Romeu Do Amaral Camargo - O Protestantismo e o Espiritismo - À Luz Do Evangelho
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ROMEU DO AMARAL CAMARGO PROFESSOR COMPLEMENTARISTA E BACHAREL EM SCIENCIAS JURIDICAS E SCCIAES
PELA FACULDADE DE DIREITO DE SÃO PAULO
O PROTESTANTISMO =E=
O ESPIRITISMO Á L U Z D O E V A N G E L H O
Resposta ao Sr. Dr. Carlos
de Laet e ao Sr. Prof.
Revmo. Othoniel Motta
1 9 2 8 E S T A B E L E C I M E N T O G R A P H I C O I R M Ã O S F E R R A Z R U A B R I G A D E I R O T O B I A S , 2 8 — S Ã O P A U L O
ROMEU DO AMARAL CAMARGO Professor Complementarista e Bacharel em Sciencias Juridicas e Sociaes
pela Faculdade de Direito de São Paulo
O PROTESTANTISMO = E =
O ESPIRITISMO Á L U Z D O E V A N G E L H O
Resposta ao Sr. Dr. Carlos de Laet e ao Sr. Prof. Revmo. Othoniel Motta
1928 Estabelecimento Graphico Irmãos Ferraz
Rua Brigadeiro Tobias, 28 SÃO PAULO
SUMMARIO
Porque isto, agora! .................................................................................... 1
Duas palavras (Padre Kempis) ................................................................... 3
Fabula oriental (Dr. Alberto Seabra) .......................................................... 4
Uma anecdota historica .................................................................................... 5
Explicando ........................................................................................................ 5
"Superstição perigosa" (artigo do Dr. Carlos de Laet) ................................ 12
"Superstição perigosa" (artigos nossos, de I a XII ..................................... 16
Couraçado de papelão (resposta ao prof. Othoniel Motta;
série de artigos, de I a VIII) ........................................................... 71
A palavra de grandes theologos ..................................................................... 89
A inspiração da Biblia — Penas eternas e fogo eterno —
Pavoroso quadro pintado por Spurgeon — A salvação
pelo methodo de Jesus e dos Prophetas — Falam
cinco theologos valdenses e um norte americano .......................... 92
Julgamento pelas boas obras — Paganismo evangelisador
Um mensageiro do Além corrige o credo de um
Apostolo ......................................................................................... 119
Os attributos do Creador repellidos pelo dogma — Diz a
theologia que os demonios trabalham com autoriza-
ção de Deus — A logica do fogo e o fogo da logica ...................... 122
O Evangelho do Bom Samaritano é approvado por Jesus .............................. 128
Christianismo e credo — Fala Othoniel Motta ............................................... 136
Religião e fé — Fala o grande theologo dr. S. Parkes Cadman
— Nota transcripta pelo ""O Estado de São Paulo"
A palavra de Fosdick, de Marden e de Charles Wagner ............ 139
Christianismo intellectual — Jesus o desconhecia — A tolerancia do
Mestre — Commentarios de um theologo ...................................... 149
Jesus e a Samaritana — Notavel prophecia do Divino Mestre ....................... 152
"Paz? Não, mas espada e separação" — Palavras de Jesus .............................. 158
"Em busca das ovelhas perdidas" — Commentarios ...................................... 164
O livre-arbitrio repellido pela predestinação divina — A
theologia provoca arrepios Arithmetica que as-
susta — O paganismo de Pythagoras dentro do Evan-
gelho ............................................................................................. 166
A. salvação é pela fé ou pelas obras? — Resposta de Jesus
e dos Apostolos ............................................................................. 178
O Velho Testamento abolido por Jesus — Fala R. Pitro-
wsky — Ainda a prohibição de Moysés ........................................ 187
Adulterio? ................................................................................................. 194
Moysés e Jesus — Differenças entre a primeira e a segunda
revelação — Do Deus da "tremenda magestade" ao
Deus do "amor e da justiça" — A terceira revelação
— Raça adamica ............................................................................ 217
O paraizo perdido — O fructo prohibido — Adão e Eva
Caim .............................................................................................. 240
Allan Kardec — Sua vida e sua obra — O que diz "O Estado
de S. Paulo" sobre o sabio Flammarion ......................................... 246
A força do preconceito — Charles Richet — Charles Brown —
Alberto Seabra .............................................................................. 263
O Espiritismo enterrado vivo por um pastor presbyteriano —
Seita que commette assassinios em nome do seu cre-
do, em pleno seculo XX! — O "celebre" prof. Scopes
e o abbade da cathedral de Westminster — Outras
notas — .......................................................................................... 266
O Espiritismo analysado pelo medico dos papas Leão XIII
e Pio X — Fala o celebre physico e chimico inglez, ...................... 286
William Crookes ............................................................................
Richet e o Espiritismo — Congresso de Pesquizas Psychicas .................... 293
Pensamentos de Charles Brown, Coelho Netto, Allan Kardec
e Charles Wagner Finalidades da religião ..................................... 296
A mediumnidade em face da Biblia Factos e não palavras
Na Inglaterra, na Allemanha, no Mexico e no Brasil
Fala a grande imprensa .............................................................. 300
"Só os doentes precisam de medico" ......................................................... 319
O Espiritismo — Seus atacantes e seus defensores .................................... 321
A Egreja Universal — A obra de Jesus ..................................................... 331
Queimada viva, lançada no inferno e... no céo .............................................. 340
Porque isto, agora?
Aqui vae a resposta. O orçamento feito pelo
"ESTABELECIMENTO GRAPHICO IR-
MÃOS FERRAZ", para a publicação deste
trabalho, tem o n. ° 58 e foi apresentado em data
de 8 de Julho de 1926. Faz-se indispensável
esta advertencia, á vista do fallecimento do nosso illus-
tre patricio, sr. dr. Carlos de Laet, a 7 de Dezem-
bro de 1927. Quer dizer: o orçamento foi feito
muito antes do lutuoso acontecimento. Paginas
adeante o leitor ficará sabendo a razão por que
não foi publicado antes este volume, que repre-
senta o esforço, a boa vontade de um pugillo de
investigadores da verdade. Digamos a coisa com
toda a franqueza, sem os disfarces de quem procura
esconder uma parle da verdade: esses amigos é
que custearam este trabalho. O producto da venda
dos exemplares será applicado em outra edição.
Os dignos proprietarios desse Estabelecimen-
to Graphico, conhecidissimos no Estado de São
Paulo e em quasi todo o paiz, poderão ser ouvido,
a respeito, e a sua palavra faz fé em qualquer
II
emergencia. Graças á probidade desses dignos
moços, o seu Estabelecimento é o que é; um dos
primeiros do Brasil, porque é um viveiro de tra-
balho, de perseverança, de competencia e, acima
de tudo, de honestidade. Folgamos em dizer: não
nos surprehende o renome dessa casa. Outro pre-
mio o Céo não podia dar aos dignos filhos de um
homem que viveu uma vida só de consagração á
causa do Bem, em nome do Evangelho e como um
dos seus mais dignos, dos seus mais brilhantes
Ministros.
Sejam-nos relevadas estas indiscreções. Pro-
vocaram-nas o amor da verdade e o sentimento da
justiça, ante o passamento do grande filólogo
e brilhante jornalista, dr. Carlos de Laet, a cuja
memoria rendemos a nossa profunda e respeitosa
homenagem, como rendemos á de todos aquelles
que, como o illustre desincarnado, souberam hon-
rar, iluminando-as, as nossas letras, as nossas
tradições, a nossa terra, a nossa gente.
Praz-nos declarar que estamos em paz com
a consciencia. Durante a nossa pugna jornais-
tica, não sahimos um instante sequér do terreno
dos principios, não resvalámos, um minuto que
III
fôsse, nos declives do pessoalismo que só apaixona
para torturar. Fazemos estas confissões, dizemos
estas verdades, como si as tivessemos de apresentar
hoje deante do throno de Deus.
Julgue-nos o leitor. Os elementos de prova
ahi estão, nessas paginas.
Agora, para fechar, um pedido queremos fa-
zer aos srs. Irmãos Ferraz: não toquem, numa
virgula que seja, desta pagina. E' a verdade e a
justiça que nos mandam falar.
ROMEU A. CAMARGO
DUAS PALAVRAS
"Não te mova a autoridade de quem escreve, si é de pequena ou grande sciencia; mas convide-te a lêr o amor da pura verdade.
Considera o que te dizem, sem attender a quem o diz.
Padre Kempis - "Imitação de Christo"
Eis os doces conselhos de um espirito que soube consor-
ciar a idéa com o sentimento da verdade. Não lhe façamos ou-
vido de mercador. Entendia o piedoso sacerdote que a pala-
vra deve vestir e jamais mascarar o pensamento. E o seu pen-
samento está bem vestido, porque suas palavras reflectem fiel-
mente as suas idéas. Podemos dar-lhe uma roupagem mais
folgada, alinhavada e cosida de accordo com os nossos dias:
acceitemos a verdade, venha de onde viér, seja quem fôr
seu portador — zulú ou brasileiro, sábio ou ignorante, catho-
lico ou materialista, mahometano ou espiritista, protestante
ou budhista. Pensemos com Santo Agostinho: "A verdade
é o que é." Ou com Pythagoras: "A verdade é a alma de Deus",
ou ainda com o legislador dos indús: "A verdade é o proprio
Deus".
E' em nome da verdade que pedimos ao leitor: receba
este trabalhinho com todos os seus defeitos. Perfeição? E'
attributo desconhecido aqui em baixo, principalmente entre
os côxos e estropiados, como nós. Procure conhecer, através
de suas palavras, o espirito que o anima. Leia-o com aquelle
sentimento que impulsionou o grande epistolographo chiristão:
"A caridade tudo supporta, tudo crê, tudo espera, tudo sof-
fre." (I Cor., 13:7).
Não recúe deante da superficialidade da sciencia do seu
autor. Encontrará altura e profundidade na sciencia dos au-
tores citados nestas paginas. "Considere o que elles dizem,
sem attender a quem o diz".
FABULA ORIENTAL
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Vivia uma rã num bréjo, donde nunca tinha sahido. Um
bello dia, outra rã que morava num lago, metteu-se no bréjo,
por curiosidade.
— Quem és e onde vives? perguntou a rã do bréjo.
— Sou o que sou, e tenho a minha casa no lago, respon-
deu-lhe a outra.
— No lago! Que coisa é o lago?
— Uma grande porção de agua que está pertinho daqui.
— De que tamanho é o lago?
— Muito grande.
— Assim, como isto? perguntou a rã do bréjo, indicando
a pedra do fundo.
— Muito maior.
— Deste tamanho? interpellou de novo, referindo-se
á margem onde conversavam.
— Muito maior.
— Ora essa! Qual é então a grandeza delle ?
— O lago em que vivo é maior do que todo o teu bréjo,
e nelle podem caber milhões de brejos como o teu.
— Que disparate! E' impossivel! Que absurdo! Não pas-
sas de uma impostora! Põe-te já fóra de minha casa! Olho da
rua! Não quero saber de rãs da tua laia!
Agora, meus amigos, tendo em vista o apêgo á tradição
— que é a força do habito —, e o espirito de sectarismo —
que é a tyrannia do numero, tudo façamos para que nos não
immobilizemos no limitadissimo horizonte em que philoso-
phava a rã do bréjo.
(Dr. Alberto Seabra — "Phenomenos Psychicos", 2.ª
edição, 1927, Typ. e Livraria "O Pensamento" S. Paulo)
— 4 —
UMA ANECDOTA
Conta-se que Pedro, o Cruel, rei de Castella e Leão, cos-
tumava escolher pessoalmente os juizes do seu reino. Um dia
Vagou no Tribunal de Sevilha um lugar de juiz, e tres pre-
tendentes disputaram a honra de o occupar. Pedro chamou-os
e, indicando-lhes com a mão a metade de uma laranja que
boiava sobre a agua de um tanque, perguntou:
— Que é aquillo?
— E' uma laranja, respondeu sem hesitar, o primeiro.
— E' a metade de uma laranja, disse o segundo, sem
reflectir.
E como o terceiro nada respondesse, o rei perguntou de
novo: Que é aquillo?
Então o aspirante a juiz, servindo-se do proprio bastão
do monarcha, approximou de si a metade da laranja que flu-
ctuava no tanque, voltou-a em todos os sentidos e depois de
haver hesitado alguns instantes, respondeu:
— Deve ser a metade de uma laranja.
— E's um sabio! respondeu d. Pedro abraçando-o, e
vaes ser nomeado juiz, porque não te atreveste, como os ou-
tros concorrentes, a julgar sem teres estudado bem a questão.
Mais ainda: embora estivesses quasi convencido de que te
não enganavas, nem mesmo assim quizeste resolvel-a".
_______________
EXPLICANDO... As fabulas e as anecdotas encerram lições de profundo
senso moral e de grande alcance educativo.
Erro capital em todos os credos religiosos, é a pretensão
de cada um de seus profitentes, de se julgar com o monopolio
de todas as verdades, "como se Deus, não podendo suppor-
tar, só, o peso dessas verdades, se tivesse achado na contin-
gencia de repartil-o pelos representantes de uma seita", para
os quaes foi creado o Céo, ficando reservado o Inferno para
— 5 —
os restantes quê, relativamente ao numero de monopolistas,
constituem a esmagadora maioria da humanidade.
Com referencia ao espiritismo — metade de uma
verdade a fluctuar nas aguas da critica — temos lido e ou-
vido coisas que não escondem a idéa preconcebida de seus
autores, que, como juizes, não revelam a precisa serenidade
em seus julgamentos.
A 22 de Abril do anno passado (1926), pelas columnas
do "Diario da Noite", desta Capital, surgiu o vulto gigan-
tesco de Carlos de Laet, illustre catholico romano, membro
da Academia Brasileira de Letras, o qual, de lança em riste,
em agudo toque a reunir, concitou os pastores protestantes e
os rabbinos judeus a auxiliar o clero catholico, no bradar
contra o espiritismo ou “superstição perigosa", segundo a
sua propria expressão.
Pelas columnas do "Estandarte", orgão presbyteriano,
appareceu, pouco antes, firmado pela penna do não menos
illustrado literato e philologo, Othoniel Motta, pastor pres-
byteriano, um artigo critico, porejante de humorismo, visan-
do uma obra que lhe démos para lêr, mas que o illustre cri-
tico teve receios de lêr, talvez porque o respectivo autor
não possuia permissão para entrar no campo da verdade...
— Entendeu o rev. Othoniel Motta que á tal obra (Região
em litigio) calhava bem a qualificação de "fortateza de pape-
lão do espiritismo" (mas fortaleza cujos disparos abalaram
os alicerces espirituaes de alguns membros da sua egreja,
conforme o confessou de publico, em o mencionado artigo-
critico).
Tangido pelo desejo de prestar um servicinho á causa
da verdade, revestimo-nos de coragem e sahimos a campo,
afim de dar uns apartes a esses dois illustres orientadores
do pensamento religioso, ainda que irreconciliaveis adver-
sarios entre si.
Pelas mesmas columnas do "Diário da Noite" escrevemos
uma série de doze artigos, em resposta ao unico publicado
— 6 —
pelo sr. dr. Carlos de Laet. Paraphraseando o illustre jor-
nalista e philologo, adoptámos a mesma epigraphe para os
nossos artigos, isto é, "Superstição perigosa"
Não voltou á imprensa o illustre representante do catholi-
cismo.
Pelas columnas do "Clarim" (de Mattão), do "Reforma-
dor" e da "Aurora" (da Capital Federal) e da "Verdade e
Luz", desta Capital, escrevemos uma série de oito artigos,
em resposta a essa analyse-critica do nosso amigo, rev. Otho-
niel Motta. Escolhemos para epigraphe dos nossos artigos,
as tres palavras "Couraçado de papelão". Logo adeante verá o
leitor a razão por que escolhemos essa epigraphe, que não
esconde uma legitima extravagancia...
Nosso prezado amigo, Olavo Augusto de Oliveira, espi-
rito culto e investigador, eminentemente vibratil e por isso
mesmo votado a profundas cogitações solicitadas pelos trans-
cendentes problemas respeitantes á vida da immortalidade,
dirigiu, sponte sua, em Julho de 1926, uma circular a alguns
amigos e confrades, solicitando-lhes auxilio pecuniário afim
de conseguir o enfeixamento dos nossos artigos em um vo-
lume. Graças á penhorante benevolencia de alguns confrades e
de alguns Centros Espiritas, o projecto desse dedicado servo
de Jesus tem a sua realização na presente obrinha. E, desta
fórma, realiza-se, tambem, o desejo de alguns amigos nossos,
aliás catholicos romanos, que não lograram lêr as séries com-
pletas desses artigos.
Ao "Norte Evangélico", orgão official do Synodo do
Norte (Egreja Evangelica Presbyteriana), que se publica em
Garanhuns, Estado de Pernambuco, confessamo-nos muito
grato, pela transcripção que fez, em suas columnas, do nosso
artigo "Rabbinismo na historia", da série em que responde-
mos ao sr. dr. Carlos de Laet. Esse conceituado periodico
evangelico, redactoriado pelo rev. Juventino Marinho, em
sua edição de 30 de Junho de 1926, transportou para as suas
columnas o mencionado artigo, que era o 4° da série, pre-
cedendo-o destas palavras, de penhorante generosidade: "A
— 7 —
proposito do exclusivismo religioso de certos corypheus do
romanismo, cuja intolerancia não permitte que alguem leia
por outra cartilha além da delles, vamos transcrever um
bem lançado artigo publicado em "O Estado de S. Paulo",
em que seu illustrado autor faz sábias ponderações sobre o
importante assumpto, que calam no espirito de todo homem
que não se escraviza a preconceitos sectários. Fazendo esta
transcripção julgamos prestar bom serviço aos leitores do
"Norte Evangélico", attento aos sábios conceitos ahi emitti-
dos."
Permittido nos seja consignar aqui a nossa gratidão ao
mui distincto amigo Fred. Figner, o popularissimo Figner
da Casa Edison do Rio de Janeiro e da Casa Odeon, de S.
Paulo, a cuja bondade devemos a objectivação deste plano.
E' que a sua valiosissima contribuição veiu garantir a reali-
zação do desejo do nosso amigo Olavo. Perdôe-nos o querido
amigo Figner, por esta indiscreção. E' que estamos habituado
a admirar a sua intrepidez no exercicio da beneficencia, em
innumeras actividades. Haja vista, por exemplo, o excellente
serviço que o seu coração e a sua algibeira vêm prestando a
muita gente, e principalmente aos desgostosos da vida, com a
publicação do seu optimo livro “O suicídio; suas causas e
seus effeitos" cujas edições, que orçam por muitos dez mil
exemplares, obedecem rigorosamente a este critério: "para
distribuição gratuita". E' uma obra que condensa, em suas
126 paginas, magnificas instrucções e exhortações aos des-
gostosos da vida, que alli encontram fartos ensinamentos,
emocionantes ensinamentos, acerca da responsabilidade indi-
vidual e das funestissimas consequencias decorrentes daquelle
acto de fraqueza.
Tornamos extensivos os nossos agradecimentos aos demais
confrades e aos Centros Espiritas, cujas contribuições, re-
cebidas até Janeiro de 1928, reflectem o seu amôr pela causa
da verdade. Foi Jesus quem nos legou este postulado, de
eterna tempestividade: "Só a verdade nos tornará livres!"
(S. João, 8:32)
— 8 —
Apresentamos nosso agradecimento muito cordial aos
illustres jornalistas e queridos amigos, dr. Guillon Ribeiro,
dr. Carlos Imabassahy, Manoel Quíntão, Ignacio Bittencourt
e Cairbar Schutel, pelos magistraes escriptos com que nos
illuminam o espirito, em seus brilhantes orgãos, "Reformador",
"Aurora" e "Clarim", cuja tiragem, reunida, proxima da
casa dos 100.000 exemplares, é um eloquente attestado da
crescente vitalidade alcançada pela imprensa boa e sadia.
Não podemos deixar de fazer referencias a dois tambem
queridos companheiros de jornada, pela cooperação valiosa
neste trabalhinho: Pedro de Camargo, o grande e incansavel
evangelista que todos admiramos na individualidade de
Vinicius, e Olavo Augusto de Oliveira; aquelle, como bom
parente, além da soberba contribuição monetaria com que
nos animou, prodigaliza-nos sempre optimos subsidios dou-
trinarios, exegeticos e moraes, fructos do seu espirito, que
vive mergulhado nas claridades esplendentes da inspiração;
este, tambem palpitante pelo ideal do amôr que deseja vêr
realizado entre os homens, muito nos auxiliou na coordenação
da materia que constitue o substractum deste volume, ao
mesmo tempo que nos proporcionou o ensejo de lêr obras de
profunda edificação espiritual.
Aproveitando a opportunidade, intercalamos diversos ca-
pitulos, entre os quaes alguns que encerram commentarios
evangelicos. Fazemos mais: incluimos um estudo acerca do
dogma substancial do protestantismo, isto é, o da salvação
pela fé.
Sabe o leitor que a Refórma do sec. XVI instituiu o
dogma da “salvação peta fé" sem auxilio das boas obras. Os
homens se salvam — dizem os nossos irmãos reformistas —
unicamente pela fé. As boas obras não entram nos designios
judiciaes da Providencia. Para sustentar esse dogma, Luthero
não se apoiou no Evangelho de Jesus, mas num versiculo
isolado da carta do apostolo Paulo aos gálatas, sobre o qual
levantou o seu edificio doutrinario.
— 9 —
Baseado na palavra do mesmo apostolo e na de outros
escriptores da Biblia, bem como, nas regras da hermeneutica,
queremos provar ao leitor que, tanto o apostolo Paulo como
os demais expositores das verdades religiosas reflectem de
modo claro e nitido o ensino de Jesus, quanto ao modo de se
salvarem os homens. Verá o leitor que Luthero, deixando
de lado a doutrina clara e simples do Evangelho, isenta de
obscuridades theologicas, foi soccorrer-se de um texto vasado
em uma carta particular do apostolo, esquecendo-se de que
os motivos que determinaram essa carta foram originados
pelas condições moraes e pelas circumstancias occasionaes
de uma egreja ou seja de meia duzia de homens; que o gran-
de reformador allemão foi uma victima inconsciente de fal-
seada exegese escripturistica; que esse dogma não resiste
ao sôpro da logica da palavra de Jesus.
Quem vae fazer essa demonstração não somos propria-
mente nós, mas... a Biblia e os proprios theologos protes-
tantes, de reconhecida autoridade, reconhecida, sim, pela
propria egreja. Este assumpto, bem como os comprehendidos
nos demais capitulos, devem interessar não somente aos
pro fitentes do credo protestante, mas a todos aquelles que
sentem o desejo de procurar a verdade evangelica, de inves-
tigar comnosco no campo semeado pelo Sublime Semeador.
Verá o leitor que o pensamento religioso, no meio protestante,
não é nem póde ser hoje o mesmo que dominou a consciencia
nos seculos passados; que os theologos, sujeitos como todos
nós, á lei da evolução, á qual se subordina a da progressivida-
de da revelação dos conhecimentos religiosos, têem que
acompanhar o movimento das ondas do oceano do pensa-
mento, agitadas pelo sôpro vivificante do Espirito de Verdade,
"a quem o mundo não conhecia ainda, por não estar bastante
amadurecido para comprehendel-o, mas que o Pae enviaria
para ensinar todas as coisas e fazer lembrar o que o Christo
disse. Si o Espirito de Verdade teria de vir mais tarde ensi-
nar todas as coisas, é porque o Christo não revelou tudo; si
— 10 —
viria lembrar o que o Christo disse, é porque o esqueceram ou
o comprehenderam mal"
Eis justificado o apparecimento deste livrinho, em cujas
paginas encontrará o leitor a razão de ser dessa anecdota
que acabou de lêr. Não estamos sob o reinado de Pedro, o
Cruel, mas no seculo em que a crença cega tem que ser en-
frentada pela crença raciocinada, pela crença que, tendo
olhos de vêr e ouvidos de ouvir, desconhece essa impiedade
chamada credo quia. absurdum, que um deshumano gracejo
quiz pôr na bocca de Santo Agostinho, esse luzeiro do chris-
tianismo. A indole dos nossos dias não póde supportar as
peias com que as orthodoxias pretendem asphyxiar o pen-
samento. Tal recurso ficaria bem nos tempos medievaes,
quando os expositores religiosos tinham procuração das mas-
sas para pensar e sentir por ellas...
Em lugar de um Pedro Cruel, temos o Supremo Tribu-
nal da Verdade e da Positividade dos Factos, a cuja barra
comparecemos reverente, esperando que o seu "accordam"
decida a questão, com a inspirada prudencia daquelle Cruel...
______________
— 11 —
"Superstição Perigosa"
____________ E' preciso que os representantes de toda reli-
gião revelada, não somente o clero calholico, mas tambem os pastores protestantes e até os rabbi- nos judeus, claramente repitam, num bradar in- cessante, que contra a lei divina vae a soturna praxe da evocação dos mortos.
CARLOS DE LAET
(Da Academia Brasileira de Letras)
O espiritismo, isto é, a doutrina baseada na evocação
dos mortos, está formalmente prohibida no Velho Testamen-
to; e, para mostrar a gravidade peccaminosa dessa praxe,
basta lembrar que era de morte a pena comminada aos in-
fractores. Assim todos os que acceitam como divinamente
inspirada a legislação mosaica, não devem ser espiritistas:
neste caso estão quantos seguem a religião israelita.
O protestantismo, que nas suas variadas seitas toma
sempre como fundamento doutrinal a lição da Biblia, igual-
mente, para ser logico, tem de condemnar o espiritismo.
Não de outro modo tambem tem de pensar o ramo do
christianismo que se intitula religião Orthodoxa, quando
aliás e heterodoxamente nega a supremacia do Papa e, em
alguns dogmas, diverge do catholicismo. Tambem essa pro-
vincia christã recebe como inspirados os livros biblicos. Não
póde suffragar, nem tolerar a evocação dos mortos.
De tudo isto se conclue que o espiritista renega a fé
do seu baptismo e não póde ser acolhido em nenhuma das
opiniões que, proclamando a divindade do nosso Mestre,
Jesus Christo, se gloriam de chamar-se christãos.
— 12 —
OS SEUS MALES
Por outro lado, fóra do terreno da fé, a sciencia medica,
obrigada a estudar as relações entre o corpo humano e o
principio que o vivifica, pelos seus mais autorizados orgãos,
reconhece o grande perigo de provocar continuas excitações
nervosas, assim pervertendo as funcções normaes do cerebro.
Estatisticas, que descabido seria citar, provam que, nos
manicomios, de par com o uso de certos toxicos, entre os
quaes a cocaina, o abuso do alcool e certas heranças morbi-
das, figura o espiritismo como causa de terriveis enfermidades
mentaes. Um inquerito, scientificamente dirigido, sobre a
origem dos suicidios, ora tão frequentes nesta cidade, tam-
bem com certeza acharia fonte do mal nas perturbações
psychicas de pobres creaturas, continuamente postas em
frente de lobregas exhibições, preter-naturaes.
E' pois, evidente que, das synagogas, das casas de ora-
ção protestantes, dos templos da chamada religião orthodoxa
e não sómente das cathedras sagradas do catholicismo de-
veria partir o clamor da consciencia religiosa, offendida pelas
praxes espiriticas; nem mesmo é verdade que nesse grande
côro de protestos tambem cumpria que entrasse a voz sonora
da sciencia psychiatrica, premunindo o povo contra o veneno
espiritico, assim como o acautela contra o opio, o alcool e
os generos falsificados.
Que no espiritismo haja uma parte preter-natural, ou
demoniaca, que tem desconcertado observadores, como
Crookes, Figuier e Lombroso, não padece a menor duvida; e
aquelles que a mero charlatanismo ou prestidigitação attri-
buem todos os factos espiriticos, impensadamente chegam a
ser desrespeitosos para com a Igreja Catholica, que com
toda severidade não teria prohibido o espiritismo, si elle ape-
nas consistisse em peloticas. O facto, porém, é que sobre a
estofa infernal do espiritismo a toleima e a velhacaria hu-
mana têm bordado variadissimas figuras.
— 13 —
O RECRUTAMENTO DO ESPIRITISMO
O recrutamento do espiritismo faz-se com assombrosa
facilidade em nosso meio social e para isso concorrem causas
que muito de leve esboçarei.
Não esqueçamos primeiramente os contingentes que á
nossa população trouxeram as suas procedencias. O negro,
boçalmente fetichista, legou tendencias supersticiosas que, não
raro, perduram naquelles que se envergonham de ser oriun-
dos da raça negra. Essa propenção ao mysticismo, mal es-
clarecido por uma insufficiente instrucção religiosa, facilmen-
te deslisa ao espiritismo; tanto mais quanto os proceres da
seita astuciosamente insinuam que o espiritismo não é reli-
gião e portanto muito bem se compadece com a de qualquer
catholico, protestante ou judeu... E do mesmo modo farta é
a contribuição hereditaria fornecida pelos mestiços de as-
cendencia cabocla ou aborigene. Em segundo lugar muito é
de reflectir a solicitude com que os espiritistas rodeiam e
solicitam pessoas illustradas, mas demasiadamente imaginosas,
que passaram pelas angustias de perder um ente querido;
paes e mães inconsolaveis que dariam a vida para revêr os
filhos, esposos transtornados pela terrena separação da mu-
lher idolatrada... A todos estes procura o espiritismo, pro-
mettendo-lhes o que decerto lhes não póde dar, mas com
que não raro consegue illudil-os. Sobre as alturas dos Andes
costuma pairar um terrivel rapinante, o condor, poetisado
pelos nossos lyricos, mas que realmente não passa de um
gigantesco urubú feio e covarde como todos os vulturides.
O grande abutre andino nunca ousa atacar um animal de
maior vulto; mas, em vendo alguma rez, em trabalho de
pasturição, aguarda o desfecho do lance da maternidade e
de chofre empolga o recem-nascido. Outro não é o processo
do espiritismo, arrebatando as pobres almas combalidas por
uma grande magua.
Convém ainda mencionar engrossam as fileiras espiriticas,
essa necessidade imperiosa de procurar um allivio ás moles-
— 14 —
tias e deformidades. Não ha negar a caridade da corporação
medica brasileira; mas tambem é certo que sob a pressão da
pobreza, agora quasi geral em nosso paiz, o misero operario, o
serviçal domestico e mesmo o pequeno funccionario publico
não dispõe de haveres com que possa remunerar o trabalho
dos facultativos e pagar avultadas sommas nas pharmacias.
Offerece-se, então, o curandeiro espiritista, tolerado pelas
autoridades, que deveriam zelar sobre a saude publica, e
aos desajudados da fortuna depara os bons serviços do Medico
do Espaço, que, dizem, nunca erra os diagnosticos e cura
com agua saturada de fluidos e dada de graça, ou vendida a
baixo preço. Como resistirem os desgraçados a tão seductora
offerta?
COMO COMBATEL-O
Em tudo o que acabo de expôr, e que desafia provada
contestação, ha um grande mal, que tanto interessa á vida
espiritual quanto á saude corporea dos nossos compatriotas.
Para sanear tal ambiente, preciso é que se conjuguem os
esforços da religião sadia e da sciencia que estolidamente
não se faça inimiga da fé. E' preciso que os representantes
de toda religião revelada, não sómente o clero catholico, mas
tambem os pastores protestantes, e até os rabbinos judeus,
claramente repitam, num bradar incessante, que contra a
lei divina vae a soturna praxe da evocação dos mortos.
Não deve tão pouco permanecer silenciosa a sciencia
medica, já fazendo publicar as pavorosas estatisticas que
denunciam os damninhos effeitos das nevroses espiriticas,
já vigiando o exercicio da medicina por individuos que, uns
por ganancia e outros inconscientes, chamam a si a tremenda
responsabilidade da vida e saude humana.
No meio de tantas despesas inuteis, tantas commissões
ficticias, tantas construcções apparatosas e em que se conso-
mem milhares de contos, alguma coisa se faça para a creação
de hospitaes, de postos de soccorro, de sanatorios para a gente
pobre que, enferma e desamparada, mergulhada nas trevas,
porque na luz não vê quem a proteja. ("Diario da Noite")
— 15 —
"Superstição Perigosa"
(RESPONDENDO A CARLOS DE LAET)
"E' preciso que os representantes de toda reli- gião revelada, não somente o clero catholico, mas tambem os pastores protestantes e até os rab- binos judeus, claramente repitam, num bradar incessante, que contra a lei divina vae a soturna praxe da evocação dos mortos. O espiritismo, isto é, a doutrina baseada na evoção dos mortos, es- tá formalmente prohibida no Velho Testamento; e, para mostrar a gravidade peccaminosa dessa praxe, basta lembrar que era de morte a pe- na comminada aos infractores". (CARLOS DE LAET).
ROMEU A. CAMARGO — I —
Aristoteles, ao separar-se do seu grande mestre e amigo,
usou desta grande franqueza: "Sou amigo de Platão, porém,
mais amigo da verdade". Amicus Ptato, sed magis amica
veritas. Essa phrase reveste-se de profundo senso moral e
philosophico. Um nome respeitavel não é bastante para
impôr uma doutrina ou uma opinião. Não ha endôsso mais
valioso que o da verdade. E a verdade não póde ser definida,
porque definir é limitar, e ella não soffre restricções em sua
soberania, porque é o Verbo, ou a incarnação do pensamento
do Infinito. Já o disse Platão: "Deus é a verdade infinita."
Considerações são estas, que vêm de escantilhão, mercê
das suggestões do venerando membro da Academia Brasi-
leira de Letras. Não se deve appellar para o auxilio dos pas-
tores protestantes no combate ao espiritismo, pelas razões
seguintes.
O protestantismo assiste ainda á luta incessante entre
os profitentes das suas numerosissimas seitas. Os presbyterianos,
— 16 —
scindidos pela maçonaria, estadeiam uma fraternidade
veladamente convencional; os baptistas, chumbados á theoria
immersionista, combatem incessantemente a escola metho-
dista e presbyteriana, fiel ao aspergismo; os sabbatistas
fulminam com o epitheto de "tradicionalistas idolatras"
aos baptistas, methodistas e presbyterianos, por não obser-
varem estes a guarda do sabbado; os presbyterianos, me-
thodistas e baptistas não dão treguas ao sabbatismo, que é o
sadduceismo resuscitado; os methodistas negam a doutrina
da predestinação divina, ardentemente defendida pelos pres-
byterianos ou calvinistas; o episcopalismo é acremente cen-
surado pelas demais seitas, porque não exige o rebaptismo
daquelles que entram para o seu gremio, vindos do catholi-
cismo romano; os baptistas não poupam o pedobaptismo
dos presbyterianos e methodistas. E vicejam no seio das
corporações protestantes outras cizanias, cada qual revestida
do seu aspecto biblico.
O COMBATE AOS SABBATISTAS
Quasi todas as organizações reformistas desenvolvem
activo combate aos sabbatistas, que, muito ardilosamente
invadem a seára alheia, afim de ahi lançar a semente da
"guarda do sabbado". Armados de uma hermeneutica es-
pecializada, os modernos sadduceus se apresentam como os
summos sacerdotes da velha Judéa, isto é, com toda a auto-
ridade, porque em seu seio reside a plenitude da sabedoria
divina...
Publicações anti-sabbatistas por ahi formigam, e, quanto
mais surrado o atrevimento dos néo judaizantes, tanto mais
activa e vigorosa se mostra a seita desprezada...
O que caracteriza a audacia dos sabbatistas, é a cau-
dalosa exegese do Velho Testamento, que lhes custa grande
parcella de esforços. A' primeira vista, a sua theologia apre-
senta-se com visiveis borrifos de logica; porém, não passa
— 17 —
de ligeira miragem, que ás subitas se desvanece, porque os
seus defensores se apegam tão somente ao Velho Testamento,
deixando de lado os evangelhos e as epistolas. E' a chicana a
rabulejar nos dominios da fé.
Presbyterianos, methodistas, episcopaes, baptistas, sab-
batistas, etc., ahi clamam, sem cessar, contra os desvios
em que se acha o romanismo, que, dizem, do christianismo
só possue o nome. Combatem-no, porque nelle vêm o cau-
sador de todos os males sociaes, de todos os destemperos
politicos, de toda essa religiosidade formalistica e ritualizada.
Para combater os seus irmãos protestantes, aferram-se os
sabbatistas ao Velho Testamento; para combater o sabba-
tismo, negam os protestantes a autoridade do Velho Tes-
tamento...
"O SABBATISMO A' LUZ DA PALAVRA DE DEUS"
Illustre theologo baptista, pastor da egreja do Engenho
de Dentro (Rio), acaba de dar á publicidade um alentado
volume de 217 paginas, intitulado "O sabbatismo á luz da
Palavra de Deus". No genero, é a mais recente e a mais com-
pleta das obras publicadas. O autor, o rev. dr. Pitrowsky,
discute e analysa uma a uma, as doutrinas e theorias sab-
batistas, sempre e tão somente á luz dos textos biblicos.
Revéla profundo conhecimento do Velho e do Novo Testa-
mento. Para evitar a acrobacia theologica dos néo sadduceus,
affirma o autor, estribado nos textos sagrados, que toda a
legislação compendiada no Velho Testamento, foi abolida
pelo Christo. Em surtos empolgantes, prova com a autoridade
dos textos, que os christãos não devem obediencia ao Velho
Testamento. Diz o theologo, á pag. 30: "Do primeiro con-
certo (V. Testamento) foi mediador Moysés, e era nacional,
local e temporario; mas do novo concerto (Novo Testamento)
é mediador Jesus, e é portanto, internacional, geral e eter-
no..." Depois de abundantes considerações, forradas por
— 18 —
solidos fundamentos biblicos, diz o autor, á pag. 51: "Temos,
pois, razões sufficientes para dizer com ousadia que não es-
tamos obrigados a guardar a lei de Moysés."
Por ahi se vê que os sadduceus do sec. XX não agem
com lealdade, porque atêm-se a leis e ordenanças totalmente
abolidas e que foram estabelecidas com o caracter "nacional",
"local e temporario".
IMPOSSIVEL A ALLIANÇA COM O CATHOLICISMO!
Os protestantes não podem, pois, prestar mão forte ao
clero catholico, no combate ao espiritismo, pela razão mesma
da funda divergencia doutrinaria existente entre as suas
variadas seitas, e da antipathia de todas pela causa do ca-
tholicismo romano. Segundo os arcanos eschatologicos mas
desvendados por alguns theologos corajosos, acreditam mui-
tos protestantes que breve surgirá o Anti-Christo, e julgam
mesmo que a sua séde será em Roma...
O pulpito catholico dispensa as blandicias quando se
refere ao protestantismo; o pulpito protestante não esmorece
no ataque aos "falsos dogmas" do romanismo. A' vista das
avantajadas antinomias que separam esses pulpitos, razão é
para que se affirme a impossibilidade de um blóco massiço e
infragmentavel, para um golpe decisivo contra o terrivel
Golias vislumbrado pelo sr. Laet, o qual, seja dito de pas-
sagem, dia a dia vae recrutando valiosos elementos para os
seus dominios.
Ademais, o protestantismo brasileiro está inhibido de
enfrentar o espiritismo, que, segundo calculos de um jorna-
lista carioca, conta milhões de adeptos na terra de Santa
Cruz. Dil-o eminente theologo e philologo, o pastor da pri-
meira egreja presbyteriana independente da Paulicéa. Palavras
suas: "Pelo que tenho observado, pelo que tenho ouvido,
pelo que estou mesmo palpando agora num caso particular
— 19 —
o protestantismo brasileiro só tem, para uma luta séria,
em geral, apenas espingardas fulminantes do tempo da zagaia,
quando não sejam bodoques e tacapes. Não ha nisto exagero."
(1)
AS DEFICIENCIAS DO PROGRAMMA EDUCATI-
VO PROTESTANTE
Essa franqueza, ou, melhor diriamos, o desencadeamento
dessas verdades foi provocado pela situação de penuria em
que se vê o protestantismo brasileiro, pelas deficiencias do
seu programma educativo. O illustrado pastor paulista, em
tres artigos estampados no orgão official de sua egreja, con-
fessa que o protestantismo se encontra completamente de-
sarmado para enfrentar certos adversarios, entre os quaes
figura o espiritismo. O desarmamento a que se refere, é no
terreno historico e sociologico. E' que as bibliothecas dos
seminarios protestantes, além de pobres, possuem obras
inadequadas e archaicas, em cujo ról não figuram os docu-
mentos dos Santos Padres, nem tampouco os dos proprios
reformadores protestantes!
Compara o protestantismo a um couraçado valente, mas
sem canhões; pela resistencia da sua couraça, não irá a pique,
mas tambem não metterá a pique o mais fragil calhambeque
que o fustigue, a começar do espiritismo. Esta asserção é
comprovada pelos factos. Ha tres annos, o pastor da egreja
de Rio Preto sahiu a campo para combater o espiritismo,
servindo-se das columnas do orgão local. Do lado contrario
surgiu um leigo, que, pelas mesmas columnas, defendeu os
principios e doutrinas postos em cheque. Em meio da pugna,
no terreno exclusivamente biblico, depoz as armas o pastor
__________________
(1) Othoniel Motta — "O Estandarte", de 22 de maio
de 1924.
— 20 —
presbyteriano, ante as difficuldades a vencer nos dominios
da exegese. O rev. Alfredo do Valle e o sr. Francisco Velloso
(cirurgião dentista). Casos semelhantes se repetem com
frequencia. Razão é, pois, para convencer de que o clero
catholico jamais deverá esperar auxilio dessa parte, em que
pése a intenção do sr. Carlos de Laet.
("Diario da Noite")
_______________
— 21 —
"Superstição Perigosa"
__________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— II —
Na ardencia de afervorada sentimentalidade religiosa,
appélla o sr. Carlos de Laet para o concurso dos pastores pro-
testantes e dos rabbinos judeus, em defesa contra o espiri-
tismo. Merecem mencionados mais alguns percalços que, ao
nosso vêr, afastam o auxilio do elemento protestante.
Tambem as egrejas reformistas estremecem ante o surto
phantastico do espiritismo. Ha um facto que deve abalar a
confiança que o sr. Laet deposita na artilheria theologica
dos adeptos da Reforma: John Wesley, fundador do metho-
dismo, era dotado de qualidades medianimicas! Ligeira lei-
tura da sua biographia bastará para confirmar esta asserção.
O rev. W. H. Fitchett, presidente da egreja methodista
de Australia, escreveu dois bellos volumes com 627 paginas,
descrevendo a vida e a obra do chefe methodista. A imprensa
official da egreja methodista desta capital reuniu e encar-
denou essa obra em um só volume, a que deu o titulo "Wesley
e seu seculo; um estudo de forças espirituaes".
No primeiro volume, ás pags. 35-46, encontrará o leitor a
narração de factos "surprehendentes" (sic), no campo da
phenomenologia. Diz o biographo de Wesley: "Elle registra
um cento de historias de apparições, em seu "diario", e sem-
pre mantém para com ellas a mesma attitude mental de
vivo interesse, e um espirito aberto a respeito de qualquer
explicação."
— 22 —
A EVOLUÇÃO DA ESPECIE HUMANA
No vol II, pag. 229, apresenta-se Wesley francamente
pela evolução da especie humana. Vae além: acha mesmo
que toda a creação animada será restaurada e levada á escala
da evolução humana. Si acreditava na evolução geral, na
pluralidade das existencias e, consequentemente, na palinge-
nesia, não podia crêr na doutrina unicarnacionista da egreja
hodierna. Com taes convicções, lastradas pelo evolucionismo,
o chefe methodista não teria defendido a doutrina dos sup-
plicios eternos...
Negando, ainda que implicitamente, a unicidade da
existencia, John Wesley lançava a semente de idéas cujas
raizes se implantariam fatalmente no mesmo solo onde ger-
minaram as sementes do kardecismo.
O sabbatismo, extravagante por sua orthodoxia oppor-
tunizada, não admitte a immortalidade da alma senão para
os eleitos de Jehoval, cujo numero é taxativamente de...
"144.000". Somente os "guardadores do sabbado" terão
ingresso na Jerusalem Celestial, ou, em bom portuguez: das
creaturas que Deus collocou neste planeta, "apenas" mil e
quinhentos milhões dellas serão lançadas no fogo eterno, por-
que ignoram que o caminho do céo nasce na egreja sabba-
tista...
Em face desse arrepiante exclusivismo, é bem de vêr
que o clero catholico será prejudicado si fizer alliança com
os pastores sabbatistas, como a quer o sr. Laet.
Para uma collaboração efficaz, nos moldes traçados pela
devocionalidade do nosso illustre patricio, na luta contra a
doutrina espiritista, é mistér que os pastores protestantes
esqueçam por algum tempo as profundas divergencias que
os seculos espalharam entre si, e entrem em combate com
armas adequadas ao espirito do christianismo, isto é, com a
palavra da tolerancia, que instrue e conforta, e com a autori-
dade do exemplo, que convence e edifica. Vejamos si a egreja
protestante assim procede.
— 23 —
O QUE FAZ A EGREJA PROTESTANTE
Prégam os pastores protestantes a paternidade de Deus,
mas em nome do Pae Celestial levantam as muralhas do
exclusivismo sectario; affirmam que Jesus era todo tolerancia,
todo amor, todo misericordia, mas em nome do mesmo Jesus
fulminam com a expulsão áquelles que não professam a mesma
"opinião theologica” acerca da doutrina do Filho de Deus;
prégam que a caridade é a maior das virtudes, porque é o
vinculo da perfeição, na phrase de Paulo, mas fogem daquelles
que se amoldam a essa virtude, despida das roupagens ritua-
listicas; affirmam que o "examinar tudo e abraçar o que
fôr bom", deve ser a nórma dos discipulos de Jesus, mas
acoimam de hereticos áquelles que, praticando essa doutrina,
se eximem de observar o ritualismo tabellado pela egreja
protestante; prégam a moral da liberdade, egualdade e fra-
ternidade, mas baptizam com o nome de mensageiros do diabo
áquelles que crêm na realidade das vidas successivas e na
progressividade dos conhecimentos religiosos, consoante o
ensino do Mestre, que promettera para tempos ulteriores o
complemento de certas verdades veladamente annunciadas;
ensinam que o Evangelho é patrimonio da humanidade,
porque é a palavra de Deus dirigida aos homens, mas não
reconhecem fora do pulpito protestante autoridade para
prégar essa palavra; prégam a doutrina que affirma taxati-
vamente "cada um será premiado segundo as suas obras"
mas a invertem no pulpito e na pratica, dizendo cathedratica-
mente que o homem é salvo sómenie pela fé ainda que Thiago
affirme que o homem é justificado pelas obras e não sómente
pela fé; proclamam que o coração é a morada do Espirito
de Deus, mas excluem o coração dos que não pertencem á
egreja protestante muito embora seja um relicaria de virtu-
des, como o daquelle samarilano da parabola, amaldiçoado
pelos judeus, mas apontado a esses lormalistas como um
praticante da verdadeira religião, a que palpita não por
"fórmulas vazias", mas pela pratica do “bem" e da “justiça",
— 24 —
religião essa que desconhece fronteiras em seus dominios,
porque "Deus é caridade e quem está em caridade está em
Deus", na inspirada phrase do apostolo amado. E' através
dessa virtude que a egreja catholica admira a beneficencia
em um Vicente de Paulo, a longanimidade em um Francisco
de Assis, a piedade em uma Thereza de Jesus, vultos cuja
santidade de vida é problematica para o protestantismo,
porque... não passaram por sua egreja.
Parece fóra de duvida que o clero catholico jámais de-
verá esperar auxilio desse lado, onde o pensamento religioso é
acaudilhado por uma orthodoxia radicalmente exclusivista.
Dar-nos-á razão o sr. Carlos de Laet, por não estarmos de
accôrdo com a sua lembrança.
Vamos proseguir na analyse das suas suggestões, até
que o leitor fique habilitado a firmar o seu juizo neste assum-
pto. Trataremos da "superstição” e das "curas”. Antes,
porém, deixaremos esflorado aquelle trecho referente ao au-
xilio dos “rabbinos judeus”.
("Diario da Noite")
_________________
— 25 —
"Superstição perigosa"
___________
(AO SR CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
III RABBINISMO E ESPIRITISMO
E o bradar dos rabbinos contra o espiritismo? Não de-
vemos nutrir a illusão de que os israelitas concorram com a
ua voz nessa harmonia. Intransigentes no seu apêgo "á. letra
da lei", elles começariam por negar autoridade ao representan.
te de qualquer crédo dogmatico, para falar no assumpto-
Acoimariam mesmo de incoherente áquelle que, denunciando
uma violação das leis do Velho Testamento, não respeita
nem observa os demais textos legaes, referentes a questões
de ordem civil, do direito da familia, do direito das coisas...
No alvitre do sr. Laet, veriam os israelitas apenas urna
confissão de fraqueza, sem attender aos motivos que o de-
terminaram. De nosso lado, não nos cabe perquirir das inten-
ções que inspiraram a lembrança dirigida aos pastores protes-
tantes e aos rabbinos judeus. O de que não nos esquivamos
é precisamente da apreciação do alvitre, sob o seu aspecto
geral. E' um direito que ninguem nos poderia negar, como
jámais negaremos o de que use quem quer que seja, na ma-
nifestação do sen pensamento, ou na critica do nosso. A
liberdade de consciencia e de pensamento "é fonte e condi-
ção de todas as liberdades", na phrase de Jules Simon, e "o
maior palladino do direito moderno”, no conceito de Eschbach.
Mas, voltemos aos rabbinos judeus. Para sermos cohe-
rentes, attentemos bem nas consequencias que resultariam
do imperio da vetusta legislação dada ao povo hebreu. Abra-
— 26 —
mos o ultimo livro do Pentateuco, o Deuteronomio. Vejamos o
que dispõe o cap. XIII. Para não fatigar a attenção de quem
nos lê, faremos uma synthese do que ahi se acha estatuido.
Aquelle que "não crêr”, segundo o modo imposto por
Moysés, seja morto por lapidação, isto é, apedrejado. Uma
cidade cujos habitantes "pensem" de modo diverso, em
materia de fé, seja destruida e incendiada, e seus moradores
sejam passados á espada. Um massacre, emfim, a que não
deviam escapar nem... os proprios animaes uteis ao homem!
Especificava Moysés: si teu irmão ou tua irmã, ou tua
esposa, ou teu amigo intimo, te disser "em segredo”, "na
tua alcova”, que deseja seguir outro crédo religioso — não
estejas pelo que elle te diz, nem o ouças, mas logo o mata-
rás; seja a tua mão a primeira sobre elle, o depois todo o po-
vo lhe ponha as suas.
Mais ainda: si um propheta, em visões premunitorias
ou em predicções, annunciar um "facto” que venha de rea-
lizar-se á risca — note bem o leitor — esse. prophota ou "vi-
dente”(1) deve ser morto a pedradas, em plena rua. Mas,
o tal propheta ou vidente não predisse uma verdade corpo-
rizada em "facto”? Sim, responde o Deuteronomio, mas...
foi uma "tentação de Deus, para experimentar aos homens”!
Escudados nossa legislação, os rabbinos muito poderiam
fazer em pról do sua causa. Nesse caso, seriam passiveis da
mesma penalidade não sómente os espiritistas, mas, todos
os profitentos da doutrina do Crucificado, que não seguem a
velha legislação...
Que Moysés não legislou para os christãos, não resta a
menor duvida. Mas não é necessario avançar tanto. O Velho
Testamento não requer tanto esforço, porque a verdade his-
torica encerra em si o germen de outras verdades tambem
poderosas...
Abramos o primeiro livro de Reis. O cap. 28 dá-nos
conta de um facto "gravissimo”, para o qual o Deuteronomio
_____________
(1) I Reis IX: 9. — 27 —
estabelecia a durissima pena de. "lapidação". Referimo-nos
ao caso do apparecimento do espirito de Samuel ao rei Saul,
por evocação deste. Não ignoramos a objecção levantada
contra essa verdade biblica pelos adeptos da Reforma, elles
que proclamam a infallibilidade do livro, de "capa á capa".
