhistoire culturelle, in Aucarrefour des cultures. Les cultures et le temps (tudes prpares pour lUnesco), Payot, Paris, pp.257 a 276.62 Illich, Ivan (1977), Le chmage crateur, Seuil, Paris.63 Para maiores detalhes, ver o meu livro Espaos, tempos e estratgias do desenvolvimento, 1986,Edies vrtice, So Paulo e, em particular, os ensaios sobre a inveno do futuro, a lgica do desen-volvimento, os tempos-espaos do desenvolvimento, estilos de vida e planejamento, o potencial dedesenvolvimento endgeno.64 Em um artigo publicado em 1966, ( La Notion de surplus et son application aux conomies primitves,LHomme. Revue franaise danthropologie. Vol. VI, n3) citei a cano de um polinsio, que me foicomunicada por um antroplogo australiano. Em resumo, o cantor diz que bem que gostaria de beberumas cervejas, mas que para isso teria que caminhar at a cidade prxima, carregando um sacopesado de nozes. As nozes valem pouco e a cerveja cara. Na circunstncia, j que o dinheiro noserve para nada, ele prefere se deitar sombra de uma palmeira e pedir mulher que prepare vinhode palma. Esta cano todo um programa de pesquisas: a atitude do nosso cantor mudaria se ostermos de troca entre as nozes e a cerveja fossem mais favorveis? Caso houvesse uma linha denibus que permitisse poupar a fadiga da longa caminhada?

  • 165o&s - v.12 - n.33 - Abril/Junho - 2005

    Desenvolvimento e Cultura. Desenvolvimento da Cultura. Cultura do Desenvolvimento

    afeta a repartio do tempo poupado na produo da subsistncia e liberado paraoutras atividades econmicas e/ou culturais65?

    PONTEIROS PARA A AO

    A anlise das interfaces entre o desenvolvimento e a cultura, realizada acima,leva formulao de algumas sugestes de ao futura:

    1) O conjunto das reflexes apresentadas neste trabalho configura o que pode-ramos chamar de cultura do desenvolvimento. Quer nos parecer que a integrao dacultura do desenvolvimento na educao cidad contribuiria para criar um clima pro-pcio a uma ampla participao no to importante debate societal sobre o projetopara o Brasil.

    A integrao da cultura do desenvolvimento deve, provavelmente, se fazer emtodos os nveis de ensino, certamente o secundrio e o superior, no como uma disci-plina parte, e sim como um conjunto de conceitos e conhecimentos, permeando asdisciplinas tradicionais e inspirando atividades extra-curriculares.

    Uma tarefa importante a iniciao cultura do desenvolvimento dos futurosprofissionais de todas as reas, mdicos, engenheiros, agrnomos etc. No se develimitar o pblico aos futuros economistas e cientistas sociais, bem ao contrrio.

    No que diz respeito escola primria rural, valeria, talvez, a pena retomar odebate sobre o seu papel ativo no desenvolvimento local, confiando aos alunos certasresponsabilidades permanentes na gesto do meio-ambiente, ensinando-lhes as pr-ticas agrcolas ao produzirem os alimentos necessrios merenda escolar, treinandoos professores como verdadeiros agentes de desenvolvimento local66.

    2) A cultura do desenvolvimento afigura-se como um ponto de entrada para odilogo intercultural a todos os nveis: interregional, internacional, intergeracional,intertnico, fundamental para incentivar os processos de mestiagem cultural, cujaimportncia j foi destacada.

    A Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa oferece um terreno particular-mente interessante para este dilogo.

    3) Entre as prioridades de pesquisa identificadas ao longo deste trabalho men-cionaremos: o estudo do potencial de emprego, gerao de renda e promoo de empreen-

    dimentos de pequeno porte nas indstrias criativas e nas atividades culturaisem geral, incluindo os empregos que giram ao redor do tempo de no-trabalhoda populao;

    a avaliao das demandas de infraestrutura para a promoo de atividadesculturais amadoras;

    o estudo dos modelos culturais de tempo e dos estilos de vida; e o impacto do progresso tcnico sobre as atividades de subsistncia e a utiliza-

    o do tempo liberado para atividades culturais.

    65 As atividades de subsistncia ocupam uma grande parte do tempo de trabalho nos assim chamadospases menos desenvolvidos. Por isso, a sua racionalizao e modernizao teria um impacto positivoe imediato sobre o bem estar das populaes. Da a importncia de disseminao das tcnicas quepoupam tempo e recursos na produo de alimentos, provisionamento de gua e de energia. Versobre este ponto Sachs, I (2004), From Poverty Trap to Inclusive Development in LDCs, Economicand Political Weekly, volume XXXIX, N 18, 1 de maio de 2004, pp. 1802 a 1811, documento prepa-rado para a Unctad.66 Estas questes foram levantadas no fim dos anos 70 no contexto da reforma educacional do Peru,porm o projeto que a Unesco empreendeu foi interrompido.