Roteiro didático da Arte na produção do Conhecimento

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PERASSI, R. Roteiro didático da Arte na produção do Conhecimento. Campo Grande, MS: EDUFMS, 2005.

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  • PERASSI, R. Roteiro didtico da Arte na produo do Conhecimento. Campo Grande, MS: EDUFMS, 2005.

    APRESENTAO

    O Roteiro a seguir baseado em um trabalho anterior, o Referencial Curricular para o Ensino Mdio de Mato Grosso do Sul: Linguagens, Cdigos e suas Tecnologias, que foi realizado em conjunto com os colegas: Marly Damus; Jlio da Costa Feliz; Aline Cerutti Pereira; Sidney Camargo, e Ana Aparecida Arguelho de Souza, professores atuantes na Universidade Federal, na Rede Estadual de Ensino e na Faculdade Estcio de S de Campo Grande, MS. Este livro , portanto, resultante de um trabalho de pesquisa realizado no ano de 2003, no Departamento de Arte e Comunicao da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, com o especial apoio da Editora da Universidade e da Secretaria de Estado de Educao.

    A abordagem adotada nesta publicao indica a arte como rea de produo de conhecimento, que se relaciona e interage na histria com outras reas do saber, constituindo parte do amplo e diversificado acervo cultural do Ocidente.

    Nas pginas seguintes, o leitor ser convidado a estabelecer relaes entre arte e conhecimento, por meio de reflexes sobre cada um desses termos e das interaes entre eles. Do mesmo modo, sero assinaladas outras relaes, envolvendo arte, linguagem, psicologia e histria. Alm de reflexes sobre arte e histria, tambm, alguns tpicos da Histria das Artes Visuais so relacionados, considerando desde os vestgios pr-histricos at suas obras contemporneas. Alguns dados sobre as artes cnicas e a msica so tambm apresentados, mas apenas como ilustrao do contexto cultural de cada perodo.

    O percurso histrico proposto caracteriza um Roteiro Didtico da Arte na Produo do Conhecimento, evidenciando a produo artstica como expresso da criatividade e do saber humano em cada momento da cultura ocidental. Ao serem percebidas como sntese de seu tempo, as obras de arte so reconhecidas tambm como promotoras de outras criaes nas mais diversas reas do conhecimento. Sob esse aspecto, as questes aqui apresentadas so interessantes para todos que trabalham na produo e difuso do conhecimento. Este livro dedicado, portanto, aos estudiosos e professores das mais diversas reas do saber e, especialmente, aos que se dedicam rea de Linguagens, cdigos e suas tecnologias.

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    ROTEIRO DIDTICO DA ARTE NA PRODUO DO CONHECIMENTO

    ARTE E CONHECIMENTO.

    CONHECIMENTO.

    O ato de conhecer relaciona percepo, memria e associao, acionando os nossos sentidos, que percebem os sinais do mundo e, tambm, as nossas funes cerebrais que registram e relacionam essas percepes.

    Para conhecermos alguma coisa necessrio:

    1- Perceber sua existncia material (coisa do mundo) ou mental (coisa da mente).

    2- Registrar essa percepo na memria imediata ou permanente.

    3- Associar esse registro perceptivo a outras coisas que lhes so diferentes e que, ao mesmo tempo, vo lhe atribuir significaes.

    Um exemplo disso a percepo do frio, que implica em uma sensao ttil, imediatamente associada a outras sensaes, sentimentos e conceitos. As associaes provocam respostas fsicas, especialmente, na superfcie da pele que fica eriada; tambm, provocam respostas afetivas, porque a sensao de frio pode ser prazerosa ou no, de acordo com a percepo da temperatura ambiente e com a disposio do sujeito que percebe; ainda, provocam respostas cognitivas que surgem como pensamentos ou idias de reconhecimento, desaprovao ou aprovao: que bom est esfriando ou que frio! Preciso de agasalho.

    A percepo estabelecida na relao entre os estmulos percebidos pelos sentidos e as respostas prprias do sujeito sensvel que, como vimos, responde com sensaes, sentimentos e idias, quando estimulado.

    As sensaes so as respostas produzidas no campo estsico, ou das respostas fsicas, compondo os fenmenos de estesia, considerando a origem grega dessa palavra que asthesis ou sensao.

    Por sua vez, os sentimentos so reaes do campo esttico ou das respostas afetivas, compondo os fenmenos da esttica. Devido sua proximidade de sentido e efeito o termo esttica e o termo estesia, s vezes, so considerados sinnimos.

    As idias e pensamentos so produes cognitivas, compondo os fenmenos da cognio, que esto relacionados inteligncia lgica e ao domnio consciente das diversas linguagens sejam faladas ou escritas, literrias, numricas ou musicais, dentre outras.

    A percepo resulta do uso dos cinco sentidos, viso, audio, tato, olfato e paladar, em conjunto ou separadamente. O sujeito que percebe, ou seja, que recebe estmulos visuais, auditivos, tteis ou gustativos, responde a esses estmulos compondo sensaes (respostas fsicas), sentimentos (respostas afetivas) e idias (respostas cognitivas).

    Todos as respostas perceptivas nos parecem simultneas, porque a rapidez do ato perceptivo no nos permite observ-las em seqncia, exceto em alguns casos quando, por exemplo, percebemos que fomos feridos antes de sentirmos a dor do ferimento.

    Nossa conscincia, s vezes, apercebe-se primeiramente das idias, outras vezes das sensaes e ainda outras dos sentimentos. Contudo, nos casos mais corriqueiros a nossa percepo parece responder, imediatamente, com sensaes, sentimentos e idias. Assim,

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    quando nos ferimos, sentimos dor e pnico, praticamente, ao mesmo tempo em que pensamos em providncias possveis1.

    As inmeras percepes so registradas na memria de modo consciente ou inconsciente, compondo um acervo de lembranas de sensaes, sentimentos e idias. Esses registros compem a base do conhecimento relacionando ou identificando o conhecimento com a memria.

    Um exemplo dado quando perguntamos a um amigo: voc conhece aquela pessoa? Esse poder responder: acho que no a conheo, porque no me lembro dela. Logo, o que no lembrado no conhecido ou reconhecido de modo consciente.

    O que ainda no foi percebido ou registrado pela memria, aquilo que no conhecido conscientemente, entretanto, pode receber significao, passando a ser reconhecido por associao, porque memorizamos nossas percepes e podemos relacionar as percepes passadas entre si e, tambm, relacion-las com percepes atuais, promovendo assim um conhecimento por associao. Ao associar uma nova percepo com outras que j conhecemos, ns damos sentido ao novo estmulo percebido por relaes de semelhana ou comparao que so estabelecidas com percepes anteriores.

    Diante de um objeto desconhecido, algum pode fazer o seguinte comentrio: nunca vi nada igual a isto, mas por associao, parece-me um tipo de cadeira, porque possvel sentar-se aqui confortavelmente, apesar de sua forma pouco convencional. De outro modo, reconsiderando um exemplo anterior, ns reconhecemos que sentimos frio porque associamos uma percepo presente com percepes vividas no passado. Ao comprovar a recorrncia de situaes anteriores, ns denominamos a percepo presente com o mesmo nome das passadas e dizemos: frio. Alm disso, tambm associamos a necessidade presente com solues passadas e, assim, pensamos em uma roupa que possa nos agasalhar.

    As percepes e registros inconscientes ou subconscientes muitas vezes participam, involuntariamente, do processo associativo, promovendo sentimentos e comportamentos que nos parecem estranhos. As percepes e associaes que se estabelecem fora do estado de plena conscincia tambm so responsveis por certos conhecimentos que adquirimos de um modo chamado intuitivo. Portanto, a intuio atua com percepes e associaes que no foram efetivadas e registradas de modo claro e consciente, produzindo conhecimentos que surgem de uma s vez, sem a prvia articulao de conceitos.

    Temos a capacidade de associar elementos e eventos diferentes que, muitas vezes, foram percebidos em momentos distantes no tempo e no espao. Isso possibilita a criao de imagens ou idias que no existiam anteriormente, porque so produtos da associao de elementos que no foram percebidos de maneira associada. denominada de imaginao essa capacidade de recuperar ou criar imagens e idias, reproduzindo e articulando na mente elementos e eventos, que relacionam sensaes, sentimentos e idias j conhecidas para recordao ou criao de novidades.

    Os tipos de conhecimento2 podem ser definidos por modelos de associao:

    1 Carl Jung apresentou um modelo em que a mente composta por camadas, cuja mais externa relacionada s sensaes, como respostas fsicas, que o corpo emite ao receber informaes dos objetos exteriores. A prxima camada, mais interna, compe a mente cognitiva, pensante, que produz conceitos e idias sobre o que percebido pelos sentidos, nomeando e classificando coisas. Com relao s sensaes fsicas e interpretaes cognitivas surgiro os sentimentos, que nos fornecem critrios de conscincia avaliativa sobre a qualidade e o destino das coisas percebidas, com base na intuio. JUNG. C.G. O Esprito na Arte e na Cincia. Petrpolis, Vozes, 1987.

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    1. O conhecimento emprico ou do senso-comum associa situaes particulares e imediatas de causa e efeito, que so observadas e relacionadas na vida prtica cotidiana, constituindo a dita sabedoria popular, a qual compe um acervo heterogneo de informaes, reunindo observaes pragmticas e eficientes com crendices e mitos populares.

    2. O conhecimento filosfico associa as coisas e fenmenos, os dados naturais e sociais que observamos no mundo, com palavras para definir os nomes das coisas, de suas funes e das relaes entre elas. Essas palavras chamadas conceitos so organizadas, de modo lgico e ordenado.

    3. O conhecimento cientfico tambm utiliza conceitos e teorias em associao com os dados naturais e sociais de maneira lgica e sistemtica; todavia, a cincia fundamentada tambm em experincias que comprovam a eficcia da teoria empregada e do conhecimento obtido. O conhecimento filosfico cultiva o rigor lgico, mas no pressupe a comprovao experimental. Grosso modo, a cincia se justifica como tal pela possibilidade de comprovao emprica do conhecimento obtido.

    4. O conhecimento religioso associa os fatos da vida aos dogmas de f, assim, explica o universo e seus fenmenos, de acordo com teorias cujos conceitos so arbitrados por fundamentos religiosos. Esses fundamentos so considerados prioritrios e verdadeiros. A comprovao dispensvel porque os princpios religiosos so aceitos como dogmas ou valores inquestionveis, a verdade religiosa garantida pela f decorrente de processos intuitivos e msticos.

    5. O conhecimento esttico ou artstico associa livremente as percepes cotidianas aos sentimentos e intuies propostos subjetividade, expressando essas associaes de modo ldico e criativo em manifestaes estticas ou artsticas. As manifestaes estticas ou artsticas so capazes de promover nos espectadores percepes e sentimentos que sugerem tambm idias ou conceitos e comportamentos. A arte campo privilegiado de expresso de processos intuitivos, possibilitando que certas percepes e concepes internalizadas intuitivamente possam ser manifestas e tornarem-se objetivas, promovendo novos conhecimentos.