Não prevalece tal opposição diante da autoridade da com-
missão synodal da Egreja Valdense, composta de cinco gran-
des theologos: Ernesto Comba, Ugo Janni, Bart. Léger,
F. Peyronel e F. Rostan. Em sua recente obra, intitutada
"Religião Christã”, traduzida por dois theologos brasileiros,
diz essa commissão o seguinte, acerca da sobrevivencia con-
sciente da alma logo após a morte: "A Biblia affirma-o de
um modo claro e explicito. Basta citar, no "Velho Testamen-
to”, o caso do propheta Samuel que, quatro annos após a
morte, apparece ao culpavel e aterrorizado Saul e “fala-
lhe". (2)
E' um facto occorrido na vigencia da dispensação mo-
saica. Tanto o rei Saul como a pythonisa de Endor nada sof-
freram, isto é, não lhes foi applicada a penalidade commina-
da pelo Deuteronomio...
Para fazer proeminar uma verdade registrada pela histo-
ria, não ha necessidade do malabarismo de exegeses. A critica
historica dispensa esse recurso artificialista, cujos resultados
seriam funestos á causa da verdade.
Que a legislação dada aos hebrens foi de caracter tran-
sitorio, não ha negar. Uma rapida apreciação do caracter
differencial das dispensações “mosaica” e “messianica"
bastará para convencer da procedencia dessa affirmativa.
O “Decalogo”, que representava o "direito material ou sub-
stantivo”, nada prescrevia sobre a evocação dos mortos;
esta particularidade só appareceu com caracter prohibitivo
em textos “extravagantes” (no sentido juridico), porque não
possuia o cunho de “permanencia” e sim o de “temporarie-
dade”. A próva provada nol-a dá o caso ele Saul, contra a
__________ (2) Mattathias Gomes dos Santos e Alexandre M. Orecchia, lentes do
Mackenzie College.
— 28 —
qual jamais poderia prevalecer a mais trabalhada dialectica.
Militam a favor desta these mais dois argumentos, assás
poderosos. O primeiro, reveste-se de autoridade absoluta,
porque se baseia na palavra do proprio fundador do chris-
tianismo: "A lei e os prophetas (isto é, o Velho Testamento)
duraram "até" á vinda de João". Que significam essas pa-
lavras á luz da hermeneutica? Claramente isto: todas as
disposições do "Antigo" Testamento deixaram de vigorar
"desde' que appareceu o Messias annunciado por João Ba-
ptista, seu precursor e contemporaneo. Cessou, com o ad-
vento do Christo, a vigencia das leis que prégavam a justiça
do "olho por olho e dente por dente". Começaria a vigorar a
justiça do "Novo Testamento”, indissoluvelmente unida ao
"amor do proximo".
O segundo argumento é fornecido pelo doutrinador dos
Gentios, no capitulo sete de sua primeira carta aos Corinthios.
Figurando o caso de um marido "pagão” abandonar o lar,
por ser "christã” a sua esposa, diz o apostolo que a mulher
se deve conformar com esse passo do marido, desde que o
motivo, "neste caso", seja determinado pela "diversidade
de crédo”.
Si estivesse em vigor "aquella” legislação dada aos he-
breus, certamente o apostolo teria dado outra solução ao
caso, recommendando a partida do "retirante pagão" não
para outro lar, mas para o outro mundo...
Finalmente, não deveriamos esperar que os rabbinos
judeus, "armados" pelo Deuteronomio, viessem prégar contra
o espiritismo, porque o rigor do ataque iria ao ponto de fazer
reviver as demais disposições repressivas, que abalariam pro-
fundamente os alicerces do nosso edificio juridico. Nesse
caso, os marchantes não mais poderiam fornecer á sua fre-
guezia o toucinho e a carne de porco, cujo uso era expressa-
mente prohibido. Veriamos, de par com certas prohibições, o
— 29 —
restabelecimento do direito pertinente aos credores de, em
caso de insolvabilidade, poderem vender em leilão os seus
devedores e respectivas familias, comprehendendo esposas,
filhos, filhas, nétos e nétas...
O proprio rabbinismo sentiria escrupulos de consciencia
ante a applicação dessa dolorosa therapeutica social...
("Diario da Noite")
______________
—30 —
"Superstição perigosa"
________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— IV —
O RABBINISMO NA HISTORIA
Conta-nos um medico, que certa vez o apostolo Pedro e
seus companheiros, no desempenho da sagrada missão de
ensinar ás classes populares a doutrina do Nazareno, encon-
traram tão forte opposição da parte dos rabbinos judeus,
que não escaparam á sanha destes formalistas: foram açoi-
tados e mettidos no cárcere. Accrescenta o escriptor que um
"anjo" (o da guarda), mensageiro do Amor e da Paz, da Mi-
sericordia e da Justiça, abriu-lhes a porta da prisão, e, saindo
os detentos para a rua, continuaram no arduo trabalho de
acalmar, com a doutrina da verdade, os corações attribula-
dos e opprimidos pela hypocrisia do rabbinismo anti-christão.
Relata-nos ainda o piedoso escriptor, que esses opposito-
res, numa verdadeira explosão de intolerancia, disseram a
Pedro e a seus companheiros: "Já vos declarámos que é
expressamente prohibido falar em nome desse Jesus, e, no
emtanto, vemos que encheis Jerusalem dessa doutrina".
A resposta do apostolo estimulou maior opposição, pois
foram estas as suas palavras: “Importa obedecer mais a
Deus do que aos homens". A' vista da ousadia do galileu,
correram os rabbinos em busca de uma autoridade theologica,
cuja voz havia de ser ouvida e acatada não somente pelo povo
por elles mesmos amotinado mas tambem pelos ousados
semeadores da moral christã. Essa autoridade para quem
appellavam os orientadores do pensamento “judeu", era
— 31 —
respeitavel, pela prudencia com que julgava as questões
pertinentes á religião e pela sabedoria profunda que revelavam
as suas luminosas decisões, verdadeiros postulados. Era
Gamaliel, principal entre os phariseus e doutor da lei.
Ouviu o grande magistrado as razões articuladas no
libéllo crime formulado pelos rabbinos, contra a liberdade
de consciencia e de pensamento de que usavam Pedro e seus
companheiros, em plena praça publica, onde explicavam a
doutrina nascida na mangedoura de Bethlém. Collocara-se
Gamaliel numa posição critica, ou melhor, collocaram-no
entre as pontas de um dilemma: si attendesse aos rabbinos,
proclamaria o triumpho do "fermento phariseu" contra a
moral christã; si confirmasse o direito do apostolo, de falar
em publico acerca das verdades pregadas pelo Filho do ho-
mem, cahiria no desagrado de seus pares e do povo...
Porém, aquelle que allia á idéa o "sentimento" da ver-
dade e da justiça, não encontra embaraços nem sacrificios
para vencer as ciladas da hypocrisia. Eis a fundamentada
sentença do grande Gamaliel: "Varões israelitas, reparae
bem no que pretendeis fazer acerca desses homens ora accusa-
dos por serem discipulos do Nazareno; lembrae-vos de que
ha tempos, surgiu aqui um tal Theodas, que se dizia um
grande homem, e conseguiu cercar-se de uns quatrocentos
homens. Foi infeliz, porque lhe deram a morte e seus seguido-
res desappareceram. Depois deste, levantou-se um outro
homem, chamado Judas Galileu, nos dias do recenseamento
geral, e, com suas artimanhas, arrebanhou grande numero
de sectarios. Pereceu esse homem e com elle toda a sua seita.
Por isso vêde bem o que desejaes fazer com referencia a Pe-
dro e seus seguidores. Si estes homens forem uns impostores,
terão o mesmo fim daquelles dois outros; mas si essa doutri-
na que agora é annunciada, tem approvação do Alto, não a
podeis destruir. Nesse caso, aconselho-vos a que não vos
mettaes em luta contra elles, para não commetterdes a
loucura de pretender impedir a marcha de uma obra approva-
da e ordenada pelo Senhor da Terra".
— 32 —
Ahi vae o que a historia nos ensina, a historia ec-
clesiastica, esboçada por Lucas,(1) que é um dos mais bri-
lhantes collaboradores do Novo Testamento, ferozmente
atacado pelo rabbinismo impenitente e contumaz.
E' de profunda significação moral e philosophica o en-
sino do sábio Gamaliel, mestre do ardoroso Saulo de Tarso,
subitaneamente transformado no defensor da Fé. E' de ca-
pital importancia a rememoração desse episodio historico,
verificado entre os membros da egreja nascente. Essa passa-
gem, relatada com aquella simplicidade tão peculiar aos
primeiros discipulos do Prégador Divino, encerra sabedoria
que assumiu a autoridade imperativa das boas leis, razão
por que, constitue um preceito vigente no mundo moral:
"Idéa perseguida é idéa propagada".
Insurgiu-se o rabbinismo, de mãos dadas com o sad-
duceismo, contra a autoridade do grande apostolo e compa-
nheiro do fundador do christianismo. Eis que, em pleno sec.
XX o rabbinismo é lembrado com saudades, e a sua acção é
solicitada para combater no mesmo campo, com as mesmas
armas e contra a mesma causa...
Justo é, e assás opportuno, relembrar a sábia e judiciosa
sentença de Gamaliel, em que pese a lembrança do nosso
illustre patricio.
O "simile" é perfeito...
("Diario da Noite")
___________
(1) Actos, cap. V.
____________
— 33 —
"Superstição perigosa"
_________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— V — “Não ha absurdo que algum philosopho não
haja sustentado", — CICERO.
Vamos analysar o ponto substancial do libello articulado
pelo illustre patricio contra o espiritismo, baptizado com o
nome de "superstição" e chrismado com o qualificativo de
"perigosa".
Tomando a expressão no seu sentido etymo-etiologico,
verá o leitor a improcedencia da accusação irrogada pelo
professor do Collegio Pedro II. Não só improcedente, mas
infeliz a locução verbal. Sinão, vejamos.
De accôrdo com o ensino dos mestres, “superstição é
sentimento de veneração religiosa fundado no temor ou
ignorancia e que conduz geralmente ao cumprimento de falsos
deveres, a chimeras ou a uma confiança em coisas ineffica-
zes; opinião religiosa fundada nos prejuizos ou crendices.”(1)
Vamos vestir essa noção com roupagem mais popular:
“superstição” é um sentimento gerado pelo temor religioso, e
este temor é fructo da falsa idéa ácerca da divindade. Ahi
está a mythologia, que nos abre as portas para o grande
campo onde admiramos a esplendencia da potencialidade
imaginativa e creadora do homem. Nessas paragens de falseda
_____________
(1) Encyclopedia e Diccionario Internacional.
— 34 —
sentimentalidade religiosa, revela-se a energia vital
dos preconceitos e crendices. Dahi as chimeras, as utopias
allucinatorias e as lendas, constructoras dessa supersticiosida-
de a que não escapam certos espiritos, ainda que refractarios
ás idéas religiosas.
OS HEBREUS E AS SUPERSTIÇÕES
Moysés estabeleceu aquella legislação "de ferro" para
os hebreus, porque as idéas religiosas dos povos, através de
cujo territorio precisava atravessar com seu povo, estavam
mergulhadas num oceano de superstições. Dizia elle: "Não
se ache entre vós quem purifique o filho ou filha "pelo fogo",
nem quem indague dos mortos a verdade." Qual o fundamento
dessas prohibíções? E' o de que nos occupamos.
Sabe o leitor a que especie de fogo se refere o guia do
povo hebreu? E' possivel que não esteja bem lembrado, pois
esse ponto se perde na noite da antiguidade. Consultemos
juntos a historia. Moysés lutava contra povos inimigos,
adoradores de muitos deuses. Ora, um dos pontos capitaes
do seu programma era exactamente a imposição do "mono-
theismo", com o emprego mesmo da violencia: "Si tua espo-
sa, ou tua filha, ou teu filho ou teu pae, quizer pensar "li-
vremente" em materia religiosa, seja morto a pedradas, e a
tua mão atire a primeira pedra."
CRUELDADE DO DEUS MOLOCH
Vejamos a tal purificação "pelo fogo", a que se refere o
Deuteronomio. Moloch era a divindade adorada pelos ammo-
nitas, com os quaes estava em contacto o povo de Israel.
Essa divindade era representada por uma estatua de grandes
proporções, ôca, de bronze, tendo o corpo de homem e a
cabeça de bezerro, com os braços estendidos para a frente e a
palma das mãos voltada para cima. Os sacerdotes accendiam
"um fogo ardentissimo" dentro da estatua, e quando ella
ficava inteiramente vermelha, deitavam em seus braços as
— 35 —
victimas para o sacrificio, isto é, os filhinhos dos adoradores
de Moloch. As creanças ficavam carbonisadas em poucos
minutos. Para abafar os gritos da victima, diz-nos Philippe
Schaff, os sacerdotes rufavam os seus tambores.
Segundo esse grande orientalista, os judeus chegaram a
imitar essa pratica supersticiosa e cruel.
A VISUALISAÇÃO DE MOYSE'S E O DIREITO
MODERNO
O objectivo de Moysés prendia-se a dois fins: a) impôr o
monotheismo ao povo retirado do Egypto, através das mil dif-
ficuldades resultantes do contacto com outros povos polytheistas,
contra os quaes levantava a espada de Israel; b) formar a uni-
dade nacional, isto é, constituir a nação judaica.
Observa com acerto o distincto escriptor patricio, dr.
Carlos Imbassahy: "Foi o "trafico", degenerado em abuso,
explorado pelo charlatanismo, pela ignorancia, pela creduli-
dade e pela superstição, que motivou a prohibição de Moy-
sés." Accrescentamos nós: essa velharia legislativa pertence
áquelles tempos, e foi para um povo e não para os povos, com
o que concorda o grande theologo baptista, rev. dr. R. Pi-
trowsky. (1)
Nenhum brasileiro mantém hoje o commercio de escravos,
porque a legislação que tal crime tolerava não mais vigora
no paiz. O nosso Codigo Civil encerra materia que, no tempo
da escravidão — para não recuar mais longe — seria clas-
sificada como um acervo de "monstruosidades"...
O ELEMENTO HISTORICO DAS LEIS — LIÇÃO
DE REYNALDO PORCHAT
Não nos esqueçamos de que as leis devem reflectir as
necessidades sociaes. Recordamo-nos ainda das sábias lições
do nosso excellente mestre de Direito Romano, uma das
_________
(1)O sabbatismo — obr. cit.
— 36 —
mentalidades mais fulgurantes da Academia de Direito de
S. Paulo e uma das legitimas glorias da sciencia juridica no
Brasil. Dizia-nos o grande mestre, sobre a hermeneutica ju-
ridica, baseada no ensino do Direito Romano, fundamento
basilar do edificio juridico de todas as nações civilisadas: (1)
"E' de grande importancia o elemento historico no estudo
da interpretação, pois, para se conhecer convenientemente
uma disposição legislativa, convém conhecer-lhe a historia O
elemento historico é aquelle pelo qual se investigam as condi-
ções de tempo e de logar em que foi promulgada uma lei, com
o fim de conhecer as circumstancias sociaes que a determia-
ram e a legitimaram. Por elle se procura saber qual era o
estado de coisas no momento em que surgiu a regra juridica,
indagando-se quaes as modificações produzidas por essa
regra."
A palavra do notavel jurisconsulto brasileiro, inspirada
nas profundezas da Sciencia do Direito, é uma tocha resplen-
dente que dissipará toda e qualquer nuvem que perpasse
pelo espirito daquelles que quizerem interpretar fielmente
as leis estabelecidas pelo mosaismo.
"SCIENCIA" E NÃO "SUPERSTIÇÃO PERIGOSA"
Ahi tem o sr. Laet explicadas as razões que militavam a
favor da legislação escripta "com sangue”, cujos textos não
poderiam, em absoluto, ser invocados para suffocar o espi-
ritismo, porque não estamos naquelles tempos de lapidação...
O corpo doutrinario kardecista está tão proximo da
superstição, como do nosso Codigo Civil está o Deuteronomio.
Isso a que o nosso patricio chama "superstição perigosa”,
diz-nos o sabio francez Gabriel Delanne, famoso biologista, "é
uma sciencia cujo fim é a demonstração experimental da
existencia da alma e sua immortalidade. Por isso nos apre-
sentamos audazmente ao mundo, apoiados sobre as bases
(1) Dr. Reynaldo Porchat — Direito Romano, vol. II pag. 415.
— 37 —
inabalaveis da certeza scientifica" Sobre o assumpto, diz o
sabio naturalista A. Russell Wallace: "A asserção commum-
mente emittida de que o espiritismo não é mais do que a
continuação ou o renascimento de antigas superstições, ca-
rece de fundamento; pois é uma sciencia da natureza humana,
está baseada em factos bem comprovados; recommenda a
experimentação, não acceita nenhuma crença que tem por base a fé, aconselha a investigação da verdade como um dos pri-
meiros deveres que têm os seres intelligentes, ensinando que a
felicidade na vida futura depende sómente do cultivo e de-
senvolvimento das mais elevadas faculdades de nossa na-
tureza moral e intellectuat, e é portanto natural inimiga de toda superstição".
"A sciencia — adverte John Stuart Mill — é uma col-
lecção de verdades. Isto é ou não é; isto se dá ou não se dá.
A sciencia toma conhecimento de um phenomeno e procura
descobrir suas leis."
Estamos a apostar em como o leitor está plenamente
convencido de que a superstição jamais subirá as escadas
dos laboratorios. E' que ahi se encontram duas terriveis
inimigas: a positividade dos factos e a certeza scientifica...
Veremos dois casos interessantes de superstição, numa
egreja protestante do Brasil e numa outra egreja, na super-
civilizada França.
("Diario da Noite")
___________
— 38 —
"Superstição Perigosa"
__________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— VI —
"Acreditamos que Jupiter reina nos céos, quando
o ouvimos trovejar". Phrase de Horacio.
PROPHECIA PROTESTANTE
Fructo de erros e preconceitos, a superstição idealiza
concepções as mais extravagantes acerca do caracter da
divindade. Dahi a estagnação e immobilidade de certas dou-
trinas, como, por exemplo, a da "salvação pela graça" e a
da "predestinação eterna", prégadas pelo protestantismo,
hoje repudiadas dentro mesmo das communidades protes-
tantes, por incompativeis com a moral christã e com a propria
razão. Ankylozado em dogmas, o protestantismo fóge de
as analysar, porque... são dogmas impostos pela Refórma
do sec. XVI, e como taes devem merecer toda reverencia,
ainda que o estado actual do espirito humano exija alguma
coisa a mais, além da crença céga. Mui judiciosa é a adver-
tencia do grande philosopho christão, Léon Denis: "A hu-
manidade, cansada de dogmas e de especulações sem próvas,
mergulhou-se no materialismo ou na indifferença. Não ha
salvação para o pensamento senão em uma doutrina baseada
sobre a experiencia e o testemunho dos factos." (1)
____________
(1) "Problema do Ser o do Destino".
— 39 —
Perfilhando o mesmo modo de pensar, prophetiza John
R. Mott, notavel membro de uma communidade protestante
dos Estados Unidos, "que o christianismo passará dentro
de cinco annos pela maior crise em sua historia, porque a
humanidade está mergulhada no materialismo". Pessimismo
desses pensadores? Não, porque aspiram ambos ao mesmo
ideal christão: o aperfeiçoamento do homem, pela pratica
das virtudes christãs. Reconhecem, entretanto, que o chris-
tianismo segue orientação falseada.
O falseamento provém de erros e tradições accumulados
pelos seculos e que vêm eclipsar o pensamento religioso em
nossos dias. Dahi o deliquio da espiritualidade e das crenças,
em todos os ramos do christianismo.
DO PROTESTANTISMO AO ISLAMISMO
Fiel ao programma que nos impuzemos, deixaremos
documentada a these que vimos defendendo, isto é, que não
cabe ao espiritismo o nome de "superstição" com que o ba-
ptizou o nosso illustre patricio, a quem são dedicadas estas
linhas.
Vem de molde hoje a palavra de uma grande autoridade
no assumpto. Referimo-nos a um dos nobres da Inglaterra,
membro da egreja presbyteriana e que acaba de se passar
para a egreja mahometana: lord Headley, chefe da Sociedade
Mahometana Ingleza. Palavras suas:
"Dezenas de milhares de christãos são adeptos incons-
cientes da religião mahometana, que é o christianismo com
"menos superstição", e está mais próxima do presbyterianis-
mo do que o catholicismo romano. A religião deve ser "pro-
gressista e não estagnante". Si as egrejas estão hoje vazias,
não é devido á irreligião, porém ao facto "de estar mais de-
senvolvida a intelligencia nos nossos dias". A idéa de um
Deus "colérico", sempre "á espreita" para "esganar-nos" e
atirar-nos á perdição por causa de "inhabilidades e fraquezas
com que nascemos", deve ceder lugar a uma "divindade
— 40 —
justa e razoavel", a quem possamos dedicar-nos sem que
seja necessaria a dependencia de cada um aos nossos semelhan-
tes. " (1)
Não nos parece desarrazoada a visualização do pres-
byteriano inglez, hoje alistado nas fileiras mahometanas.
Combate elle a "supersticiosa" idéa que fazem os protestantes
acerca do Creador, pintado pelas especulações theologicas
como uma personalidade iracunda e que nos segue ás escon-
didas, para infligir-nos as penas eternas a cada momento,
porque a todo momento estamos commettendo erros após
erros...
Não é de materialista esse punhado de conceitos...
SUPERSTIÇÃO NA EGREJA PRESBYTERIANA
Acreditam os presby terianos, como os demais membros
da christandade, na “immutabilidade” de Deus, attributo
exclusivo da Perfeição. Divulgam reverentemente o ensino
do apostoio Tiago: "Toda a dadiva em extremo excellente,
todo o dom perfeito vem lá de cima, e desce do Pae das luzes,
no qual não ha mudança, nem sombra alguma de variação.".
Mas, incidem num erro que toca ás raias da mais cara-
cterizada “superstição”, quando affirmam theologicamente
que a redempção do homem não será conseguida emquanto
não fôr “aplacada a ira de Deus”. Do mesmo modo que lord
Headley, tambem nós não comprehendemos uma “immuta-
bilidade” que colloca a Perfeição Infinita ao alcance dos tre-
mendos golpes do rancor e das iras... Não faltariamos com a
reverencia que merece o assumpto, dizendo, por nossa vez,
que não é isso o que nos ensina o citado texto do apostoio...
Essa crença pregada pelo calvinismo pécca por “supers-
ticiosa”. Não ha prodigios de raciocinio nem malabarismo
de exegese que nos convençam do contrario, porque não ha
_____________
(1) "O islamismo no occidente" "O Estado de S. Paulo ", de 9 de
março de 1925).
— 41 —
verdades contra a verdade... Não nos esquecemos de que a
palavra foi creada não para mascarar, mas para vestir o
pensamento.
Sabemos que, de todas as seitas protestantes, é a pres-
byteriana a que se presume mais proxima da verdade reli-
giosa, e não seremos temerario em affirmar que o presbyte-
rianismo se colloca na posição de quem está na posse da ver-
dade integral, neste assumpto. Vae o leitor apreciar um facto,
isolado, é verdade, mas os factos contam-se mesmo por uni-
dades... Ousamos cital-o, para corroborar a nossa affirmati-
va, isto é, que a "superstição" existe onde o sr. Laet pensava
não existir.
Conta-nos uma correspondencia transcripta no orgão
da egreja presbyteriana independente brasileira, em data de
24 de Setembro de 1925, que alguns protestantes foram mal-
tratados no Estado da Bahia, quando realizavam o seu tra-
balho de propaganda. Vamos reproduzir a noticia tal como a
lemos, sem lhe tocarmos numa virgula. Eil-a:
"De Canudos, escreve o sr. José Nunes do Amaral ao
"O Escudeiro Baptista": "Desde novembro estamos soffren-
do perseguições em Capellinha. Fui ameaçado de ser jogado
de uma ponte dentro do Rio do Meio. Como nesse dia passei
um pouco mais cedo escapei. Mas os crentes que vinham
mais atrazados foram cercados por uma turma de homens
armados de cacetes, estacas e garruchas, empurrando os
crentes e intimando-os a não mais prégarem aili. Um turco,
que era o commandante, dava urros, fora os protestantes!
Tudo isso acompanhado de foguetes fornecidos pelo proprio
turco, e palavras indignas contra os nossos irmãos, senhoras e
moças; foi uma scena pavorosa. O nosso Deus, porém, que
não dorme, chamou o turco a contas: dentro de 5 dias estava
na eternidade. Uma senhora que havia tirado uma mocinha
para insultar os crentes foi accommettida de um mal em uma
das mãos, e, ficando aleijada, mandou pedir as nossas orações
e o prégarmos em sua casa, o que já fizemos umas tres vezes.
Uma irmã dessa senhora sabendo que ella nos chamara a
— 42 —
prégar ficou furiosa, e accommettida do mesmo mal, ficou
tambem com uma mão aleijada, e gravemente enferma, con-
vida-me a ir á sua casa, promettendo-me que se ficasse boa
iria assistir aos cultos. Graças a Deus ella já está de pé."
("Estandarte" n. 39).
Factos e palavras dessa natureza não se commentam;
lastimam-se. Mas, fugiriamos da méta que nos traçámos,
si ficassemos só com essa lição. O de que nos admiramos é
precisamente da idéa feita pelos evangelistas, acerca desse
Deus "que não dorme", segundo a expressão dos "evangeli-
zadores". Cultuam no Brasil o erro e a "superstição" com-
batidos na Inglaterra por um dos mais eminentes evangelis-
tas...
Após vinte seculos de civilização christã, ainda existem
creaturas que adoram o Creador, não pela belleza esplendente
dos seus attributos nem pelo sentimento de amor filial, mas
porque "tremem" ao ouvir os trovões da "sua ira", annun-
ciadores dos terriveis castigos e vinganças que descem sobre
os filhos que querem "servir" ao mesmo Pae!
Eis a "superstição" carregada em triumpho e baptizada
com as tintas da "transcripção", afim de espalhar maior
"temor" dessa divindade que vive mal humorada, porque
"nao dorme"...
"Superstição perigosa" não é a que exige de cada crea-
tura o "amor a Deus acima de tudo e ao proximo como a si
mesmo", mas essa que ahi vemos, com todas as letras, sahida
das Faculdades de Theologia, para se constituir em "farol
da humanidade"...
Revela-se vigorosa e actualizada aquella phrase de
Horacio...
("Diario da Noite")
___________
— 43 —
"Superstição perigosa"
_________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— VII —
SUPERSTIÇÃO FLAGELLANTE DE UMA
NOVA SEITA
Mais alguns artigos, e ciaremos por encerrada esta série,
em que deixamos provada a improcedencia da accusação feita
pelo illustra patricio contra uma doutrina que lhe é inteira-
mente desconhecida e á qual deu o pittoresco nome que epi-
grapha estas linhas.
Nos artigos precedentes deixámos demonstrado que o
sr. Laet não deve esperar o concurso dos protestantes nem
dos rabbinos judeus, no "bradar" contra o espiritismo, por-
quanto: a) segundo declarou o illustre pastor e literato Otho-
niel Motta, o protestantismo brasileiro, em uma lucta "séria",
está "miseravelmente armado” (sic) para enfrentar o espi-
ritismo, pois só dispõe de "bodoques e tacapes” (sic); b) o
desarmamento completo, a que se refere o zeloso successor
do nosso saudoso e querido amigo Eduardo Carlos Pereira, é
no terreno historico e sociologico; c) tambem no terreno bi-
blico os pastores protestantes se acham desarmados, do que
dá provas a recente pugna jornalistica entre o pastor da
cidade de Rio Preto e um leigo, espiritista, pugna que ter-
minou com a deserção do theologo presbyteriano; d) a unica
artilheria theologica de que se poderia valer o protestantismo,
encontra-se no Velho Testamento, mas este "arsenal" ficou
— 44 —
com as suas portas fechadas a sete chaves, desde que appare-
ceu o "Novo" Testamento, cuja doutrina nos vem ensinar
que a vetusta legislação mosaica era “transitoria", com o
caracter de emergencia, estabelecida "para um povo" — o
judeu — e nunca "para os povos", these esta brilhantemente
defendida “hoje” por grandes mentalidades protestantes(!), a
começar do pastor baptista rev. dr. R. Pitrowisky, em obra
já citada, e recentissima; e) os rabbinos judeus amoldam-se
hoje á legislação do paiz onde se acham domiciliados, e jamais
invocariam aquella legislação que condemnaria a liberdade
de consciencia e de pensamento a cuja sombra vivem elles,
sob a protecção do direito moderno, que prohibe aos credores
de se apropriarem da esposa e filhas do seu proximo, em
pagamento de dividas...; f) não pódem os pastores protes-
tantes “bradar” contra a “superstição” a que se refere o sr.
Laet, pois o presbyterianismo, que se presume na posse ab-
soluta da verdade religiosa, divulga pela imprensa aquella
“superstição” da seita baptista, segundo a qual, o Deus dos
protestantes “chama a contas” com a morte e com deformi-
dades, todos aquelles que, por ignorancia, lhes embaraçam a
propaganda proselytista; g) os pastores protestantes, em
suas “bodocadas” contra o espiritismo, lançariam tambem
umas “pelotas” contra o catholicismo romano, de cujas dou-
trinas são adversarios implacaveis.
Estão, pois, fóra de combate os dois elementos em que o
sr. Laet depositava a sua confiança, para auxiliar o clero
catholico no arduo trabalho de perseguir o espiritismo por
meio de um “bradar incessante”...
Vejamos um outro caso de superstição, do qual se occu-
param os jornaes de toda a parte. E' um caso surprehenden-
te, porque se passou não nos sertões do “selvagem” Brasil,
mas na cultissima França, berço de Bossuet, Fénélon e Cha-
teaubriand. Vamos apreciar a face perfeitamente caracteriza-
da de uma legitima “superstição” que o sr. Laet só enxerga
no outro lado...
— 45 —
O grande orgão da imprensa paulista (1) deu aos seus
leitores, em tres columnas, farta noticia do tristissimo acon-
tecimento, de que nasceu ruidoso processo judicial.
Essa copiosa narração colheu-a o brilhante matutino
paulista nos jornaes francezes, entre elles o “Excelsior", de
Paris. Transcrevemos uma pequenina parte:
"Um espantoso attentado, que lembra as antigas prati-
cas do fanatismo religioso e de feitiçaria, verificou-se hontem,
em Bombon, perto de Melun. O cura dessa communa, padre
Desnoyers, de cincoenta e seis annos de edade, tendo acabado
de celebrar a missa, retirara-se á sacristia, quando foi cerca-
do e assaltado por um bando de doze pessoas, dez homens e
duas mulheres, que silenciosamente se lançaram sobre elle
após lhe terem deitado um punhado de pimenta aos olhos.
Fortemente amarrado, amordaçado e reduzido á immobili-
dade, foi o sacerdote estendido no pavimento. Ergueram-lhe a
sotaina, descalçaram-no e tiraram-lhe as meias. Depois, com
uma grossa corda cheia de nós, chamada "disciplina", os
doze aggressores, um por um, lhe infligiram uma flagellação.
Quando aos gritos da victima, os policiaes chegaram, emfim,
o infeliz sacerdote, moido da sova, tinha o corpo todo ensan-
guentado. O medico, chamado immediatamente, declarou que
pelo menos um mez seria necessario para o seu restabeleci-
mento. Conduzidos á policia de Melun, os autores do atten-
tado declararam terem vindo de Bordéus, onde habitam
todos, “para extirpar do corpo do padre Desnoyers o espirito
do mal, de que se acha possuido."
“Toda essa gente é de mui honradas condições. Perten-
cem á ordem de Nossa Senhora das Lagrimas, de Bordéus, e
pretendem, effectivamente, que ha muito tempo lhes deita o
cura de Bombon sortes e maleficios e o tornam responsavel
por todas as desgraças e mortes sobrevindas nas suas familias."
__________
(1) "O Estado de S. Paulo", de 28-11-1926.
—46 —
— Basta essa fracção da noticia publicada pela imprensa
parisiense.
Vimos hontem os actos e ameaças de que se queixaram
os protestantes lá no norte do Brasil, actos e ameaças que
mascaram repolhuda superstição; vemos hoje "actos e fa-
ctos" que "desmascaram" uma perigosissima “superstição”
porque deu nascimento a uma "seita” dentro do catholicismo
romano, graças á piedade flagellante de uma senhora da
mais alta posição social, "madame” Maria Mesmin, directora
da Ordem de Nossa Senhora das Lagrimas!
Não pense o leitor que esse facto teve lugar em alguma
aldeóla franceza. A proposito, diz o jornalista paulistano:
"Mas quiz o acaso que a historia se désse ali mesmo, na ar-
chicivilizada França, a dois passos de Bordéus, entre authen-
ticos gaulezes, que são, como se sabe, a mais civilizada gente
do planeta..."
E porque se deu esse attentado brutal? E' que madame
Marie Mesmin, chefe da seita do "mesminismo", se dizia
victima das bruxarias feitas pelo pobre do cura!
Ahi tem o sr. Laet a irretorquivel dialectica dos "factos”,
contra a qual nada poderá a mais habil acrobacia literaria.
Não nos admiramos ante o apparecimento dessa seita dentro
do catholicismo. Na America do Norte, onde vicejam cente-
nas de seitas protestantes, acaba de nascer outra, o "néo-
puritanismo”, cujo methodo de acção leva a dianteira ao
das outras, pela refinada aggrcssividade da intolerancia de
seus adeptos, que forcejam por metter na cabeça de seus
semelhantes a Biblia inteirinha, sem discrepancia de uma
virgula, de uma letra, de um versêto. Maior alento tomou
essa seita, depois do formidavel e escandaloso processo contra
o professor Scopes, pelo "crime” de ensinar a doutrina da
evolução...
Deve lembrar-se o leitor de que, tão grande foi a fer-
mentação da intolerancia religiosa entre as seitas protestantes,
— 47 —
que o advogado da accusação, dr. William J. Bryan se
apaixonara de tal modo, que veiu a succumbir, victimado por
uma congestão cerebral!
Ha outras seitas, nascidas nos dias que correm: o "an-
toinismo”, na Belgica; o “corkirismo", na Irlanda, e ainda
na America do Norte o “woodismo".
Felizmente o espiritismo não tomou parte na formação
dessas seitas modernas, nem tampouco insuflou madame
Mesmin a flagellar os seus semelhantes. Directora da Ordem
de Nossa Senhora das Lagrimas, possue ella o seu oraculo
particular, longe da "superstição perigosa", na opinião do
sr. Laet.
Nos proximos e ultimos artigos, contestaremos outro
ponto do libello articulado pelo nosso patricio, referente ás
"curas". Contaremos ao leitor um “facto” de relevante im-
portancia, verificado com um filho de notavel membro da
nossa sociedade. Aguarde-nos a benevola attenção do leitor,
na certeza de que não viremos fazer literatice.
("Diario da Noite")
____________
— 48 —
"Superstição perigosa"
___________
(AO SR CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— VIII — Não ha negar a caridade da corporação medica
brasileira; mas tambem é certo que sob a pressão da po-
breza, agora quasi geral em nosso paiz, o misero
operario,
o serviçal domestico e mesmo o pequeno funccionario pu-
blico não dispõe de haver es com que possa remunerar o
trabalho dos facultativos e pagar avaliadas sommas nas
pharmacias. Offerece-se, então, o curandeiro espiritista,
tolerado pelas autoridades, que deveriam zelar sobre a
saude publica, e aos desajudados da fortuna depara os
bons serviços do Medico do Espaço, que, dizem, nunca
erra os diagnosticos e cura com agua saturada de fluidos
e dada de graça, ou vendida a baixo preço. Como resis-
tirem os desgraçados a tão seduclora offerta?" (Carlos
de Laet),
PASTORES PROTESTANTES DEFENDEM ESSA
THERAPEUTICA
Os "factos" dispensam argumentos, porque falam sem
palavras...
Os pastores protestantes não pódem mesmo prestar o
auxilio lembrado pelo sr. Laet, no "bradar" contra o espiri-
tismo, porque elles proprios reconhecem a realidade das
“curas” espiritisticas.
— 49 —
Vamos apreciar o testemunho de conhecidos membros
do protestantismo brasileiro, cuja palavra nos causa profunda
impressão, porque se acha revestida do cunho da "insuspei-
çao".
Existe na Capital Federal um jornal protestante, deno-
minado "O Ex-Padre", redigido por quatro pastores protes-
tantes, ex-padres catholicos, e que são os seguintes: rev.
dr. Victor Coelho de Almeida, rev. João T. Ziller, rev. Alipio
Gonzaga de Barros e rev. Hyppolito de Campos. E' um or-
gão de propaganda das doutrinas pregadas pelo protestan-
tismo; sua redacção está installada á rua Bella Vista, n. 51
no Engenho Novo. Pois bem. Deante dos ataques feitos aos
"mediuns curadores" por individuos que desconhecem o
assumpto, eis que esse orgão, genuinamente protestante e
por isso mesmo "genuinamente insuspeito", veiu falar de
publico, com a autoridade que possue o seu nome, acerca
da realidade das curas operadas pelo espiritismo. Em o nume-
ro de 15 de novembro de 1924, á pagina 2, lemos o seguinte:
"Têm causado grande impressão no espirito do povo as
curas realizadas em Campos e em Recreio pelo Professor
Mozart. Homem bom, altruistico, abnegado, dotado de ex-
traordinario poder magnetico, de vontade energica e alta
capacidade de suggestionar, tem realizado curas singulares.
Julgamos que as curas do Professor Mozart são de ordem
natural, ainda que excepcionaes. Não vemos motivo para
censural-o. Qualquer que seja o campo doutrinario em que
elle se acha, qualquer que seja a somma de verdades ou de
erros religiosos em que a sua culta intelligencia se fixou, o
certo é que, além do poder natural que tem de hypnotizar e
de imperar por suggestão, é um homem que crê firmemente
em Deus e em Jesus Christo e com respeito e fé invoca o
poder divino. Teme a Deus, respeita a lei, faz larga e desin-
teressadamente o bem... Elle proprio declarou que não faz
milagres... Mas... faltou-lhe pedir licença ao catholicismo
para fazer curas extraordinarias... Dahi a perseguição ini-
qua que lhe movem, etc."
— 50 —
Vê o sr. Laet que no protestantismo ha olhos fiscaliza-
dores que acompanham com rigoroso cuidado os passos e a
vida dos mediums curadores. Pelo testemunho de seus ad-
versarios, o espiritismo vê reconhecida a realidade das suas
curas, levadas a effeito não pelo interesse monetario, mas
"abnegadamente", em virtude do amor e da fraternidade
christã.
Si "o misero operario", "o serviçal domestico”, e mesmo
"o pequeno funccionario publico” não dispõe de recursos
para pagar o trabalho dos medicos, é... porque estes não
fazem preço proporcional ás posses desses pobres clientes...
E' a conclusão a que nos conduz a propria palavra do sr.
Laet...
"Offerece-se” então o "curandeiro espiritista”, diz o
nosso patricio. E' um grande equivoco. Os mediuns curado"
res não se offerecem; “são procurados" pelos padecentes-
O nosso illustre adversario tem um meio ao seu alcance, para
se convencer do que lhe affirmamos. Dirija-se pela manhã,
durante o dia ou á tarde, á Avenida Passos, ns. 28 e 30, onde
funcciona a
FEDERAÇÃO ESPIRITA BRASILEIRA
e terá a prova do que dizemos. Não é preciso entrar nos sa-
lões confortaveis do grande edificio. Plante-se no passeio
fronteiro, durante uns quinze minutos.
Admirar-se-á o nosso illustre amigo, deante daquella
multidão que sobe e desce as escadarias, num formigamento
notavel. Verá muitas senhoras, muitos cavalheiros, uns dei-
xando, outros procurando as suas “limousines", “Buick”,
"Studebaker”, “Lincoln”, etc.
Este facto dará a convicção de que os consulentes não
são só “misero operario”, “serviçal domestico” e “pequeno
funccionario publico"... mas a opulencia soffredora que
procura allivio onde tantos alliviados levantam preces de
agradecimento ao Pae!
— 51 —
Para que o leitor faça uma idéa do movimento de con-
sultas naquella casa, bastará citar aqui o numero de receitas
aviadas em 1925: cerca de "700.000"!
E' o que nos diz o relatorio apresentado pela directoria e
lido em assembléa geral, pelo 1° secretario, sr. dr. Guillon
Ribeiro, director aposentado da Secretaria do Senado.
Cumpre advertir não ser essa casa a unica onde ha me-
diums curadores e receitistas. Além de outros centros, indi-
caremos o de receituario installado no Botafogo á rua Vo-
luntarios da Patria, 18, sobrado, sob a direcção do conhecido
jornalista Ignacio Bittencourt.
Procuram allivio alli, em média, 200.000 pressoas por
anno. Tivemos occasião de ver a multidão de padecentes,
tanto operarios, como patrões... com seus lindos automoveis
á porta...
Si as autoridades permittem o exercicio da therapeutica
medianimica, é porque não constitue crime realizar a divina
obra de acalmar as dores... "Divinum opus est sedare dolo-
rem".
E essa obra é feita gratuitamente, porque assim o recom-
menda o fundador do christianismo: "Dae de graça o que
de graça recebeis".
Em face dessas chocantes realidades, os pastores protes-
tantes, no citado orgão, não poderiam falar de outro modo,
porque trairiam a propria verdade, e a verdade, segundo
Santo Agostinho, é o que é.
("Diario da Noite”)
__________
— 52 —
"Superstição perigosa"
_________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— IX — Curae os enfermos; dae de graça o que de
graça recebeis. — Jesus.
Nos artigos anteriores, viu o leitor, logicamente demons-
trada, a these que nos foi suggerida pela chammejante de-
vocionalidade do sr. Laet, para quem o espiritismo não passa
de "superstição perigosa".
Provada que foi a impossibilidade do auxilio protestante
e rabbinico, não resta ao nosso adversario outro recurso além
deste: multiplicar a sua diligencia no sentido de obter do
clero catholico uma “offensiva geral" contra a damnosa
"superstição”. Angustiosa, porém, é a situação do nosso
venerando patricio, pois os “factos” que se repetem diaria-
mente, e com incrivel notoriedade, provam aos imitadores
de S. Thomé que a chamada “superstição” ahi vae recrutando
formidavel numero de adeptos e admiradores. E por que
esse “phenomeno”, para não dizer “milagre"? Simplesmente
por isto: diante da realidade das “curas” operadas pela be-
nefica “superstição perigosa”, os homens honestos e leaes,
catholicos ou não, curvam-se convencidos ante a refulgente
figura da Verdade!
Creia o sr. Laet nesta grande realidade: os catholicos
romanos, em sua quasi totalidade, não combatem nem hos-
tilizam o espiritismo, porque não podem combater nem hos-
tilizar "realidades”!
Viu o leitor, no artigo de hontem, a palavra do jornal
protestante redigido por quatro pastores ex-padres, entre
— 53 —
elles o rev. dr. Victor Coelho de Almeida, muito conhecido
no Rio de Janeiro. Vamos repetir algumas palavras do "Ex-
Padre", sobre o prof. Mozart: "Homem bom, altruistico,
abnegado, dotado de extraordinarxo poder magnetico, de
vontade energica e alta capacidade de suggestionar, tem rea-
lizado curas singulares." Falando da intolerancia daquelles
que negam as virtudes curadoras desse medium, conclue o
jornal protestante: “Dahi a perseguição iniqua que lhe mo-
vem, etc.”
Ahi tem o sr. Laet o verbo protestante em defesa da
charlatanice especuladora da “superstição perigosa"...
FALA UM PROFESSOR DA FACULDADE DE
MEDICINA
Vamos agora dar a palavra ao illustrado medico patri-
cio, dr. Mauricio de Medeiros, lente cathedratico da Facul-
dade de Medicina do Rio de Janeiro, de cuja congregação é
um dos mais bellos ornamentos. O brilhante professor inseriu
no "Diario de Medicina” um artigo sobre o prof. Mozart
Dias Teixeira. Permittido nos seja transcrever as palavras
do distincto cathedratico, de relevante opportunidade, e que
vêm corroborar a nossa these. Eil-as:
"Penso que estão creando em torno desse professor Mo-
zart um ambiente de perseguição que muito contribuirá para
seu prestigio. Ninguem ignora que não ha melhor meio de
fazer crescer n0 espirito publico um individuo, do que trans-
formal-o em martyr Todos os santos cujos nomes enchem
os calendarios só fizeram jus á santificação por que soffreram
perseguições e violencias.
Por vezes a igreja catholica chegou mesmo a tristes re-
tractações, como, por exemplo, a de Jeanne d'Arc, a quem
canonisou depois de a ter mandado queimar em praça
publica.
O professor Mozart tem feito curas. Ha quem acredite
que ellas são devidas a um dom sobrenatural. Que mal ha
nisso?
— 54 —
"Eu não descreio de suas curas. Acho que é uma horrivel
attitude do espirito essa de se reger por simples negação.
Tambem não tenho para acreditar nellas senão a informação
dos proprios curados, que se dizem bons. E, como em materia
de doença, a melhor informação é a do proprio interessado
creio que estou com a verdade, dizendo que o professor
Mozart tem feito curas. Como as explica elle? Isso é a meu
vêr secundario."
E conclue o illustre cathedratico:
"Se o professor Mozart tem dons especiaes de curar
por processos e mecanismos que escapam á nossa explicação,
não vejo por que perseguil-o, prendel-o, processal-o.
"Ha, é certo, quem sustente que elle combinou trucs
com alguns comparsas para explorar o publico. Esse é o unico
aspecto a averiguar. Ate aqui todos sustentam que os seus
tratamentos são absolutamente gratuitos. Como acreditar
em especulação?
"Por outro lado duas testemunhas apparecem em Queluz
affirmando que foram contratadas para a farça. Mas, que
valor se pode attribuir a esses testemunhos do interior, onde
nós sabemos muito bem como são feitos certos depoimentos?
"Não! Evidentemente a opinião publica está sendo
agitada por um caso que talvez não tivesse grande repercussão
se as autoridades mineiras agissem com espirito mais liberal."
("Vanguarda", de 3-2-1925).
— Como está observando o leitor, fomos buscar fóra
do campo espiritista o testemunho de pessoas autorizadas,
extremes de suspeição, para deixarmos provado irretorqui-
velmente que o espiritismo "cura” de verdade, ou melhor,
que os "mediums curadores", orientados pela doutrina es-
piritista, curam de facto.
FALA O GENERAL CORDEIRO DE FARIA
que foi conduzido á presença do prof. Mozart em lastimavel
estado de saude. Destacamos algumas palavras da entrevista
concedida ao representante do citado vespertino carioca.
— 55 —
"Que pensa do professor Mozart?
— "Por muito que pense, não consigo comprehender
esse homem maravilhoso. Estou surprehendido! Estou ainda
tomado de grande emoção. Calcule a alegria de um homem
que não falava, que não andava, condemnado á immobilida-
de de uma cadeira, e que, repentinamente, se vê restituido á
vida. A minha fé em Mozart não tem limites. Estou ainda
em tratamento e serei curado completamente por elle.”
“Do que soffria, general?
— “Ha dois annos fui accommettido de uma congestão
que me deixou paralytico. O tempo passou e eu já não me
fazia comprehender por ninguem. Eu não falava; misturava
sons. Tratei-me com os melhores medicos do Rio e ia de mal
a peor. Até o Roberval Cordeiro de Faria me tratou sem
resultado. Trouxeram-me á caridade de Mozart e já estou
como me vê."
“Então o general tinha um “encosto"?
— “Não sei. Não quero immiscuir-me nessas coisas.
Entretanto, se o professor Mozart disse que sim, creio pia-
mente. Tenho por elle gratidão profunda. Olhe, menino:
quando um homem diz, perante tanta gente, “levante-se
em nome de Deus”, e é obedecido, é porque tem muita con-
fiança. Deus proteja o professor Mozart.”
“Ao sahirmos, ainda ouvimos do general Cordeiro de
Faria: “Póde dizer em “Vanguarda” que me considero cura-
do. E, quando alguem duvidar, informe: “O general reside
na Borda do Matto, n. 74 — Villa Corina — Andarahy.”
Lá estarei breve. Já tenho forças para reconduzir á minha
casa os 60 annos que carregava penosamente.”
— Ouviremos amanhã a autorizada palavra do notavel
advogado dr. Evaristo de Moraes, cognominado “o principe
da tribuna judiciaria do Brasil.”
Da exposição feita hoje, vemos que, ao lado das consul-
tas e receitas “solicitadas” em 1925 á Federação Espirita
Brasileira — em numero approximado de setecentas mil...
("700.000") e das fornecidas em outros muitissimos centros
— 56 —
de beneficencia, junta-se a "cura" maravilhosa do general
Cordeiro de Faria.
O illustre cathedratico da Faculdade de Medicina, lidimo
representante da "sciencia official”, segue rumo diverso do
em que se collocou o sr. Laet: affirma, com a responsabili-
dade do seu nome, que o medium Mozart "cura doentes".
Este caso mostra-nos um bello paradoxo: um estranho a
medicina negando de pés juntos as curas ordenadas pelo
fundador do christianismo, em frente de um medico e profes-
sor de medicos que declara "real” a virtude curadora de um
medium espiritista!
Preferimos a voz da "sciencia medica” ao "dogmatismo
materialista" de quem não desconhece a recommendação
do Divino Mestre: "Curae os enfermos; dae de graça o que
de graça recebeis.”
("Diario da Noite")
__________
— 57 —
"Superstição perigosa"
_________
(AO Sr. CARLOS DE LAET)
"Nada podemos contra a verdade" - S. Paulo
— X — FALA EVARISTO DE MORAES
"Com uma succinta, mas substanciosa sentença, ha dias
proferida pelo illustrado juiz Galdino Siqueira, veiu de novo á
baila o problema juridico-penal do Espiritismo, que estava
um pouco esquecido. Não é difficil atinar com o motivo do
esquecimento. Reside elle, sem duvida, na expansão que
tomou, entre nós, desde alguns annos, a doutrina espiritista,
hoje acceita por centenas de pessoas cultas, propagada nas
columnas editoriaes da imprensa diaria e — porque não di-
zel-o? fartamente acreditada por suas praticas therapeuticas
São estas praticas, principalmente, que excitam, embora ra-
ramente, a acção das autoridades publicas.
"Em compensação, porém, são ellas que, com maior
vantagem, impõem o Espiritismo e o tornam, nos meios
populares, o mais terrivel concorrente da Medicina academica.
No tempo em que era tenaz a perseguição ao Espiritismo,
defendemos, entre outros, o medium curador Joaquim José
Ferraz, creatura excellente, de um desinteresse que nem
sempre se encontra nos sacerdotes de outras crenças...
A'quella época tiveram os espiritistas a amparal-os a
justiça, sempre liberal e idependente, do saudoso magistra-
do e notavel criminalista Viveiros de Castro, o qual, sendo,
como era, adepto da liberdade profissional "sem limitações",
não só sustentava a theoria ora propugnada pelo senhor Gal-
dino, como ia ao ponto de conferir aos curandeiros em geral o
— 58 —
direito de clinicar. Dos seus esforços, neste sentido, encon-
tram-se provas sobejas na sua obra "Questões de Direito
Penal" (pags. 64 a 113).
'Bem se vê que elle ia muito longe... O que, entretan-
to, não póde ser seriamente contestado, é: de uma parte, a
efficacia da "medicina psychica" exercida por espiritistas;
de outra parte, a sinceridade, a boa fé e o animo caridoso
que aimam a acção curadora de algus delles.
"Já de uma feita, em 1901, defendendo outra creatura
desinteressada e bonissima, Domingos Ruggiano, conhecido
por "Mão Santa", acreditamos ter convencido a Côrte de
Appellação — que absolveu o nosso constituinte — da per-
feita insensatez que manifestam os negadores das "curas
por espiritismo", e, em um opusculo sob o titulo "Medicos e
curandeiros", mostramos quantos desastres tinham, através
dos tempos, desmoralizado as academias, por pretenderem
rejeitar phenomenos evidentes, ou, pelo menos, por quererem
explical-os por theoria a elles pouco adaptaveis.
"Citamos, então, a satyrica dedicatória de Eugenio Nus,
no livro "Coisas do outro mundo", alludindo ás negações
academicas da rotação da terra, dos meteoritos, do galvanis-
mo, da circulação do sangue, da vaccina, da ondulação da
luz, do pára-raios, do vapor, da illuminação a gaz, do magni-
tismo e do hypnotismo. Foram tamanhos erros que, natural-
mente, levaram Richet a dizer que "um facto scientifico não
póde ser decidido por maioria de votos; a sciencia nada tem
que vêr com a opinião de uma academia ou de uma associa-
ção sábia, por mais que o seja".
