Ronaldo Henn-dimensão Semiótica Da Violencia

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Ronaldo Henn. Dimensão Semiótica Da Violencia. Artigo

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  • A Dimenso Semitica da Violncia1

    Ronaldo Henn Professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos2

    Resumo Este trabalho pretende refletir alguns dos aparatos conceituais que permeiam parte da pesquisa transdisciplinar Criminalidade e Espao Urbano, as Transversalidades da Violncia, desenvolvida na Unisinos, que tem, entre os seus focos, os processos miditicos. Postula-se que a violncia possui uma dimenso semitica que estaria vinculada prpria gnese dos signos na espcie humana e no desenvolvimento e conflitos de ordens no espao da semiosfera. Procura-se entender a dinmica destas semioses muitas vezes explosivas e verificar certas operaes miditicas na qual esta dimenso atualizada e ritualizada. Palavras-chave Semiose; cultura; mdia; violncia; jornalismo

    Consideraes iniciais

    O semioticista alemo Harry Pross (1980, 1989) credita inaptido humana diante da

    idia do nada a responsabilidade pelo desencadeamento de toda a constelao de signos

    atravs dos quais a espcie se move, se comunica e se relaciona com o ambiente. Onde

    faltem os signos, ns imaginamos o nada e, onde parece haver o nada, nos apressamos

    em colocar um signo de ordem, sentencia Pross (1980, 1989) reiteradas vezes na sua

    singular proposio semitica. Esse horror idia do nada e sua conseqente

    substituio pelos signos que, por definio, ocupam sempre o lugar de alguma coisa,

    estaria associado condio que, para Pross, aparece como definitiva, matriz

    fundamental do complexo semitico humano: a posio ertil que permite a espcie a

    percepo do horizonte em uma relao vertical em que o par dentro/fora passam a

    compor com o acima/abaixo gerando uma rede matricial de significados.

    Estas redes cristalizam-se na perspectiva do estabelecimento de ordens atravs das quais

    o humano se constitui, j havendo neste processo um princpio de submisso. Os signos,

    atravs de uma existncia material, exteriorizam ordenaes vrias transformando e at

    mesmo constituindo o que se conhece como realidade objetiva. A imposio de uma

    ordem em relao a outras se desdobra em conflitos que ganham textura ao mesmo

    tempo comunicativa e violenta a partir da materialidade dos signos.

    1 Trabalho apresentado ao NP 15 Semitica da Comunicao, do VI Encontro dos Ncleos de Pesquisa da Intercom 2 Ronaldo Henn doutor em Comunicao e Semitica pela PUC de So Paulo e professor-pesquisador no PPG de Cincias da Comunicao da Unisinos, RS. autor de Pauta e Notcia uma Abordagem Semitica (1996) e Fluxos da Notcia (2002). [email protected]

  • H nesta concepo dois fundamentos para se pensar a violncia em sua dimenso

    semitica. O primeiro vincula necessidade dos signos um princpio de violncia na sua

    prpria gnese. O segundo vislumbra na materialidade dos signos a imposio de ordens

    que tendem ao conflito e violncias. Por ambos os fundamentos, transpassam a

    conscincia de que a violncia algo que brota com o humano e externa-se na sua

    maquinaria semitica.

    Fala-se muito hoje na extrapolao da violncia para nveis inimaginveis e, sobretudo,

    da sua intensa configurao atravs dos dispositivos miditicos. Existe uma tendncia

    de se atribuir produo vertiginosa de imagens a responsabilidade por algo que

    aparentemente foge a qualquer controle e que se naturaliza por conta de uma reiterada

    banalizao (BAITELLO JUNIOR, KAMPER e MERSMANN, 2000). Em funo do

    mergulho na temtica motivado pela pesquisa Criminalidade e Espao Urbano, as

    Transversalidades da Violncia3, em andamento, proponho abordar a questo a partir de

    duas entradas. A primeira intenta perseguir a violncia a partir do que denomino aqui de

    sua dimenso semitica que remete, de uma certa forma, prpria constituio do

    humano. A segunda, decorrente desta, vai direo de certas operaes miditicas na

    qual esta dimenso atualizada e ritualizada.

