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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    ROSELI DE FTIMA BIALESKI BOZZA

    DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA ERA DA GLOBALIZAO ECONMICA: ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL E AS

    EMPRESAS TRANSNACIONAIS

    CURITIBA 2012

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    ROSELI DE FTIMA BIALESKI BOZZA

    DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA ERA DA GLOBALIZAO ECONMICA: ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL E AS

    EMPRESAS TRANSNACIONAIS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao, Pesquisa e Extenso em Direito, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Lus Alexandre Carta Winter

    CURITIBA 2012

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    Ao meu marido, Fbio, que, com seu amor, carinho, companheirismo e apoio imensurveis, torna cada dia da minha vida mais feliz.

    Ao meu pai, Alfredo (em memria) e a minha me, Rosa, com quem aprendi os valores do amor, da honestidade, da determinao, da esperana e da f em Deus.

    Aos meus irmos, pela famlia unida que nos tornamos.

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    Agradecimentos

    A Deus e Nossa Senhora do Perptuo Socorro, que iluminam meus caminhos, dando-me fora, sade e sabedoria, para realizar meus objetivos.

    Meu eterno agradecimento, com todo meu amor e reconhecimento, ao meu marido, Fbio, que est sempre ao meu lado, incentivando-me a superar todos os obstculos na busca de minhas conquistas. Sem o seu amor, carinho e apoio, no teria realizado este objetivo.

    Aos meus pais, exemplo de vida, agradeo por tudo. Com amor de hoje e sempre.

    Aos meus demais familiares: minhas irms e meus irmos, minhas cunhadas e meus cunhados, meus sobrinhos e minhas sobrinhas, minha sogra e meu sogro, que sempre me deram muito carinho, para tornar esta travessia de minha vida mais leve e alegre.

    Registro um agradecimento especial a minha irm, Maria Nereida, por me acolher em sua casa, dando-me muito amor, carinho, ateno, respeito e apoio, que s uma me poderia oferecer.

    Ao meu orientador, professor Dr. Lus Alexandre Carta Winter, pelos valiosos ensinamentos, esclarecimentos, sugestes, correes e ateno dispensados, fundamentais para a elaborao deste trabalho.

    honrvel Pontifcia Universidade Catlica do Paran, que, em virtude de eu ter conquistado o Prmio Marcelino Champagnat, custeou integralmente minhas despesas referentes s mensalidades do mestrado.

    Ao professor Dr. Marco Antnio Csar Villatore pelo apoio e ateno dispensados desde a especializao em Direito do Trabalho, sempre incentivando-me pesquisa.

    Ao professor Dr. Martinho Martins Botelho, por corrigir minha dissertao e pelas importantes sugestes.

    Ao professor Dr. Eduardo Biacchi Gomes pelas importantes correes e sugestes feitos ao meu trabalho.

    Ao professor Dr Emerson Gabardo e professora Dra Mrcia Carla Ribeiro (diretores do PPGD) e Eva e Vernica da secretaria do PPGD, pelos esclarecimentos, orientaes e ateno dispensados durante o curso do mestrado.

    Aos demais professores do PPGD, que, com seus valiosos ensinamentos, contriburam para a elaborao desta pesquisa.

    Aos meus colegas e amigos que fiz ao longo do curso de mestrado e que, de alguma forma, contriburam para a realizao deste trabalho.

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    TERMO DE APROVAO

    ROSELI DE FTIMA BIALESKI BOZZA

    DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA ERA DA GLOBALIZAO ECONMICA: ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL E AS EMPRESAS TRANSNACIONAIS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Direito Econmico e Socioambiental.

    COMISSO EXAMINADORA

    ____________________________________________

    Orientador Prof. Dr. Lus Alexandre Carta Winter Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Eduardo Biacchi Gomes Faculdades Integradas do Brasil UNIBRASIL

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Martinho Martins Botelho Doutor - Universidade de So Paulo PROLAN

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Marco Antnio Csar Villatore Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    ____________________________________________

    Suplente Prof. Dr. Danielle Anne Pamplona Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    Curitiba 2012

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    Resumo

    O presente trabalho aborda a promoo do direito fundamental ao desenvolvimento na era da globalizao econmica, bem como analisa o papel das empresas transnacionais na realizao do desenvolvimento no Brasil luz da Ordem Econmica Constitucional. A abordagem do tema est ancorada numa viso interdisciplinar. Recorre-se s doutrinas de juristas, economistas, socilogos e filsofos. Neste alinhamento terico, explora-se o desenvolvimento no apenas em relao ao seu aspecto econmico, mas so observados outros fatores, como o social e o humano e defende-se a concepo de vinculao do desenvolvimento com a promoo dos direitos fundamentais. Diante das consequncias sociais da globalizao econmica, como o aumento da excluso social e da pobreza extrema, emerge a necessidade da presena de um Estado interventor forte para conduzir uma poltica de desenvolvimento, capaz de corrigir as desigualdades sociais reforadas pela insensibilidade do mercado global, cujo anseio a busca do lucro, mesmo que s expensas dos direitos fundamentais e da dignidade humana. Assim, tendo em vista que a Constituio de 1988 acolhe um modelo de Estado democrtico de direito, cujo atributo a dignidade humana, torna-se indispensvel repensar a interveno do Estado na atividade econmica sob as premissas da teoria neoconstitucionalista, que reforam a fora normativa da Constituio e preconizam uma interpretao constitucional luz dos direitos fundamentais e dos princpios constitucionais. Neste caminho, ao investigar a atuao das empresas transnacionais no Brasil, sustenta-se a ideia de que o Estado dever exigir de referidas empresas uma conduta conforme os fundamentos da Ordem Econmica Constitucional que direcionam a atividade econmica na consecuo de uma sociedade mais justa e solidria. a orientao da Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE), ao estabelecer as Diretrizes para Empresas Multinacionais, que recomendam aos Estados que exijam de tais empresas uma conduta de acordo com os princpios fundamentais do Estado no qual desempenham suas atividades.

    Palavras-chave: globalizao econmica; direito ao desenvolvimento; fundamentos da ordem econmica; empresas transnacionais; cdigo de condutas.

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    ABSTRACT

    The present work addresses the promotion of right fundamental to development in the economic globalization age, as well as it analyses the role of transnational companies in the accomplishment of development in Brazil in light of the Constitutional Economic Order. The approach to the theme is lain on an interdisciplinary view. One must resort to the doctrine of lawyers, economists, sociologists and phylosophers. In this theoretical alignment, development is not only being exploited due to its economical aspect but social and human factors are also being taken into account and the conception of the binding of development to the promotion of fundamental rights is being defended. In face of the social consequences of economic globalization, such as the increase in social exclusion and extreme poverty, emerges the necessity of a strong intervening State for conducting a development policy capable of correcting the social inequality strengthened by the insensitivity of the profit-driven global market. Considering that the 1988 Constitution hosts a model of Democratic Rule of Law wherein the attribute is human dignity, the rethinking of State intervention in the economic activity under the premises of the neoconstitutionalist theory that strengthen the normative power of Constitution and call for a constitutional interpretation under the fundamental rights and constitutional principles becomes indispensable. With this in mind, when investigating the operation of transnational companies in Brazil, one must support the idea that the State shall require the referred companies to behave according to the Constitutional Economic Order fundaments which direct the economic activity towards the attainment of a fairer and more solidary world. It is the guidance of the Organization for the Economic Cooperation and Development (OECD), upon establishment of the Guidelines for Multinational Companies, that recommends that the States should require such companies to adopt a conduct pursuant to the fundamental principles of the State wherein its activies are carried out.

    Keywords: economic globalization; right to development; economical order fundaments; transnational companies; code of ethics and good practice.

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    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................... 10

    1 GLOBALIZAO ECONMICA E A EMERGNCIA DA EFETIVIDADE DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO....................................................................

    15 1.1 GLOBALIZAO ECONMICA - EVOLUO HISTRICA E CONCEITO.. 15 1.2 CRTICA GLOBALIZAO ECONMICA NO TOCANTE AO AUMENTO DA EXCLUSO SOCIAL E FRAGMENTAO DAS SOCIEDADES...............

    21 1.3 A EMERGNCIA DA EFETIVIDADE DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO..........................................................................................

    28 1.3.1 Afirmao internacional dos direitos humanos e o reconhecimento do desenvolvimento como um direito humano fundamental.......................

    29 1.3.2 O direito ao desenvolvimento enquanto realizao dos direitos fundamentais ......................................................................................................

    37 1.3.3 A emergncia da efetividade do direito ao desenvolvimento na era da globalizao econmica..............................................................................

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    2. O PAPEL FUNDAMENTAL DO ESTADO INTERVENTOR NA PROMOO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO LUZ DA ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL..............................................................................................

    49 2.1 A INTERVENO DO ESTADO NA ECONOMIA NO ESTADO LIBERAL.... 50 2.2 A INTERVENO DO ESTADO NA ECONOMIA NO ESTADO SOCIAL..... 58 2.3 INTERVENO DO ESTADO NA ECONOMIA NO MODELO ECONMICO NEOLIBERAL ANLISE CRTICA.............................................

    62 2.4 ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO E O PAPEL FUNDAMENTAL DO ESTADO INTERVENTOR NA PROMOO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO..........................................................................................

    71 2.4.1 A fora normativa dos princpios que fundamentam a Ordem Econmica Constitucional no Estado social e democrtico de direito.......

    71 2.4.2 Constituio econmica dirigente e o papel da interveno do estado na atividade econmica na busca da realizao do

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    desenvolvimento................................................................................................ 84 3. O PAPEL DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS NA REALIZAO DO DESENVOLVIMENTO NO BRASIL LUZ DA ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL..............................................................................................

    90 3.1 EMPRESAS TRANSNACIONAIS CONCEITO E EVOLUO HISTRICA..........................................................................................................

    90 3.2 CRTICA ATUAO DAS TRANSNACIONAIS NOS PASES EM DESENVOLVIMENTO..........................................................................................

    98 3.2.1 explorao de mo de obra barata e mobilidade da empresa transnacional versus insegurana dos trabalhadores..................................

    99 3.2.2 O poder das transnacionais na globalizao econmica versus enfraquecimento dos pases em desenvolvimento........................................