    ARTE.

    A arte se distingue da cincia, da filosofia, da religio e, tambm, da natureza, mas, ao mesmo tempo, relaciona-se diretamente com todos esses campos no contexto scio-cultural.

    H um elemento comum entre a arte e a natureza, porque ambas so prioritariamente campos de produo material. A natureza produz todas as coisas naturais, pedras, rvores, frutos e animais. De mesma maneira, toda produo material no campo da cultura tradicionalmente entendida como arte.

    A compreenso de que a arte campo de produo material de coisas que a natureza no fornece prope a arte como sinnimo de tcnica. Isso distingue a arte da filosofia e da cincia, que so por excelncia campos de produo terica, independente de sua aplicao. Nesse sentido, surge o conceito de artefato e, tambm, as indicaes das artes liberais do alfaiate, do marceneiro, do mdico e de todas as profisses que prevem uma produo factual e no apenas intelectual.

    2 Confira tambm como os tipos de conhecimento so apresentados em LAKATOS, Eva M. & MARCONI, Maria E. Metodologia Cientfica. So Paulo: Atlas, 1986.

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    Um exemplo desse entendimento da arte como atividade pode ser percebido nas expresses populares, porque chamamos de gnio, crnio ou cabea pessoa que demonstra capacidade intelectual e apresenta boas idias. Mas nesse caso no denominamos essa pessoa de artista. Mas, quando queremos dizer que uma pessoa realiza bem uma atividade como: cozinhar, escrever, ou mesmo jogar futebol, nesse caso dizemos que uma artista.

    Por outro lado, o conceito de belas artes interps o sentido potico na produo artstica, separando os conceitos de arte e tcnica. Nesse caso, a tcnica participa do fazer artstico, mas no h mais uma perfeita identidade entre os termos. A arte requer um fazer sensvel e criativo, ou seja, um fazer potico, que recupera o sentido mgico de suas primeiras manifestaes em que o objeto artstico se apresentava tambm como mgico-religioso.

    O uso refinado dos sentidos promove percepes e elaboraes intuitivas. Pelo menos em princpio, isso no compreendido pela lgica e promove sentimentos, formulaes e expresses, que sugerem experincias transcendentais. Os sentidos mgico-religiosos e estticos advm dessas vivncias perceptivas associadas s situaes vivenciadas como transcendentes, que evocam interaes com elementos mgico-religiosos e compem a substncia de formao do sentido religioso e artstico.

    Inicialmente, a arte se expressou como parte do contexto mgico-religioso, bem como os princpios rudimentares das cincias, em especial, das cincias mdicas. Mais tarde, a arte, a religio e a cincia constituram suas prprias identidades, destacando-se, portanto, umas das outras.

    A religio e a cincia manifestam um carter finalista porque, como finalidade, buscam oferecer solues verdadeiras e eficientes para o entendimento e encaminhamento da vida humana. A arte como arte no manifesta um carter finalista porque, em princpio, no se espera til ou verdadeira, apresenta-se como meio eficiente de expresso do que se prope manifestar e no necessariamente explicar. A arte resiste em ser apreendida pelas vias tradicionais de comunicao, requerendo e propondo renovadas percepes e sentimentos.

    A arte o campo privilegiado da manifestao esttica. Enquanto a lgica promove e organiza o campo cognitivo, relacionando os estmulos percebidos s respostas cognitivas manifestas em idias e pensamentos; a esttica promove e relaciona o campo afetivo, relacionando os estmulos percebidos s respostas afetivas manifestas em sentimentos.

    A intuio se manifesta primeiramente como o sentimento de um saber, portanto, mais relacionada esttica que lgica. Em princpio, as clarividncias religiosas, as hipteses cientficas e as ditas inspiraes artsticas parecem decorrer do mesmo princpio intuitivo, expresso a partir do campo esttico. Posteriormente, as vises religiosas sero interpretadas de acordo com a doutrina teolgica que regulamenta seu campo de emergncia; as hipteses sero desenvolvidas e avaliadas de acordo com os fundamentos e mtodos cientficos, e as inspiraes artsticas sero manifestas em obras de arte, as quais no sero avaliadas por sua verdade ou utilidade, mas pelo seu valor esttico ou artstico, de acordo com critrios individuais ou critrios reconhecidos como gerais, que so predominantes na poca de sua apresentao.

    Um objeto pode desempenhar diversas funes, de acordo com sua adaptabilidade funo prevista pelo sujeito que o percebe. H quatro funes-chave3:

    3 A definio dessas funes e a indicao de que a funo esttica predominante na obra de arte so apresentadas em MUKARVSK, Jan. Escritos Sobre Esttica e Semitica da Arte. Lisboa: Presena, 1993.

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    1. A funo prtica determina uma utilidade, fazendo do objeto um meio de execuo de um trabalho ou de atendimento de uma necessidade prtica. Assim, temos ps para cavar e cadeiras para sentar. O valor de cada objeto ser determinado pela eficincia e conforto proporcionados com a sua utilizao.

    2. A funo terica apresenta o objeto para estudo, o qual ser percebido em suas estruturas formal e conceitual e no seu contexto de significao. O objeto ser observado como um texto capaz de exprimir informaes tericas. Um exemplo interessante a descrio dos automveis recm-lanados no mercado, que traduzem o objeto material em conceitos, nmeros e dimenses: cilindradas, velocidade, peso, altura e capacidade, dentre outras especificaes.

    3. A funo mgico-religiosa mostra o objeto com atributos sobrenaturais, capazes de promover benefcios mgicos como proteo ou realizao de desejos. Os exemplos so as moedas de sorte, fitas do Senhor de Bom Fim e ferraduras ou trevo de quatro folhas, dentre outros.

    4. A funo esttica destaca no objeto os estmulos percepo do sujeito, estmulos visuais, tteis, auditivos, gustativos e olfativos, promovendo sensaes e sentimentos decorrentes dessa percepo. A funo esttica convive e interage com as outras funes, embora seja predominante na obra de arte. Ao escolhermos uma roupa, dentre duas ou mais com a mesma funo, por conta de qualidades perceptveis como: cores, formas ou texturas, a funo esttica que est sendo contemplada.

    A funo esttica a funo predominante no objeto de arte, submetendo as outras funes aos valores formais e compositores da obra para promover sentimentos e, a partir desses, conceitos e conhecimentos. Para finalizar este item sobre a arte h um trecho do texto Constelaes de Adauto Novaes4 em que o autor recorre a Paul Valry e Dante para ressaltar a arte como um exerccio de escolhas e composies em busca das formas de sentido:

    Certas combinaes de palavras, conclui Valry, podem produzir uma emoo que outras no produzem. O sistema de relao entre palavras comuns tem o poder de mudar o valor de cada uma delas, criando uma emoo potica, tornando-se musicalizadas e ressonantes de uma para outra atravs de uma criao prtica. Tomadas isoladamente, estas quatro palavras teriam sentido absolutamente banal. Mas quando lemos em Dante: Chove na alta fantasia, as palavras ganham todo o seu esplendor pelo trabalho da inteligncia.

    O trecho acima exprime a relao entre emoo e inteligncia, que possvel e tambm necessria na elaborao e recepo da obra de arte. O artista no simplesmente arrebatado por paixes, deve dispor de sensibilidade para ser afetado e se emocionar, mas, ao mesmo tempo, utiliza sua inteligncia e conhecimentos para qualificar, organizar e expressar suas emoes e concepes como obra de arte. O mesmo potencial requerido do espectador ou receptor. Contudo, vale ressaltar que sentimentos e intuies so princpios para quaisquer saberes criativos e, portanto, so os pontos de partida para a expresso e a recepo artsticas.

    4 O trecho citado foi extrado das pginas 16 e 17 do livro organizado por NOVAES, Adauto. Artepensamento. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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    A INTERAO ENTRE ARTE E CONHECIMENTO.

    H grande interatividade entre arte e conhecimento, primeiramente porque todo o conhecimento nasce de uma relao esttica com o mundo, j que precisamos sentir o mundo para conhec-lo.

    O processo de associao ou significao se estabelece, primeiramente, no campo dos sentimentos, ainda, de modo inconsciente e intuitivo. H, portanto, um fundamento esttico em todo ato de conhecimento. A consolidao de um saber intuitivo em conhecimento consciente e sistemtico constitui o prprio processo de formalizao do conhecimento.

    No comeo, seja na histria da humanidade, na histria do indivduo ou na constituio de um conhecimento novo, a relao do homem com o mundo mais prxima da arte do que da cincia. O ser e o conhecer esto continuamente ligados; o mundo percebido como continuidade do eu. Toda ao potica e autopotica, o distanciamento e o discernimento necessrios para um conhecimento formal so conquistas posteriores.

    Por outro lado, a obra de arte sempre requer conhecimentos para sua efetivao seja como performance ou como objeto. A necessidade de conhecer e dominar certos conhecimentos tericos e prticos constante na atividade artstica.

    Muitas vezes, a pesquisa em arte consiste exatamente em desenvolver processos eficientes de adaptao de produtos, tcnicas, linguagens ou teorias. Esses conhecimentos so empregados na realizao de obras esteticamente ou conceitualmente inovadoras. Por sua vez, os produtos dessas adaptaes so fontes de novos conhecimentos.

    Ao longo da histria da arte, foi produzido um grande acervo de conhecimentos originrios da prpria atividade artstica, compondo o campo das artes como uma rea de conhecimento. Todavia, os conhecimentos artsticos so amplamente utilizados em todas as outras reas do conhecimento, interagindo e contribuindo com diversos campos do saber sejam filosficos, teolgicos ou cientficos.

    Teorias e outros saberes produzidos em diversas reas sempre influenciaram a produo artstica que, em alguns momentos da histria, formulou expresses reveladoras desses saberes. O idealismo matemtico e o humanismo filosfico foram expressos na produo artstica da Antiguidade Clssica, do Classicismo renascentista e ps-renascentista; h amplas relaes entre a fsica ptica, a qumica e as artes visuais; a Teoria do Inconsciente de Sigmund Freud influenciou os artistas surrealistas e tambm foi expressa em suas obras.

    Essa potencialidade de expressar e promover conhecimentos de grande amplitude, incrementando a cultura com provocaes inovadoras e inspiradoras de novas concepes de mundo, capacita a arte como campo de interesse universal, fazendo-a interagir com todas as reas do conhecimento.

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    ARTE E EXPRESSO.

    O VALOR DA EXPRESSO.