    Em O Paradigma Perdido, Edgar Morin (1975) formaliza perturbadora proposio:

    aquilo que se designa como definidora da espcie, o homo sapiens, no d conta da

    complexidade do humano. Alm de sapiens, o homo demens. O mesmo crebro que se

    equipou para desencadear processos de racionalidade objetivados na tcnica e na

    linguagem, mobiliza-se por fluxos ruidosos, entrpicos, nos quais explode a hibris e

    todo o seu complexo de devaneios, xtases, alucinaes, prazeres desmedidos. E mais:

    estas movimentaes trepidantes, convencionalmente locadas na rubrica da

    irracionalidade, irrigam a prpria racionalidade a ponto de integrar o cerne do seu

    aparato constitutivo. Ou seja, os aparatos exigidos pela adaptao no estabelecimento do

    humano so simultaneamente atravessados pelo sapiens e pelo demens.

    A ruptura que esta proposio desencadeia situa o humano na gnese de uma crise

    sistmica ainda em processamento e com inmeras conseqncias. Em todas as coisas

    que o crebro humano equipou-se para produzir, com destaque para a linguagem

    (entendida aqui em sentido largo) e para a tcnica, que gestam uma extraordinria

    3 Pesquisa transdisciplinar desenvolvida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos com a participao de Ronaldo Henn (Comunicao), Carmen Oliveira (Psicologia), Maria Palma Wolp (Servio Social), Stela Meneghel (Epidemiologia) e Marta Conte (Psicogia)

  • maquinaria semitica, engendra-se esforos neguentrpicos constantemente perturbados

    por crises dissipativas inerentes natureza do sistema. E dessa perspectiva pode-se

    deduzir que o humano, na sua biosfera, e a cultura no qual se constitui, retroalimentada

    pela semiosfera (LOTMANN, 1996) que ela prpria gera, a expresso desta crise.

    Esta concepo soterra o projeto iluminista que, entre outras conjecturas, situava a

    violncia como manifestao de nossa poro animal que poderia ser pacificada pela

    racionalidade (BAITELLO JUNIOR, KAMPER e MERSMANN, 2000). Com a ruptura

    de Morin, a violncia passa a ser uma atribuio essencialmente do humano e perpassa,

    inclusive, projetos de racionalidade, instalando-se nas dinmicas culturais. Na medida

    em que cultura, organizada/organizadora via veculo cognitivo da linguagem, a partir

    do capital coletivo dos conhecimentos adquiridos, das competncia aprendidas, das

    experincias vividas, da memria histrica, das crenas mticas de uma sociedade

    (MORIN, 1998), pode-se pensar que violncia, na medida em que se deriva do demens

    constitutivo, incorpora-se na materialidade da cultura, a semiosfera.

    Configuraes na semiosfera

    A extraordinria elipse que Stanley Kubrick produziu em 2001, uma Odissia no

    Espao, traduz cinematograficamente esta questo. Nas seqncias iniciais do filme

    aparece uma sociedade de primatas s voltas com processos adaptativos. Em

    determinado momento, descobrem que ossos produzem eficaz extenso da fora fsica

    ao ponto de auxili-los no aniquilamento de semelhantes na busca de delimitao de

    territrios ou por puro deleite. Em um jogo ldico, um representante da espcie lana

    pedao de osso ao infinito e, atravs de corte magistral, o espao terrestre transforma-se

    em sideral com a forma do osso traduzida no formato de nave espacial a navegar neste

    novo ambiente a desbravar. Tcnica e cultura expandem-se e, em concomitncia, a

    semioesfera a suscitar diferenciadas problematizaes.

    A semiosfera um termo cunhado pelo semioticista russo Iuri Lotman, que traz

    embutido potente aparato conceitual cujo alcance ainda no foi suficientemente

    compreendido pela produo semitica contempornea. Para descrever este espao e

    desenhar sua estrutura e funcionamento, Lotman inspirou-se na formulao do

    biogeoqumico V. Vernadoski que, em O Pensamento Filosfico de um Naturalista

    propunha que o homem, como em geral todo o ser vivo, no constitui um objeto em si

    mesmo, independente do ambiente que o circunda. Denominou este ambiente de

    biosfera, capa ou zona da crosta terrestre que se encontra na superfcie do nosso planeta

    e acolhe todo o conjunto da matria viva, cuja estrutura, perfeitamente definida,

  • determina, sem excluso, tudo o que aparece em seu interior (LOZANO, 2004). A

    matria viva da biosfera o conjunto dos organismos vivos em seu interior. J a

    semiosfera, na proposta de Lotman, constituir o espao semitico fora do qual no

    possvel a existncia de qualquer semiose.