    105 3.3 A PREOCUPAO DA ONU COM UM CDIGO DE CONDUTAS PARA AS EMPRESAS TRANSNACIONAIS...................................................................

    108 3.4 ATUAO DAS TRANSNACIONAIS NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO BRASIL ANLISE A PARTIR DE 1950.................

    113 3.5 NEOLIBERALISMO E INCENTIVOS FISCAIS S TRANSNACIONAIS COMO POLTICA PBLICA DE DESENVOLVIMENTO......................................

    123 3.6 A IMPORTNCIA DE UM COMPROMISSO SOCIAL DAS TRANSNACIONAIS LUZ DAS DIRETRIZES DA ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL..............................................................................................

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    CONSIDERAES FINAIS................................................................................. 137

    REFERNCIAS.................................................................................................... 142

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    INTRODUO

    A sociedade contempornea est passando por mudanas profundas que no afetam apenas alguns pases, mas, sim, atingem grande parte da sociedade mundial. Essas transformaes ocorrem sob o impacto do avano da tecnologia, principalmente dos meios de comunicao, que, atualmente, tm o poder de reestruturar o modo de vida das pessoas na maioria dos pases, influenciando, inclusive, a vida cotidiana das pequenas localidades, que tambm passam a ser moldadas pela tecnologia e meios de comunicao globais.

    Esse fenmeno de integrao da sociedade denominado de globalizao e est presente tanto na realidade quanto no pensamento de grande parte das pessoas no mundo. So muitas as teorias que buscam explicar o significado da globalizao, analisando tanto as condies sob as quais a sociedade global se realiza, quanto os impactos da globalizao sofridos pelos Estados, sejam econmicos, sociais, polticos e culturais, pois, com o progresso da tecnologia e da cincia, os meios de comunicao tornaram-se globais, influenciando o modo de vida de grande parte da sociedade mundial.

    O extraordinrio avano da tecnologia contribuiu para a internacionalizao do sistema capitalista. Com o desenvolvimento da tecnologia ao longo dos anos da era industrial, a sociedade industrial tradicional d lugar a uma sociedade globalizada, multifacetada, na qual o mercado passa a ser global e o capital circula livremente.

    Desse modo, a globalizao dos meios de comunicao e o avano tecnolgico tornam-se mecanismos importantes para o desenvolvimento do mercado, na medida que facilitam as relaes econmicas e os investimentos estrangeiros, proporcionando a mobilidade do capital.

    A globalizao econmica proporcionou a expanso das empresas transnacionais, que operam em diversos Estados por meio de uma relao matriz-subsidiria, sob uma administrao centralizada. Por consequncia, o capital de algumas transnacionais j maior do que o PIB (produto interno bruto) de muitos pases. Por isso, atualmente, verifica-se uma verdadeira batalha entre o Estado e

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    o poder econmico das transnacionais, que exercem grande influncia nas questes polticas, sociais e econmicas dos pases em desenvolvimento.

    Vale destacar que o Estado nacional constitui o principal sujeito da sociedade internacional, mas, devido dinmica da globalizao, eles esto se enfraquecendo, pois sofrem presses do mercado internacional no tocante s suas principais decises, sejam polticas, econmicas ou sociais. Assim, embora o Estado ainda detenha a sua soberania, a partir do fenmeno da globalizao a sua autonomia poltica e econmica acaba sendo fragilizada pelas grandes corporaes transnacionais, que possuem poderes econmicos capazes de comandarem as principais polticas de desenvolvimento dentro dos pases subdesenvolvidos.

    No entanto, enquanto os aspectos positivos da globalizao econmica so distribudos de maneira desigual, para os detentores do capital, os aspectos negativos da globalizao so distribudos democraticamente, pois enquanto os habitantes dos pases ricos tm condies de consumir produtos de alta tecnologia, como eletrnicos, automveis, eletrodomsticos etc, a maioria da populao dos pases pobres nem sequer tem garantida as necessidades bsicas para sua sobrevivncia.

    neste contexto que o debate sobre a promoo do desenvolvimento retornou nos ltimos anos. Isso se deve ao fato de que a poltica neoliberal adotada por vrios pases em desenvolvimento, a partir da dcada de 1980, cedeu mais importncia ao crescimento econmico e deixou em segundo plano outras questes que no tivessem uma relao direta com o mercado.

    Assim, enfraquecido pela globalizao econmica neoliberal, o desenvolvimento dos pases pobres passa a ser uma das principais preocupaes da Organizao das Naes Unidas, que estabelece, em 1986, uma Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento, com o objetivo de reforar a preocupao da efetivao dos direitos humanos j assegurados, no plano internacional, pela Declarao Universal de 1948 e pelos dois tratados sobre direitos humanos de 1966 (pacto internacional sobre direitos civis e polticos e do pacto internacional sobre direitos econmicos, sociais e culturais).

    Com base nas normas internacionais sobre direitos humanos, o desenvolvimento torna-se um direito humano fundamental, sendo o ser humano o

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    seu principal destinatrio, constituindo dever do Estado desenvolver aes aptas sua concretizao. Para tanto torna-se imprescindvel analisar a efetividade do desenvolvimento mediante a mudana de contedo, no analisando apenas o seu aspecto econmico, sendo observadas outras dimenses fundamentais, como a social, a cultural, a poltica, etc.

    Dessa maneira, a concepo de desenvolvimento deslocou-se da ideia estrita de crescimento econmico para alcanar outros fatores mensurados pelo ndice de desenvolvimento humano, elaborado anualmente pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

    O concepo de desenvolvimento humano pressupe a melhoria da qualidade de vida dos cidados, que somente pode ser conquistada com a promoo dos direitos fundamentais que garantem o mnimo existencial de cada ser humano. Para tanto, a ideia de desenvolvimento apresentada neste estudo no analisa apenas o crescimento econmico do pas, tambm considerando como fator para a realizao do desenvolvimento a promoo dos direitos fundamentais, que asseguram a todos uma vida digna.

    Essa concepo de desenvolvimento ampla, vinculada a uma melhor qualidade de vida, de suma importncia, pois, como exemplo, atualmente, observa-se nos meios de comunicao a divulgao de que o Brasil est crescendo, podendo ocupar o 5. lugar da economia m undial nos prximos 5 anos, mas isto no revela, necessariamente, que o pas possua um alto ndice de desenvolvimento humano, pois, conforme o ndice de desenvolvimento humano de 2011, o Brasil ocupa a 84. posio entre 187 pases avaliados pelo relatrio de desenvolvimento humano do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento( PNUD).

    Para tanto, o desenvolvimento dever ser pautado pela dignidade da pessoa humana, priorizando a realizao das necessidades bsicas dos indivduos, na busca de uma vida digna para todos, uma vez que, no Estado democrtico de direito, o ser humano passa a ser o centro e o fim do Direito e no mero objeto do Estado e de terceiros, no sendo permitido considerar o ser humano como objeto a fim de degradar a sua condio de pessoa. Todas as pessoas tm direito a um mnimo necessrio de existncia e sobrevivncia, como

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    os direitos vida, sade, integridade fsica, alimentao, honra, liberdade fsica e psicolgica, educao, moradia etc.

    Torna-se necessrio que o Estado exija das transnacionais uma atividade luz dos fundamentos da ordem econmica constitucional, que so: a valorizao do trabalho humano e a livre iniciativa, buscando a realizao da dignidade da pessoa humana e da justia social.

    Diante deste contexto, o estudo tem por objetivo fazer uma reflexo sobre as consequncias da globalizao econmica, analisando o poder das transnacionais, bem como o papel destas no desenvolvimento social no Brasil, para, ao final do trabalho, defender uma poltica de desenvolvimento pautada na dignidade humana e ressaltar a importncia da interveno do Estado na atividade econmica, na busca de uma melhor qualidade de vida a todos, ou seja, no se pode deixar de lado a importncia do papel do Estado na regulao do mercado e das atividades das transnacionais conforme as diretrizes da ordem econmica constitucional, para garantir um nvel de vida melhor para todos os indivduos, promovendo, desta forma, a dignidade de todos os cidados.

    O presente trabalho foi planejado em trs captulos. No primeiro captulo, na primeira parte, cuida-se de elaborar um panorama geral sobre a globalizao econmica, analisando algumas doutrinas que buscam explicar este fenmeno, para depois fazer uma anlise crtica das consequncias da globalizao econmica, pois esta no atinge apenas o mercado, mas tambm influencia a poltica, a cultura e o modo de vida de grande parte da populao mundial. Assim, diante das consequncias da globalizao econmica, como o aumento da excluso social e da pobreza extrema, a segunda parte do presente captulo se encarrega de abordar o reconhecimento do direito fundamental ao desenvolvimento e a emergncia de sua efetivao na era da globalizao econmica.

    O segundo captulo trata da importncia da interveno do Estado na atividade econmica luz da Ordem Econmica Constitucional brasileira, que consagra o desenvolvimento como um princpio fundamental a ser perseguido pelo Estado e pelos demais atores sociais na busca de uma sociedade justa e solidria, bem como destaca a importncia da fora normativa da Constituio no Estado Democrtico de Direito, pois, tendo em vista que a Constituio de 1988

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    acolhe um modelo de Estado social e democrtico de direito, cujo atributo a dignidade humana, torna-se indispensvel repensar a interveno do Estado na atividade econmica sob as premissas da teoria neoconstitucionalista, que reforam a fora normativa da Constituio e preconizam uma interpretao constitucional luz dos direitos fundamentais e dos princpios constitucionais.

    O terceiro captulo investiga o papel das empresas transnacionais no desenvolvimento do Brasil luz das Diretrizes da Ordem Econmica Constitucional, para, ao final, defender uma interveno do Estado na atividade econmica de tais empresas, no intuito de que estas assumam um compromisso social com os interesses fundamentais do Estado.

    Finalmente, nas consideraes finais, demonstra-se, com base nas diretrizes para as empresas transnacionais da Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE) e nos princpios que fundamentam a Ordem Econmica Constitucional, que o governo brasileiro possui legitimidade para intervir na atividade das empresas transnacionais que atuam no Brasil, exigindo que estas desenvolvam suas atividades pautadas nos fundamentos da Ordem Econmica Constitucional.