"O exaggero desta apreciação pessimista corresponde á
reacção que, em regra, a "sciencia official" oppõe ás obser-
vações, ás experimentações e ás theorias novas...
"Collocando-se um homem de boa fé no ponto de vista
exclusivamente juridico, e mesmo não sendo (e nós não o somos)
— 59 —
adepto do Espiritismo, nem da ampta. e incondicional iberdade profissional no tocante á medicina, tem, necessaria-
mente, de repellir a appiicação do artigo 157, bem como a
do artigo 156 do Codigo, aos que, praticando a doutrina
espiritista, procuram, com a melhor das intenções, acudir
ás dores physicas e aos padecimentos moraes dos seus se-
melhantes.
"Seria monstruoso, por uma interpretação tacanha dos
preceitos legaes, pagar com o "mal" de condemnação o "bem"
generosamente espalhado por alguns crentes sinceros do
Espiritismo. Os "outros”, os exploradores, são — conforme
doutrinava Viveiros de Castro — verdadeiros estellionatarios.
Da mesma especie os ha especulando com todas as crenças,
inclusive a catholica. Demais, a sciencia official tem caminha-
do muito desde que o preclaro Charcot, convencido á custa
da realidade do hypnotismo, escreveu o celebre opusculo
“A fé que cura”. Agora mesmo ahi temos a manifestação
lealissima de um dos maiores sabedores da Neurologia, o
sabio Pierre Janet.
“Em obra monumental, condensando uma experiencia
de 30 annos, “Les Médications Psychologiques”, elle dá
entrada aos modernos processos de tratamento, como que
os "officializando” e reconhece a efficiencia de certas praticas
que muito se assemelham ás do Espiritismo”.
"Já bem antes, o nosso Fajardo havia perguntado:
“Por que não admittir, tambem, uma therapeutica por fé?”
“Bemdita seja a fé, quando cura! Bemditos os que têm
força para estimulal-a!” (Do "Jornal").
— Ahi tem o sr. Laet o depoimento do notavel advogado,
não espiritista, ao lado do depoimento dos não espiritistas,
dr. Mauricio de Medeiros, professor da Faculdade de Me-
dicina, e rev. dr. Victor Coelho de Almeida, pastor protes-
tante e redactor-chefe do citado orgão.
— 60 —
Sem o lastro das realidades concretas, a negação do sr.
Laet tem apenas uma virtude: a de levar ao espirito do lei-
tor a convicção plena de que a therapeutica medianimica é
uma realidade.
Ao lado dos sólidos e fartos elementos de convicção apre-
sentados em defesa da nossa these, virá cerrar fileiras o re-
cente depoimento de notaveis scientistas e medicos allemães,
professores de diversas universidades.
Aguarde-nos ainda a paciente attenção do leitor, pois a
palavra dos sabios allemães (não espiritistas) fechará com
chave de ouro esta série de artigos.
("Diario da Noite")
____________
— 61 —
"Superstição Perigosa" __________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— XI —
O ESPIRITISMO NA ALLEMANHA
Em uma sessão espirita tomam parle 94 homens notaveis,
entre os quaes 23 professores de Universidades e 18 medicos —
O que dizem os grandes mestres attemães — Profundos gotpes
no materiatismo
O "Correio da Manhã" em a sua edição de 15 do cor-
rente, na primeira pagina, publicou noticias verdadeiramente
sensacionaes, acerca do movimento espiritualista que agita
actualmente o meio intellectual allemão. Do mesmo modo
que Conan Doyle na Inglaterra e Ernesto Bozzano na Italia,
eis que na Allemanha surge o grande scientista, barão dr.
de Scherenck Notzing, que acaba de iniciar importantissimos
estudos de natureza psychica e que estão despertando vivo
interesse entre os representantes da classe scientifica.
Permittido nos seja chamar a attenção do prezado leitor
para essas empolgantes noticias que, com a devida venia,
transcrevemos do grande e brilhante orgam da imprensa
carioca, um dos expoentes da intellectualidade brasileira:
Os altos estudos de Psychismo na Allemanha
Apezar das obras de Zollner, de Reichenbach, de Carl
du Prel e alguns outros investigadores, o psychismo, até o
periodo da guerra, não tinha podido, na Allemanha, alcançar
a importancia e o fastigio que já havia conseguido em outros
paizes como a França, a Italia e a Inglaterra.
— 62 —
Os povos do imperio germanico tendiam mais para as
questões militares do que para os problemas espirituaes.
Ultimamente, porém, surgiu um grande pesquizador, o
barão dr. de Schrenck Notzing, o qual, com suas experiencias
acuradas, as suas investigações minuciosas e sobretudo, com o
seu methodo rigorosamente scientifico, conseguiu interessar
nos seus trabalhos avultado numero de scientistas de sua
terra.
Notzing havia publicado em 1920 um livro intitulado —
"Physiakalische Phenomene des Mediumismus" (os pheno-
menos physicos da mediumnidade). Essa obra, acrescida de
trabalhos mais modernos, acaba de ser traduzida em França,
apparecendo prefaciada pelo notavel physiologista Carlos
Richet.
Notzing conseguiu penetrar no ambiente universitario,
fechado em tantos paizes, ás pesquizas psychicas e, por isso, a
Allemanha marcial de hontem é hoje a nação em que a cultu-
ra official está mais empenhada nos estudos mediumnicos.
O citado scientista allemão tem tido como medium
principal Willy Schneider, cujas faculdades principiaram a
revelar-se em janeiro de 1919. O director, no outro plano
dos trabalhos psychicos de que era intermediario Willy, ou o
espirito-guia como se diz em Espiritismo, dava o nome de
Olga, sendo substituida mais tarde essa entidade por outra
que se dizia chamar Mina.
Olga e Mina eram, pois, personalidades invisiveis, pro-
ducto, segundo alguns, do subconsciente do medium, mas
que dirigiam, preparavam, os trabalhos, aconselhavam ou
advertiam os pesquizadores do plano visivel, á testa dos
quaes se encontrava o operoso barão.
Schrench Notzing organizou uma serie systematica de
56 sessões, que, com excepções poucas, realizaram-se em seu
laboratorio.
— 63 —
Elle descreve, nos seus relatos, a disposição da sala, o
systema de illuminação, os processos de controle, com grande
e ás vezes exhaustiva variedade de pormenores. A essas
sessões compareceram noventa e quatro pessoas, entre as
quaes se destacavam vinte e tres professores da Universida-
de e dezoito medicos. Dentre ellas, todas de incontestavel
competencia e insuspeição, cincoenta e cinco, além do
testemunho proprio, hão redigido suas impressões pessoaes.
O medium, durante as experiencias cáe espontaneamente
em transe, sendo a sessão regulada por Mina, o guia.
O auctor, que não segue a interpretação espirita, nota,
no entretanto: "Tem-se a impressão da presença de uma
força intelligente, que, sem se incommodar com a obscurida-
de, dispõe tudo de forma que a experiencia tenha exito. O
transporte de objectos em completa escuridão é feito de tal
modo que nenhum dos assistentes experimenta algum conta-
cto. Uma vez tentei illudir: havia preparado uma machina
photographica, sem o medium nem os assistentes saberem.
Mina, porém, chamou a attenção para a machina e a expe-
riencia falhou.
A apparição dos phenomenos é geralmente annunciada
com exclamações: — formem a cadeia, não rompam a cadeia.
Trata-se da cadeia magnetica formada pelos assistentes.
Esses phenomenos, de ordem physica, são deslocamentos
de objectos, transporte á distancia, acção sobre instrumento
de musica, etc. (telekinesia), ou apparição de formas huma-
nas, membros, rostos, phantasmas, corpos inteiros (ectopas-
mia).
Notzing descreve a substancia ectoplasmica, saida do
corpo do medium e que serve para as formações ideoplasticas
ou phantomaes. Essa substancia apresenta-se, ás vezes, como
manchas luminosas. As phosphorescencias mudam de inten-
sidade, como a massa ectoplasmica de forma.
— 64 —
As mãos materializadas tocam os presentes, dando-lhes
sensações diversas. Tem-se notado o que os experimentadores
chamam o cordão umbelical, laço fluidico, que liga a formação
autonoma ao corpo do medium. Se o experimentador toca
no cordão, o medium estremece violentamente e o desenvolvi-
mento da materialização pára.
Nessas experiencias sentem-se ainda estranhas correntes
de calafrios e o auctor observa que ellas fazem pensar na
sombra do Ades, na representação da alma, nos "sopros",
nos "suspiros" da antiga concepção hellenica, nas imagens
sem corpo dos seres humanos (eidolon).
Notzing, muito cauteloso a respeito da hypothese espirita,
não deixa de observar: "Não se póde negar a acção indepen-
dente de uma intelligencia, que domina toda a phenomenolo-
gia de Willy".
No appendice da importante obra de Notzing apresen-
tam-se as declarações de alguns dos notaveis da Allemanha
como se segue:
Graetz, "prof. da Univ. de Monaco" — Esses phenome-
nos são o que de mais estupefaciente tenho visto e os acho
perfeitamente incomprehensiveis.
Messer, "da Univ. de Giessen" — São authenticos e
os não posso explicar pelas leis naturacs que conhecemos.
Wolff, "da Univ. da Basiléa e director do manicomio
de Friedmatt" — Impossivel admittir a fraude. Estas ap-
parições são, por tal fórma, desconcertantes, que é absoluta-
mente necessario applicar-lhes os methodos scientificos e
exactos.
Driesch, "prof. de Philosophia em Lipsia" — Não vejo
razão para duvidar-se da authenticidade dos phenomenos.
Becher, "da Univ. de Giessen" — Não se póde pôr em
duvida a realidade dos factos que verifiquei.
— 65 —
Lindemann, "da Univ. de Monaco e membro da Aca-
demia de Sciencias” — Sem tentar explicar taes phenome-
nos, posso, pelas minhas proprias experiencias, declarar-me
convencido de sua realidade.
Willstater, “dir. do Laboratorio Chimico de Monaco,
prof. da Univ”. — Impossivel, que as apparições fossem
produzidas fraudulentamente; inverosimel, a suggestão, a
allucinação.
Schimdt-Noer, "prof. de Heidelberg” — Authenticidade
objectiva absoluta.
Kalker, "da Univ. de Monaco" — Os phenomenos não
se pódem explicar sem admittirmos forças que a sciencia
ainda não estudou.
Oestcrreich, “da Univ. de Terbinga” — Nenhuma duvi-
da!...
Winterstern, “da Univ. de Rostoc” — Considero impor-
tantissimo o estudo desses phenomenos, cuja constatação
irrefutavel me parece de importancia immensa.
Fischer, “prof. de Psychiatria, em Praga" — Qualquer
especie de fraude é impossivel.
Zimmer, “prof. de Zoologia” — As apparições são au-
thenticas. Depois de 30 sessões posso resolutamente dizer:
sim!
Veil, “prof. de Pathologia” — E' necessario abandonar-
se qualquer duvida.
Freytag, “prof. de oculistica" — Os phenomenos, até
onde é permittido a uma intelligencia humana suppôr, são
devidos a um agente que não conhecemos; não são produetos
do medium nem de pessoa presente.
Pauli, “da Univ. de Jena” — Os factores de taes phe-
nomenos parecem-me até agora desconhecidos. Nada mais
contrario aos processos scientificos que julgal-os sem obser-
vação.
— 66 —
Von Seuffert, "prof. de Gynecologia" — Somos obrigados
a admittir que os phenomenos são produzidos por uma força
ignota e independente do corpo do medium.
Neutnayr, "dir. da Polyclinica laringologica de Monaco”
E' impossivel que taes phenomenos sejam resultado da
allucinação ou da prestidigitação.
Martini, "prof. de Pathologia" — Nada pôde achar que
pôdesse revelar fraude.
Becker, "livre docente de medicina" — Os phenomenos
são authenticos".
Albrecht, "dir. de Gynecologia” — Nas sessões que
descrevi não pude, máo grado toda a minha perspicacia,
nada descobrir que fizesse duvidar da authenticidade dos
phenomenos.
Essas, em breve resumo, as opiniões de varios doutos,
os quaes, põem todos de lado as hypotheses até agora exis-
tentes, no campo da sciencia, na interpretação dos phenome-
nos psychicos." ("Correio da Manhã”, de 15-out.-1925)
Ahi tem o sr. dr. Carlos de Laet o testemunho insuspeito
dos sábios allemães, que merecem toda a consideração, já
pela competencia que possuem como homens de sciencia,
já pelo facto de não serem espiritistas.
E' maior do que á primeira vista parece, o numero dos
defensores da verdade que existe na "Superstição perigosa”...
("Diario da Noite")
_____________
— 67 —
"Superstição Perigosa" __________
(AO SR. CARLOS DE LAET)
ROMEU A. CAMARGO
— XII —
CONVERSÃO DE UM NOTAVEL MEDICO
MATERIALISTA — EM PIRACICABA
Em 1908, um conhecido medico desta Capital, chamou
collegas seus, para que lhe curassem um filho, gravemente
enfermo. Nada conseguiram os illustres facultativos. Seguiram
para o Rio de Janeiro, paes e filho. Consultados os medicos
da Capital da Republica, nada puderam fazer. Patente se
tornara a impotencia da medicina official, em face de uma
enfermidade declarada incuravel. Desolado, o consulente se-
guiu com a familia para a cidade de Piracicaba, onde residia
o notavel cirurgião, dr. Alfredo Cardoso, filho da encantadora
cidade paulista.
Verificando que a enfermidade era grave e que não com-
portava uma intervenção cirurgica, aconselhou o illustre ci-
rurgião uma consulta ao medico que, do mundo espiritual,
costumava attender aos padecentes que o desejavam, em
espirito de fé, em as sessões espiritas que se realizavam no
Centro local. O illustre visitante, além de medico de nomea-
da, era literato e philosopho materialista, e, como tal, não
escondêra a causticante ironia da sua incredulidade nessas
curas, e sobretudo, pela homeopathia!
Afinal, esmagado entre a dôr e o affecto paterno, cedeu,
á vista das provas apontadas pelo seu collega dr. Cardoso.
E o doentinho foi curado homeopathicamente pelo medico
do Além, que se manifestou pelo medium Jesuino Damante,
naquella epocha um simples caldeireiro, com sua officina á
— 68 —
Rua do Commercio. O pae da criança teve "conferencias
medicas" com o collega do espaço, que respondia prompta-
mente a todas as perguntas, com a mais correcta linguagem
medica, com os mais precisos termos technicos, com os mais
completos detalhes sobre o caso pathologico, provocados pelo
consulente materialista.
Ainda não subjugado pela evidencia do facto, o illustre
visitante foi á officina da Rua do Commercio, com cujo of-
ficial (o medium) travou animada palestra, bastante demo-
rada. Queria ouvil-o, queria certificar-se da incultura do
medium. Ficou plenamente satisfeito. Nada de mystificação,
nada de embuste, nada de simulação. O medium era, de facto,
verdadeiro. Tratava-se de um homem bom, de espirito hu-
milde, possuindo apenas os conhecimentos adquiridos na
escola primaria. Era mestre somente no seu officio de funi-
leiro e caldeireiro. Nada mais. Qualidades moraes, essas
elle as possuia: era humilde, caridoso, amante da verdade e
da justiça, a moralidade em pessoa.
Em summa: esse medico allopatha e materialista, lite-
rato e philosopho, obedecendo aos impulsos do sentimento
da verdade, vergado sob o peso da realidade, não fechou os
olhos á luz da evidencia: rendeu-se de corpo e alma. Piraci-
caba foi a nova Damasco de um novo Saulo. A Justiça con-
quistara mais um sacerdote, a Verdade fizera mais um
apostolo.
Em as obras notaveis, "A Verdade em Medicina" "O
Problema do Além e do Destino", "Phenomenos Psychicos"
"A Alma e o Subconsciente", "Animaes que falam", “Versos
aureos de Pythagoras", etc., o recem-converso apresenta os
fundamentos das suas convicções, forradas por uma cópia
de documentos que falam directamente á alma, porque en-
cerram principios e doutrinas baseados no testemunho in-
sophismavel dos factos e da historia.
Esse pae abençoado é o conhecidissimo clinico, dr. Al-
berto Seabra, um dos mais bellos ornamentos da classe medi-
ca brasileira.
— 69 —
Eis ahi mais um dos triumphos da "Superstição pe-
rigosa". Si é obra do espirito das trévas, ou de Satanaz, então
que se nos permitta uma pergunta: qual a vantagem que
Satanaz obteve, deixando escapar-se-lhe das mãos uma alma
que já lhe pertencia?... Vê-se, pois, que elle é pouco habil
pois trabalha contra si e a favor do seu maior inimigo...
Casos como o de Piracicaba, multiplicam-se diaria-
mente. E' pela porta da dor que muitos irmãos do Prodigo
entram, para receberem o osculo abençoador do Pae de in-
finita misericordia!
("Diario da Noite")
_____________
— 70 —
"Couraçado de Papelão"
"O terreno em que temos de pisar não é propria-
mente o biblico, nem o theologico, mas o historico e so-
ciologico. E aqui — é preciso insistir com força —
estamos miseravelmente armados.”
OTHONIEL MOTTA (Pastor da 1ª Egreja Pres-
byteriana Independente de S. Paulo).
I
"Nada podemos contra a verdade", diz o apostolo Paulo
(II Cor., XIII: 8.)
Estas linhas visam a um fim: demonstrar que o illustre
homem de letras, Othoniel Motta, fez ouvidos de mercador a
essa judiciosa advertencia apostolica, quando criticou o livro
"Região em litigio" pelas columnas do orgão official de sua
Egreja. (1)
Quando se refere á penuria da bibliotheca do seminario
presbyteriano, sua franqueza faz jus aos calorosos applausos
dos espiritos liberaes, porque não se deixa levar de respeitos
humanos: confessa verdades inteiras e não meias verdades,
como o desejariam os crentes da sua Egreja. De par com
essa corajosa franqueza vae, porem, uma boa dóse de injus-
tiça. E' o de que daremos provas nestas linhas.
A despeito da sua dialectica e do zelo que revela pela
causa protestante, os crentes ricos da Egreja (e em bom nu-
mero) ainda não abriram as suas algibeiras para habilitar o
zeloso pastor a adquirir as obras mais urgentes e que são
_________________
(1) "Estandarte" ;n. 37, de 1925.
— 71 —
completamente desconhecidas no meio protestante: as de
Luthero e Calvino, ou sejam as obras fundamentaes do Pro-
testantismo!
O amor pela verdade é tal, na sua franqueza, que...
muitos de seus companheiros poderão suppôl-o já espirita!
Sim. Quando um membro da Egreja confessa, de publico,
certas verdades de interesse geral e contrárias a interesses
particulares, os demais membros que ouvem essa confissão
attribuem semelhante coragem á... tentação de satanaz.
E o Espiritismo é a fabrica dessa especie de tentação.
E' o proprio amigo quem confessa o mal-estar produzido
por sua franqueza: "Sei que esta minha franqueza desagrada a
caros irmãos que desejariam antes dormir na doce illusão de
que estamos apparelhados para as lutas que o momento historico
nos offerece."
Vae o leitor apreciar outras verdades importantes, sahidas
da penna do illustrado philologo e pastor protestante, neste
grave momento historico em que se acha o Protestantismo.
Eil-as: "Nossa situação é a de um couraçado valente, mas
sem canhões. Pela resistencia de sua couraça elle não irá a
pique resistirá; mas tambem não porá a pique o mais fragil
calhambeque que o fustigue. Querem uma demonstração prati-
ca? Aqui vae. Anda por ahi a pôr em reboliço muitos irmãos
e alguns já se acham inteiramente arruinados — um livro
espiritista intitulado "Região em litigio". O Autor é apresen-
tado como tendo sido ministro do Evangelho. O livro é um como
repto dirigido ao clero protestante"
O illustre theologo e professor de portuguez percorreu
as paginas desse livro, não com o sereno e desapaixonado
espirito de quem pesquiza a verdade, mas levado pela idéa
preconcebida de nelle encontrar erros e lacunas. E julgou-se
feliz nesse proposito, esquecido de que a "perfeição" é attribu-
to desconhecido em obras humanas, ainda mesmo quando
escriptas pelos protestntes. Dando-se parabens por haver
descoberto um engano na obra criticada, segundo a sciencia
— 72 —
protestante, cita como "pedacinho de ouro" o tal engano
commettido pelo autor do livro, onde fala de "21" epistolas
de Paulo, quando na realidade são "13” apenas. Agarrando-
se nesse ramo lascado, qual naufrago entre galhos fluctuantes,
arroga-se o nosso amigò o direito de decretar a nullidade desse
primoroso livro, baptizando-o pittorescamente com esta phra-
se: "fortaleza de papelão"
Foi infeliz nessa empresa. E a infelicidade é aggravada
pelo facto de ser essa critica da autoria de um pastor protes-
tante e professor de portuguez, laureado por suas obras di-
dacticas, através de cujas paginas se destaca o sympathico
vulto do erudito e douto investigador das verdades philologi-
cas. Pouco importa saber se Paulo escreveu treze ou trezen-
tas epistolas. O que importa é saber se o autor do livro co-
nhece bem a doutrina vasada nessas epistolas. Esta condição é
plenamente satisfeita pelo sabio escriptor norte-americano,
que, para refutar os principios anti-christãos de Luthero e
Calvino, não se soccorreu de obras de segunda-mão, mas abe-
berou-se na propria fonte, isto é, compulsou as proprias obras
dos fundadores do protestantismo, obras que os pastores
protestantes brasileiros desconhecem completamente, segundo
confissão do nosso amigo, em mais de um artigo estampados
no "Estandarte”.
Robert Dale Owen, além de theologo profundo, é scien-
tista e philosopho, conforme terá visto o leitor conhecedor
do excellente livro "Região em litigio" Pois bem. Cumpre
não esquecer outra qualidade desse grande homem: a de
diplomata. Occupou o lugar de ministro plenipotenciario dos
Estados Unidos junto ao governo da Italia. Concordará
comnosco o illustrado pastor em que o governo norte-ameri-
cano não procura collocar nesse cargo os fabricantes de "for-
talezas de papelão"...
A injustiça de sua critica a esse livro está provada...
por suas proprias palavras. Acompanhe-nos a caridosa atten-
ção do leitor nesta agradavel tarefa.
— 73 —
“Couraçado de Papelão"
"Pois bem, esse livro, essa fortaleza de papelão
do espiritismo não póde ser atacado pelo couraçado
do protestantismo brasileiro."
OTHONIEL MOTTA — Pastor da 1ª Egreja Pres-
byteriana Independente de S. Paulo.
II
O illustre adversario feriu-se com as suas proprias armas.
E' o tributo a que não escapa aquelle que pesquiza a verdade
com o espirito mergulhado em idéas preconcebidas. Sentiu-se
arrepiado e mesmo escandalizado pelo engano de Owen,
em attribuir a Paulo "21" epistolas, ao envez de "13" Não
ha razão para tamanho susto, pois a tempestade desencade-
ou-se dentro de um copo dagua...
Sim! Não se esqueça o nosso amigo de que o proprio
Paulo, o aposto das Gentes, tambm atrapalhou-se no meio
dos algarismos. Seria talvez uma certa idiosycrasia pelos
numeros, mas... é exacto que se enganou. Senão, vejamos:
"Paulo, no capitulo dez de I Corinthios, faz referencia a
uma certa matança de Israelitas e diz que cahiram naquelle
dia vinte e tres mil. Voltando ao capitulo vinte e cinco de
Numeros, onde o facto está registrado, verificamos que o
numero dado é de vinte e quatro mil.”
Vê o nosso amigo que ha maior gravidade no engano
de Paulo, porque... ninguem poderia, hoje, verificar o nu-
mero certo de mortos naquella carnificina, ao passo que
Robert Dale Owen, elle mesmo, poderá desfazer o equivoco
que tanto amargor produziu no espirito do zoloso pastor
paulista.
— 74 —
Para afastar novo escandalo em que possa tropeçar o
zelo do nosso illustrado adversario, diremos "já" quem é o
autor de semelhante descoberta. Não somos nós, mas o sabio
theologo contemporaneo, Revdmo. Charles Reynalds Brown,
um dos maiores prêgadores protestantes norte-americanos, deão
da famosa universidade de Yale e pastor da Egreja de Oakland.
Diremos mais, para ficar patenteada a extraordinaria
autoridade desse theologo. Seu livro foi tido attenta e carinho-
samente peto Revdmo. Bispo Methodista do Brasil, que por
sua vez, o passou ao Revdmo. William Browman Lee, pres-
bytero, presidente do Distincto Methodista de S. Paulo. Este
ministro protestante, empolgado pela obra, do mesmo modo
que o Bispo, traduziu-a para o portuguez, e a Imprensa Me-
thodista, isto é, a Imprensa Official da Egreja Methodista
de São Paulo, certa de prestar um optimo serviço á causa pro-
testante, encarregou-se da edição dessa obra, intitulada 'Pontos
Principaes da Crença Christã".
Cumpre não esquecer esta circumstancia bastante
importante: essa edição está quasi esgotada.
Trata-se, pois, de uma obra lida, meditada e approvada
pelas autoridades theologicas da Egreja Methodista. A obra
recebeu, pois, todos os sacramentos.
Está em condições de ser consultada como fonte de
conhecimentos religiosos e, sobretudo, de inspirada autoridade.
Saiba o leitor que a Imprensa Methodista, ao noticiar o
apparecimento dessa obra, disse ao publico, especialmente
ao publico protestante, que essa obra é, talvez, a mais notavel
publicação feita neste ultimo quartel de seculo. Basta esta
asserção para fazer proeminar o valor dessa obra.
Continuaremos.
— 75 —
“Couraçado de Papelão"
III
Segundo o juizo do rev. Othoniel Motta, pastor presby-
teriano, o livro do notavel escriptor Robert Dale Ovven,
"Região em litígio" é uma "fortaleza de papelão", unicamente
porque o autor, ao citar os livros do Novo Testamento,
attribuiu ao apostolo Paulo "21" epistolas, ao envez de "13".
No mesmo artigo-critico, diz o literato e pastor paulista,
que aquelles que estão acostumados com o rigor da "sciencia
protestante", poriam de quarentena o tal livro espirita, mas...
proseguiriam na leitura. O peixe morre pela bocca, lá diz o
brocardo popular, ou, para falarmos evangelicamente: "por
tuas palavras serás justificado, por tuas palavras serás con-
demnado", segundo as proprias palavras de Jesus.
Dissemos em um dos artigos anteriores que nada vale
saber ou dizer que Paulo escreveu treze ou trezentas epistolas;
o que importa saber é se Robert Dale Owen "conhece o con-
teúdo" das epistolas. E' ahi que o pastor paulista deve firmar
o "rigor” da decantada “sciencia protestante” (entre paren-
thesis: o senso reformador do protestantismo, segundo o rev.
Othoniel Motta, creou uma "sciencia" á parte, expurgando-a
de todas as impurezas que se notam nas outras "especies"
de sciencia; creou a sciencia "protestante”). Pergunte o nosso
digno adversario a qualquer magistrado, a um ministro do
Tribunal de Justiça, por exemplo, se elle sabe o "numero"
de titulos de que se compõe o Codigo Civil ou o de livros
existentes no "Corpus Juris", que é a Biblia do advogado,
porque é o fundamento basico do edificio juridico de todas
— 76 —
as nações civilizadas. O interpellado responderá forçosamente
que isso... não tem importancia senão para quem apenas
se occupa de questões de puro escolasticismo, para não dizer
de "lana caprina"...
A sciencia "protestante", porém, faz questão fechada
dessas subtilezas. E' o fructo do arraigado "literalismo",
dessa arvore que frondeou e refloriu á custa da "sciencia"
creada no seculo XVI...
____________
— 74 —
“Couraçado de Papelão"
IV
Guizot e Nietszche tremiam cleante de um terrivel ini-
migo do homem — o preconceito. E' que esse monstro tem
um segredo onde se acha toda a sua força: o de tornar os
homens maus observadores.
Era procedente o horror que esses pensadores sentiam
por esse mal. Preconceito e vaidade são synonymos, porque
revelam calculado aprumo de idéas e de acções.
Desse mal não se atemorizam os pastores protestantes,
do que dá provas o methodo que processam na analyse das
doutrinas espiritas. Limitando e restringindo os seus estudos,
sob o triplice ponto de vista scientifico, philosophico e reli-
gioso, para somente adoptar aquelles que guardam aspecto
abertamente protestante, sentem-se inhibidos de apreciar com
serenidade o que se passa no campo doutrinario que lhes é
adverso. Dahi essa manifesta e incontida indisposição que
os acompanha quando se vêm na dolorosa necessidade de
vir sustentar perante o publico os principios e doutrinas que
professam.
Não somente o bom senso, mas a honestidade tambem
condemna essa vesania de emittir juizo em assumpto des-
conhecido. Formular juizo é julgar, e os juizes, por sua pró-
pria honestidade, devem inspirar respeito a todos, mantendo
sempre elevada a sua dignidade individual (1). Além de
(1) Dr. Reynaldo Porchat — Direito Romano (Os tres preceitos do
direito).
— 78 —
insensato e deshonesto, tal facilidade merece o qualificativo
de pueril, porquanto só poderá ser tolerada em quem não
pensa nem reflecte, por incapacidade de raciocinio.
O illustre pastor da 1ª Egreja Presbyteriana Independen-
te de S. Paulo tem grandes responsabilidades perante o
publico que o lê. Successor de Eduardo Carlos Pereira — o
principe do pulpito protestante brasileiro — possue o revm.°
Othoniel Motta, como o seu digno antecessor, um nome
feito no meio intellectual em que vive. E' o tributo a que
faz jus a sua reconhecida operosidade no magisterio secunda-
rio. Professor cathedratico de portuguez no Gymnasio Offi-
cial de Ribeirão Preto, e depois no de Campinas, impoz-se á
admiração dos intellectuaes, pela excellente contribuição que
trouxe á nossa literatura didactica, com os seus magnificos
trabalhos, reveladores da sua grande cultura.
Alarmado e mesmo apavorado pelo progresso do espiri-
tismo, notadamente no meio protestante, julgou de bom aviso
sahir a campo, afim de, pela voz da imprensa, acautelar os
interesses espirituaes do rebanho sob o seu pastorado. Pre-
liminarmente, fez referencias a uma obra ha pouco publicada,
da autoria de um padre jesuita, contra o protestantismo.
Sentinella fiel, deu o brado de alarme: o jesuita deixou
atordoado o protestantismo, porque a sua obra contém ar-
gumentos cimentados por acurado estudo feito nos documen-
tos dos Santos Padres e dos reformadores protestantes. Es-
tatelado ante a penuria das bibliothecas protestantes e,
procurando acalmar os espiritos em sobresaltos, á vista dessa
obra, usou o zeloso pastor desta franqueza: "Onde e como
verificar as citações, com bibliothecas em que não só não existem
no original as obras dos santos padres, mas nem sequer as dos
reformadores? Diz mais: "O terreno em que temos de pisar
não é propriamente biblico, nem o theologico, mas o historico e
sociologico. E aqui — é preciso insistir com força — estamos
miseravelmente armados" Em meio dessa fraqueza, o revmo.
— 79 —
O thoniel Motta confessa, de publico, que não se abalançaria a
refutar o livro do padre jesuita.
Na mesma série de considerações, confessa que, para
uma lucta séria, em geral, o protestantismo brasileiro só possue
espingardas do tempo da zagaia, quando não sejam bodoques e
tacapes.
Démos-lhe para ler, uma obra historico-philosophico-re-
igiosa, escripta pelo notavel theologo e scientista Robert
Dale Owen. Pois bem, A essa obra ("Região em litigio") re-
ferem-se aquellas palavras desdenhosas que o leitor leu no
sub-titulo destas linhas.
Segundo o juizo de Othoniel Motta, esse livro é um
"calhambeque".
Provaremos o contrario, com as proprias palavras do
nosso amigo.
______________
— 80 —
“Couraçado de Papelão"
"E ahi vae o calhambeque a fustigar-nos com
bolas de neve, impunemente!
OTHONIEL MOTTA — Pastor e literato.
V
Está admirado o leitor ? Pois essa expressão é do illustre
pastor da 1ª Egreja Presby teriana Independente de S. Paulo,
muito conhecido em nosso meio intellectual. Comquanto esse
estylo não seja parlamentar mas para lamentar, não deixare-
mos de confessar a nossa sympathia pela penna do nosso
adversario, que tem a coragem precisa de dizer que o pro-
testantismo está impossibilitado de enfrentar os "ismos"
perigosos, entre os quaes toma vulto o espiritismo.
Confessou o rev. Othoniel Motta estas verdades: que o
protestantismo, em lucta séria, em geral, só possue espingardas
do tempo da zagaia, quando não sejam bodoques e tacapes;
que as bibliolhecas dos seus seminarios possuem obras antiqua-
das e insufficientes; que os pastores protestantes não conhecem
as obras dos chefes do protestantismo; que o protestantismo
está "miseravelemente armado" no terreno historico e sociologi-
co; que o protestantismo é um couraçado valente mas sem
canhões; que, por sua propna natureza, não irá a pique, mas
tambem não metterá a pique o mais fragil calhambeque que o
fustigue; que o livro espirita "Região em litigio" já arruinou a
muitos irmãos protestantes e está pondo em reboliço a outros;
que esse livro é uma fortaleza de papelão; que esse livro, esse
calhambeque, ahi vae abrindo bréchas no valente couraçado do
protestantismo, com bolas de neve, e isso... "impunemente"!
— 81 —
Essa confissão constitue solido elemento de convicção
de que o protestantismo... é exactamente o contrario do
que pensa e affirma o illustre pastor e literato. Por ella está
provada a autoridade do grande escriptor espirita, ou, por
outras palavras, é o rev. Othoniel Motta quem proclama a
excellencia desse livro, cujo conteúdo abalou e está abalando
a crença de muitos protestantes, edificada sobre a areia de
especulações theologicas.
Mesmo sem auxilio do telescopio, já o leitor descobriu o
lugar onde se acha enrolado o pavilhão da logica presbyteria-
na: entre as pontas deste dilemma — ou o couraçado do
protestantismo não é de aço, ou o tal livro espirita não é forta-
leza de papelão. A verdade fluctúa entre essas duas proposi-
ções. Nada mais precisamos dizer. As bréchas abertas no
"casco de aço" falam por si...
Convença-se o nosso digno adversario de que maiores
bréchas serão produzidas no couraçado protestante, que irá a
pique, porque o calhambeque do espiritismo sabe empregar
no combate, não "bolas de neve", mas legitimas balas de aço,
do legitimo aço temperado nas fórjas da verdade historica,
da verdade religiosa, da verdade philosophica!
Convença-se o nosso illustre amigo de que a inexpugna-
bilidade do calhambeque espirita está no emprego de armas
poderosas, fornecidas pelos proprios commandantes do cou-
raçado protestante, Luthero e Calvino! Eis o poder offensivo
da fortaleza de aço do espiritismo, a qual resistirá sempre,
porque o protestantismo sabe lutar somente com os bodoques
fabricados pelo dogmatismo exclusivista que prega a frater-
nidade pelo methodo da desirmanação!
Convença-se o illustre pastor de que uma obra, escripta
sob o patrocinio da Historia, que é a sciencia do passado,
não é, não pode ser fortaleza de papelão nem tampouco
— 82 —
calhambeque fabricante de bolas de neve. O fim do Chris-
tianismo "é mostrar-nos Deus na Historia". (1)
Reflicta bem o illustre pastor e literato, e reconhecerá
que Robert Dale Owen, autor do famoso livro, apresenta-se
com uma dialectica invencivel, porque fala pela bocca da
Historia que, segundo Cicero, "e não somente a testemunha
do tempo, vida da memoria e mensageira da antiguidade, mas
tambem, e principalmente luz da verdade e mestra da vida” 1
(1) Luthardt — "Verdades Fundamentaes do Christianismo".
____________
— 83 —
“Couraçado de Papelão"
VI
Vimos em artigo anterior que o Rev. Othoniel Motta
ficára escandalizado pelo facto de falar Owen em "21" epis-
tolas paulinas ao envez de "13" Deixámos demonstrado
que esse facto não tem a minima importancia, porque o no-
tavel escriptor norte-americano revela profundo conhecimento
da doutrina exposta pelo apostolo Paulo em suas epistolas,
entre as quaes se acha a dirigida aos crentes de Corintho, a
quem faz aquella admiravel advertencia que vae no alto
destas linhas.
Segundo o Rev. Othoniel Motta, os protestantes costu-
mam ler obras alheias, submettendo-as ao rigor da sciencia
protestante. A julgar pelo criterio por S. Revma. adoptado
na analyse ou na critica a que forçou o livro "Região em liti-
gio", chegámos a esta conclusão: o rigor da sciencia protes-
tante consiste em julgar sem examinar, sem conhecer os fun-
damentos que devem servir de base para o criterio do julgamento.
Não sabemos onde está o livre-exame, proclamado pelos
adeptos da Reforma protestante. Abroquelados com a sup-
posição de que os espiritas falam e escrevem pelo poder de
espiritos endemoninhados, incidem os Srs. pastores no mesmo
erro dos phariseus, que enxergavam em Jesus o poder de
Beelzebu, nome que, traduzido ao pé da letra, significa senhor
das moscas. Assim armados de preconceito, o Rev. Othoniel
Motta e seus collegas de pastorado nunca jámais poderão
encontrar elementos de defesa contra o espiritismo, em cujas
fileiras vae tomando lugar "muita gente distincta" segundo
confissão do implacavel adversario da Terceira Revelação,
Rev. Isaac Gonçalves do Valle, pastor da Egreja de Santos
(Estandarte, n. 19, de 1925).
— 84 —
Vamos dar mais uma prova do preconceito protestante.
Em o n. 40 do mesmo orgão presbyteriano, logo á primeira
pagina a redacção dá o brado de alarme contra um livro que
acaba de ser publicado... por um protestante (!), livro que a
redacção ainda não viu! Referimo-nos ao trabalho do Sr.
Julio Navarro Monzó "um dos mais acatados e esforçados
campeões" das Associações Christãs de Moços. Diz a redacção
do orgão presbyteriano: "Ahi vem o livro. De nome pom-
poso — "EL Problema Religioso en la Cultura Latino-Ameri-
cana" — e firmado por um nome illustre, será recebido
pelo nosso liberalismo protestante com gyrandolas e inculcado
com calor."
Não se esqueça o leitor de que a Associação Christã de
Moços é um instituto genuinamente protestante e tem pres-
tado bons serviços á sociedade.
Tambem o livro "Pontos Principaes da Crença Christã",
do notavel theologo e pregador Charles R. Brown, pastor
protestante é guerreado pelos pastores brasileiros, unicamen-
te... porque o grande escriptor apresenta-se com uma dia-
lectica forrada por solidos elementos da verdadeira exegese
escripturistica!
Chumbados á theologia dos tempos em que predominava
o mais terrivel obscurantismo, quando o geocentrismo ful-
minava toda e qualquer idéa de progresso, os srs. pastores
brasileiros ahi estão a recalcitrar contra o aguilhão da ver-
dade. Estão cavando a sepultura para o protestantismo.
O "examinae tudo" do apostolo Paulo manda que não se
combata aquillo que se ignora. Armem-se os Srs. pastores,
dignos collegas do illustre Rev. Othoniel Motta, da precisa
coragem, e escrevam uma obra onde as suas ovelhas vejam
refutadas as doutrinas e principios hereticos dos escriptores
protestantes, como, por exemplo, o rev. Ch. Brown.
Tal deve ser o procedimento de quem préga do pulpito
que devemos "examinar tudo e abraçar o que for bom".
O exemplo é a autoridade personalizada.
— 85 —
“Couraçado de Papelão"
VII
Vae ler uma novidade, o illustre pastor rev. Othoniel
Alotta, novidade não original, porque não é bem uma no-
vidade, mas repetição de umas dolorosas verdades já editadas.
A coragem de confessar a pobreza da cultura religiosa
dos nossos irmãos protestantes, não constitue propriamente
um privilegio do nosso illustrado adversario, que appareceu
em publico em Maio de 1924, com aquellas revelações que o
leitor tem lido nestas columnas. A 13 de Novembro de 1913
iniciámos uma série de longos artigos, nas columnas do orgão
da Egreja Presbyteriana Independente, visando a um fim:
despertar o interesse pela leitura de obras religiosas, pois
os crentes em geral, não liam, como não lêem as obras mais
necessarias, limitando a sua leitura unicamente á Biblia,
desprezando os commentarios respectivos! E' que nos sen-
tiamos pungido pela ignorancia dos irmãos com quem estava-
mos mais em contacto. Crentes havia que eram analphabetos
somente... dentro da Biblia! Sim. Tivemos opportunidade
de ver que muitos delles não sabiam manusear o livro, nem
dizer si o livro de Malaquias se acha antes do de Genesis
ou depois do Apocalypse...
Dissemos, nessa occasião: "Esforcemo-nos, pois, com
prudencia e criterio, por que taes pessoas se dêm ao agradavel
trabalho de fazer um estudo comparativo das doutrinas de
fóra, com as de dentro da Palavra Divina. Quanto mais conhe-
cido fôr o campo do adversario, tanto mais facil será a victo-
ria sobre este." Dissermos mais: "Nós, os servos de Jesus
Christo, porém, não vivemos somente para polemica, nem
— 86 —
para a analyse ininterrupta dos falsos dogmas. E' confessar,
em todo o tempo, a nossa fé e a razão ou fundamento da nossa
esperança. Para que possamos, pois, em todo o tempo, dizer o
que sentimos, precisamos estar apparelhados e capacitados.
Para isso, o apostolo dos Gentios recommenda o exercicio
da piedade, que para tudo é utit." (I Tim. IV).
Ahi tem o nosso illustre adversario a melhor prova da
nossa sinceridade. Preveniamos aos leitores do "Estandarte" e
a todos os crentes evangelicos do Brasil, contra o perigo a
que nós nos arriscavamos, si não fizessemos um estudo com-
parativo da Biblia com as doutrinas extranhas ao protestan-
tismo. Eis o aviso muito leal, muito franco, muito sincero
feito nessa occasião : "Os romanos, os espiritistas e os sabba-
tistas costumam citar a Biblia para embargar a nossa argumen-
tação."
Desejavamos nada mais que isto: separar a ignorancia
da devocionalidade. Vem de molde citar hoje o testemunho
de um illustre pastor, a respeito dessa série, que escrevemos
em 1913. Eis o que nos disse o rev. dr. Thomaz Pinheiro
Guimarães, pastor e advogado em Bebedouro, em carta da-
tada de 13 de Dezembro de 1913: "Aproveito a occasião para
lhe declarar que tenho apreciado sobremodo os seus escriptos
no "Estandarte", e acho mesmo que o irmão é um vaso escolhido
que o Senhor está preparando para grandes cousas. Assim Deus o
ajude.”
Em conclusão: DEZ annos antes de conhecermos o es-
piritismo que combatiamos, já discordavamos do methodo
adoptado pelos protestantes, de pregar aos outros o "exami-
nae tudo", do apostolo, reservando-se para si o que o apostolo
não recommendou: julgar sem examinar!
— 87 —
“Couraçado de Papelão"
VIII
Encerramos hoje esta série de artigos. Cumpre-nos deixar
consignada, nestas linhas, a mais profunda gratidão ao rev.
Othoniel Motta, brilhante literato e pastor presbyteriano,
pelo relevante serviço que prestou á causa da verdade. 0
ridiculo e o desdém não impedem a marcha do espiritismo
na seára protestante. Provocam, sim, a sancção daquela lei vigente
no mundo moral: "idéa perseguida é idéa propagada".
Criticando com profunda ironia o livro do sabio scien-
tista, pastor e diplomata, Robert Dale Owen — livro que
lhe démos para ler, mas que o não leu — s. revma. bapti-
zou-o com os nomes de “calhambeque" e "fortaleza de papelão".
Provámos que não é assim. Não póde ser "calhambeque"
não pode ser "de papelão" a fortaleza cuja artilheria abre
diariamente fundas brechas em um “valente couraçado" que é
o protestantismo, segundo a vontade de s. revma.
Pregando do pulpito o "examinae tudo e abraçae o que
for bom", de Paulo, s. revma. pecca voluntariamente, porque
receita esse criterio e segue criterio opposto, o de frei Thomaz.
Muitos espiritas e... muitos protestantes, scientes da
critica mordaz de s. revma. e lendo a defesa que apresentá-
mos, sentiram-se alfinetados pela curiosidade de lêr o famigerado
livro. Resultado: as livrarias não supportaram a corrida!!!
Sabemos que os ultimos slocks exgottados em São Paulo,
foram os da Livraria Ideal e Livraria Magalhães, adquiridos
— 88 —
pela Livraria do "Clarim", cujo proprietario recebeu uma
chuva de pedidos, conforme correspondencia que pudemos
lêr com estes olhos...
Sabemos, tambem, que a Administração dos Correios
de S. Paulo fez a remessa dos exemplares desse livro, sob os
registrados ns. 195.158 e 205.238.
Mais ainda: tivemos sciencia de que as livrarias do Rio
de Janeiro soffreram a mesma corrida...
Esse facto é de alta significação moral. Perseguir a ver-
dade, é propagal-a. Zombar de uma doutrina que se des-
conhece, é chamar para ella o estudo, a analyse, a attenção, o
exame, a investigação. E a imprensa é a arma poderosa no
campo das idéas...
Tinha razão o grande Gamaliel quando deu aquelle sabio
conselho aos inimigos e perseguidores da verdade. Si estivesse
hoje em São Paulo, diria o mesmo ao nosso amigo rev. Otho-
niel Motta, fundamentando a mesma sentença com as pa-
lavras de Paulo, seu discipulo: "Nada podemos contra a ver-
dade"! Portanto, "examinemos tudo e abracemos o que for
bom”!
A PALAVRA DE GRANDES THEOLOGOS
No correr destas paginas, encontrará o leitor largas ci-
tações do livro do revmo. Charles Reynalds Brown, deão da
famosa Universidade de Yale e pastor de uma Egreja Con-
gregacionalista de Oakland. Porque essas citações? pergun-
tará a curiosidade do leitor. Respondemos nós: por se tratar
da obra de um grande theologo protestante, dos nossos dias, e
não somente theologo, mas philosopho, notável prégador, e
sobretudo o mais respeitavel professor de uma abalizada
universidade norte-americana. Sua erudição, alentada por
um espirito de largos vôos, possue os encantos de uma apri-
— 89 —
morada disciplina mental. Fiel ao rigôr das construcções
logicas, ás quaes não falta a elegancia das linhas geraes, firme
no equilibrio que sabe dar ás suas deducções exegeticas,
Brown faz jus ao conceito expendido pela casa editora, a
Imprensa Methodista; sua obra é, talvez, a mais solida cons-
trucção doutrinaria, de franca opportunidade, entre as demais
que avultam na bibliographia protestante. Dotado de uma
capacidade conceptiva verdadeiramente prodigiosa, não soffre,
todavia, a vertigem das alturas. Quando paira, por vezes,
nas regiões do idealismo, do sadio idealismo christão, com a
penetração visual da aguia ou do condôr, não se esquece de
que essas alturas não são obra de suas azas: sabe, sim, que
suas azas foram feitas para voar tambem a essas alturas,
cujo accesso ainda não é prohibido...
Ao envez de imitar o methodo de certos philosophantes e
ensinadores de religião, a quem, parece, a natureza conferiu a
virtude de serem sempre admirados e nunca a de se colloca-
rem alguma vez na posição de admiradores, o sabio pastor
norte-americano não alimenta a pueril pretensão de arrebatar
o leitor nas azas da eloquencia, muito menos a de afogar em
banho de rosas a fatuidade dos amantes de phosphorescencias
doutrinarias...
O erudito professor da Universidade de Yale é um perfei-
to didacta, e como tal, não ignora que, "sem o lastro das
realidades concretas, não ha machina de raciocinio que não
descarrile na primeira curva." Dahi a solidez lapidar da sua
obra, que empolga pela forma simples mas incisiva, e conven-
ce pela essencia, expurgada de subtilezas philosophicas ou
theologicas.
Não hesitamos um instante sequer em endossar muitas
das idéas fundamentaes de certos capitulos, e o fazemos com
immensa satisfacção, porque admiramos em Brown o typo
do amante da verdade, o discipulo d'Aquelle que recommen-
da a seus seguidores: "Brilhe a vossa luz deante dos homens;
seja o vosso falar sim, sim; não, não."
— 90 —
Cresce de vulto a actualidade dessa obra, quando atten-
tamos para as circumstancias occasionaes do seu appareci-
mento entre nós. Informou-nos illustre amigo e irmão, cren-
te evangelico, que certo dia um exemplar dessa obra, na lin-
gua original, caiu sob os olhos do revmo. Bispo Methodista
do Brasil, que o examinou cuidadosa e carinhosamente. Des-
lumbrado pela excellencia dessa obra, que representa notavel
contribuição para as letras evangelicas, esta autoridade ec-
clesiastica passou o exemplar ás mãos do revmo. William
Bowman Lee, Presbytero Presidente do Districto Methodista
de S. Paulo, que, tambem empolgado pela obra, traduziu-a
para o portuguez, de accôrdo com as ordens do Bispo. A
Imprensa Official da Egreja Methodista de S. Paulo, certa
de prestar mais um serviço á causa do Mestre, em nossa pa-
tria, editou a obra, que abrange 189 paginas, nitidamente
impressas e enfeixadas em linda encadernação. Cada exem-
plar é envolvido por uma capa protectora, de bom papel, á
moda yankee, onde se lê o seguinte impresso: “Os Pontos
Principaes da Crença Chrlstã Brown — "Este é um livro
para figurar com grande brilho nas melhores e mais valiosas
bibliothecas de ministros, pastores, evangelistas, missionarios e
professores. E' a mais brilhante, clara, concisa e simples ex-
posição dos principios, dogmas, doutrinas e crenças christãs,
abrangendo 11 capitulos, que tratam dos seguintes pontos: 1)
Divindade de Jesus — 2) A Reconciliação — 3) A Obra do
Espirito Santo — 4) A Autoridade da Biblia — 5) A Utili-
dade da Oração — 6) A Questão da Conversão — 7) A Salva-
ção pela Fé — 8) A Egreja Christã — 9) A Esperança da
Immortalidade. 10) O Juizo Final. 11) A Utilidade de um
Credo." "E' um livro de inapreciavel valor para ser offerecido
aos que estão se interessando pelo Evangelho e que nelle encontra-
rão larga fonte de informações para a boa comprehensão das
doutrinas christãs, da sua crença e das suas esperanças. E'
talvez a obra mais completa neste genero, escripta neste ultimo
quarto de seculo. Imprensa Methodista de São Paulo.”
Ahi tem o leitor a apresentação da obra, feita pela
— 91 —
propria Imprensa Methodista. A ultima sentença diz tudo
sobre o valor do livro.
Para convencer ainda mais ao leitor de que procuramos
sempre as boas companhias, ahi vae o nome de mais uma
obra por nós consultada: "A Religião Christã" Temol-a
em nosso idioma, graças á operosidade dos illustrados lentes
do conceituado Mackenzie College, desta Capital, srs. revrno.
Mattathias Gomes dos Santos, hoje pastor da maior egreja
presbyteriana do Brasil (Rio), e Alexandre M. Orecchia. Faz
proeminar o valor da obra, o facto de haver sido escripta
por cinco theologos de indiscutivel competencia, constituidos
em commissão para tal fim: Ernesto Comba, Ugo Janni,
Bart. Léger, F. Peyronel e F. Rostan. Conforme a "Nota
dos Traductores", obedece essa obra ao intuito da Egreja
Valdense, de "offerecer aos adolescentes um manual para a
instrucção religiosa" e “jacultar, ás pessoas que desejam co-
nhecer as doutrinas christãs ou consolidar e dejender as proprias
convicções religiosas, um meio imparcial e. seguro, onde a luz
da verdade tenha o maximo brilho e julgor."
