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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ROMILDO PEREIRA CHAVES A INFLUENCIA DO IMAGINÁRIO EUROPEU NAS REPRESENTAÇÕES SOBRE OS NATIVOS DA AMÉRICA PORTUGUESA: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DO PADRE FERNÃO CARDIM SÃO PAULO, 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ROMILDO PEREIRA CHAVES

A INFLUENCIA DO IMAGINÁRIO EUROPEU NAS REPRESENTAÇÕES SOBRE

OS NATIVOS DA AMÉRICA PORTUGUESA: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DO PADRE FERNÃO CARDIM

SÃO PAULO, 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ROMILDO PEREIRA CHAVES

A INFLUENCIA DO IMAGINÁRIO EUROPEU NAS REPRESENTAÇÕES SOBRE

OS NATIVOS DA AMÉRICA PORTUGUESA: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DO PADRE FERNÃO CARDIM

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Dorothea Voegeli Passetti.

SÃO PAULO, 2009

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C439i Chaves, Romildo Pereira.

A influência do imaginário europeu nas representações sobre os nativos da América portuguesa: uma análise d texto do padre Fernão Cardim / Romildo Pereira Chaves, 2009.

95 f.

Orientador (a): Dorothea Voegli Passeti.

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, São Paulo, 2009.

Referências: f. 93 - 95

1. Etnocentrismo – Indígenas – Brasil – Século XVI. 2. América – Colonização Portuguesa – Aspectos étnicos - Século XVI. I. Passeti, Dorothea Voegli. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. III T.

CDD: 305.80981

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BANCA EXAMINADORA

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A meus pais, Marilene e Joselito, exemplo e referência para mim, dedico.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela oportunidade que me concedeu de ter chegado até onde cheguei,

pois além do conhecimento que adquiri foram muitas as amizades verdadeiras que pude

cultivar. Chegar ao final de mais esta etapa é ter a certeza de que ela só foi possível por causa

do apoio, da colaboração, da amizade e da compreensão de diversas pessoas que fizeram parte

da minha história. Os meus sinceros agradecimentos.

À Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), pela oportunidade oferecida que propiciou a minha qualificação.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pelo acolhimento, e aos professores do curso, pelo compartilhar do conhecimento.

À professora Dorothea Voegeli Passetti (Dodi), minha orientadora, que me acolheu carinhosamente, acreditou em meu trabalho e sempre foi solicita nas orientações e nos cuidados dispensado a mim.

A minha a minha amada esposa, Ângela, pelo amor, apoio e compreensão.

A meus irmãos Marcone e Ronaldo, e meus pais Marilene e Joselito, por todo o apoio irrestrito.

A Elizane, minha professora de Português, pelo auxílio valioso na correção gramatical de todo o texto dissertativo.

A Cledson, pela amizade e auxilio na correção e sugestões valiosas no texto.

A Fabiana, Carol, Cleidinha, minhas queridas colegas de trabalho, pela amizade e incentivo.

A Cristiane Leal, minha querida Pró-Reitora, pela amizade, apoio e incentivo.

A Virgínia e Raquel, pelo apoio e amizade.

A minha sogra, Ana Aparecida, pelo incentivo e carinho.

A Juliana e Suzenaria pela amizade e atenção.

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RESUMO

Este trabalho analisa a construção das imagens sobre os nativos do Brasil criadas pelo jesuíta português Fernão Cardim, abordando o olhar cristão do século XVI. O objetivo primordial é observar e constatar a presença marcante das idéias e valores do mundo medieval sobre o Brasil presentes na obra do Padre Fernão Cardim, objetivando detectar permanências e transformações em um estudo que privilegia a longa duração. O percurso teórico-metodológico é ancorado na perspectiva do etnocentrismo e do imaginário, considerando-os como categoria, objeto do conhecimento e fato no mundo. O imaginário e a postura etnocêntrica, constituem fatores preponderantes na construção, legitimação e justificativa de ações da Companhia de Jesus e do Estado Português para com os povos que habitavam o Brasil do século XVI. Esse imaginário etnocêntrico perdurou na historia do Brasil e não raro se observa ações, atitudes e posturas que carregam uma herança dessa forma de pensar os povos indígenas do Brasil. A pesquisa foi pautada em pressupostos teóricos de Le Goff e apoiou-se em análises antropológicas sobre a realidade indígena. A abordagem parte da analise dos escritos do Padre Fernão Cardim e a permanência de um olhar etnocêntrico sobre os indígenas. Palavras-chave: Etnocentrismo; imaginário; povos indígenas; jesuítas; Brasil.

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ABSTRACT

This work examines the construction of the images on Brazilian natives created by the Portuguese Jesuit Fernão Cardim, approaching the Christian look in the 16th century. The primary objective is to observe and note the outstanding presence of the ideas and values of the medieval world on Brazil in Father Fernão Cardim’s work, aiming to detect permanences and changes in a study that focuses the long duration. The theoretical and methodological course is anchored in the perspective of ethnocentrism and of imaginary, considering them as a category, object of knowledge and fact in the world. The imaginary and the ethnocentric attitude are predominant factors in the construction, legitimation and justification of actions by the Jesus Company and the Portuguese State toward the people who lived in 16th century Brazil. This ethnocentric imaginary persisted in Brazilian history and one often observes actions, attitudes and positions that carry an inheritance of this way of thinking the Brazilian indigenous peoples. The research was based on Le Goff’s theoretical assumptions and was supported by anthropological analyses on the indigenous reality. The approach starts from the analysis of Father Fernão Cardim’s writings and the permanence of an ethnocentric look on the indigenous.

Key-words: Ethnocentrism; imaginary; indigenous people; Jesuits; Brazil.

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SUMÁRIO

Apresentação 10

Capítulo I - Imagens, olhar e imaginário europeu 14

1.1 O maravilhoso 15

1.2 As idéias sobre o mar 20

1.3 Terras imaginárias 22

1.4 As utopias medievais 24

1.5 O outro 26

1.6 A pratica etnocida: o olhar preconceituoso em relação aos nativos do Brasil 29

1.7 O imaginário sobre o novo mundo 36

1.8 A construção das idéias em relação aos nativos do Brasil, no século XVI 38

1.9 A crença em um Deus único: monoteísmo 39

1.9.1 Os jesuítas 41

Capítulo II – O Padre Fernão Cardim 44

2.1 A permanência da religiosidade na construção das idéias sobre o Brasil. 51

2.2 O cotidiano e as peculiaridades que antencediam as viagens marítimas 56

2.3 O espanto e a ação etnocêntrica diante do outro, do diferente 60

2.4 Os valores culturais da sociedade quinhentista portuguesa 64

2.5 Os mapas e as imagens: construção da idéias sobre o Brasil 68

Capítulo III – A visão sobre os nativos em Cardim a permanência de um olhar

etnocêntrico 70

3.1 A visão romântica em relação aos nativos do Brasil 73

3.2 A perspectiva estatística: o olhar estatístico sobre os povos indígenas 76

3.3 A mentalidade burocrática: os povos nativos numa dinâmica burocrática 77

3.4 A mentalidade empresarial: os nativos vistos em uma perspectiva empresarial 80

3.5 A questão indígena: idas e vindas do poder constituído 81

3.6 A designação estabelecida para os povos nativos 87

Considerações finais 90

Referências bibliográficos 93

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APRESENTAÇÃO

Este trabalho expõe a construção das imagens sobre os nativos da América.

Pretendeu-se analisar o olhar e as impressões do homem Europeu na construção das idéias

sobre os nativos do Brasil no contexto histórico do século XVI, na pessoa do Padre Fernão

Cardim. O objetivo primordial foi observar e constatar a presença marcante das idéias e

valores do mundo medieval sobre o Brasil, presentes na obra do Padre Fernão Cardim, com o

intuito de detectar permanências e transformações em um estudo que privilegia a longa

duração. As transformações acontecidas no contexto do período histórico, conhecido como

Renascimento, não devem ser entendidas como uma ruptura brusca e radical em relação às

mudanças ocorridas no imaginário do homem europeu do Medievo.

Ao estabelecer contato com o Novo Mundo, esse rompimento não se deu de forma

brusca e radical, principalmente, se essas transformações forem pensadas na perspectiva de

uma “longa duração”, conceito apresentado por Le Goff (1994). Uma longa Idade Média, em

todos seus aspectos, se configura numa estrutura que, no essencial, funciona desde o Baixo

Império Romano até à Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX. Os recursos aos

métodos etnológicos permitem abarcar, nos seus hábitos quotidianos, nas suas crenças, nos

seus comportamentos, nas suas mentalidades, uma Idade Média profunda. Procedeu-se a

análise da obra do Padre Fernão Cardim numa perspectiva da longa duração, focalizando as

idéias e a formação de imagens sobre o Outro, presentes na obra do referido padre jesuíta.

A análise dos relatos de cronistas viajantes sobre o Brasil, abordados na perspectiva

da longa duração, oferece informações sobre olhares e idéias que foram mudando, mas nem

sempre na perspectiva da história tradicional, que divide de forma estanque a ciência histórica

em Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Para tanto, apresentou-se o tema, levando-

se em consideração alguns pontos referenciais. No capítulo primeiro, considerou-se o olhar

europeu na concepção em que se construiu sobre os povos nativos da América. Foi analisada

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a construção das idéias presentes neste contexto histórico, no século XVI, os valores, mitos,

medos, desejos, idéias de mundo. Pretendeu-se compreender as imagens e idéias que foram

estabelecidas acerca dos povos nativos da América e que se perpetuaram na História do

Brasil, exemplificadas pelo livro de Cardim.

Na prática, os europeus assumiram uma postura etnocêntrica, centrada no olhar dos

que julgam, segundo seus valores e visão de mundo. Foi analisada a questão do

etnocentrismo, que é a construção das idéias sobre os outros, as outras culturas, as que são

diferentes da cultura do “eu”, tendo como referencial teórico o antropólogo Lévi-Strauss. Para

auxílio, no que diz respeito ao imaginário, utilizou-se como referencial teórico os estudos do

historiador francês Jacques Le Goff. Também aparecem como referencial para auxiliar na

análise da obra do Padre Fernão Cardim os estudos da historiadora Charlotte de Castelnau-

L’Estoile, nos quais buscou-se compreender as categorias do pensamento dos jesuítas e,

assim, tentar compreender o sentido que estes davam às suas condutas e a dos indígenas.

Na perspectiva da longa duração, defendida por Le Goff, em que elementos do

mundo medieval se fazem presentes nos textos do século XVI, podemos constatar elementos

desse imaginário de uma terra de abundâncias, onde os sonhos se tornariam realidade. Cardim

descreve suas viagens pelo Brasil extasiado diante da abundância de alimentos:

A cerca é muito grande, bate o mar nella, por dentro se vão os padres

embarcar, tem uma fonte perenne de boa água com seu tanque, aonde se vão

recrear; está cheia de arvores d’espinho, parreiras de Portugal, as quaes se

as podam a seus tempos, todo o anno estão verdes, com uvas, ou maduras

ou em agraço. A terra tem muitas fructas, sc. ananazes, pacobas, e todo o

anno ha fructas nos refeitorios. O ananaz é fructa real, dá-se em umas como

pencas de cardos ou folhas d’erva babosa, são da feição e tamanho de

pinhas, todos cheios de olhos, os quaes dão umas formosissimas flores de

varias côres: são de bom gosto, cheiram bem, para dôr de pedra são

salutiteros: delias fazem os indios vinho, e tem outras boas commodidades;

a maior parte do anno os ha. Tem alguns coqueiros, e uma arvore que

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chamam cuieira que não dá mais do que cabaças, é fresca e muito para ver.

Legumes não faltam da terra e de Portugal; bringellas, alfaces, couves,

aboboras, rabãos e outros legumes e hortalices. Fóra de casa, tão longe

como Villa Franca de Coimbra, tem um tanque mui formoso, em que andará

um bom navio; anda cheio de peixes: junto a elle ha muitos bosques de

arvoredos mui frescos; alli se vão recrear os assuetos, e no tanque entram

algumas ribeiras de bôa agua em grande quantidade.” (CARDIM, 1980, p.

144)1

No capítulo segundo, pretendeu-se discutir a crônica do Padre Fernão Cardim, jesuíta

que registrou suas impressões sobre o Novo Mundo e seus habitantes. Na escrita jesuítica

existe uma forma particular de construção das impressões sobre o mundo. Para os padres

jesuítas, os nativos precisavam ser salvos da condição e costumes de pecado em que estavam

inseridos. Como ferramenta para conversão, os religiosos utilizaram a tática da incorporação

do medo, a questão da legalidade que iria afirmar o que era certo ou errado no parâmetro

cristão, bem como a introdução de devoções à Maria e aos santos da Igreja Cristã, objetivando

a substituição de costumes dos nativos pelos dos europeus cristãos. Conforme Ferreira

A prática missionária jesuítica obedeceu, no Brasil, a prioridades,

estratégias e táticas, as quais, por sua vez, tiveram uma dupla orientação:

por um lado o arcabouço cultural, de fundamentação teológico-filosófica

escolástica e reformista; por outro, a criatividade necessária para enfrentar

os novos desafios, experienciá-los, julgar a eficácia das respostas e

estabelecer normas que deveriam ser seguidas dali em diante. (FERREIRA,

2007, p. 93).

O conteúdo da catequese sempre foi a Doutrina Cristã, com seus dogmas e crenças,

os quais eram impostos aos nativos através de diversas formas. Todos os ritos cristãos

deveriam ser incorporados à vida do nativo com o intuito de proceder à conversão destes e

fazê-los homens cristãos.

1 Manteve-se aqui a ortografia utilizada em Portugal no século XVI

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Pretendeu-se desenvolver, de forma minuciosa, um estudo sobre o imaginário

contido na obra do referido cronista. Justifica-se a escolha desta obra por se entender que uma

análise mais específica propiciará um melhor conhecimento do Brasil, neste momento

histórico, e também elucidará até que ponto o imaginário se constituiu em fator preponderante

na construção e efetivação de ações e atitudes em relação aos povos nativos. Isso não significa

que não serão utilizados outros cronistas do século XVI, neste trabalho, mas a referência

principal é Cardim.

No capítulo terceiro, procedeu-se uma análise das idéias presentes na obra do Padre

Fernão Cardim em relação aos indígenas do século XVI. Na perspectiva da longa duração,

analisou-se a permanência de todo um imaginário sobre os indígenas, que vem desde o século

XVI. Dessa forma, observou-se as diversas imagens que se estabeleceram com relação aos

indígenas do Brasil e as construções decorrentes delas. Os escritos de Cardim, assim como

outros cronistas e viajantes da época, se constituem em descrições construídas por um homem

de seu tempo e carregadas de valores de sua cultura e de seu mundo, e também podem ser

entendidas como imagens únicas, pois é o olhar de alguém que formatou suas impressões

sobre o Brasil deste século. Segundo Cateunal-L´Estoile (2006, p. 22), “para compreender

antropologicamente a missão tal como se impõe aos homens do século XVI, é preciso tentar encontrar

as categorias com as quais esses homens a pensam; é preciso restituir o sentido que eles dão a sua

conduta”.

Neste capítulo, identificou-se a permanência de idéias advindas do século XVI, da

cultura ocidental e que colaboraram na construção da imagem do índio na atualidade. É

possível compreender a permanência de tais idéias partindo do que Le Goff defende como

uma longa Idade Média, que iria do fim do século II até a Revolução Industrial. No entanto, o

autor considera a continuidade histórica até nossos dias, entendedo-se que as idéias

estabelecidas no passado servem para explicar ações e atitudes do presente, numa perspectiva

da história-problema.

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CAPÍTULO I

IMAGENS, OLHAR E IMAGINÁRIO EUROPEU

Imagem, imaginação e imaginário radicam do latim imago(-ginis). A palavra

imagem significa a representação de um objeto ou a reprodução mental de uma sensação na

ausência da causa que a produziu. Essa representação mental, consciente ou não, é formada a

partir de vivências, lembranças e percepções passadas e passível de ser modificada por novas

experiências. Segundo Le Goff o imaginário:

[...] é muito freqüentemente confundido com aquilo que designamos por

meio de termos vizinhos cujos os âmbitos se interpenetram parcialmente

mas que devem, todavia, ser cuidadosamente distinguidos. Em primeiro

lugar, a representação. Este vocábulo, de uma grande generalidade, engloba

todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida. A

representação está ligada ao processo de abstração. A representação de uma

catedral é a idéia de catedral. O imaginário pertence ao campo da

representação mas ocupa nele a parte da tradução não reprodutora, não

simplesmente transposta em imagem do espírito, mas criadora, poética no

sentido etimológico da palavra. [...] Mas o imaginário, embora ocupando

apenas uma fração do território da representação, vai mais além dele. A

fantasia – no sentido forte da palavra – arrasta o imaginário para lá da

representação, que é apenas intelectual. (LE GOFF, 1994, p. 11-12).

Assim imaginário é o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação, como

sua função e produto. Objetivando definí-lo, Le Goff (1994), pondera que o imaginário está

no campo das representações, mas como uma tradução não reprodutora, e sim, criadora, talvez

poética. É parte da representação, que é intelectual, mas a ultrapassa.

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1.1

O maravilhoso

Podemos definir maravilhoso como a expressão da emoção do homem com algo em

que mantém contato ou se relaciona de alguma forma. Na prática, o maravilhoso caracteriza-

se pela surpresa e o espanto diante da diversidade de fato e a busca da satisfação e a

realização dos desejos contidos. O momento histórico em que o indivíduo está inserido é que

vai direcioná-lo, na busca do maravilhar-se. Dessa forma, o que dará sentido à emoção é,

exatamente, o contexto histórico, social e cultural, em que o indivíduo está inserido.

Para Le Goff, o maravilhoso é parte do imaginário e está inserido no imaginário do

homem da Idade Média. Dessa forma, está presente no cotidiano e nas diversas manifestações

do homem deste período, seja na religião, na criação literária e artística, ou ainda no

pensamento e na sensibilidade. Assim, para o autor, “o maravilhoso faz-nos visitar uma

grande parte do universo imaginário da Idade Média, quer cá em baixo, quer no Além, na

natureza, no homem, nos animais, nos objetos, na geografia, e na história.” (LE GOFF, 1994,

p. 23). Le Goff, propõe uma classificação das várias tipologias do maravilhoso, afirmando não

ser interessante permanecer “escravo de um único modelo de categorização, que transformaria

em realidade ontológica uma simples iniciativa utilitária do espírito – o qual pode e deve

desmultiplicar-se para melhor captar o seu objeto.” (idem, ibidem). No entanto, para Le Goff,

o que lhe interessa, de forma acentuada, é:

O sistema de leitura do sobrenatural, em cujo o interior funcionou de fins do

século XII até ao século XVI. Este maravilhoso é um sobrenatural neutro –

natural -, que se situa entre o sobrenatural divino (o miraculoso, que só

depende da decisão salvadora de Deus) e o sobrenatural diabólico (o

mágico, no qual predomina a ação ruinosa de Satanás). (idem, p. 24).

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O maravilhoso sempre fascinou a maioria das sociedades e a medieval não esteve

imune no que diz respeito ao sobrenatural e ao extraordinário. O natural e o sobrenatural

estiveram presentes na mentalidade dos medievos e, conseqüentemente, possibilitou e

influenciou as manifestações de cunho cultural, social, econômico e político. Para o homem

medieval, o visível se constitui em um rastro do invisível. Para ele, não há qualquer barreira

entre o mundo natural e o sobrenatural: a eternidade está a dois passos. Embora acredite, cada

vez menos, na proximidade do Juízo Final, trata-se de uma eventualidade que ele não exclui.

[...] para o homem medieval, o maravilhoso exerce, sobretudo, uma função

de realização, não de evasão. Ele dilata o mundo e a psique até as fronteiras

do risco e do desconhecido. Inserindo-se no natural e no real ele o amplia e

o complementa. Faz do surpreendente e do extraordinário o motor do saber,

da cultura e da estética da Idade Média. Estimula a abrir bem os olhos para

a criação e o imaginário. Inspira uma cultura do surpreendente. Faz

acreditar na criatividade e na audácia infinitas de Deus e de sua criatura, o

homem. E sabe mesmo extrair o mel das fantasmagorias diabólicas. (LE

GOFF, 2002, 119).

Do ponto de vista historiográfico, podemos considerar algumas peculiaridades do

maravilhoso medieval. Nos séculos XI, XII e XIII, pode-se constatar um vivo florescimento

do maravilhoso, sobretudo na passagem do século XII para o XIII, quando se percebe a

entrada em cena do extraordinário, discernindo entre o miraculoso de origem divina e o

mágico de natureza diabólica. Já nos séculos XIV e XV, afirma-se, com relação ao

maravilhoso, o seu encanto artístico e descritivo, e, neste sentido, o maravilhoso torna-se

mais literário do que religioso.

O que legitima a evocação de um homem medieval é o facto2 de o

sistema ideológico e cultural em que está inserido, o elemento imaginário

que traz em si, imporem à maioria dos homens (e das mulheres) desses

cinco séculos – clérigos ou leigos, ricos ou pobres, poderosos ou fracos, - 2 Manteve-se aqui a ortografia utilizada em Portugal, uma vez que este livro não foi editado no Brasil.