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    1 GLOBALIZAO ECONMICA E A EMERGNCIA DA EFETIVIDADE DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

    Para tentar compreender o processo de desenvolvimento de uma sociedade no capitalismo global, entende-se oportuno fazer uma breve apresentao sobre o processo de globalizao econmica e algumas de suas consequncias tanto no mbito econmico como no social.

    Neste captulo, em um primeiro momento, cuida-se elaborar um panorama geral sobre a globalizao econmica, analisando algumas doutrinas que buscam explicar este fenmeno, para depois fazer uma anlise crtica das consequncias da globalizao econmica, pois esta no atinge apenas o mercado, mas tambm influencia a poltica, a cultura e o modo de vida de grande parte da populao mundial. Assim, diante das consequncias da globalizao econmica, como o aumento da excluso social e da pobreza extrema, a segunda parte do presente captulo encarrega-se de abordar o reconhecimento do direito fundamental ao desenvolvimento e a emergncia de sua efetivao na era da globalizao econmica.

    1.1 GLOBALIZAO ECONMICA - EVOLUO HISTRICA E CONCEITO

    Para compreender a globalizao econmica necessrio analisar as mudanas ocorridas em virtude das novas tecnologias, que moldam uma nova sociedade, com o surgimento de uma nova cultura, uma nova economia e novas estruturas sociais.1

    Juan Rmon Capella considera o tempo moderno como o tempo acelerado do progresso, que representa a sociedade atual, na qual a racionalidade produtiva contribui para o surgimento da racionalidade tecnolgica. Nas palavras do autor acima verifica-se que da racionalidade produtiva nascero

    1 CAPRA, Fritjof. As conexes ocultas. So Paulo: Cultrix, 2006. p. 142.

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    o maquinismo e a grande indstria, o que chegar a chamar-se, com as sucessivas revolues industriais, a racionalidade tecnolgica.2

    Conforme Jos Henrique de Farias, os principais pontos desta mudana so: revoluo tecnolgica, interdependncia global das sociedades econmicas e polticas, aumento da competitividade e da concorrncia global, etc.3

    Com a abertura do mercado interno ao capital internacional, a globalizao passa a ser a regra e isso significa que este processo afeta a todos, de modo que para alguns, globalizao o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, a causa da nossa infelicidade.4

    Assim, os avanos da tecnologia e da informtica favorecem profundamente a globalizao econmica, que tem como caracterstica o livre comrcio entre os pases.5

    A globalizao enquanto fenmeno econmico, conforme Luiz Carlos Bresser Pereira, a competio comercial em nvel mundial entre os Estados-nao por meio de suas empresas. Logo, a questo fundamental saber como cada pas ser ou no bem-sucedido nessa competio.6

    Para Lus Alexandre Carta Winter, a globalizao desencadeia a internacionalizao do processo produtivo, pois o produtor vai comprar matria-prima em qualquer lugar do mundo onde ela seja melhor e mais barata. Instala a fbrica onde a mo-de-obra fique mais em conta, no importa se no Vietn ou na Guatemala. Vende a mercadoria para o mundo inteiro.7

    O processo produtivo sofre a interveno de vrios agentes econmicos a uma escala mundial. A produo de muitos bens realiza-se numa rede de

    2 CAPELLA, Juan Ramn. Os Cidados Servos. Traduo de Ldio Rosa de Andrade e Tmis

    Correia Soares. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1998. p. 23. O autor acrescenta que a nova concepo do tempo se assenta sobre um fato real: a acrescentada capacidade humana para a obteno de meios de vida e meios para a obteno de meios de vida. A crescente capacidade tecnolgica, que faz possvel a obteno de mais meios com diminuio de custos temporais e materiais - ao menos assim o afirma a teoria - a base objetiva sobre a qual se assentar a idia mtica do progresso. (Ibidem, p. 24). 3 FARIA, Jos Henrique de. Economia Poltica do Poder. Vol. 1. Curitiba: Juru, 2004. p. 94.

    4 BAUMAN, Zygmunt. Globalizao: as conseqncias humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

    1999. p. 7. 5 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 141.

    6 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Globalizao comercial e financeira. Disponvel em:

    . Acesso em: 20 out. 2011. 7 WINTER, Lus Alexandre Carta. As Condies existentes poca da assinatura do tratado de

    criao do Mercosul. In: WINTER, Lus Alexandre Carta (org.). Mltiplas facetas do Estado-regio. Curitiba. Juru, 2004, p. 121-130. p. 121.

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    empresas a nvel internacional, em que cada empresa exerce uma tarefa, contribuindo para a fabricao de determinado produto. Esse tipo de processo produtivo caracteriza a sociedade ps-industrial, globalizada, na qual ocorre a integrao do capitalismo, tornando-se o mercado uma aldeia global.8

    Com a globalizao econmica, os processo produtivos se internacionalizaram, ocorrendo, na viso de Capella,

    uma nova organizao da atividade produtiva pelas companhias multinacionais, que tende substituio das unidades de produo de tipo fordista por redes empresariais: empresas que fragmentam os processos de produo, atribuindo-os a unidades situadas em diversos pases, incapazes de subsistir por si mesmas, dirigidas por um crebro empresarial distante que coordena e organiza a atividade total. Esses crebros, assim como as tarefas de investigao e desenvolvimento, esto situados nos centros metropolitanos do Norte. 9

    Neste sentido, John Gray tambm entende que a globalizao econmica consiste na difuso da produo industrial em economias de mercado inter-relacionadas ao redor do mundo como o avano inexorvel de um tipo singular de capitalismo ocidental: o livre mercado americano. O autor adverte que a globalizao econmica pressupe que a atividade econmica de todos os pases capaz de se ajustar a um s tipo de mercado e que todos os Estados tm condies de se inserir na competitividade do mercado global.10

    O processo da globalizao econmica significa que,

    hoje, o processo produtivo sofre a interveno de vrios agentes econmicos a uma escala mundial. A produo de muitos bens se realiza numa rede de empresas a nvel internacional, em que cada empresa exerce uma tarefa, contribuindo para a fabricao de determinado produto. Esse tipo de processo produtivo caracteriza a sociedade ps-industrial, globalizada, na qual ocorre a integrao do capitalismo, tornando-se o mercado uma aldeia global. 11

    Assim, pode-se afirmar que a globalizao econmica significa a expanso da atividade econmica promovida pelo avano da tecnologia e dos

    8 FERNANDES. Paulo Silva. Globalizao, Sociedade de Risco e o Futuro do Direito Penal.

    Coimbra: Almedina, 2001. p. 20. 9 CAPELLA, Juan Ramn. Op. cit., p. 99.

    10 GRAY, John. Falso Amanhecer: os equvocos do capitalismo global. Traduo de Max Altman.

    Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 12. 11

    FERNANDES. Paulo Silva. Op. cit., p. 20.

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    meios de comunicao, ocorrendo a total liberdade do capital, do comrcio e do processo industrial.

    A partir da dcada de 1980, as relaes econmicas passam a ser orientadas por uma nova ordem econmica internacional uma ordem neoliberal, instituda pelo Consenso de Washington, que, segundo Noam Chomski consiste em

    um conjunto de princpios orientados para o mercado, traados pelo governo dos Estados Unidos e pelas instituies financeiras internacionais que ele controla e por eles mesmos implementados de formas diversas geralmente, nas sociedades mais vulnerveis, como rgidos programas de ajuste estrutural. Resumidamente, as suas regras bsicas so: liberalizao do mercado e do sistema financeiro, fixao dos preos pelo mercado (ajustes de preo), fim da inflao (estabilidade macroeconmica) e privatizao.12

    Os ajustes neoliberais na economia e nas polticas de desenvolvimento social tiveram a orientao do Fundo Monetrio Internacional (FMI), que recomendou aos pases da Amrica Latina uma poltica econmica baseada em uma globalizao simtrica e mutuamente benfica e pelo fundamentalismo de mercado. Essa poltica recomendada pelo FMI, na viso de Ignacy Sachs, desencadeou nos pases da Amrica Latina que a adotaram, como exemplo a Argentina e o Brasil, uma mistura letal de dependncia excessiva de recursos externos, de confiana cega no Consenso de Washington e de m governana.13

    Contudo, surgem divergncias sobre a forma que a nova fase deveria tomar. A Organizao das Naes Unidas (ONU) defende uma harmonia entre as relaes econmicas dos pases centrais e perifricos, ou seja, objetiva que as divergncias comerciais e polticas existentes sejam superadas na busca de uma comunidade internacional mais "equitativa". Por outro lado, as empresas multinacionais possuem interesses divergentes, pois no esto satisfeitas com a adoo de uma poltica internacional que limite seu desenvolvimento e sua

    12 CHOMSKI, Noam. O Lucro ou as Pessoas? Neoliberalismo e Ordem Global. Traduo de

    Pedro Jorgen Jr. 5. ed., Rio de Janeiro: Bertrand, 2006. p. 21-22. 13

    SACHS. Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentvel, sustentado. Traduo de Jos Augusto Drummond e Glria Maria Vargas. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. p. 10.

