sabendo quem somos carregam, em seus seios, si- · com o fantasma do silêncio no nosso seio...

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Inúmeras famílias brasileiras carregam, em seus seios, si-lêncios cognitivos que inter-ceptaram suas histórias de vida e apagaram os rastros de suas origens. A censura da memória familiar não branca envolve tramas que, de um modo consciente ou incons-ciente, somam-se à configu-ração histórica moderna co-lonial e ajustam-se à fusão de ideias racistas, patriarcais e assimilacionistas, legitimadas pelo projeto político de nação. O que garante a censura é o sequestro permanente pela colonialidade sobre quem so-mos para, assim, alcançar o esquecimento definitivo de quem se é e de onde se veio. Esta obra, convida os órfãos gene-alógicos a resgatarem suas memórias familiares censu-radas, bem como a refletirem sobre as sequelas da coloniali-dade, que além de fragmentar subjetividades e elos afetivos, nos ensina a conviver com qualquer situação de desu-manidade em relação àqueles que carregam em seus corpos o signo da dominação históri-ca e não da modernidade.

Wanderson Flor do Nascimento

Partindo dos estudos críticos so-bre a colonialidade, nossa autora, Vanessa Rodrigues de Araújo, traz uma potente e importante contri-buição, na busca da descolonização das memórias, destacando o lugar do resgate de uma pluralidade de narrativas que recobrem as linha-gens indígenas e negras na produ-ção de uma história mais próxima, mais potencializadora de experi-ências antirracistas. O livro articu-la enfrentamento ao racismo, me-mória, história e direitos propondo desconstruir as matrizes coloniais que persistem em nosso tempo, forjando subjetividades coloniza-das e nos convida a um percurso que nos permita compreender de que maneira o racismo estruturou não apenas as relações sociais nas sociedades modernas, como tam-bém aponta para os modos como a política e o conhecimento foram impactados pelo padrão moderno/colonial/racista de nosso tempo.

ISBN 978-65-80444-48-9

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osMestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Direitos Humanos pela Uni-versidade Católica de Brasília (UCB). Graduada em Ciências Jurídicas pelo Centro Universi-tário de Brasília (UniCeub). Foi colaboradora do Comitê Bra-sileiro de Defensoras e Defen-sores de Direitos Humanos. É pesquisadora do Grupo de Pes-quisa Antropologia e Direitos Humanos do CNPq. Atua como assessora jurídica no Conselho Indigenista Missionário (CIMI), realizando ações político-ju-rídicas voltadas à proteção e garantia territorial dos povos indígenas do Brasil. Adicional-mente, desenvolve pesquisas na linha de direitos humanos, teo-rias decoloniais, direitos indí-genas, memória, raça e gênero.

Vanessa Rodriguesde Araújo

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Copyright © 2019, D’Plácido Editora.Copyright © 2019, Vanessa Rodrigues de Araújo.

Editor ChefePlácido Arraes

EditorTales Leon de Marco

Produtora EditorialBárbara Rodrigues

Capa, projeto gráficoLetícia Robini (Imagens via Flickr e FreePik)

DiagramaçãoNathalia Torres

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida,

por quaisquer meios, sem a autorização prévia do Grupo D’Plácido.

W W W . E D I T O R A D P L A C I D O . C O M . B R

Catalogação na Publicação (CIP)Ficha catalográfica

ARAÚJO, Vanessa Rodrigues de.Sabendo quem somos: memória familiar e descolonização -- Belo Hori-

zonte: Editora D’Plácido, 2019.166 p.

ISBN:978-65-80444-48-9

1. Direito. 2. Direitos Humanos. I. Título.

CDD341.481 CDU342.7

Editora D’PlácidoAv. Brasil, 1843, Savassi

Belo Horizonte – MGTel.: 31 3261 2801

CEP 30140-007

À minha bisavó Jasmelina, minha força ancestral; À minha avó Áurea: meu orgulho, minha inspiração,

meu sentipensar; Ao meu sobrinho Guilherme, para que sua origem habite seu ser; A todas as

mães indígenas que vivenciaram e lutaram contra a permanência da colonialidade em

suas vidas, corpos e subjetividades.