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estruturas mentais comuns, objetos de crença, de fantasia e de obsessão

análogas. É certo que o estatuto social, o nível de instrução, as heranças

culturais e as zonas geográfico-históricas introduzem diferenças na forma

e no conteúdo dessas atitudes culturais e psicológicas. Mas o mais

surpreendente é o que possuem e exprimem de comum. (LE GOFF, 1990,

p. 25).

Existem fontes diversas que tratam do maravilhoso, anteriores ou posteriores à

Cristandade, provindas da Antiguidade com personagens mitológicos, os quais estão presentes

na literatura medieval.

A antiguidade alimenta, portanto, o maravilhoso medieval, que recupera

personagens mitológicos como Vulcano, Minerva, Vênus e as Parcas,

monumentos como as Sete Maravilhas do mundo, seres imaginários como

as sereias, e sobretudo, personagens históricos que se tornaram lendários,

como Virgílio e Alexandre. Este tornou-se herói de uma literatura medieval

excepcionalmente abundante, cujas as principais fontes datam também do

baixo Império. (LE GOFF, 2002, p. 109).

Segundo Le Goff, o maravilhoso bíblico se constitui em uma outra fonte essencial

deste maravilhoso. Nesse sentido, o Antigo e o Novo Testamento foram constituidores dessa

realidade. Com relação ao Novo Testamento, é interessante ressaltar a substituição do

maravilhoso pelo miraculoso, vinculado a Jesus Cristo. No entanto, pode-se considerar o

Apocalipse como fonte desse maravilhoso, quando, com seus personagens - anjos com suas

trombetas escatológicas, os cavaleiros catastróficos, a besta, a mulher, o dragão - povoou a

mentalidade e a imaginação dos homens e mulheres da Idade Média.

O maravilhoso bíblico é uma outra fonte essencial. O Antigo Testamento

foi um receptáculo de folclore maravilhoso arcaico que o cristianismo

medieval incorporou, principalmente, a partir do livro do Gêneses: paraíso,

arca de Noé, torre de Babel, passagem do mar Vermelho, monstros

marinhos como o Leviatã ou a baleia que engoliu Jonas sem devorá-lo. [...]

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No Novo Testamento, se os Evangelhos expulsam o maravilhoso do

miraculoso vinculado, a Jesus, o Apocalipse – inspirador de uma rica

iconografia – é uma extraordinária fonte de maravilhoso. (LE GOFF, 2002,

p. 109).

Contudo, outras fontes serviram também de alimento para esse maravilhoso, como o

paganismo bárbaro, sobretudo nas mitologias germânicas, escandinava e céltica. Além deste,

o Oriente, a Índia e, por fim, o folclore tradicional do Ocidente cristão e pré-cristão

constituíram-se em reservatórios desse maravilhoso medieval.

O Cristianismo simplifica o maravilhoso do mundo mitológico e animista a uma

única fonte, Deus, que, para o pensamento da época, se torna um meio de contemplar a

inesgotável sabedoria e criatividade divina e sua intenção de surpreender o homem. A

Doutrina Cristã estabelece a divisão entre o falso e o verdadeiro milagre, separando-o da

feitiçaria e do diabólico. Dessa forma, o Cristianismo incorpora o maravilhoso aos santos e a

Deus, bem como aos valores e ritos cristãos. Aqui, é necessário salientar que ainda

permanecem os elementos do maravilhoso pré-cristão. Todo esse maravilhoso atinge os

homens por meios variados: oral, escritos ou figurados. Conforme Le Goff , pode-se afirmar

que o maravilhoso se constitui em parte do imaginário considerando que: “ [...] o maravilhoso

faz-nos visitar uma grande parte do universo imaginário da Idade Média, quer cá em baixo

quer no Além, na natureza, no homem, nos animais, nos objetos, na geografia e na história”

(Idem, 1994, p.23).

Segundo Le Goff, o maravilhoso mais difundido foi o de regiões e lugares. Existem

muitos relatos de regiões, montanhas e lagos “mágicos”. Ainda conforme Le Goff, é possível

destacar três tipos de lugares que não só se constituem em maravilhas, mas eles próprios o

são: as ilhas, as cidades, reais ou imaginárias, e o além. Enquanto o além oferece a dualidade

entre o maravilhoso paradisíaco e o maravilhoso infernal, as ilhas e as cidades são, de forma

geral, visualizadas como maravilhas positivas e admiráveis. “Ilhas como a Irlanda e a Sicília,

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na Cristandade, e o Ceilão (Tabrobana), no Oriente pagão, são, na tradição da Antiguidade,

ilhas ‘afortunadas’ repletas de metais preciosos de riquezas animais e naturais.” (LE GOFF,

2002, p. 115). Com relação às cidades, assim afirma Le Goff:

Se há entre as cidades centros de perdição, cujo modelo de maravilhoso

maléfico é a Babilônia, a maior parte delas são, para os homens da Idade

Média, lugares admiráveis, belos e atrativos. Entre as cidades imaginárias

destaca-se a Jerusalém celeste, encarnação do Paraíso que evoluiu de um

jardim a uma cidade maravilhosa protegida por uma muralha de pedras

preciosas. (LE GOFF, 2002, p. 115-116).

Esse contexto da Europa do século XVI, composto por diversas fontes, sejam elas da

Antiguidade ou Bíblica, conforme explicitado anteriormente, que retratavam o maravilhoso,

influenciou e instigou o desejo dos homens deste período. Estes, evidentemente, não ficaram

imunes a essa realidade que compunha a visão de mundo do homem deste momento histórico.

A geografia do maravilhoso como a presença de seres fantásticos, monstros, sereias, animais

extraordinários, faziam parte do mundo mental medieval.

Os relatos de viagens reais ou imaginárias, fornecem inúmeras descrições

de maravilhas: viagens meio reais, meio fictícias, [...], viagens ao Além,

freqüentemente, relatadas sob a forma de visões. A viagem e a sua

manifestação primordial – a peregrinação – representa para o homem

medieval um tipo de turismo chamado a satisfazer tanto a sua curiosidade

quanto o seu anseio por maravilhar-se. (LE GOFF, 2002, p.114 ).

O Cristianismo também contribuiu na difusão e alimentação de idéias que retratavam

todo esse imaginário, quando considerava Jerusalém como o centro do mundo e o paraíso

terrestre, localizado na Ásia, de onde provinham os quatro maiores rios do mundo. As viagens

empreendidas pelos homens do século XV e XVI se constituíram em uma fábrica do

fantástico. Esses deslocamentos tinham objetivos precisos. Além das necessidades de cunho

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econômico, havia também muito presente na mentalidade daqueles homens e mulheres o

desejo ou temor latente de encontrar, nessas viagens, as realidades narradas pelos diversos

cronistas e viajantes, que deixaram suas descrições ou depoimentos sobre viagens a

localidades e regiões povoadas por seres fantásticos. Tais lugares, segundo as narrativas de

viagem, eram habitados por gigantes e amazonas, como também homens com certas

particularidades físicas, acéfalos ou cinocéfalos, unípedes, ciclopes, ou ainda, os dragões,

centauros, sereias, lobisomens, animais fabulosos.

Segundo Le Goff, podemos considerar a função compensatória deste maravilhoso,

sobretudo por conta de um mundo de duras realidades, de violência, penúria e de repressão

eclesiástica. O maravilhoso medieval exerce, sobretudo, a possibilidade de realização dos

desejos e sonhos dos homens. O desejo pelo desconhecido e pelo misterioso não poderia

deixar de levar para fora da Europa os temperamentos aventureiros, e um conjunto de mitos e

fábulas reforçaram e contribuíram para tal. Diversas narrativas fantásticas, principalmente

relacionadas com o Oriente, ocuparam, durante toda a Idade Média, a imaginação dos

europeus.

1.2

As idéias sobre o mar

Em torno do oceano, havia muitos mitos que povoaram o imaginário da Idade Média,

constituindo-se num universo prodigioso e exótico, onde se concentravam mitos religiosos,

sonhos de riqueza e desejos contidos. O imaginário português acerca do mar apresentou

peculiaridades interessantes. Nas hagiografias produzidas nos meios eclesiásticos, podemos

observar um discurso sobre o mar com características temerosas em que somente os homens

portadores de santidade poderiam enfrentá-lo e vencê-lo. Conforme explicita Adauto Novaes:

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Nos começos da história medieval portuguesa, quando, no século XII o mar

conceptualizava-se como caos e desordem definindo os seres que o

habitavam, as tragédias marítimas que nele ocorriam e os povos que por ele

circulavam um antimundo cujo constante ameaça permitia valorizar e

reforçar a sacralizada coesão do espaço cristão. (NOVAES, 1998, p. 95).

Essas visões com relação ao mar nasceram, sobretudo, de imagens que tiveram à sua

origem durante a Alta Idade Média, quando o litoral europeu fora invadido e ocupado por

povos não cristãos. Por este motivo, logo a imagem construída sobre o mar foi associada a

estes povos, mulçumanos e escandinavos que, para os cristãos, eram povos impiedosos e

destruidores. Conforme Novaes, a partir da segunda metade do século XIII e os começos do

XIV, pode-se observar o início de práticas ritualísticas de proteção, com o objetivo de

neutralizar forças negativas e maléficas, tradicionalmente associadas ao mundo marítimo.

Assim, o oceano surge, então, cristianizado com uma geografia e escrita própria, acerca das

ilhas e seus tesouros e mitos.

A conseqüência dessa nova visão acerca do mar foi o contributo para a expansão

ultramarina, bem como o aprofundamento dos saberes geográficos, sobretudo com a

descoberta de novas terras nunca antes conhecidas. Segundo Delumeau,

o Oceano Índico e as suas costas foram, pois, nas representações mentais

dos ocidentais da Idade Média, um mundo prodigioso e exótico, onde

amontoaram os seus mitos religiosos, os seus sonhos de riqueza, o seu amor

pelo fantástico e também os seus desejos, mais ou menos recalcados na

Europa cristã. (DELUMEAU, 1994, p. 51).

Ainda segundo Novaes, um fator de importância fundamental na construção das

idéias que retratavam o mar foi a acentuação do culto e a celebração dos santos patronos dos

viajantes. Nesse sentido, eram exaltados personagens como São Cristóvão, o protetor dos

caminhos, e outros como o irlandês São Brandão, ou ainda Santo Amaro, santos que tiveram

um contato de maior experiência com o mar e enfrentaram, com coragem, as suas

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turbulências. De forma geral, esses protetores dos viajantes representavam um santo que

superou os medos, os temores e as tragédias, servindo de referência e modelo para todos. Para

Novaes (1998),

tratava-se, sobretudo, de imagens nascidas e difundidas durante a alta Idade

Média, quando o litoral europeu, tanto o mediterrânico quanto o atlântico

fora, progressivamente, invadido e ocupado por povos não cristãos,

primeiro os mulçumanos e depois os escandinavos. Sendo o mar a sua

estrada e, em certa medida, o seu modo de vida, ele passou a comungar da

destruição e da impiedade que lhes eram atribuídas. (NOVAES, 1998, p.

96).

Sempre que a cristandade se encontrava em perigo por conta do avanço de povos que

ameaçavam sua integridade, o mar recuperava a sua dimensão de lugar de combate

escatológico e apocalíptico. Entram em cena outros seres celestiais, melhor capacitados para

enfrentar os inimigos da cristandade, indivíduos celestiais como São Tiago e São Vicente.

Dessa forma, navegantes que se aventuraram no mar e iniciaram as descobertas marítimas

apegaram-se aos santos, como forma de dominar e exorcizar o medo, os receios e os perigos

do mar. O homem europeu que esteve nas terras do atual Brasil, no século XVI, transportou

também as suas concepções e visões de mundo e é evidente que isto influenciou na construção

das idéias que retratara o novo mundo.

1.3

Terras imaginárias

As representações de terras imaginárias são uma constante na história da

humanidade. Desde tempos remotos, sempre existiu a referência a um lugar de paz e

prosperidade ou ainda a um lugar de sofrimento. Muitos são os lugares lendários, de acordo

com as distintas culturas. Conforme afirma Delumeau:

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O gosto do desconhecido e do mistério não podia deixar de atrair para fora

da Europa os temperamentos aventureiros. Todo um conjunto de mitos e de

fábulas reforçou nos mais audazes ocidentais o duplo desejo de enriquecer e

alargar o domínio da igreja de Cristo. Narrativas fantásticas, principalmente

relacionadas com o Oriente, ocuparam durante toda a Idade Média a

imaginação dos europeus. (DELUMEAU,1994, p. 51).

Assim, potencializado pela visão de mundo cristão, os dogmas bíblicos se tornaram

lugares reais no imaginário da época, do contexto do século XVI, e foram acompanhados das

lendas cristãs e pagãs, contribuindo, assim, para a efetiva formação de toda uma geografia

cristã do mundo. Pautados no referencial bíblico, os homens construíram a idéia de uma

geografia em que o espaço era pensado como expressão do espaço divino. Assim, cada lugar

mencionado nas Escrituras exigia uma localização no espaço, tendo em vista que, para os

homens deste período, a Bíblia era a fonte da verdade absoluta, e todas aquelas narrativas

presentes na Bíblia deveriam ser comprovadas. Narrativas bíblicas como a do Gênesis,

capítulo 2, versículo 3, em que é demonstrado a existência do Éden como um jardim de

delícias, onde o homem é colocado pelo divino e do qual é expulso depois do seu pecado.

Para o homem da Idade Média, estava presente em tudo, e a todo momento, a presença de um

ser divino, que tudo via e operava sobre todas as situações, influenciando no curso dos

acontecimentos.

As narrativas bíblicas, como explicitado anteriormente, influenciaram os homens do

contexto histórico do século XVI a se aventurarem além-mar em busca de comprovações no

mundo real dos discursos presentes na Bíblia, ou ainda, nos discursos presentes nas diversas

narrativas míticas sobre o espaço real da época. Realmente, havia também outros interesses,

como os de cunho econômico, que também se constituíram em elementos-chave na busca de

novas terras com possíveis riquezas naturais. No entanto, entende-se que o imaginário se

constituiu numa força propulsora de ações por parte dos europeus. O relato de viajantes

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mesclava as descrições reais com especulações a respeito de terras e povos pouco conhecidos.

Os marinheiros continuavam tendo o conhecimento prático do litoral do Mar Mediterrâneo e o

comércio contribuiu para que o espaço geográfico continuasse sendo percorrido.

1.4

As utopias medievais

Franco Júnior lembra, como se sabe, que a palavra “utopia” foi criada em 1516 pelo

inglês Thomas More para designar uma ilha imaginária, que concedeu o nome à sua obra.

Neste lugar, a sociedade ideal seria uma inversão da Inglaterra de sua época, e dessa forma, a

referida obra se caracterizou como uma crítica contundente em relação à sociedade de sua

época. Assim, a palavra se popularizou e ganhou particular significado com grande sucesso, e

fazendo sempre referência a uma sociedade idealizada, concebida como uma forma de fuga

do concreto ou como proposta de mudança de uma dada realidade. Dessa forma, a amplitude

do termo dá a este a possibilidade de ser utilizado também em relação aos períodos históricos

anteriores à obra de More, até mesmo na Idade Média. Entretanto, as utopias medievais são

diferentes das ulteriores pelo motivo de nelas se verificar, de forma acentuada, a presença de

estruturas míticas. Assim, segundo Franco Júnior,

utopia [...] pode ser entendida como uma expressão de desejos coletivos de

perfeição, quase sempre de retorno a uma situação primordial da

humanidade. Por isso seus materiais são frequentemente míticos, ainda que

redespertados e organizados em função de um momento histórico. Mas para

ultrapassá-lo. Em alguns casos há consciência desse desejo de

ultrapassagem; então apresenta-se um conjunto de valores articulados, uma

trajetória para concretizá-lo, e aí a utopia se confunde com a ideologia. Em

outros casos a intuição se sobrepõe à reflexão, e aí a função social da utopia

se desloca mais para o sonho do que para o objeto sonhado. De qualquer

maneira, a imaginação utópica é um produto da História que nega a

História. Desempenha assim o papel da última ideologia histórica, porém

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nega ser ideologia. A utopia é nostálgica, busca a harmonia edênica, é,

portanto um mito projetado no futuro. Contudo, nega ser mito, visto como

fantasia sem fundamento, mas se torna o mito central de sua época.

(FRANCO JÚNIOR, 1992, p. 12-13).

No contexto medieval, a realidade dos servo-camponeses e dos deserdados da terra e

da sorte levou-os a crer na existência das utopias. O estado de dificuldades da população

camponesa levou-a a crer em um mundo futuro, em que os desejos e sonhos contidos se

tornassem realidade e vislumbrassem uma sociedade na qual todos os problemas teriam

solução. Associado ao que denominamos utopias, está o imaginário medieval e a difusão da

existência desses lugares. Mesmo significando uma não-existência geográfica real, o desejo

de encontrar esses lugares paradisíacos, miraculosos ou de poderes sobrenaturais levou não só

os pobres iletrados, mas também, religiosos e aristocratas, a os buscarem sob diferentes

nomes e lugares.

O termo utopia refere-se, entre outras possibilidades, a lugares no imaginário, lugares

sem existência concreta, no entanto, existentes nas mentalidades da época. A possibilidade

destes lugares lendários existirem na superfície terrestre, cabendo procurá-los, foi reforçada

pelos geógrafos cristãos medievais e pelos relatos dos viajantes e comerciantes que suscitaram

a curiosidade dos homens deste período histórico. Dessa forma, Laura de Melo e Souza,

informando sobre as viagens marítimas, expressa que:

Todo um universo imaginário acoplava-se ao novo fato, sendo,

simultaneamente, fecundado, por ele: os olhos europeus procuravam a

conformação do que já sabiam, relutantes ante o reconhecimento do outro.

Numa época em que ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam

primeiro o que se ouvira dizer; tudo quanto se via era filtrado pelos relatos

de viagens fantásticas, de terras longínquas, de homens monstruosos que

habitavam os confins do mundo conhecido. (SOUZA, 1986, p. 21-22).

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Assim, a procura destes lugares lendários por navegadores, geógrafos e cartógrafos

ultrapassou as utopias medievais. Acreditava-se na existência desses lugares e procurou-se

muito mais do que um lugar concreto, mas o desejo de harmonia, de acesso a uma hipotética

idade do ouro no retorno ao Paraíso Perdido. Dessa forma, é importante considerar a

influência que a explicação religiosa do mundo assumiu nessa época, e que alterou,

profundamente, a cartografia das terras conhecidas. Pode-se perceber que em torno da

descoberta de novas terras da América estava presente todo um imaginário do homem deste

período histórico.

1.5

O outro

Ao aportarem nas Américas, os europeus tentaram compreender as sociedades que

aqui eles encontraram, enquadrando-as nos moldes da civilização européia. Os europeus

desconsideraram totalmente a individualidade e as particularidades desses povos “selvagens”.

A peculiaridade própria de sua vida e o contato com a natureza, a ausência de roupas, iguais

às européias, a inexistência de cidades, comércio, e de espaços físicos, como templos,

palácios e outros que centralizam poder e autoridade fizeram com que os europeus

classificassem os nativos como bárbaros, sem civilização, e pagãos. Conforme Everardo

Rocha, “[...] o etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do

‘outro’ nos termos da cultura do grupo do ‘eu’. Ao outro negamos aquele mínimo de

autonomia necessária para falar de si mesmo.” (Rocha, 1989, pp. 13-14).

Em “Raça e História”, texto escrito logo após a segunda guerra mundial a pedido da

Unesco, Lévi-Strauss esboça considerações sobre a questão do racismo entre os povos. O

principal objetivo era combater as idéias nazistas, que serviram de justificativas para o

holocausto, essas idéias pairavam sobre a Europa daquele período, e era causa de

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preocupações por parte da ONU (Organização da Nações Unidas). Para Lévi-Strauss, a

postura do homem diante do diferente pode ser entendida como:

A atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos

psicológicos sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós,

quando somos colocados numa situação inesperada; consiste em repudiar

pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e

estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos. ‘Costumes de

selvagens’, ‘isso não é nosso’, ‘não deveríamos permitir isso’, etc., um sem

número de reações grosseiras que traduzem este mesmo calafrio, esta

mesma repulsa, em presença de maneiras de viver, de crer ou de pensar que

nos são estranhas. (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 59).

Para Lévi-Strauss, não existem culturas que podem ser conceituadas ou consideradas,

melhores ou piores, umas em relação às outras. O etnocentrismo consiste em alguém enxergar

o outro, outros grupos ou outras sociedades, a partir dos seus próprios valores. Ter em mente,

por exemplo, que os povos indígenas devem organizar o seu cotidiano, a partir de valores da

civilização ocidental. Na prática, é a cultura do ‘eu’, de forma impositiva, estabelecendo aos

outros seus valores, ou depreciando os valores dos que são diferentes deste. Para Lévi-Strauss

(1976), a diversidade das culturas sempre foi vista pelos homens como algo incômodo:

[...] parece que a diversidade das culturas raramente surgiu aos homens tal

como é: um fenômeno natural, resultante das relações diretas ou indiretas

entre as sociedades; sempre se viu nela, pelo contrário, uma espécie de

monstruosidade ou de escândalo; nestas matérias, o progresso do

conhecimento não consistiu tanto em dissipar esta ilusão em proveito de

uma visão mais exata como em aceitá-la ou em encontrar o meio de a ela se

resignar. (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 59).