    Os sentimentos e conceito que formamos a nosso respeito definem nossa auto-imagem. Mas, ao contrrio do que pode parecer em primeira instncia, esses sentimentos e conceitos, desde muito cedo, so predominantemente determinados pela maneira como o mundo em nossa volta responde s nossas expresses, ou seja, ao modo como aparecemos e agimos.

    A pessoa que investiu na realizao de certas atividades, encontrando condies propcias ou, pelo menos, favorveis para o sucesso de suas aes, constitui para si a imagem de algum bem sucedido, tornando-se sinceramente autoconfiante e inspirando confiana aos outros.

    Ns recebemos diversas respostas s nossas investidas neste mundo. Estas respostas so emitidas no somente pelas pessoas ou pelo meio social, mas pelo meio ambiente como um todo. Isso determina o modo como a pessoa percebe a si mesma e tambm como ir se expressar em decorrncia dessa percepo. Alguns manifestam uma exagerada autoconfiana, somente para esconder at de si mesmos suas inseguranas e fragilidades.

    Expressar-se ser percebido por nossas formas, atitudes e produes, revelando de maneira sincera ou simulada nossas idias e sentimentos. Por meio de nossas expresses apresentamos aos outros e a ns mesmos nossa subjetividade.

    H coisas que precisamos expressar, mas ns mesmos no sabemos disso, para tanto utilizamos diversos recursos e, dentre esses, destacam-se os sonhos e as expresses artsticas.

    As obras de arte expressam sentimentos e pensamentos por meio de aes e produtos que podem ser percebidos pelos sentidos e vivenciados ou assimilados pelo pblico de modo consciente ou no. Desse modo, a arte atende em plenitude as nossas necessidades de expresso, materializando subjetividades, permitindo a interao objetiva com nosso universo interior tanto para ns mesmo quanto para os outros que nos cercam ou que se acercam de nossas obras.

    IMAGINAO E EXPRESSO.

    H dois tipos de imagens: as imagens mentais, que so produzidas ainda na mente do sujeito por sua imaginao, seja de modo espontneo ou induzido pela observao, e, tambm, as imagens materiais ou visveis, que so produzidas pela ao da natureza do homem ou das mquinas, sejam essas mquinas mecnicas, eletrnicas ou digitais.

    Do mesmo modo que outros tipos de conhecimentos, as imagens mentais exigem mais imediatamente memria e imaginao. A produo humana de imagens ou outras expresses materiais exige observao, memria, imaginao e, principalmente, ao, relacionando o sentir, o pensar e o fazer. A produo de imagens ou de quaisquer outros tipos de expresso produo de conhecimento, independente do grau de complexidade ou inovao deste conhecimento.

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    EXPRESSO E PRODUO.

    Constitudo socialmente a partir do sculo XV, em decorrncia da ascenso da burguesia como classe histrica, o sujeito moderno valorizado pelo que produz, possui, ou pelas duas razes concomitantemente.

    Em algum momento de nossas vidas, todos ns desejamos cultivar o cio remunerado por um prmio de loteria ou uma herana, dentre outras possibilidades. Mas, mesmo assim, somos educados na admirao do trabalho e da produo, principalmente, das produes consideradas mais prazerosas e sofisticadas.

    O sujeito capaz de produzir desenvolve sua auto-estima porque em nossa sociedade de base burguesa, apesar de todos os desvios ticos, a capacidade de produo reconhecida e valorizada.

    Toda produo humana pode ser criativa, caso a criatividade seja bem desenvolvida em quem produz. As atitudes criativas requerem gosto, iniciativa, arrojo e autoconfiana. A necessidade e vontade de expresso, a busca de reconhecimento social, seja previamente como estmulo ou posteriormente como reforo, so estmulos bsicos produo criativa.

    Uma produo criativa requer e envolve a auto-expresso, comum ouvirmos que preciso se envolver no trabalho para realiz-lo com eficcia e criatividade. No campo educacional ou pedaggico, o incentivo auto-expresso, por meio de produo artstica no necessariamente profissional, possibilita a autoconscincia e, tambm, a aquisio de recursos de representao e interao com o mundo.

    A produo artstica , em si mesma, um tipo de produo que tambm atua como preparao e exerccio para o desempenho produtivo em qualquer outra atividade. A arte permite a auto-expresso e a interao com o mundo, estimulando o desenvolvimento afetivo, criativo, cognitivo e social. Isso ocorre com base no reforo da auto-estima e da autoconfiana, desenvolvendo no indivduo a capacidade de tomar iniciativa e decises para organizar e promover aes.

    Para que o desenvolvimento da expressividade criativa e o incentivo ao e produo ocorram com sucesso, necessrio que, seqencialmente, o indivduo seja estimulado na famlia e na escola, desenvolvendo-se em um meio que valorize e organize positivamente sua expressividade, reforando-lhe a auto-estima, mas tambm a autoconscincia. Pois, o objetivo no enganar o indivduo, mas estimul-lo a superar dificuldades desenvolver aptides e se tornar um sujeito, ou seja, um ser atuante e socialmente produtivo.

    ARTE E INCLUSO.

    A crtica corriqueira ao estmulo expresso artstica toma por base a evidncia de que muitas pessoas, que se dizem artistas, manifestam dificuldades para organizarem suas aes e produzirem coisas prticas. Entretanto, ao mesmo tempo em que distingue a arte, atribuindo-lhe sinais positivos e negativos, a sociedade percebe suas possibilidades e valoriza suas expresses. Assim, necessrio compreender as atividades artsticas, em seus diferentes nveis de sofisticao e qualidade, como campo de expresso e produo para pessoas que, de outro modo, no teriam condies de participar do processo produtivo.

    Para os iniciantes no processo produtivo e para aqueles que manifestam as mais diversas dificuldades de integrao social, sejam fsicas, psicolgicas, sociais ou mesmo financeiras, a arte se apresenta como processo de incluso social. Isso justificado porque as

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    atividades artsticas so produes estimuladas pela necessidade de expresso, que se manifesta naturalmente no ser humano.

    Alm disso, a concepo contempornea de arte no requer padres rgidos, sejam esses tcnicos ou estticos, e valoriza o ineditismo, a subjetividade e a criatividade, valorizando tambm a improvisao e a individualidade. O uso de materiais baratos, reciclveis ou alternativos, amplamente vlido e incentivado na produo artstica. Por isso, a arte um processo produtivo que se mostra ao alcance de todos ns, desde que sejamos estimulados a encontrar nossas prprias qualidades expressivas, sem precisarmos necessariamente conviver com modelos e procedimentos clssicos ou esteretipos estticos.

    Envolvido no desenvolvimento de suas formas de expresso, o indivduo se mostra interessado em aprender, buscando recursos para o aprimoramento expressivo. A sensibilidade e a intuio desenvolvidas pelas atividades artsticas so necessrias na construo de quaisquer conhecimentos, inclusive, na compreenso da lgica cientfica. Por outro lado, o desempenho de atividades artstico-expressivas requer aprimoramento da capacidade de planejamento e organizao e aquisio de conhecimentos tcnicos e comunicativos.

    Experimentar e representar consiste em conhecer. A arte utiliza, recria e renova conhecimentos e linguagens, constituindo para si um grande acervo de procedimentos e significaes, que so prprios da cultura artstica. Esse acervo comumente compreendido e disseminado por meio do Ensino de Artes.

    A arte, portanto, apresenta-se como campo de produo e conservao de conhecimentos prprios. Isso permite a formao profissional em diversas reas direta ou indiretamente artsticas, alm de propiciar a incluso de crianas, jovens e adultos no processo produtivo. Uma vez inseridas nesse processo, que requer percepo, criatividade, iniciativa e organizao, as pessoas se sentem preparadas para se desenvolver e atuarem nas mais diversas reas da produo humana.

    A incluso no manejo e produo em diversas reas tecnolgicas pode e deve ser estimulada no desenvolvimento de atividades artsticas. A necessidade e o prazer de se expressar serve de motivao para o aprendizado e aquisio de conhecimentos nas reas de fotografia e cine-vdeo, no uso de mquinas fotogrficas, cmeras de vdeo, ilhas de edio, entre outros, e tambm na utilizao de computadores e no domnio de novas tecnologias.

    DIALTICA DA EXPRESSO E ELABORAO.

    Ernst Fischer5 quem considera a natureza dialtica da arte, relacionando aspectos essenciais e contextuais, uma vez que considera a obra de arte como campo de envolvimento afetivo e intuitivo e, ao mesmo tempo, indica a necessidade de distanciamento lgico e discernimento para o bom uso de tcnicas e linguagens artsticas.

    Fischer recupera o pensamento de Nietzsche utilizando as figuras do deus Apolo: racional e lgico, e do deus Dioniso: emocional e intuitivo. Para o autor, a arte manifesta o carter dionisaco, requerendo e promovendo vivncias afetivo-intuitivas e utilizando codificaes subjetivo-expressivas e, ainda, requer e promove o carter apolneo, convocando os recursos da razo no desenvolvimento de tcnicas e formalizao de linguagens.

    5 FISCHER Ernest. A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

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    Um ator de teatro, por exemplo, ao interpretar o papel de um assassino, deve compor e vivenciar a cena terrvel de um assassinato, recuperando e desenvolvendo o processo dramtico, como foi assinalado por Aristteles (384-322 a.C.). Isso envolve a empatia entre o pblico e os personagens; a vivncia do pblico, por meio da ao dos personagens, e a catarse, que o pice de uma experincia afetiva, despendendo grande quantidade de energia emocional. Portanto, o ato teatral promove fortes vivncias e no apenas informaes. O ator deve interpretar seu papel de modo muito convincente, suscitando sentimentos de raiva ou horror caractersticos em uma tragdia. Por outro lado, esse mesmo ator deve manter-se todo o tempo consciente de sua representao. Deve permanecer a uma distncia racional da personagem que interpreta. Permanecer atento aos detalhes tcnicos de sua ao, como sua posio no palco, a altura de sua voz e os efeitos visuais de seus gestos, dentre outros. Caso o ator no tivesse esse discernimento e controle sobre sua ao, envolvendo-se apenas passionalmente na ao, poderia de fato cometer o crime que pretende apenas representar.

    As possibilidades de aproximao emocional ou distanciamento racional, tanto por parte do artista quanto do pblico, indicam a natureza dialtica da arte, fazendo interagir o trao lgico e o trao afetivo da ao humana. Isso determina dois campos de estudo e discernimento do fenmeno artstico: o primeiro o campo filosfico e psicolgico, que considera os valores simblico-afetivos, subjetivos e intersubjetivos da arte; o segundo o campo histrico, que se interessa pelas condies objetivas de elaborao e conservao das obras de arte, como antecipao e registros do momento da histria em que foram produzidas.

    A idia das obras de arte como registros de seu tempo j foi bem esclarecida neste livro; todavia, devemos ainda buscar compreender as obras de arte como veculos de antecipao de valores que esto sendo engendrados e ainda no foram expressos at o momento de sua produo.