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    posio no mercado global que vm conquistando desde o fim da Segunda Guerra Mundial.14

    Para fortalecer o mercado internacional, na dcada de 1990, foi criada a Organizao Mundial do Comrcio (OMC) com o papel de estabelecer as regras do livre comrcio, para que todas as naes pudessem tirar proveito da globalizao econmica. Esta foi anunciada por muitos polticos e grandes empresrios como uma nova ordem que viria beneficiar todas as naes, gerando uma expanso mundial cujos frutos acabariam chegando a todas as pessoas, at as mais pobres.15

    Em 1994, na oitava rodada de negociaes do Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT), no Uruguai, foi criada a Organizao Mundial do Comrcio, com o objetivo de regulamentar o comrcio internacional.16 A OMC uma organizao multilateral que auxilia no livre comrcio entre os Estados.17

    Segundo Lus Alexandre Carta Winter e Eduardo Biacchi Gomes,

    a OMC entrou em funcionamento em 1. de Janeiro de 1995. E, nos termos de sua constituio, suas funes so a de gerenciar os acordos que compem o sistema multilateral de comrcio, alm de servir de frum para o comrcio internacional, firmando acordos internacionais, bem como supervisionar a adoo dos acordos e implementao destes acordos pelos membros da organizao consistente na verificao das polticas comerciais nacionais.18

    14 COSTA, Carlos Jorge Sampaio. O Cdigo de Conduta das Empresas Transnacionais. Rio de

    Janeiro: Forense, 1984. p. 24-25. 15

    CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 141. 16

    Esclarece Paulo Roberto de Almeida que no dia 15 de abril de 1994, 117 representantes de pases, dentre os 125 participantes na ltima fase do oitavo ciclo de negociaes comerciais multilaterais, assinavam em Marraqueche a Ata Final da Rodada Uruguai, documento de mais de 450 ginas compreendendo, entre outros atos diplomticos e decises ministeriais, um histrico acordo criando a Organizao Mundial do Comrcio (OMC). A emergncia de uma nova instituio multilateral para a regulamentao do comrcio internacional constituiu o encerramento do processo iniciado meio sculo antes, em Bretton Woods. (ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Brasil e o Multilateralismo Econmico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 215). 17

    Informaes sobre a OMC no original: La OMC naci como consecuencia de unas negociaciones, y todo lo que hace resulta de negociaciones. El grueso del trabajo actual de la OMC proviene de las negociaciones mantenidas en el perodo 1986-1994, la llamada Ronda Uruguay, y de anteriores negociaciones en el marco del Acuerdo General sobre Aranceles Aduaneros y Comercio (GATT). La OMC es actualmente el foro de nuevas negociaciones en el marco del Programa de Doha para el Desarrollo, iniciado en 2001. (Organizao Mundial do Comrcio. Disponvel em: Acesso em: 02. dez. 2011). 18

    WINTER, Lus Alexandre Carta; GOMES, Eduardo Biacchi. Direito Econmico e Democracia: os EUA, o sistema de soluo de controvrsias da OMC e o caso do algodo (OSC- ds 267 EUA) In: Anais do XIX Congresso Nacional do CONPEDI. Fortaleza, 2010, p. 2285-2293. Disponvel em: . Acesso em 27 fev. 2012. p. 2292.

  • 20

    Inicialmente a OMC foi criada para fiscalizar se os acordos sobre o comrcio internacional, entre eles o Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT), estavam sendo cumpridos pelos pases membros. No entanto, hoje, a OMC constitui uma organizao mundial que detm a competncia para estabelecer regras jurdicas e julgar os pases que violam os acordos internacionais, prejudicando o bom andamento do livre comrcio internacional.19

    Logo que as regras comerciais estabelecidas pela Organizao Mundial do Comrcio passaram a funcionar, muitos ambientalistas e integrantes de movimentos sociais perceberam que tais regras no eram sustentveis, pois, na busca de uma rpida expanso do comrcio internacional, propulsionada pelas grandes empresas e corporaes econmicas, foram deixadas de lado questes de primeira ordem, como a degradao mais rpida do meio ambiente, e a excluso social etc. Assim, percebe-se que a poltica econmica adotada pela OMC benfica s grandes empresas, pois so elas que possuem reais oportunidades de participar do mercado internacional.20

    Com efeito, o objetivo da globalizao econmica consiste em incorporar as economias dos diversos pases em um nico mercado global. Uma forma de concretizar essa poltica ocorre por meio das organizaes transnacionais, que pressionam os Estados a adotarem medidas segundo os parmetros do mercado global, ditados pela Organizao Mundial do Comrcio (OMC).

    Assim, pondera Costa que "caminhamos para um novo estgio do processo global de industrializao. Um estgio completamente novo e sem precedentes que exige, de todas as classes sociais, uma nova reformulao de suas tticas polticas e talvez, at mesmo, da estratgia de cada uma delas".21

    19 Informaes sobre a OMC no original: El propsito primordial del sistema es contribuir a que el

    comercio fluya con la mayor libertad posible, sin que se produzcan efectos secundarios no deseables, porque eso es importante para el desarrollo econmico y el bienestar. Esto conlleva en parte la eliminacin de obstculos. Tambin requiere asegurarse de que los particulares, las empresas y los gobiernos conozcan cules son las normas que rigen el comercio en las distintas partes del mundo, de manera que puedan confiar en que las polticas no experimentarn cambios abruptos. En otras palabras, las normas tienen que ser transparentes y previsibles. (Organizao Mundial do Comrcio. Disponvel em: . Acesso em: 02. dez. 2011). 20

    CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 141. 21

    COSTA, Carlos Jorge Sampaio. Op. cit., p. 25.

  • 21

    Neste passo, a globalizao econmica no afeta apenas os pases desenvolvidos, mas tambm influencia na poltica, economia e modo de vida das pessoas dos pases pobres, retirando destes parte de seu poder econmico medida que amplia o poder das grandes corporaes e instituies internacionais, assunto que ser melhor desenvolvido no captulo 3.

    1.2 CRTICA GLOBALIZAO ECONMICA NO TOCANTE AO AUMENTO DA EXCLUSO SOCIAL E FRAGMENTAO DAS SOCIEDADES

    O mundo est integrado pelos meios de comunicao, de modo que se vive numa verdadeira aldeia global,22 na qual todos sabem dos problemas sociais que afetam os demais Estados. Como exemplo pode-se mencionar que os habitantes dos Estados desenvolvidos sabem que grande parte da populao dos pases pobres vive na misria, em situao de pobreza extrema, e, conforme Capella,

    por outra parte, sabemos que essas gentes ou outras como elas tm um relao objetiva conosco, que esto comunicadas conosco atravs de coisas tais como a gasolina, ou, mais concretamente, porque comemos o que semearam e colheram e usamos o que o fabricam. Ou porque as armas empregadas pelos soldados vistos foram fabricadas aqui. Estamos comunicados com gentes que sofrem atravs disso que chamamos nosso modo de vida (itlico no original).23

    Segundo Bauman, a globalizao econmica age livremente, quebrando fronteiras e pressionando os pases frgeis para abrir o seu comrcio. Contudo, os efeitos colaterais dessa globalizao so altamente negativos, sem nenhuma contrapartida positiva que ainda , na melhor das hipteses, uma esperana distante, embora tambm seja, segundo alguns prognsticos, um empreendimento desesperado.24

    A globalizao atua em sociedades forosamente abertas, dominadas por foras externas do capital global que esto fora do alcance do controle do

    22 CAPELLA, Juan Ramn. Op. cit., p. 42.

    23 Idem.

    24 BAUMAN, Zygmunt. Medo Lquido. Traduo de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

    Jorge Zahar, 2008. p. 126.

  • 22

    Estado. Neste sentido, conclui referido autor que a pervertida abertura das sociedades implementada pela globalizao negativa ela prpria a causa primeira da injustia e assim, indiretamente, do conflito e da violncia. 25

    A princpio, entendia-se que a globalizao poderia trazer benefcios para todos. No entanto, ela passou a ser questionada tanto nos pases desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Os dois lados defendem que as grandes empresas tm seus interesses realizados devido ao sacrifcio de outros valores. Os pases em desenvolvimento alegam que a globalizao comandada pelas grandes empresas, que passam a interferir nas aes de seus governos, escolhem o regime econmico que estes devem apoiar, enquanto que os pases desenvolvidos sofrem com a terceirizao.26

    Os impactos negativos da globalizao econmica so sentidos por uma grande parte da populao mundial, que no consegue tirar proveito do mercado global, pois este beneficia apenas os profissionais mais qualificados que conseguem trabalho em qualquer lugar e as grandes empresas que podem reduzir seus custos utilizando mo-de-obra barata de outros pases.27

    Ellen Wood afirma que a globalizao econmica compromete ainda mais a desigualdade social, os problemas sociais que os pases subdesenvolvidos enfrentam, pois as grandes corporaes, as transnacionais, dirigem a poltica econmica nos pases em que atuam, facilitando, assim, a acumulao de capital, a especulao financeira, a desregulamentao do mercado em prol de seus interesses. 28

    Na globalizao econmica o Estado passa a ser refm das grandes corporaes. A poltica adotada pelo Estado subsidia os interesses das grandes empresas, esquecendo de dar ateno a interesses dos menos favorecidos, especialmente da classe trabalhadora e daqueles que mais necessitam dos servios sociais do Estado e o FMI, o banco mundial e o GATT direcionam as polticas sociais, o desenvolvimento dos pases subdesenvolvidos.29

    25 BAUMAN, Zygmunt. Medo Lquido..., p. 127.

    26 STIGLITZ, Joseph E. Globalizao: como dar certo. Traduo de Pedro Maia Soares. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 411. 27

    HOBSBAWM, Eric. Globalizao, democracia e terrorismo. Traduo de Jos Viegas. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 11. 28

    WOOD, Ellen Meiksins. O que o (anti)capitalismo. Revista Crtica Marxista, n. 17, ano 2003. So Paulo: Revan, p. 37-50. p. 38. 29

    Idem.

  • 23

    Para os neoliberais o mercado global capaz de resolver os problemas do mundo, mas o que se verifica o aumento das desigualdades entre os pases, pois as diferenas locais so aprofundadas.30 Milton Santos ainda acrescenta que

    um mercado avassalador dito global apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenas locais so aprofundadas. H uma busca de uniformidade, ao servio dos atores hegemnicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto ao consumo estimulado.31

    O Estado cada vez mais concede prioridade ao mercado, deixando que a liberdade do capital prevalea sobre as demais liberdades, pois acredita-se que o aumento do crescimento econmico necessariamente garante uma vida melhor a todos. No entanto, verifica-se que a competio do mercado se d a custas de todas as outras liberdades, aprofundando as desigualdades econmicas entre os Estados e aumento a excluso social nos pases pobres.32

    o que Milton Santos chama de globalizao como perversidade, alertando que,

    de fato, para a grande maior parte da humanidade a globalizao est se impondo como uma fbrica de perversidades. O desemprego crescente torna-se crnico. A pobreza aumenta e as classes mdias perdem em qualidade de vida. O salrio mdio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se instalam e velhas doenas, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos mdicos e da informao. A educao de qualidade cada vez mais inacessvel. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egosmos, os cinismos, a corrupo. A perversidade sistmica que est na raiz dessa evoluo negativa da humanidade tem relao com a adeso desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as aes hegemnicas. Todas essas

    30 SANTOS, Milton. Por uma outra Globalizao: do pensamento nico conscincia universal.

    14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19. 31

    Idem. 32

    BAUMAN, Zygmunt. O mal-Estar da Ps-Modernidade. Traduo de Mauro Gama e Cludia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 34. O autor ressalta que a desigualdade intercontinental, entre os estados e, mais fundamentalmente, dentre da mesma sociedade (sem levar em conta o nvel do PNB exaltado ou lastimado pelo pas) atinge uma vez mais propores que o mundo de h pouco tempo, confiante em sua habilidade de auto-regular-se e autorrigir-se, parecia ter deixado para trs uma vez por todas. Segundo clculos cautelosos e, se faz diferena, conservadores, a rica Europa conta entre seus cidados cerca de trs milhes de desabrigados, vinte milhes de expulsos do mercado de trabalho, trinta milhes que vivem abaixo da linha de pobreza. (Idem).