Para Lévi-Strauss (1976), a afirmação da igualdade entre os homens e da fraternidade

que propicia a união, sem classificação de raça e de cor, se constitui em algo enganador para o

espírito, considerando que negligencia uma diversidade de fato, que se impõe à observação,

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dessa forma, segundo o mesmo autor, o homem moderno vive essa condradição de censurar

experiências que o chocam, efetivamente, e de negar as diferenças que ele não compreende,

intelectualmente. Assim, o homem moderno, no intuito de entender a realidade da diversidade

das culturas, situação esta que o chocava, direcionou seus questionamentos para toda espécie

de especulações de cunho filosófico e sociológico. Dessa forma, as especulações filosóficas,

que tentam responder a diversidade, se reduzem a um mesmo pormenor:

Mas, por mais diferentes e por vezes bizarras que possam ser todas estas

especulações se reduzem a uma única e mesma receita, que o termo de falso

evolucionismo é, sem duvida, mais adequado para caracterizar. Em que

consiste ela? Muito exatamente, trata-se de uma tentativa para suprimir a

diversidade das culturas, fingindo conhecê-la completamente. Por que, se

tratarmos os diferentes estados em que se encontram as sociedades

humanas, tanto antigas como longínquas, como estádios ou etapas de um

desenvolvimento único que, partindo do mesmo ponto, deve convergir para

o mesmo fim, vemos bem que a diversidade é apenas aparente. A

humanidade torna-se uma e idêntica a si mesma, só que esta unidade e esta

identidade não se pode realizar senão progressivamente e a variedade das

culturas ilustra os momentos de um processo que dissimula uma realidade

mais profunda ou retarda a sua manifestação. (LEVI-STRAUSS, 1976, p.

61).

Ainda segundo Lévi-Strauss existe uma distinção entre evolucionismo biológico do

"pseudo evolucionismo", e chama atenção que quando passa-se de realidades biológicos para

realidades culturais as coisas modificam-se. O evolucionismo biológico está provavelmente

correto para raças e animais, afirma o autor, mas não possui a mesma relação com a evolução

social e cultural.

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1.6

A prática etnocida, o olhar preconceituoso em relação aos nativos do Brasil

O termo etnocídio tem sua origem em uma necessidades de desgnar as ações

efetivadas em relação às culturas que são diferentes do grupo que denomino cultura do ‘eu’

em relação à cultura do ‘outro’. Tentou-se exprimir, por outros termos, determinadas ações,

no entanto, eram impróprios e imprecisas para definir de forma adequada tal fenômeno.

Considerando o exposto, foi da palavra genocídio que o conceito de etnocídio desenvolve-se,

assim, para inaugurar uma reflexão fundamentada, constitui-se em fator preponderante definir

o que diferencia fenômeno do etnocídio, da realidade que o genocídio nomeia. Assim, para

Pierre Clastres:

[...] foi principalmente a partir de sua experiência americana que os

etnólogos, e muito particularmente Robert Jaulin, viram-se levados a

formular o conceito de etnocídio. É principalmente à realidade indígena da

América do Sul se refere essa idéia Dispomos aí, portanto, de um terreno

favorável, se é possível dizer, à pesquisa da distinção entre genocídio e

etnocídio, já que as últimas populações indígenas do continente são,

simultaneamente, vítimas desses dois tipos de criminalidade. Se o termo

genocídio remete à idéia de “raça” e à vontade de extermínio de uma

minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos

homens (caso em que se permaneceria na situação genocida), mas para a

destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática

dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que

empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em

seu corpo, o etnocído os mata em seu espírito. (CLASTRES, 2004, p.82-83)

Assim exposto, para Clastres, o termo genocídio diz respeito à destruição física, o

desejo de extermínio de uma minoria racial, já o termo etnocídio direciona-se para um outro

objetivo que é a destruição da cultura de uma dado povo. Assim, a violência se constitui em

subtração de todos os valores da cultura do outro e imposição dos valores da cultura do ‘eu’

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como verdades absolutas e inquestionáveis. Nessa perspectiva, tudo aquilo que diz respeito à

realidade da cultural do outro, do diferente, é tido como um mal que deve ser eliminado.

Segundo Clastres, a semelhança dos dois conceitos está na visão que ambos possuem do

Outro: “O Outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença” (CLASTRES,

1974, p.83). No entanto, ambos vão diferenciar-se quanto à natureza do tratamento efetivado

em relação à diferença.

Enquanto na atitude genocída o objetivo é simplismente negar o diferente, e com

essa postura, exterminar os Outros porque, na visão do praticante de tal ação, a existência da

diferença é insuportável. Em contrapartida, a postura etnocida, admite certa relatividade do

mal na diferença, acreditando que os Outros, aos olhos do denominador, podem melhorar, se

transformar. Neste sentido, a solução está, aos olhos do etnocida, na transformação do

diferente em igual.

Conforme o exposto, na visão do etnocida, a ação em relação aos povos pertencentes

a outras culturas, é praticada no intuito de não conceder-lhes a existência como diferente.

Assim, quando, na visão do praticante, se constrói um discurso em favor dos indígenas que

objetiva ajudá-los e libertá-los da condição de miséria e infelicidade que a vida selvagem os

condena, e elevá-los à categoria de cidadãos brasileiros, constata-se, de forma efetiva, um

exemplo claro da prática etnocida. Dessa forma, configura-se em postura de alinhamento e

padronização dos indígenas, enquadrando-os na lei, e submetendo-os à sociedade nacional.

Clastres argumenta que essa postura constitui-se em um discurso de caráter etnocida. Dessa

forma para o autor,

toda cultura opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como

representação por excelência do humano, e os outros, que participam da

humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades

primitivas fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas

se dão, é portanto etnocêntrico de uma ponta a outra: afirmação da

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superioridade de sua existência cultural, recusa de reconhecer os outros

como iguais. O etnocentrismo aparece então como a coisa do mundo mais

bem distribuída e, desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente

não se distingue das outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais

análise, pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal de toda

formação cultural, como imanente à própria cultura. Pertence à essência da

cultura ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura se considera

como a cultura por excelência. (CLASTRES, 2004, p. 85-86).

O etnocentrismo se faz presente em todas as culturas. A forma de olhar o outro e

emitir juízo de valor, utilizando como parâmetro a sociedade do emissor do juízo, constitui

algo peculiar. Tanto o etnocentrismo quanto o relativismo que se configura na atitude de

tolerar o diferente, o Outro, mantêm uma postura preconceituosa em relação ao diferente, à

cultura do eu; ambos se constituem em formas de se abordar diferenças culturais, e se

configuram em formas equivalentes e repletas de preconceitos, já que segundo Passetti: “O

relativismo tolera a diferença ao afirmar a relatividade de cada cultura, e o etnocentrismo é

uma prática próxima ao relativismo, por explicitar as restrições ao outro ao conter,

necessariamente, um julgamento por comparação.” (PASSETTI, 2005, p. 207). Conforme a

autora,

o etnocídio transforma o outro no mesmo, pasteuriza, homogeneíza,

uniformiza. O genocídio, ao contrário, insiste na diferença inabalável e que

precisa ser exterminada. O fato de qualquer cultura ser etnocêntrica não faz

dela uma cultura etnocidária, característica primordial da ocidental. [...]

Etnocídio e genocídio são práticas reformadoras: os movimentos de morte

do corpo ou do espírito são estratégias de Estados para administrarem

corpos e populações. (idem, p. 209).

Mesmo antes das grandes navegações do século XVI, os europeus imaginavam

como seriam as outras civilizações. Histórias como as de Marco Pólo povoaram o imaginário

europeu. Os escritos que relataram e descreveram essas novas terras são conduzidos pelo

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imaginário. Toda a bagagem de idéias e a mentalidade extremamente ligada às imagens

guiaram as conclusões dos europeus sobre os indígenas. “Aqueles que são diferentes do grupo

do eu – os diversos ‘outros’ deste mundo – por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam

representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados

momentos”. (ROCHA, 1989, p.15).

Constatamos, então, que nos primeiros relatos destas terras do Brasil atual, as

descrições possuem um caráter edênico, de paraíso terrestre, idéia que foi intensificada pela

comparação da nudez dos índios com a de Adão e Eva dos relatos bíblicos. Havia um mundo

idealizado, sonhado pelos europeus, ou seja, vemos o imaginário definindo os parâmentros

das interpretações européias.

Conforme explicita Le Goff (1990), os homens da Idade Média viviam obcecados

com a idéia do pecado, com a possibilidade de cair no pecado e, nesse sentido, os vícios

podiam ser o instrumento que os levava a pecar. O visível e o invisível estavam inseridos no

cotidiano de forma homogênea, ou seja, não existia qualquer linha divisória ou barreiras entre

este mundo terreno e o espiritual.

A idéia acerca do além dava conta da existência de cinco lugares, segundo a

concepção cristã deste período: o céu, o inferno, o purgatório, que assume a sua forma

definitiva a partir do século XII, que seria uma espécie de local intermediário para onde iriam

aqueles que cometeram pecados veniais ou que estivessem cumprindo penitência. O Além

ainda comporta mais dois lugares que são o limbo dos patriarcas e o das crianças.

O milagre representou a intervenção do divino, do Deus cristão no atendimento das

necessidades dos homens em curas físicas, por exemplo. De forma geral, os milagres são,

particularmente, numerosos nos domínios em que a fragilidade do homem medieval é maior.

Para Le Goff, o homem da Idade Média vivia em uma sociedade repleta de símbolos.

A mentalidade simbólica estava inserida na sociedade medieval, e, neste contexto, pode-se

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visualizar os sinais, os símbolos e as alegorias. Verifica-se a estrutura simbólica da Bíblia, da

arte, da arquitetura, sobretudo nas igrejas e também nas cerimônias de sagração dos reis com

seus rituais. Segundo Le Goff,

o homem medieval é um decodificador contínuo, o que reforça a sua

dependência em relação aos clérigos, peritos em simbologia. A simbologia

comanda a arte e, em especial, a arquitetura, para qual a igreja é acima de

tudo uma estrutura simbólica. Impõe-se na política, onde o peso das

cerimônias simbólicas, como a sagração dos reis, é considerável e onde as

bandeiras, os brasões e as insígnias desempenham um papel fundamental.

Reina na literatura, onde assume freqüentemente a forma de alegoria.” (LE

GOFF, 1990, p. 27).

Assim, visualiza-se um universo repleto de sinais e símbolos que faziam parte da

vida cotidiana do homem medieval. Dentro deste contexto simbólico, destaca-se o fascínio

pelo número, a obsessão pelo cálculo é introduzida na religião, sobretudo com solicitações de

números de missas que dão forma à contabilidade do além.

No pensamento medieval, ‘cada objeto material era considerado como

figuração de qualquer coisa que lhe correspondia num plano mais elevado e

transformava-se, assim, no seu símbolo’. O simbolismo era universal e

pensar era uma perpétua descoberta de significações ocultas, uma constante

‘hierofania’. De fato, o mundo oculto era um mundo sagrado e o

pensamento simbólico era a forma elaborada, decantada, ao nível dos

doutos, do pensamento mágico em que mergulhava a mentalidade comum.

(LE GOFF, 1995, p. 93).

As imagens na construção das idéias dos homens deste período exerceram influência

significativa em suas ações e concepções. A igreja cristã, conscientemente, serve-se da

imagem para informar e formar, haja vista que grande parte da população era analfabeta e a

imagem para esta população servia de objeto de comunicação entre a igreja cristã e a

sociedade, sobretudo as camadas populares. É importante destacar a influência e simbolismo

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da cor. Conforme Le Goff,

o homem medieval transferiu do céu para terra a visão do universo que lhe é

dada pela representação artística. [...] Mas, no decorrer de todos esses

séculos e, no final, com um certo exagero, o homem medieval – homem

visionário no sentido psicológico e sobrenatural do termo – é impelido a ver

e a pensar, as cores, o universo e a sociedade. As cores são simbólicas e

constituem um sistema de valores que muda continuamente. A primazia do

vermelho, cor imperial, cede lugar ao azul, cor da virgem e do Rei de

França. O sistema branco / preto é quase imediatamente ideológico. O

Homem medieval habitua-se a hesitar perante o verde, cor ambígua,

imagem da juventude sedutora e perigosa, a reconhecer o mal nas

personagens e nas superfícies amarelas, cor da falsidade. O listrado, o

pintalgado designam, sobretudo, um perigo mortal. O ouro, valor supremo,

que é e não é uma cor, domina. (LE GOFF, 1990, p. 28).

Outro elemento que é interessante frisar diz respeito aos sonhos. Num primeiro

momento, os sonhos foram controlados pelo cristianismo. A igreja cristã, ao atribuir aos

sonhos uma origem tripla, Deus, o corpo humano e o demônio, entendia que os mesmos

poderiam levar o homem a falsos entendimentos sobre a vida. Em um segundo momento, os

sonhos passaram a ter uma outra interpretação, agora os sonhos eram passíveis de

interpretação. "Homem de visão, de pensamento simbólico, que vive num universo onde se

misturam, sem soluções de continuidade, o visível e o invisível, o natural e o sobrenatural, o

homem medieval estava vocacionado para ser um grande sonhador, mas o cristianismo

controlou estreitamente a sua atividade onírica". (LE GOFF, 1990, p. 28).

Essa importância que o visual possuía para os cronistas e navegantes é perfeitamente

explicada, observando a herança da mentalidade medieval na Europa da Idade Moderna. No

medievo, as imagens, figuras e iconografias tinham suma importância. O homem medieval

não abstraia uma idéia completamente sem associá-la a uma imagem. Isso aconteceu com a

construção, feita pelo alto clero, do purgatório, e as relíquias cristãs são também um outro

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bom exemplo. O homem medieval, para construir uma imagem, tinha a necessidade de atrelar

uma idéia nova, a algo já conhecido. Essa forma de pensar fez com que as idéias para serem

assimiladas, tivessem de ser retratadas (a força da imagem prevalece) ou exemplificadas com

fatos do cotidiano.

O europeu moderno, do contexto do século XVI, não é tão distante do período

medieval, e a sua mentalidade, o imaginário e a forma de enxergar o mundo eram

extremamente ligados ao período medieval. Os europeus, ao descreverem e analisarem as

sociedades nativas das Américas tiveram que resgatar as idéias anteriores sobre civilizações

exóticas que habitavam a mentalidade européia.

O Oriente passa a ser parâmetro de comparação e de retratação. O imaginário assume

uma importância imensa, pois se as sociedades indígenas não se assimilavam à européia e

nem à oriental, então não é entendida como civilização. A partir dessa idéia, quando os

europeus começaram a instalar feitorias e cidades no Novo Mundo, os valores indígenas

foram desconsiderados. Fica evidente aqui que a força do imaginário europeu atuou na

empresa colonizadora. Os colonizadores não conseguiram tolerar que os indígenas formavam

um outro tipo de sociedade, uma vez que esses indígenas não se assemelhavam com nada que

os ocidentais aceitassem como civilização. Foram, então, rotulados de “bárbaros”,

“selvagens” e “pagãos”. A missão do europeu passou a ser divulgada como uma missão para

civilizar e cristianizar os ameríndios, tratados como pobres almas, trazendo-as para o que

imaginavam ser a luz.

O imaginário europeu, a força das imagens e a idéia de superioridade da cultura

européia guiaram os europeus na sua empreitada de classificar, catalogar e dominar o Novo

Mundo. Nenhum desses fatores pode ser supervalorizado ou subestimado.

O século XVI se configura como um momento peculiar, pois é neste momento que o

europeu se vê obrigado a, mais uma vez, pensar a diferença, a ponderar sobre o Outro, a olhar o

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Outro e tentar encontrar respostas para as indagações que incomodavam e geravam perplexidade

diante do novo, do inesperado.

1.7

O imaginário sobre o novo mundo

Em toda a história da humanidade, o Outro foi visualizado com certo receio, usando-se

os parâmetros para julgar e classificar uma outra sociedade, as regras e os valores da cultura dos

que acabaram de “descobrir” o outro. Sempre que uma civilização “descobria” outra, essa outra, a

civilização “descoberta”, nunca era pensada sob uma ótica que procurasse entendê-la a partir de

sua particularidade. Essas características das sociedades humanas, e aqui, mais particularmente,

da européia, acompanharam os europeus que aportaram nas terras do “novo mundo”.

Foi constante a busca por lugares lendários e mitológicos nos períodos anteriores e

posteriores ao século XVI, sobretudo os lugares descritos na Bíblia, como o Éden, por

exemplo. Esta perspectiva do mundo fantástico fez com que muitos homens se aventurassem

em busca de localidades e terras lendárias. Nessas viagens pelo espaço geográfico, muitas

terras “descobertas” foram associadas a uma possível terra lendária ou a um suposto paraíso

ou inferno, elementos estes pertencentes ao imaginário cristão, além de um terceiro elemento,

o purgatório, que se agregou ao imaginário popular, influenciado pela igreja cristã. Dessa

forma, ficaria assim configurado o mundo espiritual, o inferno seria o paraíso às avessas,

localidade de sofrimento, penúria e danação perpétua. Já o purgatório foi entendido como o

local de purificação dos pecados com perspectiva da salvação da alma no paraíso.

Na construção das idéias acerca do novo mundo, os lugares no espaço geográfico

foram muitas vezes associados a estes elementos do imaginário cristão; o Brasil do século

XVI foi associado, num primeiro momento, a um possível paraíso bíblico, e de forma mais

intensa, a um inferno ou purgatório. Segundo Souza:

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Natureza edênica, humanidade demonizada, e colônia vista como purgatório

foram as formulações mentais com que os homens do velho mundo

vestiram o Brasil nos seus primeiros séculos de existência. Nelas, fundiram-

se mitos, tradições européias seculares e o universo cultural dos ameríndios

e africanos. Monstro, homem, selvagem, indígena, escravo negro,

degredado, colono que trazia em si as mil faces do desconsiderado homem

americano, o habitante do Brasil colonial assustava os europeus, incapazes

de captar sua especificidade. Ser híbrido, multifacetado, moderno, não

poderia se relacionar com o sobrenatural senão de forma sincrética.

(SOUZA, 1986, p. 84-85)

Um instrumento bastante usado pela metrópole portuguesa para punir indivíduos

com atitudes indesejáveis e que fugiam do padrão moral estabelecido e entendido como

normal na sociedade portuguesa cristã foi o degredo, em que o indivíduo era obrigado a

deixar a sua terra natal, sendo que muitos desses degredados tinham como destino o Brasil,

daquele contexto histórico.

Na mentalidade desses homens, degredados e inquisidores, o novo mundo representaria,

na configuração geográfica cristã, o purgatório ou inferno, local de sofrimentos e privações. Na

prática, esses degredados não tinham vida fácil na colônia e passavam por sérias dificuldades, pois

o degredo se constituiu em uma forma de coerção que tinha como objetivo arrancar da sociedade

aqueles indivíduos que, conforme pensamentos da época, não estavam em sintonia com os valores

culturais e morais da sociedade deste período histórico. Com esta prática coercitiva, os indivíduos

deixavam sua terra natal, seus familiares, sua cultura, para viverem em regiões distantes,

totalmente diferente da sua realidade até então. Dessa forma, fica fácil entender o porquê da

associação dos elementos do mundo cristão a estas localidades, no caso o Brasil, estes elementos

do mundo cristão se constituíram em fatores marcantes do universo mental europeu na construção

das idéias sobre as terras descobertas.

Mesmo assim, durante todo o século XVI, o Brasil desperta grande fascínio entre os

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europeus. Além dos colonos portugueses e dos invasores franceses, outros europeus visitaram a

terra recém-conquistada, movendo-os à cobiça, ao desejo de aventuras, à curiosidade ou ao

ideário religioso. Muitos resolvem registrar suas andanças pelos trópicos e esses relatos obtêm

êxito na Europa, onde alimentam a imaginação de leitores encantados pelos descobrimentos.

1.8

A construção das idéias em relação aos nativos do Brasil, no século XVI

A expansão marítima européia do século XVI não atendeu somente aos interesses

comerciais. Os europeus tinham outras motivações, entre elas, o desejo de conhecer as

“maravilhas” narradas pelos poucos homens que haviam tido a oportunidade de viajar naquela

época.

Os relatos de viajem mesclavam realidade e fantasia. Obras escritas por volta do

século XIII e XIV, descreviam terras e seres fantásticos e são um bom exemplo da união entre

o real e o imaginário. Podemos mencionar obras ou relatos como “O livro das Maravilhas” de

Marco Pólo, que faz referências a lendas ou ponderações próprias do imaginário medieval,

além de informações econômicas e sociais relativas às cidades, ou ainda os relatos de

Mandeville, onde misturam-se descrições geográficas, terras, animais ou criaturas lendárias.