    H uma sutileza importante no funcionamento da biosfera que comparece, tambm, nos

    mecanismos processuais da semiosfera: j que no existe nenhum organismo vivo fora

    de um ambiente em que se move ou atua, tambm o ambiente no tem qualquer sentido

    fora da referncia vida e s suas manifestaes concretas. Por esse prisma, sugere

    Tagliangambe, substitui-se a noo de adaptao por construo, o que permite por em

    evidncia que a forma como os organismos elegem, sobre a base de sua prpria

    organizao interna, os traos e fragmentos do mundo externo relevantes para sua

    existncia, altera o entorno. "O terreno em que as plantas crescem modificado pelo seu

    crescimento e a atmosfera em que vivem os organismos se modifica por sua prpria

    presena" (LOZANO. 2004).

    Esse fenmeno nos coloca frente de contnuos processos de transformao,

    semelhantes a verdadeiras operaes de traduo. A semiosfera, que passa a

    circunscrever a produo semitica humana, entrelaa-se neste sistema, formando o

    espao fora do qual fica impossvel qualquer ato significativo particular.

    O mundo da semiose que a semiosfera circunscreve uma estrutura complexa e

    heterognea que joga continuamente com o espao que lhe externo. Nesta dinmica, a

    cultura no s constitui sua organizao interna, mas tambm sua degenerao externa,

    o que sugere que a cultura vai explodindo seu territrio continuamente.

    Essa percepo, que revela a influncia que as formulaes de Ilya Prigogini exerceu

    sobre seus trabalhos derradeiros expostos em Cultura e Exploso, aproxima Lotman da

    conceituao proposta por Edgar Morin (1998). Nela, a cultura no se situa nem no

    nvel da superestrutura nem do da infra-estrutura, termos considerados imprprios

    numa organizao onde o que produzido e gerado se torna produtor e gerador do que

    produz ou gera. Neste processo, cultura e sociedade esto em relao geradora mtua,

    interao esta em que no se pode esquecer as interaes entre indivduos, eles prprios

    portadores/transmissores da cultura, que regeneram a sociedade, a qual regenera a

    cultura. Tudo isso atravessado pelo parmetro da crise acentuado pelo fato de que a

    cultura alimenta-se dos processos entrpicos inerentes maquinaria semitica humana:

    o homo demens.

  • Para que compreenda o que se entende aqui por crise, tal dimensionamento deve inserir-

    se em uma perspectiva sistmica (BUNGE, 1979; VIEIRA, 1996) que, no que tange ao

    humano, pode ser resumido nos seguintes termos: todo o sistema tende permanncia,

    parmetro vulnerabilizado tanto pela ao da entropia interna quanto pela externa ao

    sistema. Isso fora os sistemas a desencadearem processos auto organizativos

    (neguentropia, MORIN, 1986) especialmente evidenciados pelos sistemas vivos nos

    mecanismos de reproduo. Os indivduos de determinadas espcies sucumbem

    entropia, mas a espcie como um todo garante a permanncia principalmente pelos

    dispositivos reprodutivos. Isso no impede que os sistemas, abertos que so e quanto

    mais complexos, menos lineares, atinjam patamares excessivamente crticos. Para fazer

    frente esta crise, caso no desapaream, os sistemas do um salto reorganizativo,

    conhecido como volon, e rearticulam-se estruturados em nveis mais altos de

    complexidade, tudo isso s custas de intensa dissipao.

    A espcie humana, como sistema, resultante de processos crticos e, na medida em que

    o humano nesta perspectiva pode ser considerado como algo que ainda no se

    completou, expressa continuamente esta crise que se articula, com igual fervor, nos

    sistemas que gera, destacando-se a cultura que se circunscreve no espao da semiosfera.

    Adensando esta crise, explodem os processos miditicos que, no ltimo sculo,

    transforma-se em instncias rearticuladoras da cultura como um todo e chamam para si

    a configurao deste espao, com repercusses at mesmo na biosfera.

    A violncia, como fenmeno da cultura e esponenciada pelos processos miditicos,

    habita a semiosfera, instalando-se na sua prpria estrutura: ela gera semioses. No se

    trata da violncia simblica, expresso que Bourdieu e Passeron propuseram na dcada

    de 1970 para designar a capacidade de impor, como algo legtimo, significados

    mediante o estabelecimento de signos na educao. Fala-se da violncia, ela mesma

    gestada e exercida com toda a sua possvel ferocidade atravs da materialidade dos

    signos, agindo no jogo organizacional que a semiosfera opera.