Agradecimentos

Agradeço imensamente aos meus queridos pais, Anna Cláu-dia e Gilton, pelo amor incondicional, pelos aprendizados e por todo apoio ao longo da minha jornada, bem como ao meu irmão Daniel pela timidez de um amor forte.

Meus sinceros agradecimentos à minha família, especialmen-te ao tio Gilvan e à tia Geilda, que mesmo durante o resgate de lembranças dolorosas se mantiveram firmes e dispostos a romper com o fantasma do silêncio no nosso seio familiar.

À minha orientadora e mentora não só acadêmica, mas de vida, Dra. Emérita Rita Laura Segato, pelos ensinamentos críticos sobre gênero, raça e feminismo que me libertaram de diversas prisões, por todo carinho, credibilidade e encorajamento. Com a senhora aprendi que existir sem buscar a verdade seria não existir. Serei, sempre, grata ao universo por nossos caminhos terem se cruzado.

Ao professor Wanderson Flor do Nascimento que esteve presente na qualificação e na defesa, pela sensibilidade, pelas con-tribuições e pelos ensinamentos enriquecedores e descolonizadores relativos não só à teoria, mas à vida.

À querida professora Cléria Botelho pela afetuosidade e discussões sobre história e memória realizadas no prazeroso jardim do campus Darcy Ribeiro.

À professora Tânia Mara que me acolheu nas pulsantes aulas de sociologia sobre gênero e raça e acompanhou essa trajetória.

Ao professor Evandro Piza, pelas grandes contribuições.

Ao amigo e professor Cesár Baldi pela partilha dos universos de saberes feministas anti-racista, anti-patriarcal e anti-lgbtfóbicos.

Aos queridos amigos Jósimo Constat Puyanawa, Tarsila Flo-res, Vannessa Carneiro, Ana Paula Silva, Sueli Bellato, Lourival de Carvalho, Olga Brigitte, Maria Helena Gavião, Thaynnara, Lucélia, Enzo e Elaine Lauriola, Bruna Bona, Edu Chaves, Milena Natieli, Natália Araújo e Thiago Rocha por todo incentivo e calidez.

Muito especialmente à Yane Silva por acalentar meu cora-ção, meu útero e ser cobertor espiritual e à Poliane Janine, minha companheira de lutas sociais e existenciais.

Ao querido amigo Marcelo Rios, comprometido com a crítica da masculinidade e com a luta contra o feminicídio na Bolívia. Mesmo vivendo geograficamente longe, esteve presente de uma forma intensamente especial. Ante toda lucha siempre con una sonrisa!

À ancestralidade e espiritualidade que me guiam e me orientam. À todos mestres e mestras indígenas pelos ensinamentos

plurais sobre existir, lutar, resistir e amar.À companheirada indigenista, tanto da academia, quanto dos

movimentos sociais.Por fim, agradeço de forma fraternal a Tiago Borges, pelo

carinho, cuidado, incentivo e por ter caminhado junto comigo nessa trajetória sempre trazendo fé e luz.

Sumár io

Lista de Quadros 11

Lista de Abreviaturas e Siglas 13

Prefácio 15

Apresentação 21

Introdução 25

1. A colonialidade na experiência vivida 331.1. A colonialidade do poder 361.2. A colonialidade do saber 381.3. A colonialidade do ser 411.4. Raça: o signo da subordinação histórica 43