Para Franco Júnior, o mito pode ser definido como:

um relato cujos componentes essenciais estão na esfera do sagrado e cujos

objetos são as origens e/ou características de fenômenos naturais e sociais

importantes para uma dada sociedade, levada por isso a especular sobre

eles. O mito é, portanto, uma forma de conhecimento que equaciona as

grandes questões espirituais e materiais da sociedade, sem pretender

solucioná-las. É a exteriorização das grandes dúvidas, ansiedades, medos,

expectativas e sonhos coletivos de cada comunidade. É uma mediação entre

o abstrato e o concreto, expressada de acordo com a cultura da qual faz

parte. É então uma manifestação do imaginário. Logo, está historicamente

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presente em todas as épocas, porém de forma mais intensa e explícita,

vivida, nas sociedades arcaicas, nas quais a outra forma de conhecimento e

de relação com o cosmo e com o social, a razão, ocupa um espaço mais

restrito, ainda que presente no próprio mito. O alargamento desse espaço

racional, e portanto de certo recuo do sagrado, ocasiona uma degradação do

mito de um tipo de relato próximo, porém mais profanizado, a lenda. De

toda forma, um e outro exercem a função de elo privilegiado entre a

realidade psíquica e a realidade externa de todo grupo humano. (FRANCO

JÚNIOR, 1992, p.11-12)

Esses mitos, como o mito do Éden ou Paraíso, ou ainda a Cocanha, eram a

idealização de uma terra onde os desejos seriam realizados, seja da juventude eterna ou ainda,

e de forma mais intensa, do saciar a fome; estavam presentes no cotidiano do homem do

século XVI, e também no contexto do movimento ultramarino dos séculos XV e XVI. Tinham

suas origens na mentalidade medieval, que fundia a maravilha e a busca do paraíso com

motivos religiosos e a procura de riquezas. Na Europa do século XVI, iconografias com

representação de lugares ou terras fantásticas eram constantes, e o outro no imaginário

europeu é sempre exótico, fantástico, bizarro.

1.9

A crença em um Deus único - monoteísmo

Ao estudar as sociedades de um determinado momento histórico é imprescindível

analisar a realidade social em que os homens e as mulheres, deste contexto, estão inseridos,

ou seja, seus valores, suas crenças, seus medos, seu cotidiano, sua cultura, seu temperamento,

sua formação, seus receios, suas alegrias e suas motivações. No caso específico, o nosso

cronista é um Padre de uma ordem religiosa, a Jesuítica. Este padre estava inserido em uma

religião, o cristianismo, de caráter monoteísta, cuja a crença se baseia na existência de um só

Deus, diferentemente, do politeísmo que concebe e manifesta crer em vários deuses, da

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mesma forma, diferencia-se também do henoteísmo que é a crença preferencial em um Deus

que possui um aspecto de reconhecimento de sua divindade entre outros deuses. O Deus da

religião monoteísta possui algumas peculiaridades. Ele é onipotente, onisciente e onipresente.

Os aspectos da vida terrena não são deixados de lado. A fé em uma só divindade manifesta

algumas peculiaridades que são o poder atribuído à divindade, além dos valores morais

estabelecidos para servir de referência para pautar suas condutas.

A palavra monoteísmo possui raízes no grego, “monos”, que significa "único" e

theós, que significa "Deus”. Dessa forma, a palavra significa e define a existência de um

único Deus, que manifesta seu interesse pelo homem, e também pela sua criação, intervindo

quando necessário.

Há muitas idéias ou princípios associados ao monoteísmo como: A idéia de que a

divindade é dotada de vida necessária e independente. Nessa prerrogativa, a divindade é

portadora de existência própria e não depende de qualquer coisa externa ou fator sustentador

para existir. Um outro princípio associado à idéia monoteísta é o princípio que concebe Deus

como único Criador. O Deus único criou tudo que existe, ou seja, toda realidade visível ou

invisível foi criado por Deus. Uma outra realidade trazida pelo cristianismo é a idéia de Deus

como Pai. Essa é com certeza, uma das proposições mais consoladora da religião, pois define

um teísmo pautado na idéia paternal, tomando como referência a figura de um pai, e

possibilitando ao homem um teísmo que tem como referência o amor paterno. Associar o

Deus único como pai foi a referência e a busca que os homens que aspiravam a divindade

encontraram, dentro das realidades do seu mundo, de sua cultura, de seus valores, de

denominar a divindade e, assim, se fazer mais próximo do Deus único, na perspectiva da

realidade de sua crença.

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1.9.1

Os jesuítas

Os religiosos que estiveram no Brasil, durante o século XVI, foram, sobretudo os da

ordem da Companhia de Jesus, os jesuítas, que deixaram muitos relatos, como as diversas

cartas ou correspondências nos quais os mesmos explicitavam seus pensamentos como as do

Padre José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, Antonio Vieira, Fernão Cardim entre outros,

sobre a “terra Brasilis”. Nos relatos dos religiosos, os costumes e hábitos dos nativos foram

definidos de forma categórica como de caráter pecaminoso e selvagem. No entanto, esses

jesuítas também denunciavam, em seus escritos, a violência do processo de conquista e o

extermínio e exploração do índio. Conforme Ferreira (2007), a postura jesuítica configurou-se

em imposição dos valores do mundo ocidental:

O objetivo da atuação jesuítica junto aos índios no Brasil foi o de convertê-

los. Transformar os gentios selvagens em cristãos, ou reduzí-los ao

cristianismo, representava inserí-los na cultura ocidental, torná-los

participantes da religião que era advogada como única verdadeira, era

civilizá-los com rei e lei, era fazê-los, enfim, súditos portugueses, sujeitos

às regras temporais e espirituais que isso representava, e, do ponto de vista

jesuítico, fazer cristãos aos índios, era propiciar-lhes a possibilidade da

felicidade eterna por meio da salvação de suas almas. Converter significava

tudo isso. (FERREIRA, 2007, p. 94)

Laima Mesgravis (1998), as posturas dos jesuítas podem ser classificadas em três

estágios. No momento inicial, da chegada, constata-se um deslumbramento no qual os jesuítas

constroem uma imagem em relação aos nativos de pureza, falta de malícia, docilidade e

inconsciência do pecado. É o momento da euforia do batismo em massa, da crença na

possibilidade de um povo cristão perfeito e do conceito de papel branco no qual se escreveria

a verdade.

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No século XVI, havia diversas etnias indígenas e havia também reações

diferenciadas em relação à evangelização e aos valores da cultura européia, alguns povos se

posicionaram totalmente contrários à evangelização, enquanto outros absorveram de forma

mais passiva a catequese e os valores ocidentais. Como ficou estabelecido na história, os

povos que habitavam o Brasil no século XVI, foram denominados de índios em uma postura

generalizadora dos europeus. Assim, definindo-os como um povo único e igual em seus

diversos aspectos. No entanto, se constituem em grupos étnicos diferentes, com uma cultura

própria, portadores de tradições, costumes, línguas e história distintos. Assim, tratassem de

um conjunto de sociedade com uma experiência de vida própria, valores culturais específicos

e diferenciados.

Do ponto de vista do contato estabelecido entre os portugueses e os nativos do Brasil

no século XVI, podemos estabelecer da seguinte forma: na pratica havia no Brasil colonial,

índios aldeados e aliados dos portugueses e índios inimigos espalhados pelos “sertões”.

Existiram etnias que agiram de forma passiva diante dos ocidentais, outras reagiram de forma

combativa diante da imposição ocidental. Assim, configurou-se o olhar dos portugueses em

relação às diversas etnias que existiam no Brasil do século XVI, os que se submetiam aos seus

preceitos eram considerados “amigos”, aos que não se submetiam aos valores ocidentais eram

tidos como inimigos potenciais.

Um discurso desenvolvido pelos portugueses, em relação aos nativos que não

submetiam aos valores ocidentais, era com relação à inconstância da alma nativa; concebia-se

que os nativos eram extremamente inconstantes na fixação dos valores ocidentais. Eduardo

Viveiros de Castro em a Inconstância da Alma Selvagem desenvolve interessante reflexão

sobre esta temática e define:

Por geral que seja, entretanto, e fundado em experiências variadas, parece-

me que o conceito da natureza inconstante da alma selvagem deriva,

principalmente, no caso brasileiro, dos anos iniciais de proselitismo entre os

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Tupi. O problema dos índios, decidiram os padres, não residia no

entendimento, alias ágil, e agudo, mas nas outras duas potencias da alma: a

memória e a vontade, fracas, remissas.(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.

188).

Laima aponta ainda um segundo momento, quando do retorno às aldeias para uma

convivência mais prolongada com os nativos que não abandonavam em nada a sua cultura,

como a poligamia, a bebida, e o canibalismo, que se constituíam em aspectos da vida dos

nativos que incomodavam sobremaneira os jesuítas, os religiosos chegaram a defender a

conversão forçada, principalmente, depois de diversas tentativas de impor a catequese e vendo

que não estava surtindo efeito a ação jesuítica no sentido do acolhimento dos valores cristãos.

Em um terceiro momento, concluem os jesuítas que a causa das revoltas indígenas

estava ligada ao tratamento e atitudes injustas dispensadas ao nativo pelos colonos. Dessa

forma, os jesuítas passam a defender o agrupamento destes nativos em aldeias permanentes,

afastadas dos brancos, onde poderiam fiscalizar o uso de seu trabalho assalariado e se

concentrar na catequese das crianças, procurando apenas controlar as práticas da cultura

nativa que incomodava os jesuítas.

Com o intuito de conseguir converter os indígenas à fé cristã e subtrair costumes e

hábitos, os jesuítas lançaram mão das crianças pregadoras, as quais eram crianças órfãs

européias que foram trazidas para o Brasil com o objetivo de evangelizar os nativos,

principalmente, as crianças indígenas. O conteúdo da catequese sempre foi a doutrina cristã

com seus dogmas e crenças, os quais eram incorporados aos nativos através de diversas

formas. Todos os ritos cristãos deveriam ser incorporados à vida do nativo com o objetivo de

procedê-los à conversão e fazer deles homens cristãos.

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CAPÍTULO II

O PADRE FERNÃO CARDIM

Padre Fernão Cardim foi um missionário e escritor português, nascido em Viana do

Alentejo, um dos primeiros a descrever os habitantes e os costumes do Brasil. Cardim entrou

para Companhia de Jesus, no ano de 1566, e esteve no Brasil, pela primeira vez, no ano de

1583. Rodolfo Garcia, que escreve a introdução da edição de 1980 do Tratado de terra e

gente do Brasil de Fernão Cardim, afirma:

A vida de Fernão Cardim é quase desconhecida. A data de seu nascimento é

incerta. Ele próprio, qualificando-se em 14 de agosto de 1591 perante à

mesa do Santo Ofício a que presidia o visitador Heitor Furtado de

Mendonça, na cidade do Salvador, declarou ter quarenta e três anos [...]

teria, portanto, nascido em 1548; essa data, porém, não confere com a que

consignou o padre Antonio Vieira [...] – ao dizer que Cardim entrou na

companhia de Jesus em 1555 aos quinze anos de idade fazendo assim

retrotrair o ano do seu nascimento para 1540. De uma biografia

sumaríssima estampada na Revista de História, de Lisboa, volume 10

(1921), consta o início de seu noviciado, em 09 de fevereiro de 1566; a

prevalecer sua declaração, contaria então dezoito anos, ao passo que tomada

como certa a de Vieira, teria vinte e seis anos. Entre uma e outra hipótese,

mais aceitável parece a primeira. (GARCIA, 1980, p. 13).

Ao todo, Cardim viveu na América Portuguesa em torno de 42 anos com pequenas

interrupções. Considerando o período extenso que aqui esteve e os vários cargos que assumiu

na terra brasileira, conheceu, como poucos, a esta terra. Segundo Vainfas, não há muitas

informações sobre sua vida em Portugal “exceto que foi ministro do Colégio de Évora, depois

de fazer votos na Companhia, em 1588, e esteve cinco meses em Lisboa, antes de seguir para

o Brasil” (VAINFAS, 2001, p. 449). Garcia informa que:

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Da existência de Fernão Cardim em Portugal, antes de vir para o Brasil,

faltam pormenores. Já era professo dos quatro votos e ministro do Colégio

de Évora, quando foi designado, em 1582, para companheiro do Padre

visitador Cristóvão de Gouvêa; passou a Lisboa em princípios de outubro

daquele ano e ali esteve cinco meses, até que, a 5 de março de 1583, com o

governador Manuel Tales Barreto, o visitador e outros padres, embarcou

para o Brasil, chegando a Bahia a 9 de maio seguinte.(GARCIA, 1980, p.

14)

Como jesuíta, viajou para o Brasil em 1583, com o visitador Cristóvão de Gouveia e

o governador Manuel Teles Barreto. Segundo Cateunal-L´Estoile, o cargo de visitador:

se inscrevia plenamente no sistema do governo da Companhia de Jesus: seu

papel era representar diretamente o diretor geral numa província

determinada. As constituições previam que o geral pudesse em pessoa ir

visitar as províncias; mas por fim, o geral não saia de Roma e os visitadores

eram seus representantes mais diretos nas províncias. [...] o visitador era

nomeado pelo geral por um período e para uma província determinados; ele

era investido de uma autoridade particular, delegada diretamente pelo geral.

Interligava todos os poderes locais dos quais, como vimos, nenhum se

nivelava, mesmo em escala reduzida, ao do geral. (CATEUNAL-

L’ESTOILE, 2006, p. 76-77).

Acompanhando a missão do padre visitador, viajou desde Pernambuco até ao Rio de

Janeiro, deixando relato precioso sobre os avanços e recuos da catequese. As suas

observações resultaram em dois tratados: O primeiro ocupa-se do clima e da terra do Brasil e

o segundo trata das origens e dos costumes dos índios brasileiros. Também há duas cartas,

condensadas em um só texto, escritas para o provincial, “Informação da Missão do Padre

Christovão Gouvêa, as partes do Brasil” ou ainda denominado “Narrativa Epistolar de uma

Viagem e Missão Jesuítica (Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de

Janeiro, São Vicente”.

Segundo Cateunal-L´Estoile, em 1585,

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[...] o jovem jesuíta Fernão Cardim escreveu um relato da viagem que

acabara de fazer. O relato, redigido em intenção aos irmãos da província de

Portugal, tinha como objetivo, precisamente, desvendar a província do

Brasil e os diferentes lugares onde se marca a presença jesuíta nesta terra,

permitindo estabelecer um primeiro contato com ele. Fernão Cardim era o

companheiro e secretário do pe. Christovão de Gouvêa, encarregado pelo

geral da ordem jesuíta de visitar a província do Brasil. Os dois padres,

vindos de Lisboa, desembarcaram a 9 de maio de 1583 em Salvador da

Bahia, capital da colônia e sede da implantação jesuíta, com o colégio onde

reside o provincial. (CATEUNAL-L’ESTOILE, 2006, p. 39).

Assim, o principal objetivo das descrições do padre era o de informar sobre a

realidade da província, no que diz respeito às atividades da missão do Brasil, o que justifica

um levantamento de informações da província, suas peculiaridades, clima, habitantes, hábitos,

culinário, entre outros. Essas informações eram prestadas para melhor avaliação das ações a

serem tomadas por parte dos jesuítas, assim, as descrições se constituem em elemento

imprescindível para melhor estabelecer a ação evangelizadora em que estavam imbuídos estes

religiosos.

Observando o texto do Padre Fernão Cardim, constatamos algumas peculiaridades

que merecem serem consideradas. Conforme Cateunal- L’Estoile, o texto de Cardim possui

uma função bem precisa na instituição jesuítica. Ele não é um texto em que o autor tenha toda

a liberdade de escrever e explanar suas idéias, é um texto de encomenda, ligado ao dever de

escrituração que a instituição jesuíta exige de todos os superiores. No entanto, a narrativa é

apenas um dos documentos escritos durante a visita; o padre dirigiu ao geral cartas, assinadas

com o seu nome, para prestar contas de sua atividade e informar, aos seus superiores e aos

padres da instituição, daquilo que viu. É uma correspondência administrativa, na qual o

visitador expõe suas dificuldades em aplicar as ordens de Roma e as particularidades dessa

província distante.

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Assim, conforme Cateunal-L’Estoile, a narração está inserida na dimensão

administrativa do registro jesuítico. Fazer o relato é uma obrigação ligada ao cargo do

visitador. O texto de Cardim é uma figura literária ligada a um cargo específico na

administração da ordem. A narrativa é, precisamente, um livro de visita, uma obra de

encomenda. O texto de Cardim diferencia-se dos outros textos administrativos pelo

entusiasmo e esperança que deseja passar com relação à “vinha brasileira”.

A narrativa de Cardim, bem como a visita da qual é eco, tem como função “consolar”

os padres do Brasil, oferecendo-lhes uma imagem positiva de sua missão. Contra uma ameaça

de desesperança, perceptível numa parte da correspondência, Cardim oferece um discurso de

reconforto espiritual. Seu texto é o resultado, ao mesmo tempo, do dever de informação e do

dever de consolação.

A narrativa não é um manuscrito isolado. Na coletânea de Évora, na qual se encontra

esse texto de consolação, ele é acompanhado de textos descritivos sobre a fauna, a flora e os

índios do Brasil. Para levar à conversão dos homens, é preciso conhecer perfeitamente seus

pensamentos e seus hábitos. O missionário deve assim deixar-se moldar pelo outro (entrar

pela porta do outro), para entrar em sua consciência e do interior moldá-lo de outra maneira

(para enfim sair do outro, que si torna um em si) e levá-lo para Deus. O trabalho de conversão

dos indígenas, assim definido, supõe um conhecimento muito refinado dos homens que se

procura converter. Essas são as categorias jesuíticas de descrição dos jesuítas.

Os jesuítas estavam integrados à sociedade portuguesa do século XVI e pautavam

seus atos, tendo como referenciais os valores deste contexto histórico, possuindo assim a

visão de mundo dessa sociedade cristã com seus dogmas e crenças. O fator preponderante da

cultura portuguesa, que servia de referência às suas ações, era a sacralidade da sociedade: a

crença no cristianismo, sendo comandado pela igreja católica sob a liderança do Papa e do

Rei. Segundo o pensamento da época, na estrutura social do período medieval todos

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desempenhavam uma função que lhes era própria, no reino de Deus: o rei governando, o

padre rezando, o soldado guerreando, o comerciante tratando, a mulher guardando a casa.

Tudo pertencia à esfera do sagrado, sendo assim compreendido. A visão de mundo cristão

estava impregnada em toda dimensão social. Sendo assim, dimensionado o serviço que as

pessoas faziam: serviço de Deus, serviço do Rei.

Nos escritos feitos pelo Padre Fernão Cardim, podemos constatar a importância das

correspondências como fator preponderante para a comunicação entre os jesuítas, bem como

para dar conhecimento aos superiores ou demais religiosos da realidade da missão jesuítica.

Nesse sentido, as correspondências se constituíam em meios preciosos de comunicação para

os religiosos jesuítas e, além disso as correspondências também permitiam ao centro:

[...] ao menos em teoria, exercer um controle sobre as práticas locais. Todas

as províncias remetiam regularmente relatórios de atividade ao centro

romano, num primeiro momento, a cada quatro anos, depois a cada ano – a

modificação da freqüência dependia do grau de dificuldade que representa a

redação desses relatórios. Os Catálogos, as Atas das congregações

províncianas, as cartas dos superiores locais e até dos jesuítas comuns (as

cartas soli dirigidas diretamente ao geral) eram também relatórios enviados

ao centro sobre a atividade da província. Essa correspondência era lida,

anotada pelo próprio geral, pelo assistente ou por seu secretariado.

(CATEUNAL-L’ESTOILE, 2006, p. 75).

Infelizmente, as informações sobre a estada do Padre Fernão Cardim no Brasil são

vagas, não havendo, até o momento, informações aprofundadas e detalhadas sobre sua vida no

período que esteve no Brasil. No ano de 1587, Cardim assumiu o cargo de Reitor do Colégio

da Bahia, nele permanecendo até 1593. As informações referentes a este período são restritas

a assinaturas em documentos e processos ligados ao santo ofício. Rodolfo Garcia argumenta

que a assinatura de Cardim, enquanto reitor do colégio, em documentos datados da época,

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constituem provas concretas de que o referido religioso foi reitor do referido colégio no

período citado.

Da Bahia em 1 de maio de 1590 datou a segunda e última carta da narrativa;

era reitor do colégio, cargo que ainda tinha em 1593, porque assinava em 29

e 31 de julho e 2 de agosto, logo após ao visitador do santo ofício Heitor

Furtado de Mendonça, as determinações que se assentaram em mesa sobre

alguns casos especiais. (GARCIA, 1980, p. 14).