A INSPIRAÇÃO DA BIBLIA CONSIDERADA POR
UM NOTAVEL PASTOR PROTESTANTE — AS PENAS
ETERNAS — PAVOROSO QUADRO PINTADO POR
UM GRANDE PREGADOR — A QUESTÃO DA SAL-
VAÇÃO, SEGUNDO O METHODO DE JESUS E DOS
PROPHETAS —
Arrogando-se o privilegio da interpretação dos textos
escripturisticos, a theologia proclama-se "infallivel", e, com
tal pretensão, jamais admitte, fóra do seu circulo, o direito
de interpretação das Escripturas Sagradas. Dahi aquella
sentença que o leitor terá ouvido muita vez: 'Creio firme-
mente que a Biblia foi inspirada directamente por Deus, de
capa á capa; não admitto nada em contrario." Tal sentença,
com esse colorido tão carregado, autoriza-nos a pôr em duvi-
da o criterio, bem como a solidez das convicções do próprio
— 92 —
autor. O Livro dos livros não deve ser tratado com esse
dogmatismo idolatrizante, nem o seu conteúdo dá lugar a
essa temeridade.
Ouviremos, a seguir, a palavra dos competentes, e para
ella pedimos a especial, a carinhosa attenção do paciente
leitor. Dispamo-nos de qualquer idéa preconcebida, revista-
mo-nos do espirito de humildade, colloquemo-nos na posição
de quem deseja ardentemente receber a graça de comprehen-
der os ensinamentos que os Mensageiros Celestes nos trans-
mittem pela instrumentalidade dos autores de obras, através
de cujas paginas admiramos a sabedoria que vem lá do Alto e
que é dada liberalmente a TODOS, pelo Pae das luzes. (Tiago,
1:5).
Com os olhos fixos n'Aquelle que nos manda “julgar
segundo a recta justiça" ou então a "não julgar, para que não
sejamos julgados", não esqueçamos a inspirada advertencia
do piedoso carthaginez, um dos mais eminentes dos Santos
Padres: "Extrangeira neste mundo, ella (a verdade) não
ignóra que encontrará inimigos fóra do seu paiz, todavia,
caminhando de olhos fitos no céo, sua patria e sua esperança,
sem preoccupar-se com o credito nem com a gloria, só uma
coisa aspira aqui em baixo — é que a não condemnem sem
conhecel-a." (Tertuliano)
Ouçamos o illustre dr. José Carlos Rodrigues, ex-director
do "Jornal do Commercio", do Rio de Janeiro, e cujas obras
mereceram francos elogios do grande philologo João Ribeiro,
em “O Jornal”, do Rio de Janeiro, de 28-Abril-1921: "E a
maior parte do Sermão do Monte consiste de tal expansão e
tal explicação dos principios, dos preceitos mosaicos, que
redundam na sua revogação. As Velhas Escripturas permit-
tiam o que agora o filho de Deus prohibia como reluctando á
nova Lei do Amor; ellas mostram o crescimento do verda-
deiro sentimento moral e religioso. E é erro grosseiro apresen-
tarem-nos essa moral incompleta e obscurecida, antes de
plena Revelação, como uma cousa acabada e perfeita; ou
— 93 —
de outro lado, aviltar esses desvios do povo escolhido como
si elles não tivessem servido o seu fim relativo e não fossem
o crepusculo da luz que devia rutilar na Revelação final de
Jesus Christo." "O ensino divino foi sempre indirecto, parcial,
progressivo e mediato, até Christo." "Assim, pois, a Biblia não
pretende ser um Codigo de leis fixas, de preceitos eternos
em que cada palavra, por assim dizer, seja infallivel." "E é
certo que Deus não se revelou apenas aos Israelitas e Judeus,
mas tambem aos outros povos, e de modo mais ou menos
claro. E' isto o que nos attesta S. Paulo. Não se concebe
religião senão baseada numa perfeita ou imperfeita revelação.
Os Vedas têem uma parte de revelação e outra de tradição.
Os Persas attribuem o seu Avesta ao deus Ahura que o com-
municou a Zarathustra ou Zoroastro, e os Mahometanos
consideram o seu Koran como cópia de uma revelação, e
dahi a idéa de que é perfeito e eterno. A crença mais rude
está convencida que ás suas préces ouve um ente que ella
não póde ver mas que é dotado de intelligencia e vontade
para ouvil-as e deferil-as ou não. Presumir o contrario é
crêr na efficacia, como diz Dodds, do bater das azas de uma
ave dentro de um vácuo. Os Gregos e Romanos que consul-
taram seus oraculos e áugures, de certo acreditavam que
os deuses os poderiam ouvir." ("Considerações Geraes sobre a
Biblia")
Vamos ouvir agora a palavra do grande theologo contem-
poraneo, o revmo. Charles Reynalds Browm. Vamos apreciar
a força da dialectica, produzida pelo dynamismo das mara-
vilhas: o amor da verdade! Veremos plenamente confirmado
o elevadissimo juizo externado pela Imprensa Official da
Egreja Methodista, ao dar á lume da publicidade a citada
obra desse sábio evangelista (os gryphos são nossos): "O
extremado conservador, pregando opiniões insustentaveis
sobre a Biblia, é um dos maiores inimigos da fé. Se estas
opiniões fossem só o resultado da ignorancia, podiamos sup-
portal-as, mas constituem um dos maiores impedimentos á
fé de muitos homens de boa vontade, e o ponto de assalto
— 94 —
para os inimigos do Christianismo. A Biblia, ainda que não
seja technicamente infallivel, é sem contestação o Livro dos
livros e é visando os interesses da fé e a maior influencia deste
livro no seu poder sobre o coração humano que os sábios
reverentes estão procurando uma base firme para nossa
confiança." "Tem augmentado incalculavelmente o interesse
humano pelo livro, salientando o facto que a Biblia não cahiu
do céo como uma herança sem preço para toda a raça, mas
que com paciencia infinita foi entrelaçada na vida e na ex-
periencia de homens de carne e osso, que encarnaram o dever,
que luctaram contra as tentações, que conheceram o mal e
que, pelo auxilio divino, alcançaram o gôso da liberdade
espiritual." "Não é difficil destruir a crença na absoluta e
egual inspiração de todas as partes da Biblia." "Tem-se pré-
gado que a Biblia é em todas as partes a infallivel palavra
de Deus; que estas palavras são tão verdadeiramente suas,
como se Elle as tivesse proferido com sua propria bocca, ou
como se as tivesse escripto com sua propria mão, e que o
facto de tel-as dictado a homens inspirados é o que lhe dá
autoridade. Esta posição é insustentavel, como verificará
qualquer leitor da Biblia que não fuja dos factos. E' uma
theoria que vem de fóra. Não é tirada do que a Biblia diz
de si,"
"A passagem muitas vezes citada para defender esta
idéa (II Timotheo, 3:16) segundo a melhor traducção, quer
simplesmente dizer: "Toda a Escriptura divinamente ins-
pirada é tambem util para ensinar, para reprehender, para
corrigir e para instruir na justiça afim de que o homem de
Deus seja perfeito, plenamente preparado para toda a boa
obra." O escriptor não está emittindo opinião sobre a in-
fallivel inspiração de todos os livros da Biblia, e de todas as
partes de cada um destes — não podia fazer isto porque
alguns nem existiam naquelle tempo. Nem está declarando a
inspiração do Novo Testamento, pois estes escriptos ainda
não estavam colleccionados nem approvados. Elle está sim-
plesmente dizendo que todos os escriptos dados por Deus
— 95 —
são uteis. Está indicando a edificação espiritual que se póde
tirar de qualquer escripto " inpirado por Deus".
"A's vezes querem provar a infallibilidade pelos ultimos
versos do Apocalypse: "Se alguem lhes accrescentar alguma
cousa, Deus lhe accrescentará as pragas escriptas neste li-
vro; e se alguem tirar qualquer cousa das palavras do livro
desta prophecía, Deus lhe tirará a sua parte da arvore da
vida e da cidade santa, que estão escriptas neste livro."
"Mas, visto que algumas partes do Novo Testamento foram
compostas depois de escriptas estas palavras, e como não houve
durante a vida do autor nenhuma collecção autorizada dos
livros do Novo Testamento, o certo é que não estava defen-
dendo a inspiração deste. Claramente só tratava de proteger
da multidão e dos accrescimos o Apocalypse, que acabára
de escrever."
"Se estudarmos os factos, veremos quanto é impossivel
sustentar a velha idéa da inspiração. Matheus, no capitulo
27, cita um versiculo do Velho Testamento e diz que é de
"Jeremias o propheta”. "Mas, o dicto versiculo não se
encontra nos escriptos de Jeremias, mas está no capitulo
11 de Zacharias. Matheus, citando de memoria, sem o
manuscripto do Velho Testamento perante os olhos, enganou-
se. Marcos, no cap. 2, faz referencia a alguma cousa que
David fez quando Abiathar era summo sacerdote. Procurando
a historia em I Samuel, descobrimos que Abimeleck era o
summo sacerdote. Paulo, no capitulo 10 de I Corinthios,
faz referencia a uma certa matança de Israelitas e diz que
cahiram naquelle dia "vinte e tres mil”. Voltando ao cap.
25 de Numeros, onde o facto está registrado, verificamos
que o numero dado é de "vinte e quatro mil”. "A inscripção
collocada na cruz de Christo é de muita importancia. Bem
podiamos suppôr que a importancia sagrada da occasião, o
numero limitado das palavras, a triplice repetição em Hebrai-
co, Grego e Latim, seriam sufficientes para fixal-as na mente
daquelles que as viram. Entretanto Marcos diz que a ins-
— 96 —
cripção era: "O Rei dos Judeus". Lucas diz que era: "Este é
o Rei dos Judeus." João diz que era: "Jesus, o Nazareno,
Rei dos Judeus." E Matheus diz que era: "Este é Jesus, o
Rei dos Judeus." A idéa geral em todos é a mesma, mas as
palavras são differentes em tudo. Ora, na realidade, a ins-
cripção continha certas e determinadas palavras e mais ne-
nhuma. Tres destas inscripções, portanto, não são exactas.”
"A infallibilidade exige a ausencia de todo erro e contradic-
ção e não simplesmente um alto grau de exactidão que se
approxime da perfeição." "Ha frequentes divergencias nas
narrações parallelas, em Reis, Chronicas e nos quatro Evan-
gelhos. A pretensão de que os homens inspirados chegaram a
tal ponto que cada palavra que pronunciaram era escolhida
pelo Espirito Santo, está refutada por estas divergencias
que teriam sido impossiveis se as palavras da mesma fossem
divinamente dictadas.” “A resposta tantas vezes ouvida,
que temos de acceitar tudo ou de rejeitar tudo, é tola e, além
de tola, perversa. “A inspiração resulta da operação do Es-
pirito de Deus, e esta varia segundo a receptividade do ho-
mem. Os apostolos foram homens inspirados, sem duvida
alguma, mas é certo que a sua inspiração não os tornou in-
falliveis na instrucção e administração da Egreja. Elles com-
metteram erros graves.”
“Jesus, citando o Velho Testamento, disse: "Ouvistes
que foi dicto: olho por olho e dente por dente”. Esta lei nun-
ca foi ideal, mas, quando foi dada, representava progresso
moral — olho por olho era melhor do que uma cabeça por
um olho. A represalia limitada pela lei era melhor do que a
vingança sem restricções. Mas, em vez desta dura lei de
represalias, Jesus mandou que se vencesse o mal pelo bem.
"Ouvistes o que foi dicto, amarás a teu proximo e odiarás a
teu inimigo.” Mas eu vos digo, amae a vossos inimigos, bem-
dizei aos que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e
orae pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que
sejaes filhos de vosso pae que está nos céos.” Jesus nos apon-
— 97 —
tou secções inteiras de ensinos do Velho Testamento, que
não representam a mente de Deus.
"Hoje seguimos o mesmo methodo. Comparamos os
ensinos de todas as Escripturas com os ensinos de Christo, e
descontamos o que não concorda com suas palavras. No
Salmo 109, o autor róga a morte sobre o seu inimigo e que
sejam orphãos os seus filhos, e viuva a sua mulher. Sejam
vagabundos e pedintes os seus filhos e busquem o pão dos
lugares desolados. Não haja ninguem que se compadeça
delle, nem haja quem favoreça os seus orphãos." — "Não
ha um christão hoje que tenha coragem de ajoelhar-se peran-
te Deus e fazer semelhante oração contra o peor homem do
mundo. A oração do homem que escreveu o Salmo não está
de accôrdo com o Espirito de Christo, por isso não podemos
tomal-a como nosso modelo."
"Em I Corinthios o apostolo diz que, segundo o seu jui-
zo, é melhor que o homem fique solteiro; que é melhor que
um pae não case suas filhas. E até dá a entender que o casa-
mento é uma especie de concessão que se faz ás fraquezas
humanas. "Mas, se não podem conter-se, casem-se, porque é
melhor casar-se do que abrasar-se.” E elle dá como razão
deste conselho, que a vida de familia não combina bem com o
serviço de Deus. "O solteiro tem cuidado das cousas do
Senhor de como ha de agradar ao Senhor; mas o que é casado
cuida das cousas do mundo e de como ha de agradar á mu-
lher.” "Não acceitamos isto como ensino de autoridade
divina! Nós nos casamos no cumprimento dos propositos
divinos, invocando sobre a união a benção de Deus. Gremos
que os homens e as mulheres servem melhor a Deus, estabe-
lecendo lares, e tornando-se paes e criando, familias crentes.
As palavras duras de São Paulo sobre o casamento estão em
desaccordo com os sagrados e elementares instinctos humanos
implantados na nossa natureza pelo Creador, para um fim
santo, e estão em desaccordo com o espirito de Christo. Jesus
indiçou o seu proposito aos homens quando disse: "Portanto,
— 98 —
deixará o homem pae e mãe e se apegará á sua mulher e
serão ambos uma só carne." "E o que Deus, no seu proposito,
uniu, ninguem o separe, no interesse da supposta santidade
do celibato. Citamos estas passagens (diz o autor!) para
mostrar que, na formação de um codigo das Escripturas
para nosso governo, o espirito de Christo é o criterio final
em tudo."
"Por esta attitude pratica, recusamos assentimento á
infallibilidade de todas as partes das Escripturas. Se os es-
criptores desses documentos tivessem sido infalliveis, então
os manuscriptos originaes em hebraico e grego teriam contido
as proprias palavras de Deus. Mas nenhum destes documen-
tos possuimos hoje. Temos cópias e as differentes cópias nem
sempre concordam. Os sábios nos dizem que ha mais de cem
mil variações nos melhores e mais antigos manuscriptos —
que se têem introduzido de tempos em tempos na transcripção
destes escriptos sagrados. Estas differenças nem sempre são
insignificantes. Os primeiros onze versiculos do cap. 8 de
João e os ultimos doze do cap. 16 de Marcos são omittidos
nos melhores manuscriptos. Perguntamos: qual destas
milhares de cópias é a infallivel? qual é a que contém as
palavras exactas do Espirito? Não ha possibilidade de res-
posta certa. Ainda mais: o povo não lê nem estas cópias dos
originaes — lê traducções. Os traductores nunca tiveram pre-
tensão a inspirados ou infalliveis na versão do hebraico e
do grego para o vernaculo. Usaram toda a sua illustração,
mas homens bons e sábios muitas vezes não concordam sobre
a significação de certas phrases. Quando foi revista a versão
ingleza, vimos que muitas questões foram decididas por uma
simples maioria de votos. Para decidir entre as differenças
equivalentes em inglez de alguma phrase antiga e escolher a
expressão infallivel, seria necessario possuir o dom da in-
fallibilidade."
"Esta questão da infallibilidade das Escripturas nunca
se fez antes do seculo quatro e tem sido debatida durante
— 99 —
toda a historia da Egreja. Martinho Luthero, que foi o pri-
meiro a dar direcção ao pensamento protestante, não o accei-
tou. A infallibilidade não resiste a um exame severo. Os que a
defendem fogem dos factos e brincam com a simples verdade, o
que tem produzido a incredulidade mais do que tem estimu-
lado a fé." "O autor do Salmo 109, invocando maldicções
sobre a viuva e os orphãos, não tinha alcançado ainda o
adeantamento espiritual de Tiago quando este escreveu que "a
religião pura e immaculada” era visitar os orphãos e as viu-
vas nas suas afflicções e guardar-se isento da corrupção deste
seculo.” "E isto é progresso porque a Biblia foi criada não
por palavras mecanicamente cahidas dos céos, mas pelas
experiencias moraes operadas nos homens pelo Espirito de
Deus. E' uma revelação progressiva, porque Deus falou con-
forme a capacidade que os homens tinham de ouvir. Elle se
revelava mais e mais, ao passo que os homens avançavam
em progresso moral." "Esta definição da Biblia, que não é
minha, mas que é colhida das palavras de muitos sábios,
parece satisfazer o caso. A Biblia é o documento que contém
a revelação progressiva de Deus através da experiencia reli-
giosa de um povo escolhido. Isto não próva infallibilidade,
porque ha, na Biblia, erros de memória e de transcripções,
concepções incompletas e imperfeitas do espirito de Christo
tal qual o temos revelado nos Evangelhos. Mas esta defini-
ção da Biblia affirma que as Escripturas contêm uma ver-
dadeira revelação de Deus, attribuindo á Biblia uma autori-
dade positiva porque nella qualquer homem encontra luz
para guial-o num culto intelligente e auxilio para conformar a
sua conducta com a vontade de Deus.
"E um homem que tem esta idéa da Biblia, não se
perturba com os erros e imperfeições moraes nella contidos, e
que não condizem com os ensinos de Jesus Christo, porque
julga a Biblia não por versiculos ou declarações isoladas aqui
e acolá, como a infallibilidade nos obriga a fazer, mas a julga
como uma mensagem util ao homem e que produz bons re-
— 100 —
sultados. E esta idéa prepara o espirito para o progresso
na revelação. A immoralidade de Sansão; a traição cruel
de Joel; o pessimismo do autor dos Ecclesiastes; a falta de
moral no livro de Esther, tudo isso é reconhecido como es-
criptos de homens sinceros, que não sabiam nem podiam es-
crever outra cousa, mas cujas palavras não contêm o verda-
deiro pensamento de Deus, se bem que nos tempos em que
foram compostos estivessem na vanguarda da vida religiosa.
E estes escriptos teem de ser "hoje" julgados a luz que jorra
de nosso conhecimento do Espirito de Christo. E esta idéa
da Biblia, como sendo "a revelação progressiva de Deus", des-
cobre a autoridade do livro não em alguma theoria erigida
por homens, mas na propria veracidade que ella contém.
"Pode haver valor, verdade, autoridade, grande, esplendida e
util, sem infallibilidade. Os catholicos entendem que, se a
Egreja não for infallivel, não pode ensinar ao povo. Muitos
protestantes rézam pela mesma cartilha, entendendo que,
se a Biblia não fôr infallivel, não póde ensinar ao povo. E
ambos estão errados: só Deus é infallivel, e nem a Egreje
nem a Biblia é Deus. Mas tanto a Egreja como a Biblia po-
dem ensinar com autoridade e proveito se as conclusões
moraes tiradas da revelação feita por Deus, através da
experiencia religiosa de um povo escolhido, forem válidas.
Dizem que é perigoso permittir que os homens façam estas
discriminações nas Escripturas, decidindo que esta passagem é
a verdade absoluta de Deus, e que uma outra é devida á
circumscripção puramente humana do escriptor. Mas os
homens nunca estiveram livres deste perigo. Homens como
nós, que só tinham a direcção divina que a todos é facultada,
teem decidido muitas questões vitaes. Por exemplo, tiveram
de escolher os livros que formam a Biblia e rejeitar outros.
Levantaram-se graves questões. A Epistola de Barnabé foi
tida por Clemente de Alexandria e por Origenes, como ins-
pirada. Barnabé é mencionado com Paulo nos Actos como
apostolo, e é descripto como "um homem bom e cheio do Es-
— 101 —
pirito Santo". O manuscripto mais antigo que temos da Bi-
blia, o Sinaiticus, descoberto por Tischendorf, em 1859, no
convento perto do Monte Sinai, contém a epistola de Barnabé.
Mas, mesmo assim, por motivos que julgaram sufficientes,
os homens rejeitaram esta epistota, emquanto que outros li-
vros de menos inspiração, foram retidos no canon.
"A maior defesa da autoridade da Biblia encontra-se
na experiencia humana. Os homens a teem em grande conta
por causa da obra que tem feito nos campos da vida christã.
Não é de importancia que a Biblia seja verbalmente inspirada
nem technicamente infallivel; mas é de importancia que os
homens descubram nella e por meio delia o Pae Eterno.
"Aponta-nos (a Biblia) os caminhos falsos cujo fim é a
morte, mas fala com uma autoridade superior á infallibilidade
theologica. Está cheia do Espirito Santo que é o espirito de
verdade, e seu poder não depende das theorias de inspiração
que os homens inventam, mas de sua propria vida immortal,
sua sublime elevação, sua capacidade de trazer homens a
Deus e á paz, A Biblia contém a palavra de Deus, mas não
se póde dizer que todas as suas palavras e syllabas são a pa-
lavra de Deus". "A Biblia prepara os homens para toda a
boa obra." (Brown, obra citada)
Ahi tem o leitor a autoridade de um expositor, fiel e
escrupuloso, das verdades do Christianismo. Esse ponto,
assaz delicado, foi magistralmente ventilado pelo revmo.
Charles R. Brown, que deixou provado, á saciedade, o nenhum
fundamento da tal sentença dogmatica de muitos crentes,
sobre a inspiração da Biblia "de capa á capa". O assumpto,
esflorado e documentado pelo sábio pastor norte-americano,
aproveita a todos os estudiosos da Biblia, ao mesmo tempo
que responde aos adversarios e inimigos do espiritismo,
quando anathematizam esta crença, pelo facto de não ac-
ceitar a inspiração do Livro como a pretendem os divulgadores
da citada sentença.
— 102 —
*
* *
— "Se eu fôsse calvinista arraigado, diz o rev. Brown,
sem duvida seria universalista. Se eu acreditasse que Deus
elege e escolhe certos homens para a salvação e salva a quem
bem quizer, sem duvida alguma acreditaria que, no fim.
Elle salvaria a todos os homens." "Qualquer theoria definida
sobre o estado futuro do homem é obrigada a deixar de lado
uma grande parte das Escripturas, isto é, tem de tirar as
suas conclusões de certas passagens escolhidas a dedo e ne-
gligenciar outras passagens, que lhe são antagonicas. O com-
pleto silencio de Paulo, o maior dos apostolos, sobre este as-
sumpto, merece a cuidadosa consideração de todos os seus
irmãos em Christo." "O programma definido do mundo
vindouro e traçado constantemente, tem feito muito mal.
Tem-se ensinado aos crédulos muitas coisas de que não po-
demos ter certeza. E hoje, muitos delles estão convencidos
disto, e, como resultado, desconfiam de outras coisas dignas
de toda a confiança. Assim, temos perdido a força para falar
com autoridade sobre as realidades espirituaes já confirmadas.
"Quando acabei de escrever estas palavras, abri um
livro de sermões que não foram escriptos para os ignorantes e
para os obscuros, além das fronteiras da civilização, mas
foram pregadas na cidade de Londres, a uma vasta congregação,
por um dos maiores pregadores do seu seculo, Charles Haddon
Spurgeon: "Tu dormirás no pó por um pouco. Quando mor-
reres, a tua alma sozinha será atormentada — isto será o
inferno para ella — mas no dia de juizo, o corpo se unirá
com a alma, e então terás infernos gemeos; corpo e alma
cheios de dôr, tua alma suando gottas de sangue, o corpo,
da cabeça aos pés, mergulhado em agonias; a consciência, o
juizo, a memoria, tudo atormentado; a cabeça rachando
de dôr; os olhos saltando das orbitas com visões de sangue;
os ouvidos atormentados com gemidos e gritos de almas per-
didas; os ossos estalando como os dos martyres e tu, lançado
em uma caldeira de azeite fervente, mas sem que a mesma
— 103 —
te anniquile; tuas veias transformadas em caminhos para os
afogueados pés da dôr; cada nervo uma corda em que o
diabo toca o hymno diabolico do inexprimivel lamento in-
fernal. Muitos rir-se-ão de mim, chamando-me prégador do
fogo do inferno. Pois bem, riam-se a fartar; talvez um dia
verão este mesmo prégador nos céos, emquanto elles serão
lançados fóra; e eu, olhando daquella altura, póde ser que
os faça lembrar de ter ouvido a Palavra em que não queriam
crer. Ah! Senhores, bem facil é ouvir isto, mas será duro
supportal-o! Agora me ouvis immoveis; porém será duro,
quando a morte vos apanhar e quando estiverdes queimando
no fogo." (Spurgeon)
"E isto (continua o revmo. Brown) é de um dos pré-
gadores mais celebres dos nossos tempos e é da raça anglo-
saxonia! Não é linguagem impensada que poderia ter esca-
pado em um momento de arrôjo enthusiasta, mas elle escre-
veu e publicou isto com plena convicção do que fazia. Offen-
de-nos o crasso materialismo e a crueldade de tal conceito,
mas a proposição dogmatica nos offende ainda mais. Como
sabe elle tanto a respeito da vida futura? Onde aprendeu
elle que os homens serão queimados no fogo, mergulhados
em tanques de azeite fervente? que os seus nervos serão
usados pelo diabo como cordas de violino para sua musica
infernal? Onde descobriu elle que nos céos lhe seria permittido
apontar a dedo as almas em tormentos e dizer-lhes: "Não
vos disse?" Este não é o espirito do Novo Testamento. Elle
nada sabia de tudo isto. O quadro é construido nas bases da
mythologia pagã. A sua crueldade nos géla o sangue, mas o
seu dogmatismo leva o homem pensante á incredulidade."
"Os justos foram para “a vida" e os impios para “a
punição". Quão variadas são a “vida" e a “punição", como
nós as conhecemos aqui! Estas palavras tão conhecidas
poderiam indicar tantos céos e tantos infernos, quantos são
os estados differentes do caracter humano."
“Não se póde dizer de um homem, levando toda a sua
vida em conta, que elle é “criminoso" ou “innocente". Em
— 104 —
algumas cousas é criminoso, em outras é innocente. E Paulo
diz que seremos julgados "segundo os nossos feitos" — o
juizo é baseado sobre o caracter, revelado e estabelecido pela
"conducta".
"A's vezes se diz que somos julgados pela acceitação
ou rejeição pessoal de Jesus Christo como nosso Salvador,
quando o proprio Jesus, na celebre descripção do Juizo Final,
fez a sorte futura depender do cumprimento ou da negligencia
dos nossos deveres de servir á humanidade. (S. Math. 25:31-
46). Mas, que significa a "acceitação" de Christo? A since-
ridade desta acceitação se manifesta no esforço de reproduzir
o espirito de Christo na vida propria, isto é, na “conducta".
"Pelos frutos os conhecereis". "Nem todos os que me dizem:
Senhor, Senhor, entrarão no céo; mas, sim, aquelle que faz a
vontade de meu Pae que está no céo." “O Novo Testamento
põe empha.se á idéa de que os homens serão julgados pelos feitos.
As ovelhas e os bódes representam respectivamente os bon-
dosos e humanitarios, e os egoistas e maus. Aquelles que
praticaram as obras do amor, desinteressadamente, foram ac-
ceitos; e os que não o fizeram foram rejeitados. As virgens
sábias foram acceitas porque cumpriram o seu dever; as tolas
(imprudentes) foram excluidas porque não cumpriram as
obrigações sociaes. O homem de cinco talentos foi premiado,
porque usou as suas forças conforme as instrucções recebidas;
o homem de um talento foi lançado nas trévas exteriores
porque não usou com justiça as modestas forças de que era
dotado. Não se faz referencia alguma á crença ou á increduli-
dade do rico na parabola, nem á fé de Lazaro; a crença theolo-
gica, excepto manifestada na conducta, nunca entra nos
quadros do Juizo Final traçados por nosso Senhor, mas o
destino de cada um depende da conducta. Era deshumanidade
da parte do rico deixar que um pobre doente passasse fome á
sua porta e por isto foi elle castigado. Os feitos praticados no
corpo decidirão a sorte no grande juizo final. (2.ª Epist. de
Paulo aos Corinthios, 5:10). A tentativa de fazer uma deci-
— 105 —
são final e estabelecer esta differença radical, provoca em-
baraços na região da theologia abstracta."
"Tenho procurado fazer uma explicação simples, porque o
ensino de Jesus é simples, como é simples tambem o seu metho-
do de converter os homens." "A confusão tem nascido princi-
palmente pelo facto de se fazer da "Fe" uma pura opinião
theologica. As opiniões não salvam nem perdem os homens.
Não ha graça salvadora em nenhum partido theologico. A
salvação é a renovação e o desenvolvimento da vida moral, a
acceitação e cultivo de uma relação filial para com Deus.
Isto não se consegue simplesmente por meio de opiniões cor-
rectas. Na verdade, as virtudes mais graciosas não são plan-
tas que florescem só so sólo orthodoxo. Florescem com despre-
zo admiravel das restricções ecclesiasticas, nos campos amal-
diçoados da heresia e até ás vezes se encontram ellas viçando
luxuriante nos desertos do paganismo. A idéa da salvação pelas
opiniões tem sido contraproducente, porque deixa a impres-
são de que o destino eterno de uma pessoa depende da accei-
tação ou da rejeição de um dogma, quando, de facto, depende
da renovação moral e da acceitação de uma relação filial para
com Deus. Tem-se insistido que, no leito da morte, almas
desnorteadas declararam a sua crença em Jesus Christo como
filho de Deus e salvador do mundo, como si esta simples ex-
pressão theologica tivesse força magica para mudar a sorte eter-
na de uma alma." "Fazemss parte da familia divina, não
por causa daquillo que temos feito, dando o dizimo da nossa
renda ao Senhor, ou sendo bondosos e puros c verdadeiros
em nosso trato com os outros, ou frequentando os actos de
culto na egreja; fazemos parte da familia divina somente
porque acceitamos o convite do amor de Deus. Não podemos
conquistar este lugar. Não nos é negado até que o valor do
nosso serviço nos dê o direito de exigil-o.
"As verdades da religião têem sido encobertas pelos ri-
tos sacerdotaes. Os homens offereciam sacrificios e holocaus-
tos, lavavam os copos e panellas, davam o dizimo do sal,
— 106 —
da pimenta e da mostarda, como se fossem estas questões
de vida ou de morte. Foi preciso que Jesus viesse e proclamas-
se o eterno Evangelho — "Deus amou ao mundo de tal
maneira que deu seu Filho Unigenito"; e os homens se salvam
crendo nelle, recebendo o que Elle dá livremente e seguindo-O
em uma vida de serviço.
"Os homens têem errado pensando que a jé é um acto
que a alma póde praticar de uma vez por todo o sempre, ou co-
mo um só assentimento a algum plano ou proposição e por
causa do qual ficar-se-ia salvo por todo o sempre. Não. A fé
não é isto, mas é uma attitude moral constante para com Deus.
"O justo viverá pela fé." E' a relação permanente entre a alma
e seu Deus.
“E tudo isto fica tão claro quando voltamos ao methodo
de Jesus! Como salvava elle os homens? Certa vez foi á casa
de um publicano, injusto, mesquinho e sovina, que nem ao
menos o convidou a isto. Zaqueu não reconhecia necessidade
de conhecer a Christo; portanto, Christo como obra de
graça, foi á casa delle, mesmo sem convite. Isto tocou o coração
do publicano: "Este grande Mestre a quem os homens cha-
mam Filho de Deus, vem á minha casa, reconhece-me, assen-
ta-se á minha mesa, quando os outros me desprezam porque
sou publicano!" E durante a conversa, Zaqueu alcança uma
nova visão da vida, transforma-se em outro homem sob a
injluencia de Christo, e, antes da retirada de Jesus, o publi-
cano peccaminoso lhe diz: “Senhor si injustamente eu tiver
tirado alguma cousa de alguem, restituir-lh'a-ei quadruplica-
da. Tenho sido um miseravel e injusto, mas agora, dou a
metade dos meus bens aos pobres." E Jesus responde: “Hoje
entrou a salvação nesta casa. Zaqueu tambem é filho de
Abrahão e faz parte da familia de Deus.
“Zaqueu ganhou a salvação não pelas obras (que eram
más), mas por dar as costas a uma vida de iniquidade, de-
clarando um novo proposito para o futuro e acceitando ale-
gremente o perdão, o reconhecimento e o auxilio que Jesus
— 107 —
lhe offereceu. A obra do restabelecimento moral não é obs-
curecida por qualquer insistencia na necessidade de peniten-
cia, de ritos ou de mortificações. Não se exigiu delle que
expressasse opiniões sobre a "substituição", sobre "decretos"
do governo de Deus ou sobre qualquer assumpto."
*
* *
"E' imperiosa a necessidade da união do Christianismo.
A plataforma antiga era: "Um Senhor, uma fé, um baptis-
mo.” (Ephesios, 4:5) Porque não seremos um só corpo nestas
bases fundamentaes:
"Um Senhor". Temos theorias differentes sobre a pessoa
de Jesus e o effeito da sua morte. Mas, entre catholicos e
protestantes, orthodoxos e liberaes, emfim, em toda a chris-
tandade, é este “o mesmo Senhor" que domina os pensamen-
tos e as aspirações dos homens.
“Uma fé". Ha muitas opiniões sobre ella., mas a attitude
para com Deus e que nos traz a salvação é a de confiança,
de obediencia e de amor. E esta fé na misericordia de Deus
revelada em Christo é commum a todos os christãos.
“Um baptismo”. Não baptismo de agua, seja ella pouca
ou muita, mas baptismo do Espirito Santo, que purifica e
renova o coração e de que a agua é somente o signal. E é
neste baptismo que todos os verdadeiros christãos confiam.
Sobre estes pontos fundamentaes somos “um só corpo".
“Hoje o Universalismo ensina que todos os homens co-
lhem o que semeiam, segundo uma justiça que não falha.
Todo o erro será castigado ou aqui ou além, mas sempre
com o fim de corrigir o malfeitor.
"O inferno não é um lugar de condemnação eterna e
de desespero; é mais uma escola de reforma. O "bicho que não
morre” róe para conseguir a refórma moral e as chammas
que não se apagam destróem as impurezas da alma. E os
homens levados pelos castigos de Deus ao arrependimento, á
— 108 —
acceitação da sua misericordia e á formação de novos proposi-
tos, são perdoados. E, finalmente, porque Deus é maior do
que o homem peccador, porque onde abundou o peccado
superabundou a graça, e porque o modo por que Deus con-
verte á justiça é inexgottavel e por isso mesmo destinado á
victoria final, todos os homens serão salvos.
"Esta doutrina se baseia em passagens taes como a
parabola da ovelha perdida, onde o Bom Pastor sáe atraz
da ovelhinha "até achal-a”. Jesus disse: "Eu, se fôr levanta-
do da terra, attrahirei todos os homens a mim". E isto revela-
va perfeita confiança no successo completo da sua obra.
"A expressão "eterna” ou antes "secular", referente ao
castigo, significa um processo de castigo que durará um pe-
riodo de provação da raça humana; mas não é para qualquer
alma individual eterno e sem fim. Dá força a este ensino o
facto que a palavra grega que traduzimos "castigo" significa
literalmente "podar", remover os galhos mortos e imperfei-
tos para que a arvore dê mais e melhor frueto. Jesus é o cor-
deiro de Deus que tira o peccado do mundo. Isto indica
completo exito e é inapplicavel a um Salvador que só sal-
vasse metade da humanidade."
(Observa Léon Denis: A palavra eterno, que tão frequen-
tes vezes se encontra nas Escripturas, parece não dever ser
tomada ao pé da letra, mas como uma dessas expressões
emphaticas, hyperbolicas, familiares aos orientaes. E' um
erro esquecer que tudo são symbolos e imagens em seus es-
criptos. Quantas promessas, pretensamente eternas, feitas ao
povo hebreu ou a seus chefes, não tiveram mais que uma
restricta realização! Onde está essa terra que os israelitas
deviam possuir eternamente — in aeternum — (Pentateuco,
passim)? Onde estão essas pedras do Jordão, que Deus an-
nunciava deverem ser, para o seu povo, um monumento
eterno (Josué, 4:7)? Onde está essa descendencia de Salomão,
que devia reinar eternamente em Israel (I Paralipom. 2210) e
— 109 —
tantas outras identicas promessas? Em todos esses casos, a
palavra eterno parece simplesmente significar: de longa du-
ração. O termo hebraico ôlam, traduzido por eterno, tem como
raiz o verbo âlam, occultar. Exprime um periodo cujo fim
se desconhece. O mesmo acontece á palavra grega aêon e á
latina eternitas. Esta tem como raiz aetas, idade. Eternidade,
no sentido em que a entendemos hoje, dir-se-ia em grego
aidios e em latim sempiternus, de semper, sempre. (Vêr abba-
de J. Petit, Résurrection, de abril 1903). As penas eternas
significavam então: sem duração limitada. Para quem não
lhes vê o termo, são eternas. As mesmas formas de linguagem
eram empregadas pelos poetas latinos Horacio, Virgilio,
Estacio e outros. Todos os monumentos imperiaes de que
falam devem ser, dizem elles, de eterna duração.") (Léon
Denis, "Christianismo e Espiritismo").
(Diz Paul Janet: "O arrependimento é uma tristeza
da alma; o remorso é uma tortura e uma angustia. Remorso,
do latim mordere, morder ás dentadas. Occuttum quatiens
animo tortore flagellum. Fustigam-nos com um azorrague
secreto, sendo a alma seu proprio carrasco." (Janet, "Phi-
tosophia", vol. II)
Ainda sobre a questão do "inferno", como meio expiatorio
e reparador, vamos ouvir a palavra autorizada dos cinco
theologos da Commissão Synodal da Egreja Valdense, em a
obra traduzida pelos srs. revmo. Mattathias Gomes dos
Santos e prof. Alexandre M. Orecchia, conforme referencia
que o leitor leu paginas atraz (os gryphos são nossos):
"A restauração universal. Segundo esta hypothese o
inferno será a sancção suprema do mal no fim da historia,
mas será, ao mesmo tempo, meio para conduzir os reprovados
ao arrependimento. Mesmo as creaturas mais culpaveis — os
demonios e o proprio Satanaz — serão um dia reconciliados
com Deus e participarão da gloria celeste. Biblicamente, esta
hypothese funda-se na interpretação absoluta das passagens
do segundo grupo (João, 12:32; Act. 3:21; Rom. 5:19; I
— 110 —
Cor. 15:20-28; Philip. 2:10, 11, etc), acompanhada de uma
interpretação relativa das outras. Racional e moralmente
vem sustentada por meio de considerações de indole preva-
lecentemente metaphysica. Deus é amor; não póde desejar
que suas criaturas soffram interminavelmente. Deus é justi-
ça; uma pena interminavel não seria proporcionada ao pec-
cado e, portanto, conforme á justiça de Deus. Deus é omni-
potente; o eternizar-se do mal seria a negação da omnipoten-
cia divina. Quanto á liberdade das criaturas moraes, não
se trata aqui de a violar, mas de attrahil-a, mantendo-a na
integra; e, por isto, Deus tem meios infinitos e a eternidade á
sua disposição." ("A Religião Christã") A palavra do revmo.
Brown, secundada pela de Léon Denis, de Paul Janet, e dos
theologos valdenses, deixa bem claro o ensino do Evangelho,
sobre o castigo que o peccador se impõe, em virtude da dureza
do seu coração. Affirma o Divino Mestre que o homem assim
inclemente, será submettido a soffrimentos dolorosos na vida
espiritual, "sendo a alma seu proprio carrasco". Disse Jesus:
"Em verdade te digo que não sahirás dalli até pagares o ul-
timo ceitil". E' alli que haverá o choro e ranger de dentes,
isto é, o "remorso", o bicho que róe, que morde. (S. Math.
5:22-26 e passagens parallelas). O Novo Testamento confirma
o que diz Brown, sobre o fim desse "ranger" e desse “roer",
isto é, sobre o fim educativo e rehabilitante do castigo que
cada um soffre. Os padecimentos que cada um semeia, por
suas obras, nada mais representam do que o premio mereci-
do: “a cada um segundo as suas obras" disse o Divino Mes-
tre. O apostolo S. Pedro diz-nos veladamente que o remorso,
isto é, o azorrague que cada um se impõe, póde durar muitos
seculos! E' o que deprehendemos de sua 1.ª Epistola, cap. 3,
versiculos 18, 19 e 20. Conta-nos elle que Jesus, quando
desceu aos infernos (infernus, de "infer", que significa infe-
rior) foi prégar o Evangelho da Verdade e da Esperança
áquelles espiritos mettidos no cárcere, desde os tempos de Noé,
muitos seculos antes do nascimento do Salvador. E' que
esses espiritos haviam pago o ultimo ceitil, sem o que, não
— 111 —
comprehenderiamos o motivo da pregação de Jesus a esses en-
carcerados. Corrobora o ensino desse apostolo, a palavra
do grande Paulo: "Deus quer que TODOS OS homens se sal-
vem, e que cheguem a ter o conhecimento da verdade". (1.ª
Tim. 2:4).
Mas, continuemos a ouvir a palavra do ardoroso evange-
lista, revmo. Charles R. Brown, sobre a "reconciliação do
homem com Deus".
"E' preciso que a doutrina da reconciliação esteja de
accôrdo com a consciencia e com a razão. Os homens não
acceitarão um "plano de salvação" que é irracional ou absur-
do, que ignora os factos moraes, ou que cria desaccordo ap-
parente entre o caracter do Pae e do Filho; nem descansarão
em uma theoria que ignore os ensinos das Escripturas sobre
esta questão fundamental ou que deixe de satisfazer ás ne-
cessidades da sua natureza moral, dolorosamente conscia
da redempção. Na discussão da reconciliação é preciso que
se note bem claramente a distincção entre factos e a simples
theoria humana sobre o facto. Mas, seja o que fôr, a nossa
explicação della é que a "reconciliação é a obra do amôr de
Deus com relação ao problema do peccado do homem.” "O
grande facto é que Deus de tal maneira amou ao mundo, que
lhe deu seu Filho unigenito, e o amor deste filho o impelliu a
morrer por nós. Não ha divergencias sobre este ponto. Mas
quando começamos a arranjar theorias sobre a relação da sua
morte com as leis moraes do Universo, então cahimos em
desaccordo.
"Um homem podia viver muito christanmente sobre o
grande facto de que Deus amou ao mundo de tal maneira
que deu seu Filho, ainda que fôsse incapaz de formular uma
theoria satisfactoria sobre a "reconciliação". A vida escapa
ás definições e desafia a analyse e cresce segundo as suas
proprias leis. Emquanto os sábios se debatiam na formação
do Credo da Chalcedonia, as consciencias serenas e os espiri-
tos humildes, em todo o mundo seguiam a Jesus, gloriavam-se
— 112 —
na paternidade de Deus e praticavam a fraternidade humana.
Emquanto os reformadores, por todos os processos e recursos
conhecidos, enchiam as phrases com idéas de "soberania",
"reprovação" e "expiação", milhões de almas, que nunca
ouviram falar, sequer, dos processos da logica, submettiam-se
ao poder de Jesus e aprendiam d'Elle mesmo, que é o Ca-
minho, a Verdade e a Vida.
"As Escripturas em toda a parte nos falam de Christo
não como quem reconcilia comnosco um Deus irado, mas
como quem nos reconcilia com Deus. Ellas nos falam de um
"Deus que quer e de homens que não querem". Propõe-se
uma reconciliação entre as duas partes, uma querendo, a
outra com pouca ou nenhuma vontade. Succede, pois, exa-
ctamente, o que era de esperar, quando uma parte quer e a
outra não quer: a parte que quer toma a iniciativa. O pro-
prio Deus deu a Christo como propiciação e um Deus que
offerece a propiciação, não precisa ser propiciado.
“As Escripturas são clarissimas sobre este ponto. “Deus
estava em Christo reconciliando o mundo comsigo.” “Se,
quando eramos inimigos, fomos reconciliados com Deus pela
morte de seu Filho, muito mais agora, estando reconciliados,
seremos salvos pela sua vida" ( não pela sua morte).
“As Escripturas nos ensinam que todas as barreiras
entre um Deus santo e os homens peccaminosos, são removi-
das quando abandonamos os peccados e nos tornamos crentes
em Jesus Christo. Mas, se existissem barreiras da parte de
Deus que exigissem a morte de uma victima innocente, para
poder perdoar ao penitente, parece que Jesus o ignorava, por-
que Elle convidava os homens a que fossem directamente ao
Pae, com fé e arrependimento, pedir perdão e, segundo o
seu ensino, seriam perdoados não porque cumprissem alguma
pena que lhes servisse de base á esperança de perdão, mas
seriam perdoados por causa da fé e do arrependimento. O
publicano orou: "Deus, tem misericordia de mim peccador", e
voltou para casa "justificado", sem a minima referencia á
— 113 —
necessidade do sangue de uma victima innocente para obter
perdão."
"Jesus nos ensinou a orar "Perdoa-nos as nossas dividas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores". "Se per-
doardes aos homens as suas transgressões, vosso Pae celestial per-
doará as vossas transgressões tambem". "A realidade do nosso
arrependimento e de um novo proposito para com Deus é
indicada pelo nosso espirito de reconciliação para com os outros.
E esta fé e este arrependimento eram as unicas condições
que Jesus reconheceu como necessarias para o perdão."
"Jesus ensinou que o methodo do perdão divino tem o seu
protótypo no methodo do perdão humano. Elle nos ensinou a
dizer: "Perdoa-nos a nós como nós tambem perdoamos".
Se vós sendo maus sabeis perdoar aos homens as suas trans-
gressões quando vêem confessando a sua culpa, confiados
na vossa generosidade, quanto mais o vosso Pae celestial
vos perdoará a vós quando o procurardes no mesmo espirito!
Este joi o constante ensino de Jesus
"Depois de divagarmos pelos labyrinthos de muitas
theorias e de raciocinios sobre trocas commerciaes, e experi-
encias judiciarias, e sobre a imputação de culpa e de merito
onde estas cousas não têem cabimento, é uma grande consolação
voltar ao christianismo original de Jesus Christo. Jesus parecia
ignorar todas estas theorias intrincadas. As suas declarações
sobre o perdão e a misericordia eram tão differentes! Se
algum filho prodigo voltasse de uma terra longinqua de per-
dição e se apresentasse perante o Pae, dizendo: "Pequei
contra os céos e perante ti", perdoar-se-lhe-ia sem a menor
referencia a qualquer plano que permittisse a um homem
que perdoasse ao seu filho penitente.
"As proprias palavras "RECONCILIAÇÃO", "PROPICIAÇÃO",
"JUSTIFICAÇÃO", não se encontram nos Quatro Evangelhos.
O Mestre, que falou como homem algum falou, findou a sua
carreira, entregou a sua mensagem, completou a obra que o
— 114 —
Pae lhe deu, sem. nunca sentir a necessidade de usar qualquer
destas palavras." (Attentemos bem para isso!)
"O grande amôr de Deus, que nunca foi comprado por
quem quer que seja, desimpedido de qualquer embaraço
governamental, salta as barreiras impostas pelo peccado e
corre em busca dos perdidos para salval-os. Temol-o obs-
curecido pelas nossas elaboradas theorias. Temos enfraquecido
a sua luz pela errônea applicação de certas expressões nas epis-
tolas. Estas expressôes eram naturaes para o espirito hebreu,
treinado como fôra num systema ecclesiastico onde os sa-
crificios cruentos occupavam um lugar proeminente. Jesus
libertou-se dos habitos intellectuaes que prevaleciam entre o
seu povo e vivia num plano mais elevado do que aquelle
em que se praticava o culto da Egreja Judaica. Portanto,
quando examinamos as suas declarações, não encontramos
uma só palavra que indique obstaculos entre o amor gratuito,
perdoador e incomparavel de Deus e as necessidades moraes
de um coração penitente.
"Dizem que cm todas as referencias ao sangue de touros
e de bodes no Velho Testamento devemos encontrar typos e
antecipações do unico sacrificio perfeito offerecido na morte
de Christo. Alas os espiritos mais nobres do Velho Testamen-
to comprehenderam bastante a mente de Deus para vêr que,
mesmo naquelles tempos, Elle não perdoava aos homens
por causa do sacrificio cruento, mas á vista do arrependimento
e da fé.
"Ouvimos a DAVID: “Não queres os sacrificios que eu
daria. Tu não te deleitas em holocaustos. Os sacrificios para
Deus é o espirito quebrantado; a um coração quebrantado e
contricto, não desprezarás, ó Deus!" (Ps. 51-16)
“E Samuel: “Tem, porventura, o Senhor tanto prazer
em holocaustos e sacrificios, como em que se obedeça á pa-
lavra do Senhor? Eis que obedecer-lhe é melhor do que sa-
crificar; e o attender melhor é do que a gordura dos carnei-
ros!"
— 115 —
"E ISAIAS: "De que serve a mim a multidão de vossos
sacrificios? Diz o Senhor... quem requereu isto de vossas
mãos?... Que o impio deixe o seu caminho, e o homem ma-
ligno os seus pensamentos, e se converta ao Senhor; e se
compadecerá delle; e ao nosso Deus, porque grandioso é
em perdoar... cessae de fazer mal; aprendei a fazer bem...
Vinde agora e argui-me, diz o Senhor: Ainda que os vossos
peccados sejam como a escarlata, elles se tornarão brancos
como a neve."
"E OSÉAS: “O que eu quero é a misericordia e não o sa-
crificio; e o conhecimento de Deus mais do que os holocaus-
tos!"
"E MIQUÉAS: "Com que cousa encontrarei ao Senhor?
Encontral-o-ei com holocaustos? com bezerros de um anno?
Agradar-se-á o Senhor de milhares de carneiros, de dez mil
ribeiros de azeite?... Elle te declarou, ó homem, o que é
bom; e que é o que o Senhor pede a ti senão a prática da justi-
ça e que ames a benejicencia, e andes humildemente com o teu
Deus ?"
"E JEREMIAS : "Assim diz o Senhor dos Exercitos...
não falei a vossos paes no dia em que vos tirei da terra do
Egypto, nem lhes ordenei cousa alguma acerca de holocaus-
tos ou sacrificios. Porém esta cousa lhes ordenei, dizendo:
Dae ouvidos á minha voz e Eu serei o vosso Deus e vós sereis
o meu povo!"
"E EZEQUIEL: "Convertendo-se o impio da sua impie-
dade que commetteu, e praticando o juizo e a justiça, conser-
vará este a sua alma em vida".
"Estas palavras propheticas são tiradas dos labios dos
homens principaes do Velho Testamento, homens de larga
visão e descortino. A mensagem unisona é que a graça per-
doadora de Deus nunca foi comprada, nem se compra, mas é
gratuitamente concedida a todos que a procuram, como um
acto de graça. Nem se póde dizer que, desprezando desta
maneira a idéa de comprar a reconciliação pelo sangue dos
— 116 —
holocaustos, os prophetas estavam simplesmente dando em-
phase á necessidade de acompanhar os sacrificios com arre-
pendimento e fé. Os prophetas se puzeram em franco antago-
nismo com estas idéas sacerdotaes esposadas pelos ritualistas,
porque viram que estas theorias de equivalentes judiciaes,
a imputação da culpa a uma victima innocente, com o fim
de aplacar uma ira que não existe, contra o peccador arre-
pendido, confundiam o povo e produziam uma impressão erra-
da no seu espirito. Estes homens enxergavam o mundo pelos
olhos de Deus, e ensinaram os peccadores a não torcer o
pescoço de uma pomba, ou a degolar um cordeiro, como se
estes actos constituissem a base do perdão, mas recorrer á
misericordia de um Deus compassivo."
"O sangue é a vida". A sua funcção no corpo humano é
purificar e alimentar o organismo. A vida moral do homem,
agora enferma e enfraquecida, é purificada e renovada pelo
derramamento da VIDA DE CHRISTO. "Assim diz a linguagem
simples e precisa das Escripturas: "Somos salvos pelo sangue
de Christo". E' a nossa união com a vida santa de Jesus, of-
ferecida e derramada pela redempção do mundo, que nos res-
taura a favor e semelhança de Deus." (Salvos pela vida de
Jesus, e não por sua morte).
"O amôr de Deus é derramado em nossos corações, pelo.