    Como foi expresso anteriormente, a arte se mostra diferente da cincia e da religio, porque no aponta outra finalidade alm da existncia ou expresso de suas obras. Contudo, as formas de expresso das obras de arte tambm suscitam sentimentos e conceitos prprios de seu tempo. Em alguns casos, sentimentos e conceitos que so expressos pela primeira vez.

    Fredric Jameson estuda o processo econmico neste momento, que denominado como capitalismo tardio, faz isso para compreender as influncias econmicas nas atividades poltico-culturais de nossa sociedade6. O autor considera que as transformaes na economia determinam, em primeira instncia, as caractersticas sociais. Porm, sua anlise do processo econmico acontece na direo inversa de sua lgica de precedncias, porque comea pela observao das transformaes nas esferas artsticas, que so percebidas como primeiras instncias de expresso de mudanas culturais que ainda no foram devidamente percebidas nas expresses polticas e econmicas.

    Por exemplo, Jameson lamenta que modificaes to evidentes no campo arquitetnico, que determinaram a expresso arquitetura ps-moderna, no tenham se manifestado da mesma maneira em outras artes, porque isso facilitaria a anlise das transformaes que esto ocorrendo na atualidade.

    6 JAMESON, Fredric. Ps-Modernismo. So Paulo: tica, 1996.

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    ARTE E LINGUAGEM.

    LINGUAGEM, TEXTO E CDIGO.

    A linguagem expressa em textos7 ou conjuntos de sinais interativos, que adquirem sentido ou significao ao ser associados a outras coisas imaginrias ou materiais. As associaes so as determinantes da significao e do conhecimento. Um sinal significante quando pode ser associado a uma outra coisa diferente de si prprio, passando ento a indicar ou representar esse outro.

    Quando um sinal comumente associado a outra coisa ou coisas, passa a ter um significado e chamado por alguns de signo e por outros de smbolo8. Os textos so conjuntos de signos ou sinais significantes, porque podem ser associados a outras coisas imaginrias, como conceitos, idias e sonhos, ou materiais, como frutas, animais, mesas, pedras, etc. Tanto o signo quanto o texto representam outra coisa, por isso, podem ser denominados tambm como representao9.

    De modo geral, texto, signo, smbolo ou representao, todos esses termos designam sinais perceptveis ou formas de expresso que detm significao, porque so associados a outras coisas e as representam.

    O termo expresso indica capacidade perceptvel, assim, elementos expressivos so os que podem ser percebidos pelos sentidos: viso, audio, tato, olfato ou paladar. Coisas subjetivas, intangveis, como sentimentos e pensamentos necessitam de formas de expresso para serem percebidas.

    As formas de expresso so inmeras: gestos; sons vocais, corporais ou instrumentais, expresses faciais, rabiscos, manchas, etc. As formas ou sinais expressivos, que so elementos objetivos, quando associados a idias ou sentimentos, que so elementos subjetivos, tornam-se significativos porque passam a expressar, representar e comunicar essas idias e sentimentos. Todo elemento subjetivo necessita de um ou mais elementos objetivos para comunic-los.

    O choro, por exemplo, uma das primeiras formas de expresso humana. A me de um recm-nascido ao ouvi-lo chorar fica em estado de alerta, porque sente e sabe que o choro forma de expresso da insatisfao do filho. Contudo, durante os primeiros momentos da relao, a me no consegue reconhecer as diferentes peculiaridades do choro e, cada vez que o filho chora, toma uma srie de providncias aleatrias visando atend-lo e acalm-lo. Com o

    7 Neste livro, o termo texto, como veremos a seguir, representa mais que o texto lingstico, porque denominamos texto toda e qualquer forma de expresso capaz de produzir algum sentido. Assim, todo sinal ou conjunto de sinais, seja sonoro, visual, ttil, olfativo, dentre outros, ao adquirir sentido ou significao considerado um signo ou um conjunto de signos e conseqentemente um texto. 8 Algumas teorias indicam o signo como sinnimo de smbolo. A Fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), por exemplo, no estabelece distines entre os termos. Outras teorias, como a Semitica de Charles Sanders Peirce (1839-1914), apontam o smbolo como um tipo especial de signo. Neste livro, adotamos uma teoria bsica e geral, em que, em princpio, signo, smbolo e representao podem ser tratados como sinnimos, do mesmo modo como nos apresenta os dicionrios de lngua portuguesa, a despeito de sabermos da existncia de teorias que especificam cada um desses termos. 9 O termo representao vinculado imitao do real (mimese), caracterizando aquilo que imita por analogia o mundo objetivo. Contudo, mantendo o carter didtico deste livro, a princpio, estamos considerando a representao em um sentido amplo, que abrange a representao de coisas objetivas e a expresso de coisas subjetivas, como prope a frase: essa msica representa (ou expressa) meus sentimentos por voc.

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    passar do tempo, entretanto, as diferenas entre um tipo de choro e outro vo sendo reconhecidas e a cada forma diferenciada dessa expresso associado um estado fsico ou emocional: fome, sono ou birra, dependendo de sua entonao ou continuidade.

    Quando uma forma de expresso associada a outra coisa, ela passa desenvolver um processo de significao, percorrendo o caminho entre a mera expresso, cujo significado ainda muito particular, indeterminado e subjetivo, e a comunicao, em que o significado pr-determinado, objetivo e geral.

    As linguagens se estabelecem por meio de codificaes, que so associaes consolidadas em uma relao. Qualquer pessoa pode estabelecer um cdigo.

    Por exemplo, dois ladres podem estabelecer entre si que um assobio ser o aviso para indicar a aproximao de algum que ir colocar em risco um furto. Assim, enquanto um furta o outro fica vigiando de modo que, ao menor sinal de perigo, o assobio possa alertar o companheiro sem chamar demasiada ateno de outras pessoas. Nesse caso, estamos diante de um cdigo secreto. Todavia, as codificaes que sustentam a amplitude de comunicao de um texto, tanto no tempo quanto no espao, so aquelas cuja codificao de domnio geral, permitindo com que muitos decodifiquem a mensagem ao perceb-la.

    De acordo com o exemplo proposto, um cdigo necessita de uma conveno ou associao, por isso, no nosso exemplo, os ladres precisaram combinar, arbitrar ou convencionar, que o assobio seria o sinal de perigo. A linguagem escrita ou falada altamente codificada e suas significaes so to objetivas que constam em uma lista denominada dicionrio. Mas, alm das convenes arbitradas ou previamente combinadas, existem tambm as associaes por analogia e por hbito.

    A imagem de um peixe pintada na parede interna do supermercado produz uma associao por analogia, devido semelhana formal entre a imagem do peixe e o produto peixe. Isso nos faz supor que estar ali perto o balco de vendas de pescado.

    Quando avistarmos a imagem de um pingim sobre uma geladeira domstica, entretanto, ns no iremos associar que se trata de um balco especfico para aves congeladas, porque no estamos acostumados com isso. Vamos entender o objeto como um enfeite, porque, no Brasil, ao longo do tempo assumimos o hbito de associar pingim a adorno de geladeira, devido recorrncia dessa cena em nosso ambiente cultural.

    Uma codificao estabelecida, portanto, por conveno, por analogia ou por hbito. Durante nossa existncia, seja por analogia ou por hbito, ns apreendemos inmeros cdigos sem nos darmos conta. Por isso, podemos dar sentidos a diversas coisas com as quais ns nunca nos preocupamos em estudar formalmente. Uma vez que procuramos estudar formalmente apenas as codificaes convencionais.

    Por exemplo, somos capazes de dar significao a cada uma das diversas expresses faciais e corporais, dentre muitas outras codificaes que sabemos, mas no nos damos conta de como aprendemos. O aprendizado dos cdigos faciais e corporais foi sendo construdo ao longo de diversos anos de convvio familiar e social, o que constituiu um vasto acervo de significaes que foram sendo refinadas no percurso de nossa vida.

    Considerando esse aspecto, percebemos que um texto sempre apresenta duas dimenses: a primeira sincrnica e trata do que o texto significa para mim agora, no momento em que eu o estou percebendo; a segunda diacrnica e trata do processo de formao dos sentidos que, no decorrer do tempo, propiciaram essa significao atual ao texto.

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    Quando nos deparamos com uma palavra queremos saber seu significado aqui e agora (sincronia), para tanto, recorremos a um dicionrio. Porm, quando quisermos saber como a palavra adquiriu essa significao, deveremos recorrer a um dicionrio etimolgico, o qual indicar sua origem e possivelmente seus ganhos de significao no tempo e espao (diacronia).

    A dimenso diacrnica do texto aponta que a significao, tanto no que pode ser suscitado no campo das idias quanto dos sentimentos, tambm um produto histrico10. As nossas potencialidades de conhecimento, interpretao e entendimento so educveis e podem ser desenvolvidas tendo como parmetro o processo histrico.

    Todo texto tem um carter histrico, pois cada perodo coloca para os homens certos problemas e os textos pronunciam-se sobre eles11.

    Uma mesma poca produz muitas idias convergentes e divergentes. necessrio entender as concepes vigentes e os conflitos existentes em uma mesma poca, em uma mesma cultura. Mas, como as idias s podem ser expressas por meio de textos objetivos, necessrio estudar as interaes e contradies dentre os textos de uma mesma poca ou cultura, por meio de estudos comparativos.

    Os textos so produtos do processo histrico e cada um envolve uma soma total ou parcial de outros textos distribudos no tempo e no espao. Neste caso, como em muitos outros, o produto maior do que a simples soma de suas partes. O significado global de um texto resulta de uma certa combinao geradora de sentido.

    Um texto que rene formas de expresso ou significao j conhecidas pode reedit-las para compor uma mensagem absolutamente inovadora. possvel dizer o novo com palavras antigas. A cultura acervo e campo de cultivo de todas as significaes, das j existentes e das que esto por vir. Um novo texto confirma e inova parte das significaes desse acervo e contradiz outra parte, confirmando algumas idias propostas nos textos j existentes e se opondo a outras.

    TEXTOS E LINGUAGENS ARTSTICAS.

    Os textos artsticos so caracterizados pelo predomnio da funo esttica sobre as outras funes do texto. A esttica presente em todas as formas de expresso, porm, como indicamos anteriormente, predominante na arte.

    A cultura rene e expressa o conjunto de todos os textos produzidos e a arte uma parte importante da cultura, porque rene e expressa os textos artsticos.

    Um texto percebido como algo material, um conjunto de sinais ou formas de expresso, associado a sensaes, imagens, sentimentos e conceitos. Tudo que associado a um texto passa a ser representado por ele.

    Os textos representam muitas coisas, mas, tambm, representam a si mesmos, no que tm de comum com outros textos e no que se mostram peculiares.