E foi exatamente neste período que ele conviveu de perto com a visitação do Santo

Ofício, onde chegou a fazer denúncia na mesa de visitação, além de, na condição de Reitor do

Colégio da Bahia, esteve presente em várias sessões de confissões realizando denúncias e

argüição de réus. Para a sociedade da época, o pecado era o câncer que deveria ser eliminado,

de forma que cabia aos homens dotados de autoridade, na terra, investigar e efetivar punições

àqueles que não seguissem os preceitos da fé cristã, os quais estabelecidos pela sociedade da

época, deveriam ser respeitados e seguidos. Assim, todas as atitudes que transgredisse os

princípios da fé estabelecida se constituíam em transgressão da doutrina cristã, sendo passiva

de julgamento e punição pelas autoridades constituídas àqueles que não se enquadrasse. Após

o retorno para Portugal de Cristóvão Gouveia, Fernão Cardim assumiu a reitoria do Colégio

do Rio de Janeiro, permanecendo no cargo de 1594 a 1598. Ainda segundo Garcia, em 1598

Cardim.

foi eleito na congregação provincial para procurador da Província do Brasil

em Roma; regressava dessa missão, tendo embarcado em Lisboa a 24 de

setembro de 1601, em uma urca flamenga chamada “San Vicente”, com o

padre João Madureira, que vinha por visitador, e mais quinze jesuítas,

quando, mal tinha navegado três ou quatro léguas, teve vista a urca naus de

corsários ingleses. Levava ela trinta homens de peleja e estava bem

artilhada; travado o combate contra o inimigo duas vezes mais poderoso, foi

forçado a render-se no dia seguinte , depois de porfiada, mas inútil defesa.

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Eram os corsários comandados pelo capitão Francis Cook, de Dartmouth,

que agasalhou com caridade os padres Madureira e Cardim: esses e mais

outros foram conduzidos para Inglaterra; os outros, que ao todo eram onze,

foram desembarcados nas costas de Portugal. O padre Madureira morreu no

mar, a 5 de outubro de 1601. Cardim chegou à Inglaterra e aí permaneceu

até ser resgatado. Nessa ocasião, foi despojado dos manuscritos que levava

consigo e que chegaram depois às mãos do colecionador londrino Samuel

Puchas. (GARCIA, 1980, p. 15).

Conforme Cateunal-L’Estoile, posteriormente esses textos foram traduzidos e

publicados, em 1625, na coleção de viagens de Samuel Puchas. A autora descreve o episódio

da seguinte maneira, confirmando Garcia:

Em 1601, quando volta ao Brasil, depois de uma estada de três anos na

Europa, Fernão Cardim é capturado por piratas e levado como refém para a

Inglaterra. Nessa ocasião, ele é despojado de seus papéis, dentre os quais se

encontravam cópias dos tratados descritivos da fauna, da flora e dos índios

do Brasil, em 1584. Em 1625, os tratados ‘brasileiros’ são publicados em

tradução Inglesa por Samuel Purchas, numa vasta história do mundo

composto a partir de relatos de viagem. Esses clérigo inglês, que se

vangloriava de jamais se ter afastado mais de duzentas milhas de seu Essex

natal, foi um grande colecionador e editor de descrições de regiões

fabulosas e terras longínquas.( CATEUNAL-L´ESTOILE, 2006, p. 413).

Em 1604, retorna ao Brasil, após conseguir sair da Inglaterra. Assumindo novo

cargo, agora, como provincial da Companhia de Jesus no Brasil, cargo máximo da

Companhia, na Colônia. Também foi reitor do Colégio da Bahia, onde teve como discípulo o

Padre Antônio Vieira. Morreu na Bahia aos 75 anos, em 1625, pouco depois da primeira

tentativa de invasão holandesa. Segundo Garcia,

Cardim assumiu o governo da província, no momento inçado das maiores

dificuldades e incertezas. Velho e alquebrado, com o grande trabalho e má

vida daqueles tempos, padecendo falta de todo o necessário, como disse

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Vieira, caiu enfermo e veio a falecer a 27 de janeiro de 1625, naquela

mesma aldeia, que foi das primeiras que conheceu no Brasil, e o destino lhe

reservara para refúgio último da sua vida. (GARCIA , 1980, p. 17)

Após inúmeras peripécias e séculos de silêncio, Capistrano de Abreu encontrou o

manuscrito na biblioteca de Évora e provou a autoria de Cardim, publicando o texto integral

em 1885. Segundo Cateunal-L’Estoile,

Nos anos de 1880, a obra de Cardim aumenta, já que outro historiador do

Brasil colonial, Capistrano de Abreu, lhe atribui sucessivamente dois

tratados, anônimos, um sobre a fauna e a flora e outro sobre os índios do

Brasil, também encontrados em Évora, e que Abreu identifica como sendo a

versão portuguesa de um tratado anônimo publicado por Samuel Purchas

em Londres, em 1625. (CATEUNAL-L´ESTOILE, 2006, p. 380)

Em 1925, apareceria, enfim, a publicação integral da obra de Cardim, incluindo a

Narrativa Epistolar, sob o título de Tratado de Terra e da Gente do Brasil, o qual é um dos

textos principais sobre o Brasil do século XVI . Neste livro, encontramos informações sobre

geografia, fauna, flora, economia e, sobretudo, os costumes indígenas.

2.1

A permanência da religiosidade na construção das idéias sobre o Brasil

Procurar o apoio e a justificativa de certas afirmações, por meio do recurso da citação

ou da simples referência ao Deus cristão, ou aos elementos que compunham a religião cristã

como a Bíblia ou os santos foi, sem dúvida, um costume freqüente nos escritos do período

medieval. Nos textos do Padre Fernão Cardim, existem diversas descrições, nas quais o

exemplo bíblico ou a referência ao Deus cristão servem de reforço preponderante na

construção dos argumentos e justificativas, ao retratar os nativos:

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Este gentio não tem conhecimento algum de seu Creador, nem de cousa do

Céo, nem se ha pena ne-m gloria depois desta vida, e portanto não tem

adoração nenhuma nem ceremonias, ou culto divino, mas sabem que têm

alma e que esta não morre e depois da morte vão a uns campos onde lia

muitas figueiras ao longo de um formoso rio, e todas juntas não fazem outra

cousa senão bailar; e têm grande medo do demonio, ao qual chamam

Curupira, Taguaigba, Macachera, Anhanga, e é tanto o medo que lhe têm,

que só de imaginarem nelle morrem, como aconteceu já muitas vezes; não

no adorão, nem a alguma outra creatura, nem têm idolos de nenhuma sorte,

sómente dizem alguns antigos que em alguns caminhos têm certos postos,

aonde lhe offerecem algumas cousas pelo medo que têm delles, e por não

morrerem. Algumas vezes lhe apparecem os diabos, ainda que raramente, e

entre elles ha poucos endemoniados.” (CARDIM, 1980, P. 87)

Além da preocupação de Cardim com a questão da crença em uma divindade, ele

esboça um desejo de encontrar elementos ligados à história bíblica ou ao imaginário

cristão como forma de comprovar a existência dos povos nativos do Brasil, ligada às

narrativas bíblicas. Há em Cardim um desejo de cristianizar os nativos, mas também uma

tentativa de comprovar que os nativos fazem parte do ato criador do Deus cristão.

Objetivando agir, pautado em sua visão de mundo, os jesuítas estruturaram informações e

definiram procedimentos para alcançar suas metas e ações, organizando uma imagem do que

seja a cultura do outro, tomando como referencial os valores da cultura ocidental.

Na forma de pensar dos religiosos, eles estariam imbuídos de uma missão concebida

pelo Deus cristão que era o de catequizar aquele povo. Ser cristão significava aceitar todos os

dogmas da religião católica e aceitar o poder temporal estabelecido.

Dia dos Reis (6 de Janeiro de 84) renovaram os votos alguns irmãos. O

padre visitador antes da missa revestido em capa d’asperges de damasco

branco com diacono e subdiacono vestidos do mesmo damasco, baptisou

alquns trinta adultos. Em todo o tempo do baptismo houve bôa musica e

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motetes, e de quando em quando se tocavam as frautas. Depois disse missa

solemne com diacono e subdiacono, officiada em canto d’orgão pelos

indios, com suas frautas, cravo e descante: cantou na missa um mancebo

estudante alguns salmos e motetes, com extraordinaria devoção. (CARDIM,

1980, p. 150)

O poder temporal estabelecido merece algumas considerações já que Cardim o

esboça em seu texto, fazendo alusão, a visitas de autoridades portuguesas:

“[...] deu ao padre cartas em seu favor e dos indios para todos os capitães e

camaras das cidades e villas, encommendando-lhes muito o padre e o

augmento de nossa santa fé e que com elles tratassem particularmente todas

as cousas pertencentes não somente ao serviço de Deus, mas também ao

governo da terra e conservação deste seu estado.” (CARDIM, 1980, p.141).

Para Fernandes, transcrita para o papel, a palavra assume um teor de informação e

instrução, mesmo àqueles que estão distantes. A carta materializava a presença do rei,

investindo seu detentor de uma grande dignidade por ter sido escolhido por ele. Mas esse

detentor não era qualquer mensageiro, mas sim um digno representante de Deus, o qual todos

tinham a obrigação de servir, até mesmo o rei. “Ao dotar o visitador de cartas suas, o rei

concedia também um pouco do seu poder. Misturavam-se Igreja e Estado como símbolos de

poder e no efetivo exercício da colonização.” (idem, 1995, p. 9).

O padre visitador tratou por vezes com alguns prelados e letrados caso de

muita importancia sobre os captiveiros, baptismos e casamentos dos indios

e escravos de Guiné, de cujas resoluções se seguiu grande fructo e

augmento da christandade depois que chegámos ao Brasil. Tambem fallou

algumas vezes com El-Rei, qual com muita liberalidade lhe fez esmola de

quinhentos cruzados para os padres que residem nas aldeias dos indios, e

deu uma provisão para se darem ornamentos todas as igrejas que os nossos

têm nesta provincia, sc. frontaes e vestimentas de masco com o mais

aparelho para os altares, o que tudo importaria passante de dou mil

cruzados.” (CARDIM, 1980, p.141).

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Como os demais europeus cristãos, particularmente os franceses e o alemão Hans

Staden que registraram suas experiências em escritos atualmente disponíveis, os cronistas

portugueses que estiveram no Brasil durante o século XVI eram homens que conviviam em

uma atmosfera teológica-religiosa-cristã, e imbuídos de valores de sua cultura, tinham toda

uma forma de observar, abordar e visualizar o mundo ao seu derredor. O cotidiano religioso

português trazia aos indivíduos uma gama considerável de atividades como orações ao

levantar, cantorias, romarias, missas, procissões, confissões, batismos, entre outras, que

possuíam um caráter obrigatório. O cristão participava de cultos diários. Havia também um

grande número de dias respeitados em nome do Deus cristão. Todo esse processo era

acompanhado e fiscalizado pelas lideranças da fé cristã, os religiosos.

A religiosidade do povo português pode ser constatada a partir da quantidade

considerável de igrejas que havia em Portugal. Era comum, andando pelas ruas, observar

procissões e festejos de santos. Os cronistas e viajantes portugueses, que estiveram no Brasil

do século XVI, tinham uma cultura pautada na visão de mundo religiosa, na qual o sagrado

era o ponto primordial da vida dos homens. Isso significa que o cosmo era compreendido

como expressão da onipresença divina. O fator preponderante dessa organização social era a

idéia de unidade, ou seja, de um corpo místico de Cristo, do qual o corpo social fazia parte. A

sociedade fazia parte de todo um universo teológico, pautada na visão cristã de mundo. Deus

seria a referência última e principal, a igreja e o reino, referências mediadoras que levariam ao

encontro do Deus cristão. Valores, costumes, hábitos e instituições se constituiam à medida

que os indivíduos interiorizavam os dogmas da religião cristã.

“A bahia é cidade d’EL Rei e a corte do Brasil” (Cardim,1980. p. 144) . Esta

declaração de Fernão Cardim demonstra que, mesmo a figura do Rei estando distante, ele se

fazia presente nas pessoas do bispo, governador, ouvidor geral e outros oficiais de sua

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majestade. Não importava se as casas fossem poucas e de materiais diversos, quando

comparadas às da Europa, o que importava era a efetiva ocupação transformadora do espaço,

onde a ordem política e social do Reino estava representada, sustentando assim, a dimensão

citadina e criando um espaço semelhante ao de Portugal. Vemos, nessa declaração, um desejo

latente do homem português impor não somente valores culturais, mas uma estruturação de

todo o espaço físico, de acordo com os seus desejos.

A presença da idéia e da visão de mundo cristão não só impulsionava as ações, como

se constituia em sinal visível do mistério invisível e atuante. O universo teológico, político e

social, historicamente configurado, se estabeleceu nas prerrogativas do cristianismo,

estruturados no decorrer dos séculos, estabelecendo à igreja uma função de direção da vida

social, política e cultural. Essas idéias e visão de mundo serviram de justificativas para manter

a ordem estabelecida pelo Ocidente, bem como impor verdades inquestionáveis. Elas

contribuíram para efetivar ações, impor normas, valores, costumes, etiqueta, moldar

instituições, ritos, símbolos, toda uma linguagem, estilos, procedimentos e argumentos.

Cardim, em seus relatos, assim professa sua experiência na viagem:

Todo o tempo de viagem exercitámos nossos ministerios com os da náu,

confessando, prégando, pondo em paz os discordes, impedindo juramentos

e outras offensas de Deus, que em semelhantes viagens, se commettem

todos os dias. Á noite havia ladainhas ás quaes se achava o Sr, Governador

com seus sobrïnhos e mais da nau. Na semana santa houve mandato (7 de

Abril), ladainhas e Míserere em canto d’orgão. A manhã da gloriosa

Ressurreição (10 de Abril) se celebrou com muitos foguetes, arvores, e

rodas de fogo, disparando algumas peças d’artilharia, depois houve

procissão pela náu, e prégação. O governador, com todos os seus, trataram

sempre o padre com grande respeito e reverencia, algumas vezes o

convidava a jantar, o que o padre visitador lhe acceitou algumas vezes.

Toda a viagem se confessou commigo, e algumas vezes na Bahia; mas

como chegaram os frades Bentos, logo se confessou com elles. (CARDIM,

1980, p. 142 ).

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2.2

O cotidiano e as peculiaridades que antecediam as viagens marítimas

Antecedendo a viagem para além-mar havia todo um preparativo material e

espiritual. Aportada à beira das ribeiras das naus, a frota permanecia parada durante cinco

dias, período em que era abastecida por meio de pequenos barcos, que carregavam víveres e

munições do Armazém Real para dentro dos navios. Findado o abastecimento do navio, no

dia em que o navio fosse partir, uma missa era realizada em favor dos navegantes, solicitando

a proteção divina na jornada. Os marujos, então, eram dispensados para participar dos festejos

em comemoração ao santo de devoção do dia, até o momento de embarcarem. Essa descrição

permite entender o universo teológico místico que compreendia a todos os empreendimentos

e ações destes homens: a missa, os rituais que antecediam a viagem, a invocação de santos

protetores, tudo isso faziam parte de um universo e maneira de visualizar a vida.

Conforme Fernandes (1995), a visão de mundo e a forte presença religiosa fazia com

que todo o viajante se confessasse antes de iniciar a viagem. À bordo, durante a viagem, o

capelão celebrava missa todos os sábados, domingos, dias santos e de festa. O cotidiano da

viagem era repleto de manifestações de cunho religioso. Ao amanhecer, rezava-se uma oração

e, ao anoitecer, um padre-nosso e uma ave-maria, além da ladainha de todos os santos que era

reservada para as quartas e sextas. Os religiosos embarcados se encarregavam de atuar como

apaziguadores dos ânimos da tripulação, usando as comemorações religiosas para canalizar as

atenções religiosas em prol da vida espiritual e exercer um apertado controle social sobre os

embarcados. Pestana (2008), igualmente abordando este tema, afirma que os festejos

religiosos tinham também a função de manter a tranqilidade e a coesão entre os tripulantes.

Além disso, para os homens deste período, comemorar um dia santificado era uma alternativa

de tranquilizar as forças da natureza e buscar proteção das inconstâncias do tempo. No

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imaginário do rude universo naval lusitano, em que uma tempestade podia levar ao naufrágio,

a proteção divina representava uma garantia de sobrevivência.

Ainda segundo Pestana (2008), os dias dos santos eram comemorados com a maior

solenidade que poderia existir no mar. Havia muitos santos que despertavam uma devoção

especial, por parte dos marinheiros. Quando o mal tempo assolava uma embarcação, os

mareantes rogavam aos santos. Em seu fervor religioso chegavam, por vezes, a enxergar

aparições de santos ou anjos a socorrer os aflitos.

O Padre Fernão Cardim, em suas descrições sobre os indígenas, deixa explícita sua

visão sobre os nativos do Brasil, ao chamá-los de “gentio”. Esta palavra significa “pagão”, ou

seja, aquele que não professa sua fé no cristianismo. Para os jesuítas, os indígenas eram

criaturas que necessitavam conhecer que a “verdade” era a fé cristã. Sendo considerados

criaturas bestiais pelos jesuítas, os indígenas necessitavam dos religiosos para catequizá-los e

tirá-los do estado em que se encontravam.

Em diversos textos da época, os indígenas eram denominados de gentio. Esse termo,

que, originalmente, indicava todas as nações que não eram de hebreus, para os cristãos,

aplicava-se a todos os povos não convertidos ao cristianismo. Os ameríndios foram associados

aos gentios, ou seja, aos que, segundo a Bíblia, são convertidos por Paulo. Segundo a ótica

portuguesa, os índios eram pagãos por não serem cristãos, mas não eram infiéis ou hereges,

como os mouros ou os judeus, porque desconheciam a existência do cristianismo. Assim, os

portugueses logo categorizaram os povos nativos do Brasil dentro de seus objetivos,

considerando-os como povos que poderiam ser convertidos à fé cristã e passíveis de aceitá-la.

A associação dos povos nativos a uma fera define a visão que os jesuítas tinham em

relação a eles, reconhecidos pela sociedade portuguesa quinhentista como inferiores, e que

necessitavam ser salvos de uma condição, na visão cristã, de ausência da salvação. Para os

homens deste contexto histórico, era preciso resgatar os nativos da condição de pecado que

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viviam, já que para os jesuítas a forma de vida dos nativos era entendida como incorreta. Os

jesuítas tinham a missão e a condição dada pelo Deus cristão de proceder tal ação. Assim,

expõe Cardim sobre os nativos: “Emfim, por milagre tenho a domar-se gente tão féra; mas

tudo pôde um zeloso e humilde, cheio de amor de Deus, e das almas, etc” (CARDIM, 1980, p.

152).

Considerar o ameríndio um gentio ou fera trazia o dever de convertê-lo, o que

implicava considerá-lo digno de ser convertido. Associá-lo ao demônio, pertencente ao

imaginário cristão, nesse sentido, não era um empecilho, mas sim um fator que intensifica o

estímulo da catequese. Dessa maneira, duas idéias se somaram à essa prerrogativa: para uns

os nativos não eram, especificamente, servidores da horda do mal, ou seja, servidores do

demônio, mas eram iludidos por ele; para outros eram servidores dele por desconhecerem a

verdadeira fé dogmática cristã:

Ha nesta terra mais gentio para converter que em nenhuma outra capitania;

deu o padre visitador ordem, com que fossem dous padres dahi vinte e oito

leguas petição dos indios, que queriam ser christãos: espera-se grande fructo

desta missão, e descerão logo quatro ou cinco mil almas, e ficará porta

aberta para descer grande multidão de gentios. (CARDIM, 1980, p. 167).

No período em que os portugueses chegaram ao Brasil, estava fixado no imaginário

europeu a crença em feitiçaria, bruxaria e outras manifestações de práticas mágicas. O contato

com os povos nativos da América, além das implicações de caráter econômico e social,

constituiu-se em um grande impacto sobre esse imaginário, trazendo-lhes novos elementos e

possibilitando aos portugueses parâmetros que serviam para interpretar o que viam. Logo os

nativos foram diabolizados para dar embasamento às suas ações de dominação e efetivação do

poder. A idéia do demônio europeu foi transportada para América, onde seria combatida e

sobrepujada pelos portugueses portadores dos valores do mundo cristão.

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Na descrição feita por Cardim sobre o ritual antropofágico, ele começa esclarecendo

os preparativos:

Determinado o tempo em que ha de morrer, começam as mulheres a fazer

louça, a saber: panellas, alguidares, potes para os vinhos, tão grandes que

cada um levará uma pipa; isto prestes, assim os principaes como os outros

mandão seus mensageiros a convidar outros de diversas partes para tal lua,

até dez, doze leguas e mais, para o qual ninguem se excusa. Os hospedes

vêm em magotes com mulheres e filhos, e todos entrão no lugar com danças

e bailos, e em todo o tempo em que se junta a gente, ha vinho para os

hospedes, porque sem elle todo o mais agazalhado não presta; a gente junta,

começão as festas alguns dias antes,conforme ao numero, e certas

cerimonias que precedem, e cada uma gasta um dia. (CARDIM, 1980, p.

96).