2. A categoria memória na linguagem dos direitos humanos e suas falências 51

2.1. Panorama Jurídico da memória e suas categorias oficiais 51

2.2. O jusnaturalismo e o juspositivismo enquanto princípios teóricos basilares da linguagem colonial do direito 62

2.3. As mazelas da concepção histórica oficial dos direitos humanos 682.3.1. A ética da insatisfação enquanto princípio

fundamental para expansão dos direitos humanos 75

3. Memórias e o Esquecimento Histórico Programado 81

3.1. Genocídio: reflexões para além da definição jurídica 823.2. Guerras, Genocídios e Estruturas de Poder 85

3.2.1. Silenciamentos de genocídios, apagamento de sujeitos 90

3.3. O perigo da construção do estereótipo indígena e da fixação no imaginário social 94

3.4. Fontes documentais que acusam a política genocida contra os povos indígenas do Brasil 1053.4.1. Relatório Figueiredo 1063.4.2. Relatórios da Comissão Nacional

da Verdade (CNV) 1093.4.3. Relatório de Violência contra os

Povos Indígenas – CIMI 112

4. O silêncio, a nossa maior herança 1174.1. O sequestro da maternidade indígena 1234.2. O direito humano de saber quem se é 1284.3. Memórias emergentes de um passado presente 133

4.3.1. Silenciamentos historiográficos 1354.3.2. Museificação: o engessamento da memória 1394.3.3. Manipulações da memória 143

4.4. Em busca de uma memória que habite em nós 146

Considerações Finais 151

Referências Bibliográficas 157

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Lis ta de Quadros

Quadro 1 Panorama jurídico sobre a menção da Memória 52

Quadro 2 Panorama jurídico e histórico da Ditadura Civil Militar no Brasil 58

Quadro 3 Panorama jurídico e histórico do Genocídio 61

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Lis ta de Abrev iaturas e S ig las

CA Comissão de Anistia

CEAT Comissão Estudantil Anísio Teixeira

CEMDP Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

CF Constituição Federal do Brasil

CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

CIMI Conselho Indigenista Missionário

CPRCG Convenção para Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio

CNV Comissão Nacional da Verdade

DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos

ER Estatuto de Roma

FUNAI Fundação Nacional do Índio

FARC Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia

OEA Organização dos Estados da América

ONU Organização das Nações Unidas

SPI Serviço de Proteção ao Índio

SPILTN Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais

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Prefác ioEnt re h i s tó r i a s e memór ias ,

o d i re i to de se r

Wanderson Flor do Nascimento1

Não podemos entrar na filosofia, assim como na vida, senão misturados a uma história que

nos precede e enredados em histórias que se tecem em torno e sobre nós.

Jean-Godefroy Bidima

A epígrafe do filósofo camaronês Jean-Godefroy Bidima nos recorda de algo que nos leva uma questão importante: Que funções tem a história para a nossa vida? Ele é categórico em afirmar que ela é condição. Sem ela, não entramos no processo de viver. Não apenas nessa vida orgânica que temos, mas no viver agente, no viver humano, no viver que faz mundos por meio do que narra.

Que histórias são essas? Quem as contam? Como as contam? Essas são questões fundamentais para que possamos estabelecer rela-ções entre história e vida. As histórias não são apenas descrições do que fomos e somos, mas constroem sentidos, atribuindo existência, importância a determinados fenômenos, explicando tensões, ao mesmo tempo que têm também a capacidade de apagar, tornar algo desimportante e encobrir processos opressivos.

Pensar nessas funções da história implica supor não apenas que a história é feita das memórias do tempo, mas que também

1 Professor de Filosofia e Bioética da Universidade de Brasília.

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faz a memória. Há, entre esses dois elementos – a memória e a história –, uma mútua alimentação, uma simbiose. Por isso, é im-portante que possamos ser capazes de entender de que memórias são feitas a história e como a história cria memórias (e retira de cenário fatos, povos, situações).

Se Walter Benjamin tiver razão, a história está envolta a in-teresses e forças que funcionam como uma espécie de “salto do tigre para o passado”, o que faz com que os vencedores estruturem as narrativas históricas de modo a ladrilhar o caminho da suposta vitória, justificando-a e, não raro, glorificando-a. As garras ferozes do tigre fazem com que apenas aquilo que lhe interessa seja trazido à luz da história, performando uma memória alimentada apenas por aquilo que o tigre trouxera em suas presas.