    10 A oposio proposta por Saussure entre diacronia e sincronia tomava como ponto de fora a sincronia, que indicou a lgica interna em um sistema lingstico em relao direta e formal entre seus elementos constitutivos. A diacronia no foi devidamente considerada nessa teoria porque o seu foco atemporal, tanto que,atualmente, os dois termos so substitudos pelo conceito de acronia. 11 Sobre esta e outras relaes entre os textos e o contexto scio-histrico, ns tomamos por base o trabalho de

    PLATO, Francisco e FIORIN, Jos Luiz. Lies de Texto: Leitura e Redao. So Paulo: tica, 1996.

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    Diante de um papel escrito ou desenhado, cada um de ns reconhece ser um texto escrito ou um desenho. Em seguida, tentaremos ler o que est escrito ou reconhecer o que est desenhado, buscando associar as palavras e compor idias ou reunir formas e configurar imagens. As idias ou imagens consistem ento naquilo que o texto representa alm de sua realidade material, indicando uma outra realidade simblica.

    O contato com o texto ir promover em ns percepes e sentimentos que, por sua vez, produziro tambm sentidos e significados12 peculiares s especificidades do texto em particular. Isso se d tanto por reconhecimento como por interpretao.

    Podemos dizer, por exemplo, que percebemos um conjunto de linhas, as quais sentimos serem harmoniosas alm de reconhecermos que essas linhas compem a imagem de uma pomba e, ainda, podemos interpretar a figura da pomba como um smbolo de paz. Isso estabelece trs nveis de produo de sentido:

    1. O primeiro nvel relacionado s formas de expresso, no caso, harmonia ou desarmonia das linhas, independente do tema representado.

    2. O segundo nvel determinado pela representao, seja um desenho de uma pomba ou uma grafia da palavra pomba.

    3. O terceiro nvel indicado por associaes simblicas, estabelecendo alegorias ou metforas, no exemplo dado, a pomba pode ser associada paz.

    Para sentirmos a harmonia das linhas, necessariamente, no precisamos reconhecer a figura da pomba, porque a harmonia das linhas no uma propriedade da figura desenhada, mas do desenho em si mesmo, ou seja, depende do modo como as linhas foram traadas sobre o papel.

    possvel desenharmos uma pomba com linhas rspidas, quebradas, expressando desarmonia. Do mesmo modo que algum pode escrever palavras feias com letras bonitas ou palavras bonitas com garranchos mal desenhados.

    Pode nos parecer mais agradvel a frase que diz: eu gosto de pras ainda verdes do que outra formulao como: eu gosto de pras quando no esto maduras. No h nenhuma mudana notvel quanto ao contedo da frase, mas h alterao na quantidade de palavras, sua ordenao foi alterada e houve a substituio das palavras ainda verdes pela expresso quando no esto maduras.

    Muitas expresses diferentes apresentam contedos equivalentes, entretanto, quando variamos a ordem ou substitumos as palavras, freqentemente, alteramos tambm o sentido esttico da frase. Isso vale para as palavras ou para quaisquer outras formas de expresso, variando a tcnica ou o estilo de expresso, certamente, modificamos tambm o sentido do texto.

    H o que se quer dizer, que o contedo, e o modo como se diz, que a forma. Posso mesmo escrever no (com letras minsculas) ou NO (com letras maisculas), no foram alteradas as letras ou a palavra, apenas substitumos as letras minsculas por maisculas. Em ambos os textos, o significado permanece equivalente, mas h variao de sentido. A segunda forma de expresso se mostra mais contundente ou expressiva: o primeiro no fala firmemente, mas o outro grita.

    12 Quanto ao aspecto didtico, interessante distinguir os termos: sentido e significado. O primeiro termo (sentido) envolve impresses e sentimentos. O segundo termo (significado) indica discernimento e conveno. O significado das palavras descrito nos dicionrios, mas o sentido no.

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    A esttica tem origem nas formas de expresso, so as variaes formais que determinam as variaes estticas, submetendo o que dizer ao como dizer. A esttica relacionada criatividade e ao conhecimento, porque a variao das formas e da estrutura compositora de um texto abre caminhos para novos sentidos ou significaes.

    Por exemplo, a conhecida frase promessa dvida, pode ser atualizada com a seguinte formulao: promessa dvida. A nova frase produz no s um entendimento, mas tambm um sentimento e nos leva ao riso. O significado mudou, embora tambm mude quando dizemos uma promessa uma temeridade; porm, no h tanta graa, porque a ltima frase produz um entendimento equivalente sem provocar o mesmo sentimento. A frase promessa dvida provoca o riso pelo paradoxo entre a coincidncia formal e a oposio de significados. As palavras dvida e dvida apresentam configuraes e sonoridades muito semelhantes e significados absolutamente contraditrios.

    O que foi apresentado acima caracteriza o modo como a arte se articula e articula a linguagem. A arte prope algo alm de um conhecimento intelectual e de um significado, buscando ampliar as fronteiras da experincia perceptiva, afetiva e intelectiva.

    A arte linguagem, quando interage com codificaes e prope significaes, mas atua de modo ambguo com os cdigos j existentes, no se deixando apreender totalmente. Isso provoca um certo estranhamento, ampliando os limites da linguagem. A lngua e as linguagens so substncias da arte, que no se restringe na linguagem. Como informa o poeta Manoel de Barros, para se fazer poesia preciso adoecer as palavras.

    A funo esttica ou potica do texto comprometida com as formas de expresso e com a produo de sentimentos, alia-se funo emotiva, podendo se opor funo referencial13, que expressa o referente, ou seja, a representao ou a simbolizao a qual o texto se refere.

    A esttica a funo predominante no texto artstico, um objeto pode ser percebido e interpretado como um texto que, tambm, pode ser percebido como um objeto. Assim, os textos podem cumprir as diversas funes propostas para os objetos, mas uma funo pode e costuma predominar sobre as outras.

    Em um texto didtico-explicativo (objetivo) suas formas de expresso sero selecionadas, organizadas e subjugadas ao contedo a ser explicado. A prioridade ser a comunicao clara de um contedo. Por sua vez, o texto artstico (subjetivo) ir subjugar o contedo s formas expressivas, visando propor determinadas percepes e vivncias emocionais e relaes conceituais.

    A mola propulsora da arte a necessidade de expresso; a funo esttica acentuada para atender funo emotiva. O texto artstico prioritariamente auto-referente e autopublicitrio, referindo-se primeiramente a si mesmo, priorizando a composio de suas formas de expresso de modo particular.

    Por exemplo, as caricaturas ou retratos expressionistas apresentam despropores que comprometem a representao naturalista e privilegiam os traos expressivos. No possvel substituir uma caricatura por um retrato ou mesmo por outra caricatura. Isso porque o sentido esttico do texto alterado por qualquer alterao na suas formas de expresso. A caricatura fala muito de seu referente, a personalidade ali representada, mas fala de modo

    13 As principais funes da linguagem so: 1- a funo emotiva, que expressa os desejos e intenes do emissor; 2- a funo potica, que se estabelece na composio das formas de expresso da mensagem; 3- a funo referencial, que se refere ao objeto ou contedo da mensagem; assim propostas por JAKOBSON, Roman. Lingstica e Comunicao. So Paulo: Cultrix, 1977.

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    absolutamente vinculado sua prpria forma de expresso. Nesse sentido o texto se refere ao outro, mas, tambm, refere-se muito a si mesmo, promovendo sua autopublicidade. Alterando as caractersticas expressivas, a obra perde o seu sentido original, apresentando-se como um outro texto.

    As possibilidades discursivas, ou seja, as linguagens nos textos artsticos so constitudas de acordo com as tcnicas empregadas, com as imagens representadas e com os conceitos assinalados. Esses elementos interagem entre si, determinando a expresso e a composio do discurso esttico ou artstico.

    As caractersticas das tcnicas empregadas e da composio realizada determinam em grande parte a significao do texto, independente de imagens ou temas representados. Observem as diferenas nos dois desenhos abaixo, ambos realizados por Cndido Portinari em 194714. H o mesmo tema e mesma figura, mas as tcnicas e os tratamentos de composio so diferentes (desenhos A e B).

    (A) (B)

    O desenho A, representado acima, foi originalmente realizado com tinta branca e pincel sobre um carto azul escuro, compondo uma figura com linhas sinuosas, que variam de espessura e demarcam ritmos ondulados.

    Como tambm representado acima, o desenho B foi realizado originalmente com lpis preto sobre carto, definindo linhas e formas em uma composio com forte tendncia geomtrica; as alteraes de tonalidade entre as formas representam as variaes de luz e sombra.

    Ambos os desenhos representam um menino saltando, com braos e pernas estendidas. Sabemos disso porque os desenhos foram realizados como estudos para compor um painel de azulejos, que o artista realizou no mesmo ano de 1947, para o residencial do Pedregulho na cidade do Rio de Janeiro. No painel, esse menino aqui representado em duas verses salta sobre uma outra figura curvada, como comum em certas brincadeiras infantis.

    Observando os desenhos fora das relaes do painel, entretanto, o menino do desenho A sugere melhor um salto que o menino do desenho B, porque esse ltimo parece sentado em um canto, devido s formas em seu entorno que sugerem sombras projetadas no fundo da composio.

    14 PORTINARI, Joo C. (org.). Portinari: O menino de Brodsqui. Rio de Janeiro: Livroarte, 1979.

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    O menino do desenho A etreo, leve, porque s sua silhueta demarcada e, mesmo assim, de modo muito livre, com linhas harmonicamente ritmadas em formas sinuosas, danantes. Sua composio sugere liberdade e autonomia, porque nos parece livre e independente do entorno, exceto pela geometria do quadrado, que lhe serve de moldura. Aparece como algum que salta do batente de uma janela e ganha o espao.

    H uma maior estruturao no desenho B, configurando volumes, atribuindo massas e revelando o peso do corpo. Em comparao com o desenho A, isso aparece como um excesso de formalidade, pelas roupas mais estruturadas pela representao de luzes e brilhos. O menino desse desenho B mais fixo, mais determinado, para saltar, precisa ser alado pela imaginao, que deve romper com a idia das sombras que o prendem ao fundo. Nisso h uma indicao de dependncia.

    Os dois desenhos anunciam sua funo simblica, porque no buscam com determinao a representao naturalista. Ambos so expressivos e cada uma deles compe um tipo de lirismo: no desenho A o lirismo determinado pelas linhas elegantemente sinuosas, que remetem aos movimentos orgnicos da Arte-Noveau; no desenho B o lirismo resulta do tratamento dado imagem que sugere a representao de um pequeno Pierr, uma figura um pouco maquiada e fantasiada. Porm, a linguagem linear e sinuosa do desenho A , em si mesma, mais solta e autnoma do que o rigor geomtrico utilizado no desenho B.

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    ARTE E HISTRIA.