Para Cardim, as práticas dos nativos, sobretudo, a antropofagia deveriam ser

extinguidas, pois, na visão do religioso, se tratava de atos que não deveriam estar presentes no

cotidiano daqueles nativos; o ato de ingerir a carne do semelhante era visto como uma ação

dos animais selvagens; aos homens não se admitia tal atitude, eis aí a importância da

catequese como forma de subtrair os costumes que, na ótica dos jesuítas, deveriam ser

substituídos pelos dogmas cristãos. Assim, para os religiosos, os nativos precisavam ser

salvos da condição e costumes em que estavam inseridos de pecado. Os Jesuítas utilizaram

como ferramenta para conversão a tática da incorporação do medo, a questão da legalidade

que iria afirmar o que era certo ou errado, no parâmetro cristão, bem como a incorporação de

devoções à Maria e aos santos da igreja cristã, objetivando a substituição de costumes dos

nativos pelos dos europeus cristãos.

Assim, o conhecimento da realidade, desta terra, dos costumes dos indígenas, se

constituem em fator imprescindível para proceder a catequese, conforme explicita Cardim

(1980):

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As terras são muito boas; estão por cultivar, por serem enfestadas dos

Guaimurés (XXIII), gentio silvestre, tão bárbaro que vivem com brutos

animaes nos matos, sem povoação, nem casas: a enseada traz muitos

pescados e peixes-bois: os lagostins, ostras e mariscos não têm conta: se

estas terras foram povoadas bem poderam sustentar todos os collegios desta

provincia e ainda fazer alguma caridades, maximé de assucar a esta

provincia; mas como agora está, rende pouco ou nada. O governador Men

de Sá fez doação destas terras ao collegio da Bahia (XXIV) (CARDIM,

1980, p. 147)

Na pratica, os jesuítas procederam a toda uma descrição do Brasil, daquele contexto,

com objetivos específicos: o de cristianizar, catequizar, colonizar, enfim, moldar a terra

Brasil, tendo como parâmetro a Europa, seus valores e idéias.

2.3

O espanto e a ação etnocêntrica diante do outro, do diferente

Como fica evidente lendo-se os autores portugueses do século XVI, o que mais

surpreendeu os lusitanos na por eles batizada, Terra de Santa Cruz foram os nativos. No

contato imediato, o visual dos indígenas já demonstrava o enorme abismo cultural entre

navegantes e nativos. Nos seus primeiros relatos, Pero Vaz de Caminha, o escrivão oficial da

armada portuguesa, retrata os nativos com bastante fascínio: seus escritos estão recheados de

elogios ao povo “descoberto”, os corpos destes em sua beleza natural, a robustez, a ausência

de roupas e o contato direto com a natureza encantaram o escrivão, e os demais navegantes.

Porém, no fascínio europeu pela vida “selvagem” dos nativos estava intrínseca uma

ótica preconceituosa. Nessa visão que admirava e louvava os nativos havia o “germe” da

missão civilizatória que impregnava os europeus. Essa ideologia de emissários da civilização

e da verdadeira Fé impelia os europeus a “civilizarem” os povos selvagens e catequizarem os

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pagãos. Então, desde o primeiro contato entre europeus e indígenas, estes primeiros tinham

em mente que era preciso catequizar e civilizar estes últimos.

O contato direto com a natureza que os índios possuíam, além de despertar uma

admiração nos portugueses, também era margem para que os portugueses deduzissem que os

indígenas eram “selvagens” em todos os sentidos que esse termo pudesse abranger. Estando

na categoria de “selvagens”, esses nativos eram inferiores aos europeus.

Essa falta de civilização foi, na visão dos lusitanos, comprovada quando eles

observaram que os índios não seguiam os rituais de hierarquia e submissão dos lusitanos.

Quando Cabral, comandante da armada, recebeu dois nativos em seu gabinete, esperou que os

indígenas o reverenciasse como faziam os marujos, que eram de patente inferior. Como não

houve uma reverência ou um sinal de cortesia por parte dos nativos, Cabral, Caminha e

demais portugueses presentes, logo deduziram que os índios eram um povo sem respeito, e,

conseqüentemente, sem civilização. Podemos notar aqui que os portugueses julgaram as ações

indígenas sob a ótica da civilização européia e nem chegaram a imaginar que o fato dos índios

não conhecerem os rituais sociais portugueses não fazia deles homens mal educados ou

desrespeitadores dos bons costumes dos europeus. No entanto, são classificados por Caminha

como incivilizados. Em seus relatos, este começa a difamar os nativos por não fazerem “sinal

de cortesia”, por não serem educados e, em última instância, por não possuírem uma

autoridade para dialogar de igual com o capitão Cabral.

Mesmo quando os europeus tentaram compreender as sociedades indígenas, o

preconceito e a visão de superioridade das sociedades européias prevaleceram. O português

Pero de Magalhães Gandavo (GANDAVO, 1980, p124), afirma que os índios não tinham Fé,

Lei e Rei porque na língua Tupi não havia as letras F, L e R. Ficam claras aqui as disparidades

e a ausência de uma lógica apurada nas classificações que os europeus faziam dos nativos da

América.

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Os primeiros relatos dos portugueses sobre as novas terras descobertas no atual

Brasil descreviam um lugar de clima ameno, com abundância de alimentos, obtidos sem

esforço ou trabalho. Além disso, a nudez dos nativos parecia aos olhos destes relatores uma

terra sem pecados, fazendo uma referência ao Édem da Bíblia que, na geografia do imaginário

cristão, poderia ser localizado.

Segundo Sérgio Buarque de Holanda, o paraíso, na mentalidade européia, era

insistentemente definido como o lugar em que e o frio e o calor não se extremavam e onde os

alimentos não apodreciam facilmente. De fato, nos primeiros relatos, pinta-se uma imagem

idealizadora das terras descobertas e seus habitantes.

Na construção das idéias sobre os nativos do Brasil, Cardim descreve as suas

impressões sobre a fauna, a flora e os homens que aqui encontrou, a forma de vida desses

povos, seus costumes e hábitos. Assim ele define as moradias dos nativos:

Moravam os indios antes de sua conversão, em aldêas, em umas ocas

(XLVI) ou casas mui compridas, de duzentos, trezentos, ou quatrocentos

palmos, e cincoenta em largo, pouco mais ou menos fundadas sobre grandes

esteios de madeiras, com as paredes de palha ou de taipa de mão, cobertas

de pindoba, que é certo genero de palma que veda bem agua, e dura tres ou

quatro annos. Cada casa destas tem dois ou tres buracos sem portas nem

fecho: dentro nellas vivem logo cento ou duzentas pessoas, cada casal em

eu rancho, sem repartimento nenhum, e moram duma parte e outra, ficando

grande largura pelo meio, e todos ficam como em communidade, e entrando

na casa se vê quanto nella está, por que estão todos á vista uns dos outros,

sem repartimento nem divisão. E como a gente é muita, costumam ter fogo

de dia e noite, verão e inverno, porque o fogo é sua roupa, e elles são mui

coitados sem fogo. (CARDIM, 1980, p. 152).

Conforme Fernandes (1995), as características que saltam aos olhos do observador e

merecem ser mencionadas para aqueles que estão além-mar são, basicamente, quatro e

mantêm entre si um elo que sedimenta uma imagem. Não possuem porta nem fecho, não

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possuem repartimento ou divisão, todos estão à vista uns dos outros, há um fogo permanente.

Nessas descrições de Fernão Cardim, vemos um tom de se estar diante do absurdo. Se

mantivermos em mente a idéia de ordem que a Companhia simbolizava, podemos imaginar a

estupefação diante da confusão de pessoas e ações, convivendo em um único espaço. A

dinamicidade do ambiente pode ser entendida como desordem.

Em sua carta, Pero Vaz de Caminha compara os nativos aos portugueses, fazendo

alusão à técnica. Conforme Castro, Caminha concluiu tratar-se de “gente bestial de pouco

saber” (Castro, 2003, p. 15). Outra observação feita por Caminha foi que os nativos, além de

não conhecerem o ferro, “não lavram, nem criam, nem há aqui, nem boi nem vaca, nem cabra,

nem ovelha, nem galinha” (Castro, 2003, p. 17). Podemos observar a estranheza com que o

europeu visualizava o cotidiano dos povos nativos, que de forma diferente à civilização do

Velho Mundo não demonstrava preocupação em trabalhar para estocar ou ajuntar bens, e isto

deixara estes homens europeus intrigados.

As habitações dos nativos também são citadas, para efeito de comparação, definindo-

as como “umas choupaninhas de ramo verde de tetos muito grandes como dentre douro e

minho” (Castro, 2003, p. 22). Outra postura que incomodara os portugueses foi a não menção

de cortesia dos nativos, fato este relatado por Caminha no episódio em que dois nativos são

levados à nau, fazendo os portugueses associarem este fato à questão da civilidade. Assim,

podemos observar que Caminha faz uma comparação entre os portugueses, “civilizados e

evoluídos”, e os nativos, “não civilizados”, sendo que o critério de civilidade para os europeus

seria estar inserido no contexto de seus valores e visão de mundo, ser cortês, conhecer a

agricultura ou alguma forma rudimentar de produção de objetos. Tudo isso era preponderante

para o critério dos europeus de civilidade.

Ao visualizar a realidade dos povos nativos do Brasil, Cardim demonstra-se

espantado diante da forma de vida dos nativos e compara as habitações destes a um inferno:

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Parece a casa um inferno ou labyrintho, uns cantam, outros choram, outros

comem, outros fazem farinha e vinhos, etc. e toda a casa arde em fogos;

porem é tanta a conformidade entre elles, que em todo o anno não ha uma

peleja, e com não terem nada fechado não ha furtos; se fôra outra qualquer

nação, não poderiam viver da maneira que vivem sem muitos queixumes,

desgostos, e ainda mortes, o que se não acha entre elles (CARDIM, 1980,

p. 152).

Os habitantes das terras distantes que os europeus acreditavam serem fantásticas

constituíam uma outra humanidade, fantástica também, e monstruosa. Conforme ocorreram as

grandes descobertas, foram elas migrando da Índia à Etiópia, Escandinávia e, finalmente,

América.

Na construção das idéias acerca do Novo Mundo, a América foi, muitas vezes,

associada aos dogmas pertencentes ao imaginário cristão, às terras descobertas, além de ser

associada, num primeiro momento, a um possível paraíso bíblico, também foi associado, de

forma mais intensa, a um inferno ou purgatório. Uma imagem quinhentista comum do índio

era a do mau, conforme comprovado pela literatura e iconografia da época. Muitos

identificavam os ameríndios como personagens pertencentes às hordas demoníacas. A própria

invenção da palavra canibal denota a imagem negativa acerca dos ameríndios, forjada já nos

primeiros contatos com os europeus.

2.4

Valores culturais da sociedade quinhentista portuguesa

Um aspecto importante que faz parte dos valores culturais e da forma de visualizar o

mundo que chocou os portugueses diz respeito ao fato dos nativos se apresentarem sem

nenhuma vestimenta. A sociedade quinhetista portuguesa, pautada na moral cristã, não

interpretava com bons olhos a nudez indígena, conforme pronuncia Cardim a esse respeito:

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Agora já andão alguns vestidos, assim homens como mulheres, mas

estimão-no tão pouco que o não trazem por honestidade, mas por cerimonia,

e porque lho mandão trazer, como se vê bem, pois alguns saem de quando

em quando com umas jornes que lhes dão pelo umbigo sem mais nada, e o

outros sómente com uma carapuça na cabeça, e o mais vestido deixão em

casa: as mulheres fazem muito caso de fitas e pentes. (CARDIM, 1980, P.

90)

Para Jacques Le Goff (1994:207), é de fundamental importância o código vestimentar

na cultura das sociedades. Não podemos limitar-nos a estudar o seu papel nas práticas sociais.

A sua presença nas produções do imaginário permite compreender melhor a função que

desempenham – muito além dos seus empregos propriamente literários ou artísticos. Estes

códigos funcionaram com particular eficácia na sociedade, pois ocupavam uma posição

essencial no estatuto social e no sistema de valores. Através deles se exprimiam, com muita

força, as intenções de aparência.

A presença de religiosos com suas vestes era não somente a identificação de uma

autoridade religiosos estabelecida, mas também servia de referência do ponto de vista da

idéias ocidentais da importância do estar vestido. Segundo Le Goff, umas das maiores

revoluções de cunho cultural, que diz respeito ao triunfo do cristianismo no Ocidente, é a que

se refere ao corpo. Na antiguidade, até mesmo as doutrinas que davam prioridade à alma, não

entendiam virtude ou bem que não se exercesse com a mediação do corpo. Para Le Goff, os

homens desse período concebiam o corpo como a prisão da alma e direcionava a visão sobre o

corpo nos seus aspectos sexuais. A idéia do pecado original, pecado de orgulho intelectual, de

desafio intelectual a Deus, foi modificado pelo cristianismo medieval, passando a ser

concebido como pecado sexual. A abominação do corpo e do sexo atinge o cúmulo no corpo

feminino. De Eva à feiticeira do final da Idade Média, o corpo da mulher é o lugar de eleição

do Diabo. É inegável a presença da repressão às práticas sexuais na Idade Média, Le Goff

afirma que:

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[...] uma das primeiras novidades trazidas pelo cristianismo foi o nexo entre

a carne e o pecado. Não é que a expressão pecado da carne fosse freqüente

na Idade Média. Mas é visível, a seu respeito, o processo que ao longo de

toda a Idade Média, por deslizamento de sentido, pôs a autoridade suprema,

a Bíblia, ao serviço da justificativa da repressão da maior parte da práticas

sexuais. (LE GOFF, 1994, p. 158)

No pensamento medieval, as mulheres indígenas eram tidas como instigadoras da

prática do canibalismo, um ato demoníaco. Faziam isso por andarem nuas, instigando o sexo,

levando todos, inclusive os clérigos portugueses, ao pecado dos maus pensamentos e das

práticas libidinosas. Essa imagem se explica pelo estereótipo feminino em voga na Europa,

segundo a qual a mulher é a agente do mal ou de satã.

Nesse aspecto, as idéias estabelecidas pelos primeiros viajantes que exploraram e

relataram o território recém-descoberto devem ser entendidas como condicionamentos

históricos de uma longa tradição da ação humana. Na perspectiva de Jacques Le Goff, as

imagens devem ser entendidas como elementos que interessam ao historiador e que se

apresentam como coletivas, influenciadas pelas vicissitudes da história que se formam,

modificam-se, transformam-se e exprimem-se em palavras e em temas. Tais idéias que nos

são legadas pelas tradições passam de uma civilização a outra e circulam no mundo

diacrônico das classes e das sociedades humanas.

No final da Idade Média, podemos constatar como as viagens reais ou imaginárias

orientaram os viajantes para o domínio da cosmografia e da geografia do mundo medieval.

Essas percepções do universo possuem ligações efetivas com as estruturas mentais. É

importante estabelecer as relações da viagem com o conto e o mito, considerando que muitos

elementos presentes no imaginário medieval, como monstros e terras imaginárias mesclavam-

se com realidades na mentalidade do homem deste período.

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Podemos constatar um aspecto importante na longa tradição literária, muito comum

nos relatos de viagens dos séculos XII a XIV, que é o fato do ver ou ouvir. Na mentalidade

medieval, não havia diferença entre o ver ou ouvir, acreditava-se no que se ouvia falar. Era

muito comum durante o século XVI os escritores tomarem por verdade o que se ouvia falar,

sem distinguir as informações que circulavam nos meio ultramarinos.

A crença, por parte dos medievos, em animais aparentados a dragões dos relatos

míticos, em lagartos monstruosos e em serpentes com poderes estranhos estava ainda muito

presente no período quinhentista. Le Goff (1994) refere-se a um “corpus de mirabilia”,

apresentando um texto de Gervásio de Tilbury, do início do século XIII, e deixando claro

ainda que existe, na Idade Média, uma certa naturalidade na maneira de aceitar o imaginário.

Poderíamos dizer, então, com relação ao século XVI, que os relatos circulavam e os enredos

estavam, de certa forma, inseridos nas ações do dia-a-dia. Seres estranhos surgiam sem alarde;

eram aceitos e viviam integrados ao mundo real. O fabuloso e o cotidiano não estavam

separados de forma intransponível.

Em sua obra Tratados da Terra e Gente do Brasil, composta de relatos e de cartas, o

Padre Fernão Cardim narra suas impressões de viagens sobre a Bahia, Espírito Santo, Rio de

Janeiro e São Vicente. Entre as várias observações que esse viajante português fez, vemos

também uma preocupação com os homens marinhos e os monstros do mar:

Estes homens marinhos se chamão na língua Igpupiára; tem-lhe os naturaes

tão grande medo que só de cuidarem nelle morrem muitos, e nenhum que o

vê escapa; alguns morrerão já, e perguntando-les a causa, dizão que tinhão

visto este monstro; parecem-se com homens de boa estatura, mastem os

olhos muito escovados (...) O modo que tem em matar he: abração-se com a

pessoa tão fortemente beijando-a, apertando-a comsigo que a deixão feita

toda em pedaços, ficando inteira, e como a setem morta dão alguns gemidos

como de sentimento, e largando-a fogem; e se levão alguns comem-lhes

somente os olhos, narizes e pontos dos dedos dos pés e mão, e as genitálias,

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e assi os achão de ordinário pelas praias com estes cousas menos.

(CARDIM, 1980, p. 50).

2.5

Os mapas e as imagens – construção das idéias sobre o Brasil

Os portugueses do século XVI também produziram toda uma geografia imaginária,

em relação ao espaço conhecido e desconhecido, embora tivessem vivenciados avanços do

ponto de vista técnico que não deixaram de acentuar suas impressões sobre o espaço físico.

Observando os mapas ou desenhos que retratam o Brasil do século XVI, constatamos uma

visualização da terra com animais e pessoas exóticas. Podemos observar também a presença

do imaginário europeu, sobretudo, o interior que, segundo a mentalidade européia, seria

povoado por animais “fantásticos” e povos bárbaros. O critério avaliativo do português

europeu e outras sociedades européias era o comparativo, ou seja, comparar o nativo à sua

terra, aos seus hábitos e costumes com a européia. Neste sentido, construiu-se o ideológico

acerca do “novo mundo” que se constitui, a partir das caravelas, do litoral, do contorno dos

continentes descobertos, apresentando-se como prova da ligação com a Europa.

Assim, foram criados mapas contendo especificidades do imaginário da época,

sobretudo ligado ao mundo bíblico, como a idéia do Éden, por exemplo, que estava presente

em diversos mapas daquele período. Nesse sentido, esses viajantes, embora tenham

vivenciado avanços científicos que marcaram a sua época, ao vivenciarem as mais diversas

experiências em lugares desconhecidos, não estavam livres de julgamentos pré-concebidos,

isto é, não conseguiam romper com uma longa tradição das narrativas de viagens do período

medieval. Desse modo, artistas, escritores e cartógrafos – apesar dos rigores nas suas

observações e nos detalhes com que procuravam descrever a sociedade, os animais e a

geografia desconhecida – eram, potencialmente, sérios candidatos a figurarem esse novo e

estranho no costumeiro fantástico tão presente na literatura e na iconografia produzida,

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principalmente, pelo homem europeu da Idade Média. Mesclam-se, portanto, nessas imagens,

descrições reais fundamentadas no conhecimento geográfico, racional e científico com as

crenças e as fantasias herdadas dos viajantes medievais.

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CAPÍTULO III

A VISÃO SOBRE OS NATIVOS EM CARDIM: A PERMANÊNCIA DE UM OLHAR ETNOCÊNTRICO

Muito se escreveu sobre os povos indígenas durante todo este período da história.

contudo sempre do ponto de vista do “civilizado” e nunca do ponto de vista do indígena.

Sendo assim, os escritos sempre tiveram um teor excessivamente romântico ou

preconceituoso em relação aos nativos que habitaram esta terra. Os jesuítas viam nos

indígenas povos carentes do conhecimento da “verdade absoluta cristã”. Os cronistas

viajantes, em seus relatos, ora deixam implícito a visão edênica, ora a visão preconceituosa

em relação à cultura indígena e seus costumes. Conforme Ribeiro (1982),

a questão indígena não pode ser entendida fora dos quadros da sociedade

brasileira, mesmo porque só existe onde e quando índios e não-índios

entram em contato. É, pois, um problema de interação entre etnias tribais e a

sociedade nacional, cuja compreensão é dificultada pelas atitudes

emocionais que se tende a assumir diante dele. (RIBEIRO, 1982, p.193).

De forma geral, essas visões perduraram durante os séculos, e estas são as imagens

que os “civilizados” têm em relação aos nativos que viveram nas terras brasileiras. Na maioria

das vezes, os sertanejos trabalhadores e seus patrões julgam os indígenas como preguiçosos,

cruéis, sujos, enfim como, empecilho às suas aspirações. Muitos deles ficavam, estas visões

são fruto de cobiça sobre as terras desses nativos, para extrair os recursos naturais, ou cultivá-

las, possibilitando-lhes lucros. Conforme Melatti (1994, p. 193), “tais interesses favorecem à

manutenção de uma série de idéias preconceituosas, que não somente desvalorizam o trabalho

indígena, como também implicam dizer que as terras indígenas seriam melhor aproveitadas se

estivessem nas mãos dos civilizados”.