Espirito Santo que nos é dado". O caracter do homem é
modificado de certo modo pelo meio em que vive; pelo lar,
pelo trabalho e pelos companheiros. Mas é modificado ainda
mais pelo estado interior, mental e espiritual, que completa o
effeito do meio. O caracter é modificado fundamentalmente
pela presença do Consolador, do Guia, do Amigo, que permanece
com o crente, guiando-o para toda a verdade e para uma vida
santa. O poder transformador do Espirito é o mais glorioso
aspecto da sua obra. Quantos crentes não têem experimentado
mais amôr de Deus, mais devoção, mais compaixão para
com os homens, mais ternura, mais desejo de servir, devido á
presença do Espirito?
— 117 —
"Os fructos do Espirito" se dão espontaneamente na
vida de um homem assim relacionado com a energia divina.
A vida "dá fructo por si mesma", como disse Jesus, mal
sabemos como. "O amor, o gozo, a paz, a paciencia, a mansi-
dão, a bondade, a fidelidade, e a sobriedade são a expressão
natural da presença do Espirito. A vida que dá estes fructos é
inspirada em nossos corações pelo Espirito Santo. O Espirito
nos guia para toda a verdade. A communicação da verdade aos
homens não cessou com o ultimo livro da Biblia.”
"A revelação não é só uma possibilidade eterna, é uma
necessidade eterna: não se limita á raça alguma, a tempo
algum, a condições algumas, nem á phase alguma da fé. A
promessa não foi feita a nenhum seculo nem a qualquer grupo
de homens, não foi de uma revelação instantanea, porém,
de um desenvolvimento gradual, progressivo: — "Elle vos
guiará para toda a verdade”. "Temos grandes problemas
que os livros ainda não resolveram.” "Para muitos entre nós,
a Egreja não é mais do que um sacerdote, do que um mestre,
do que um dominador. Para que a Egreja seja uma força
neste seculo, claro é que tem de ser differente e maior do que
agora o é. Não confiamos nos planos sábios até aqui desco-
bertos, mas na direcção do Espirito promettido á Egreja que
se dedica á vontade de Deus. O dia de Pentecostes não foi uma
maravilha isolada, que se operou no inicio de uma nova dis-
pensação para attrair a attenção. Foi uma amostra do modo
pelo qual as "forças do mundo invisivel” pódem ser "Invocadas"
para ajudar as nossas proprias forças moraes no estabelecimento
do reino de Deus” (Revmo. Charles Reynalds Brown — "Os
Pontos Principaes — Um Estudo da Crença Christã” — Im-
prensa Methodista — S. Paulo)
____________
— 118 —
JULGAMENTO PELAS "BOAS OBRAS" — PAGA-
NISMO EVANGELIZADOR — UM MENSAGEIRO
DO
ALEM CORRIGE O CREDO DO APOSTOLO
A fé salvadora e removedora de montanhas, de que fala o
Evangelho, em nada se parece com a fé ensinada pela ortho-
doxia da Reforma. E' o Evangelho que nos vae falar de dois
casos typicos, reveladores das mesmas verdades contidas em
outras passagens do livro sagrado.
Conta-nos o primeiro dos evangelistas, em o cap. oitavo,
que certa vez um official romano (gentio ou pagão), chegou-se
a Jesus e pediu-lhe a cura de um criado, atormentado por
paralyzia aguda. O Mestre respondendo ao official, prometteu
de ir á sua casa, para realizar a cura. Ouvida a resposta,
replicou o official: "Senhor, não sou digno de te receber em
minha casa; basta uma palavra tua, para que o meu criado
fique livre dos seus padecimentos. Pois tambem eu sou homem
sujeito a outra autoridade, e tenho sotdados á minha disposição,
e digo a um: "Vae acolá, e elle vae; e a outro: Vem cá, e
elle vem; e a outro: Faze isto, e elle o faz".
E Jesus, ouvindo assim falar o official, admirou-se e disse
aos seus ouvintes; "Em verdade vos ajjirmo que não encontrei
tamanha jé em Israel!” — E accrescentou immediatamente:
Digo-vos porém, que virão muitos do Oriente e do Occidente, e
se sentarão á mesa com Abrahão, e Isaac e Jacob no reino
dos céos; mas os filhos do reino serão lançados nas trévas
exteriores, onde haverá chôro e ranger de dentes. Então Jesus
disse ao centurião romano: Vae, e faça-se-te segundo tu crês-
te. E naquelle mesma hora ficou são o criado." (Revelou o
centurião fé no poder, no amôr e na misericordia de Jesus.)
— 119 —
O evangelista Lucas, em o livro de Actos dos Aposto-
os, caps. 10 e 11, conta-nos que um outro centurião romano
(abominado pelos judeus), teve uma visão em que lhe ap-
pareceu um espirito, com vestidura branca, de quem ouviu
palavras de approvação aos actos, ás obras de fraternismo
delle centurião. Esse espirito, ou anjo, mensageiro, recommen-
dou ao centurião, de nome Cornelio, que mandasse chamar o
apostoio Pedro, de cujos labios ouviria a verdade evangelica.
Esse apostoio foi procurado por tres enviados de Cor-
nelio, dos quaes um era sotdado crente em Deus. Pois bem.
O apostoio Pedro, por sua vez, teve uma visão, quando, em
concentração, orava a Deus. Recebeu então ordem expressa
do espirito, de annunciar a verdade aos gentios, a começar
de Cornelio. Teve escrupulos e offereceu mesmo certa relu-
tancia, porque, segundo o seu modo de crêr, não se podia con-
taminar com os não eteitos, no seu entender, os gentios ou
extrangeiros.
Notemos que o proprio apostoio Pedro, DEPOIS QUE RE-
CEBEU O BAPTISMO DO PENTECOSTES, ainda estava preso á
idéa de que os judeus não se deviam unir aos extrangeiros,
que eram abominaveis a seus olhos... — Mas, teve que
obedecer á ordem recebida, porque o espirito lhe deu esta
lição: deante de Deus não ha judeus nem extrangeiros, não
ha "eleitos" nem "rejeitados", não ha “privilegiados” nem
“reprovados”, mas filhos do mesmo Deus, merecedores todos
da mesma graça. — Cornelio, considerado pelo apostoio
Pedro como abominavei, rejeitado e perdido, por ser italiano,
recebeu a graça de conhecer a verdade, porque era sincero e
crente humilde, ainda que mergulhado na crença ignorante
dos esplendores do Evangelho. Eis o que disse o espirito
sobre esse italiano: “Cornelio, a tua oração foi attendida e
as tuas esmolas foram lembradas na presença de Deus.” (Ca-
pitulo 10:4 e 31). Não lhe foi elogiada a fé segundo este ou
aquelle credo, mas mencionadas as suas "boas obras"...
— 120 —
Illuminado pelo Espirito de Verdade, o apostolo Pedro
reconheceu o seu erro, pois considerava coisa abominavel o
ajuntar-se com extrangeiros; reconheceu que "a ningeum
chamasse immundo ou heretico, porque deante de Deus não
ha distincção de pessoas."
Depois que o apostolo esteve com Cornelio, foi alvo de
palavras azedas e de reprehensão, da parte dos outros aposto-
Los, que por sua vez tambem "estavam certos" de que os gentios
ou extrangeiros deviam ser tratados sempre como inimigos e
não eteitos — como, infelizmente, o fazem hoje certos crentes,
que se consideram "os santos e eleitos de Deus", e a cujos
olhos os demais homens são os Cornelios, tidos e havidos
como excommungados...
Qual a lição dada por essas duas passagens do Novo
Testamento? Esta, transmittida pelo apostolo Pedro: "Si
Deus deu áquelles gentios ou hereticos a MESMA GRAÇA que
tambem a nós, que cremos no Senhor Jesus Christo, quem
era eu, para declarar fechada a porta do Reino, quando o
proprio Espirito da Verdade a declara aberta?
Mais uma lição: mesmo depois da descida do Espirito
Santo, no dia do Pentecostes — note bem o leitor! — o
apostolo Pedro alimentava a mesma crença que corria entre
os judeus, segundo a qual, o Reino do Céo pertencia exclusi-
vamente ao povo judeu...
Depois do baptismo do Espirito, o credo do grande pes-
cador da Galiléa ainda se resentia dos erros radicados no
judaismo! (Si a infallibilidade nasceu no dia do Pentecostes,
como explicar então esses erros do apostolo?) —
Após novas instrucções, novas advertencias do Espirito
de Verdade, é que o apostolo chegou a confessar: “Tenho
na verdade atcançado que Deus não faz distincção de pes-
soas; mas, que EM TODA A NAÇÃO aquelle que o teme E OBRA
O QUE É JUSTO, ESSE LHE É ACCEITE." (Cap. 10, vers. 34,
35). Affirma elle o contrario do ensino das orthodoxias.
— 121 —
Sim. Jesus veiu ensinar exactamente isso: que Deus é
pae de TODA a humanidade, creação Sua; que a fraternidade
humana jamais poderia limitar-se a ura povo. Dahi aquella
sentença positiva: "Muitos do Oriente e do Occidente toma-
rão a deanteira aos judeus." E' o apostolo Pedro quem nos
confirma esse ensino do Mestre, com o caso do centurião
Cornelio, que era do Occidente, isto é, da Italia...
Eis a que fica reduzido o exclusivismo sectario, em cujo
circulo de ferro as orthodoxias imaginadas pelos homens
querem asphyxiar as sublimes verdades respeitantes á pater-
nidade do Deus-amôr e á fraternidade dos homens. Em tanto,
em pleno seculo XX, ha expositores do Evangelho que for-
cejam por fazer vigorar aquelles erros do antigo "credo"
dos apostolos!
Em face da verdade expressa nesse versiculo do apostolo
Pedro, não ha prodigios de raciocínio capazes de fazer viver,
por um minuto sequer, o dogma da predestinação calvinista.
O de que jamais duvidaremos é que o apostolo, ahi, repete o
ensino de Jesus: as boas obras, como reflexo do amôr e da
caridade, são as chaves que abrem a porta do Reino!
Todos os seguidores do Mestre são convidados a mostrar
essas chaves aos seus semelhantes. (Math. 5:16).
OS ATTRIBUTOS DO CREADOR REPELLIDOS
PELO DOGMA — SATANAZ, COMO PROMOTOR PU-
BLICO, TRABALHA SOB AS ORDENS DE DEUS (!) —
ONDE NASCEU ELLE? — A LOGICA DO FOGO E O
FOGO DA LOGICA —
Ha quinze annos as livrarias protestantes puzeram á
venda uma obra editada pelo snr. J. L. Fernandes Braga,
zeloso membro de uma egreja do Rio de Janeiro, e intitulada
“Martinho Luthero — Simples narrativa da sua vida", por
A. de Saussure, traducção de Anna Huber (1912).
— 122 —
Apreciámos os interessantes informes e episodios referen-
tes ao biographado reformador allemão. Logo ás primeiras
paginas lemos estas palavras do ardoroso monge, quando
sentia a alma sacudida pela ansietude do lmmortalismo:
"Apesar da minha vida ter sido sem mancha, eu sentia-me
um grande peccador deante de Deus. A minha consciencia
estava turbada, e noite e dia meditava nessa passagem de
São Paulo: "O justo vive da fé.”
Estas cinco palavras, que se encontram em um ver-
siculo da carta do apostolo aos membros da egreja de Galacia,
fixaram-se de tal fórma na "turbada" consciencia do piedoso
frade, que o futuro bem cedo revelou o que estava para nas-
cer daquellas noites de vigilia: um dogma immobilizador
da fé. Crente nas doutrinas do Evangelho, Luthero conservou,
todavia, o lastro das idéas germinadas durante a sua vida
monastica. Temia as penas de um inferno ameaçador, cons-
truido pela egreja nos moldes da mythologia pagã, para
morada "eterna" dos filhos do Deus-Amôr...
Segundo essa orthodoxia, Deus não é omnísciente nem
perfeito. Não é omnisciente, visto como, tendo determinado
antes de toda a Eternidade, a creação de filhos para o bem
(porque a Bondade infinita não podia nem póde conceber
outra finalidade), errou o alvo, pois o primeiro filho creado
saiu demonio "perfeito” das suas mãos, para perder-se a si
proprio e perder não só os dois irmãos innocentes e puros
que iam ainda sair das mesmas mãos, mas á descendencia
toda que estava para nascer do futuro casal. (*) — Não é
perfeito, porque a Perfeição não póde errar...
Vae mais longe o ensino official da egreja: Satan arreba-
ta a maioria das almas, com plena permissão do Deus-Amôr,
do Deus-Justiça. Blasphemia? Sim, mas da propria egreja.
Escutemos a autorizada palavra do conhecidissimo theologo,
(*) Adão e Eva, quando collocados no Eden, alli já encontraram
Satan, vestido com a pelle de uma serpente.
— 123 —
revmo. Amos Binney, em seu "Compendio de Theologia",
publicação official da Egreja Methodista Episcopal do Brasil.
Lá está, á pag. 109, o seguinte: "Por isto póde-se suppôr
que elles (os demonios) excedem em numero os habitantes
da terra. Isto explica a apparente (?...) omnipresença do
tentador". "Elles nada podem fazer sem a permissão de
Deus". "Satanaz tem licença de entrar no céo como accusa-
dor dos filhos de Deus." (Apocalypse, 13:10, Job, 2) ("O
Estandarte" n.° 17, 1926).
Tal o ensino da Reforma, ou seja o triste legado daquellas
noites de amargosa vigilia, ou o fructo de uma "turbada cons-
ciencia". Possuindo o nosso globo "mil e seiscentos mithões"
de habitantes, perguntamos nós: que é o que deve esperar
na ultra-tumba o misero peccador, si de antemão já sabe
elle que, fraco, fraquissimo, jamais poderá vencer aqui um
demonio sequer, quanto mais um exercito de "dois mil mi-
lhões" de demonios, que trabalham com autorização do Deus-
Pae?...
Certamente algum leitor terá ficado escandalizado
pelo facto de havermos dito que o demonio saiu das mãos de
Deus. Não ha razão para esse escandalo, porque essa affirma-
tiva não é nossa, mas da theologia da Reforma. A propria
"razão" do leitor terá feito a seguinte operação: a existencia
de Satanaz colloca a questão entre as pontas deste dilemma:
ou o rei do inferno foi creado, ou não foi creado. Si foi creado,
é creatura de Deus, e nesse caso, é nosso irmão e, portanto,
digno do nosso amor; si não foi creado, temos que admit-
til-o "increado"; neste caso, complica-se a questão, porque
teriamos que admittir dois entes increados ou sejam duas
Eternidades, o que seria absurdo inconcebivel. Logo, si não é
"increado", foi creado... e não ha outro Creador além de
Deus...
Outro raciocinio do leitor: si o numero de demonios é
superior ao de habitantes da terra, é porque Satanaz é mais
poderoso que o Creador do Universo. Consequentemente,
— 124 —
Deus não é justo, nem previdente, porquanto, não podendo
Elle vencer o Forte, condemna os filhos fraquissimos, por
não serem mais fortes que o proprio Pae...
Antes de conhecer o livro editado pelo snr. J. L. Fer-
nandes Braga, conheciamos já a doutrina basilar de Luthero,
que é a do protestantismo. A doutrina de Jesus, doutrina do
Amor e do Perdão, da Verdade e da Tolerancia, da Justiça e
da Pureza, não póde sustentar ao mesmo tempo duas theses
contrárias e que se chócam. E' o de que se convencerá facil-
mente aquelle que, sem idéas preconcebidas, examine cui-
dadosamente o Evangelho, que encerra o ensino directo do
Mestre, não a uma determinada egreja ou a um povo, mas
a todos os homens.
Em primeiro lugar, consideremos que Jesus não foi crea-
dor de dogmas. Elle instituiu um unico dogma: o do Amôr,
que deve palpitar nos corações, vibrar nas almas, dominar as
consciencias, fortalecer e disciplinar a vontade, afim de que
os homens reconheçam e sintam que o Pae quér corações e
não palavras, quér sentimento e não formulas algebrizadas em
credos, quér realizações e não projectos traçados pelas espe-
culações theologicas. (Math. 22:37-40).
Certa vez, ouviu o Mestre o seguinte, de alguns discipu-
los: "Mestre, vimos um homem desconhecido, lá em longin-
quas encruzilhadas, a praticar acções de beneficencia, entre
as quaes a de expellir espiritos maus que flagellavam os nos-
sos semelhantes; não sendo esse “bemfeitor" teu discipulo,
porque não "nos” segue, nós lhe prohibimos a pratica desses
actos de fraternismo". — Qual a attitude do Mestre, ao ouvir
semelhante narrativa dos labios do disciputo amado? Teria
concordado com essa expressão do "credo" de João e de seus
companheiros? Approvou a prohibição feita, sob o fundamen-
to de que o tal homem não commungava as mesmas "idéas”
e “opiniões” delles discipulos? Eis a attitude de Jesus, reve-
lada em palavras: "Não lh'o prohibaes, porque não ha nenhum
— 125 —
homem que, praticando taes acções, seja contra mim. Quem
não é contra vós, é por vós." (Lucas, 9).
Significam essas palavras: "Quem pratica essas acções
de caridade, é porque ama a Deus, e esse amor ha de se mani-
festar por essa fórma, por meio de actos de fraternismo, seja
qual fôr a crença que esse homem professe; o Filho do homem
não julga os homens como o mundo costuma julgar, isto é,
pelas apparencias, mas pelos "fruetos" que cada um produz.
Si os fruetos são bons, é que a arvore da fé é boa. Não vos pre-
occupeis com a "forma", com a folhagem, mas com o fructo,
com a "essencia" das coisas. Repito-vos: Não ha nenhum ho-
mem, seja de que nacionalidade fôr, tenha a crença que tiver,
que, praticando acções meritorias como essa de que me falaes,
venha a ser meu inimigo. Ao contrario, quem me dera que to-
dos os homens tivessem os mesmos sentimentos fraternos da-
quelle pobre sertanista! Esse homem está no caminho da casa
de meu Pae. Eu sou o caminho, porque eu sou o amôr e a ca-
ridade, e esse homem está no caminho..."
Já naquelles tempos, os proprios apostolos "criam" erra-
damente com referencia ao exercicio do bem; entendiam, de
accôrdo com o "seu" credo, que a pratica do bem não se devia
extender aos extranhos, mas aos membros da mesma casta,
ignorando que, deante das verdades reveladas pelo Mestre,
desappareceriam as barreiras que dividiam os homens em clas-
ses e partidos religiosos, cada classe e cada partido com o
"seu" credo proprio, idealizado pelo "homem".
A' vista desse episodio interessante e instructivo regis-
trado pelo evangelista, e de outros que não foram registrados
(S. João, 21:25) teve Jesus, como Mestre, de ensinar a seus
ouvintes e seguidores, esta dolorosa verdade: a caridade veiu
do gentio, do paganismo, e não dos credos ou das orthodoxiasl
Dil-o a parabola do Bom Samaritano. (S. Lucas, 10). Jesus
collocou muito acima do "credo" de seus apostolos o senti-
mento e o exemplo do amaldiçoado gentio...
— 126 —
Vemos, pois, que o Divino Mestre encontrara na terra,
para ser arrancada, a arvore que Elle não plantou nem mandou
plantar: a da absorvente orthodoxia, cujas raizes, de causti-
cante amargôr, dividem e separam as raças, os povos, as fa-
milias, os individuos. Chegara o tempo do desfolhamento des-
sa arvore que frondeou ao sôpro de um amôr sem realidades!
Essa operação iniciou-a Jesus, conforme as passagens que já
considerámos e as que vamos considerar. Acompanhe-nos a
paciente attenção do benevolo leitor.
Um dia enviou Jesus deante de si mensageiros; e, indo
elles, entraram em uma cidade dos samaritanos (sempre os
odiados samaritanosl) para lhe prevenirem pousada. Os sama-
ritanos, porem, não o receberam, porque Jesus dera mostras
de que ia para Jesusalem (em cujo templo não entravam os
samaritanos, graças ao odio e á guerra dos judeus). Qual a
attitude de dois apostolos deante da negativa dos samarita-
nos? Que desejaram elles aos samaritanos? Teriam pedido a
Jesus que os cobrisse com o manto da sua jamais negada com-
paixão, e que lhes perdoasse a falta de hospitalidade? Não!
Eis o que "creram" acertado, como justa "paga", de accôrdo
com o seu credo delles: "Queres tu, ó Mestre do Amôr e da
Justiça, que façamos descer fogo do Céo para os consumir?"
E Jesus, o Mestre do Amôr, reprehendeu os seus discipulos
com estas palavras que devem eternizar-se na memoria de
todos os homens: "Não conheceis o espirito da vossa vocação.
O Filho do homem veiu para salvar e não para perder as al-
mas". Veiu para ser o Salvador tambem dos pobres samari-
tanos... (S. Luc., 9:51-56).
Estavam errados os apostolos, Desejavam a lógica da vio-
lencia e do exterminio; Jesus ensinava a logica do sentimento
que fructifica em actos e exemplos de amôr e de tolerancia.
E o Mestre juntava á autoridade da sua palavra a força fe-
cundante do seu exemplo. E' que o exemplo é o mestre dos
mestres, porque é um livro sem palavras. Um surdo-mudo,
por seus sentimentos e por suas virtudes, será mais eloquente e
— 127 —
mais digno de respeito e acatamento do que um pregador e
moralista que alimente um "credo" que pede "fogo do Céo"
sobre aquelles que têm a “infelicidade" de professar um credo
differente do seu.
Tiago e João, apostolos, creram acertada a proposta re-
pellida pelo Mestre...
O procedimento de Jesus para com esses dois evangeliza-
dores, foi um vehemente protesto contra a pretensão de que-
rerem impor o “credo" que não aprenderam nem podiam ter
aprendido. Parece mesmo que Jesus previu a creação de u'a
fé “official", que seria imposta em seu nome, como a “unica"
que devesse prevalecer sobre a face da terra. Para dissipar
essa idéa innovadora, citou o Mestre o exemplo do Bom Sa-
maritano e dos demais “excommungados" pelos "santos”
ou "eleitos", afim de que se convencessem os “filhos do reino"
(os pretensiosos judeus) de que a salvação nunca deveria ser
considerada como um "privilegio” concedido pelo Pae a "um
povo", muito menos a "um credo".
O EVANGELHO DO BOM SAMARITANO E' PLENA-
MENTE APPROVADO PELO DIVINO MESTRE —
UMA ALMA NAS SOLIDÕES DA DUVIDA — QUE
LIÇÕES!
E‟ mais eloquente, é mais profunda, é mais instructiva
do que á primeira vista nos parece, aquella parabola regis-
trada pelo evangelista S. Lucas, em seu capitulo dez. Sob o
véo da allegoria, dá-nos Jesus uma encantadora lição de tole-
rancia e de sympathia pelo sentimento religioso do nosso pro-
ximo, que não é culpado por não nos poder ser agradavel com
o seu modo de crêr. Do mesmo modo que nas passagens do
Evangelho já citadas, nesta de S. Lucas verá o leitor que Je-
sus jamais ensinou essa “fé" dogmatizada pelos homens.
Vae vêr o paciente leitor que o Mestre ignorava essa fé pré-
gada pela egreja reformada como sendo a mesma que Elle
— 128 —
prégou. Os meios que o Mestre poz ao alcance do homem para se
salvar da corrupção deste mundo e alcançar a vida da Bem-
aventurança, em nada se parecem com aquelles exigidos pela egreja,
sob pena de excommunhão e expulsão do seu seio... "em nome de
Jesus".
Vejamos o bello quadro pintado por Jesus, com as côres vivas
do seu amôr e da sua misericordia.
"E eis que se levantou um doutor da lei, e lhe disse, para o
experimentar: "Mestre, que hei de eu fazer para entrar na posse da
vida eterna?" — Disse-lhe então Jesus: 'Que é o que está escripto na
lei'? como lês tu? — Elle, respondendo, disse: "Amarás ao Senhor teu
Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas
forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu proximo como a ti
mesmo." E Jesus lhe disse: "Respondeste bem; faze isso, e viverás".
Mas elle, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: "E quem
é o meu proximo”? E Jesus, proseguindo no mesmo discurso, disse:
Um homem descia de Jerusalem a Jerico, e cahiu nas mãos dos
ladrões que logo o despojaram do que levava; e depois de o terem
maltratado com muitas feridas se retiraram, deixando-o meio morto.
Aconteceu pois que passava pelo mesmo caminho um sacerdote; e
quando o viu, passou de largo. E assim mesmo um levita, chegando
perto daquelle lugar, e vendo-o, passou tambem de largo. Mas um
Samaritano, que ia seu caminho, chegou perto delle, e quando o viu,
se moveu á compaixão; e chegando-se, lhe atou as feridas, lançando
nellas azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, o levou a
uma estalagem, e teve cuidado delle. E ao outro dia tirou dois
denarios, e deu-os ao estalajadeiro, e lhe disse: Tem- me cuidado
delle; e quanto gastares de mais, eu t'o satisfarei quando voltar. —
Qual destes tres te parece que foi o proximo daquelle que cahiu nas
mãos dos ladrões? — Respondeu logo o doutor: Aquelle que usou com
o tal de misericordia. Então lhe disse Jesus: "Pois vae, e faze tu o
mesmo".
Bastam-nos duas das lições que essa encantadora pa-
rabola nos suggere. 1.ª lição: Tratava-se de um "doutor”
— 129 —
em theologia e mestre religioso entre o povo. Era um crente
em seu credo (não é pleonasmo nem sinapismo, pois sabemos
que ha credos descridos...) Versado em religião, ignorava,
entretanto, o essencial em tal assumpto. Sentindo um vazio
qualquer lá nos refólhos de sua alma, perguntou a Jesus:
"Mestre, que hei de eu fazer para entrar na posse da vida eter-
na?” - Religioso e ensinador de religião, sentia-se sacudido
pela dúvida, ao ponto de interpellar a Jesus sobre a posse
da vida futura. Essa parabola apresentou-a Jesus para frizar
bem esta verdade: fazer a vontade do Pae não significa me-
morizar credos ou textos da Lei, mas applicar todas as forças
moraes, intellectuaes e affectivas na producção do bem,
para si e para os seus semelhantes, sem indagar da crença ou da na-
cionalidade de seus semelhantes. O Divino Mestre, didacta
dos didactas, appellava sempre para o raciocínio, convidva
á meditação, procurava despertar as forças vivas do coração,
capazes de ferir a emotividade de seus ouvintes, para que
alliassem á idéa o sentimento da verdade e do amôr.
Ao doutor respondeu Jesus com uma pergunta: "Que é
o que está escripto na lei? como lês tu?" - O doutor inter-
pellante já conhecia a lei do amôr e da fraternidade, conforme
se deprehende da resposta que deu a Jesus, repetindo de cór,
palavra por palavra, o conteudo da lei. A' vista dessa próva,
de que conhecia os textos da lei, disse-lhe Jesus: "Respondeste
bem; faze usso e viverás", isto é, e desse modo alcançarás a vi-
da eterna.
Convidamos o leitor a considerar attentamente essa res-
posta, dada pelo Mestre áquelle homem que conhecia bem a
lei, cuja observancia, diz Jesus, garante a posse da vida eterna.
Notemos bem este ponto importantissimo: Jesus, o Mês-
tre, indicou ao doutor da lei o caminho da Casa do Pae, sem
usar desse complicado systema formalizado pela igreja. Em
apenas "seis palavras”, apontou Jesus ao doutor judeu,
o modo e a fórma de alcançar a vida da Bem aventurança : "Res-
pondeste bem; faze isso e viverás". Não falou Jesus da "pre-
— 130 —
destinação eterna", da "salvação pela graça mediante a fé",
da "justificação só pela fé”, da "profissão de fé nesta ou na-
quella egreja”; não sondou as “opiniões theologicas” do in-
terpellante, não lhe perguntou qual a idéa que fazia d'Elle
como Salvador dos homens. Si o processo indicado por Jesus,
para a salvação do homem, fôsse o exigido pela egreja, outras
teriam sido as palavras do Mestre, não apenas "faze isso e
viverás" mas... outras palavras muito differentes...
Antes de encerrarmos esta 1.ª lição que a parabola do
Bom Samaritano nos suggere, preciso se faz que outro elemen-
to venha corroborar o ensino dado por Jesus ao doutor da lei.
Esse outro elemento é o proprio Christo que nos vae fornecer.
Vejamol-o.
“E eis que, chegando-se a Elle um, lhe disse: Bom Mes-
tre, que boas obras devo fazer, para alcançar a vida eterna?
Jesus lhe respondeu: Porque me chamas tu de bom? Bom
só Deus o é. Porém, se tu queres entrar na vida, guarda os
mandamentos. (Si a salvação fôsse só pela fé, Jesus teria
corrigido immediatamente a pergunta do interrogante). Elle,
o moço, lhe perguntou: Quaes! — E Jesus lhe disse: Não
commetterás homicidio; não adulterarás; não commetterás
furto; não dirás falso testemunho; honra a teu pae e a tua
mãe, e amarás a teu proximo como a ti mesmo." O mancebo
lhe disse: Tenho guardado tudo isso desde a minha mocida-
de; que é o que falta ainda? Jesus lhe respondeu: Se queres
ser perfeito, vae, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás
um thesouro no céo; depois vem e segue-me. O mancebo,
porem, como ouviu esta palavra, retirou-se triste, porque
tinha muitos bens." (S. Matheus, XIX).
Brilham na face desse mancebo rico duas qualidades bas-
tante apreciadas entre os homens: a religiosidade e a franque-
za. Era religioso e por isso mesmo manifestava interesse pela re-
dempção de sua alma, conforme se deprehende da franqueza
com que confessou, de publico, a fragilidade de suas convic-
ções: “Que boas obras devo fazer?"
— 131 —
Esta pergunta faz proeminar o juizo segundo o qual não
se sentia no caminho da vida eterna. Dil-o a propria indole
da pergunta. O Divino Mestre apreciou a lealdade do inter-
pellante, com quem travou amistosa palestra, ao mesmo tem-
po que procurava despertar-lhe a boa vontade: "Se queres
ser perfeito, se queres entrar na vida eterna, guarda os manda-
mentos.”
O crente não estava tranquillo. Pelo exame introspecti-
vo que fez, ouviu lá no seu intimo a voz da consciencia — "o
cochicho de Deus", na phrase de uma menina — a segredar-
lhe: "Ainda não encontraste a fonte onde possas acalmar a
tua sêde de justiça; entretanto, está mais proxima do que pen-
sas: tuas riquezas, bem applicadas, poderão auxiliar-te no
caminho da verdadeira vida. Actualmente allas são uma
"prova" perigosa nas tuas mãos, uma prova que é uma pedra
no teu caminho".
A' resposta do Divino Mestre, "guarda os mandamentos"
oppõe o endinheirado crente uma objecção, com que preten-
de justificar-se: "Esses mandamentos que me apontas, ó
bom Mestre, tenho-os observado desde a minha mocidade"
E' que pertencia a uma familia religiosa, consoante se deduz
dessa confissão que póde ser entendida nestes termos: “Es-
ses mandamentos que me recommendas, conheço-os e obser-
vo desde que os primeiros clarões da intelligencia me illu-
minaram o entendimento; meus paes não descuraram da
minha educação religiosa, segundo as leis e ordenanças de
Moysés; sou religioso, porque nasci e fui educado num lar
religioso." - A explosão desta franqueza fez vibrar mais
ainda a fibra affectiva do Mestre, que sentiu profunda sym-
pathia por aquelle homem, conforme nol-o refere o segundo
evangelista (cap. X:21).
Achava-se Jesus deante de um caso singular: o de um
homem religioso que, julgando insufficiente e esteril a devo-
cionalidade em que vivia, sem “boas obras”, pede instruc-
— 132 —
ções ao "Bom Mestre", ao mesmo tempo que confessa haver
praticado tudo quanto é necessario para merecer a redem-
pção!...
Se era verdade que "tudo isso tinha guardado desde a mo-
cidade", porque sua alma continuava em inquietação ? Que
é o que lhe fazia sentir que ainda lhe faltavam boas obras?...
O Divino Mestre julgava e julga o que é justo, sem se deixar
impressionar pelas apparencias (S. João, VII: 24). Ante a res-
posta do homem a quem votára sympathia, Jesus podia ter
respondido immediatamente: "Não é verdade que tens obser-
vado e praticado tudo isso". Porém, consistindo a sua missão
de Mestre, em levar os homens a descobrir por si mesmos a
verdade; em appellar para a boa vontade do homem, no exer-
cicio pleno do seu livre arbitrio; em fazer com que os homens
procurem enxergar, para removel-a, a pedra de tropeço que
lhes embaraça os passos no caminho das virtudes, Elle, em
tom suave, d oce, calmo, paciente, sereno e affectuoso, respon-
de ao interlocutor : "Pois bem, meu amigo, uma vez que con-
fessas amar a teu proximo como a ti mesmo, se tens a suprema
ventura de fazer por teu semelhante tudo quanto desejarias
que elle fizesse por ti, invertidos os papeis, então convido-te
a considerar o seguinte, baseado nas tuas proprias palavras :
quer esteja em tuas mãos a riqueza, quer esteja nas de teu
proximo, é a mesma coisa; transfere, pois, para os pobres,
que são o teu proximo, toda a riqueza que possues. Feito isto,
ainda não estarás perfeito, nem terás agora mesmo a posse
da bemaventurança eterna, mas... vem e segue-me".
Jesus conhece os pensamentos e pesa as intenções. Devia
ter sentido profunda tristeza deante do quadro exposto a
seus olhos: um homem religioso e franco, confessando fome de
verdades salvadoras, prefere as riquezas transitorias e in-
substanciaes deste mundo, aos thesouros permanentes que di-
latam os horizontes da fé, que clareiam as visões da esperança,
que avivam as doçuras da caridade!
— 133 —
O homem rico, com suas convicções escudadas na justiça
da Lei (dispensação mosaica,) desprezára o amôr da Graça
(dispensação messianica). Estava, pois em terreno falso. A
piedade, tal como a exemplificavam os "doutores da Lei",
assegurava uma rectidão adquirida por privilegio de casta,
de linhagem, de eleição, como nol-a ensinam os credos dogmati-
cos, com a repulsiva, por irracional, theoria ou "doutrina"
da predestinação divina.
A observancia das ordenanças do Pentateuco, com ce-
rimonialidade ritualizada pelo sacerdotalismo levitico, era suf-
ficiente para tornar "perfeito" o homem, no entender dessa
casta. Era o culto das exterioridades. Nascido, criado e educa-
do nessa escola, o homem rico do episodio desconhecia o "ama-
rás a teu proximo como a ti mesmo". (Lev. XIX:18). E Jesus
encontrou esse preceito, não só mergulhado na sombra da pie-
dade externa, como principalmente suffocado pelo denso for-
malismo do culto a Jehovah, formalismo apostrophado pelo
flammejante: "Ai de vós, escribas e phariseus hypocritas, que
pagaes o dizimo da hortelã, do endro e do cominho (de coisas
sem importancia por insignificantes) e deixaes as coisas mais
importantes da lei: a justiça, a misericordia e a fé; que coaes
um mosquito e engulis um camelo!"
Ignorava o crente apatacado que “saber" a lei não é
conhecer apenas as suas palavras, mas a sua força e poder
segundo nos ensina a hermeneutica do Divino Mestre. Plas-
mado na face negativa de suas convicções, já vacillantes, des-
prezava a face positiva, que é a effectivação em “actos” da-
quelle preceito fundamental dado pelo Mestre: “Fazei aos
homens o que quereis que elles vos fazam, porque esta é a lei
e os prophetas". Rastejava-se na poeirenta estrada do phariseu
que, em plena oração dirigida ao throno do Amor, não hesi-
tava em banhar a sua préce com o veneno da calumnia, quali-
ficando de ladrões, injustos e adulteros os seus semelhantes,
de quem, talvez, jamais houvera recebido uma offensa sequer!
(Ainda hoje ha "religiosos" que qualificam de incredulos, mun-
— 134 —
danos, etc., aos que pensam de modo differente em mate-
ria de religião). E o phariseu tambem sabia as palavras da
lei...
O crente rico estava, pois, sob o imperio do frio litera-
lismo, ignorando qual o espirito que anima o amôr a Deus
sobre todas as coisas e ao proximo como a si mesmo. A' per-
gunta do mancebo rico sobre quaes seriam os mandamentos
cuja observancia tornaria o homem digno da entrada no Reino
(note bem o leitor!), responde Jesus, taxativamente, com es-
tes mandamentos: "Não mates, não furtes, não adultéres,
não mintas, honra a teus paes e amarás a teu proximo como
a ti mesmo. Sim: quem ama ao irmão, ama ao Pae. (I S. João,
4:7). Comprehendamos bem o ensino simples e claro do Mes-
tre, que falou e ensinou com a responsabilidade de Guia das
almas. E o seu ensino, ao citar esses madamentos, nada mais
é que o desdobramento daquelle outro, quando se dirigiu
não a um mancebo endinheirado, mas a TODOS os seus ouvin-
tes: "Fazei aos homens o que quereis que elles vos façam,
porque "esta” obra resume a lei e os prophetas. Ratificou Je-
sus esse ensino com estas palavras de accrescimo: "Amae,
pois, a vossos inimigos; fazei, bem e emprestae, sem dahi es-
perar nada, e tereis muito avultada recompensa e sereis filhos
do Altissimo". "Fazer o bem", "obrar” o bem - eis a chave
que o Mestre põe nas mãos daquelles que desejam, como
aquelle moço endinheirado, abrir a porta do Reino...
Muito diverso é o ensino da egreja, que ainda não se con-
venceu de que "o Christianismo, que é a Caridade, não se re-
duz a discorrer e a propagar textos do Evangelho, mas que exi-
ge, antes de tudo e sobretudo, o sentimento, que é o principio
e a fonte das obras que nos approximam da perfeição e, assim,
de Deus". "Que elles (os homens) "vejam "as vossas boas
obras, e glorifiquem a vosso Pae que está no céo." (Math. V:16)
A 2.ª lição que aprendemos na parabola do Bom Samari-
tano, resume-se nisto: o doutor e expositor religioso conhe-
cia "bem" os textos da lei do Amor dada por Jesus, mas esse
— 135 —
devociomsino doutorai não ia além de um "credo” ou "es-
queleto”, na feliz expressão do nosso irmão Othoniel Motta,
porque estava na cabeça e nos labios, e não no coração, es-
tava na memoria mecanizadora de textos e não no sentimento
modelador de idéas e dynamisador de acções, Dil-o a ignoran-
cia condensada na segunda pegunta desse "crente"; “E quem
é o meu proximo?" Conhecia a lei mas não conhcia o seu
proximo...
Nessas duas passagens do Evangelho, referentes ao "dou-
tor da lei" e ao “mancebo rico”, Jesus ensinou tanto quanto
aquellas intelligencias podiam aprender; apresentou verda-
des em dosagem proporcionada á capacidade mental desses
homens “crentes”. Synthetizam as lições do Mestre este en-
sino para todos os povos; “A religião é antes sentimento que
sabedoria. Nenhum homem é condemnado por não saber,
mas sim por deixar de sentir, por que o livro da sabedoria é
um livro geralmente fechado, mas o livro do sentimento é um
livro universalmente aberto. Não é dado a todos possuir os
segredos da scienncia, mas sim os doçuras do sentimento, cujos
thesouros estão á vista de todas criaturas, espalhados no
universo pela mão da misericordiosa providencia. O senti-
mento é tudo e por isso elle está ao alcance de todos. O senti-
mento é o amôr e o amôr é a lei. O amôr cobre a multidão
de peccados, porque é a chamma que purifica e o balsamo
que consola”.
*
* *
Christianismo não quer dizer credo, mas realizações nos
dominios do sentimento. — Fala o eminente pastor presbyteriano
e literato brasileiro, Othoniel Motta.
Ahi tem o leitor o ensino claro clarissimo, do evangelho
sobre o modo de se tornarem discipulos de Jesus aquelle que
sinceramente desejem seguil-o. O “doutor da lei” e o “mance-
— 136 —
bo rico" provocaram da parte do meigo Nazareno aquellas
lições de uma belleza encantadora e tanto mais fulgente quan-
to mais nos detivermos na meditação das passagens do
Evangelho referentes ao problema da posse da vida futura.
Matheus e Lucas, registradores dos episodios verificados com
aquelles dois personagens, nada nos dizem sobre o "processo"
de salvação adoptado pelo christianismo da Reforma do sec.
XVI. Muito pelo contrario: o "plano" de salvação que esses
evangelistas aprenderam - o primeiro, directamente, porque
era apostolo; o segundo, pela influencia de Paulo - differe
totalmente do "plano" pregado pela egreja reformada. O de
que não duvidamos um instante sequer, é que esses dois evan-
gelistas escreveram unicamente o que Jesus estabeleceu como
ensino para todos os homens e para todos os tempos. Fazem-
nos sciente esses illustres escriptores sagrados, de que Jesus
reprovou "todos os credos," porque os "seus" crentes se julga-
vam quasi santos, visto como, pensavam que a rotulagem da
crença imposta por "sua" egreja era uma chave que abria
a porta do Céo... Combateu Jesus a "credolatria" dos phari-
seus e não combateu a do Bom Samaritano, porque este não
exteriorizava a sua crença, mas o seu sentimento; não falava
senta, no colloquio de Jesus com a Samaritana, perguntamos
em "credo" mas exercitava o bem, praticava o amor, amava
o seu proximo!
Segundo Michelet, “um credo se torna uma barreira
intransponivel, si formulado pela infallibilidade. Tem vida
relativamente curta e não é commumente acceito senão por
uma categoria de individuos votados á morte, emquanto
que a humanidade avança e o perde de vista."
Tem razão o grande pensador francez. O “credo" tem a
pretensão de encerrar em seu circulo toda verdade. Dado o
caracter permanente e inalteravel que os homens imprimem
ao seu “credo", é bem de vêr ou de prevêr as consequencias a
que chegará essa infallibilidade...
— 137 —
Sábia advertencia, a de LORD Headley, ex-presbyteriano e
hoje Chefe da Sociedade Mahometana Ingleza, sobre o credo
que antes professára. Falando da idéa que o "credo" faz de
um Deus IRADO, prevê o esvaziamento da egreja, não devido á
irreligião, mas ao facto de estar a intelligencia mais desenvol-
vida em nossos dias, e esse desenvolvimento não mais poderá
tolerar certas idéas que fizeram sua epocha, quando os ho-
mens estavam mais atrazados.
Com Michelet e com o LORD mahometano pensam os
homens emancipados de preconceitos sectarios. O "credo" é
um desfibrador de crenças, quando apresentado com esse
caracter de "infallivel”.
Seguindo a mesma direcção do pensamento de Michelet,
tambem o pastor presbyteriano, revmo. Othoniel Motta,
encara o credo como esqueleto, si tomado como substituto
do Evangelho. Vamos transcrever as sensatas e impressionan-
tes ponderações que o seu magistral trabalho encerra.
Para essa peça brilhante, pedimos a preciosa attenção
do leitor, na certeza de que as palavras do illustrado theologo
serão apreciadas com a merecida sympathia: — "Temos
tido até aqui um christianismo por demais intellectual, frio,
dogmatico. Ser orthodoxo, isto é, ser fiel a um credo em todas
as suas minucias, é excommungar aquelles que porventura
delle se apartem numa virgula que seja, eis o que tem sido
para muitos o christianismo. Sem duvida, devemos ter os
nossos credos, e bem definidos, nestes dias mais do que nun-
ca; mas o credo, só, é uma fatalidade que foi a ruina dos
phariseus. O credo é um esqueleto: transformae uma igreja
em mero conjuncto de esqueletos e Deus suscitará logo um
Ezequiel para enchel-os de carne e de vida." "Mais impor-
tante em religião do que o credo, que é intellecto, está o sen-
timento, que é coração. "Ai de vós escribas e phariseus hypo-
critas, que dizimaes a hortelã, o endro e o cominho, mas
desprezaes o mais importante da Lei: a justiça, a misericor-
dia e a fé." "Justiça, misericordia e fé são coisas que pódem
— 138 —
existir sem credo de especie alguma: são seiva do coração e
não fórmulas da cabeça. O homem póde salvar-se sem CREDO
como o ladrão na cruz; mas sem a vIDA, não. O pobre ladrão,
com o seu não-credo, talvez não fôsse acceito á profissão de
fé em nossas igrejas; mas entrou no Céo...
E continúa: "O christianismo intellectual é aspero,
amargamente polemico, intolerante, bellicoso: destróe muito e
constróe pouco, ou mesmo nada. Como os phariseus, percorre
a terra e o mar para fazer um proselyto, não do judaismo
largo dos prophetas, mas do pharisaismo pétreo das tradi-
ções acanhadas; e depois de fazer esse proselyto, torna-o
duas vezes mais digno do inferno do que elle mesmo: mais
estreito, mais fanatico, mais hypocrita. Converte-o ao credo,
não á vida: dá-lhe a carcassa, e ás vezes deformada, da re-
ligião, nada mais. Converte-o ao PROTESTANTISMO, sem que,
por vezes, o leve a se converter ao CHRISTIANISMO. Já é tempo
de entrarmos em novidade de espirito; já é tempo de pen-
sarmos mais em construir e adornar a nossa casa do que em
derribar a do visinho. Já é tempo de apresentarmos ao mundo
um christianismo sereno, digno, tolerante, constructivo, cheio
de affirmações gloriosas da nossa fé, antes que das negações,
que são o seu reverso. Já é tempo de olharmos a tela esplen-
dente da fé pelo direito, não pelo avêsso." ("SEMANA EVANGE-
LICO", de 13-IV-1927)
"RELIGIÃO E FE"
FALAM OS GRANDES PASTORES DR. S. PARKES
CADMAN E HARRY FOSDICK — FALA A GRANDE
IMPRENSA SOBRE FACTOS E NÃO PALAVRAS O
QUE NOS ENSINAM MARDEN E CHARLES WAGNER
SOBRE O PODER DA FE'.
Deante da empolgante lição que o Evangelho nos apre-
senta, no colloquio de Jesus com a Samaritana, perguntamos
nós: teem os homens modificado a sua conducta, no tocante
á tolerancia religiosa? Os credos deixaram de ser barreiras
para que os homens se entendam como filhos do mesmo Pae?
— 139 —
Infelizmente o progresso que a Egreja tem visto na
propagação dos textos do Evangelho não significa mais do
que vaporosa esperança de avanço na róta da espiritualidade.
O separativismo continua a sua obra. Os orientadores das
diversas correntes do pensamento religioso, atendo-se cada
vez mais ao legalismo literalista dos antigos censores do
Christo, ainda não perceberam que sob seus pés trepida o
terreno, que é todo arenoso. Convencidos de que o ideal do
fraternismo será alcançado e objectivado pelos privilegiados
da fé, não viram ainda o que todo o mundo está vendo, isto é,
que a fé deserta dos campos, da cidade e dos lares, porque
as necessidades espirituaes, a fome e a sêde de justiça, não
se satisfazem com o alimento inadequado offerecido pelos
credos, supplantadores da doutrina do Evangelho.
Sensatas ponderações que respigamos no "Estandarte",
n.° 41, de 1927, aliás tambem colhidas em seára alheia: "Se
todos os crentes, nas coisas individuaes e nas coisas da Egre-
ja, descobrissem como pódem estar errados mesmo quando
presumem estar absolutamente certos, então elles orariam a
Deus constantemente pedindo sabedoria e muitas vezes mu-
dariam de opinião para o bem da causa. Infelizmente certos
crentes agarram-se ás suas opiniões de unhas e dentes, de
tal modo que a luz da verdade não lhes póde valer, pois elles
recusam a luz na supposição de que estão ás claras, quando
se encontram em trevas. Dahi nascem as separações, as here-
sias, as contendas. (Este grypho é nosso).
E' a tyrannia do credo humano, substituidor do Evange-
lho (credo, palavra latina que significa "eu creio").
Apreciemos agora uma lição de mestre, portadora de
verdades impressionantes, que queimarão a consciencia dos
que, mergulhados em seu credo, não querem ter olhos de vêr.
São verdades incandescentes, annunciadas por uma conscien-
cia dominada pelo espirito christão, pelo espirito de paz e
de concordia. Quem as proferiu trabalha no campo sagrado,
com as responsabilidades de seareiro do Mestre; tão fortes e
— 140 —
tão dignas, tão bellas e tão opportunas, que os maiores orgão
da grande imprensa se encarregaram de divulgal-as, para
que cheguem aos ouvidos que queiram supportal-as. Trans-
crevemol-as do grande orgão paulista e o de maior divulga-
ção em todo o nosso paiz, "O Estado de S. Paulo", de 21 de
Dezembro de 1927. Tomando na devida consideração essas
verdades, a illustrada Redacção publicou-as em columna de
destaque, isto é na parte editorial, nas "Notas e Informações”:
"O dr. S. Parkes Cadman, conceituado pastor protes-
tante, falando diante da federação das egrejas de Philadel-
phia, propoz que estas egrejas fizessem uma tregua de 50
annos em torno de todas as discussões theologicas. Acha o
dr. Cadman que preciosas energias estão sendo perdidas e
desperdiçadas nas calorosas disputas sobre pontos de theoio-
gia que separam as diversas seitas da egreja reformada. A
seu vêr, já se gastou excesso de tempo, de força e de tinta
entre modernistas e tradicionalistas, e tudo isto sem nenhum
proveito real para o christianismo, antes com grave prejuizo
da propagação dos sentimentos religiosos e da obra social e
pratica que é dever da egreja realisar.
"A accusação mais grave do dr. Cadman é de que todas
essas controversias representam "um desperdicio dos recursos
que Deus nos deu, levado a effeito apenas para satisfazer vai-
dades sedarias".
"Apontou ainda o dr. Cadman que, como resultado desta
situação, o povo está substituindo a idéa da egreja pela idéa
do Estado, como organisação fundamental da vida. E' bem
de vêr que essas affirmativas produziram uma profunda sen-
sação e todos os jornaes norte-americanos se alargaram em
commentarios sobre as mesmas. A opinião geral está syn-
thetisada na seguinte nota da "Union Star”: "A cooperação
dá sempre melhores resultados do que o antagonismo. Os homens
não necessitam acceitar o credo do seu proximo para auxilial-o
na execução de boas obras. As necessidades da humanidade são
— 141 —
tão grandes que não ha tempo e esforço para desperdiçar em
controversias futels."
"Entretanto, todos reconhecem que é pouco provavel
que essas controversias sejam abandonadas pelas seitas,
muitas das quaes só nas mesmas se comprazem." (Do “O
Estado", n.° citado, 3.ª pag.).
Sob o influxo do Espirito de Verdade, o piedoso pastor
norte americano appélla para a boa vontade das egrejas em
pról de um christianismo pratico e não theorico: de uma
crença viva e não de um credo aprisionador da fé; de uma
vida imitadora da vida dos Bons Samaritanos e não de uma
vida perpetuadora do pharisaismo perseguidor da Vida.
Todos reconhecem, entretanto, diz aquelle jornal norte-
americano citado na noticia, que as seitas não abandonarão
as controversias, porque muitas delias não pódem viver sem
disputas. Riscam, pois, do Evangelho tudo quanto é ensino
de Jesus, para introduzir no espirito dos "crentes" "doutrinas
e mandamentos dos homens”, esse fermento que dissolveu a
espiritualidade da egreja de Laodicéa”. Não prevalecem as
insistentes advertencias do apostolo Paulo e de outros epis-
tolographos, registradas no Novo Testamento, acerca dos
perigos a que estão sujeitos os crentes, quando chumbados
ao credo "seu” e em contradicção com o Evangelho de Jesus.
"São signaes dos tempos”. O tradicionalismo foi a ruina
dos judeus, e será a dos néo-judaizantes.
Falem por sua vez outros theologos, tambem norte-ame-
ricanos, que, impulsionados pelo Espirito de Verdade, não
pódem fugir ao sôpro das verdades que os homens não pude-
ram supportar naquella epocha, mas que o espirito dos nossos
tempos supportará, porque as vozes do Além nos annunciam
que "são chegados os tempos” em que o homem, auxiliado
pelas "virtudes do Céo”, abandonará a letra que mata e bus-
cará o espirito que vivifica, na phrase do apostolo Paulo,
de quem é tambem esta outra: "Mas agora desligados es-
— 142 —
tamos da Lei, (de Moyses) por termos morrido para aquillo
em que estavamos presos, de sorte que sirvamos em novidade
de espirito e não na velhice da letra." (Epist. aos Romanos,
7:6)
Vamos dar a palavra ao grande pregador contemporaneo,
revmo. Harry E. Fosdick, autor de uma obra recente ainda
não vertida para o nosso idioma.