O caminho entre o passado e o presente, quando narrado pelos que venceram as lutas, apequenam aquilo que fora a ex-periência de quem fora “vencido”. A narrativa dos vencedores tende a se tornar a narrativa igualmente vencedora, ignorando ou ocultando que as posições de vencedores e vencidos promovem percepções distintas da realidade do que fora a luta. Desse modo, quando quem conta a história são os vencedores, nem sempre nos informam como a história é contada e determina qual história emergirá na conformação da memória.

O apagamento da memória é, portanto, parte do processo de dominação, que oculta processos de resistência, estratégias de conservação e possibilidades de reposicionamentos históricos e, muitas vezes, promove uma empatia com aquelas figuras as quais venceram uma luta, mesmo quando os meios e os fins foram não apenas violentos, mas também cruéis, injustos, destrutivos. Lançar um povo no esquecimento da memória e da história é promover a continuidade das heranças nefastas que se basearam nos meios espúrios da conquista e da suposta vitória, arremessando no campo do irrelevante a percepção dos povos os quais não apenas foram vencidos, mas que também constituíram estratégias para resistir.

Por isso, é fundamental estabelecer uma diferença entre as histórias que são contadas em torno de nós, sobre nós e aquelas que nós contamos, contando-nos. Essas histórias não são puras e límpidas, mas promovem outras estratégias para que busquemos

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reconstruir memórias, enfrentando apagamentos, entendendo como fomos constituídos enquanto povos e sujeitos, barrando as narrativas que nos mantêm reféns de aprisionamentos dominadores que colonizam nosso imaginário.

Se compreendemos que o direito a não ser colonizado é fundamental, se entendemos que o direito de ser é um direito fundamental, então o direito de ter desmantelados os apagamentos de nossa história é igualmente fundamental, o que traz a memória, de modo incontornável, para o campo dos direitos humanos fun-damentais: o direito de reabrir a tessitura das narrativas e perceber a pluralidade de posições que estiveram presentes nas lutas que chegaram até nós. O direito de saber de quantos plurais somos historicamente constituídos.

É nesse cenário que emerge o livro de Vanessa Rodrigues de Araújo, apostando que o direito de saber quem se é exige descon-truir apagamentos, resgatar plurais históricos, refazer a narrativa da história em prol de uma compreensão mais diversificada de nossa trajetória nesse mundo. E a memória é um elemento irrenunciável. O direito à memória é uma condição ao direito de ser.

Em meados do século passado, Fanon nos descortinava uma das estratégias do racismo colonial: arremessar as populações co-lonizadas – mais especificamente as não brancas – naquilo que ele chamou de uma “zona do não ser”, caracterizada pelo estilha-çamento da subjetividade dos sujeitos os quais experimentaram a colonização na condição de “vencidos”, por uma criação de imagens que lançam os povos colonizados em uma sub-humani-dade inescapável, quando não problematizada em seus processos históricos de construção.

Como um passo da denúncia dessa zona do não ser, o livro de nossa autora nos traz uma potente e importante contribuição, na busca da descolonização das memórias, destacando o lugar do resgate de uma pluralidade de narrativas que recobrem as linhagens indígenas e negras na produção de uma história mais próxima, mais potencializadora de experiências antirracistas. Assim, o livro articula enfrentamento ao racismo, memória, história e direitos na proposta de desconstruir as matrizes coloniais que persistem em nosso tempo, forjando, ainda, subjetividades colonizadas.

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Nossa autora nos convida a um percurso que nos permita compreender de que maneiras o racismo estruturou não apenas as relações sociais nas sociedades modernas, como também aponta para os modos como a política e o conhecimento foram impac-tados pelo padrão moderno/colonial/racista de nosso tempo que, atravessando a história da colonização, persiste em nosso cotidiano gerando subjetividades marcadas por essa hierarquização opressiva, por meio da qual ser racializado significará ser.