    Harry Pross (1989) acredita que o desenvolvimento individual dos organismos humanos, ou mesmo a transformao paulatina da espcie se levam a cabo no

    estabelecimento de novos signos e seus respectivos princpios de ordem argumentados

    lingisticamente pelos termos superior e inferior, acima e abaixo, frente e atrs,

    progresso e regresso. Os processos de semiose desencadeiam-se atravs de movimentos

    entre os plos.

  • Na proposta de Pross (1989), estes processos tm como matriz a aquisio da percepo

    vertical classificada como uma das primeiras experincias humanas com as que se

    vinculam outras qualidades. O fato do ser humano ficar de p, caminhar ereto,

    determina sua atitude antes os demais seres vivos e as coisas que designamos como

    objetos de nosso nvel.

    Pross (1989) fundamenta sua proposio nos seguintes termos: o homem vive no mundo

    como ser deficiente. No est em condies de alimentar-se sozinho e sua capacidade de

    movimento e proteo sumamente pequena. Essa carncia se compensa mediante a

    comunicao com os congneres. Antes da aquisio da linguagem, que um processo

    que se estende ao longo da vida, a criana ao estabelecer em seu entorno seus signos, se

    comunica com o som, os gestos, os excrementos e, finalmente, com os objetos. Constri

    sua ordem egocntrica para apropriar-se do seu entorno. Seu oposto, como pessoa que

    ficar ereta constitui um dos primeiros objetos que exigem interpretao. A questo da

    relao que guarda com o sujeito que faz a pergunta a questo do signo. Um signo

    algo que est no lugar de outro distinto e, neste sentido, algo interpretado. O sujeito

    est enredado em um mundo de signos. No pode aprender nem expressar nada se no

    atravs destes meios

    A experincia de ordem prpria aparece como desordem e como podem significar

    perigo, adiciona-se a experincia de que a renncia a esta ordem particular se premia. O

    sujeito se converte de configurador do seu campo para uma figura dentro do campo. A

    determinao alheia substitui a autodeterminao, mas o ser humano segue necessitando

    de reconhecimento no outro semelhante como signo da sua presena. Esta tese suporta

    tambm o tabu, marco da delimitao frente ao nada.

    O campo adquire significado central para a auto confirmao humana como espao de

    lembranas, de batalhas, de jogos. A espcie move-se na afirmao do campo, de

    manifestar sua presena neste espao limitado frente aos outros. Esta simbologia

    primria transfere-se para esfera poltica e para a esfera das guerras.

    A sinalizao vertical dos lugares e a afirmao do campo remetem a outra experincia

    primria que tem a ver com a postura ereta, que a experincia do dentro e do fora.

    Uma vez que se produz um signo, cria-se necessariamente espao. Surge um espao

    interior entre sujeito e signo, e um espao exterior por detrs do signo. No momento em

    que o prprio signo tem altura, configura-se como marca vertical, aparecem o acima e o

    abaixo na relao com o espao interior e exterior assim criado. A demarcao vertical

    como objeto transforma o espao em torno. Este espao assim demarcado denomina-se

  • campo. A ocupao de campo marcado com signos transforma-se na sua apropriao

    simblica. O campo assim apropriado , ao mesmo tempo, signo para espaos maiores:

    ele permite transferir a outras relaes sociais as decises tomadas no campo do jogo ou

    no campo de batalha.

    Desta gradao simblica do domnio do campo, resulta a rede que cobre o campo com

    smbolos que designam a presena de um mito, de uma religio, de um sistema poltico

    e econmico. Desta perspectiva, as redes de comunicao no s servem como meios,

    mas que elas mesmas simbolizam a presena de um poder. As construes ideolgicas

    religio e Estado se convertem em construes espaciais mediante o estabelecimento de

    signos.

    Em todas as ordens os signos so objetivos e as coisas so signos. Delimitam os espaos

    em campos. Regulam todos os tipos de movimento. Determinam os planos do trfico

    social. Tudo depende de que se tomem os signos objetivamente, comeando pela

    frmula abstrata de um cdigo cientfico e terminando com a marca fronteiria que

    demarca uma zona de soberania em relao a outra.