Diz elle: "A religião no tempo de Christo, apresentada
por Elle aos discipulos, demandava esforço, coragem e luta
continuada. Ser christão era emprehender uma aventura que
exigia dedicação e valor. Hoje, é acceitar passivamente um
systema de doutrina já elaborado. A religião passou da vi-
talidade á estagnação, e tudo isso devido á falsa significação
que tomou a palavra "fé". Essa virtude deixou de ser um
poder que transporta montanhas para ser a acceitação de
credos e doutrinas formuladas. A vida dos apostolos e dos
primeiros christãos é um bellissimo exemplo de fé. Mas não
era fé em determinados credos, porque os credos não tinham
sido ainda formulados; não era fé no Novo Testamento,
que ainda não existia: não era fé tampouco na egreja, porque
esta ainda não se achava organizada. Era a relação intima e
consciente do crente com Christo e com o que Elle prégou e exem-
plificou na terra. Não era formalista, mas vital e accionadora."
"A suprema heresia introduzida no Christianismo é o
acreditar que já alcançámos o ponto maximo e que podemos
estabelecer um systema de crêr completo e perfeito. Em tudo,
inclusive em religião, a vida humana é creativa; e quando o
Christianismo se esquece disso e torna-se preservativo em
vez de creativo, fechando-se em suppostas finalidades em
vez de abrir ao espirito novos horizontes, elle não só falseia a
sua origem historica em Christo, que fez justamente o contra-
rio, como por necessidade psychologica se submerge na de-
cadencia e na estagnação." ("Adventurous Religion and Other
Essays")
— 143 —
Medite o leitor sobre o que diz o notavel theologo e pas-
tor protestante, acerca da idéa que devemos fazer do Chris-
tianismo de Christo comparado com o Christianismo modifi-
cado pelo credo da orthodoxia; attente bem para a significa-
ção da "fé” salvadora, em face do ensino claro e simples do
Mestre; percorra mentalmente, medindo-o palmo a palmo, o
caminho onde vemos a divina figura de Jesus, a ensinar a
tolerancia aos judeus e samaritanos; lembre-se daquellas
perguntas feitas pelos "ensinadores da Lei" e das respostas
dadas pelo sublime Pregador do Evangelho, naquellas para-
bolas de encantadora belleza; compare com a palavra e com o
exemplo do Mestre, a "idéa" que os proprios apostolos faziam
da Divindade, em cujas mãos suppunham guardado o “fogo
do Céo”, á sua disposição delles, para cahir sobre os seus
semelhantes, quando não tivessem as mesmas idéas e opiniões
religiosas; colloque, frente á frente, o zelo dos orthodoxos
phariseus pela observancia do seu exagerado legalismo, e o
zelo de Jesus pela instrucção dos homens, mediante o me-
thodo da persuasão e do exemplo, dentro do sentimento de
tolerancia. Verá o leitor que Jesus encontrou aquella “fé”
que transporta montanhas, não entre os doutores da Lei,
não entre os frequentadores do templo de Jerusalem, não
entre os decoradores de textos, mas entre os homens tidos e
havidos como réprobos e indignos, amaldiçoados pelos “pri-
vilegiados da fé" e declarados hereticos, porque... não es-
tavam predestinados para o Reino; verá que os Samaritanos,
que não possuiam templos nem dizimos, que não conheciam a
Lei nem as cerimonias lithurgicas, que ignoravam a justifi-
cação pela fé mas possuiam corações que palpitavam pelo
amôr de seus semelhantes, esses, sim, despertaram a mais
viva admiração do Mestre, ao ponto de serem considerados
como exemplo vivo daquella fé que opéra prodigios. “A tua
fé te curou!" E este era um excommungado...
Tal fé, que se revestia de encantos aos olhos do Mestre, é
aquella a que se refere esse grande e piedoso pastor contem-
poraneo, revmo. Harry E. Fosdick: fé, não em um livro,
— 144 —
não em uma agremiação de homens, não em um credo decre-
tado completo e infallivel, não em um systema de fórmulas e
disciplinas ecclesiasticas, não em um Salvador que salva
dez e perde um milhão, mas fé no amor e no poder de Deus,
na misericordia e na justiça do Pae de TODOS os homens,
attributos que constituem os pólos em torno de cujo eixo
gira a vida, disseminada na terra e nos bilhões de bilhões
de mundos que povoam o Infinito! Fé, sim, na infinitude
desse amôr e desse poder, fontes inexgottaveis que borbulham
no seio do Pae e do Filho. "Nem todo o que me diz: Senhor,
Senhor", entrará no Reino do Céo, mas aquelle que faz a
vontade de meu Pae.” — Eis ahi a distincção feita pelo Mes-
tre, entre os theorizadores Judeus e os praticantes Samari-
tanos, entre os orthodoxos e os hereticos. A vontade do Pae está expressa naquellas memoraveis palavras do Mestre, di-
rigidas ao doutor da lei: "Pois vae, e faze tu o mesmo que
fez aquelle Samaritano; segue tu os passos desse excommun-
gado pelos judeus; põe em pratica o Evangelho desse hereti-
co, porque está de accôrdo com o Evangelho que eu prégo
aos homens."
O sábio educador e psychologo, Orison Swett Marden,
de cuja fecundidade já possuimos em o nosso idioma algumas
dezenas de obras, cada qual mais bella, mais seductora, pela
uncção de piedade que possuem, esse grande semeador da
leitura que instrue e sanifica, sabe comprehender, como o
Bom Samaritano da parabola, o verdadeiro significado do
amôr que deve irmanar todos os homens. Tratando do pre-
ceito "Amae-vos uns aos outros", ensinado pelo Christo, eis
como nos fala o eminente educador:
“A salvação do mundo forma-se na perfeita pratica da-
quelle mandamento. Entre as almas nobres que tentaram
pratical-o, destaca-se no primeiro plano o conde Leão Tolstoi.
Numa das suas interessantes narrativas mostra-nos Tolstoi
como é que cada um de nós, seja qual fôr a sua situação e a
sua pobreza, póde conseguir praticar aquelle mandamento,
— 145 —
tratando todas as craturas humanas como membros dilectos
da sua propria familia, á semelhança do Divino Mestre.
"Nessa narrativa se conta que um camponez muito
piedoso orava durante annos a Christo para que, uma vez
ao menos, lhe visitasse a humilde vivenda. Certa noite teve
uma visão. Appareceu-lhe o Mestre e disse-lhe que no dia
seguinte viria á casa delle.
"Cheio de jubilo, acordou o camponez. A visão pareceu-
lhe tão verdadeira que se levantou, tratando logo de preparar
a casa para receber o celeste hospede. Uma terrivel chuva
de pedras e neve rugiu durante o dia. Emquanto elle tratava
das coisas da casa, amontuando acha sobre acha na sua la-
reira e preparando o caldo de couves — o alimento quoti-
diano do camponez russo — ia o homem olhando ansiosa-
mente para o temporal que se desencadeava cá fóra. De su-
bito, viu um pobre bufarinheiro (vendedor ambulante de
bugigangas), semi-gelado, com uma trouxa ás costas, a din-
gir-se para a sua cabana, mas sem poder avançar, fustigado
pela neve e pela chuva que se despenhavam sobre elle. O
camponez saiu da cabana e foi buscar o desgraçado viajante.
Enxugou-lhe as roupas, aqueceu-o, deu-lhe do seu caldo e
não o despediu senão depois de o ter reconfortado.
"Pouco depois, viu uma pobre velha a tentar com diffi-
culdade sair do meio da neve que a cegava. Tambem a foi
buscar, aqueceu-a, alimentou-a, embrulhou-a numa capa delle
e despediu-a revigorada e animada. Foi-se passando o dia.
Anoitecia, e nem signaes do Mestre. Sem grandes esperanças,
o homem assomou á porta da cabana, e avistou uma crianci-
nha que não podia por fórma alguma seguir o seu caminho.
Correu para a criança, semi-gelada, tomou-a nos braços,
levou-a para casa, aquentou-a, deu-lhe de comer e depressa o
viajantezito adormeceu ao pé do lume.
"Cruelmente decepcionado por não ter visto surgir o
Mestre, o camponez quedou-se sentado, a olhar para o lume
— 146 —
e naquella contemplação adormeceu. De subito, o aposento
lluminou-se todo com uma luz que não jorrava da lareira, e
viu então o Mestre, de tunica de neve, a fital-o sorrindo.
"Ah! Mestre, esperei-te todo o dia, e tu não vieste"! O Mes-
tre respondeu: "Visitei trez vezes hoje a tua casa. O pobre
bufarinheiro que soccorreste, aqueceste e alimentaste, era
eu. A pobre velha, a quem déste a tua capa, era eu. Emfim,
a criancinha que salvaste do vendava], sou eu. Tudo que
fizeste ao mais humilde dos teus irmãos, a mim o fizeste".
“A visão de Christo dissipou-se. O camponez acordou.
Estava sozinho com a criancinha que dormia, sorrindo. Mas
sabia agora que o Mestre visitara o seu lar.” (“Marden —
"A attitude victoriosa")
“E' pintada a Fé, em todas as Escripturas, diz Marden,
como um formidavel poder. Pela fé, Moysés libertou do poder
egypcio os filhos de Israel, conduziu-os no deserto, depois
de lhes ter feito atravessar o Mar Vermelho. Os milagres
de Elias, Isaias, Daniel e de todos os grandes prophetas fo-
ram feitos pela fé. A fé era caracteristica do proprio Christo.
Elle tinha constantemente nos labios palavras assim: —
“Ser-te-á feito segundo a tua fé”. A ella se referia muitas
vezes para indicar o que podemos receber na vida e para
revelar a sua missão de Medico e de Libertador. Quando fazia
uma cura, accentuava a fé do curador e a fé de quem tinha
curado. “A tua fé te curou”. “Basta-te crêr para seres cura-
do". “A tua fé te salvou." Ou, censurando aos discipulos a
falta de fé, que os impedia de curar, dizia: "O' geração per-
versa e incredula, até quando estarei eu comtigo e terei de
te supportar?" — A fé crê, a duvida teme. A fé cria e a
duvida destróe. A fé abre as portas de tudo que se deseja
na vida; a duvida fecha-as. A fé desperta e estimula as nos-
sas forças criadoras. A fé é o laço que, no fôro intimo, une a
criatura ao Creador, é o mensageiro divino enviado para
guiar os homens enceguecidos pela duvida e pelo pcccado.
A nossa fé põe-nos em contacto com o poder infinito. Abre o
— 147 —
caminho de illimitadas possibilidades e de illimitados recur-
sos." "Os homens e mulheres que têm deixado um vestigio
neste mundo, obedeceram implicitamente á sua fé, quando
não viam luz alguma. Conduziu-os o seu guia invisivel, atra-
vés do deserto da duvida e das difficuldades, á terra da pro-
missão. Quando começamos a exercer a nossa fé e a nossa
confiança em nós mesmos, estimulamos e augmentamos a
força das faculdades que nos hão de tornar capazes de fazer
coisas que nos pareciam impossiveis. A fé diz-nos que pode-
mos avançar com segurança, até quando as nossas faculdades
mentaes não avistam luz alguma, nenhum alento. E' um
guia divino que não nos transvia nunca." (Obr. cit.) Fala o
grande Charles Wagner, em "O Amigo":
“Não temas; crê, tão somente.” — "Tua fé te salvou". —
"O justo viverá pela fé." — "Que querem dizer estas vene-
raveis palavras, gastas de tão repetidas e as mais das vezes
incomprehendidas ? Significam isto, que é tão claro quanto
llimitado: “Tem coragem de confiar no poder sobre que repou- sa o Universo.” "E' o grande passo, a grande questão. Con-
fiar-se assim, amplamente, tranquillamente, é um acto de
bravura espiritual. Mas, não é lançando-se pela primeira
vez no espaço sem limites que o passaro percebe que tem
azas? Esse acto de iniciativa e de coragem, esse passo deci-
dido de confiança absoluta é, ao mesmo tempo, o passo mais
racional que uma criatura possa tentar. Nenhuma sabedoria,
nenhum calculo prudente será mais seguro do que confiar
em Deus. Não é avançar demais, nem construir na areia: é
escolher a rocha. A solvencia ultrapassa os limites do nosso
pensamento." E' ainda do mesmo pensador christão o se-
guinte, escripto em outro lugar: "A fé transporta montanhas.
A propria crença é, muitas vezes, uma montanha a ser trans-
portada. Necessario se torna, pois, que a crença se melhore,
se depure incessantemente e se conserve sempre na categoria
de humilde instrumento da fé.”
— 148 —
"A Fé é a Confiança em Deus e não a complacencia de
um espirito prompto a acceitar tudo, nem essa elasticidade
da aptidão para crer, que permitte estendel-a até ao inve-
rosimil e até ao absurdo" (C. WAGNER).
"CHRISTIANISMO INTELLECTUAL" — JESUS O
DESCONHECIA, ASSIM COMO REPROVAVA AS BEL-
LAS OPINIÕES A SEU RESPEITO — O ESPIRITO DE
TOLERANCIA DO MESTRE — FALA A RESPEITO
UM ILLUSTRE PASTOR PROTESTANTE —
Já em seu berço, viu a egreja reformada o effeito desse
christianismo "intellectual, aspero, bellicoso, polemico e in-
tolerante”, a que se refere Othoniel Motta: o dr. Miguel
Serveto, medico hespanhol, condemnado á fogueira, unica-
mente porque a sua "razão” não podia acceitar as idéas im-
postas por Calvino. Foi condemnado, só porque entendia, á
luz do evangelho, que Jesus, seu adoravel Mestre, era Filho
do eterno Deus e não o eterno Deus; que só Deus é increado.
E Calvino — victima da “tyrannia do numero” — afas-
tára-se com incrivel velocidade do christianismo, porquanto o
proprio Christo affirmou textualmente: “E todo o que pro-
ferir uma palavra contra o Filho do homem, será perdoado”.
(Luc. 12:10). — O dr. Serveto, porém, igualmente protes-
tante e sincero crente em Jesus e no seu Evangelho, não
proferira nem poderia proferir palavra alguma contra o Filho
do homem, mas ao contrario, repetira a verdade que encon-
trara nas paginas do sagrado volume...
O espirito de tolerancia do Mestre jamais fôra sequer
igualado. Eis um exemplo para confundir as orthodoxias
do nosso seculo: o apostolo Philippe, encontrando-se com
Nathanael, diz-lhe haver conhecido o Christo de Nazareth,
annunciado pelos prophetas. Qual o juizo, a opinião de Na-
thanael, a respeito? Eil-a: "De Nazareth póde sair coisa que
— 149 —
boa seja?" — Segundo essa opinião, Jesus não podia ser
esse Mestre apontado por Philippe, simplesmente porque
era da obscura terra de Nazareth. "Não podia ser boa coisa!"
Philippe replica: "Vem e vê".
Nathanael poz-se a caminho. Eil-o bem proximo do
Annunciado da Escriptura. Antes de abrir a sua bocca para
fazer alguma interrogação, nota que o sublime Pregador
fita-o amorosamente, e em seguida exclama deante dos apos-
tolos: "Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não ha
dólo (S. João, 1:47)
“O' altitude! O' profundidade!" Esse homem, cujo
coração foi assim exaltado pelo Mestre, mereceria, talvez, “o
fogo do Céo", pois que fizera uma idéa tão mesquinha, tão
rasteira do Salvador annunciado pelos oraculos eternos!
Nathanael, que estava certo de que não era possivel haver
"coisa boa" em Nazareth, assusta-se, titubeia, perturba-se,
porque o Nazareno havia lido no seu coração essa pagina
brilhante que se chama: a pureza da lealdade!" Uma alma
assim dominada pelos effluvios desse attributo divino — a
verdade —, jamais seria condemnada ao olvido, ao desprezo,
ainda que proferisse palavras como essas da passagem citada,
porque era uma alma não contaminada pelo fermento dos
phariseus — a hypocrisia! A linguagem de Nathanael foi
aquella recommendada pelo Divino Mestre: “Seja o vosso
vosso falar Sim, sim; não, não!"
Esqueceu-se Calvino desse passo evangelico, assim como
tambem não se lembrou de que a reciproca é igualmente
verdadeira: o Filho do homem não acceitava as bellas opi-
niões que os homens formavam a seu respeito!...
Ouçamos, a proposito, o verbo inspirado do pastor pro-
testante, rev. Harry E. Fosdick: “Que significa para vós a
religião? Já degenerou para vós em mera observancia de
fórmas, ou assistencia a cultos? Notae o que diz Jesus: Que
a verdadeira religião inclue verdadeiros sentimentos íntimos
— 150 —
de fraternidade, e que cousa alguma, feita exteriormente,
póde ter valor." "O discutir theorias acerca de Jesus e o tratar
com Elle pessoalmente, são experiencias tão diversas como
differe de um debate sobre theorias das correntes e dos ventos
maritimos o verdadeiro problema de navegar no oceano.
Sente-se um grande contraste quando, ao passar através
das discussões theologicas acerca de Jesus realizadas em tem-
pos idos, se chega finalmente aos Evangelhos e se encara o
Mestre pessoalmente nos seus actos. Alli é Elle visto impa-
ciente com aquelles que têm a melhor opinião a seu respeito,
mas cujos actos não se coadunam com os altos ideaes que
Elle representa. "Nem todo o que me diz "Senhor, Senhor",
entrará no reino do Céo, mas sim aquelle que faz a vontade
de meu Pae que está no Céo. "(Math. 7:21). Elle não gosta-
va de ouvir palavras de louvor, a não ser que fossem acompa-
nhadas de verdadeira lealdade para com a sua causa. O Mes-
tre não acceitava acclamações que eram apenas o resultado
emprestado do pensar de outras pessoas, mas insistia em
que os homens fossem pessoalmente, e não por procuração,
devotados á sua pessoa e á sua causa. A vida de Jesus, ainda
mais que o seu ensino, mostra que Elle considerava o cara-
cter pessoal como o valor supremo. A egreja muitas vezes
faz do titulo "Salvador" uma mera phrase estereotypada,
fria e official, cheirando a theorias theologicas; mas no
principio a palavra não tinha nada de theologica, era a im-
pressão viva e immediata do viver diario do Mestre. "O Fi-
lho do homem veiu não para ser servido, mas para servir e
dar a sua vida em resgate de muitos. O Filho do homem veiu
buscar e salvar o que se havia perdido." (Marcos, 10:45;
Luc. 19:10). Estas não são notas occasionaes e isoladas, mas
antes o diapasão constante do seu viver. Elle ensinou que
Deus considerava a personalidade como sendo preeminente-
mente de valor supremo. Elle morreu pelos homens porque
entendia que tinham um valor que lh'o merecia.” Diz o rev.
João H. Warner, M. A: — "Para Jesus, Deus foi o Pae
de toda a humanidade.”
— 151 —
O revmo. Fosdick apresenta-nos verdades vivas e op-
portunas. Jesus sabia perdoar e esquecer as idéas erroneas e
falsas que os homens faziam a seu respeito, do mesmo modo
que reprovava as bellas e formosas opiniões daquelles que,
proclamando-se "crentes n'Elle" e zeladores da sua seára,
negavam com os seus actos a sua fé no Filho do homem...
JESUS E A MULHER SAMARITANA — NOTAVEL
PROPHECIA QUE SE REALIZA AOS NOSSOS OLHOS
— ENCANTADORAS LIÇÕES DO DIVINO MESTRE —
PELA FE' OU PELAS OBRAS?
Prophetizou Jesus á mulher samaritana (ó paganismo
bem aventurado!): "Mulher, crê-me que é chegada a hora
em que vós não adorareis o Pae nem neste monte (Garizin),
nem em Jerusalem. Deus é espirito; e em espirito e verdade
é que o devem adorar os que o adoram," (S. João, 4:21,24).
— Que significam essas palavras, que o Mestre reservou
para os ouvidos de uma Samaritana, desprezada e enxova-
lhada pelos orthodoxos que se proclamavam os eleitos do
Senhor? — Quem nos vae transmittir o ensino da prophecia
messianica, são dois piedosos samaritanos, um medico e outro
advogado; este, formado pela nossa Faculdade de Direito,
em cujos bancos compoz o seu inspirado Hymno Academico,
cantado em nossas escolas publicas; aquelle, formado pela
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no coração de cujo
povo seu nome ficou gravado com o ouro do seu caracter e
com as doçuras do seu coração: dr. Bittencourt Sampaio e
dr. Bezerra de Menezes.
"Abraçando em seu pensamento o presente e o futuro,
Jesus prediz a desapparição e cessação de todos os cultos
exteriores que dividem e separam os homens; prediz a adora-
ção do Pae no coração que, quando puro, é seu unico e ver-
dadeiro templo, culto interior da alma, unico e verdadeiro,
— 152 —
que os homens renderão a Deus, quando souberem elevar-se a
Elle nas azas da oração." "Ainda hoje não se adora a Deus
sobre a montanha e em Jerusalem? Não existem cultos ex-
teriores diversos que dividem e separam os homens? Não
temos ainda hoje samaritanos e judeus, orthodoxos e hereti-
cos? Não continua a Egreja os prejuizos e as pretensões dos
judeus e dos chefes das synagogas, chamando de hereticos
áquelles que não obedecem aos seus dogmas?
"Jesus falou de tempos em que a humanidade, por seu
progresso, não será mais presa ás fórmulas de orar, não pre-
cisará mais ir aos templos para orar, porém fará sua oração
ao Pae em pensamento, no sacrario do seu coração. Assim
como, do progresso humano, elevamo-nos da moral do "den-
te por dente" á do "ma a teu inimigo" passamos do Deus
da "tremenda magestade" ao de "amor e misericordia" —
assim pela mesma lei subiremos do culto externo ao culto
interno, desapparecendo o primeiro e ficando só o segundo.
Assim, pois, devemos esperar fóra da Egreja que não progride,
que condemna todo o progresso em materia de fé, a realiza-
ção da dupla promessa de Jesus, cuja condição é o progresso
ntellectual e moral da humanidade. Devemos esperar a nova
luz, a nova revelação, o ensino daquellas verdades que a
humanidade "não podia supportar", e devemos esperar o
dia em que não adoraremos mais o Pae no monte Garizin
nem em Jerusalem, porém adoral-o-emos em Espirito e ver-
dade. Ou, em termos mais precisos, devemos esperar a desci-
da do Consolador, o Espirito de Verdade, que ensinará e
regularisará as coisas, como foi dito.
“Deus é Espirito. Quer isto dizer: Deus é intettigencia e a
intelligencia não tem fórma palpavel. Deus é pensamento e o
pensamento não póde ser tocado. Deus é caridade e a cari-
dade não é visivel. (I S. João, 4:8 e 20) Adoremos, pois, a
Deus em Espirito e verdade, e não busquemos outro culto
senão o interno, o culto da alma, fazendo do coração a mon-
tanha dos Samaritanos ou a Jerusalem dos Israelitas, único
— 153 —
templo digno, quando elle é puro, de ser levantado ao Pae,
elevando-nos assim a Elle no incenso sagrado das nossas
orações." (Dr. Bezerra de Menezes, "Estudos Philosophicos",
3 vols; Dr. Bittencourt Sampaio, "Divina Epopéa", 1 vol.)
Fére-nos fundamente a attenção esta particularidade:
Jesus escolheu os "hereticos" e "excommungados" Samari-
tanos para servirem de "exemplo" e "modelo" aos homens
religiosos a quem falava: apostolos, discipulos, phariseus,
escribas, sacerdotes!... Notemos, de passagem, que o nome
"samaritano" era tomado e empregado pelos judeus e pelo
povo, como um adjectivo qualificativo, com sentido pejorati-
vo e insultuoso. Quando Jesus disse "O que é de Deus ouve
as palavras de Deus; por isso vós não as ouvis, porque não
sois de Deus, ouviu Elle, em resposta, esta phrase dura, pesada
e offensiva, proferida pelos judeus: "Não dizemos nós bem,
que tu és "um samaritano" e que tens demonio?" (S. João,
8:48) Momentos antes, o povo havia dito ao Mestre: "Tu
estás possesso do demonio" (cap. 7:20) — Deante dessa
tempestade de insultos, o paciente Amigo dos peccadores,
em sua divina mansuetude, atira á multidão irada e fanati-
zada, esta sentença abrasadora: "O que disser uma palavra
contra o Filho do homem, isso lhe será perdoado", porque
só a cegueira espiritual, que é ignorancia, póde assim proce-
der, mas o Filho do homem, na sua missão de instruir e
guiar, compadecido desses pobres ignorantes, não os condem-
na mas perdôa-lhes os insultos, porque mais tarde hão de
penitenciar-se dessas faltas, quando conhecerem a verdade.
(S. Luc., 12:10).
Pois esses amaldiçoados Samaritanos mereceram a
sympathia do Mestre! Mas que sympathia: a sua incontida
admiração! O Nazareno tornou-se admirador daquelles a
quem os "eleitos" de Jehovah repelliam!
Aqui, é o Bom Samaritano, apontado aos seus apostolos e
demais ouvintes, corno fazedor da vontade do Pae — amando
a seus semelhantes, sem indagar da nacionalidade ou do credo
— 154 —
delles. Alli, são os Samaritanos, sobre quem os apostolos
queriam fazer descer o fogo do céo para os consumir —
apontados pelo Mestre como filhos do mesmo Pae e por isso
mesmo "dignos do Reino", porque — diz o Mestre — "o
Filho do homem veiu para salvar e não para perder as almas".
Acolá, é um Samaritano — e esse um infeliz leproso! — o
qual, curado juntamente com mais "nove” companheiros,
judeus, curva-se agradecido deante de Jesus, de cujos labios
ouve esta acarinhadora e significativa sentença: “Não foram
"dez” os leprosos curados? e somente este Samaritano é que
se mostra reconhecido ao Pae pela graça recebida? Levanta-
te, vae, que a tua fé te curou"! — Mais além, é a mulher
Samaritana, a agraciada, a venturosa, a escolhida para me-
recer, como mereceu, uma encantadora palestra com o suave
Semeador da verdade e do amor, de cujos labios teve ella a
excelsa honra e a divina graça de ouvir uma notavel prophe-
cia, de profunda e sempiterna significação, cuja realização
se opéra em nossos dias, aos nossos olhos!
O' Mestre querido! Graças, mil graças devemos a ti,
pela divina misericordia que concedes a estes teus irmãozi-
nhos, côxos e estropiados, de possuirmos olhos de vêr e ouvi-
dos de ouvir as maravilhosas lições que nos apresenta o teu
doce, o teu dulcissimo Evangelho I Sim! Graças te damos,
porque os "amaldiçoados" e "excommungados” pelos homens,
os "excluidos" e "expulsos" da sua egreja, mereceram sempre
o fogo do teu amor, as doçuras da tua bondade, os milagres
da tua palavra e os encantos do teu exemplo! Crêmos em
ti, que és immutavel, porque assim o diz o nosso coração,
assim o proclamam os Lazaros que dia a dia sáem dos sepul-
chros do peccado e da cegueira! “Eras hontem, és hoje, e o
mesmo tambem serás por todos os seculos dos seculos”! E's
tudo quanto affirmam os abysmos da inspiração do Infinito,
porque és o Filho muito amado d'Aquelle, o “Pae das luzes,
no qual não ha mudança nem sombra alguma de variação”!
(Hebreus, 13:8; Tiago, 1:17)
— 155 —
Transcrevemos uma parte apenas dos commentarios dos
illustres drs. Bezerra de Menezes e Bittencourt Sampaio,
áquella passagem do quarto evangelho, onde está em evi-
dencia o ensino de Jesus, sobre a "paternidade universal de
Deus" e a "fraternidade humana", deante de cujas realida-
des não ha nem póde haver judeus nem samaritanos, ortho-
doxos nem hereticos, mas filhos do mesmo Pae, aos quaes o
Messias veiu annunciar a "boa nova” de que o Pae "quer
que todos os homens sejam salvos e que cheguem ao pleno
conhecimento da verdade.” (I Epist. de Paulo a Timotheo,
cap. 2:4)
Meditemos ainda sobre algumas das palavras que Jesus
dirigiu ao coração sedento daquella Samaritana. Ouçamos a
voz de mais um "samaritano”, o illustre advogado dr. J. B.
Roustaing:
"... verifica-se que as respostas do Mestre ás diversas
perguntas da mulher tiveram por fim ensinar, fazer compre-
hender aos homens o seguinte: que, perante Deus, aos olhos
do Pae, não ha hereticos, nem orthodoxos, mas tão somente
filhos mais ou menos ternos, mais ou menos submissos, aos
quaes Elle transmitte suas instrucções, sejam quaes forem
suas patrias, suas crenças, comtanto que seus corações os
encaminhem para Elle e que se mostrem promptos a receber
os ensinos, os beneficios que lhes Elle manda; que o Christo,
seu enviado celeste, nosso Messias, espirito protector e gover-
nador do nosso planeta, dá a todos os homens de boa von-
tade, que lh'os peçam, sejam elles o que forem, quaesquer
que sejam seus cultos, crenças, nacionalidades, aquelles en-
sinos, aquelles beneficios, que abrem ao espirito as sendas
do progresso, de ordem physica, de ordem moral e de ordem
intellectual, e os encaminham para a perfeição.”
"Para os Judeus, que os perseguiam com seu odio e seu
desprezo, os Samaritanos eram hereticos. Elles, os Judeus,
se consideravam os unicos filhos do Senhor, os unicos com
direito a herdar o reino de Deus. Eram os orthodoxos. Eis a
— 156 —
razão por que, ao lhe dirigir Jesus, com o fito de travar o
colloquio, estas palavras "Dá-me de beber" a Samaritana
lhe observa: "Como é que, sendo tu Judeu, me pedes de
beber a mim, que sou Samaritana, pois que os Judeus não
se communicam com os Samaritanos?" — "A agua do pôço
de Jacob era o symbolo da materia que alimenta o corpo. A
agua viva, que Jesus teria dado á Samaritana se, conhecendo
o "dom de Deus" e conhecendo-o, ella lh'a houvesse pedido, e
que dá a todo aquelle que o conheça e conheça o dom de
Deus, é o symbolo das verdades eternas, do progresso moral,
que alimentam a alma e a elevam, que asseguram a predo-
minancia do espirito sobre a materia, de tal maneira que
aquelle nunca mais se tornará escravo desta.
“Assim, pois, despojado da letra o espirito, a resposta
de Jesus á Samaritana exprime o seguinte: “Pedindo-te de
beber, provei que eu, o Messias, isto é, o Christo, sou enviado
a todos os homens, quaesquer que sejam suas patrias e suas
crenças, sejam elles Samaritanos, Judeus ou Gentios; que,
portanto, Deus nenhuma excepção faz de pessoas; que Elle é o
Pae de iodos; que todos os homens são seus filhos. Se sou-
besses que Deus póde dar ao homem a assistencia, a inspira-
ção, o auxilio e o concurso dos bons espiritos, (S. Lucas, 11:
13) se conhecesses o objecto e o fim dessa assistencia, dessa
inspiração, desse auxilio e desse concurso; se conhecesses a
moral que eu personifico, talvez me houvesses pedido de
beber; e, se fosses assistida, inspirada, auxiliada pelos es-
piritos do Senhor, ter-me-ias, com o concurso delles, pedido
de beber e eu te teria dado da agua viva, isto é, da "agua
espiritual", que mana da fonte das verdades eternas e que
dessedenta a alma, abrindo á intelligencia e ao coração do
homem as sendas de todo progresso."
“Tornará a ter sêde quem quer que beba agua identica á
do pôço de Jacob. Aquelle que vive pelo corpo e para o corpo,
sob o imperio da materia, terá sempre sêde das coisas da
materia. Ao contrario, aquelle que beber da agua que “eu
— 157 —
lhe dér", que dessedentar a alma com a agua espiritual que
lhe eu dér, tirada por mim á fonte das verdades eternas;
aquelle que a saciar praticando a moral que personifico,
NUNCA MAIS terá sêde das coisas da materia. Ainda mais: a
agua que lhe eu dér se tornará NELLE uma como fonte que
jorrará até á vida eterna, isto é: será nelle uma fonte de
progresso moral, que jorrará até á perfeição, pois que todos
os progressos são inseparaveis e solidarios, se prestam, por
assim dizer, apoio mutuo na senda da perfeição, afim de que o
espirito a esta chegue."
"Quão poucos dos que se dizem representantes do Chris-
to na terra comprehenderam aquellas respostas do divino
Mestre! Em vez de esperarem que os irmãos, a quem cha-
mavam de hereticos, lhes pedissem "a agua viva” e em vez
de darem dessa agua aos que lh'a houveram pedido, elles,
para com esses irmãos, aos quaes deviam amar, usaram de
intolerancia, os perseguiram moral e physicamente, condem-
nando-os ás torturas, aos supplicios, á fogueira, á morte !"
"Dentre vós, os que deveriam ser os primeiros a crêr
são os que se curvam deante da verdade? Não. Os primeiros
a crêr são os repellidos pelos que julgam ter o privilegio da
fé. São os "réprobos” os que primeiro se reunem ao derredor
do Mestre, para lhe dizerem: "Senhor, a tua palavra pene-
trou em meu coração, a luz me deslumbrou, eu creio." ("Os
Quatro Evangelhos”, vol. IV, caps. 3 e 4)
PAZ? NÃO, MAS ESPADA E SEPARAÇÃO
"Não julgueis que vim trazer paz á terra; não vim trazer-
lhe paz, mas espada; porque vim a separar ao homem contra seu pae, e a filha contra a sua mãe, e a nora contra a sua sogra;
e os inimigos do homem serão os seus mesmos domesticos."
(S. Math. 10:34-36)
— 158 —
“Eu vim trazer fogo á terra, e que quero eu, senão que elle
se accenda? Eu pois tenho de ser baptizado num baptismo; e quão grande não é a minha angustia até que elle se conclua!
ós cuidaes que eu vim trazer paz á terra? Não, vos digo eu,
mas separação; porque de hoje em deante haverá numa mesma
casa cinco pessoas divididas: tres contra duas, e duas contra tres. Estarão divididas: o pae contra o filho, e o filho contra
seu pae; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra
contra sua nora, e a nora contra sua sogra." (S. Lucas, 12:
49-53)
"Foi Jesus, realmente elle, a personificação da doçura
e da bondade; elle, que não cessou de pregar o amôr do pro-
ximo, quem disse: Eu não vim trazer a paz, mas a espada;
vim separar o pae do filho, o esposo da esposa; vim lançar o
fogo á Terra e tenho pressa que elle se accenda?! Taes con-
ceitos não estão em flagrante contradicção com os seus ensi-
nos? Não haverá blasphemia em se lhe attribuir a linguagem
de um conquistador sanguinario e devastador? Não. Não
ha blasphemia nem contradicção nessas palavras, pois real-
mente foi elle quem as pronunciou, e testemunham a sua
elevada sabedoria.
Toda idéa nova encontra forçosamente opposição; até
hoje nenhuma se estabeleceu sem luctas; ora, em semelhante
caso, a resistencia está sempre na razão da importancia dos
resultados previstos, pois quanto maior é a idéa, maior é o
numero de interesses em jogo. Si é notoriamente falsa, si a
julgam isenta de consequencias, ninguem se incommoda, e
deixam-na passar, sabendo-se que ella não tem vitalidade.
Mas si é verdadeira, si repousa em base sólida, si se lhe en-
trevê algum futuro, um secreto presentimento adverte os
seus antagonistas que ella traz um perigo para si e para a
ordem das cousas em cuja conservação são interessados;
eis porque a fulminam, a ella e aos seus partidarios.
A medida da importancia e dos resultados de uma idéa
nova acha-se, assim, na commoção que o seu apparecimento
— 159 —
causa, na violencia da opposição que levanta e no grau e
persistencia da cólera dos adversarios.
"Jesus vinha proclamar uma doutrina que solapava
os abusos de que viviam os phariseus, os escribas e os sacer-
dotes de seu tempo; assim, mataram-no, suppondo que,
matando-o, a idéa succumbiria; mas a idéa sobreviveu, por-
que era verdadeira; cresceu, porque estava nos designios de
Deus, e, sahida de obscura aldeia da Judéa, foi arvorar a sua
bandeira na propria capital do mundo pagão, em face dos
seus mais encarniçados inimigos, dos que tinham maior in-
teresse em combatel-a, por vir destruir seculares crenças,
ás quaes muitos se apegavam mais por interesse que por
convicção. Ahi as luctas mais terriveis aguardavam os seus
apostolos; as victimas foram sem numero; mas a idéa cres-
c.eu continuamente e saiu triumphante porque era superior,
como verdade, ás suas predecessoras.
"Não tinha Socrates tambem formulado uma doutrina
analoga á do Christo, até certo ponto? Por que não prevale-
ceu ella nessa epocha, em um dos povos mais intelligentes
da Terra? E' que o tempo não era chegado; semeou em
terreno ainda não lavrado; o paganismo ainda não estava
gasto.
“Infelizmente, os adeptos da nova doutrina não se en-
tenderam a proposito da interpretação das palavras do Mestre,
cuja maior parte estava velada sob a allegoria e a figura;
dahi o nascerem, desde o começo, numerosas seitas, que pre-
tendiam, todas, possuir exclusivamente a verdade, e dezoito
seculos não bastaram para as pôr de accôrdo. Esquecendo o
mais importante dos divinos preceitos, aquelle de que Jesus
fizera a pedra angular do seu edificio e a condição expressa
do salvamento — a caridade, a fraternização, o amôr do
proximo — essas seitas lançaram-se reciprocamente o ana-
thema e atiraram-se umas contra as outras, as mais fortes
esmagando as mais fracas, afogando-as em sangue, nas tor-
turas e nas fogueiras. Os christãos, vencedores do paganismo,
— 160 —
de perseguidos fizeram-se perseguidores; foi a ferro e fogo
que plantaram nos dois mundos a cruz do Cordeiro imma-
culado. E' facto constante que as guerras de religião foram
as mais crueis, produzindo mais victimas do que as guerras
politicas, e que em nenhumas outras se commetteram maio-
res actos de atrocidade e barbarismo.
A culpa estará na doutrina do Christo? Não, certamente,
pois ella condemna em absoluto toda a violencia. Disse elle,
por exemplo, alguma vez aos discipulos: Matae, flagellae,
queimae os que não crerem como vós? — Não; pelo con-
trario, disse: Todos os homens são irmãos e Deus é soberana-
mente misericordioso; amae o vosso proximo, amae os vossos
inimigos; fazei o bem a quem vos perseguir. Disse mais:
Quem matar pela espada morrerá pela espada. A responsa-
bilidade, conseguintemente, não está na doutrina de Jesus,
mas naquelles que não reconheceram este conceito: O meu
reino não é deste mundo.
"Jesus, em sua profunda sabedoria, previra o que havia
de acontecer; mas essas cousas eram inevitaveis, por se pren-
derem á inferioridade da natureza humana, que se não podia
transformar de repente. Ao Christianismo era necessario
que passasse por essa longa e cruel próva de dezoito seculos,
para mostrar todo o seu poder; pois que, apesar de todo o
mal commettido em seu nome, elle saiu puro; jamais foi elle
posto em duvida; a censura recaiu sempre sobre os que abu-
saram delle; a cada acto de intolerancia sempre foi dito:
Si o Christianismo fôsse mais bem comprehendido e pratica-
do, tal não se daria.
"Quando Jesus disse: Não julgueis que vim trazer a
paz, mas a divisão, era este o seu pensamento: “Não jul-
gueis que a minha doutrina se estabeleça pacificamente;
ella trará lutas sanguinolentas, de que o meu nome será
pretexto, porque os homens não me haverão comprehendido,
ou não me quizeram comprehender; os irmãos, separados
por suas crenças, desembainharão espadas uns contra os
— 161 —
outros e a divisão reinará entre os membros de uma mesma
familia que não tiver a mesma fé. Eu vim lançar fogo á Terra
para limpal-a dos erros e preconceitos, como se põe fogo a
um campo para destruir hervas damninhas, e tenho pressa
de a vêr arder, para mais prompta ser a depuração, porquanto
desse incendio a verdade sairá triumphante; á guerra succe-
derá a paz, ao odio partidario a fraternidade universal, ás
trévas do fanatismo a luz da fé esclarecida. Então quando o
campo estiver preparado, eu vos enviarei o Consolador, o
Espirito de Verdade, que virá restabelecer todas as cousas; isto é, fazendo claro o verdadeiro sentido das minhas palavras,
que os homens poderão, finalmente, comprehender, terá
fim a luta fratricida que divide os filhos do mesmo Deus.
Cansados, afinal, de uma luta sem termo, que comsigo arras-
ta somente ruinas e leva a perturbação até ao seio das
familias, os homens reconhecerão onde se acham os seus in-
teresses reaes para este mundo e o outro; verão de que lado
estão os amigos e os inimigos de seu repouso. Então todos
se hão de vir abrigar sob a mesma bandeira — a da carida-
de, e as cousas serão restabelecidas sobre a Terra, de accôrdo
com a verdade e os principios que vos ensinei."
— O Espiritismo vem realizar no tempo predito as pro-
messas do Christo; entretanto, não póde fazel-o sem destruir
os abusos. Como Jesus, elle encontra sob os seus passos o
orgulho, o egoismo, a ambição, a cupidez, o fanatismo cego,
que, acantoados nas ultimas trincheiras, pretendem barrar-
lhe o caminho e lhe suscitam embaraços e perseguições; por
esse motivo tambem lhe é preciso dar combate; mas o tempo
das lutas e perseguições sangrentas passou; as que ha a
atravessar serão todas moraes, e o seu termo está proximo;
as primeiras duraram seculos; estas durarão alguns annos
apenas, visto que a luz, em vez de partir de um só fóco, surge
em todos os pontos do globo e abrirá mais cedo os olhos aos
cegos.
Essas palavras de Jesus devem, portanto referir-se ás
iras que sua doutrina levantaria, aos conflictos momentaneos
— 162 —
consequentes della; das lutas que havia de sustentar primeiro
que se estabelecesse, como aconteceu aos hebreus antes da
sua entrada na Terra Promettida essas palavras não expri-
miam o designio premeditado de semear a desordem e a con-
fusão. O mal devia vir dos homens e não delle, que era qual o
medico que vem curar, mas cujos remedios provocam a crise
salutar com o removimento dos humores morbidos do doente."
"A perseguição é o baptismo de toda idéa nova, grande e
justa, e cresce com a grandeza e a importancia da idéa. O
encarniçamento e a cólera dos inimigos da idéa estão na razão
do temor que ella inspira. E' por esse motivo que o Christia-
nismo foi outr'ora perseguido e que o Espiritismo o é hoje,
com a differença, comtudo, que o Christianismo foi persegui-
do pelos pagãos e o Espiritismo o é por christãos. O tempo
das perseguições sangrentas já passou, é certo; mas, si não
se mata mais o corpo, tortura-se a alma, atacam-se até os
mais intimos sentimentos, as affeições mais caras; dividem-se
as familias, excita-se a mãe contra a filha, a mulher contra o
marido; ataca-se mesmo o corpo em suas necessidades ma-
teriaes, tirando-se-lhe o meio de ganhar a vida, para abrigal-o
a ceder pela fome.
"Uma crença, ou é falsa ou verdadeira; quando falsa,
cahirá por si mesma, porque o erro não póde prevalecer con-
tra a verdade, desde que a luz se faça nas intelligencias; si é
verdadeira, não póde ser tornada falsa pela perseguição. A
abjuração forçada nunca despertou a fé: ella só póde produzir
hypocrisia; é um abuso da força material que não próva a
verdade. A verdade tem a certeza de si mesma; convence,
mas não persegue, por não ter necessidade disso. Assim o
entenderam os apostolos, porque assim lhes ensinou o Mestre
com a sua palavra e com o seu exemplo."
"Espiritas, não vos afflijaes com os golpes, que vos
atiram, pois elles provam estardes com a verdade: do con-
trario deixar-vos-iam tranquillos e não vos perseguiriam. E'
isso uma próva para a vossa fé, pois, pela coragem, perse-
— 163 —
verança e resignação é que Deus vos reconhecerá entre os
seus fieis servidores, cuja relação elle prepara para dar a
cada um a parte que lhe pertencer, segundo as suas obras.
"A exemplo dos primeiros christãos, sêde firmes em
carregar a cruz e crêde na palavra do Christo, quando disse:
"Bemaventurados os que soffrem perseguição por amor da
justiça, porque delles é o reino dos céos. Não temaes os que
matam o corpo, mas não pódem matar a alma." Elle tambem
disse: "Amae aos vossos inimigos, fazei bem a quem vos
fizer mal e orae por aquelles que vos persigam. Mostrae que
sois seus verdadeiros discipulos e que boa é a vossa doutrina,
fazendo o que elle disse e o que elle proprio fez. A persegui-
ção durará pouco * esperae pacientemente o despontar da
aurosa, pois que já a estrella da manhã apparece no hori-
zonte." (Kardec — “O Evangelho”)
EM BUSCA DAS OVELHAS PERDIDAS
"A estes doze enviou Jesus, dando-lhes estas instrucções,
dizendo: Não ireis caminho de gentios, nem entreis nas cida-
des dos samaritanos; mas ide antes ás ovelhas que pereceram
da casa de Israel. E pondo-vos a caminho prégae, dizendo:
Que está proximo o reino dos céos.” (S. Math 10:5-7).
"Em muitas circumstancias Jesus provou que as
suas vistas não estavam circumscriptas ao povo judeu, mas
alcançavam toda a humanidade. Dizendo aos apostolos que
não fôssem ao povo pagão, não o fez por desprezo á conver-
são desse povo — o que demonstraria falta de caridade —
mas porque os judeus, crentes na unidade de Deus e esperan-
çados na vinda do Messias, estavam preparados, pela lei
de Moysés e pelos prophetas, para receber a sua palavra.
Quanto aos pagãos, faltando a base da doutrina, tudo estava
por fazer; e os apostolos não estavam assás esclarecidos para
tão pesada tarefa. Por isso Jesus lhes disse: Ireis ás ovelhas
perdidas da casa de Israel; isto é, ireis semear em terreno
— 164 —
já roteado, certo de que a conversão dos gentios viria a Seu
tempo; mais tarde, com effeito, foi no proprio centro do
paganismo que os apostolos foram plantar a cruz.
"Estas palavras pódem applicar-se aos adeptos e pro-
pagadores do Espiritismo Os incredulos systematicos, os
ombadores obstinados, os adversarios interesseiros, estão
para elles como os gentios para os apostolos. A exemplo des-
tes, os espiritas devem procurar proselytos entre pessoas des
boa vontade, desejosas de luz, nas quaes se encontra um
germen fecundo — e o numero delles será grande — sem
perder tempo com aquelles que recusam vêr e ouvir, e tanto
mais se obstinam, pelo orgulho, quanto mais se mostram
desejosos de sua conversão. Mais vale abrir os olhos de cem
cegos que desejam vêr a luz, do que abrir os olhos de um que
se compraz em permanecer na escuridão; augmenta-se assim,
em grandes proporções, o numero dos que sustentam a causa.
Deixar tranquillos os incredulos não é indifferença, e sim
boa politica; chegará a sua vez, quando fôrem dominados
pela opinião geral e ouvirem constantemente ao redor de
si repetir-se a mesma cousa. Então admittirão a idéa volun-
tariamente e não sob imposição estranha. Demais, dá-se
com as idéas o que se da com as sementes: não podem ger-
minar antes da estação, e somente em terreno preparado; é
conveniente, pois, aguardar o tempo propicio e cultivar de
preferencia as que germinam, evitando que as outras se per-
cam com o trabalho prematuro.
"No tempo de Jesus, tudo era circumscripto e localiza-
do, em consequencia das idéas restrictas e materiaes da epo-
cha; a casa de Israel era um pequeno povo, e os gentios eram
tambem pequenos povos limitrophes; hoje as idéas se uni-
versalizam e espiritualizam. A nova luz não é privilegio de
nação alguma; para ellas não existem barreiras; tem tocos
de irradiação por toda a parte e todos os homens são irmãos;
tambem os gentios não formam mais um povo, mas symbo-
lizam uma opinião encontrada em toda a parte e da qual a
— 165 —
verdade vae pouco a pouco triumphando, como o Christia-
nismo venceu o paganismo. Não é mais com armas de guerra
que se combatem os gentios, mas com a força da idéa." (Kar-
dec — “O Evangelho")
O LIVRE-ARBITRIO REPELLIDO PELA PREDES-
TINAÇÃO DIVINA — A THEOLOGIA PROVOCA AR-
REPIOS — CALCULOS ARITHMETICOS QUE CAU-
SAM PAVOR — O PAGANISMO DE PYTHAGORAS
DENTRO DO EVANGELHO DE JESUS — BELLAS
LIÇÕES!
Um dos maiores obstaculos com que tem lutado a egreja
para tirar os homens da incredulidade — não ha negar —
é o temor religioso dentro da fé exclusivista, aggravado prin-
cipalmente pelo dogma da predestinação divina, negação
absoluta da misericordia e da justiça do Creador. Segundo
esse dogma, ardentemente defendido pelo protestantismo,
"milhões innumeraveis de seres ainda não nascidos são con-
demnados a eternos tormentos, sem consideração pela sua
boa ou má conducta no futuro, nem pelo seu arrependimento.
Quererá isto dizer que a grande maioria da raça humana é
abominada pelo seu Creador? Inexoravel em sua logica,
Calvino diz que sim."
"Desse dogma resulta — diz um grande philosopho —
que os fieis são salvos não por um exercicio da sua livre
vontade, nem por seus proprios merecimentos, porque não
ha livre-arbitrio em face da soberania de Deus, mas por ef-
feito de uma “graça” que Deus concede a seus eleitos. Le-
vando esse argumento a todas as suas consequencias logicas,
poder-se-ia dizer: E' Deus quem attráe os escolhidos; é Deus
quem endurece os peccadores. Tudo se faz pela predestinação
divina. Adão, por conseguinte, não peccou por seu livre-
arbitrio. Foi Deus, absoluto soberano, que o predestinou á
queda. Esse dogma conduz a tão deploraveis resultados, que o
— 166 —
proprio Calvino, que o affirmou com todas as suas consequen-
cias, o denomina — falando dos homens predestinados á
condemnação eterna — um horrivel decreto (decretum
horribite)".
"E para impôr taes opiniões, para as incutir nos espiri-
tos, Calvino não recuou nem ante o emprego da violencia.
A fogueira de Serveto nol-o attesta." (Léon Denis —
"Christianismo e Espiritismo")
Segundo crêm os nossos irmãos protestantes, serão sal-
vos da ira de Deus (!) não todos os membros da Egreja
isivel, mas tão somente aquelles que foram eleitos pela
soberania de Deus. Conclusão logica: o homem não tem res-
ponsabilidade, porque não tem liberdade. Está, pois, suppri-
mida a liberdade do homem, porque o mundo é regido pelo
fatalismo: é Deus ou o destino que escolheu os eleitos e os
réprobos, os santos e os malvados, e ninguem póde escapar
ao destino!” (Janet — "Phitosophia") — E accrescenta este
philosopho, depois de esflorar a doutrina da predestinação
fatalistica: "O responsavel de minha doutrina não sou eu, é
Deus ou o destino!"
Acredita a Egreja Presbyteriana que a "graça de Deus"
repousa sobre a Egreja Visivel, que se compõe dos membros
que "professam" a "religião verdadeira." (Livro de Ordem
da Egr. Presbyt., cap. II)
Surge, porém, uma questão muito séria: qual das egre-
jas denominadas christãs apresenta os caracteristicos da "re-
ligião verdadeira”? A protestante? a catholica? a orthodoxa
oriental? — Uma egreja que risca totalmente a liberdade
humana e préga ao mesmo tempo o livre-arbitrio, desconhe-
ce o "espirito” da religião que une o homem ao seu Creador.
Ainda que o Christianismo esteja subdividido apenas em tres
grupos — um dos quaes possuindo muitissimas seitas -
todavia, cada um delles se apresenta ao mundo como a ver-
dadeira religião de Jesus Christo, a despeito das fundas diver-
gencias que os separam.