    . As linguagens e a histria so antigas e constantes aliadas porque, utilizando inmeras linguagens e codificaes, o passado revive em seus prprios vestgios, registros e produtos. Oficialmente, a origem da histria vinculada linguagem escrita, uma vez que, por definio, o aparecimento da escrita demarca o advento da histria. Entretanto, h tambm uma histria no escrita do perodo denominado pr-histria. Por outro lado, muitos fatos histricos ainda hoje so evidentes e reconhecidos por meio de textos no lingsticos, compostos principalmente por imagens e objetos que revelam na sua forma e no seu contedo os modos de vida e as concepes de mundo de seu tempo.

    A arte tambm utiliza as linguagens para realizar sua produo compondo, longo de sua histria, um amplo acervo de textos, que renem sinais visuais e sonoros em composies imagticas e musicais, dentre muitas outras.

    Em primeira instncia, os textos artsticos testemunham sobre si mesmos, sobre sua prpria histria e sobre a histria da arte. Mas, as obras de arte tambm registram materiais, tcnicas, imagens, cenas, sons e estilos da poca de sua produo e, assim, documentam o seu tempo. Alm disso, como quaisquer outros textos, as obras de arte podem, ainda, referir-se a outras pocas e lugares, compondo suas narrativas com base em documentao histrica ou relatos de pessoas que viveram outras pocas ou lugares diversos.

    As obras de arte so parte da produo humana e atuam como registros histricos, estabelecendo duas vertentes de interao entre si mesmas e a histria.

    A primeira vertente a que apresenta o texto artstico ou a obra de arte na histria, definindo a histria da arte como um campo de estudos especficos. Alm de recuperar, conservar, organizar e ordenar os dados e fatos artsticos no tempo e no espao, a histria da arte deve tambm ampliar o seu olhar para o contexto scio-econmico e poltico-cultural do qual emergiram as obras de arte e outros textos que lhes so contemporneos. Este procedimento busca compreender as razes histricas da criao e conservao das obras de arte que compem o acervo artstico-cultural da humanidade.

    A segunda vertente a que apresenta o texto artstico ou a obra de arte como documento ou registro histrico, inserindo a arte na histria geral. Nesse sentido, os documentos histricos no so apenas os textos ou as obras de arte cuja temtica ou contedo se referem a fatos ou personagens da histria. Os materiais e tcnicas utilizados, os elementos apresentados, o tratamento esttico dado a esses elementos e a maneira como foram organizados na composio so percebidos como importantes indcios histricos e muito reveladores das condies econmicas, polticas e culturais do momento em que a obra foi realizada.

    Os textos artsticos utilizam os cdigos lgicos, mas, tambm e principalmente, recorrem aos cdigos poticos, subjetivos e expressivos, para exprimir e produzir sentidos afetivos, indicando que a primeira motivao do fazer artstico individual e subjetiva.

    preciso considerar, todavia, que a prpria concepo individual de artista produto histrico, datado, que se originou na cultura ocidental durante o Renascimento (sculo XV), portanto, apesar da significativa participao da subjetividade no podemos interpretar a obra de arte como produto puro e simples da inspirao de um artista.

    No perodo medieval, por exemplo, no havia a distino entre artista e arteso e, tambm, a arte das comunidades primitivas, via de regra, produo coletiva. A idia de que o artista um ser inspirado, genial, distante dos acontecimentos mundanos um mito que

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    surgiu no Renascimento e foi consolidado pelo Romantismo (sculo XIX), mas isso foi veemente negado pela prtica artstica em outros perodos.

    No h como separarmos a motivao inicial, subjetiva, que determinada pela necessidade de expresso individual do artista, de todo o processo histrico de elaborao, expresso, produo e insero da obra de arte no meio social.

    Para atender essa motivao inicial, individual e subjetiva, produzindo uma obra de arte, o artista imediatamente utiliza elementos do acervo histrico-cultural que lhe disponvel, seja para obter os materiais, para desenvolver as tcnicas ou para compor os sinais produtores de sentidos e significados.

    A despeito de suas individualidades, muitos artistas japoneses, por exemplo, produzem trabalhos que denotam um estilo japons de produo artstica. Um estilo reconhecido pelas semelhanas no uso dos materiais, das tcnicas e da composio formal.

    A composio de um estilo regional, em grande parte, decorre do fato dos artistas pertencerem ao mesmo ambiente natural e cultural, dispondo de acervos comuns, tanto materiais quanto simblicos, para elaborar suas obras. A despeito da individualidade de cada artista, as obras apresentam traos comuns porque so produzidas a partir de elementos tpicos de um mesmo meio ambiente.

    Por outro lado, a prpria constituio da subjetividade decorre da vivncia histrico-social do indivduo em um determinado meio e durante um certo perodo de tempo. Os valores subjetivos so determinados nas relaes familiares e scio-culturais, por isso, a subjetividade pode ser entendida como objetividade interiorizada15.

    A subjetividade decorrente de um conjunto de experincias objetivas vividas pelo indivduo em sua relao familiar e comunitria, seja porque viveu em meio fome ou fartura, em um clima frio ou quente, predominou o estado de solido ou de acolhimento, cresceu perto do mar ou no deserto. Tudo isso determinante de uma viso de mundo, particularizando os sentimentos e discernimentos do indivduo.

    As semelhanas e diferenas estilsticas auxiliam na percepo de vrios aspectos subjetivos, por isso existem caractersticas expressas nos textos artsticos que so tipicamente individuais, determinando um estilo pessoal. Mas h outros traos recorrentes na produo que so definidos e identificam o meio natural e cultural de um momento determinado no tempo e espao.

    Por exemplo, independente da assinatura do artista, uma pintura de Vincent Van Gogh (1953-1890) inconfundvel devido ao seu forte estilo pessoal. Por outro lado, as obras de Van Gogh se identificam visualmente com outras pinturas revolucionrias do sculo XVII, distanciando-se da esttica acadmica que tomava por base a cannica renascentista.

    Os parmetros estticos so produzidos e desenvolvidos historicamente, porque o valor esttico fruto da relao entre os sujeitos histricos e os objetos que eles percebem e aceitam como obra de arte. O texto artstico manifesta sentido esttico ao permitir associaes afetivas e culturais, que lhes so atribudas a partir do momento e do contexto scio-histrico em que esto inseridos o artista, a obra e o espectador. O texto artstico supera a individualidade do artista para testemunhar sobre as caractersticas e valores de seu tempo.

    15 A idia de subjetividade como objetividade interiorizada foi retirada de MUKARVSK, Jan. Escritos Sobre Esttica e Semitica da Arte. Lisboa: Presena, 1993: cada vez se compreende melhor que o contedo da conscincia individual dado, at sua maior profundidade, pelos contedos da conscincia coletiva (p.11).

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    Como prtica ou atividade, mesmo a arte mais revolucionria necessita de conceitos, conhecimentos, tcnicas, materiais e ideais do seu meio cultural. Porm, subverte os parmetros da cultura, compondo seus elementos de maneira inovadora. Em seguida, as novas linguagens e obras artsticas passam a interagir com seu meio cultural de emergncia, sendo absorvidas pela cultura que se renova com esses novos elementos.

    A arte de vanguarda utiliza-se do acervo cultural para compor obras e procedimentos inovadores, os quais so posteriormente reincorporados como parte renovadora da prpria cultura.

    O TEXTO ARTSTICO NA HISTRIA.

    A histria da arte contada pelas obras que foram oficialmente conservadas e, tambm, por outras que foram sendo localizadas e identificadas como elementos importantes na recomposio do percurso histrico em geral ou da histria da arte.

    As obras preservadas desde sua produo ou aquelas que foram posteriormente recuperadas, avaliadas e conservadas compem um acervo que, de modo proposital ou no, foram excludas muitas outras obras, que desapareceram ou que no foram positivamente avaliadas como obras de arte.

    A histria da arte , portanto, a histria da apropriao e conservao de certas obras consideradas importantes para a composio da memria histrica da produo cultural, tendo em vista os padres estticos e poltico-ideolgicos que predominaram e permaneceram vlidos, sobrevivendo s diversas reviravoltas ocorridas no transcurso do tempo histrico.

    Dentre as obras e estilos que foram conservados, tambm, h parmetros de valorizao de acordo com o que considerado mais valoroso por um dado perodo da cultura. Por exemplo, na cultura ocidental moderna, fundada sobre a razo e o humanismo, as obras dos estilos mais racionais e formalistas foram mais valorizadas que outras mais expressivas e informais. Assim, o Renascimento, o Classicismo e o Formalismo Construtivista, no geral, foram mais valorizados do que o Barroco, o Romantismo e o Informalismo, esses ltimos so constantemente acusados de irracionais e inconseqentes.

    Isso um problema, por exemplo, para a valorizao de nossa arte brasileira, em que o Barroco nacional um estilo mundialmente destacado por sua qualidade e peculiaridade, mas, durante muito tempo, no foi devidamente valorizado na nossa prpria cultura impregnada pelos valores formalistas europeus, determinados especialmente pelo classicismo francs.

    A HISTRIA NO TEXTO ARTSTICO VISUAL.

    O texto artstico apresentado por sua composio visual, porque na sua estrutura de expresso que a esttica e a linguagem se manifestam, inclusive, para servir ao campo histrico. Em decorrncia de suas demandas histrico-culturais, cada perodo produz formas tpicas de expresso.

    Um exemplo disso a temtica religiosa que foi recorrente tanto na Idade Mdia quanto no Renascimento, porque ambos os perodos sofreram forte influncia do iderio religioso, embora o perodo medieval tenha sido mais receptivo e o perodo renascentista mais reativo a essa influncia religiosa. Nos dois perodos, entretanto, so recorrentes nas pinturas e esculturas os temas como: anunciao, madonas com menino e crucificao, todos ligados vida de Cristo e Religio. A distino que possibilita nossa percepo dos momentos de maior aceitao ou rejeio ao iderio religioso e que, portanto, distingue a arte

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    medieval da renascentista e vice-e-versa o tratamento dado composio artstica como mostram as suas formas de expresso:

    No caso da arte medieval, suas representaes de cor e forma so planas (chapadas); predominando o uso da linha na configurao das imagens, cuja postura hiertica e rgida, indicando uma ordem mais simblica e hierrquica em toda a composio.

    Por sua vez, a arte renascentista representa cores e formas com forte apelo naturalista, representando com veracidade visual as texturas da pele humana, dos tecidos e dos objetos. Essa verossimilhana foi obtida pelo uso das tintas com variaes tonais proporcionando passagens sutis do claro ao escuro e, tambm, nuanas cromticas variando diversos matizes de uma mesma cor. Os produtos deste trabalho so formas luminosas e volumtricas que representam com toda naturalidade o corpo humano seu vesturio e todas as coisas dos mundos natural e cultural, caracterizando o que, posteriormente, foi denominado como modo fotogrfico de representao.