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Darcy Ribeiro também apresenta esta questão, afirmando que, muitas vezes, se

observa

a atitude etnocêntrica, dos que concebem os índios como seres primitivos,

dotados de características biológicas, psíquicas e culturais indesejáveis, que

cumpre mudar, para compeli-los à pronta assimilação aos nossos modos de

vida. Esta é a atitude tradicional dos missionários que, movidos pelo desejo

de salvar almas, consideram sua tarefa a erradicação de costumes, a seu ver

heréticos e detestáveis, como a antropofagia, a poligamia, a nudez e outros.

É, também, a atitude daqueles que julgam uma vergonha para “um povo

civilizado” ter patrícios que se pintam com urucu, afiam os dentes,

deformam os beiços e as orelhas, vivem em choças imundas e falam línguas

ridículas. Estes se propõem lavar a nação desta mancha infamante,

escondendo a existência dos índios e, simultaneamente, os obrigando a

adotar as única formas corretas de vestir, comer, casar e falar, que

conhecem. (RIBEIRO, 1982, p. 193).

Para os povos indígenas, a terra se constitui em um bem coletivo e tem como função

possibilitar a satisfação das necessidades de todos os membros da sociedade. Assim, na

comunidade indígena, todos os indivíduos possuem o direito de usufruir dos recursos que são

disponibilizados pelo meio-ambiente, como a caça, a pesca e a coleta. A idéia de propriedade

privada não existe para os nativos em relação à terra e ao seu território. Apesar do produto do

trabalho permanecer individual, as obrigações existentes entre os indivíduos asseguram a

todos o usufruto dos recursos. Muitos cronistas do século XVI, em uma postura etnocêntrica,

visualizavam os indígenas como criaturas impuras, como animais irracionais ou bárbaros, nas

palavras do padre Fernão Cardim.

Conforme Laplatine, a palavra “bárbaro” possui origem no grego antigo e significa

“não grego”. Era como os gregos visualizavam os povos pertencentes a outras culturas, ou

seja, as pessoas que não eram gregas e aqueles povos, cuja língua materna não era a língua

grega. Na sua origem a palavra era uma alusão aos persas, em que o idioma gutural os gregos

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definiam como “bar-bar-bar”. Também os romanos passaram a ser chamados de bárbaros

pelos gregos, no entanto, foi, exatamente, no Império Romano que a expressão começou a ser

usada com uma conotação de “não-romano” ou “incivilizado”. Era um termo perjorativo que

não condizia com a realidade, pois, apesar de não compartilharem de alguns aspectos da

cultura romana e não falarem o latim, tais povos tinham cultura e costumes próprios. Foi

nessa perpectiva que Cardim fez menção aos nativos como seres incivilizados, brutais e

sujos.

Claude Levi-Strauss, em “Raça e História”, afirma não existir nenhuma estudo que

permita afirmar que uma raça seja superior ou inferior à outra. No entanto, para os homens do

século XVI, e até mesmo da atuliadade, os povos indígenas eram interpetrados como

indivíduos preguiçosos, selvagens e bárbaros; é o olhar centrado no indivíduo que julga

segundo seus valores e suas crenças. O autor afirma, em uma conferência na UNESCO,

abrindo uma campanha contra o racismo:

Todas as vezes que somos levados a qualificar uma cultura humana de

inerte ou de estacionária, devemos, pois, perguntarmo-nos se este

imobilismo aparente não resulta da nossa ignorância sobre os seus

verdadeiros interesses, concientes ou inconcientes, e se, tendo critérios

diferentes dos nossos, esta cultura não é, em relação a nós, vitíma da

mesma ilusão. Ou melhor, apareceríamos um ao outro como desprovidos de

interesse, muito simplesmente porque não nos pareceríamos. (LÉVI-

STRAUSS, 1976, p. 73).

O que Lévi-Strauss quer mostrar é que julgamos ser ativas aquelas culturas que se

deslocam no mesmo sentido da nossa e estacionárias as que procedem em direção oposta, o

olhar em relação a essas culturas é definido pela ausência dos valores da cultura do “eu”,

dando margem a todos os processos de preconceito e olhar diforme em relação ao outro que é

observada numa ótica etnocêntrica.

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3.1

A visão romântica em relação aos nativos do Brasil

Seguindo uma perpectiva das idéias estabelecidas no Brasil, que retratam os

indígenas na atualidade, os nativos são vistos dentro de uma ótica romântica, advinda dos

relatos deixados por alguns cronistas. Tais relatos reforçaram as idéias de pensadores

europeus do passado e foram resgatadas por diversos escritores brasileiros como José de

Alencar, Gonçalves Dias, que, em suas obras, divulgavam essa visão romantizada em que o

índio é retratado como ativo, cortês, corajoso. Conforme explicita Ribeiro (1982),

a atitude romântica dos que concebem os índios como gente bizarra,

imiscível na sociedade nacional, que deve ser conservada em suas

características originais, quando mais não seja como uma raridade que a

nação pode dar-se o luxo de manter, ao lado dc museus e dos jardins

zoológicos. Propugnam pelo estabelecimento de ‘reservas’, onde os índios

sejam postos de quarentena, para que possam viver livres de perturbações e

servir, eventualmente, de amostra do que foi a humanidade em eras

prístinas. (RIBEIRO, 1982, p. 194).

Esta visão acerca dos nativos, considerando-os como os mais brasileiros entre todos,

é equivocada e não resolve o problema dos indígenas. O que na verdade deve ser considerado

de forma objetiva é que “o Brasil se formou à custa da conquista dos territórios indígenas.

Antes que se formasse o Brasil, as populações indígenas já existiam no continente. As

fronteiras do Brasil foram traçadas sem levar em conta a posição das tribos indígenas.”

(MELATTI, 1983, p.195).

Nas descrições dos cronistas do século XVI, o Brasil era pensado como uma terra de

abundância, e era feita toda uma propaganda no sentido de se apropriar e efetivar

investimentos nestas terras. Ou seja, as terras do Brasil, na ótica dos cronistas quinhentistas,

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pertenciam por direito a Portugal. As populações indígenas estabelecidas eram visualizadas

como empecilhos que deveriam, de alguma forma, ser incluídas no processo de colonização

como instrumentos desse processo. Àqueles que se colocassem contrários ao processo

deveriam ser eliminados, numa perspectiva genocida ou ainda etnocida, subtraindo seus

valores e cultura e impondo os valores e cultura dos colonizadores. Cardim, em seus escritos,

deixa explícita essa visão ao retratar a terra. Na visão do religioso, os portugueses estavam

imbuídos de uma missão dada pelo Deus cristão que era o de levar o conhecimento dos

dogmas da fé cristã a esses povos. Dessa forma, todos os mecanismos utilizados para atingir

este objetivo estavam pautados nessa visão, ou seja, havia um referencial, que era a religião

cristã, e obrigações, por parte dos religiosos, a serem atingidas. Nessa perspectiva, as terras,

os costumes indígenas, enfim, o cosmos, deveriam ser cristianizados. Na mentalidade desses

homens, tudo pertencia aos portugueses, pois foi dado pelo Deus cristão, e eles tinham uma

obrigação, que era impor sua forma de pensar e ver o mundo aos nativos, mesmo que, para

isso, fosse necessário se utilizar da imposição de suas concepções e valores.

Os nossos têm aqui casa, aonde residem de ordinário seis; tem quatro

cubículos de sobrado bem acomodados, igreja e oficinas; está situada em

lugar alto sobre o mar: tem sua cerca aprazível, com coqueiros, laranjeiras,

e outras árvores de espinho e frutas da terra: as árvores de espinho são nesta

terra tantas que os matos estão cheios de laranjeiras e limoeiros de toda

sorte, e por mais que cortam não há desinçá-los. (CARDIM, 1980, p. 147)

Segundo Laraia (2006), a forma como se visualiza o mundo, as prerrogativas de

ordem moral e valorativa estabelecidas, as dessemelhanças nos comportamentos de cunho

social e, mesmo a postura do corpo, são produtos de uma herança cultural, ou seja, resultante

do proceder de uma determinada cultura. Dessa forma, procedimentos como o modo de agir,

vestir, caminhar, comer, bem como as diferentes linguagens, fazem parte deste contexto

cultural estabelecido no espaço e no tempo. A postura etnocêntrica se constitui em fator

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responsável, em situações extremas, pela ocorrência de grandiosos conflitos de cunho social.

A realidade “nós e os Outros’’ manifesta essa tendência em diferenciados níveis.

Ainda segundo Laraia, a atitude de colocar à margem os que são dessemelhantes,

pelo motivo de pertencerem a outro grupo, pode ser percebida dentro de uma mesma

sociedade. Atitudes etnocêntricas dão origem também a julgamentos negativos das estruturas

culturais de povos diferentes. Mesmo atividades relacionadas à fisiologia humana, podem

causar estranheza e incômodo. Dessa forma, todo sistema cultural tem a sua particular lógica,

e a hipótese de tentar mudar a coerência de um sistema para outro significa um ato primário

do pensamento etnocêntrico. Lamentavelmente, a tendência mais comum é de se considerar

correto somente o próprio sistema e conferir aos demais um enorme grau de irracionalidade.

A coerência de uma atitude cultural, unicamente, pode ser examinada, considerando o sistema

em que está inserido. Pode-se constatar a influência dos valores culturais do Padre Cardim

quando o mesmo descreve os hábitos e costumes dos indígenas, em diversas passagens o

caráter etnocêntrico é evidente. Segundo o religioso,

têm alguns dias particulares em que fazem grandes festas, todas se resolvem

em beber, e durão dous, tres dias, em os quaes não comem, mas sómente

bebem e para estes beberes serem mais festejados andão alguns cantando de

casa em casa, chamando e convidando quantos achão para beberem , e

revesando-se continuão estes bailos e musica todo o tempo dos vinhos, em o

qual tempo não dormem, mas tudo se vae em beber, e de bebados fazem

muitos desmanchos, e quebrão as cabeças uns aos outros, e tomão as

mulheres alheias, etc.. (CARDIM, 1980, p.89).

Dessa forma, conforme a descrição do padre Cardim, podemos constatar que este, ao

descrever os hábitos dos nativos do século XVI, deixa claro a presença das idéias

estabelecidas e dos valores da cultural do ‘eu’, principalmente, quando formula considerações

relacionadas aos hábitos e costumes dos nativos, em especial, a bebida e a festa esboçado na

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citação anterior.

3.2

A perspectiva estatística: o olhar estatístico sobre os povos indígenas

Há pessoas que pensam a questão indígena numa perspectiva estatística. Para elas, o

Brasil tem muitos outros problemas para serem resolvidos e que devem ser tratados como

prioridades. Afirmam que os indígenas, em relação à população brasileira, são em número

muito reduzido e que, sendo assim, não há por que se preocupar com o problema indígena. No

entanto, pode-se constatar que este pensamento é contraditório, uma vez que ”a população

indígena constitui um grupo de pessoas que necessitam de proteção e justiça. E a justiça não

leva em conta os números: ela é devida tanto aos grupos numerosos como aos grupos

pequenos, tanto a uma coletividade como a uma só pessoa”. (MELATTI, 1983, p. 196). Na

prática, conforme Ribeiro (1982), esse tipo de pensamento revela que

os índios são objeto de discriminação racial por parte das populações com

que estão em contato, as quais, diante da diferença de costumes, de

concepções e de motivações, bem como da pobreza do equipamento

indígena de luta pela vida, reagem, considerando-os tipos subumanos,

desprezíveis, em quem podem atirar como se fossem animais; os índios

estão vivendo dramático processo natural, desencadeado pela conjunção

da cultura tribal com a sociedade nacional, que pode conduzi-los a um

colapso, por perda do gosto de viver, desespero diante do destino que lhes

é imposto, seguido de desmoralização e extinção. (RIBEIRO, 1982, p.

195).

Os povos nativos sofreram um processo de dizimação de caráter etnocida e genocida.

Tribos nativas, que não haviam estabelecido contatos, por isso indenes de contágio, foram

posteriormente vitimadas de forma sucessiva pelos impactos das ações e pestes trazidas pela

civilização ocidental, e, conseqüentemente, tiveram perdas demográficas consideráveis. As

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conseqüências dizimadoras das doenças desconhecidas, juntamente com o acréscimo de

elementos ligadas à realidade do mundo ocidental, como a força de trabalho compulsório e do

etnocídio, conduziram a maior parte dos grupos indígenas à extinção. Para Ribeiro (1982),

a atitude absenteísta, dos que, considerando inevitável e irreversível o

processo de expansão da sociedade nacional sobre seu próprio território,

que a leva ao encontro de todos os remanescentes das populações indígenas

ainda isoladas e autônomas, postulam a inevitabilidade do contato, da

deculturação e da desintegração progressiva das culturas tribais, seguidas,

necessariamente, da extinção do índio como etnia, e da incorporação dos

remanescentes. (RIBEIRO, 1982, p. 194).

A população nativa do Brasil foi, consideravelmente, reduzida em decorrência de um

genocídio de projeções grandiosas. Tal genocídio se efetivou por intermédio da guerra de

assolação, do trabalho escravo que, na prática, se constituiu em violência quanto aos valores

culturais estabelecidos nas diversas etnias existentes no Brasil do século XVI, e da virulência

que os contatos com os europeus permitiram, tendo um efeito devastador para os indígenas. A

estes aspectos esboçados seguiu-se um etnocídio que, de forma igual, teve um caráter

dizimador, e que se estabeleceu através da desmoralização dos valores culturais nativos pela

catequese; como também da pressão da sociedade ocidental que, de forma constante, se

apropriava das terras indígenas.

3.3

A mentalidade burocrática: os povos nativos numa dinâmica burocrática

Uma outra expressão peculiar diz respeito à mentalidade burocrática, que está

relacionada à atuação de funcionários públicos desvinculados da luta e da causa indígena. Na

maioria das vezes, estão distantes nas grandes cidades, alheios aos problemas indígenas, e o

que é pior, sem nenhuma formação indigenista. É o caso da FUNAI, que, para ocupação de

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cargos-chave em sua administração, nenhuma formação indigenista tem sido exigida. Na

prática, conforme afirma Melatti (1994),

[...] tanto o antigo Serviço de Proteção aos Índios como a atual Fundação

Nacional do Índio não incluíram, seja no seu quadro diretor, seja como

consultores, representantes dos indígenas, o que bem demonstra não

somente que os índios não decidem sobre sua própria sorte, estando seu

destino à mercê da sociedade nacional dominante, como também que não

lhes foi dado até agora o devido preparo para assumir tais encargos em nível

de igualdade com os civilizados. (MELATTI, 1982, p. 191).

Esta forma de tratar os povos indígenas demonstra o despreparo e a ausência de

comprometimento por parte das autoridades estabelecidas, na condução das questões

indígenas. De fato, a proteção que o governo afirma dispensar aos povos indígenas, através da

legislação em vigor, não tem acontecido, em virtude do desvirtuamento da tutela. Segundo

Junqueira (2008), o governo,

ao invés de defender firmemente os direitos e os interesses dos índios, [...]

usa a tutela para dominá-los e controlá-los. Toma decisões graves, como a

redução de territórios, transferência de grupos de um local para outro; usa

terras para empreendimentos econômicos estranhos à comunidade e outras

medidas desse teor. Como não se faz uma avaliação responsável desses atos

do governo, crimes não são punidos e tendem a se repetir. (JUNQUEIRA,

2008, p. 80).

Junqueira explicita que a ação governamental “ao invés de defender os direitos dos

povos indígenas”, tem sido utilizada para dominar e controlar esses povos. Procede ações no

sentido da redução das terras indígenas, bem como transferência de grupos de um local para o

outro; usa as terras destes para empreendimentos estranhos à comunidade nativa, além de

outras ações de caráter impositivo. Para Junqueira:

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o código penal brasileiro declara que os índios são ‘relativamente’ capazes,

da mesma forma que os brasileiros maiores de dezesseis e menores de vinte

e um anos. Devem, portanto, serem assistidos em certos atos. No Direito

Nacional, o Instituto da tutela visa o benefício daquele que, embora tenha

direitos, não tem condições para exercitá-los. Sua finalidade seria, assim, a

de garantir ao tutelado esses direitos. (JUNQUEIRA, 2008, p. 79).

Na prática, a mentalidade burocrática emperra o processo de resolução das questões

fundamentais da causa indígena, e configura-se em uma postura estabelecida, historicamente,

já que as questões relacionadas à causa indígena não têm sido encaradas com seriedade e

respeito aos valores e forma de pensar do outro. Podemos observar na descrição de Cardim

uma estrutura burocrática da missão catequética. É alusiva deste fato a seguinte passagem:

Gastámos nesta missão janeiro e parte de fevereiro, e a segunda-feira depois

do primeiro domingo da quaresma (20 de fevereiro de 1584) chegámos á

casa, não sómente recreados, mas também mui consolados com o fructo que

se colheu. Logo se distribuiram as prégações, sc. o padre Quiricio Caxa dos

domingos pela manhã em nossa igreja; o padre Manuel de Castro (LIII) á

tarde; estes dous padres e o padre Manuel de Barros, são os melhores

prégadores que ha nesta provincia. Eu préguei os domingos pela manhã na

Sé, aonde se achava a maior parte da cidade. Das prégações de todos se

seguiu grande fructo, seja Nosso Senhor com tudo louvado. (CARDIM,

1980, p.158).

Dessa forma, no contexto do século XVI, havia toda uma estrutura burocrática com

objetivos específicos em relação aos nativos. Os padres jesuítas visualizavam que sua ordem

religiosa seria a única capaz de tirar os nativos da condição de pecado em que estavam

emergidos. O padre Cardim se refere com entusiasmo à missão do Brasil, assim como percebe

os responsáveis pela missão como pessoas preparadas e capazes para realizar os objetivos

propostos, que é a catequese e a conversão dos nativos.

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3.4

A mentalidade empresarial: os nativos vistos em uma perspectiva empresarial

Nesta forma de pensar jesuíta, pode-se, com tranqüilidade, inserir uma outra forma

de pensar relativa aos nativos: a mentalidade empresarial. Na ótica dos que acreditam nesta

ponderação, os indígenas devem ser inseridos na lógica dos “civilizados”, ou seja, objetiva-se

incorporar os valores acerca do trabalho do mundo dos “civilizados” nos nativos. Procura-se

fazer com que estes absorvam a idéia do trabalho para produzir o excedente, desconsiderando,

dessa forma, o trabalho para subsistência, que é o realizado por estes povos na prática. Esta

mentalidade se constitui em uma violência às tradições indígenas que são voltadas, sobretudo,

ao trabalho de subsistência. Para Ribeiro,

a ideologia brasileira quer o índio — e também o negro — como um futuro

“branco” dissolvido pela amalgamação racial e pela assimilação, na

comunidade nacional. Entre os desejos, a ideologia e os fatos, medeiam,

contudo, grandes distâncias, tão grandes que à propalada ideologia

assimilacionista brasileira, com respeito aos índios, não corresponde uma

atitude assimilativa. (RIBEIRO, 1982, p. 196).

Assim, essa forma de entender os nativos se constitui em uma idéia que possui a

mesma lógica dos jesuítas que é o de subtrair os valores do mundo indígena pelos valores do

mundo ocidental. Na prática essa postura tem como conseqüência a desvalorização e negação

da cultura indígena no âmbito da sociedade brasileira e afirmação da postura etnocêntrica em

relação aos indígenas.

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3.5

A questão indígena: idas e vindas do poder constituído

No que se refere à questão indígena na República, vê-se o confronto com três

tendências que se defrontam entre si e apontam ações no sentido de solucionar um problema

que perdurava há séculos, sem uma definição e com prejuízos concretos para as diversas

etnias de povos que habitavam o território brasileiro. Melatti, explicita as diversas

ponderações do Brasil Republicano sobre a questão indígena:

[...] Ao iniciar-se o Governo da República, havia, em vários pontos do

território, lutas dos civilizados contra os índios, com o objetivo de despojar

estes últimos de suas terras. Esses choques entre índios e civilizados se

refletiram nas grandes• cidades, onde provocaram intensa discussão do

problema na imprensa em reuniões científicas, em instituições humanitárias,

cativado o interesse do público. Um cientista de renome chegou ao cúmulo

de propor a exterminação dos índios que impedissem a colonização

argumentando que em nada podiam contribuir para a civilização. Reagindo

contra essa solução desumana apresentavam-se duas correntes de opinião.

Uma que propunha entregar o cuidado dos índios às instituições régios;

outra, à assistência leiga. Contra a primeira havia o fato de as missões

religiosas do passado não terem conseguido conversão dos índios nem sua

defesa diante daqueles que desejavam seus territórios, nem deter seu

desaparecimento pelas doenças que os contaminavam. A favor da segunda

havia o trabalho de Rondon com relação aos índios que encontrara, na sua

tarefa de fazer a ligação telegráfica entre Cuiabá e o Amazonas. Sem

empregar a força conseguira contatos pacíficos com os índios dos territórios

a serem atravessados pela linha telegráfica. (MELATTI, 1994, p.189-190).