  • 24

    mazelas so direta ou indiretamente imputveis ao presente processo de globalizao.33

    Destaca Canado Trindade que, com a economia globalizada, lamentavelmente tem crescido, em distintos continentes, a humilhao do desemprego, assim como, de modo alarmante, a pobreza extrema.34

    Desse modo, os graves problemas contemporneos, muitos decorrentes da globalizao da economia, excluem da sociedade milhes de cidados, que se sentem inseguros, no protegidos mais pelo Estado, e tentam buscar refgios em outros pases, pois, conforme Canado Trindade,

    paralelamente chamada globalizao da economia, a desestabilizao social tem gerado uma pauperizao cada vez maior das camadas desfavorecidas da sociedade (e, com isto, as crescentes marginalizao e excluso sociais), ao mesmo tempo em que se verifica o debilitamento do controle do Estado sobre os fluxos de capital e bens e sua incapacidade de proteger os membros mais dbeis ou vulnerveis da sociedade (e.g., os trabalhadores migrantes, os refugiados e deslocados, dentre outros).35

    Segundo Plauto Faraco de Azevedo, tudo pensado a curto prazo, como se o caminho histrico s tivesse uma via, na busca do ganho imediato, no menor tempo possvel, ainda que s expensas da dignidade e solidariedade humanas.36

    Conforme Edgar Morin e Anne Brigitte Kern, todas as coisas tornaram-se mercadorias, desaparecendo, desta forma, as relaes de solidariedade, de doao existentes entre os seres humanos, para dar lugar s relaes mercantis, movidas pelo lucro, pela ganncia de acumular riquezas a qualquer custo.37

    A ideia acima supra corroborada por Atlio Boron, que destaca a mercadorizao dos direitos fundamentais substanciais, como sade e educao, que passam a ser privatizados, diante do processo de reduo do Estado realizado pelo neoliberalismo, e adquiridos pelos cidados que tm condies de compr-los, enquanto que a maioria da populao, que no tem condies

    33 SANTOS, Milton. Op. cit., p. 19-20.

    34 TRINDADE, Antnio Augusto Canado. Desafios e consquistas do direito internacional dos

    direitos humanos no incio do sculo XXI. In: MEDEIROS, Antnio Paulo Cachapuz de (org.). Desafios do Direito Internacional Contemporneo. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2007. p. 207-303. p. 221-222. 35

    Ibidem, p. 222. 36

    AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justia Social e Neoliberalismo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 114. 37

    MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Ptria. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 67.

  • 25

    financeiras, sobrevive com os precrios servios prestados pelo Estado, pois, de tal forma, o Estado acaba dispondo de menos recursos para realizar as suas funces sociais.38

    Assim, Stiglitz conclui que na forma como foi gerida a globalizao h perdedores demais.39 A globalizao contribui para o avano tecnolgico, mas, por outro lado, responsvel pelos problemas planetrios, j que de um lado esto os avanos tecnolgicos, a riqueza, os privilgios, o consumismo e, de outro, constata-se a pobreza, a opresso, a marginalizao social e a injustia.40

    Neste contexto, a globalizao ao mesmo tempo que une tambm separa, excluindo os cidados que no conseguem se inserir nas regras econmicas, financeiras e sociais globalizadas, pois a poltica do mercado global no valoriza as polticas sociais de incluso social. Segundo Capella, defende-se um universo social que, apesar de tudo isso, exclui mais de dois teros da humanidade existente hoje de um modo de vida essencialmente no universalizvel, sem um ulterior encarniamento dessa problemtica.41

    Neste aspecto, os horizontes que se abrem com a globalizao, em termos de difuso global dos meios de comunicao, geram integrao das sociedades e, ao mesmo tempo, implicam a fragmentao das sociedades tradicionais.42

    Capra destaca que a cultura que criamos e sustentamos com nossas redes de comunicao determina no s nossos valores, crenas e regras de conduta, mas at mesmo a nossa percepo da realidade.43

    Segundo Anthony Giddens, num mundo globalizante, em que informaes e imagens so rotineiramente transmitidas atravs do mundo, estamos todos regularmente em contato com outros que pensam, e vivem, de maneira diferente de ns.44 Desse modo, a globalizao influencia o modo de vida cotidiano, como casamento, sexualidade, posio da mulher na sociedade,

    38 BORON, Atilio. Os novos leviats e a polis democrtica: neoliberalismo, decomposio estatal

    e decadncia da democracia na Amrica Latina. In: GENTILI, Pablo; SADER, Emir (orgs.) Ps neoliberalismo II: que Estado para que democracia? Petrpolis: Paz e Terra, 1999, p. 7-67. p. 9. 39

    STIGLITZ, Joseph E. Globalizao: como dar certo..., p. 417. 40

    FARIA, Jos Henrique de. Economia Poltica do Poder. Vol. 1, Curitiba: Juru, 2004. p. 92-93. 41

    CAPELLA, Juan Ramn. Op. cit., p.34. 42

    GIDDENS, Antthony. Mundo em descontrole. Traduo de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 14-15. 43

    CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 166. 44

    GIDDENS, Antthony. Mundo em descontrole..., p. 16.

  • 26

    famlia etc. Essas consequncias da globalizao geram tenses na maneira de viver das sociedades tradicionais em grande parte do mundo.45

    Embora alguns estudos demonstrem que as propagandas comerciais no produzem efeitos significativos sobre a conduta dos indivduos, no se pode descartar totalmente os efeitos de tais propagandas que podem causar um impacto sobre a vida das pessoas, pois, segundo Capra,

    como os meios de comunicao audiovisuais tornaram-se os principais canais de comunicao social e cultural nas sociedades urbanas modernas, as pessoas constroem suas imagens simblicas, seus valores e suas regras de comportamento a partir dos diversos contedos oferecidos por esses meios de comunicao.46

    O problema reside no fato de que alguns meios de comunicao, como a televiso, carregam um forte valor econmico, pois so as propagandas comerciais que os sustentam, de modo que a comunicao do valor empresarial do consumismo torna-se a mensagem preponderante transmitida pela televiso.47

    O desenvolvimento de novas tecnologias tem como consequncia o surgimento de novas relaes sociais. Para Jos Carlos de Magalhes a globalizao econmica contribuiu para o estreitamento das relaes entre os indivduos, mas, ao mesmo tempo, acabou fragilizando a relao entre o cidado e seu Estado, ou seja, a interligao das economias tem feito o mundo cada vez mais perto do homem, enfraquecendo sua identificao com o Estado ou com sua nacionalidade. 48

    Nessa sociedade globalizada, em que a informao ocupa um lugar fundamental, o que se tem uma mercantilizao da cultura ou uma culturizao da economia? A economia invade o meio cultural, pois hoje a mdia passa a apresentar os interesses econmicos, por meio de propagandas publicitrias.49

    Vive-se numa sociedade globalizada, destradicionalizada, ou seja, a tradio, as culturas que ligavam as vidas de determinadas sociedades so

    45 GIDDENS, Antthony. Mundo em descontrole..., p. 15.

    46 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 164-166.

    47 Ibidem, p. 164.

    48 MAGALHES, Jos Carlos de. Direito Internacional Econmico. Curitiba, Juru, 2008. p. 209.

    49 CABRAL, Juliana. Os tipos de Perigo e a Ps-Modernidade. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

    p.45.

  • 27

    dissolvidas na globalizao. A vida social na sociedade contempornea se desliga das estruturas e das instituies tradicionais, permanecendo apenas as relaes de carter meramente econmico e que tm uma durao relativamente curta, tendo em vista que as instituies de mercado estabelecem relaes contratuais ou por status, baseadas no oportunismo. Isso significa que na sociedade contempornea as relaes sociais so cada vez mais extra-institucionais, predominando as relaes de mercado, limitadas pelo relacionamento de fornecedor e comprador, estando as relaes culturais efetivamente marginalizada.50

    A sociedade contempornea produziu uma mentalidade totalmente tecnocrtica. A tica que se fala a tica da cincia e da tcnica. Mas que tica esta que apenas garante privilgios a alguns? - presumindo que todos participam dos benefcios da sociedade tecnolgica.

    Segundo Celso Luiz Ludwig, no contexto da cincia e da tcnica que evidenciada a tica do discurso proposta por Habermas, que defende a participao de todos no discurso.51 No entanto, Enrique Dussel entende que a tica do discurso no a tica da vida real, pois no se refere ao outro que no participa do discurso e excludo da comunidade de comunicao, sendo necessrio pensar em uma tica material, uma tica da libertao, que se preocupa com o reconhecimento dos excludos e possibilita a eles a luta pela sua prpria libertao.52

    Para Celso Luiz Ludwig

    esse outro a que se refere Dussel est sempre pressuposto na comunidade de comunicao, mas tambm sempre excludo na comunidade real e que no argumenta efetivamente quando da produo dos consensos o explorado, o dominado, o pobre ou a vtima no intencional do sistema.53

    Neste sentido, faz-se necessrio produzir um discurso que resgate o valor dos excludos, que reconhea que estes so injustamente excludos do sistema

    50 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernizao reflexiva: potica, tradio e

    esttica na ordem social moderna. So Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 253-254. 51

    LUDWIG, Celso Luiz. Discurso e direito: o consenso e o dissenso. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.). Direito e Discurso. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006. p. 45-65. p. 63. 52

    DUSSEL, Enrique. tica da Libertao: na idade da globalizao e da excluso. Petrpolis: Vozes, 2002. p. 465. 53

    LUDWIG, Celso Luiz. Op. cit., p. 63.