    O fato de que os significados necessitam canais portadores que sejam perceptveis

    aponta para a horizontalidade na qual se enquadra o gnero humano. Postes fronteirios

    e transmissores de mdia, divises arquitetnicas do espao, imagens e sons so

    colocados em relao na justaposio espacial. desta relao que estalam os conflitos

    de alcance e distncia: zonas de soberania.

    Pross (1989) enfatiza ainda que os smbolos so signos que indicam valores. Nunca

    esto ss, seno dentro de determinadas ordens. No plano dos fatos, as ordens espaciais

    esto separadas e unidas por signos. Mas no mbito dos valores vivemos em

    representaes verticais. Toda a cultura, toda religio, toda a cincia, toda a poltica se

    justifica por valores supremos que tem seu polo oposto nos valores negativos

    "inferiores", tambm extremos..

    A vida social est, temporal e espacialmente, orientada por smbolos at nos detalhes

    mais ntimos da vida sexual. Nos submetemos, em primeiro lugar, a violncias

    simblicas, e no mera superioridade fsica. Pross chama de "psico-somtica" a esta

    direo orientada por smbolos, porque em cada caso o signo de ndole fsica, desde o

    abrir e o fechar de olhos, a imagem e a escrita, at as disposies arquitetnicas de

    planos e espaos e os ataques brutais da natureza extra humana. A mdia reproduz este

    modelo bsico de violncia simblica. Propicia com que determinados significados

    adquirem validade.

  • Pross (1980, 1989) v no calendrio a grande expresso desta fora simblica. A

    submisso do tempo de vida subjetivo ao tempo do calendrio no se efetua apenas

    atravs da ritualizao individual do calendrio. Obrigatrias so as filiaes de idade

    pelo estado: toda a criana de sete anos tem que ir par a escola, todas as de 18 devem ser

    "maiores de idade" e assim por diante.

    Algumas operaes miditicas

    O sistema jornalstico segue a coao do calendrio ao interpret-lo e atualiz-lo

    reiteradamente. Para Pross (1989), a repetio e, com ela, a ritualizao resultante do

    processo de comunicao o que h de mais importante na imprensa e na mdia em

    geral, pois esta ritualizao expressa, enquanto tal, a integrao e homogeneidade que

    nos podem dar os contedos diferentes da comunicao. O ritual um super smbolo

    que une outros simbolismos da linguagem, da imagem e da expresso corporal.

    Morin (1998) enquadraria estes processamentos a um mecanismo que designou como

    imprinting cultural, tratando-se de uma matriz que estrutura o conformismo e uma

    normatizao que o impe. O autor apropria-se de termo que Konrad Lorens cunhou

    para definir a marca imposta pelas primeiras experincias do jovem animal, como o

    passarinho que, ao sair do ovo, segue como se fosse sua me o primeiro ser vivo ao seu

    alcance. O imprinting cultural inscreve-se cerebralmente desde a mais tenra infncia

    pela estabilizao seletiva das sinapses, inscries iniciais que marcaro

    irreversivelmente o esprito individual. Por conta disso, o autor sentencia: os falsos

    testemunhos sinceros so numerosos. Mas apesar dessas determinaes, os signos e

    como eles, as idias, movem-se, transformam-se. H uma dinmica na semiosfera,

    sobretudo nas suas fronteiras, que faz com que na configurao dos espaos

    devidamente organizados, entre em jogo as progresses corrosivas e as subverses da

    dvida.

    Em outro trabalho (HENN, 2002) enfatizou-se que o jornalismo aciona forte aparato

    organizacional. O jornalismo d forma realidade cotidiana, agendando os temas,

    hierarquizando fatos e assuntos, definindo a relevncia das coisas. Estando como que

    frente dos processos miditicos, detm forte poder de orientar o fluxo informativo e de

    delimitar as fronteiras da semiosfera. Mas como lida com processos entrpicos, a

    exemplo do sistema cultural e vivo como um todo, o jornalismo vulnerabiliza-se,

    aspecto que aumenta seu furor organizativo. E a ritualizao prevista por Pross encontra

    nele excepcional aparato atualizador.

  • Mar de Fontcuberta (1993), numa constatao compartilhada por vrios autores enfatiza

    que o enorme volume de ocorrncias obriga o jornalismo a dividir-se em trs opes

    permanentes: incluir, excluir e hierarquizar a informao. Atravs dessas opes, o

    jornalismo confeccionaria contedos que responderiam a interesses do pblico, do

    veculo e dos diversos setores da sociedade. Ao organizar as ocorrncias e estabelecer

    suas angulaes, o jornalismo apropria-se dos acontecimentos devolvendo-os aos meio

    j com suas devidas transmutaes.