Partindo dos estudos críticos sobre a colonialidade, Vanessa nos mostra como a raça se entrelaça com a memória, constituin-do-a, criando hierarquias entre o que merece ser lembrado (e, portanto, revivido), e aquilo que deve ser lançado no umbral do esquecimento. Sem apelar para noções essencializadas de raça, a autora nos conclama a perceber os modos pelos quais as relações de dominação foram e são naturalizadas na história da colonização e como a raça, produto do racismo, ocupa um lugar privilegiado construção da subjetividade, da memória, de nosso ser no mundo.

Nesta ambiência narrativa, o livro apresenta e questiona o lugar da memória nos discursos de/sobre os direitos humanos, apontando possibilidades, alcances e limites daquilo que a autora entende ser a matriz oficial, hegemônica, dos direitos humanos, a qual secundariza os lugares da memória. E parte para um enfren-tamento levando até as últimas consequências exatamente aquilo que os direitos humanos propõem, buscando uma ética que parta daquilo que demandou a existência do discurso dos direitos hu-manos, a insatisfação frente aos modos como as pessoas são tratadas, sobre como nossas vidas são vividas, insatisfação frente a injustiças históricas as quais nos impactam ainda hoje.

Os caminhos dessa insatisfação direcionam a reflexão da autora por meio de uma importante denúncia das relações entre o geno-cídio e o estilhaçamento da memória. Silenciar sobre os genocídios implicará mantê-los, e o esquecimento passa a funcionar como uma das armas com as quais se matam no presente aquelas e aqueles que foram já destruídos no passado, mortificando suas heranças.

E, assim, o livro se constitui em um manifesto pelo direito de sabermos quem somos, sem ocultar, sem apagar, todas as linhagens que nos constituíram. Desconstruir a as forças que promovem o

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apagamento, o silenciamento, o esquecimento de quem somos filhas e filhos de uma história plural. Fazer ver a violência da modernidade para enfrentá-la. Restituir os nomes e rastreios dos povos que foram perdidos pelas linhas da história colonial.

Nossa autora aposta que, ao buscarmos outras vozes para a narrativa histórica, aquelas silenciadas, poderemos buscar outros campos de atuação nos direitos humanos, aqueles que oferecem à sociedade a oportunidade de reparar uma de nossas graves injustiças históricas, ao menos em uma dimensão subjetiva, potencializando uma memória de povos que recusam a ser quem são, pois foram ensinados que parte do que somos é desprezível. Resgatar a his-tória e a memória dos processos de morte é uma tarefa da qual não podemos nos furtar. Não apenas para homenagear os povos indígenas e negros que constituem nossa ancestralidade, mas para fazer notar o quão vivos entre nós eles ainda estão. Eis uma das apostas que valem a pena.

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Apresentação

Num país em que uma grande parcela de indivíduos não tem qualquer valor para as instituições jurídico políticas, o indivíduo (sobretudo aquele anônimo e estrangeiro do poder) é antes de tudo um mestiço, segundo a ciência e o discurso oficiais. Há um incômodo quando esse inominado pretende se reconhecer na categoria de indivíduo abstrato para exigir direitos (para tornar-se sujeito de direitos), ou pretende reivindicar uma identidade étnico-racial.

Segundo os moldes da ciência oficial, para os quais Gilberto Freyre é ainda o cânone, o brasileiro somente pode ser nominado em sua diversidade, mas não pode reivindicar para si qualquer particularidade no presente ou articular seu presente com as possibilidades não hegemonicamente embranquecidas de futuro.