  • 28

    capitalista, que so vtimas do discurso hegemnico, para, assim, possibilitar, no s um outro direito, porm tambm o direito do outro, excludo a priori da comunidade de comunicao.54

    De fato, as crescentes disparidades geradas pela globalizao econmica contribuiram significativamente para o agravamento da marginalidade e da excluso social de parte crescente da populao em diferentes partes do mundo, tornando a globalizao econmica altamente seletiva, pois enquanto eleva uma minoria da populao ao topo do mundo, oferece aos pobres uma vida de misria, violncia e caos.

    Assim, enquanto os aspectos positivos da globalizao so distribudos de maneira desigual, para os detentores do capital, os aspectos negativos da globalizao so distribudos democraticamente, pois enquanto os habitantes dos pases ricos tm condies de consumir produtos de alta tecnologia, como eletrnicos, automveis, eletrodomsticos etc, a maioria da populao dos pases pobres nem sequer tem garantida as necessidades bsicas para sua sobrevivncia.

    1.3 A EMERGNCIA DA EFETIVIDADE DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

    neste contexto, de incertezas e contradies, de pobreza extrema, da no satisfao dos direitos fundamentais bsicos que afetam as condies mnimas de existncia dos seres humanos, decorrentes da globalizao econmica, que se desenvolvem aes em favor da prevalncia do direito ao desenvolvimento, que possui prioridade nas agendas sobre a efetividade dos direitos humanos dos rgos internacionais e governamentais, conforme ser melhor analisado adiante.

    54 LUDWIG, Celso Luiz. Op. cit., p. 64.

  • 29

    1.3.1 Afirmao internacional dos direitos humanos e o reconhecimento do desenvolvimento como um direito humano fundamental

    Flvia Piovesan afirma que, diante das atrocidades cometidas no perodo nazista, na segunda Guerra Mundial, surge a necessidade de assegurar a todos os cidados o respeito aos seus direitos humanos fundamentais, como a vida, a integridade fsica e moral, a liberdade etc.55

    Como aponta Eduardo Biacchi Gomes,

    desde o Ps-Guerra , cada vez maior, a preocupao da sociedade internacional em relao aos Direitos Humanos e aos Direitos Sociais, notadamente ante as horrendas e terrveis atrocidades cometidas durante o sangramento perodo da Segunda Guerra Mundial. No contexto mundial, surge a Organizao das Naes Unidas, no ano de 1945, com a finalidade de evitar novos conflitos mundiais e, atravs de um sistema peculiar, cria mecanismos de ao, atravs de suas instituies, que tm a finalidade de resguardar os direitos sociais e direitos humanos, visando a sua efetivas aplicao.56

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 constitui um marco histrico fundamental na proteo dos direitos do homem, pois assegura aos direitos humanos validade universal, contribuindo, assim, para que tais direitos sejam positivados jurdicamente no plano internacional e assegurados pelos Estados no plano interno.57

    Neste contexto, a Declarao de 1948 assegura a proteo e internacionalizao dos direitos humanos, que, segundo Flvia Piovesan, de suma importncia, pois

    a Declarao de 1948 vem a inovar a gramtica dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepo contempornea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extenso universal dos direitos humanos, sob a crena de que a condio de pessoa o requisito nico para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser

    55 PIOVESAN, Flvia. Direito ao Desenvolvimento: desafios contemporneos. In: PIOVESAN,

    Flvia; SOARES, Ins Virgnia Prado (coords.). Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte: Frum, 2010, p. 95-116. p. 97. 56

    GOMES, Eduardo Biacchi. Democracia, Direitos Humanos e Direitos Sociais no Contexto Internacional. Cadernos da Escola de Direito e Relaes Internacionais da UniBrasil. V. 6, N. 6, p. 25-39, Jan/Dez. 2006. Curitiba: UniBrasil, 2006. p. 25. 57

    PIOVESAN, Flvia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed., rev. e atual. So Paulo: Saraiva, 2011. p.195.

  • 30

    essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrnseco condio humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e polticos condio para a observncia dos direitos sociais, econmicos e culturais e vice-versa.58

    Segundo Fbio Koder Comparato, com base na unidade essencial dos direitos humanos que se pde falar, no plano nacional e internacional, de um direito ao desenvolvimento.59

    Para Flvia Piovesan a delimitao da juridicidade do direito ao desenvolvimento tarefa das mais sensveis e importantes na atual conjuntura tanto do Direito Constitucional e do Direito Internacional".60

    Pode-se afirmar que o direito fundamental ao desenvolvimento tem sua origem na Declarao Universal de 1948, pois, embora a referida Declarao no mencione de forma expressa o direito humano ao desenvolvimento, assegura os direitos sociais, econmicos e culturais, prezando por uma melhor qualidade de vida de todos os cidados.61

    A Declarao de 1948 retrata a preocupao com a efetivao do desenvolvimento, pois, em seus artigos 22 e 26, contempla os direitos sociais, econmicos e culturais, nos seguintes termos:

    artigo 22 Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito segurana social e realizao, pelo esforo nacional, pela cooperao internacional de acordo com a organizao e recursos de cada Estado, dos direitos econmicos, sociais e culturais indispensveis sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Artigo 26 1. Toda pessoa tem direito instruo. A instruo ser gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instruo elementar ser obrigatria. A instruo tcnico-profissional ser acessvel a todos, bem como a instruo superior, esta baseada no mrito. 2. A instruo ser orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instruo promover a compreenso, a tolerncia e a amizade entre todas as naes e grupos raciais ou

    58 PIOVESAN, Flvia. Direito ao Desenvolvimento..., p. 97-98.

    59 COMPARATO, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. 6. ed. So

    Paulo: Saraiva, 2008. p. 281. 60

    PIOVESAN, Flvia. Direito ao Desenvolvimento..., p. 176. 61

    Na viso de Flvia, o fato de a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 no assegurar expressamente o desenvolvimento como um direito humano fundamental est relacionado com a historicidade dos direitos humanos, pois o direito ao desenvolvimento, assim como os demais direitos humanos so construdos, nascem em determinada poca, de acordo com os interesses e necessidades da sociedade. Por isso, apenas na dcada de setenta, o desenvolvimento passa a fazer parte da agenda internacional sobre direitos humanos. (PIOVESAN, Flvia. Globalizao econmica, integrao regional e direitos humanos. In: PIOVESAN, Flvia (org.). Direitos humanos, globalizao econmica e integrao regional: desafios do direito constitucional internacional. So Paulo: M. Limonad, 2002, p. 39-75. p. 40).

  • 31

    religiosos, e coadjuvar as atividades das Naes Unidas em prol da manuteno da paz. 3. Os pais tm prioridade de direito na escolha do gnero de instruo que ser ministrada a seus filhos.62

    Neste influxo, Jos Eduardo Faria assevera que a referida Declarao no apenas retrata um sentimento de reprovao s barbries cometidas pelas guerras, como tambm reconhece direitos em favor dos cidados menos favorecidos,

    incorporando, alm disso, idias e teses subjacentes s teorias do desenvolvimento ento em debate, no sentido de que, por meio dos poderes pblicos, seria possvel romper os limites do atraso, superar a pobreza, promover a acumulao, assegurar a prosperidade e disseminar o bem-estar.63

    Segundo Canado Trindade, a Declarao Universal de 1948 lanou a semente da internacionalizao dos direitos humanos, que foi frutificada com a criao de vrios tratados e instrumentos de proteo dos direitos humanos. Trata-se do pacto internacional sobre direitos civis e polticos e do pacto internacional sobre direitos econmicos, sociais e culturais, ambos de 19 de dezembro de 1966, que, dotados de fora normativa, constituem instrumentos indispensveis na proteo e promoo dos direitos humanos fundamentais.64

    Os pactos internacionais sobre direitos humanos de 1966 tm por objetivo reforar o contedo da Declarao Universal sobre Direitos Humanos de 1948. Neste caminho, os referidos tratados constituem normas jurdicas vinculantes na busca da promoo do direito ao desenvolvimento.

    62 Declarao Universal dos Direitos Humanos. Disponvel em:

    . Acesso em 20 dez. 2011. 63

    FARIA. Jos Eduardo. O Artigo 26 da Declarao Universal dos Direitos do Homem: algumas notas sobre suas condies de efetividade. In: PIOVESAN, Flvia (org.). Direitos humanos, globalizao econmica e integrao regional: desafios do direito constitucional internacional. So Paulo: M. Limonad, 2002, p. 597-607. p. 597. O autor tambm afirma que: no por acaso que a Declarao Universal dos Direitos do Homem de 1948 encerra duas concepes diferenciadas de direitos: a que garante as liberdades (negativas) de locomoo, pensamento, opinio, religio, voto, iniciativa, propriedade e disposio da votnade; e a que encarando o homem na especificidade de sua insero nas estruturas produtivas e nos seus respectivos modos de regulao social, enfatiza seus direitos ao trabalho, a uma remunerao mnima, educao, sade, moradia enfim, liberdade (positiva) para assegurar uma perspectiva mnima de progresso pessoal. (Idem). 64

    TRINDADE, Antnio Augusto Canado. Desafios e consquistas do dreito internacional..., p. 214.

  • 32

    Verifica-se que os referidos pactos sobre direitos humanos destacam a interpendncia entre os direitos civis e polticos e direitos econmicos, sociais e culturais, uma vez que o pacto sobre os direitos civis e polticos reconhece que,

    em conformidade com a Declarao Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, usufruindo das liberdades civis e polticas e liberto do medo e da misria, no pode ser realizado a menos que sejam criadas condies que permitam a cada um gozar dos seus direitos civis e polticos, bem como dos seus direitos econmicos, sociais e culturais.65

    O pacto internacional sobre direitos econmicos, sociais e culturais, reconhece que,

    em conformidade com a Declarao Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do medo e da misria, no pode ser realizado a menos que sejam criadas condies que permitam a cada um desfrutar dos seus direitos econmicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e polticos.66

    Neste sentido, adotando a lio de Flvia Piovesan, o desenvolvimento reclama pela interdependncia entre os direitos civis, polticos, sociais, econmicos e culturais, uma vez que na viso da autora a garantia dos direitos civis e polticos condio para a observncia dos direitos sociais, econmicos e culturais, e vice-versa.67 A autora esclarece que

    em face da indivisibilidade dos direitos humanos, h de ser definitivamente afastada a equivocada noo de que uma classe de direitos (a dos civis e polticos) merece inteiro reconhecimento e respeito, enquanto outro classe de direitos (a dos direitos sociais, econmicos e culturais), ao revs, no merece qualquer observncia.68

    Assim, os referidos pactos merecem igual tratamento, pois a garantia de tais direitos so indispensveis melhoria da qualidade de vida de todos os cidados, ou seja, tanto o acesso aos direitos civis e polticos como aos direitos sociais, econmicos e culturais, so necessrios para promover uma melhor qualidade de vida a todos os cidados.