    Os valores mais simblicos e transcendentais do mundo feudal so bem representados por sua iconografia, expressando as relaes de poder entre a Igreja e a aristocracia rural, com base na hegemonia ideolgica da doutrina religiosa.

    H um padro recorrente nas artes das sociedades teocrticas, ou seja, daquelas em que a religio ocupou o centro do poder. Em uma sociedade como a do Egito antigo, sustentada na crena de que o fara era o filho do deus Sol, a arte se expressou de forma muita semelhante arte medieval, no somente por representar suas divindades, mas, principalmente, pelo modo de representao com cores planas (chapadas) e formas em que predominam o uso da linha na configurao das imagens, com a mesma postura hiertica e rgida, indicando tambm a mesma ordem mais simblica e hierrquica em toda a composio.

    No perodo medieval, diante da impossibilidade de se implantar a crena de que o rei ou o Papa era o filho de Deus, porque Cristo j havia ocupado esse lugar, a relao entre o poder poltico e o religioso ocorreu por meio da representao da cena religiosa como um reino, em que Cristo foi representado como um suserano e os apstolos e santos compondo sua corte no cu.

    J os valores humanistas e mercantilistas do Renascimento so expressos no naturalismo das formas, emprestando caractersticas carnais s personagens, alm de enfatizar os valores das mercadorias, das vestimentas e adornos. O brilho das prolas e dos cetins combina com a maciez dos veludos e tafets, que revestem de valor e status as imagens de nobres e comerciantes.

    Como foi indicada nos pargrafos anteriores sobre as artes visuais em trnsito entre o medievo e a modernidade, a demarcao simblica nos elementos de composio dos textos artsticos, como expresso do iderio histrico, pode e deve ser tambm considerado nas expresses artsticas dos mais diversos perodos histricos e, ainda, ser percebido em textos de outras reas do conhecimento.

    Isso possvel porque a produo humana em grande parte determinada por motivaes histricas, que caracterizam a estrutura de expresso dos textos produzidos em uma determinada poca. O contedo temtico dos textos produzidos pode tratar diretamente de seu momento histrico ou express-lo de modo indireto, mas o arranjo e tratamento das formas de expresso sempre manifestam alguns valores de seu tempo.

    No devemos esperar, de modo ingnuo, que tudo nos seja indicado pela morfologia dos textos, sejam esses textos artsticos ou no. Muito embora, igualmente ingnuo esperar

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    que a histria seja contada unicamente por textos que discorram ou narrem diretamente os fatos determinantes dos momentos histricos em que foram produzidos. Os instrumentos, as prticas, as formas de expresso ou linguagem revelam caractersticas do momento histrico em que foram produzidas. O universo dos objetos culturais um acervo de textos que nos convoca para diversas leituras tanto no campo do contedo quanto da forma.

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    ROTEIRO HISTRICO.

    Introduo Antiguidade.

    No princpio tudo era mgico, porque, nos primrdios de seu desenvolvimento, o homem guiava suas aes de acordo com seus instintos, sentimentos e intuies, relacionando-se esteticamente com o mundo a sua volta. O raciocnio estava em processo de construo, assim, todo fazer no instintivo era trgico, criativo e potico, mais prximo das atividades artsticas do que das atividades lgicas.

    Nada era arte, entretanto, porque havia uma plena identidade entre arte e vida, em que uma no se distinguia da outra. Arte, cincia e religio estavam reunidas pela magia inicial que tornava o viver um processo mtico e mstico.

    No mundo anmico do homem primitivo tudo adquiria um sentido mgico-religioso e os atos ou os gestos eram propiciatrios de sorte ou azar. A vida era recoberta pelo trgico. As aes humanas deveriam interagir com todas as entidades, com pedras, animais, plantas, enfim, com todos os seres da natureza.

    O brilho das pedras, o som das guas, a fora dos ventos e dos animais, os ritos naturais de acasalamento chamavam a ateno dos homens para os mistrios a sua volta. A ausncia de uma plena relao lgica, determinante das relaes entre causa e conseqncia, imprimia em cada ao acertada um sentido mgico e em cada ao frustrada um sentido trgico. Portanto, alm dos instrumentos prticos para a ao e a comunicao, um conjunto de mitos e ritos foi constitudo, visando a interao simblica com as entidades naturais.

    Primeiramente, h manifestaes que, atualmente, seriam percebidas como arte, essas eram expressas nos objetos mticos e nas prticas ritualsticas, assim como aes da medicina e outras que, atualmente, seriam reconhecidas como cientficas. A relao mgica com o mundo abrigava a religio, a arte e a cincia.

    Por exemplo, um canto de guerra era mgico porque fortalecia os companheiros e, principalmente, enfraquecia os inimigos. Mas, um canto distante do inimigo no pode afet-lo, muito embora reforce a unio e a coragem entre companheiros. O canto fortalece os cantores e outros participantes, mas no necessariamente enfraquece os inimigos. Contudo, na conscincia primitiva os fenmenos eram retidos mais pelas conseqncias (o inimigo nos pareceu fraco), do que pelas causas (chegamos fortalecidos, unidos e confiantes diante do inimigo).

    Posteriormente, as expresses artsticas perdem seu sentido estritamente mtico e passam a ser percebidas mais como a expresses de desejos ou sentimentos, do que garantias mgicas de resultados efetivos. No momento em que se separou dos mitos propiciatrios, a arte foi considerada do modo como a compreendemos na atualidade.

    Considerando o perodo oficial at 4.000 a.C., a pr-histria foi um tempo de sistematizao de procedimentos factuais e simblicos, estabelecendo aes e ritos de relacionamento e domnio do homem sobre a natureza. Nos textos visuais esse processo de estruturao e dominao percebido em dois grandes perodos: o Paleoltico e o Neoltico.

    O Paleoltico marcado por um carter mtico-naturalista, determinado pelo uso dos sentidos como meio de apreenso, representao e domnio mgico do mundo. As figuras de animais representadas nas cavernas so naturalistas e as funes dos utenslios e ferramentas tm uma ligao direta com sua forma.

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    O Neoltico j expressa um carter mtico-simbolista, marcado pelo uso da razo como meio de sistematizao e estilizao dos processos de representao e comunicao das relaes do homem com o mundo, que ainda so mediadas pelo sentido mgico-religioso. Figuras humanas simplificadas agora ocupam as cenas parietais, que representam as mais diversas atividades. H nessas representaes um pendor para a comunicao, abrindo caminho para a escrita pictogrfica. No Brasil, foram encontradas em diversas regies inscries rupestres com caractersticas neolticas, produzidas a cerca de 10.000 a.C..

    Nas figuras a seguir so mostradas, esquerda do leitor (fig. 1), imagens de pinturas rupestres paleolticas da gruta de Lascaux, Frana, produzidas entre 15.000 e 13.000 a.C., destaca-se um desenho de biso; no centro (fig. 2), a imagem paleoltica da Vnus de Willendorf, uma escultura de mulher produzida entre 25.000 e 20.000 anos a.C., e direita (fig.3) uma cena neoltica de caa aos cavalos em Valltorta, Espanha, produzida perto de 10.000 a.C..

    Dentre as civilizaes primitivas, que se configuram juntamente com o advento da escrita e com a plena organizao das relaes econmicas, poltico-religiosas e artstico-culturais, destaca-se o Egito Antigo Imperial, com quase trs mil anos de tradio teocrtica (de 2134 a.C. a 525 a.C.).

    . Na civilizao egpcia, que se constituiu s margens do rio Nilo, h uma ntida distino entre arte, cincia e religio, todavia, a estruturao poltica dessa sociedade determinada pela religiosidade. O poder do Fara decorria do fato dele ser reconhecido como filho do deus sol. A arte e a cincia estavam ento a servio das prticas poltico-religiosas e o governo, gesto poltico-administrativa, servia-se da religio para se estruturar como poder.

    Toda a iconografia egpcia dedicada a descrever as relaes entre este mundo dos vivos e o mundo dos mortos, conforme prescreviam as tradies, que eram mantidas sob rgidos padres de representao artstica, definindo cdigos para a composio das figuras de acordo com sua posio na hierarquia social.

    A funo simblica predominou em toda a arte egpcia, que representou suas divindades e personagens histricas de modo rigidamente estilizado, com formas planas, cores convencionadas, posturas hierticas e atitudes didticas, caractersticas das expresses de culturas teocrticas.

    Como outras civilizaes primitivas, por exemplo, as pr-colombianas que floresceram mais prximas de ns, o Egito atingiu altssimo grau de complexidade nos seus

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    conhecimentos. Prova disso, so as pirmides, obras mximas da arquitetura morturia que ainda guardam mistrios sobre diversos aspectos de sua construo.

    Por outro lado, as pinturas e baixo-relevos tambm apresentam concepes sofisticadas, com esquemas de construo da figura humana, que ressaltam seus aspectos mais perceptivos e didticos: a cabea e os olhos so representados de perfil; o trax frontal, braos, pernas, mos e ps tambm so desenhados de lado. s vezes, esse modelo que se distancia do naturalismo visual foi percebido como indcio de falta de conhecimento anatmico ou representativo.

    A hiptese que indica ignorncia anatmica superada quando sabemos dos conhecimentos mdico-anatmicos da cultura egpcia, que dominava com maestria a cincia e as tcnicas de mumificao de cadveres humanos. J a ignorncia representativa tambm descartada, quando nos deparamos com uma obra com forte acento naturalista como o Escriba (fig. 5). Alguns estudiosos acreditam que, por no ser um deus, sacerdote ou nobre, o escriba foi representado sem as rgidas determinaes hierticas destinadas aos altos representantes da hierarquia poltica.

    As figuras a seguir apresentam, esquerda do leitor (fig. 4), um detalhe do Afresco da tumba do fara Senefer; no centro (fig. 5), a imagem do Escriba, e direita (fig. 6) uma representao de Anbis, o deus de cabea de chacal.

    Arte no Mundo Antigo Grcia e Roma

    No perodo entre 4.000 a.C. e 476 d.C., que historicamente determinado como Idade Antiga, destacaram-se na sua fase clssica duas civilizaes, a Grega e a Romana que, influenciadas tambm por outros povos, fundaram as bases lgicas, polticas e humanistas de nossa cultura ocidental. Atualmente, isso assinalado pelo nosso ideal poltico-democrtico. So originrios da Grcia, os princpios da Democracia. Assim, o sistema poltico mais valorizado na atualidade que original do Mundo Antigo. Do mesmo modo, o Direito Romano fundou as bases do Direito Civil, que tambm um dos pilares de sustentao de nosso mundo civilizado.

    O conceito de ser humano, que correntemente mencionado, decorre de nossa notria capacidade de utilizar a razo ou a racionalidade. Essa capacidade o fator de distino do homem dentre os outros animais; por isso dizemos que o homem um animal racional. o animal capaz de relacionar fatos e dados, aprendendo com o passado e projetando o futuro, antecipando e concluindo acertadamente sobre as coisas, transformando o mundo por meio do trabalho e determinando o devir histrico da civilizao.