O direito de nominar permanece, desde a invenção do mes-tiço pela ciência colonial, um direito dos cientistas. O discurso competente paira sobre os conflitos sociais, buscando harmonizá--los numa lógica que garanta, a um só tempo, o espaço de poder da ciência e a não politização do lugar de racialização, mediante o qual alguém fala sobre a diferença do outro. O monopólio dos especialistas é um dos principais legados do racismo cientificista do século XIX. Por trás da maleável fábula das três raças, está o poder do narrador. Desde o Império, o Estado brasileiro e os grupos hegemonicamente masculinos e brancos pretenderam lo-calizar uma narrativa. No mesmo passo em que o Estado produz e é produzido pela invenção do narrador oficial (ou legitimo), as

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narrativas se particularizam como narrativas sobre coletividade, grupos sociais e individualidades.

A ciência tem servido para apagar a presença em nós (e no mundo) de tantos nós (encruzilhadas, rios e mares) que compu-seram e compõem as lutas sociais por nossa humanidade e nossa possibilidade como grupo social composto por uma comunidade de sujeitos de direitos. A falsa democracia racial (ou suas novas versões) oculta um fato essencial: que a crítica da raça (como processo de dominação) somente pode ser realizada como crítica da ideologia e da ciência como espaço de poder. Todavia, como demonstra esse corajoso texto de Vanessa Rodrigues Araújo, é preciso ir além, e perguntar sobre o direito de dizer-se.

A diferença (em nossos corpos, em nossas famílias, em nossos “brasis”, em nossas vidas, em nossas expressões, em nossas temporalidades) permanecerá, sem dúvida, no centro do debate sobre nosso futuro como coletividade. Porém, se o racismo abor-dou o tema da diferença, seu discurso não é a fonte das diferenças humanas, tampouco ele nasceu porque havia tais diferenças, e esse era o modo para nominá-las. De outra parte, muito embora a percepção da diferença seja uma construção subjetiva relacional, ou seja, radicada na estrutura da psique humana individual ou coletiva - de tal modo que, em certo sentido, a demarcação das diferenças constituiria a própria diferença -, nem toda reivindi-cação identitária (ou nem todo discurso sobre pertencimentos) constrói, inevitavelmente, uma separação que não pode conviver com formas de respeito mútuo.

Se as diferenças humanas parecem ser inevitáveis (e, inclusive, podem ser desejáveis), a sua hierarquização não é uma fatalidade ou uma lei da natureza humana. A transformação da diferença em desigualdade torna-se um comportamento recorrente, na medi-da em que os grupos humanos pretendem impor aos demais o esquecimento sobre as trajetórias de exclusão e sobre as disputas por direitos entre os grupos sociais no curso da história.

Como é possível pensar um povo, lembrando dos horrores de um passado e de um presente? A experiência colonial nos propõe essa pergunta central que foi transformada num falso problema, o problema sobre a “convivência entre as raças diferentes” ou das

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“interações raciais” entre grupos diferentes. Da experiência colonial emergem problemas relevantes para o presente como o racismo, o sexismo, a masculinidade violenta, a cisheteronormatividade, o eurocentrismo, a branquidade, o genocídio dos povos indígenas e africanos, o autoritarismo político etc.

Aqui vale observar um dos elementos constantes do ra-cismo, o de tentar fazer esquecer que as condições atuais de desigualdade podem ser compreendidas na história. No lugar da história das atribuições de status sociais, o racismo fala da história das raças, como fenômeno natural ou como comple-xo biológico/cultural. Ao negar a história, o racismo impede a compreensão do jogo constante e inevitável da identidade dos grupos sociais e indivíduos. Em outras palavras, impede a percepção das trocas entre grupos humanos e, sobretudo, das trocas desiguais entre esses mesmos grupos e de suas disputas por direitos e por poder.