    Este mecanismo vem de encontro a um processo que poderamos denominar de

    desterritorializao-reterritorializao (DELEUZE, GUATTARI, 1994), em que as

    subjetividades, quanto mais tomadas pelo terror da desestabilizao, maior tendncia

    apresentam a gravitar em torno de alguma referncia identitria. Esta situao se faz

    presente em especial quando os indivduos so levados a um tal ponto de

    desestabilizao que se ultrapassa um limiar de suportabilidade ou quando a experincia

    traz a ameaa imaginria de descontrole das foras (caos psquico, moral e social).

    assim que, para proteger-se da proliferao e abalo das foras que esvaziam de sentido

    as figuras vigentes, as pessoas podem demandar signos que se apresentem minimamente

    sedutores para recompor a ordem perdida (ROLNIK, 1996).

    De forma especial no noticirio sobre crimes, o jornalismo estabelece ou referenda as

    fronteiras do "dentro e do fora", do "perigo e da proteo" e do "caos e da organizao",

    exacerbando a espetacularizao do medo. Da mesma forma, lana seu receptor em uma

    necessidade de referncias para que possa se reorientar em um espao-tempo confuso. E

    o prprio jornalismo oferece as balizas para fazer valer essa inteno.

    Os sistemas miditicos ao mesmo tempo em que transmutam e atualizam as ordenaes

    sgnicas em movimento no tecido cultural, lanam mo de enquadramentos super

    dimensionados pela sua prpria potncia organizativa. Campos de fora, de disputas de

    engendramentos semiticos, de disputa de sentidos. A violncia, que na sua ao

    cotidiana materializa-se no s na fora bruta, mas tambm intensamente nos signos,

    espraia-se pelo sistema miditico, no apenas como ncleo temtico a alimentar sua

    multiplicidade de formatos, mas como estratgia de articulao do seu poder

    organizador.

    Estamos no dia 25 de maio de 2004. J passam das 17h e entra no ar pela Rede

    Bandeirantes de Televiso programa Brasil Urgente comandado pelo carismtico

    apresentador Jos Luiz Datena. Imediatamente o comunicador chama jornalista que faz

    cobertura em uma favela de Guarulhos onde, durante a tarde, quatro pessoas que fugiam

  • da polcia teriam mantidos como refns, por mais de cinco horas, uma mulher com duas

    crianas pequenas. A mulher entra ao vivo e o reprter inicia uma srie de perguntas

    que s geravam respostas monossilbicas: "Eles ameaaram a senhora"? No...

    "Apontaram alguma arma para vocs?" No..."A senhora ouviu algum disparo"? No...

    Datena, irritado, pede para ele mesmo falar com a mulher e comea: "Sei que a senhora

    est traumatizada, ns respeitamos isso, mas importante que ns saibamos como que

    isso aconteceu". Depois, inicia um verdadeiro interrogatrio, s obtendo respostas

    evasivas. Dispensa a mulher, orienta o reprter para entrevist-la quando estiver mais

    calma, na expectativa de um melhor desempenho e, na seqncia, entra a matria

    editada sobre a ocorrncia.

    Os fatos, conforme articulados no relato jornalstico que se sucedeu, por mais que se

    esforassem para atender aquilo que os reprteres pretendiam nos seus enquadramentos,

    revelavam outra ordem de sucesso. A mulher em questo sequer chegou a ser

    ameaada. Quando deu-se conta de que estava no meio de perseguio policial que, em

    uma favela, afeta qualquer morador indiscriminadamente, decidiu prudentemente

    esconder-se debaixo da cama com seus filhos at que situao se normalizasse. Por isso

    ela no conseguia responder o que Datena desejava. Ele queria mostrar bandidos ferozes

    que mantivessem mes e filhos sob mira de revlveres. Forou enquadramento de

    situaes que no se sucederam nos padres pretendidos.

    Ao impor sua ordem a algum que, minutos antes j teve que se confrontar com um

    sucedneo de organizaes excessivamente explosivas, o comunicador como que d o

    chute derradeiro. Com isso, a dimenso semitica da violncia toma forma a olhos

    vistos.