— 167 —
Não, prezado leitor! Não é com o espirito assim nortea-
do que os povos da terra alcançarão a desejada fraternidade
humana I O exclusivismo sectario é o maior inimigo daquella
eterna verdade, que caracteriza "a religião do Christo":
"Sereis meus discipulos, si vos amardes uns aos outros." E'
este o espirito da verdadeira religião, é este o ensino substan-
cial da doutrina do Divino Mestre!
Não podemos crêr que o Deus-Amôr, o Deus-Caridade, o
Deus-Justiça, o Deus-Sabedoria, o Infinito das perfeições,
que creou o homem para o bem, por um acto da sua bonda-
de — houvesse creado milhões e milhões de filhos bons
para se tornarem maus, afim de inverterem o Seu plano e a
Sua obra! Não podemos crêr em um Deus que erra por
imprevidencia, porque esse não é o Deus do Evangelho!
A Perfeição não póde errar! Da Perfeição só procede o bem!
Cremos, sim, na predestinação para o bem, objecto da
harmonia universal e sua finalidade moral, não para meia
duzia de individuos pertencentes a uma determinada seita
ou egreja, mas para TODAS AS CREATURAS, porque todas têm
origem commum: a fonte do Amôr e da Justiça, e essa fonte,
diz o apostolo, "não póde lançar agua doce e agua amargosa"!
(Tiago, 3:11)
Tal o ensino do Evangelho, hoje universalizado pela
Revelação do Espirito de Verdade. "Sêde perfeitos, aperfei-
çoae-vos, como perfeito é o vosso Pae celestial”, tal o ensino
de Jesus. Quem é injusto, faça injustiça ainda; quem é sujo,
suje-se ainda; quem é justo, faça justiça ainda; quem é
limpo, limpe-se ainda; quem é santo, santifique-se ainda”.
E' a lei da evolução, ensinada pelo Espirito da Promessa.
E' a lei do movimento e o movimento é a vida, porque é
acção, é vibração; viver é agir, é vibrar, é progredir, é avan-
çar, é altear, é ascender. E' de mergulho em mergulho na
lagrima, é de tropeço em tropeço no soffrimento, é de dôr
em dôr, de soluços em soluços que o homem se depura para
chegar, carregado de experiencia, ao caminho da casa do
— 168 —
Pae, como nos ensina o Filho pródigo (Luc. 15), na encanta-
dora parabola de Jesus. A dôr, como já a consideravam os
grandes philosophos, não é um mal mas um bem, por ser
uma virtude purifica tiva, visto como, a divindade collocára o
soffrimento adeante da virtude (Janet, obr. cit.). E Jesus, o
Mestre dos mestres, confirmou essa verdade semeada pelos
"pagãos", com aquella maravilhosa parabola e com esta
sentença, de sempiterna actualidade para TODAS as creaturas:
“Bemaventurados "os” que choram, porque serão consola-
dos!” (Math., 5:4)
*
* *
Sobre a questão da "justificação pela fé", com exclusão
das boas obras, muito teriamos a respigar. Entretanto, para
abreviar o termo da nossa tarefa, preciso se faz que ponha-
mos o leitor ao par da idéa predominante entre os nossos
irmãos reformistas. Mesmo no que respeita a esse dogma,
fundas divergencias existem entre elles. Sobre o dogma da
“predestinação divina”, por exemplo, são irreconciliaveis os
presbyterianos ou calvinistas com os methodistas ou wes-
leyanos. Abramos um compendio de theologia presby teriana,
por exemplo o do revmo. A. Alexander Hodge, professor
de Theologia Systematica no Seminario de Princeton, New
Jersey, e ahi veremos estereotypado o ensino da egreja pres-
byteriana. Em 22 paginas, cap. XI, esforça-se o revmo.
Hodge por demonstrar que o Pae "escolheu" desde toda a
Eternidade "alguns filhos” para o Céo, criado para elles, e
"escolheu" os restantes, a innumeravel maioria, para o In-
ferno sempiterno, igualmente criado para elles. A proposito
deste dogma, arrepiador porque blasphêmo, largas e intermi-
naveis controversias agitaram as seitas religiosas em tempos
idos. Comquanto serenos na communhão dos outros dogmas,
todavia existe ainda rivalidade entre presbyterianos e me-
thodistas. No citado compendio percebe-se a difficuldade
do autor em refutar as objecções formuladas por eminentes
— 169 —
theologos protestantes, entre os quaes toma vulto João Wes-
ley, fundador do methodismo, seita que repelle a predestina-
ção calvinistica. Compulsanso-se o alentado compendio de
theologia do pastor methodista, rev. Ed. Joiner, ver-se-á a
refutação cabal da doutrina presbyteriana sobre a "predes-
tinação divina." Nota curiosa: esses pastores, Hodge e Joi-
ner, calvinista e wesleyano, sustentando duas theses contrá-
rias, sobre o mesmo ponto, soccorrem-se da mesma fonte: a
Biblia!
Fiel ao ensino da Reforma, um eminente theologo publi-
cou em o “Estandarte" (da Egreja Presbyteriana Indepen-
dente do Brasil), em o n.° 7, de 1926, um capitulo sobre as-
sumpto palpitante para seus leitores: "O Julgamento Final".
A titulo de curiosidade, citaremos uns trechos dessa
lição, que é longa, afim de que o leitor possa apreciar a força
da idéa prefixada de que, para a maioria dos protestantes,
somente aquelles que professarem a fé theologica ensinada
por sua egreja, lograrão escapar do "lago de fogo" que o
Pae-Amôr reserva para os dissidentes, no ultimo dia.
Eis alguns trechos (os gryphos são nossos):
“A opinião de que a raça humana se apresentará simul-
taneamente deante do throno branco de Deus para ser julga-
da segundo as suas obras (attentemos bem!) por occasião
da vinda do Senhor Jesus, é baseada em muitas passagens
das Escripturas Sagradas, e é acceita tenazmente e qualquer
divergencia é considerada heresia muito grave."
"Mas o capitulo XX do Apocalypse tomado no seu con-
texto, e no seu sentido natural,(?) requér uma restricção desta
theoria"(?)
“Haverá um ajuste de Christo com os seus escolhidos,
mas isto não é julgamento.(?) Perante Deus elles são justifi-
cados pela fé, já se deu a sua passagem da morte para a vida.
No julgamento dos impios vae ser decidido o seu destino
— 170 —
eterno(!); no julgamento dos justos(?) o seu destino eterno
jà está determinado. "A posse da vida eterna não impede
certos graus de gloria, e o facto de serem salvos pela graça
não impede que sejam recompensados conforme suas obras."(?)
"O julgamento dos impios será para retribuir a cada um
segundo as suas obras-justiça. Rom., 2:6; o dos salvos baseia-
se na graça, porque só a graça de Deus póde recompensar
as suas obras. O julgamento dos peccadores(!?!) termina
numa noite eterna (!); o dos salvos (!) em "e então cada um
receberá de Deus o louvor". (!) I Cor., 4:5.
"Num será o julgamento das "pessoas", no outro das
"obras somente" "Algumas obras serão destruidas pelo fogo,
mas ainda assim o que as fez será salvo. I Cor. 3:15 (Apartea-
mos : quem tem ouvidos de ouvir, ouça!) "Pódem perecer
as suas obras, mas elles nunca jamais perecerão,” S. João,
10:28, conforme a promessa do seu Salvador."
Pouco antes, diz o theologo — sobre a passagem
"Em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e
crê n'Aquelle que me enviou tem a vida eterna, e não incorre
na condemnação, mas passou da morte para a vida” (S.
João, 5:24):
"E' bem sabido que a palavra aqui traduzida "condem-
nação” significa julgamento. O justo não entrará em julga-
mente quando este é para ser a condemnação. Não, elle não
será condemnado no julgamento, porque elle nem entrará
nelle.”
Bastam esses periodos. Segundo essa orthodoxia,
ensinada e desdobrada pelo snr. H. Graltan Guiness, e nas-
cida naquellas noites de "turbada” "consciencia”, os "jus-
tos” e os "salvos”, de que fala o Apocalypse, referem-se
taxativamente aos nossos irmãos reformistas; os "impios" e
os "peccadores”, referem-se directamente aos "não reformis-
tas”, isto é, aos catholicos, espiritistas, etc. etc.
— 171 —
Medindo e pesando bem essa theoria, na rigorosa balança
da logica, ou balança do raciocinio e do bom senso, chegare-
mos a esta conclusão, que causará arrepios a muita gente:
os nossos irmãos protestantes terão um ajuste com Christo,
mas isso não será "julgamento", porque elles são "os escolhi-
dos", e quem diz "escolhidos" diz amigos, e Deus livrará do
juízo os amigos, pois são “justificados pela fé," já passaram
da morte para a vida; ainda que "algumas obras" delles
sejam queimadas no fogo, por serem más, todavia, elles não
deixarão de ir para o Céo, visto como, "o seu destino eterno já está determinado" (pela "predestinação"). Vamos resumir
este ponto, sem fugir ao criterio theologico do snr. Guiness:
"naquelle dia", o Mestre porá á sua direita os "escolhidos",
isto é, os adeptos da Reforma, e terá o trabalho de julgar
somente os "impios e peccadores", isto é, os esquerdistas
ou não adeptos da Refórma; aquelles não tomarão parte
no "ajuste de contas" porque para elles ha um peso e uma
medida especiaes; estes, sim, serão julgados segundo as suas
obras, porque não estavam predestinados para o Céo; para
estes ha outro, peso e outra medida.
Ora, estes calculos da engenharia theologica do snr.
Guiness deixam-nos em grande embaraço, porque o proprio
Christo e os seus apostolos, bem como os prophetas, nos en-
sinam exactamente o contrario, isto é, que ninguem escapa-
rá do juizo, respondendo cada um segundo as "suas obras!"
Ouçamol-os: "O Filho do homem retribuirá a cada um segun-
do as suas obras." (Math. 16:27). "Deus retribuirá a cada
um segundo as suas obras". (Paulo aos Rom., 2:6) "Porque
importa que TODOS NÓS compareçamos deante do tribunal
de Christo, para que cada um receba o galardão, segundo o que tem feito, ou bom ou mau, estando no proprio corpo."
(2.ª Epist. de Paulo aos Corinthios, 5:10). “Se invocaes como
Pae aquelle que, sem accepção de pessoas, julga segundo a
obra de cada um..." (I S. Ped. 1:17). “E retribuirei a cada um de vós segundo as suas obras." (Apoc. 2:23). "Elle pagará
ao homem a sua obra, e recompensará a cada um segundo
— 172 —
os seus caminhos." (Job, 34:11) "Elle retribuirá ao homem
segundo as suas obras". (Prov., 24:12). "Eu hei de julgar a cada um de vós segundo os seus proprios caminhos.” (Ezeq.,
33:20)
Esses textos são de uma clareza crystallina; qualquer
illetrado, qualquer um de nós apprehende facilmente o sentido
dessas palavras, que focalizam todas a mesma verdade,
apresentada quando a intelligencia ou a capacidade intellectiva
não estava desenvolvida como hoje. O apostolo Paulo (em
algumas de cujas epistolas ha obscuridades que o proprio
apostolo Pedro não entendia), elle proprio diz que não se
livraria do julgamento, ante o tribunal de Christo (II Ped.
3:16); o apostolo Pedro affirma, como quem esclarece áquelles
que se presumem "os escolhidos", que Deus não faz distincção de pessoas. E diz bem, porque escolher é preferir, é parcializar,
é ser "parte” de um partido. Está elle de pleno accôrdo com o
seu collega Tiago, que nos affirma que Deus e immutavel,
isto é, que não pensa de dois modos como o homem, e por
isso mesmo não póde ter preferencias. (Cap. 1:17)
Si é á Biblia que devemos dar ouvido, então não alimen-
temos a pretensão de vêr no mundo uma casta de "escolhi-
dos" ou "privilegiados”, porque o Senhor Jesus, Elle mesmo
nos adverte claramente: retribuirá a CADA UM, não segundo o
seu "partido” ou sua fé, mas segundo o que houver praticado
durante a existencia terrena. E' esse o ensino do seu Evan-
gelho, é esse o ensino dos Prophetas ou Videntes que, como
verdadeiros "mediums” receberam do Invisivel esta mesma
mensagem: "Cada um de nós será premiado, "no outro
lado”, segundo as suas obras "aqui praticadas.”
Não procede, portanto, a complicada "theoria” do theo-
logo reformista, snr. Guinesse, entremeada de "excepções", a
qual nos apresenta deducções que não têm nem poderiam
ter base no Evangelho. Já o leitor tirou esta conclusão: a
orthodoxia desse theologo., reflexo da lutherana e calvimstica,
— 173 —
põe, ou melhor, quér pôr nas mãos de Jesus, nada menos
que "dois pesos e duas medidas"...
A arithmetica, com a sua imperturbavel serenidade,
causaria fortes arrepios aos miseros hospedes do planeta,
si fôsse uma realidade a "visão eschatologica" da theologia
predeterminista do snr. II. Graltan Guiness. Os proprios
defensores dessa theoria (ou dogma, segundo a Refórma)
são os primeiros a reconhecer que muitos, dentre os adeptos
do protestantismo, serão excluidos da graça salvadora, á
vista da sábia advertencia do Mestre: "Nem lodo o que
me diz Senhor! Senhor! entrará no Reino do Céo". E' que
entre elles existem divergencias que affectam directamente
certos principios fundamentaes da Refórma, divergencias que
têm feito nascer, dentro de uma seita, outras tantas seitas,
cada qual com as suas theorias especializadas. Aqui no Brasil
não tomam vulto essas subdivisões, devido ao pequeno nume-
ro de adeptos do movimento reformador do sec. XVI, não
acontecendo o mesmo em certos paizes. Conta-nos o eminente
escriptor patricio, João do Rio (Paulo Barretto), que nos
Estados-Unidos a seita "baptista" está assim subdividida:
baptista christãos, baptistas rigorosos, novos baptistas,
baptistas separados, baptistas liberaes, baptistas livres, ana-
baptistas baptistas, creanças baptistas geraes, baptistas par-
ticulares, baptistas escossezes, baptistas nova communhão ge-
ral, baptistas negros, baptistas do braço de ferro, baptistas
do setimo dia e baptistas pacificos. ("As Religiões no Rio" —,
1 vol., 245 pags., Livraria Garnier). A denominação "pres-
byteriana", em nosso paiz, subdividiu-se, de 1903 para cá,
em tres egrejas: egreja presbyteriana synodal, egreja pres-
byteriana independente e egreja presbyteriana livre. No
presupposto de que só entre os reformistas existem os "es-
colhidos" (como pensam firmemente os nossos irmãos pro-
testantes), eis que os algarismos produziriam profundo e
desalentador abalo no animo dos paulistanos, pois é sabido
que a nossa bella Capital possue hoje 1.000.000 de almas
— 174 —
(um milhão!) e dessas, nem ao menos uma por cento estaria
no ról das "escolhidas"! E as restantes?... Estas succum-
biriam estarrecidas, deante do quadro apavorador que a
arithmetica ainda lhes põe á vista, graças á operosidade do
illustre orientalista Philipp Schaff, professor da "Union
Theological Seminary” de Nova-York, autor do grande “Bi- btical Dictionary", traduzido do inglez para o italiano, pelo
revmo. Enrico Meille, pastor evangelico. A' pag. 101 do
bello volume que temos á vista, encontramos estes dados,
referentes ao numero dos profitentes dos diversos cultos
espalhados no mundo:
Fóra do Christianismo ou pagãos .................... 1.023.000.000
Catholico ........................................................... 216.000.000
Protestantes ..................................................... 130.000.000
Christãos orientaes .......................................... 84.000.000
Judeus............................................................... 7.000.000
O vulto desses algarismos amedronta e provoca vertigem,
quando nos lembramos de que, pela justiça attribuida á Divin-
dade pela theologia do snr. Guiness, essas criaturas serão jul-
gadas por dois pesos e duas medidas! E a sorte daquelle di-
luvio que está fóra do Christianismo ?...
Forrae-vos, ó pagãos, com a ficha consolatória dada pelo
Divino Pastor, que prégou a paternidade de Deus e a frater-
nidade dos homens: "Bemaventurados sereis quando os homens
vos separarem e rejeitarem o vosso nome como mau, "por causa"
do Filho do Homem!" "Porque o Filho do homem ha de vir
na gloria de seu pae, e então dará a paga a cada um, não segun-
do o rótulo de suas crenças, mas segundo as suas obras!"
(S. Luc. 6:22 e S. Math. 16:27).
Deante do exemplo profundamente edificante de diver-
sos pagãos, entre elles "samaritanos", “syrophenicios", cen-
turiões romanos", etc., não poude silenciar o Mestre, ao pon-
— 175 —
to de lançar aos ouvidos de seus apostolos e mais ouvintes,
estas palavras memoraveis: "Em verdade vos affirmo que não achei tamanha fé em Israel! Digo-vos, porém, que virão mui-
tos do Oriente e do Occidente, e que se sentarão á mesa com
Abrahão, Isaac e Jacob, no reino dos céos, mas que os filhos
do reino (não só os judeus, mas tambem todos os separadores que se dizem "privilegiados" serão lançados nas trevas exteri-
ores, onde haverá choro e ranger de dentes".
E' que, deante do Mestre, não ha judeus, christãos ou
pagãos, mas irmãos, porque filhos do mesmo pae, aos quaes
o Filho do Homem veiu ensinar aquelle hymno cujas harmo-
nias devem soar até o infinito: "Pae nosso que estaes
no Céo!"
Coherente e justo em todos os seus passos, o Divino Mes-
tre apontou aos seus apostolos e discipulos uma pagina bri-
lhante do seu Evangelho, escripta muito antes que as de Ma-
theus, Marcos, Lucas e João: o exemplo do Bom Samaritano!
"Pois vae, e faze tu o mesmo !", foi a resposta que o Mestre
deu áquelle "doutor da lei", que lhe havia perguntado o que
devia fazer para entrar na posse da vida eterna. Não sabendo
o doutor quem era o "seu proximo”, para amal-o como a si
mesmo, afim de se tornar digno do Reino — consoante o en-
sino de Jesus, eis que o Mestre dos mestres foi buscar lá no
Oriente mesmo, fóra do meio dos pretensiosos "escolhidos”,
um homem extranho e indesejavel, cuja crença não era trombe-
teada, para servir de "modelo”, de "padrão”, de "regra in-
fallivel”! Esse homem, que a posteridade conheceria pelo no-
me de "Bom Samaritano", impressionou á mente do Mestre,
de tal maneira, que veiu a servir de um Evangelho dentro do
Evangelho, porque nesse pagão a humanidade admiraria o
exemplo fiel daquelle que fez o que não o soube fazer o "dou-
tor da lei”. (Luc. 10:28). Este personagem concretiza fiel-
mente o ensino de Jesus: foi louvado e elogiado, porque sa-
bia praticar boas obras, sem se preoccupar com definições de "fé", nem com a nacionalidade ou a crença do seu proxi-
— 176 —
mo!" O Espirito de Verdade mandou dizer áquelle outro pa-
gão, Cornelio, estas palavras que Lucas nos transmitte: "Cor-
nelio, a tua oração foi attendida, e as "tuas esmolas" foram
lembradas na presença de Deus" (Actos, 10:31).
Quem fez menção das "boas obras"? Uma voz do "outro
lado", um espirito materializado, com vestes brancas. E' a con-
firmação do ensino do Mestre: "Haverá maior jubilo no Céo
sobre um peccador que se arrepender, que sobre noventa e
nove justos que não hão mister de arrependimento". (Luc.
15:7) Sim! A egreja invisivel, os nossos irmãos que alli se
acham, vibram de alegria, de sympathia, quando um pec-
cador aqui em baixo, seja de que nacionalidade fôr, professe o
credo que professar, deixando o caminho do peccado, busca
o caminho do amor, da justiça, da misericordia! Ligados aos
de cá pelo sentimento de fraternismo, os de lá não pódem ser
indifferentes ás alegrias que inundam um lar terreno, quando
um irmãozinho, pondo-se no caminho trilhado pelo Prodigo,
procura a casa do Pae, onde sabe existir alimento, perdão e
amor! Dahi essa vibração intensa que agita os habitantes des-
se mundo espiritual que nos rodeia, quando um de nós se
põe no mesmo caminho de Cornelio...
O doutor da lei foi instruido pelo Mestre, com o exemplo
de um pagão: o apostolo Pedro, mesmo depois da descida do
Espirito Santo, ainda não sabia que a palavra "gentio" ou pa-
gão é completamente vazia deante do Pae! Foi preciso que o
Espirito viesse ensinar ao apostolo, por intermedio de um
"pagão", sendo Pedro procurado por mensageiros do paganis-
mo... Só então comprehendeu o grande apostolo "que cm
TODA A NAÇÃO, aquelle que teme a Deus e obra o que é justo,
esse lhe é acceite” (Actos, 10:35). Sim! Só então comprehen-
deu o apostolo aquellas palavras que elle mesmo teve a honra
de ouvir dos labios do Mestre: "Assim, não é da vontade de
vosso Pae que está nos céos, que pereça um destes pequeni-
nos" (Math. 18:14).
— 177 —
Graças a Deus, não encontramos nas paginas do Evange-
lho, nem no exemplo dado pelo Mestre e pelos seus apostolos,
nada que nos autorize a formular uma theoria semelhante a
essa que corre entre os nossos irmãos protestantes, com o nome
de "eleição" ou "predestinação divina"! Graças a Deus, o
Evangelho de Jesus fala-nos de "um peso e uma medida"
para todos os homens!
A SALVAÇÃO E' PELA FE' OU PELAS OBRAS?...
O ENSINO DE JESUS E DOS APOSTOLOS —
"Ora, quando o Filho do homem vier em sua magestade, acompanhado de todos os anjos, se assentrá sobre o throno de
sua gloria; e estando todas as nações reunidas perante elle, se-
parará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas das ca-
bras, e collocará as ovelhas á sua direita, e as cabras á sua esquer- da. Então dirá o rei aos que estiverem á sua direita: Vinde,
bemditos de meu Pae, e tomae posse do reino que vos foi prepa-
rado desde o começo do mundo; porque tive fome e me destes de
comer, tive sede e me destes de béeber; fui hospede, e me recolhes- tes; estive nu e me cobristes; estive enfermo e me visitastes;
estive preso e me fostes ver.
"Então lhes responderão os justos: Senhor, quando foi que
te vimos com fome, e te démos de comer, ou com sêde, e te démos de beber; e quando te vimos hospede e te recolhemos, ou nu, e te
vestimos, enfermo ou preso e te fomos visitar? — E o rei lhes
responderá: Na verdade vos digo, todas as vezes que fizestes isso
a um dos meus mais pequeninos irmãos, foi a mim que fizestes.
"Dirá depois aos que estiverem, á sua esquerda: Retirae-
vos de mim, malditos: ide para o fogo eterno, que foi preparado
para o diabo e para os seus anjos; porque tive fome e não me des- tes de comer; tive sêde e não me déstes de beber; fui hospede e
— 178 —
não me recolhestes; estive nu e não me cobristes; estive enfermo e
preso, e não me visitastes. — Então elles lhe responderão tam- bem: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, hos-
pede, nu, enfermo ou preso, e deixámos de de assistir? Porém,
lhe responderá elle, dizendo: Na verdade vos digo, todas as vezes
que deixastes de prestar essa assistencia a qualquer desses pe- quenos, deixastes de prestar a mim proprio. E então irão esses
para o supplicio eterno, e os justos para a vida eterna" (S.Ma-
theus, cap. 25:31 a 46).
Toda a moral de Jesus se resume na caridade e na hu-
mildade, isto é, nas duas virtudes contrárias ao egoismo e ao
orgulho. Em todos os seus ensinos elle mostra essas virtudes
como sendo o caminho da felicidade eterna. Bemaventurados,
diz elle, os pobres de espirito, isto é, os humildes, porque o
reino dos céos lhes pertence; bemaventurados os limpos de
coração; bemaventurados os mansos e pacificadores; bema-
venturados os misericordiosos; amae ao proximo como a vós
mesmos; fazei aos outros o que desejaes que elles vos façam;
amae os vossos inimigos; perdoae as offensas si quizerdes ser
perdoados; fazei o bem sem ostentação; julgae-vos antes
de julgar aos outros.
"Humildade e caridade, eis o que não cessa de recom-
mendar e de que elle proprio dá o exemplo; orgulho e egoismo,
eis o que não cessa de combater. Quanto á caridade, não só
á recommenda, mas tambem a estabelece distinctamente, em
termos expressos, como uma condição absoluta da felicidade
futura.
"Quanto ao quadro que Jesus apresenta sobre o juizo final,
é preciso, como em muitas outras cousas, pôr de parte a figu-
ra allegorica. A homens como esses, a quem elle falava, ainda
incapazes de comprehender as cousas puramene espirituaes,
devia apresentar imagens materiaes e frisantes, capazes de
impressionar fortemente. Para ser melhor comprehendido, de-
via até não se apartar muito das idéas recebidas, quanto á
— 179 —
fórma, reservando sempre ao futuro a verdadeira interpreta-
ção das suas palavras e dos pontos sobre os quaes não podia
explicar-se claramente. Ao lado, porém, da parte accessoria e
figurada do painel, existe uma idéa dominante — a da felici-
dade que espera o justo e da infelicidade que aguar-
ad o mau.
"Nesse julgamento supremo, quaes são os fundamentos
da sentença? qual o objecto das inquirições? O juiz pergunta
si foram satisfeitos taes ou quaes formalidades? Si foi mais
ou menos observada tal ou qual pratica exterior? Não; ape-
nas investiga uma cousa — a pratica da caridade, e pronuncia-
se, dizendo: "Vós que assististes aos vossos irmãos, passae á
direita: vós que fôstes duros, passae á esquerada. Informa-se
elle da orthodoxia da fé? Faz alguma distincção entre o que
crê de um modo e o que crê do outro? Não, porque Jesus col-
loca o samaritano, olhado como heretico, mas possuidor do
amôr do proximo, acima do orthodoxo, a quem falta a carida-
de. Portanto, Jesus faz da caridade não somente uma das con-
dições do salvamento, mas a unica condição: si houvesse ou-
tras a preencher, elle as citaria. Si colloca a caridade na primei-
ra ordem das virtudes, é porque ella encerra implicitamente
todas as outras — humildade, doçura, benevolencia, indulgen-
cia, justiça, etc., e porque é a negação absoluta do orgulho e
do egoismo.
(Ensina-nos Vinicius: “Caridade! Quem ousará des-
crevel-a? Sim, ninguém logrará fazel-o porque caridade é
amôr, e o amôr não se define. S. João Evangelista querendo
dar uma idéa da Divindade, definiu o indefinivel com o inde-
finivel, dizendo: Deus é amor.
“E o amôr é a synthese de todas as virtudes, visto como,
estas não são, em realidade, outra cousa senão formas ou as-
pectos vários do mesmo amôr. Assim, por exemplo, a fé é o
poder do amôr; a piedade é o impulso do amôr; a paciência
— 180 —
é a resistencia do amôr; a humildade é a simplicidade do amor;
o perdão é a generosidade do amor. O amor é a synthese de
todas as virtudes, porque fora do amôr não ha, em verdade,
virtude alguma. O amôr está para todas as virtudes como a
luz está para os revérberos que della emanam. O amôr está
tambem para as virtudes como o aroma está para a flôr. As
flores de papel podem ser bellas, podem imitar perfeitamente
a obra da natureza, a ponto de illudir a vista. Mas, onde o seu
perfume? Este não se imita, porque é da essencia intima da
flôr, como o verdadeiro amor é do fôro intimo do coração")
"Si eu falasse todas as linguas dos homens e mesmo a dos
anjos, e não tivesse caridade, seria como o sino que sôa ou como
o cymbalo que retine; e si eu tivesse o dom de prophecia, e pene-
trasse todos os mysterios, e tivesse perfeita sciencia de todas as
cousas, si tivesse ainda toda fé, a ponto de transportar montanhas,
E SI EU NÃO TENHO CARIDADE, NADA SOU; e si eu distribuisse
os meus bens para alimentar os pobres, e meu corpo fôsse entre-
gue para ser queimado, si não tenho caridade, nada disto me apro-
veita. A caridade é paciente, é benigna, é beneficente; a caridade
não é invejosa, não é temeraria, não é precipitada, não se enso-
berbece, não é desdenhosa, não busca os seus proprios interesses,
não se irrita, não suspeita mal; não fólga com a injustiça, mas
se regosija com a verdade. Tudo supporta, tudo crê, tudo espera,
tudo soffre"
"Agora permanecem as tres virtudes: a fé, a esperança e
a caridade; porém, A MAIOR DELLAS É A CARIDADE." (I S. Pau-
lo aos Corinthios, cap. 13, vers. 1-7 e 13).
"Tão bem comprehendeu São Paulo essa grande ver-
dade, que disse: Si eu falasse a lingua dos anjos; si tivesse
o dom de prophecia e conhecesse todos os mysterios; si tives-
se toda a fé até o ponto de transportar montanhas, e si não ti-
vesse caridade, nada eu seria. Entre estas tres vittudes: a fé,
a esperança e a caridade, a maior delias é a caridade.” Elle
colloca dest'arte, sem equivoco, a caridade acima mesmo da
— 181 —
fé, visto como, a caridade está ao alcance de todo o mundo,
do ignorante e do sábio, do rico e do pobre, porque é inde-
pendente de toda a crença particular. Faz mais: define a ver-
dadeira caridade, apresentando-a, não somente na benefi-
cencia, mas tambem na reunião de todas as qualidades de co-
ração, na bondade e na benevolencia dispensadas ao proxi-
mo. (A. Kardec — 'O Evangelho").
Claro, clarissimo o ensino do apostolo Paulo, porque
está de pleno accôrdo com o de Jesus. O mesmo apostolo
usou de phrases incisivas, que não admittem duvida alguma
acerca de sua affirmativa solenne, de que a caridade é maior
do que a fé e a esperança. Eis outras passagens:
"Porque TODA a lei se encerra NESTE só preceito: Amarás
ao teu proximo como a ti mesmo." (Gálatas, 5:14). "Porque
estes mandamentos de Deus: Não commetterás adulterio:
Não matarás: Não furtarás: Não dirás falso testemunho:
Não cubiçarás: e si ha algum outro mandamento, TODOS ELLES
VEEM A RESUMIR-SE nesta palavra: Amarás a teu proximo
como a ti mesmo. O amor do proximo não obra mal. LOGO, A
CARIDADE É O CUMPRIMENTO DA LEI." (Romanos, 13:9, 10).
Note o leitor esta particularidade, altamente significati-
va: depois de citar a metade do decalogo, diz Paulo: "e si ha algum outro mandamento". Linguagem mais positiva não
seria possivel!
Continúa o apostolo: “Manda aos ricos deste mundo
que não sejam altivos, nem esperem na incerteza das rique-
zas, senão no Deus vivo, que nos dá abundantemente todas
as cousas para o nosso uso; que façam bem, que SE FAÇAM
RICOS EM BOAS OBRAS, que dêem, que repartam francamente.”
(I Timotheo, 6:17, 18). Ora, perguntemos nós: fazer o bem e fazer-se ricos em boas obras, não significa collocar-se o homem
sob o imperio da caridade? E' o ensino de Jesus: que a ver-
dade que ha em vós seja revelada aos homens pelas vossas
— 182 —
boas obras, por meio das quaes elles venham a glorificar a
vosso Pae celestial. (Math. 5:16).
O livro historico do Novo Testamento faz referencias a
uma discipula que se tornou amada e admirada, não pelos
artigos do seu credo, mas pela pratica da caridade, mani-
festada em boas obras, em assistencia aos necessitados. (Ac-
tos dos Apostolos, cap. 9 :36). "Ora, o fim do preceito — diz
Paulo — é a caridade nascida de um coração puro, de uma
boa consciencia e de uma fé não fingida." (I Tim. 1:5). "Mas,
SOBRE TUDO ISTO — diz o mesmo apostolo — revesti-vos da
caridade, QUE Ê O VINCULO DA PERFEIÇÃO." (Colossenses,
cap. 3:14). Aqui está o ponto culminante da extraordinaria
apologia da caridade feita pelo apostolo na carta aos Corin-
thios. Depois de falar dessa virtude, que sobrepuja a todas
as outras, nesta carta aos Colossenses o ardoroso propaga-
dor do Evangelho usa de um superlativismo que põe ponto
final no capitulo respeitante á excelsitude da caridade, de-
clarando que é essa virtude que constitúe o VINCULO DA
PERFEIÇÃO MORAL! (Math., 5:48).
Concordam com esse apostolo os seus dignos collegas,
Pedro e Tiago. Diz o primeiro: “E, antes de todas as cousas,
tende entre vós mesmos mutuamente uma constante cari-
dade, PORQUE A CARIDADE COBRE A MULTIDÃO DE
PECCADOS.” (I S. Pedro, 4:8)
Mostra-nos Tiago o bello quadro onde se inscrevem os
nossos destinos: o das boas obras, fructos da caridade, que
por sua vez são emanação do amôr ao proximo. "A religião
pura e immaculada deante de nosso Deus e Pae, é esta, diz o
apostolo: visitar as viuvas e os orphãos nas suas necessidades e
afflicções, e guardar-se a si mesmo isento da corrupção do mun- do." (Tiago, 1:27). A clareza meridiana dessa passagem dis-
pensa qualquer commentario. O pensamento do apostolo não
admitte dois sentidos. A exegese e a hermeneutica, como
elementos interpretativos, são a mesma coisa na Judéa, na
Grecia ou no Brasil.
— 183 —
Para fechar estas linhas, cumpre-nos dizer duas pala-
vras acerca dos dois apostolos, Paulo e Tiago. Estão ambos
de accôrdo, com relerencia ao methodo de salvamento do
homem, pela pratica da caridade.
Pauto escreveu cartas particulares, cartas a certas e de-
terminadas egrejas; Tiago escreveu a sua carta não a uma
nem a duas egrejas, mas ás doze tribus dispersas pelo mundo, o
que vale dizer: A TODAS AS EGREJAS. Dahi a introducção que
se lê em sua epistola: "Epistola Cathollca", isto é, "Epistola
Geral". Dirige-se elle não a uma parte mas a toda a chrlstan- dade.
Paulo foi apostolo “extraordinario", apostolo “especial",
mas não acompanhou pessoalmente o Divino Mestre, porque
foi chamado para o apostolado depois da tragedia do Calva-
rio. O mesmo não se póde dizer com referencia a Tiago, que
acompanhou Jesus em seus passos, ouviu-lhe a palavra,
admirou-lhe o exemplo, observou-lhe a conducta, recebendo
d'EIle o ensino directo acerca da vida futura, ao mesmo tem-
po que aprendeu as lições relativas á posse dessa vida e ás
condições de nella ser ingressado todo aquelle que a deseja
sinceramente. Este apostolo nos ensina o processo de salva-
mento do homem. “A religião pura e immaculada deante
de Deus” — diz elle — torna-se conhecida de maneira in-
confundivel, não pelos artigos de fé formulados arbitraria-
mente pela orthodoxia humana, não pela fórma especial de
suas exterioridades ritualisticas, não pelas apparencias de
seu formalismo dogmatico; “a religião pura e immaculada”, a
religião que eleva porque edifica, a religião que salva porque
instrue na escola do amôr, fonte originária de todas as doçu-
ras moraes, é a religião prégada e exemplificada pelo Mes-
tre: aquella mesma por Elle indicada ao doutor da lei, qüe
desejava saber qual a verdadeira, qual a pura, qual a imma-
culada religião que conduz o homem ao Reino de Deus — a
do Bom Samaritano! E' essa a religião prégada pelo Mestre
dos mestres, é essa a religião “pura e sem mancha” deante
— 184 —
de Deus, porque é a religião que vive nos dominios do amôr
para com Deus e para com o proximo. "Deus é amôr, Deus é
caridade", diz o coliega e companheiro de Tiago, e sendo a
religião o encontro de dois amores — o de Deus que busca
ao homem e o do homem que procura a Deus — , aquelle
que vive pelo amôr e para o amôr, estará sempre com a "re-
ligião pura e immaculada”. O Bom Samaritano, apontado
como modelo por Jesus, só sabia "praticar o amôr e a cari-
dade", porque o seu coração sentia que, de facto, Deus é amôr
e caridade”. (I. S. João, 4:8). Repete o apostolo Tiago o en-
sino que aprendeu com o seu Mestre: "E' pelos fructos que
se conhece a arvore, seja esta uma laranjeira, uma pereira,
um mamoeiro, uma castanheira.” Si o fructo é bom, não
nos preoccupemos com as propriedades biologicas do pro-
toplasma vegetal, nem tampouco nos incommodemos com
as funcções chimica e mecanica das raizes. Os fructos são
bons? Não se faz preciso o conhecimento dos mysterios que a
seiva vegetal encerra...
Consequentemente, eis o ensino claro de Tiago: "a
religião pura e incorruptivel”, é a da pratica da caridade em
sua mais ampla significação: é visitar e soccorrer as viuvas e
os orphãos em suas necessidades e afflicções, e conservar-se a
si mesmo isento das corrupções deste mundo. E' a caridade
para com o proximo e o policiamento de si mesmo. Desdobra e
completa elle o ensino de Jesus, encerrado nesta synthese
admiravel do grande Paulo: "A caridade é o cumprimento da lei” dada por Jesus, isto é, do "seu” mandamento: que
nos amemos mutuamente.” (S. João, 15:17)
"Viuvas e orphãos” não são somente os que estão priva-
dos da assistencia do chefe do lar; "viuvas e orphãos” são
todos os necessitados, os desamparados, os afflictos e affligi-
dos, os perseguidos e ameaçados. "Viuvas e orphãos” — eis o
symbolo da justiça desamparada! "Viuvas e orphãos” eis o
emblema sublime da virtude ameaçada pela cobiça c pela
hypocrisia do homem carnal! "Viuvas e orphãos” — eis a
— 185 —
imagem viva e impressionante dos pobres e padecentes, dos
fracos e humildes, dos fartos em bens materiaes mas famintos
de consolações!
Affirma o apostolo Tiago que o homem é justificado, é
salvo pelas boas obras e não pela fé somente. E' que, pela
faculdade medianimica da videncia, contemplava o quadro
que appareceria no mundo, esse que os nossos olhos contem-
plam hoje e que "afflige o pensador benevolo e o historiador
que tem coração: o da grande quantidade de religiões posi-
tivas que se contradizem, de sacerdocios que se anathemati-
zam, do fanatismo que incita os povos a se despedaçarem uns
aos outros, em nome de um Deus que se chama caridade"!
"Si algum, pois, cuida que tem religião, não refreando a
sua lingua, mas seduzindo o seu coração, a sua religião é vã."
"Que aproveitará, irmãos meus, a um que diz que tem fé,
si não tem obras? Acaso podel-o-á salvar a fé??" "Poderá,
logo, algum dizer: Tu tens a fé e eu tenho as obras; mos-
tra-me tu a tua fé sem obras, e eu te mostrarei a minha
fé pelas minhas obras.” "Não é assim que nosso pae Abrahão
foi justificado pelas obras, offerecendo o seu filho Isaac sobre o
altar ? Não vês como a fé acompanhava as suas obras, e que a
fé foi consummada pelas obras ?” "Não vêdes como petas obras é justificado o homem, e não pela fé somente ? Do mes-
mo modo até Rahab, sendo uma prostituta, não foi ella jus-
tificada petas obras, recebendo os mensageiros, e fazendo-os
sair por outro caminho?” (Tiago, 1:26; 2:14, 18, 21, 22, 24,
25).
"Vinde, bemditos de meu Pae, porque vivestes uma vida
de amôr e caridade, porque amastes o vosso proximo e vos li-
vrastes da corrupção da carne" Taes as palavras do Salvador.
Foram essas palavras que inspiraram o ardoroso apostolo
das Gentes a lançar ao mundo aquelle divino "accordam",
baseado na Jurisprudencia do Evangelho (Math. 25:31-46):
"Fora da caridade não ha salvação", porque a caridade é a
maior, a mais beolla, a mais sublime das virtudes ! "Permane-
— 186 —
cem estas tres virtudes: a fé, a esperança e a caridade. Po-
rém, a maior delias é a caridade" — porque a Lei Suprema
dada pelo Mestre dos mestres está escripta com a palavra
Amôr, que é a essencia da Caridade! (S. Matheus, 22:37-40).
O VELHO TESTAMENTO ABOLIDO POR CHRIS-
TO — FALA UM EMINENTE PASTOR PROTESTAN-
TE DO BRASIL. O QUE SIGNIFICA A PROHIBIÇÃO
DE MOYSE'S —
Em um dos primeiros artigos que escrevemos no "Diario
da Noite", dissemos, escudado no Evangelho e na autoridade
do revmo. R. Pitrowsky, pastor da Egreja Baptista de En-
genho de Dentro (Rio de Janeiro), em seu livro "O Sabbatis-
mo á Luz da Palavra de Deus", que o Velho Testamento
não mais vigóra; que foi escripto para o povo judeu e não
para os christãos. Preciso se faz que digamos mais alguma
coisa, afim de que o leitor conheça melhor a razão por que,
nestas paginas, collocamos o Evangelho acima de todas as
theorias e de todas as especulações baseadas nas ordenanças
do Antigo Concerto. Fale por nós esse ministro e pastor:
"Devemos notar que toda a lei de Moysés recebeu de
Deus, foi um concerto feito entre Deus e Israel. Este con-
certo acha-se registrado em Ex. 19:1 até o cap. 24:8, no qual
se encontram tambem os dez mandamentos.” "Depois de Israel
ter saido do Egypto e chegado ao monte Sinai, Deus falou a
Moysés no monte, apresentando-lhe a proposta do concerto
para o povo de Israel, dizendo: “Assim falarás á casa de Jacob, e annunciarás aos filhos de Israel: Vós tendes visto o
que fiz aos egypcios, como vos levei sobre asas de aguias, e
vos trouxe a mim: agora pois, se diligentemente ouvirdes a
minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha
propriedade peculiar dentre os povos: porque toda a terra é
— 187 —
minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e povo santo Es-
tas são as palavras que falarás "aos filhos de Israel" (Ex.
19:3-6)
"Esse concerto foi feito entre Deus e Israel e não com
iodos os homens. Isto se vê claramente nas expressões como:
"casa de Jacob", "filhos de Israel", "Vós", "comvosco”, e
especialmente a phrase "vós sereis a minha propriedade
peculiar dentre todos os povos". Ora, se o concerto fôsse feito
com todos os povos, como é que podia ser com "um” de entre
os povos?!" "Deus fez a proposta a Israel, que a acceitou.
(Ex. 19:3-6; 24:3-8) e não a todos os homens.”
"O concerto registrado em resumo nestes capitulos é o
mesmo de toda a lei de Moysés, desde o Genesis até o Deute-
ronomio.” "Portanto o antigo concerto não comprehendia
só os dez mandamentos, mas todas as outras leis cerimoniaes,
civis e moraes:" "Esse concerto, com as suas leis, não era
somente uma lei nacional de Israel (Ex. 19:3-6) e local, mas
tambem Temporaria; porque as beçams e as maldições,
vindas sobre os que o guardassem e o transgredissem, eram
puramente temporarias emquanto nesta vida corporal; e
nenhuma bençam ou maldição ha que se refira á vida depois
da morte. Leia, sem falta, Deut. 28:1-68)".
"Do primeiro concerto foi mediador Moysés, e era na-
cional, local e temporario: mas do novo concerto é mediador
Jesus, e é portanto internacional, geral e eterno; porque delle
todas as nações da terra participam, conforme o concerto incon- dicional que Deus fez com Abrahão, 430 annos antes do
concerto condicional da lei: "Em ti (Abrahão) serão bemditas
todas as familias da terra.” (Gen. 12:3). Paulo nos diz que
este é "o concerto confirmado por Deus em Christo" e o qual,
a lei que veiu 430 annos depois, não invalidou nem aboliu.
(Gal. 3:17). Os gentios, pois, (os que não são israelitas) não
têm nada que vêr com o concerto mosaico, mas sim com o
que Deus fez com Abrahão e que encontrou o seu cumpri-
mento em Jesus."
— 188 —
"Este concerto é melhor e com melhores promessas do
que o antigo. (Heb. 8:6). “O primeiro era reprehensivel (vers.
7) isto é, não alcançou o fim desejado, pela fraqueza dos
homens; por isso havia necessidade de um outro concerto
melhor. Este concerto melhor está escripto no coração (vers.
10, 11), portanto, os que estão nelle não dependem da letra
que mata, mas do Espirito que vivifica. São guiados pelo
Espirito de Deus, para os quaes já não ha nenhuma condem-
nação. (Veja Rom. 8:1, 2, 9-14)
"Sendo estabelecido o novo concerto, "envelheceu o pri-
meiro" (v. 13) portanto esvaeceu-se, foi posto de lado, saiu
do uso e vigôr, e com elle certamente o sabbado, que lhe é
uma parte integrante."
“Ainda mais. Reproduzimos uma parte de Hebreus,
12:18-24. Falando aos crentes em Jesus Christo, diz: “Não
chegastes ao monte (Sinai, onde foi dado o primeiro con-
certo), mas chegastes ao monte Sião, e á cidade do Deus vivo,
á Jerusalem celestial (vers. 22), e a Jesus, o Mediador do
Novo Testamento, e ao sangue da aspersão." (vers. 24). (Veja
tambem, Gal. 4:21-26).
“Sim, os crentes, tanto judeus como gentios, que estão
no novo concerto, chegaram a Jesus, que sellou o novo con-
certo ou Novo Testamento com o seu sangue em Jerusalem, o
monte de Sião, e não ao monte de Sinai, onde Moysés sellou
o Velho Concerto com o sangue de animaes. “Se estamos,
pois, debaixo do novo concerto ou do Novo Testamento,
singuem nos venha então illudir e confundir, dizendo que
somos obrigados a guardar todo ou parte do velho concerto
ou Velho Testamento! “Porque Deus não é Deus de con-
fusão, senão de paz”. (I Cor. 14:33). “Assim, nem os proprios
judeus estão mais na obrigação de guardar a lei se acceitaram
Christo, e muito menos nós que nunca fomos judeus e a quem
nunca foi dada a lei de Moysés, senão só a lei de Christo
pelo novo concerto!”
— 189 —
"O leitor queira ter sempre em mente o facto de que
os gentios nunca estiveram debaixo da lei mosaica. Por isso a
expressão: "os debaixo da lei" só se refere a Paulo e á sua
nação, Israel. (Gal. 4:5)."
"A lei findou na cruz. Devido á sua importancia vou
reproduzir aqui duas passagens por extenso: "Havendo
(Jesus) riscado a cédula (a lei) que contra nos havia nas or-
denanças, a qual de alguma maneira nos era contraria, e a
tirou do meio de nós, encravando-a na cruz. Portanto nin-
guem vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos
dias de festa, ou da lua nova ou dos sabbados, que são som-
bras das coisas futuras." (Col. 2:14-17) “Porque, se o que era
transitorio foi para gloria, muito mais é em gloria o que per-
manece. Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia
no falar. E não somos como Moysés, que punha um véo so-
bre a sua face, para que os filhos de Israel não fitassem os
olhos no fim do que era transitorio. Porém, os seus sentidos
foram endurecidos: porque até ao dia de hoje o mesmo véo
fica por levantar na lição do Velho Testamento, o QUAL FOI
POR CHRISTO ABOLIDO". (II Cor. 3:11-14). “No verso 6 Paulo
diz que elle é ministro do Novo Testamento, não da letra (da lei)
que mata, mas do espirito que vivifica, e que excede o mi-
nisterio da morte (da lei). (vs. 3, 9).
“Os versos 3 e 7 mostram positivamente que Paulo se
referia aos dez mandamentos pelas expressões: “gravados
com letras em taboas de pedra." Veja verso 13 e compare
com Ex. 34:27-35.”
“E esta mesma lei, diz Paulo, era “o ministerio da morte",
(vs. 7) e “o ministerio da condemnação." (vs. 9). No verso
elle, referindo-se a esta lei, diz positivamente que "era transitoria". Ora, o que é transitorio, como póde ser perma-
nente?!"
“Declara ainda o verso 14 que o "Velho Testamento"
ou velho concerto, que comprehendia justamente a lei, "foi
— 190 —
por Christo ABOLIDO”. "Veja tambem Ephes. 2:15, onde diz
que a "desfez”; Hebr. 7:14, que é "abrogada”; e Act. 15:1-
29, onde "os apostolos e os anciãos" (v. 6) e o “Espirito San-
to" (v. 28) dizem ser a lei “um jugo que nem seus paes nem
elles podiam supportar”; (v. 10) e que "não se deve perturbar
aquelles, dentre os gentios, que se convertem a Deus”, com
questões da lei: (v. 19) porque estavam isentos della. Ora, o
que foi abrogado, desfeito e abotido, deixa de continuar como
tal.”
"Deus publicamente ordenou que ouvissemos A CHRISTO e
não diz que ouvissemos á lei” (Marc. 9:2-13). Estando Jesus
no monte da transfiguração com alguns dos seus discipulos,
appareceram então Moysés e Elias falando com elle. Elias
representava “os prophetas” e Moysés “a lei”. Veiu uma
voz do céo que disse: “Este é o meu Filho amado; a elle
ouvi.” Nisto os representantes da lei e dos prophetas desap-
pareceram; e os discipulos “já não viram ninguem, senão
só a Jesus. Sim, todos os crentes devem ouvir só a Jesus! Isto
é um facto historico, porém illustra bem a nossa relação para
com a lei.”
“Temos pois razões sufficientes para dizer com ousadia
que não estamos obrigados a guardar a lei de Moysés."
“Sim, o crente em Jesus vive na lei do espirito, que é superior
a toda e qualquer outra lei; portanto ha de viver mais santo
do que os sabbatistas ou os judeus, porque elles têm como
guia somente a letra morta da lei, a “letra que mata”, por-
que ella só accusa o homem e o condemna sem dar-lhe força
para livrar-se da transgressão.” “Paulo assevera: “Quando
os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que
são da lei, não tendo estes lei, para si mesmos são lei.” (Rom.
2:14) Duas vezes affirma Paulo o facto que os gentios "não
têm lei”! Póde haver uma linguagem mais clara do que esta?
Se os gentios não tinham lei nos dias de Paulo, lambem
não a tinham antes, porque a Biblia não diz que foi dada a
elles, senão só a Israel (Deut. 5:1-3) e nem diz que em algum
— 191 —
dia lhes foi tirada. Portanto os gentios nunca estiveram e
nem estão hoje debaixo da lei do Sinai, senão só debaixo da lei da consciencia". "O sermão da montanha, em Math. caps.
5 a 7, é tão superior ao decalogo como o é o Evangelho ao ju-
daismo. Vemos nelle prohibido : o homicidio (5:21, 22), o
adulterio (5:27, 28), o juramento (5:34), a hypocrisia (6:1-5), a
cobiça (6:19-34) e qualquer acto mau (7:12).
"Jesus deu "mandamentos aos apostolos" (Actos, 1:2).
E temos de guardal-os, pois Jesus disse: "Si me amaes, guar-
dae os "meus" mandamentos”. Aquelle que tem os "meus mandamentos” e os guarda, esse é o que me ama. "Si guar-
dardes os "meus mandamentos”, permanecereis no meu amôr.
"Vós sereis meus amigos si fizerdes o que "eu” vos mando.”
S. João 14:15-21 e 15:10, 14) (Revmo. Pltrowsky, obra citada).
A palavra desse pastor protestante deixou provado,
exuberantemente, que o Velho Testamento não póde ser
invocado por aquelles que pretendem argumentar com o
Evangelho. Os christãos nada teem que ver com a legislação
dada ao povo daquella epocha. Não queiram, pois, os adver-
sarios do espiritismo, encontrar no Velho Testamento, base
para combater doutrinas que a propria legislação dos judeus
não prohibia, porque não podia prohibir a propagação da
verdade. Si os textos legaes da Antiga Alliança devessem vi-
gorar em nossos dias, Jesus tel-os-ia incluido no seu Evange-
lho. Não o fez, mas, ao contrario, revogou-os. A tal prohibi-
ção de que nos fala o Deuteronomio em seu capitulo 18, ver-
so 11, sobre o indagar dos mortos a verdade, nada aproveita
aos nossos irmãos que combatem a doutrina espiritista, pela
razão mesma de não ser o espiritismo alvejado por Moysés,
como "inimigo” da verdade. Moysés não se preoccupava com a vida futura. Sua missão foi differente da de Jesus. Aquelle
não podia falar sobre a immortalidade a um povo materia-
lizado, que vivia para os sentidos e não para a espiritualidade.