Na disputa pelos sentidos de povo e de sujeito de direitos, a tentativa de transformar grupos sociais em povo, marcado por identidades culturais, biológicas, raciais etc. sem antes pensá-los como multiplicidade em luta pela existência e por direitos, e, portanto, na sua humanidade histórica, é uma chave impor-tante. Sempre que voltamos às noções de povo, sem pensar na pluralidade intrínseca de todo grupo social e, ao mesmo tempo, na impossibilidade da constituição de uma totalidade absoluta, quer individual ou coletiva, atualizamos o mesmo dispositivo que construiu o racismo.

Este livro, de forma estratégica, propõe pensar um elemento central de uma proposta para nossa identidade coletiva, aceitando as dimensões múltiplas e discursivas de viver na história. Sua proposta reinscreve a narrativa no plano das lutas por direitos, luta contra o poder normatizador da branquidade, inclusive no plano dos afetos que estão expressos na tessitura de memórias familiares. Nas palavras da autora, falamos do “direito humano de saber quem é”. Sabemos que esse direito é imprescindível e ao mesmo tempo uma (im)possibilidade, pois ele emerge do estilhaçamento da memória não apenas pelo tempo ou pela insuficiência da linguagem, mas pela ação do poder no passado e no presente.

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Seremos capazes de dialogar sobre os sonhos e os pesadelos que emergem de nossa experiência colonial?

Evandro Piza Duarte

Professor de Criminologia e Processo Penal na Faculdade de Direito na Universidade de Brasília.

Inúmeras famílias brasileiras carregam, em seus seios, si-lêncios cognitivos que inter-ceptaram suas histórias de vida e apagaram os rastros de suas origens. A censura da memória familiar não branca envolve tramas que, de um modo consciente ou incons-ciente, somam-se à configu-ração histórica moderna co-lonial e ajustam-se à fusão de ideias racistas, patriarcais e assimilacionistas, legitimadas pelo projeto político de nação. O que garante a censura é o sequestro permanente pela colonialidade sobre quem so-mos para, assim, alcançar o esquecimento definitivo de quem se é e de onde se veio. Esta obra, convida os órfãos gene-alógicos a resgatarem suas memórias familiares censu-radas, bem como a refletirem sobre as sequelas da coloniali-dade, que além de fragmentar subjetividades e elos afetivos, nos ensina a conviver com qualquer situação de desu-manidade em relação àqueles que carregam em seus corpos o signo da dominação históri-ca e não da modernidade.

Wanderson Flor do Nascimento

Partindo dos estudos críticos so-bre a colonialidade, nossa autora, Vanessa Rodrigues de Araújo, traz uma potente e importante contri-buição, na busca da descolonização das memórias, destacando o lugar do resgate de uma pluralidade de narrativas que recobrem as linha-gens indígenas e negras na produ-ção de uma história mais próxima, mais potencializadora de experi-ências antirracistas. O livro articu-la enfrentamento ao racismo, me-mória, história e direitos propondo desconstruir as matrizes coloniais que persistem em nosso tempo, forjando subjetividades coloniza-das e nos convida a um percurso que nos permita compreender de que maneira o racismo estruturou não apenas as relações sociais nas sociedades modernas, como tam-bém aponta para os modos como a política e o conhecimento foram impactados pelo padrão moderno/colonial/racista de nosso tempo.

ISBN 978-65-80444-48-9

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em som

osMestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Direitos Humanos pela Uni-versidade Católica de Brasília (UCB). Graduada em Ciências Jurídicas pelo Centro Universi-tário de Brasília (UniCeub). Foi colaboradora do Comitê Bra-sileiro de Defensoras e Defen-sores de Direitos Humanos. É pesquisadora do Grupo de Pes-quisa Antropologia e Direitos Humanos do CNPq. Atua como assessora jurídica no Conselho Indigenista Missionário (CIMI), realizando ações político-ju-rídicas voltadas à proteção e garantia territorial dos povos indígenas do Brasil. Adicional-mente, desenvolve pesquisas na linha de direitos humanos, teo-rias decoloniais, direitos indí-genas, memória, raça e gênero.

Vanessa Rodriguesde Araújo

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