    65 Pacto internacional sobre os direitos civis e polticos. Disponvel em:

    . Acesso em 18 jul. 2011. 66

    Pacto internacional sobre os direitos econmicos, sociais e culturais. Disponvel em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pacto1.htm>. Acesso em 18 jul. 2011. 67

    PIOVESAN, Flvia. Globalizao econmica, integrao regional e direitos humanos..., p. 42. 68

    Ibidem, p. 42.

  • 33

    Tambm, com o objetivo de reforar a preocupao da efetivao dos direitos humanos j assegurados, no plano internacional, pela Declarao Universal de 1948 e pelos dois tratados sobre direitos humanos de 1966 (pacto internacional sobre direitos civis e polticos e do pacto internacional sobre direitos econmicos, sociais e culturais), foi elaborada pela Assembleia Geral das Naces Unidas, em 1986, a Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento, que dispe, em seus artigos 1. e 2., que

    artigo 1 - 1. O direito ao desenvolvimento um direito humano inalienvel em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos esto habilitados a participar do desenvolvimento econmico, social, cultural e poltico, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. 2. O direito humano ao desenvolvimento tambm implica a plena realizao do direito dos povos de autodeterminao que inclui, sujeito s disposies relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exerccio de seu direito inalienvel de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais. Artigo 2 - 1. A pessoa humana o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficirio do direito ao desenvolvimento. 2. Todos os seres humanos tm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno respeito aos seus direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como seus deveres para com a comunidade, que sozinhos podem assegurar a realizao livre e completa do ser humano, e deveriam por isso promover e proteger uma ordem poltica, social e econmica apropriada para o desenvolvimento. 3. Os Estados tm o direito e o dever de formular polticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem o constante aprimoramento do bem-estar de toda a populao e de todos os indivduos, com base em sua participao ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuio eqitativa dos benefcios da resultantes.69

    A Declarao e Programa de Ao de Viena de 1993 tambm refora o direito humano fundamental ao desenvolvimento, ao assegurar no artigo 10 que a Conferncia Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o direito ao desenvolvimento, previsto na Declarao sobre Direito ao Desenvolvimento, como um direito universal e inalienvel e parte integral dos direitos humanos fundamentais.70

    69 Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986. Disponvel em:

    Acesso em 17 jul. 2011. 70

    Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986. Disponvel em: Acesso em 17 jul. 2011.

  • 34

    Com os efeitos negativos da globalizao econmica, o direito ao desenvolvimento ganhou destaque nas principais agendas internacionais sobre direitos humanos. Canado Trindade tambm afirma que, a partir da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, passou-se a dar nfasse, igualmente ao direito ao desenvolvimento (como um direito humano) e ao fortalecimento das instituies democrticas no Estado de Direito.

    Canado Trindade tambm afirma que, a partir da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993,

    resultou claro que o entendimento de que que os direitos humanos permeiam todas as reas da atividade humana, cabendo, assim, doravante, assegurar sua onipresena, nas dimenses tanto vertical, a partir da incorporao da normativa de proteo no direito interno dos Estados, assim como horizontal, a partir da incorporao da dimenso dos direitos humanos em todos os programas e atividades das Naes Unidas (...).71 (itlico no original).

    Neste contexto, vale destacar que o reconhecimento do direito fundamental ao desenvolvimento assegurado no plano internacional depende, em grande parte, da incorporao das normas internacionais de direitos humanos pelos Estados. Os Estados precisam fortalecer o compromisso com a promoo do direito ao desenvolvimento, adotando medidas internas para a implementao dos direitos humanos assegurados pelas normas internacionais. Canado Trindade destaca que diversas Constituies contemporneas, referido-se expressamente aos tratados de direitos humanos, concedem um tratamento especial ou diferenciado tambm no plano do direito interno aos direitos humanos internacionalmente consagrados.72

    Torna-se indispensvel um dilogo entre as normas internacionais de direitos humanos e o direito constitucional de cada pas na busca da promoo dos direitos humanos fundamentais. Neste quadro, Flvia Piovesan destaca que

    71 TRINDADE, Antnio Augusto Canado. Desafios e consquistas do dreito internacional..., p. 213.

    O autor tambm afirma ao longo de todo esse tempo, tornou-se claro que, com a consagrao dos direitos humanos no plano internacional, no se tratava de impor uma determinada forma de organizao social, ou modelo de Estado, tampouco uma uniformidade de polticas, mas antes de buscar comportamentos e atitudes dos Estados no obstante suas diferenas que se mostrassem convergentes quanto aos valores e preceitos bsicos consagrados na Carta Internacional dos Direitos Humanos. (Idem). 72

    TRINDADE, Antnio Augusto Canado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. V. I. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 553.

  • 35

    em favor da natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados internacionais, adicione-se tambm o fato de o processo de globalizao ter implicado a abertura da Constituio normao internacional. Tal abertura resultou na ampliao do bloco de constitucionalidade. Este passou a incorporar preceitos enunciadores de direitos fundamentais que, embora decorrentes de fonte internacional, veiculam matria e contedo de inegvel natureza constitucional. 73

    Neste sentido, a referida autora refora a importncia de um direito constitucional cosmopolita, que alcance as normas internacionais sobre direitos humanos, uma vez que "a delimitao da juridicidade do direito ao desenvolvimento tarefa das mais sensveis e importantes na atual conjuntura tanto do Direito Constitucional como do Direito Internacional".74

    Para Flvia Piovesan o processo de internacionalizao dos direitos humanos traz reflexos no mbito normativo interno, na medida em que as Constituies contemporneas ho de respeitar parmetros mnimos voltados proteo da dignidade humana().75

    Nesta linha, afirma Robert Alexy que

    os direitos fundamentais rompem, por razes substanciais, o quadro nacional, porque eles, se querem poder satisfazer as exigncias a serem postas a eles, devem abarcar os direitos do homem. Os direitos do homem tm, porm, independentemente de sua positivao, validez universal. Eles pem, por conseguinte, exigncias a cada ordenamento jurdico.76

    Diante da importncia das normas internacionais sobre direitos humanos acima mencionadas, e tambm de outras convenes regionais sobre direitos humanos, Robert Alexy defende a possibilidade de uma cincia dos direitos fundamentais ampla, transcendente aos ordenamentos jurdicos particulares, a qual muito mais que uma mera comparao de direito.77

    73 PIOVESAN, Flvia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional..., p. 418.

    74 PIOVESAN, Flvia. Direito ao Desenvolvimento..., p. 176.

    75 PIOVESAN, Flvia. Globalizao econmica, integrao regional e direitos humanos..., p. 59.

    76 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Traduo de Afonso Heck. 2. ed. rev., Porto

    Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 55. 77

    Ibidem, p. 56. Para Alexy o objetivo da cincia dos direitos fundamentais ampla no , de modo algum, a nivelao das ordenaes dos direitos fundamentais particulares. Ao contrrio, as diferenas lhes do sugestes e tarefas. Sua aspirao vale, ao contrrio, ao revelar das estruturas dogmticas e ao destacamento dos princpios e valores que esto situados atrs das codificaes e da jurisprudncia. (Idem).

  • 36

    Neste aspecto, o reconhecimento do direito fundamental ao desenvolvimento requer uma hermenutica constitucional que atribua prevalncia aos direitos humanos previstos nas normas internacionais, pois, conforme j exposto, o direito ao desenvolvimento somente se concretiza quando os direitos humanos fundamentais, que garantem a existncia e dignidade de todos, forem promovidos.

    Torna-se necessrio destacar a prevalncia dos direitos humanos, assegurada pela Constituio brasileira de 1988 como um princpio fundamental que rege as relaes internacionais do Brasil, e tambm do artigo 5., pargrafo 3., da Constituio, que eleva categoria de norm as constitucionais as normas internacionais sobre direitos humanos que integram a normativa interna ao passar pelo procedimento previsto para as emendas constitucionais.78

    Assim, a salvaguarda do direito ao desenvolvimento reconhecido no plano internacional requer uma hermenutica constitucional transformadora, que possibilite a aplicao das normas internacionais que versem sobre direitos humanos, uma vez que os direitos humanos no esto limitados pelo ordenamento jurdico interno de cada pas. Para tanto, torna-se necessria uma interpretao ampla dos direitos fundamentais assegurados pela Constituio de 1988, visando ao alcane das normas internacionais dos direitos humanos.

    78 Artigo 5. (...), 3 Os tratados e convenes in ternacionais sobre direitos humanos que forem

    aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas constitucionais. BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em 27 jan. 2012. Vale destacar que, em relao aos tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados no ordenamento jurdico brasileiro antes da emanda constitucional de 2004, possuem, segundo a posio do STF, supralegalidade, ou seja, esto abaixo das normas constitucionais e acima das normas infraconstitucionais. Segundo Valerio de Oliveira Mazzuoli, o Supremo Tribunal Federal, no RE 466.343-SP, onde se questionava a impossibilidade da priso civil pela aplicao do Pacto de San Jos, modificou radicalmente sua opinio anterior (tal como expressa no despacho monocrtico do HC 77.631-5/SC, publicado no DJU 158-E, de 19.08.1998, Seo I, p. 35), para aceitar esta tese acima exposta, segundo a qual os tratados de direitos humanos tm ndole e nvel de normas constitucionais no Brasil.Mas a maioria dos Ministros no acompanhou tal posio (que adotamos como correta), para acompanhar o Voto-vista do Min. Gilmar Mendes, que alocou tais tratados de direitos humanos no nvel supralegal (abaixo da Constituio, mas acima de toda a legislao infraconstitucional). (MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A tese da Supralegalidade dos Tratados de Direitos Humanos. Disponvel em: . Acesso em: 20 de jan. de 2012).