    As rotinas de produo dos sistemas miditicos so sedimentadoras destas organizaes

    semiticas agenciadoras de violncia. Na pesquisa Criminalidade e notcias nos jornais

    de Porto Alegre,4 constatou-se que o processamento das informaes sobre crimes, no

    qual entra em jogo valores notcias rapidamente acionados pelos reprteres na

    velocidade da produo, gera enquadramentos via de regra redutores, intensificados pela

    hierarquizao (acima, abaixo) incrustada na organizao sgnica. Ao mesmo tempo, a

    homogeneidade como as matrias so construdas, em que se usam mesmos padres de

    textos, de terminologias, de enfoques e de enquadramentos, aparece como principal

    constatao da pesquisa. Esse movimento possui relao direta com as fontes

    4 Pesquisa desenvolvida por Ronaldo Henn e Carmen Oliveira durante os anos de 2001 e 2002 na Unisinos.

  • predominantes na elaborao desse material. Mais de 80 por cento das fontes

    consultadas pelos jornais, ou so autoridades policiais nomeadas (em torno de 34 por

    cento), ou apenas os Boletins de Ocorrncia (em torno de 50 por cento). Os suspeitos ou

    pessoas ligadas a eles muito raramente so ouvidos. As pessoas ligadas s vtimas das

    ocorrncias tambm so pouco consultadas.

    Isto se repete drasticamente quando se analisa a produo de matrias sobre crimes

    envolvendo jovens. Na medida em que a fonte privilegiada ainda so os boletins de

    ocorrncia, no caso dos adolescentes estamos diante de uma peculiaridade, uma vez que

    so poucas as delegacias especializadas, como prev o Estatuto da Criana e do

    Adolescente. Alm disto, atendendo ao preconizado no ECA, deve-se resguardar

    informaes e imagens do adolescente a fim de no identific-lo, o que muitas vezes

    significa no utilizar o jovem como fonte de notcia. Portanto, os precrios boletins de

    ocorrncia muitas vezes induzem a erros de informao, at mesmo a pr-julgamentos,

    pois comum que os suspeitos acabem condenados pelo delegado antes do processo

    judicial. Em tal contexto, no de estranhar que a violncia no seja tratada como

    fenmeno social, mas como casos, que se multiplicam em repetidas matrias, um tanto

    desconexas, transformando a criminalidade juvenil em um evento individual anmalo e,

    via de regra, em caso de polcia.

    Entretanto, na periferia da semiosfera, formas culturais ganham corpo e entram na

    disputa de campos. Domingo, 25 de abril, quase oito horas da noite: o ponto alto do

    Domingo do Fasto na Globo, a principal rede de televiso do Brasil. O convidado

    especial MV Bill, rapper da Cidade de Deus, favela que ganhou o mundo por conta de

    filme homnimo. O hip hop, apesar de intensa proliferao, ainda no se apresenta

    como prato principal na mdia convencional, at porque muitos dos seus representantes

    preferem estar fora, como o caso dos Racionais MC.

    No deixam de ter uma certa razo. Ao entrar, corre-se o risco de se sucumbir aos

    enquadramentos e poder diluidor, que que j aprece em manifestaes menos densas

    do hip hop. No Fausto, MV Bill conseguiu vencer a batalha, que durou 40 minutos em

    um dos horrios comercialmente mais nobres dos domingos televisuais. E pelo excesso

    de tempo, ficou a meio palmo de derrapar na lgica que o programa impe. As

    intervenes do apresentador, por mais que esforadas para entrar um pouco no

    universo do convidado, tinham que dar conta de outro universo: o da prpria Globo. Por

    este movimento, se aceita MV Bill porque, mesmo da favela, no rouba, no mata, no

    pratica crimes. Tem boa ndole, ento pode cantar e fazer suas queixas. Mas h um

  • estranhamento semitico instigantes. O som sujo prevalece transformando em caricatura

    a performance das moas que danam coreografia pasteurizada. So sistemas de signos

    que se confrontam. A tendncia com o tempo de sistemas orquestrados pela Globo

    sugarem os explosivos. O prprio apresentador Fausto Neto, que j fez uma espcie de

    anti TV em suas experincias anteriores Globo, transmutou-se radicalmente. Mais

    uma vez a dimenso semitica da violncia evidencia-se. Mas estas operaes geram

    mudanas nos sistemas que se enfrentam. E a luta dos signos continua.

    Referncias Bibliogrficas

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