Assim, conforme Melatti, a primeira tendência, com relação à questão indígena,

defende que nada pode parar a chamada “marcha inexorável do progresso”, enquanto um

segundo grupo, ainda querendo dar continuidade aos trabalhos do período colonial e do

Império, pretende dar continuidade ao binômio “catequese e civilização”. Um terceiro grupo,

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que pretende realizar a incorporação gradual dos índios à nação brasileira, quer oferecer uma

assistência ao índio apoiando-se na natureza leiga das instituições republicanas. Conforme

Melatti:

uma característica que distingue o período republicano dos anteriores e o

fato de o Governo não mais se interessar em promover o trabalho

missionário. Enquanto que no período colonial e no imperial a Igreja

Católica era reconhecida como oficial e a iniciativa da catequese partia do

próprio Governo. Com a República, entretanto, a Igreja foi separada do

Estado, deixou de ser oficial. O Governo republicano, embora não mais

ligado a nenhuma religião, de nenhum modo criou obstáculos para que os

missionários, por sua própria conta, tentassem catequizar os índios. O fato

de a Igreja Católica não ser mais oficial, facilitou, sem dúvida, a promoção

de serviço missionário entre os indígenas por parte de varias igrejas

protestantes. (MELATTI, 1994, p. 189).

O discurso sobre os nativos do Brasil foi construído dentro da concepção de mundo

européia. Os escritos de Fernão Cardim, objeto desta pesquisa, deixa explícito, na sua

descrição, o seu espanto, a sua visão etnocêntrica, os seus referenciais, a sua cultura, os seus

valores, o modo de ver a vida e o mundo ao seu redor. Homem de seu tempo, Cardim, ao

descrever os indígenas, deixa clara a visão etnocêntrica em seus escritos, assim como também

demonstra o seu deslumbramento diante da natureza e dos costumes dos povos em que

mantém contato direto. Essa inquietação, esse sentimento de surpresa do religioso Cardim,

diante da realidade que seus olhos viam demonstra o incômodo do cronista diante, sobretudo,

dos costumes indígenas. Para o religioso, a catequese era o objetivo principal de sua estada no

mundo. Era preciso salvar aqueles que se encontravam em estado de pecado e que não tinham

ainda sido catequizados, ou seja, aprendido os valores cristãos. Assim exposto, não podemos

nos enganar diante do deslumbramento demonstrado por Cardim em suas descrições. Segundo

Fernandes,

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a riqueza natural tão bem qualificada pode não ser rica em si mesma, mas

em virtualidade. A natureza é algo bruto à espera de ser purificada e

lapidada pela ação dos súditos de Cristo. A abundância aqui pode ser vista

como vastidão para o trabalho missionário. Quando chegam à aldeia, a

imagem tecida, envolve índios e bosques. Não poderia ser diferente. Os

homens que não foram iluminados pela luz do saber estão mais próximos a

natureza. Os cristãos têm o dever de civilizá-los. Seria uma troca. A

cristandade dá à civilização e os gentios dão à natureza. (FERNANDES,

1995, p. 17).

Para o cronista, os nativos precisavam ser salvos da condição e ignorância em que

estavam inseridos. Termos como gentio e selvagens, utilizados para denominar os povos

indígenas, deixam claro a visão que os homens portugueses tinham em relação aos nativos. Os

vícios, na ótica dos religiosos, como a antropofagia, a poligamia, as bebidas, etc., se

constituem em elementos a serem extinguidos pelos religiosos, em relação aos povos nativos.

A referência ao fumo, que é utilizado pelos portugueses, deixa transparecer a imagem que os

jesuítas têm em relação às práticas indígenas: a utilização do fumo é entendida como algo a

ser eliminado, algo que já estava contaminando os portugueses, como se lê no trecho a seguir:

Costumão estes gentios beber fumo de petigma por, outro nome erva santa;

esta seção e fazem de uma folha de palma uma canguera, que fica como

canudo de cana cheio desta herva, e pondo-lhe o fogo na ponta metem o

mais grosso na boca, e assim estão chupando e bebendo aquelle fumo, e o

têm por grande mimo e regallo, e deitados em suas redes gastão em tomar

estas fumaças parte dos dias e das noites. A alguns faz muito mal, e os

atordoa e embebeda; a outros faz bem e lhes faz deitar muitas reimas pela

boca. As mulheres tambem o bebem, mas são as velhas e enfermas, porque

é elle muito medicinal, principalmente para os doentes de asthma, cabeça ou

estomago, e daqui vem grande parte dos Portuguezes beberem este fumo, e

o têm por vicio, ou por preguiça, e imitando os Indios gastão nisso dias e

noites. (CARDIM, 1980, p. 92).

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Fazendo uso de um discurso em favor de sua cultura, Cardim descreveu os nativos

através de um discurso centrado na cultura ocidental. Processa-se uma descrição em que os

nativos são silenciados, ou seja, o outro se encontra em um processo de submissão à ordem

estabelecida. Na citação a seguir, pode-se perceber que os nativos estão absolutamente

submissos à ordem estabelecida e passivos diante dos valores estabelecidos. Além disso, a

descrição generaliza os nativos da terra brasileira como se todos os povos indígenas do Brasil

aceitassem com total passividade os valores ocidentais:

Tres festas celebram estes índios com grande alegria, applauso e gosto

particular. A primeira é as fogueiras de S. João, porque suas aldêas ardem

em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda que

algumas vezes chamusquem o couro. A segunda é a festa de ramos, porque

é cousa para vêr, as palavras, flores e boninas que buscam, a festa com que

os têm nas mãos ao officio, e procuram que lhes cáia agua benta nos ramos.

A terceira que mais que todas festejam, é dia de cinza, porque de ordinario

nenhum falta, e do cabo do mundo vêm á cinza, e folgam que lhes ponham

grande cruz na testa, e se acontece o padre não ir ás aldêas, por não ficarem

sem cinza elles a dão uns aos outros, como aconteceu a uma velha que,

faltando o padre, convocou toda a aldêa á igreja e lhes deu a cinza, dizendo

que assim faziam os Abarés, sc. padres, e que não haviam de ficar em tal

solemnidade sem cinza. (CARDIM, 1980, p. 156).

Conforme explicita Carmen Junqueira, “o processo de dominação persiste em nossos

dias, embora com nova formulação. [...] permanece a visão do índio como um ser incompleto,

atrasado e incapaz” (JUNQUEIRA, 2008. p. 79). Podemos constatar que o etnocentrismo

europeu está enraizado na sociedade brasileira, que foi sendo construída durante séculos sobre

estruturas e linhas de pensamento européias. Seja na lei, nos conteúdos escolares ou ainda no

meio social, os povos nativos são vistos como selvagens, sem organização social nenhuma,

sem cultura, seres sem direitos, que não conhecem o trabalho. Existe ainda a idéia de que os

nativos nada fazem e passam o tempo todo na ociosidade. Essa idéia, concebida pelos

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primeiros cronistas, podemos constatar no texto de Cardim, quando faz menção a atitude dos

nativos que ingerem alimentos a todo momento:

Este gentio come em todo o tempo, de noite e de dia, e a cada hora e

momento, e como tem que comer não o guardão muito tempo, mas logo

comem tudo o que têm e repartem com seus amigos, de modo que de um

peixe que tenhão repartem com todos, e têm por grande honra e primor

serem liberaes, e por isso cobrão muita fama e honra, e a peior injuria que

lhes podam fazer é terem-nos por escassos, ou chamarem-lho, e quando não

têm que comer são muito soffridos com fome e sede. (CARDIM, 1980, p.

88).

A fala silenciada não guia sua própria vida, mas é guiada por discursos de outros,

configurando-se objeto do outro, que por esses outros é governado. A imagem estereotipada,

que designa indígena como preguiçoso, incapaz para o trabalho, atrasado, numa perspectiva

comparativa com a civilização, continua presente e impõe todo um imaginário sobre esses

povos no meio social. A imagem romântica do “bom selvagem” e do “mau selvagem”, que

foi propagada pelo indianismo, ainda é muito presente na sociedade brasileira. O próprio

nome “índio”, dado pelo colonizador, acaba sendo sem fundamento para assinalar quem são

os povos indígenas. Junqueira, de forma interessante, assim expressa a distância que havia

entre as duas formas de civilização:

Esta terra era habitada, mas por pessoas de costumes diferentes. A nudez, as

plumas, as festas testemunhavam a grande distância que separava as duas

formas de civilização. Duas culturas distintas; dois modos de entender a

vida se encontravam. Havia, é claro, muita coisa comum entre ambos; como

os europeus, esses povos tinham família, produção econômica, sistemas de

trocas, mitos, cerimônias, manifestações artísticas e outras semelhanças.

Mas o conteúdo das relações era diferente envolvido em símbolos

formulados ao longo de uma tradição diversa. (JUNQUEIRA, 2008, p. 76-

77).

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De forma concreta, tanto no Brasil atual quanto no Brasil do século XVI, havia

diversos povos com valores culturais e formas de vida diferenciadas. Assim, pode-se observar

que cada povo que aqui habitava, e ainda habita, possui culturas diferenciadas e se constituem

em nações diferentes. Muitas vezes, a imagem que é associada aos nativos, pela sociedade

estabelecida, é a de selvagem, criatura inferior que está em um estágio inferior de evolução

em relação à nossa cultura, numa dinâmica positivista de análise e comparações.

Segundo Passetti, a atitude de considerar etnocentrismo como uma postura,

exclusivamente, européia ou dos brancos consiste em algo enganador. Podemos definir o

etnocentrismo como uma forma generalizada de construção da imagem e enfrentamento com

os outros, que esta além do “nós” uniformizador ocidental. Para Lévi-Strauss, a postura de

rejeitar, pura e simplesmente, as manifestações de cunho cultural, moral, religioso, social e

estéticos estão alicerçadas em base psicológica firme, já que possui uma tendência de

reaparecer em cada um de nós, quando submetidos à uma dada situação de forma inesperada.

No decorrer da história, os nativos do Brasil, foram submetidos a práticas etnocidas e

genocidas, conforme vimos anteriormente. Como aponta Passetti,

Formas exclusivas de evitar a convivência com os que resistiram ao

desaparecimento foram criadas nas modalidades jurídicas de terras, reservas

e parques indígenas, garantindo-se o controle da população ao mesmo

tempo em que todos os índios foram declarados tutelados pelo Estado, uma

vez que considerados parcialmente incapazes. (PASSETTI, 2005, p. 216).

Segundo a autora, os órgãos governamentais dotados de poder e responsáveis pela

tutela, O Serviço de Proteção aos Índios, criado em 1910, substituído em 1967 pela atual

Fundação Nacional do Índio, acabaram se constituindo em mecanismos do biopoder

estabelecido pelo Estado.

Os povos indígenas estão estabelecidos em diversos pontos do território nacional,

totalizando, em termos demográficos, um pequeno percentual, se considerada a população

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total do Brasil, de aproximadamente 170 milhões de habitantes. Todavia, é um exemplo

elementar e significativo da considerável diversidade cultural existente no País. Segundo

Junqueira, atualmente no Brasil, existem

mais de duzentas sociedades com rica diversidade cultural, são nossas

contemporâneas. Sabe-se, por exemplo, que existem atualmente 170 línguas

diferentes, o que faz com que grupos que, às vezes, por viverem em regiões

próximas, sejam levados a se comunicar numa língua comum, geralmente, o

português, para poderem se entender. A diversidade cultural atinge,

igualmente, outros campos, desde a forma de organizar a vida social até

modalidade de expressão artística, religiosa, transmissão de conhecimento,

etc. É tal a variedade de costumes, regras, convenções, que se torna difícil

enumerá-los. (JUNQUEIRA, 2008, p. 67).

Estimativas apontam que, na época da chegada dos europeus, havia no território

brasileiro mais de 1.000 povos, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Conforme dados

fornecidos pelo Instituto Socioambiental, existem atualmente no território brasileiro 231

povos indígenas, que falam 180 línguas diferentes. Ainda conforme dados fornecidos pelo

referido instituto, com relação aos povos indígenas, a estimativa é que exista, hoje, no Brasil

cerca de 600 mil indivíduos. Do total estimado, cerca de 450 mil vivem em terras indígenas.

Os outros 150 mil encontram-se residindo em diversas capitais do país. É importante salientar

que, no censo populacional realizado em 2000 pelo Instituto de Geografia e Estatística –

IBGE, ficou demonstrado que a parcela da população brasileira que se auto-declarou

genericamente como indígena alcançou a marca de 734 mil pessoas.

3.6

A designação estabelecida para os povos nativos

Com relação às denominações usadas para designar as sociedades indígenas que

vivem no Brasil, estas se constituem em denominações dos próprios povos indígenas.

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Existiram consideráveis dificuldades de contato entre os ocidentais e os nativos da terra. Mais

tarde, houve também dificuldades entre os funcionários do órgão indigenista oficial e mesmo

entre os antropólogos e os índios, motivadas pelo não-entendimento das línguas faladas, bem

como, dificuldades de aceitação dos valores específicos das culturas indígenas. Assim sendo,

é natural que uma dada sociedade indígena seja reconhecida por um determinado nome a ela

dada, que lhe foi imputada ao acaso pelos primeiros indivíduos que entraram em contato com

ela, ou pela denominação dada pelos inimigos tradicionais. Muitas vezes a denominação

possui um caráter pejorativo.

Podemos constatar na descrição de Cardim uma tentativa de entender, descrever e

relatar aos jesuítas, que estão além-mar, bem como à sociedade européia, a forma de vida dos

povos encontrados no Brasil. Na ótica do religioso, os nativos eram povos que possuíam

qualidades, conforme podemos constatar em suas descrições, no entanto, eram povos que não

tinham determinados elementos que poderiam fazer deles homens reconhecidos dentro dos

padrões estabelecidos pela sociedade da época. Ou seja, para os nativos deixarem a

selvageria, o paganismo, e todos as manifestações que compunham a sua vida, era necessário

aderir à forma de vida dos portugueses cristãos e à forma de pensar destes e, assim, aceitar os

dogmas da Igreja Cristã, tornando-se súditos do rei de Portugal. Dessa forma, analisando a

obra de Cardim, constatamos em diversos relatos, uma busca constante de descrever os

nativos, suas atitudes, seus valores, não com o objetivo de conhecer o Outro, mas com o

objetivo de criar estratégias, juntar elementos e persuadir a outros portugueses da importância

da evangelização que, na visão dos religiosos, seria uma missão atribuída aos jesuítas. Dessa

forma, tornar o Outro um cristão significava cumprir a missão que o Deus cristão os destinou,

ou seja, evangelizar e catequizar e, conseqüentemente, converter esses povos à fé cristã, bem

como fazê-los assumir, interiorizar os valores da cultura portuguesa e aceitar o poder

estabelecido. Quando Cardim descreve a nudez indígena, ele quer afirmar que é necessário

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vestir esse nativo com os valores do mundo europeu e isso significa dar a estes vestimentas, e

também impor-lhes seus valores, bem como legitimar suas ações perante à sua sociedade.

Todos andam nus assim homens como mulheres, e não têm genero nenhum

de vestido e por nenhum caso verecundant, antes parece que estão no estado

de innocencia nesta parte, pela grande honestidade e modestia que entre si

guardão, e quando algum homem fala com mulher vira-lhe as costas. Porém

para sairem galantes, usão de varias invenções, tingindo seus corpos com

certo sumo de uma arvore com que ficam pretos, dando muitos riscos pelo

corpo, braços, etc., a modo de imperiaes. (CARDIM, 1980, p. 89-90).

Para os povos indígenas, o corpo e as transformações a ele agregadas não são

aleatórias. Para estes, o corpo configura-se em produção da vida diária, se constitui em

elemento que significa idéias e valores ligados à ética nativa ou associado a questões estéticas.

Nessa perspectiva, o corpo, com os seus atributos simbólicos, são constituídos pela sociedade

que estabelece seus valores e define normas que pautam ações, carregadas de critérios

estruturados pela sociedade.

Os cronistas, como homens do seu tempo, descreveram o Brasil, com suas terras e

seus habitantes, numa ótica centrada na visão de mundo daquele contexto histórico. No

entanto, como os homens da atualidade deixaram transparecer o caráter etnocêntrico de seus

escritos, procedendo julgamentos imediatos, pautados no referencial da cultura do “eu”, ou

seja, tendo como parâmetro sua própria cultura e os valores de sua cultura. Dessa maneira,

cometeram diversas atrocidades e impuseram seus valores como verdades absolutas e

inquestionáveis. Tinham uma visão de mundo dogmática, ou seja, os valores da cultura

ocidental não deveriam ser questionados, mas sim aceitos como verdades absolutas.

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90

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar a obra do Padre Fernão Cardim constatou-se a presença marcante de todo

um imaginário advindo do mundo ocidental, imaginário este carregado de valores da cultura

européia. Nas descrições de Cardim, observamos a presença marcante das impressões, idéias e

preconceitos do homem europeu em relação aos nativos do Brasil do contexto do século XVI.

Na perspectiva da longa duração, constatou-se a permanência no decorrer da história do Brasil

de visualizações de cunho etnocêntrico, em relação aos povos indígenas. Assim, diversas

idéias acerca do nativos, oriundas do século XVI, permaneceram no imaginário da sociedade

brasileira, sendo estas na maioria das vezes de caráter pejorativo. Muitas dessas idéias ficaram

presentes no imaginário da população nacional, como a idéia do indígena, como preguiçoso,

sujo, selvagem etc.

Numa perspectiva de análise do fenômeno do etnocentrismo, o homem europeu, do

século XVI, olha o outro de forma preconceituosa e deseja subtrair das culturas diferentes da

sua, o que lhe causava incômodo ou lhe chocava. Os Europeus viam nos indígenas como

povos inferiores que necessitavam da misericórdia e apoio. Assim, tomando por base a noção

de longa duração de Le Goff e o fenômeno do etnocentrismo, constatamos a presença

marcante de idéias centradas na cultura do emissor, de caráter eurocêntrico ou, ainda, numa

perspectiva antropológica, etnocêntrico.

Constatamos que o olhar europeu se constituiu em fator determinante da construção

das idéias estabelecidas em relação ao Novo Mundo e seus habitantes. Os valores, os mitos

advindos da cultura européia, os temores, os sonhos e ideais foram transportados para a

América portuguesa. Todo um imaginário presente no mundo europeu influenciou nas

construções das idéias em relação ao novo mundo e se constituiu em fator determinante de

ações, em relação ao Brasil daquele contexto histórico. Considerando o exposto, com relação

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à conjuntura esboçada acerca da Europa do século XVI, constatamos a presença de elementos

etnocêntricos presentes na obra do Cardim, assim como de todo um imaginário europeu que,

de forma efetiva, influenciaram na construção da imagem do indígena do Brasil. Dessa

maneira, constatamos a presença de um estereótipo em relação a esses povos que permaneceu

durante a história do Brasil. Conforme Le Goff (1994), podemos falar de uma herança, que

advem de um passado de preconceito, violência e desrespeito aos povos indígenas, centrada

na cultura do ‘eu’, egoísta, individualista que pretende subtrair do outro seus valores, sua

cultura, seu espírito, enfim, sua vida.

Podemos definir, conforme Clastres (1974), o etnocídio como a busca desenfreada da

eliminação do outro em seus princípios. Assim, a postura dos jesuítas que não só desejavam,

como impuseram seus valores aos povos nativos, pode ser classificada como etnocida, assim

como a idéia estabelecida na sociedade nacional que apregoa a necessidade de integração dos

indígenas aos valores da cultura nacional, tirando-os, aos olhos dos defensores de tal idéia, do

atraso e da selvageria.

Na análise que procedemos em relação à obra do Padre Fernão Cardim, constatamos

que aos olhos do referido religiosos, os indígenas necessitavam serem resgatados e salvos da

condição e costumes de pecado em que estavam inseridos. Na prática, para alcançar sucesso

no empreendimento da catequese, os jesuíta criaram diversas estratégias, procederam estudos

sobre os povos indígenas, procuraram conhecer a fundo seus costumes e valores, tudo no

intuito de torná-los cristãos e cidadãos submetidos ao poder estabelecido. No entendimento

desses religiosos, havia uma missão em que eles estavam integrados, que era a de resgatar

aqueles que o divino cristão havia lhes entregue, este era o seu rebanho, assim, era preciso

urgência para levar essas almas para Deus.

Para torná-los cristãos, era preciso conhecê-los, trabalhar de forma incansável no

intuito de integrá-los ao rebanho da igreja e, assim, submetê-los ao poder temporal.

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estabelecido. Isso, na prática, significava subtrair desses povos todos os costumes que, na

concepção dos religiosos, eram pecaminosos. Assim observamos e constatamos a influência das

idéias estabelecidas no Brasil. Dessa forma, as diversas visões em relação aos povos indígenas, se

constituem como herança de uma mentalidade pautada em preconceito, desrespeito e desinteresse pela

causa indígena que vem de longo período, desde o século XVI, e que se perpetua na sociedade

nacional.

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Sites: www.institutosocioambiental.com.br www.ibge.gov.br www.funai.gov.br .