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    Para dizermos que uma coisa faz sentido ou que algum est certo, empregamos o termo razo; mencionamos frases como: isso tem uma razo de ser ou ele tem razo. A razo qualifica o homem com um valor prprio.

    A prioridade dada razo sobre o mito ou a superstio um valor que distingue o homem. A razo foi muito valorizada no Mundo Antigo e, de modo sistemtico, foi primeiramente considerada pelos gregos, que fundaram em nossa Cultura Ocidental suas bases racionais e humanistas.

    Na Grcia, originou-se a busca pela compreenso do universo com os recursos da razo lgica, constituindo uma viso de mundo tipicamente humanista. Pela primeira vez na histria, houve a constituio do estado poltico desvinculado da religio. Esse tipo de estado se consolidou como forma de governo na antiga Civilizao Romana. Ainda na Antiguidade, foram estabelecidos a Lgica e o Direito Civil, superando as crenas e a obedincia ao direito divino dos governos teocrticos16, como os que comandaram, por exemplo, o Egito antigo.

    Nos governos religiosos, os rituais e saberes so controlados por sbios e sacerdotes, que se comunicam com as divindades para esclarecer seus desgnios aos homens. Isso caracteriza o estgio trgico, no qual o nosso destino retirado de nossas mos, por ser regido por foras mticas ou msticas, as quais no poderamos contestar e deveramos obedecer.

    As civilizaes teocrticas que, como o Egito, compuseram a Antigidade Oriental foram erguidas sobre esses princpios de poder. O imperador era o filho dos deuses e os sacerdotes seus representantes. Todo o poder emanava da vontade dos deuses, que era conhecida pelo imperador e sacerdotes, habilitando-os a orientar os ritos, garantindo sorte e fartura e comandando o povo.

    A cultura grega inaugurou um novo tempo para o conhecimento17, reunindo os recursos necessrios para um pensamento independente da mstica religiosa. No sculo VI a.C., a figura do sbio, como um sacerdote ungido pelos deuses, retirada em favor do filsofo ou philosophos, que em grego quer dizer amigo do saber.

    Ao invs de sbios, cujo conhecimento sacerdotal decorrente da inspirao e revelao divinas, os filsofos se consideravam, simplesmente, pessoas que buscam o conhecimento com os recursos prprios da percepo e da razo.

    Na atualidade tratamos o filsofo como um sbio, mas a diferena proposta pela etimologia da palavra importante, porque evidencia o trabalho em busca do conhecimento por meio da razo, estabelecendo o estgio lgico do conhecimento e da civilizao.

    A filosofia e a cultura humanstica se estabelecem na Grcia em oposio ao estgio trgico, impondo a razo lgica em busca do conhecimento.

    Os filsofos pr-socrticos so tambm identificados como filsofos naturalistas. A partir de Scrates (470-399 a.C.), a filosofia buscou definir parmetros para as relaes sociais dentro da polis ou cidade. Isso constituiu uma filosofia social ou poltica. Scrates teve Plato (427-348 a.C.) como discpulo. Por sua vez, Plato foi mestre de Aristteles (384-322

    16 As primeiras sociedades so denominadas hidrulicas, porque foram civilizaes agrcolas que se estabeleceram s margens dos rios. A civilizao egpcia dependia das cheias do rio Nilo e o poder teocrtico do fara, imperador do Egito, estava ligado condio de filho do deus Sol e ao seu poder de comandar as foras da natureza, principalmente, o rio. Durante uma cerimnia anual, o imperador ordenava s guas do rio que inundassem os campos, fertilizando-os para o plantio. A palavra teocracia vem do grego theokrata, em que theo deus e kratia governo, significando a unio do poder poltico ao religioso. 17 As Civilizaes Clssicas do Mediterrneo, in: BAZIN, Germain. Histria da Arte: da pr-histria aos nossos dias. Lisboa: Martins Fontes, 1980.

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    a.C.), que considerou a poltica a maior das artes. Scrates o marco divisor na filosofia grega, relacionando a verdade conscincia individual e social dos homens.

    A arte greco-romana representou os mitos, deuses, heris, reis, imperadores, aventuras e guerras de seu tempo, compondo figuras e temas que sustentam toda a histria do Ocidente. Entretanto, a arte na Antiguidade tambm revela em suas expresses visuais um percurso histrico que parte da negao do estgio trgico-religioso, conquista o estgio lgico-humanista, que extinto pela fora do Cristianismo no final da Idade Antiga.

    A Produo Artstica da Grcia Antiga

    A produo artstica expressa as caractersticas dos trs perodos da antiga cultura grega: 1- o perodo arcaico, cujos aspectos so predominantemente simblicos; 2- o perodo clssico, que naturalista, e 3- o perodo helenstico, em que sobressaram os aspectos dramticos e expressivos.

    O Perodo Arcaico da Grcia (1200 a 500 a.C.).

    Os adjetivos de homricos ou hericos qualificam os primeiros tempos da histria grega, compondo o seu perodo trgico que, envolto na mitologia, explicava poeticamente os fenmenos naturais.

    Os registros artsticos desse tempo so os prprios textos mticos e poticos compostos por Homero, como a Ilada, que narra a guerra de Tria, e a Odissia, que relata as viagens de Ulisses. O carter predominantemente simblico tambm expresso nas artes visuais, formulando representaes que no priorizam a esttica naturalista. Ren Menard18 comenta esse simbolismo mtico dos tempos arcaicos com as seguintes palavras:

    Inmeras fbulas explicavam naturalmente esses hbitos alegricos da linguagem. Cada rio era um deus e cada regato uma ninfa. Se num trecho corriam na mesma direo era porque se amavam (...) As catstrofes, os acidentes da vida se revestiam do mesmo aspecto de narrao. A histria de Hilas, arrebatado pelas ninfas, nos mostra claramente o que devemos entender pela linguagem mitolgica dos antigos. Quando um jornal descreve a morte de um rapaz que se afogou, diz no nosso estilo moderno: O jovem Hilas indo de manh bem cedo banhar-se .... etc. Diziam os gregos: Era to belo que as ninfas, apaixonadas, o raptaram e levaram para o seio das guas.

    interessante reparar a substituio do relato natural: morte de um rapaz que se afogou em um crrego, pela expresso simblica: as ninfas, apaixonadas, o raptaram e levaram para o seio das guas.

    Substituies desse tipo, em que o trao naturalista cede lugar ao simblico, so caractersticas em todas as artes do perodo: nos dramas teatrais, nas artes da escultura e da cermica, dentre outras.

    18 MNARD, Ren. Mitologia Greco-Romana. So Paulo: Opus, 1991, p. 02.

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    O incio da atividade teatral foi decorrente dos ritos e procisses ao deus Dioniso. A msica tambm se desenvolveu em meio aos ritos religiosos, principalmente, pela atuao do coro de vozes nas procisses dionisacas.

    O Perodo Clssico da Grcia (500 a 200 a.C.).

    A arte no perodo clssico expressa o apogeu da razo grega, concebendo formas de aparncia muito naturalista, ao mesmo tempo, em que so ordenadas matematicamente, definindo os elementos dominantes nas ordens clssicas que so a forma e a proporo.

    As formas naturais foram proporcionadas com medidas ideais, constituindo o modelo clssico de beleza humana. Artes como a escultura e a arquitetura foram ordenadas com proporcionalidade matemtica, do mesmo modo que as propores sonoras e musicais foram investigadas e determinadas por Pitgoras, filsofo que viveu durante o sculo VI a.C.. Para Lucas Monterato19, chama-se classicismo esse realismo nacionalista dos gregos, no qual a arte tem uma misso paralela da cincia, uma e outra visando a descoberta da harmonia, isto , da unidade. Um naturalismo idealizado, humanista, que orientado pela filosofia e tudo relaciona medida do homem.

    O Perodo Helenstico da Grcia (200 a 36 a.C.).

    A Grcia foi incorporada ao Imprio Macednico em 338 a.C. A expanso deste Imprio promoveu o intercmbio cultural com o Oriente e, tambm, com outras partes da Europa. As novas influncias culturais provocaram uma crise na cultura e civilizao gregas. A Grcia perdeu sua hegemonia e parte de sua autonomia. Esta perda foi expressa por uma gradual ruptura com o rigor formal, caracterstico do perodo clssico. Em decorrncia disso, as artes gregas apresentaram aspectos mais expressivos, caracterizando o perodo denominado helenstico.

    As Artes Gregas

    Durante os trs perodos da antiga cultura grega, as inscries e pinturas sobre os vasos cermicos variaram a partir das decoraes e pinturas de imagens muito estilizadas, alongadas e com forte tendncia geomtrica, do Perodo Arcaico, at as pinturas figurativas de formas mais orgnicas do Perodo Clssico e do Perodo Helnico.

    19 MONTERADO, Lucas. Histria da Arte. Rio de Janeiro: Livros Tcnicos e Cientficos, 1978, p.22.

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    Nas figuras a seguir, a primeira imagem do lado esquerdo do leitor (fig. 1) retrata a Pedra do Sacrifcio, uma obra tosca e com inscries geomtricas, tpicas dos primrdios do Perodo Arcaico; a imagem do centro (fig. 2) representa um vaso clssico, com figuras pintadas em preto sobre o fundo cermico; a imagem da direita (fig. 3) representa uma cratera helnica, mais decorada e com imagens vazadas que mantm a cor da cermica em meio pintura preta do fundo da pea.

    Na etapa final do Perodo Arcaico e no Perodo Clssico, as imagens eram primeiramente pintadas em preto sobre o fundo cermico. Depois, o fundo era pintado de preto e as figuras permaneciam vazadas na cor da cermica. As formas dos vasos tambm variaram de acordo com o estilo de cada perodo. As figuras so estilizaes elegantes de personagens e cenas lendrias ou cotidianas, expressando mais requinte do que outras artes plsticas do mesmo perodo.

    As formas das esculturas tambm variaram de acordo com o perodo cultural, sendo predominantemente esquemticas no Perodo Arcaico, naturalistas no Perodo Clssico e expressivas no Perodo Helnico.

    No Perodo Arcaico, a rusticidade e simplicidade das formas caracterizam o predomnio da funo simblica, portanto, o despojamento decorativo e a ausncia de caractersticas naturalistas no podem, simplesmente, serem atribudos falta de requinte ou percia tcnica, uma vez que os propsitos do momento no requeriam tal aprimoramento.

    Nas esculturas arcaicas, vale ressaltar os detalhes esquemticos que representam orelhas e cabelos, ressaltando os traos simblicos da representao, como as mscaras teatrais tambm reforavam a funo simblica, porque escondiam o aspecto natural dos rostos dos at