  • 37

    1.3.2 O Direito ao desenvolvimento enquanto realizao dos direitos fundamentais

    Com base nas normas internacionais sobre direitos humanos, o desenvolvimento torna-se um direito humano fundamental, sendo o ser humano o seu principal destinatrio, constituindo dever do Estado desenvolver aes aptas sua concretizao. Para tanto, torna-se imprescindvel analisar a efetividade do desenvolvimento mediante a mudana de contedo, no analisando apenas o seu aspecto econmico, sendo observadas outras dimenses fundamentais como a social, a cultural, a poltica, etc.

    O desenvolvimento e os direitos fundamentais, como alimentao, gua potvel, saneamento bsico, sade, educao, entre outros que asseguram o mnimo existencial dos cidados, esto necessariamente vinculados. Para Joseph E. Stiglitz, o desenvolvimento diz respeito a transformar sociedades, melhorar a vida dos pobres, permitir que todos tenham uma chance de sucesso e acesso sade e educao.79

    A Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 concebe o desenvolvimento como

    um processo econmico, social, cultural e poltico abrangente, que visa o constante incremento do bem-estar de toda a populao e de todos os indivduos com base em sua participao ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuio justa dos benefcios da resultantes.80

    Amartya Sen defende o desenvolvimento como um processo de expanso das liberdades dos indivduos, considerando fundamental a interdependncia entre a liberdade econmica, social e poltica, na promoo do desenvolvimento que tem por objetivo o bem-estar de todos os cidados.81

    79 STIGLITZ, Joseph E. A Globalizao e seus Malefcios: a promessa no-cumprida de

    benefcios globais. Traduo de Bzan Tecnologia e Lingustica. 2. ed. So Paulo: Futura, 2002. p. 303. 80

    Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986. Disponvel em: . Acesso em 17 jul. 2011. 81

    SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Traduo de Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17.

  • 38

    As liberdades so inteligadas e todas atuam conjuntamente para a realizao do desenvolvimento. A liberdade poltica diz respeito liberdade de expresso e eleies livres. As oportunidades sociais esto relacionadas com o recebimento de servios de sude e educao. As facilidades econmicas referem-se oportunidade de participao no comrcio e na produo, podendo ajudar a gerar crescimento economico e recursos para o Estado na prestao dos servios sociais. Neste sentido, uma liberdade pode fortalecer a uma outra. Com oportunidades sociais os indivduos tm mais facilidade de melhorar a sua condio de vida e ajudar os demais. Assim, apresenta-se indispensvel a condio do indivduo livre e sustentvel para participar do processo de desenvolvimento. 82

    Desse modo, o principal objetivo do desenvolvimento deve ser a liberdade das pessoas para usufruir de uma boa qualidade de vida. O desenvolvimento deve proporcionar a todos oportunidades econmicas para comprar os bens materiais de que necessitam. Neste sentido, o desenvolvimento deve ser analisado como um processo de expanso das libertades reais que as pessoas desfrutam.83

    O aumento do bem-estar da sociedade de um determinado pas, a melhoria da qualidade de vida da populao o resultado mais visvel do desenvolvimento. No entanto, o padro de vida de uma populao no pode ser verificado apenas levando em considerao a renda per capita do pas, pois, embora a renda per capita seja uma medida adotada para analisar o nvel de vida da populao, trata-se de uma medida incompleta, pois muitas vezes a renda per capita cresce, mas apenas uma pequena parcela da populao tem o seu padro de vida elevado.84

    Nesta linha, Tatyana Scheila Friedrich, afirma que a dimenso humana do desenvolvimento representa a transformao da dimenso econmica para alm dos fatores de produto e renda, de modo a garantir a satisfao das necessidades das pessoas.85

    82 SEN, Amartya. Op. cit., p. 25-26.

    83 Ibidem, p. 17.

    84 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Desenvolvimento e crise no Brasil. 7. ed., So Paulo:

    Brasiliense, 1977. p.22. 85

    FRIEDRICH, Tatyana Scheila. O caminho para o fortalecimento do comrcio, do desenvolvimento e da integrao regional: retorno ao keynesianismo? In: BARRAL, Welber;

  • 39

    A Declarao de Viena refora a interdependncia entre o desenvolvimento, a democracia e os direitos humanos, afirmando em seu artigo 8. que

    a democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais so conceitos interdependentes que se reforam mutuamente. A democracia se baseia na vontade livremente expressa pelo povo de determinar seus prprios sistemas polticos, econmicos, sociais e culturais e em sua plena participao em todos os aspectos de suas vidas. Nesse contexto, a promoo e proteo dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em nveis nacional e internacional, devem ser universais e incondicionais. A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a promoo de democracia e o desenvolvimento e respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais no mundo inteiro.86

    Neste contexto, Eduardo Biacchi Gomes refora a relao entre desenvolvimento, democracia e direitos humanos, pois, analisando o desenvolvimento sob o vis da integrao da Amrica do Sul, defende que a integrao somente ser positiva para o desenvolvimento da regio se forem adotadas outras polticas, alm das econmicas, que visem ao fortalecimento das instituies democrticas, valorizao dos direitos humanos e realizao de investimentos, nos pases menos favorecidos, a fim de reduzir as desigualdades entre eles. Neste sentido, Gomes destaca que uma poltica de desenvolvimento para a Amrica do Sul dever dar prioridade pela observncia e respeito aos valores de um Estado Democrtico de Direito e dos Direitos Humanos.87

    Assim, a noo de desenvolvimento pressupe a melhoria da qualidade de vida dos cidados, que somente pode ser conquistada com a promoo dos direitos fundamentais que garantem o mnimo existencial de cada ser humano. Para tanto, a ideia de desenvolvimento apresentada neste estudo no analisa apenas o crescimento econmico do pas, tambm considerando como fator para a realizao do desenvolvimento a promoo dos direitos humanos fundamentais, que asseguram a todos uma vida digna.

    BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (orgs.). Integrao Regional e Desenvolvimento. Florianpolis: Boiteux, 2007. p. 21-35. p. 23. 86

    Declarao e Programa de Ao de Viena de 1993. Disponvel em: .Acesso em: 25 jan. de 2012. 87

    GOMES, Eduardo Biacchi. Assimetrias na Amrica do Sul: vis de desenvolvimento a partir da democracia e dos direitos humanos. In: BARRAL, Welber; BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (orgs.). Integrao Regional e Desenvolvimento. Florianpolis: Boiteux, 2007. p. 251-281. p. 254.

  • 40

    1.3.3 A emergncia da efetividade do direito ao desenvolvimento na era da globalizao econmica

    O debate sobre a efetividade do direito ao desenvolvimento ganhou fora nas ltimas dcadas diante dos graves problemas sociais enfrentados pelos pases em desenvolvimento na era da globalizao econmica.

    Celso Furtado menciona que, atualmente, renem-se economistas de muitos pases para trocar experincias e refletir sobre os graves problemas que afligem o mundo em desenvolvimento face ao modelo neoliberal imposto pelo processo de globalizao.88

    Amartya Sen destaca que em todo o mundo existe um nmero enorme de pessoas que sofrem privao de liberdade. A insegurana econmica e social dos pases pobres, a carncia de oportunidades socais maioria das pessoas faz com que estas tenham as suas liberdades negadas. Muitas pessoas no tm acesso a alimentos, servios de sade, saneamento bsico, gua tratada, e passam a vida inteira lutando pela sobrevivncia, pela liberdade bsica de sobreviver.89

    A ausncia de liberdades dos indivduos para ter acesso aos bens bsicos para sua sobrevivncia compromete o desenvolvimento do pas. Para se falar em desenvolvimento necessrio dar oportunidade aos indivduos para que esses possam suprir as suas necessidades bsicas, como alimentao, sade e educao.90

    Entender as liberdades substantivas das pessoas como o fim do desenvolvimento requer anlises muito mais abrangentes quanto ao processo e meio de promov-lo. Para tanto, o processo de desenvolvimento deve se preocupar com os meios para remover as privaes de liberdades que sofrem a maioria da pessoas. 91

    88 FURTADO, Celso. Os desafios da Nova Gerao. Revista de Economia Poltica, vol. 24, n

    42, out./dez. 2004, p. 483-486. p. 483. 89

    SEN, Amartya. Op. cit., p. 29- 30. 90

    Ibidem, p. 18. 91

    Ibidem, p. 49.

  • 41

    No entendimento de Sen, para concretizar o desenvolvimento necessrio reduzir a desigualdade social do pas, dar oportunidade a todos, melhorar a qualidade dos servios pblicos. Nas palavras do autor:

    o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privao de liberdade: pobreza e tirania, carncia de oportunidades econmicas e destituio social sistemtica, negligencia dos servios pblicos e intolerncia ou interferncia excessiva de Estados repressivos.92

    O desenvolvimento deve ser efetivado no campo social, econmico e poltico, sendo fundamental a promoo de libertade social, econmica e poltica. Assim, o desenvolvimento um processo integrado de expanso de liberdades inter-relacionadas. 93

    De acordo com Luiz Carlos Bresser Pereira, o desenvolvimento realiza-se quando as estruturas econmicas, polticas e sociais de um pas passam por um processo de transformao, aumentando a qualidade de vida de seus cidados. Todo desenvolvimento necessita de uma transformao econmica, poltica e social. O desenvolvimento deve ser um processo global e deve repercutir diretamente no crescimento do padro de vida da populao.94

    Para o autor citado acima, o desenvolvimento est relacionado com o padro de vida da populao e no com a renda per capita, pois, se o aumento do crescimento econmico no aumentar a qualidade de vida da populao, no se pode falar que ocorreu um desenvolvimento, o qual exige uma transnformao global da sociedade, incluindo a questo econmica, social e poltica. "Trata-se de um processo global, em que as estruturas econmicas, poltica e sociais de um pas sofrem contnuas e profundas transformaes".95

    92 SEN, Amartya. Op. cit., p.18.

    93 Ibidem, p. 23.

    94 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Desenvolvimento e crise no Brasil..., p.21.

    95 Idem. Para Bresser Pereira, "no tem sentido falar-se em desenvolvimento apenas econmico,

    ou apenas poltico, ou apenas social. Na verdade, no exist