Moysés só se preoccupava com a vida "presente”. Para des-
materializar um povo de costumes tão grosseiros, a existência
— 192 —
de um propheta seria curta demais, porque essa tarefa, tão
grande quanto importante, não poderia ser realizada senão
pelos seculos. Não se reformam costumes a golpes de lei.
Sabia o legislador dos hebreus que outros homens tomariam o
seu lugar.
Si a tão decantada prohibição de Moysés e de Isaias foi
feita ao povo escolhido, é porque... não seria impossivel a
communicação com os chamados mortos. As leis, segundo o
conceito que aprenderamos com os nossos mestres, em o nosso
curso, do 1.° ao 5.° anno, na Faculdade de Direito, as leis, di-
ziamos, reflectem as necessidades sociaes. Tratam ellas, sob
os seus dois aspectos — o dispositivo e o punitivo — de casos
previstos e previsiveis. As leis não prohibem o impossivel,
porque seria uma prohibição absurda. Exemplo: ha leis que
regulam o transito dos vehiculos pelas vias publicas. Nenhuma
lei prohibe o transito desses vehiculos pelos telhados, pois
essa prohibição não passaria de um repolhudo absurdo, por-
que não é possivel converter os telhados em pista para... au-
tomoveis. Nenhuma lei prohibe que os trens e os bondes ele-
ctricos corram fora dos trilhos...
Por uma abstracção mental, colloquemos nos labios de
Moysés o bellissimo sermão da montanha prégado 20 seculos
depois e que Matheus registra em 111 versiculos, nos capitu-
los 5, 6, e 7. Quaes seriam as consequencias da pregação do
grande guia do povo hebreu?... A semente daquellas subli-
mes verdades teria encontrado terreno adequado para germi-
nar, crescer e fructificar?... Si, muitissimos seculos depois
das instrucções de Moysés, o povo deu aquelle tratamento a
Jesus, que não mandou matar a ninguem, nem mesmo aos seus
algozes; si, após tantos seculos de leis, de ameaças, de morti-
cinios e de prophecias, o povo não acceitou o jugo suave do
Mestre manso e humilde de coração (Math. 11:29-30), que tra-
tamento deveria esperar Moysés, si houvesse falado com a
doçura do Christo?...
— 193 —
Mais uma pergunta: que tratamento dariam hoje os ho-
mens a Jesus, si este viesse repetir pessoalmente aquelle
sermão?...
Si nós ainda não nos achamos em condições de praticar
fielmente os preceitos da sublime moral do Evangelho — que
diremos do povo a quem falava Moyses?... Concordarão
comnosco os adversarios do espiritismo: a prohibição de Moy-
sés, com referencia á communicação com os mortos, teve a sua
razão de ser, e razão muitissimo logica, porque racional. Fi-
nalmente, a logica mesma vem pôr termo a esta questão, sem
usar de recursos fóra do seu alcance. Considere o leitor que a
lei decretada por Moysés sobre a prohibição da communica-
ção com os chamados mortos, era transitoria, estabelecida es-
pecialmente para um determinado povo, attentas ás circums-
tancias occasionaes e nunca como um preceito divino, de eter-
na vigencia, pois não figura esse preceito entre os dez manda-
mentos que formam "a Lei". O argumento maximo que a lógi-
ca nos offerece, está contido nesta sentença: Só se prohibe
o que é possivel de se realizar!...
ADULTERIO?...
Não ignoramos o poder escaldante dessa palavra. No
caso vertente, esse poder fica bastante attenuado, porque não
apparecem os nomes dos autores...
Em o segundo anno de nossa aprendizagem evangelica
(1902), vimos certa vez um irmão presbyteriano bastante ma-
guado, porque havia acabado de lêr as seguintes palavras,
escriptas por D. Frei Joaquim de Nossa Senhora de Naza-
reth: — "Os protestantes, assalariados pela sociedade bibli-
ca de Londres, andam-nos mettendo á cara Biblias em que se
dizem quantos disparates ha contra a religião que nossos paes
nos ensinaram, e nós sabemos que é a unica verdadeira, fóra
da qual não ha salvação. Elles querem-nos impôr quasi á for-
— 194—
ça Biblias falsificadas, viciadas, truncadas, que falam contra
o papa, contra a Egreja, contra a Confissão, contra a Eucha-
ristia, contra Jesus Christo, contra a Maria Santissima, con-
tra os santos, contra tudo quanto ha bom".
Essas palavras, que se encontram no “Prefacio” do No-
vo Testamento traduzido por esse frade, bispo de Coimbra,
produziram dolorosa impressão no espirito do nosso irmão
presbyteriano, que chegou a duvidar da sinceridade do ardoro-
so representante da Egreja Catholica na gloriosa cidade por-
tugueza. E' que taes palavras, collocadas sob os olhos do lei-
tor alli nas primeiras paginas, denunciavam o proposito do
traductor: o de despertar certa "prevenção" dos catholicos
contra a Sociedade Biblica de Londres, apontada como fa-
brica de blasphemias.
Tambem nós nos sentimos maguado nessa occasião, ante
essa attitude do operoso bispo. E' que houve demasias nesse
juizo a que elle submetteu a "famigerada" Sociedade londri-
na. Procurámos um exemplar que fôsse dessas Biblias aggres-
sivas e atrevidas, e chegámos mesmo a prometter uma grati-
ficação a quem nos apresentasse uma pagina sequer, do volu-
me sagrado, onde pudessemos ler aquelles ataques ao papa,
a Jesus Christo, á Maria Santissima, etc. Tudo em vão. Com
as nossas duvidas acerca da solidez das affirmativas do sacer-
dote catholico, radicou-se-nos a convicção de que este também
lutára com as mesmas difficuldades para obter um exemplar
daquella pastagem venenosa, pois de outra fórma teria elle
citado ou transcripto alguns textos no seu "Prefacio", afim
de pôr de sobre aviso as suas ovelhas, a cujos olhos apresenta-
ria uma amostra. Certamente ouvira elle de alguem, que as
Biblias protestantes trazem aquelle amontoado de insultos
e blasphemias. Ouviu e passou adeante...
Mas, a proposito de Biblias viciadas e truncadas, occorre-
nos á memoria o havermos lido um judicioso artigo do inspi-
rado jornalista e brilhante orador sagrado, Vinicius, o incan-
— 195 —
savel evangelista piracicabano. Começou elle um de seus ar-
tigos magistraes, com a citação de umas phrases de Rénan,
referentes a certas interpolações e vicios por este encontrados
em certas edições das Escripturas Sagradas, vicios e interpel-
ações a que deu o nome de "fraudes piedosas".
Diz o grande escriptor e philosopho francez que taes frau-
des são attribuidas a traductores apaixonados que, victimas
de idéas preconcebidas, vão truncando as versões afim de as
accommodar ás suas crenças pessoaes ou aos dogmas da egre-
ja a que pertencem.
Diremos nós: tratando-se de desvio da linha de fidelidade
aos ensinos do Divino Mestre, taes fraudes merecem, com to-
da a propriedade, a denominação de "adulterio", c adulterio
bem caracterizado. Esta denominação não é obra nossa, como
vae vêr o leitor. Julgando-a, porem, bem apropriada ao ca-
so, fazemol-a nossa.
Diz um illustrado educador, regente da cadeira de Theo-
logia do Seminario da Egreja Presbyteriana Independente Bra-
sileira:
"Na Biblia esse nome (o de prostituta) é dado ás pessoas
e Egrejas christãs que se apartam do amôr a Jesus e obedien-
cia ás suas leis. Christo, como o esposo espiritual da Egreja,
exige desta toda a fidelidade em doutrina e culto a sua pessoa.
A alma ou a Egreja que não tem essa fidelidade é uma espo-
sa infiel — uma prostituta.
"A Egreja de Roma como a que mais longe levou a in-
fidelidade de esposa de Jesus, a ella cabe, com justiça, o nome
de grande Prostituta. No Apocalypse, pois, o Anti-Christo e
a Egreja Romana ou o papa são entidades distinctas: urna
é a besta, a outra uma prostituta." (Alfredo Borges Teixei-
ra — "Maranatha ou o Senhor vem" — Imprensa Methodis-
ta — S. Paulo, pag. 37).
— 196 —
Não pretendemos entrar na apreciação desse ponto theolo-
gico esflorado pelo nosso distincto irmão. O que desejamos é
simplesmente dizer que, nessa questão de "fidelidade" e de
"infidelidade" á doutrina de Jesus e ao cumprimento do
"seu novo mandamento”, a ninguem é dado falar... em ul-
timo lugar. Infidelidade ao ensino do Evangelho, quem não
a commette? Não commettemos nós, a cada passo, violação
do conhecidissimo preceito “Não julgueis pelas apparencias,
mas segundo a recta justiça?... Sábias ponderações do pas-
tor Charles Brown: "As leis que régem a vida são boas, por-
que se fôssem perfeitamente comprehendidas e conhecidas, a
vida seria nobre, bella e cheia de gozo”.
Vinicius aponta vicios e interpolações em algumas tra-
ducções protestantes da Biblia. Servindo-nos das edições apon-
tadas pelo esclarecido e sensato jornalista, accrescentaremos,
por nossa conta, os textos biblicos que fomos buscar em outras
edições das Sagradas Escripturas, cujos exemplares estão á
disposição de quem os queira examinar. Com aquelle espirito
de caridade christã que admiramos no distineto jornalista e
orador, o mencionado artigo traz esta advertencia, que põe
em relevo os seus escrupulos em pról da liberdade de pensa-
mento alheia: "Citando, pois, algumas dessas falhas e vicios,
não pretendemos molestal-os (aos irmãos protestantes) mas
esclarecer áquelles que estudam o Evangelho sem idéas pre-
concebidas, buscando, através da letra que mata, o espirito
que vivifica.”
Veremos, pois, que os traduetores ou editores protestan-
tes não têm guardado a linha inflexível traçada pela luleli-
dade exigida pelo Evangelho.
A edição protestante que maior valor deve possuir, é a do
pastor João Ferreira de Almeida, porque foi feita directamen-
te do grego.
A proposito do valor dessa traducção, transcreveu o
"Estandarte", n.° 21, de 1928, um artigo do sr. Eduardo Mo-
— 197 —
reira, na "A Madeira Nova", em cujos periodos lêmos o que
disse Theophilo Braga acerca da referida traducção: "o maior e mais interessante documento para se estudar a lingua portu-
gueza no secuto XVII". Segundo o articulista, o grande Theo-
philo considera a traducção do pastor Almeida "um magnifi-
co monemento literario” Concordamos plenamente com esse
juizo.
Mais um trecho desse artigo: "Depois, evangelizando o
povo de muitos lugares (refere-se a Almeida), escrevendo
muitos trabalhos, fazendo um magnifico trabalho epistolar
onde não podia ir pessoalmente, não deixou de se enfronhar
nas linguas grega e hebraica, saindo em 1681, quando elle ti-
nha 53 annos, a 1.ª edição da sua traducção directa do Novo
Testamento". (Estes gryphos são nossos).
Não ha negar: a melhor e mais autorizada traducção
deve ser essa. As edições posteriores poderiam, quando muito,
actualizar certas expressões da linguagem, unicamente quanto
á forma, mas conservando fiel o pensamento traduzido.
Infelizmente não se deu isso, como passamos a demonstrar.
Em o cap. 1 do Evangelho de S. João, versiculo 21, en-
contramos esta passagem referente a João Baptista: "E's
tu Elias? E disse: Não sou. E's tu propheta? E respondeu:
Não".
Copiámos esta passagem da edição do pastor João Fer-
reira de Almeida. A edição catholica, traduzida do grego pa-
ra o latim, por S. Jeronymo, e do latim para o portuguez pe-
lo padre Antonio Pereira de Figueiredo, diz a mesma coisa:
"E's tu Elias? E elle respondeu: Não o sou. E‟s tu propheta?
E respondeu: Não".
Vê-se, pois, a perfeita concordancia da traducção, por-
que ambos os traductores — o pastor Almeida e S. Jerony-
mo —, foram fieis ao texto grego. Eis que a Sociedade Biblica
Americana escreve de modo differente, accrescentando um
artigo definido, que altera radicalmente o sentido das pala-
— 198 —
vras: "E's tu Elias? Elle repondeu: Não sou. E's tu o Pro-
pheta? Respondeu: Não".
Viu o leitor?... Os srs. editores, de accôrdo, natural-
mente, com os novos revisores, acharam bom accrescentar o
artigo "o" e escrever com P maiusculo a palavra propheta,
afim de que se fórme na mente do leitor a idéa de que os emis-
sarios dos phariseus queriam saber si o Baptista era "o Pro-
pheta Elias". Mas... o Precursor já ha via dito que elle não
era Elias... Porque insistem os editores norte-americanos
em forçar os taes emissarios a repetir a mesma pergunta a
João Baptista?...
Pois, preferimos ficar com o pastor Almeida, protestan-
te, e com o padre Figueiredo, catholico, porque ambos respei-
tam a memoria dos escriptores do Novo Testamento, tradu-
zindo-lhes fielmente o pensamento.
Esta, a primeira discrepancia. Vae o leitor apreciar outras.
Em o Evangelho segundo S. João, 1:18-, eis o que lemos
na Vulgata Latina, versão do grego, pelo grande theologo e
profundo latinista, São Jeronymo: "Deum nemo vidit un-
quam: unigenitus filius, qui est in sinu patris, ipse enarravit”.
Foi isso o que S. Jeronymo encontrou nos originaes gre-
gos. Passando para o portuguez, eis o que nos diz esse versi-
culo, traduzido pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo:
"Ninguem jamais viu a Deus: o Filho Unigenito, que está
no seio do Pae, esse é quem o deu a conhecer”.
No "Novum Testamentum", edição protestante, ex-inter- pretatione Theodore Bezae, impressa Cantabrigiae, A. 1). 1642,
in officina Rogeri Danietis-Sumptibus Societatis Bibliophilo-
rum Britannicae et Externae- MDCCCXCVIII: "Deum nemo
vidit unquam: unigenitus ille Filius qui est in sinu Patris,
ille in quam nobis exposuit.” O pensamento contido nesse
verso é o mesmo traduzido pelo Padre Figueiredo.
Na versão do abbade francez, J. B. Glairc, approvada
pela Egreja Catholica, Paris — A. Jouby, Librairie-Editeur,
— 199 —
1861, lem os: "Personne n'a jamais vu Dieu: le Fils unique
qui est dans le sein du Pére est celui qui l'a fait connaitre."
Não ha divergencia. Traducção fiel.
Edição italiana: Il Santo Vangelo di N. S. Gesu Cristo
e Gli Atti degli Apostoli — Edizione eseguita dalla Coop. Po-
ligrafica Editrice con stereotiple con cesse da lla Tlpograafia Va- ticana — Roma-Pia Societá di S. Girolamo per la diffusione
dei Santi Vangeli:"
"Nessuno ha veduto mai Dio: "l' unigenito Figlio che é
nel seno del Padre, egli ce l'ha rivelato." E' fiel a traducção.
Edição franceza. protestante, do rev. David Martin, La
Sainte Bible revue sur les originaux — New-York-Societé Bi-
blique Americaine, 1908:
"Personne ne vit jamais Dieu: le Fils unique, qui est au
sein du Pére, est celui qui nous l'a revelé". Não se afasta da
de S. Jeronymo.
Edição americana, solennemente autorizada e sacramen-
tada pelas mais altas autoridades theologicas; traduzida dire- ctamente do Grego, edição classica: "The New Testament of
Our Lord and Saviour Jesus Christ, translated out the Greek,
being the version set forth A. D. 1611 compared with the most
ancient authorities and revised. 1881- Newlg edited by the New Testament members of the American Revision Committee A. I).
1900 — Standard. Edition — American Bible Society:
"No man hath seen God at any time; the only begotten
Son, who is in the bosom of the Father, he hath declared
him." Este verso diz a mesma cousa; traducção fiel "do grego".
Edição italiana, protestante, Il Nuovo Testamento del
Nostro Signore Salvatore Gesu Cristo e Il Libro dei Salmi —
Roma — 1898: "Niuno vide giammai Iddio; l'unigenito Fi- gliuolo, ch'é nel seno del Padre, é quel che l'ha dichiarato."
Fiel é a traducção.
Edição catholica, de D. Frei Joaquim de Nossa. Senhora
da Nazareth, bispo de Coimbra, em "O Novo Testamento", Lis-
— 200 —
boa — Imprensa National, 1875: "Ninguem jamais viu a Deus:
o filho unigenito que está no seio do pae elle mesmo o deu a
conhecer".
Edição protestante, O Novo Testamento, traduzido em por-
tuguez pelo padre João Ferreira A. d' Almeida, ministro do San-
to Evangelho em Batavia, Reimpresso da Edição de 1693, revis- ta e emendada — Nova-York, 1894: "A Deus nunca ninguém
o viu: o unigenito Filho que está no regaço do Pae, elle nol-o
declarou." A edição de 1922, desse mesmo traductor, publi-
cada pela Sociedade Biblica Britannica e Extrangeira, con-
serva fiel a traducção.
Edição hespanhola, protestante, El Nuevo Testamento,
version revista e confrontada con el texto griego, e con diversas
traducciones, por Cipriano de Valera, Londres, 1867: "A Dios
nadie le vió jamás: el unigenito Hijo que está en el seno del
Padre, él nos le declaro.” Tambem esta versão está concorde.
Edição catholica, do Monsenhor Dr. José Basilio Perei-
ta — Ratisbona, 1923, Typ. de Frederico Pustet, impressor da Santa Sé: "Ninguem jamais viu a Deus; o Filho unigenito
que está no seio do Pae, elle mesmo é que o deu a conhecer."
Edição protestante, vertida directamente do grego, em cu-
ja lingua estão escriptos os originaes, Nova York. Sociedade
Biblica Americana, 1895: "A Deus nunca ninguem viu; o
unigenito Filho, que está no seio do Pae, elle nol-o declarou”.
Ahi tem o leitor o texto do evangelista S. João, traduzido
por diversos theologos, catholicos e protestantes, todos de re-
conhecida competencia, á frente dos quaes admiramos o vulto
de S. Jeronymo, o grande latinista e theologo, um dos mais
eminentes dos Santos Padres.
Pois bem. Sabe o leitor o que fizeram certos traductores
da Biblia, lá na Sociedade Biblica Americana? Nada menos
que isto: puzeram nos labios desse evangelista uma palavra
differente daquella que o leitor acabou de lêr! Em bom por-
tuguez: supprimiram, abafaram a palavra capital da 2.ª pro-
— 201 —
posição que o evangelista ouvira do Divino Mestre, e, parã
não ficar vestigio da subtracção, collocaram outra palavra
que transtornou radicalmente o sentido do pensamento de
Jesus! Eis o versiculo adulterado, que encontramos hoje nas
edições protestantes, da Sociedade Biblica Americana:
"S. João, 1:18: "Ninguem jamais viu a Deus; “O DEUS
UNIGENITO" que está no seio do Pae, esse o revelou"!!!
Segundo essa transformação, ou antes, segundo essa mu-
tilação do pensamento do Mestre, operada pelos editores ou
traductores, Deus não é eterno, porque joi gerado!... Deus
gerando Deus!!!
E é esse monstruoso absurdo que a Sociedade Biblica
Americana quer pôr nos labios do Pregador da Verdade!...
Qualquer estudante, já não diremos de uma escola theo-
logica, mas do 3.° anno de um Grupo Escolar, perturba-se,
fica atordoado, deante dessa monumental refórma com que
alguns reformistas contemporaneos pretendem reformar a Re-
fórma, collocando uma Eternidade no seio da Eternidade...
Caso singular: o texto registrado pelo apostolo foi fiel-
mente traduzido do grego para o inglez; "the only begotten
Son", "o unigenito Filho". Quer dizer: para os norte-ameri-
canos, que falam o inglez, o texto evangelico está certo, de
accôrdo com o texto grego. A falta foi verificada nos volumes
destinados aos brasileiros e portuguezes...
Si fossemos italiano, possivelmente exclamariamos como
aquelle homem que não poude supportar o desrespeito pelo
pensamento alheio: traduttore, traditore!... Está justificada
a affirma tiva de Rénan.
A esses irmãos, que pretendem o titulo de mutiladores
do pensamento de Jesus, lembraremos algumas palavras pro-
nunciadas pelo Mestrre e registradas pelo mesmo apostolo,
as quaes nullificam aquella absurda innovação:
"Eu tenho mostrado muitas obras boas, que fiz em vir-
tude de meu Pae; por qual destas obras me quereis vós ape-
drejar? — Responderam-lhe os judeus: "Não é por causa de
— 202 —
alguma boa obra que nós te apedrejamos, mas sim porque di-
zes blasphemias, e porque, sendo tu homem te fazes Deus a ti mesmo".(?) Replicou-lhe Jesus: "Não é assim que está es-
cripto na vossa lei: Eu disse, vós sois deuses? Si ella chama
"deuses" áquelles a quem a palavra de Deus foi dirigida, e a
escriptura não póde falhar, a mim, a quem o Pae santificou,
e enviou ao mundo, porque dizeis vós: "Tu blasphemas”;
por eu ter dito — não que sou Deus mas — "que "sou Filho”
de Deus?" (Notemos que, tambem neste passo, Jesus não
deixou de corrigir o erro dos judeus, provando-lhes que não
dissera jamais que Elle era o Deus Creador, mas "o Filho
de Deus”).
'Si vós me amasseis, certamente havieis de folgar que eu
vá para o Pae; porque o Pae é maior do que eu.” Disse-lhe Je-
sus (á Maria Magdalena): "Não me toques, porque ainda não
subi a meu Pae, mas vae a meus irmãos e dize-lhes: Que vou
para "meu pae” e vosso Pae, para "meu Deus” e vosso Deus"
(S. João, 10:32:36; 14:28; 20:17).
Mais perturbado ficaria o estudante acima figurado, si
collocasse estes versos em frente do em que a Sociedade Bi-
blica Americana nos diz que a Eternidade contém em seu seio
outra Eternidade...
A Vulgata, edição protestante, em sua edição de Lon-
dres — "Samuel Bagster and Sons Limited” — contém este
versiculo: "Si ergo vos cura sitis mali, nostis bona data dare
filiis vestris: quantum magis Pater vester de coelo dabit
"spiritum bonum” patentibus se? (Luc. 11:13).
Eis esse versiculo na Biblia traduzida pelo Padre Figuei-
redo: "Pois si vós outros, sendo maus, sabeis dar boas dadivas
a vossos filhos, quanto mais o vosso Pae celestial dará "espi- rito bom” aos que lh'o pedirem?" (°)
_____________
(°) — Notemos que esse verso foi copiado dos textos gregos, por São
Jeronymo, no sec. IV, ou sejam treze seculos antes do pastor Almeida. So-
bre a operosidade fecunda dos protestantes, com respeito A reconstrucção
— 203 —
Pois as edições protestantes escrevem assim: "Pois si
vós outros, sendo maus, sabeis dar dadiva boas a vossos
filhos, quanto mais vosso Pae celestial dará "o Espirito San-
to" aos que lh'o pedirem?"
Concordamos em que, "espirito bom" é tão desejavel
como "o Espirito Santo". O caso, porém, não é de concordar
ou deixar de concordar com a qualidade do mensageiro do
Invisivel. Trata-se de uma questão muito séria: o "respeito"
que se deve ao pensamento alheio!
___________
e verdadeiras origens dos Evangelhos e ás phases successivas da tradição
evangelica, eis como se manifesta o grande philosopho e orientalista fran-
cez, Léon Denis:
"Foi sobretudo nos centros da religião protestante que foram elabo-
rados esses trabalhos, notabilissimos por sua erudição e seu caracter minu-
cioso, e que tão vivas claridades projectaram sobre os primeiros tempos do
Christianismo, sobre o fundo, a fórma, o alcance social das doutrinas do
Evangelho".
Passando a falar, mais adeante, sobre a Vulgala, eis como se exprime
esse philosopho: "... Afim de pôr um termo a essas divergencias de opi-
nião, no proprio momento em que varios concilios acabam de discutir acer-
ca da natureza de Jesus, uns admittindo, outros rejeitando a sua divindade,
o papa Damaso confia a São jeronymo, em 384, a missão de redigir uma
traducção latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa traducção deverá
ser, dahi em deante, a unica reputada orthodoxa e tornar-se-á a norma das
doutrinas da igreja: foi o que se denominou a Vulgata.
Esse trabalho offerecia enormes difficuldades. São Jeronymo se acha-
va, como elle proprio o disse, em presença de tantos exemplares quantas
cópias. Essa variedade infinita dos textos o obrigava a uma escolha e a re-
toques profundos. E' o que, assustado com as responsabilidades incorridas,
elle expõe nos prefacios de sua obra, prefacios reunidos em um livro cele-
bre. Eis aqui, por exemplo, o que elle dirigiu ao papa Damaso, encabeçando
a sua traducção latina dos Evangelhos:
"De uma velha obra me obrigaes a fazer uma nova. Quereis que de
alguma sorte me colloque como arbitro entre os exemplares das Escripturas
que estão dispersos por todo o mundo e, como differem entre si, que eu dis-
tinga os que estão de accôrdo com o verdadeiro texto grego. E' um piedoso
trabalho, mas é tambem um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser
por todos julgado, julgar elle mesmo os outros, querer mudar a lingua de
um velho e conduzir á infancia o mundo já envelhecido. Qual é, de
— 204 —
Mas, passemos adeante. Em o Novo Testamento tra-
duzido pelo pastor protestante João Ferreira de Almeida,
publicado em 1894, reimpresso da edição de 1693, "revista e
emendada” (attentemos bem!), lemos : "Em verdade, em
verdade te digo, que aquelle que não tornar a nascer, não póde
vêr o Reino de Deus". (S. João, 3:3)
Notará o leitor que esta expressão por nós gryphada é
de purissima vernaculidade, e como tal, devia ser conservada
em as edições posteriores. Pois tal não se deu. Nas edições
sahidas do mesmo prelo foi substituida a clausula "que não tornar a. nascer” por esta outra: "que não nascer de novo".
Porque essa substituição? Simplesmente por isto: a
primeira expressão apresenta-nos declaradamente, abertamen-
te, a lei da reencarnação. Foi substituida, porque os traducto-
res ou editores acharam, talvez, forte demais o brilho dessa
verdade, capaz de offender a vista de algum leitor...
A lei da reencarnação foi, porém, defendida pela lei da
compensação : S. Jeronymo proclama essa mesma verdade
__________
facto, o sábio e mesmo o ignorante que, desde que tiver nas mãos um
exemplar (novo), depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que
se acha em desaccordo com o que está habituado a lêr, não se ponha
immediatamente a clamar que eu sou um sacrilego, um falsario, por-
que terei tido a audacia de accrescentar, substituir, corrigir alguma coisa
nos antigos livros ? (Me clamitans esse sacrilegum qui audeam aliquid in
veteribus Libris addere, rnulare, corrigere).
"Um duplo motivo me consola desta accusação. O primeiro é que vós,
que sois o soberano pontifice, me ordenaes que o faça; o segundo é que a
verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tives-
sem ellas por si a approvação dos maus."
São Jeronymo assim termina:
"Este curto prefacio tão somente se applica aos quatro Evangelhos,
cuja ordem é a seguinte: Matheus, Marcos, Lucas, João. Depois de haver
comparado um certo numero de exemplares gregos, mas dos antigos, que se
não afastam muito da versão italica, combinámol-os de tal modo (ita ca-
amo lemperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar
o sentido, conservámos o resto tal qual estava." (Obras de S. Jeronymo,
edição dos Benedictinos, 1693, t. I, col. 1425). Léon Denis — "Christianismo
c Espiritismo" ).
— 205 —
com estas palavras, porventura ainda mais fortes : "que não
"renascer" "de novo". A rhetorica nos ensina que o pleonasmo
é um bom amigo da verdade, porque imprime mais energia
ao pensamento. Essa figura de syntaxe tem o dom de im-
pressionar fortemente o nosso espirito, porque fala duas
vezes...
(Esta ultima alteração, operada no texto do quarto
evangelista, obriga-nos a um parenthesis. O sentido que Jesus
deu ao seu pensamento, nada soffre á vista da transacção
realizada com o verso traduzido pelo pastor Almeida, pois
os contextos, os textos parallelos, deitam jorro de luz sobre o
ponto em questão. Os elementos que compõem os versiculos
seguintes neutralizam a restricção que se pretendeu fazer á
idéa do "tornar a nascer". E' o de que vamos tratar.
Ficou Jesus admirado deante da crassa ignorancia de
Nicodemos, "mestre em, Israel", com referencia a factos na-
turaes da vida terrena : “Não te maravilhes de eu te dizer :
Importa-vos nascer outra vez.” “Si quando eu vos tenho fala-
do nas coisas terrenas, ainda assim vós me não credes; como
me crereis vós, si eu vos falar nas celestiaes ?”
Notemos : “coisas terrenas”, ou coisas da terra, diz
Jesus, como si houvera dito "coisas conhecidas de toda a gen- te”. Ficou Jesus admirado porque... Nicodemos era "mestre
cm Israel", e como tal, não podia nem devia ignorar esses
factos naturaes, porque pertencem á vida terrena. "Tu és
mestre em Israel e não sabes estas coisas ?” Esta pergunta do
Divino Prégador é de profunda significação. "Mestre em
Israel", esta advertencia do Mestre dos mestres diz muito
mais do que á primeira vista nos parece. "Como póde um
homem nascer, sendo velho ?” perguntou Nicodemos, “por-
ventura póde tornar a entrar no ventre de sua mãe e nascer
outra vez” Tal a objecção que causou espanto a Jesus:
"Ignoras isto, tu que és mestre em Israel?” — Si essa igno-
rancia revelada por Nicodemos, fôsse notada em um dos
apostolos — Simão ou André, Tiago ou João — estaria
— 206 —
justificada, porque esses homens, humildes pescadores, não
tinham a illustração de "mestres em Israel". Pois estes ho-
mens, na sua simplicidade de illetrados, não ignoravam aquillo
que causou espanto a Nicodemos:
"Mestre, que peccado fez este, ou fizeram seus paes,
para nascer cego?" (S. João, 9). A pergunta indica, antes de
tudo, que os discipulos attribuiam a enfermidade do cego a
uma expiação. Em seu pensamento, a falta precedêra á pu-
nição, tinha sido a causa primordial. Trata-se ahi de um
cego de nascença; a falta não se póde explicar senão por uma
existencia anterior. Os discipulos acreditavam que se podia
ter peccado antes de nascer, isto é, numa existencia anterior.
Jesus partilha da sua crença, pois que, vindo para ensinar a
verdade, não teria deixado de corrigir essa opinião, si. erronea fosse, corno jamais o deixou de fazer toda a vez que se tornava
preciso. Vejamos alguns dos muitos casos. 1) Os escribas e
os principes dos sacerdotes quizeram prender a Jesus, mas, a
vista da multidão que o cercava, tiveram medo. Então lan-
çaram mão da fraude, do dólo, da hypocrisia, instruindo uns
homens para que, fingindo interesse pela doutrina do Mestre,
lhe armassem uma perigosa cilada, em cujas malhas o Mestre
cahiria fatalmente. Uma questão muito séria e muito deli-
cada, qual a de saber si Elle aconselhava a pagar o imposto a
Cesar ou não. Metteram a Jesus entre as pontas de um di-
lemma: si Elle respondesse “sim", seria accusado ao Syne-
drim, pelos sacerdotes e escribas, como inimigo dos judeus
(que odiavam o jugo de Cesar ou do imperio romano, ou
ainda do governo civil extrangeiro); si respondesse "não”,
seria accusado pelos herodianos ou partidarios do governo
de Cesar, como demagogo, como fomentador de rebellião
contra a autoridade civil. Pois bem. Mesmo deante de uma
pergunta ardilosa, capciosa, insufflada pela hypocrisia, Elle, o
Mestre, não deixou de ensinar a verdade, como podemos
vêr do episodio (Luc. 20:19-26), cujas ultimas palavras nos
dizem que os taes mandatarios, com toda a sua astucia, fi-
caram admirados deante da doutrina do interpellado, e se
— 207 —
calaram. 2) Não havendo os apostolos comprehendido a
parabola do Semeador, perguntaram a Jesus porque falava
sob o véo dessa figura. Jesus responde á observação e explica
minuciosamente as suas palavras. (Math. 13) 3) Os phariseus,
interessados na condemnação de Jesus, reuniram-se em con-
selho secreto e ahi resolveram propôr uma questão referente á
Lei de Moysés. Perguntaram-lhe qual era "o maior" dos
dez mandamentos. Fieis á "letra" da lei, sem se preoccupa-
rem com o "espirito”, com a “virtude” que as dez proposi-
ções encerram, julgavam os phariseus que Jesus ficaria em
embaraço e commetteria uma falta grave, no entender delles.
Mesmo em face dessa pergunta ditada pelo “fermento da
hypocrisia”, Elle responde com a mesma serenidade revelada
em seu caracter de Mestre dos homens. Foi mais adeante:
disse aos tentadores qual era "o grande mandamento", e, para
completar o ensino da verdade religiosa, accrescentou por
conta propria: “e o segundo, similhante a este, é: “Amarás a
teu proximo como a ti mesmo”. Finalizou o Mestre essa
resposta, com estas palavras que golpearam fundo o tradi-
cionalismo formalistico de seus impiacaveis inimigos: "Estes
dois mandamentos encerram toda a lei e os prophetas", isto é,
encerram tudo de que necessitam os homens para andar no
caminho recto.
4) Corrigiu o Mestre os erros da antiga legislação, com
estas palavras: “Tendes ouvido o que foi dito: Amarás a
teu proximo e aborrecerás a teu inimigo. Mas eu vos digo: Amae a vossos inimigos, fazei bem ao que vos tem odio, e
orae pelos que vos perseguem e calumniam, para serdes fi-
lhos de vosso Pae que está nos céos”. (Math. 5, 6 e 7)
5) No colloquio com uma mulher desprezada e odiada
pelos judeus, o Mestre dá-lhe instrucções claras acerca da
paternidade de Deus e da fraternidade humana, esclarecendo
bem este ponto: deante de Deus não ha privilegiados nem
excluidos, não ha orthodoxos nem hereticos, mas filhos do
mesmo Pae. (S. João 4:5-26)
— 208 —
6) O Divino Mestre reprehende vehementemente aos
escribas e phariseus com aquelles chammejantes Ai de vós, escribas e phariseus hypocritas!” ao mesmo tempo que, de
par com essas ulcerantes apostrophes, ensinava aos homens a
espiritualizar-se em sua doutrina. (Math. 23).
7) Ao moço rico e religioso, Jesus dá amplas explicações
acerca da vida futura, mostrando-lhe qual o caminho da
casa do Pae. Corrige Jesus os erros em que estava mergulha-
do o mancebo endinheirado, que conhecia "de cór e salteado"
a lei de Moysés. Depois de palestrar com esse moço, Jesus
se dirige aos seus apostolos e discipulos, aos quaes apresenta
as consequencias do "literalismo religioso" do moço de qua-
lidades. Math. 19:16-30.
8) Tendo visto os phariseus que Jesus curára um homem
que era cego e mudo, em consequencia de uma grande pos-
sessão, de espirito mau, disseram: "Elle faz isso pelo poder
do espirito de Beelzebu, principe dos demonios". A esse in-
sulto pesado, responde Jesus, não com ameaças de excom-
munhão, mas com a logica fornecida pelos mesmos inimigos
seus: "Ora, si Satanaz lança fóra a Satanaz, está elle dividi-
do contra si mesmo; como persistirá logo o seu reino? E si
eu lanço fóra os demonios em virtude de Beelzebú, em virtu-
de de quem os expellem vossos filhos"?... E continuou
Jesus a ensinar aos seus inimigos. (Math. 12:22-32).
9) Ouve Jesus esta advertencia dos escribas e phariseus:
"Porque violam os teus discipulos a tradição dos antigos?”
Deu-lhes o Mestre a devida resposta com uma pergunta:
"E vós tambem porque transgredis "o mandamento” de
Deus pela vossa tradição?” — E Jesus aproveitou a oppor-
tunidade para dar amplas e claras instrucções acerca do as-
sumpto. (Math. 15).
10) Indignaram-se dez dos discipulos, á vista de um
pedido feito por certa mulher, que desejava garantir a sal-
vação de dois filhos seus. Jesus esclareceu á mulher esse pon-
— 209 —
to para ella bastante obscuro, ao mesmo tempo que corrigiu
em seus discipulos a falsa idéa de que se achavam elles em
plano muito superior ao em que estava a pobre mulher, a
quem Jesus ensinou com toda a paciencia, e não somente a ella,
mas tambem aos seus dois filhos amados. (Math. 20:20-28)
11) A' pergunta dos príncipes dos sacerdotes e dos an-
ciãos do povo, acerca da autoridade com que o Mestre ensi-
nava, responde o interpellado com uma pergunta, que deixa
confundidos os presumpçosos interpellantes. E' que estes
perceberam na pergunta do Divino Mestre, a mais sábia das
respostas, e que poz á calva a intenção dolosa da pergunta
ardilosamente preparada. (Math. 21:23-27).
Bastam esses casos, que provam exuberantemente que
Jesus jamais deixou de ensinar, de esclarecer, de corrigir
as idéas erroneas não somente dos seus apostolos, mas de
todos quantos lhe faziam perguntas, ainda mesmo quando
formuladas pelos proprios inimigos. Voltando ao caso do
"cego de nascença", vemos que Jesus responde á pergunta
dos seus discipulos, explicando o caso que os preoccupa. Dahi
essa idéa da penitencia, que reapparece a cada momento nas
Escripturas. "Fazei penitencia", dizem ellas constantemente,
isto é, praticae a reparação, que é o fim da vossa nova exis-
tencia; rectificae o vosso passado, espiritualizae-vos, porque
não saireis do dominio terrestre, do circulo das provações,
senão depois de "haverdes pago até o ultimo ceitil." (Math.
5:26). (Consulte-se a obra magistral de Léon Denis, “Chrts- tianismo e Espiritismo").
Jesus prégou a espiritos mettidos na prisão, onde paga-
vam até o ultimo ceitil. (1.ª Pedro, 3:18-20).
Depois da morte de João Baptista, Elle, o Mestre, re-
pete o mesmo ensino reincarnacionista a seus discípulos:
"E seus discipulos o interrogaram, dizendo: "Porque, pois,
dizem os escribas que importa vir Elias primeiro?" — Alas
Elle, respondendo, lhes disse: Elias certamente ha de vir, e
— 210 —
restabelecerá todas as coisas; digo-vos porém que Elias já
veiu, e elles não o conheceram, antes fizeram delle quanto
quizeram. Então conheceram os discipulos que de João Baptis-
ta é que Elle lhes falára" (Math. 17:10-13) E' Matheus quem
o diz...
Objectam os nossos irmãos reformistas, que João Baptis-
ta negára que fôsse elle o espirito reincarnado de Elias, ape-
gando-se elles aos textos que lemos em João, 1:19-23. Não
procede essa objecção. Vejamos o caso. "E's tu Elias? —
"Não; responde João Baptista". Esta negativa não autoriza
aquella objecção dos nossos irmãos protestantes, porquanto,
em seguida, perguntam os sacerdotes: "E's tu propheta?"
E João Baptista igualmente responde: "NÃO; NÃO SOU
PROPHETA." Concordam com esta resposta os nossos irmãos
divergentes?... — Não concordam nem pódem concordar,
porque se lembram logo da palavra de Jesus, que declarou
textualmente: "Entre os nascidos de mulheres NÃO HA MAIOR
PROPHETA QUE JOÃO BAPTISTA.” (Lucas, 7:28)
Em que ficamos? Como harmonizar esta affirmativa
categorica de Jesus com a negativa do precursor? — João
Baptista não faltou com a verdade. Precisamos vêr em suas
respostas um eloquente transbordamento de humildade. Elle
bem sabia que havia sido Elias. "A sua missão, entretanto,
era agora maior do que tivera quando fôra Elias. Elle vinha
agora, não para ordenar a degolação dos prophetas de Baal,
mas para ser degolado, por profligar o crime e combater as
trévas (Aquelle que ferir á espada, á espada será ferido; é a
lei de causa e effeito, reconhecida e proclamada pelo Mestre,
Math. 26:52). Não era a luz, mas vinha dar testemunho
della, e, por amôr della, soffrer os rigores da vida em cárcere
frio e escuro, onde a maldade de um Herodes o havia encer-
rado. Elias tinha sido grande entre os maiores prophetas de
Israel; mas João Baptista não queria reivindicar as grande-
zas de Elias. Elle queria ser apenas a voz que clama no deser- to. Aquelle que tem a esposa é o esposo; mas o amigo do es-
— 211 —
poso, que lhe assiste e o ouve, alegra-se muito com a voz do
esposo. Assim, pois, já este meu goso está cumprido. A elle
convém crescer, porém a mim, diminuir." "Elle se collocava
como quem dissesse: Eu não sou Elias, nem propheta, nem
pessoa alguma; eu sou apenas um porta-voz, um corneta, um
atalaia, uma voz que clama no deserto, nada mais."
Pergunta Jesus a seus discipulos, antes de lhes falar
sobre João Baptista: "Quem dizem os homens que é o Filho
do homem?" E elles responderam: Uns dizem que João
Baptista, mas outros que Elias, e outros que Jeremias, ou al- gum dos prophetas.” (Math. 16:13, 14). Jesus não protesta
contra essa opinião como doutrina, do mesmo modo que não
protestára no caso do cégo de nascença. Ao demais, a ídéa
da pluralidade das vidas, dos successivos graus a percorrer
para se elevar á perfeição, não se acha implicitamente conti-
da nestas palavras memoraveis: "Sêde perfeitos como perfeito
é vosso Pae celestial?' Como poderia a alma humana alcan-
çar esse estado de perfeição em uma unica existencia?" For-
mulemos uma hypothese: um facinora que levou a vida in-
teira comendo carne humana e espalhando o manto da viuvez
e da orphandade, poucos dias antes da sua partida deste
mundo, ainda em plena lucidez, declara-se arrependido, faz
sua profissão de fé em Deus e em Jesus. Perguntamos: es-
taria em condições de ir para um estado espiritual em que
se acham Virgem Maria, Paulo, Pedro, Vicente de Paulo,
Francisco de Assis?...
Finalmente, queremos chamar a attenção do leitor para
um ponto que poderia passar despercebido. A crença na pre-
existencia da alma, na pluralidade da vida, nas vidas suc-
cessivas — não é nova, mas antiquissima, conforme nol-a
ensina a historia dos povos orientaes. No Occidente tambem
se ensinava a mesma verdade. Em qualquer compendio de
philosophia encontrará o leitor o ensino de Platão, que dizia:
"Aprender é recordar-se."
— 212 —
"E' conhecida sua maneira de explicar a origem das idéas.
São reminiscenclas de uma vida anterior." (Janel — "Phi- losophia", vol. II; dr. José Mendes — "Philosophia do Direi-
to", vol. I).
O evangelista mesmo nos diz que os Judeus acreditavam
na reincarnação. Elles mandaram uns sacerdotes e levitas a
João Baptista. Para quê? Para perguntarem... si elle era o
propheta Elias, que vivêra muitos seculos antes... — Como
explicar a razão de ser dessa pergunta, senão pela crença de
que o homem vive mais de uma vez?... (S. João, 1:19-21)
Fechemos o parenthesis). Vejamos mais uma discrepancia
entre as traducções.
Para que nos appareça em alto relêvo a parte nublada
do texto sagrado, vamos considerar, em primeiro lugar, a
edição do pastor João Ferreira de Almeida, de 1922, que
está de accôrdo com as anteriores:
"Porque até hoje o mesmo véo está por levantar na lição
do Velho Testamento, o qual foi por Christo abolido". (II
Cor., 3:14)
Consideremos agora a linguagem adoptada pela Sociedade
Biblica Americana, em duas edições, uma de 1885 e outra
de 1922, ambas com a nota official: "Traduzida segundo o original grego" (si a versão foi feita do mesmo original grego,
a linguagem deve ser a mesma, porque uma edição será,
apenas, repetição da anterior):
885: "Porque até ao dia de hoje fica o mesmo véo por
descobrir na lição do Velho Testamento, o qual por Christo é
anniquilado."
1922: “Pois até o dia de hoje, na leitura da antiga al-
liança, permanece o mesmo véo, não lhes sendo revelado que
em Christo é elle tirado."
Pela linguagem do texto grego, no anno de 1885,
entendemos claramente que o Velho Testamento é anniquila-
do, foi abolido, segundo o pastor Almeida. Trinta e sete an-
— 213 —
nos depois, o mesmo texto grego, divulgado pela mesma So-
ciedade Biblica, vem-nos dizer coisas muito differentes...
Concluamos este capitulo. A traducção directa do grego
deveria merecer mais confiança do que as outras que tiveram
de passar pelo latim, pela simples razão de que tanto mais
pura é a agua, quanto mais proxima estiver da fonte. Per-
guntamos: quem traduziu melhor o pensamento encerrado
nesse verciculo? Almeida? a commissão da Sociedade Bibli-
ca? Mas... não foi o mesmo prélo que deu ao mundo essas
tres edições? Qual delias reproduz o texto de modo exacto?...
A continuar essa divergencia, essa disparidade em textos
lidos, traduzidos, revistos, confrontados, compostos, impres-
sos e divulgados pela mesma Sociedade editora — quaes as
surpresas que o futuro nos reserva?
Pensem, meditem os nossos irmãos protestantes. Não
nos incriminem pelo facto de não sermos uma autoridade
no assumpto, nem tampouco por nos acharmos fóra do cir-
culo das suas convicções. Para notar ou apontar vicios e
interpolações não é necessario que sejamos autoridade em
theologia, em philologia comparada ou em helienismo. Basta-
nos uma dóse de boa vontade para analysar, para comparar,
afim de "demonstrar" e "provar".
Acatem os nossos irmãos aquella advertencia do Padre
Kempis, lá no alto da primeira pagina deste volume, e creiam
que essa advertencia tem o endôsso do criterio de Jesus, di-
vulgado pelo "Examinae tudo e abraçae o que fôr bom" do
grande Paulo. "Bom" é o desejo que nutrimos pela conser-
vação da pureza e da fidelidade das traducções. A pergunta
que acima formulamos não é insensata nem é gerada por
“idéa preconcebida” da nossa parte. O que estamos dizendo e
aconselhando tem o seu fundo logico, porque é racional. A
tarefa dos traductores e editores dos textos sagrados é digna
da mais alta sympathia e do mais elevado apreço. Mas, es-
tamos vendo que o escrupulo vae desertando do gabinete
de “certos" traductores que, imitando a liberdade de que
— 214 —
gósam os artistas do pincel, vão augmentando ou diminuindo,
a seu bel-prazer, a tonalidade das côres na téla dos textos
sagrados.
Fazemos nosso o fêcho do artigo de Vinicius, cujas pala-
vras distillam aquella sentimentalidade profundamente
fraterna que lhe domina a alma de christão: "Trazendo á
publicidade estes vicios de traducção, não pretendemos,
repetimos, acoimar de menos escrupulosos os traductores
da American Bible Society. Sabemos perfeitamente que o
zelo demasiado, destruindo a serenidade de animo, dá lugar a
esses desvios por parte de crentes muito dignos e muito sin-
ceros. A historia está cheia de exemplos que justificam ple-
namente esta asserção. Portanto, não accusamos, não con-
demnamos: esclarecemos apenas essas questões, como estu-
dante que somos das sublimes verdades evangelicas.”
E' uma infidelidade, um "adulterio", essa falta por nós
apontada nas diversas edições dos escriptos sagrados? Res-
pondam por esse "adulterio" aquelles que o commetteram.
Não nos assiste o direito de incriminar a Egreja Evangelica
por essas "fraudes impiedosas”, visto como, a incriminação
tem sido feita por muitos de seus proprios membros que,
descobrindo essas faltas, não escondem a sua amargura.
Sabemos de muitos membros de diversas communidades
evangelicas que, além de escandalizados ante essa disparidade
nas traducções, sentem o germen da duvida a trabalhar no
seu espirito, e esse germen — seja dito de passagem — é
um semeador de desconfianças, para não dizer de perigos...
Antes de pingar o ponto final neste capitulo, queremos
fazer referencia a mais uma "fraude impiedosa”.
Faça o leitor esta pergunta, a um theologo ou mesmo a
qualquer irmão protestante: "Que diz o Novo Testamento
sobre o Espiritismo?" A resposta é uma só: citam logo a
palavra do apostolo Paulo a Timotheo. Mas, citam com leal-
dade? Ou antes, repetem fielmente a palavra do apostolo?
E' ahi que está o "x". Pois vamos provar que os nossos ir-
— 215 —
mãos protestantes nao escondem a sua paixão quando pre-
tendem fazer falar o apostolo Paulo. Para poderem talhar
uma carapuça para o Espiritismo, querem obrigar o apostolo
a engulir metade das palavras. E essa violencia é commettida
com intenção pouco christã, pois o apostolo — que falou
brilhantemente sobre as diversas "faculdades psychicas” —
(I Cor., cap. 12; cap. 14; 1-5) não se refere, nunca poderia
referir-se ao Espiritismo nessa passagem, que soffreu uma
contracção, um encurtamento.
No livro "Jesus vem" escripto por W. E. B. e traduzido
pelo rev. Eduardo E. Joiner, á pag. 150, lemos o que o autor
escreve sobre os "ultimos tempos", e "os signaes que annun-
ciam a volta de Jesus". Referindo-se ao Espiritismo, eis como
é citado o apostolo Paulo: "Mas o Espirito diz expressamente que nos ultimos tempos alguns apostatarão da fé, attendendo a
espiritos enganadores e a doutrinas de demonios." (I Tim. 4.1)
Prestou attenção o leitor? Pois esse versiculo não está
completo!... A citação está truncada, está adulterada. E'
uma falsídia. O texto de Paulo não termina alli na palavra
"demonios", depois da qual puzeram um ponto final, quando é
uma virgula, pois o pensamento do apostolo não está com-
pleto!!! Supprimiram o resto...
Veja o leitor o que é que Paulo disse:
“Mas o Espirito diz expressamente que nos ultimos
tempos alguns apostatarão da fé, attendendo a espiritos en-
ganadores e a doutrinas de demonios, mediante a hypocrisia
de homens mentirosos, que teem a consciencia cauterizada, que
prohibem o casamento e ordenam a abstinencia de alimentos,
que Deus creou para serem usados com gratidão pelos que creem
e conhecem bem a verdade.” (I Tim. 4:1-3)
Viu bem o leitor?... O pensamento de Paulo abrange
tres versiculos, e não somente um, como o querem fazer crêr
os nossos irmãos reformistas.
Perguntamos nós: quando é que o Espiritismo prohibiu o
— 216 —
Casamento? Onde é que prohibe o uso de alimentos? Onde é
que recommenda a abstinencia de alimentos ?...
Próvem-nos que o Espiritismo faz essas prohibições, e...
immediatamente nós o abandonaremos e iremos cerrar fileiras
no campo protestante.
Logo... esse adulterio não aproveita jamais aos nossos
irmãos protestantes, porque o apostolo, nesse texto, não al-
vejou o Espiritismo.
MOYSE'S E JESUS — CARACTER DIFFEREN-
CIAL DAS REVELAÇÕES MOSAICA E MESSIANICA
A TERCEIRA REVELAÇÃO: O ESPIRITISMO —
DO DEUS DA "TREMENDA MAGESTADE” AO'
DEUS "DO AMOR E DA JUSTIÇA" — RAÇA ADAMICA
"Definamos primeiro o sentido da palavra revelação. Re-
velar, do latim revelare, cuja raiz é velum, véo, significa lite-
ralmente, sair debaixo do véo — e, figuradamente, descobrir,
fazer conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Em sua
accepção vulgar a mais generica, essa palavra emprega-se a
respeito de qualquer coisa ignorada que é divulgada, de qual-
quer idéa nova que nos põe ao corrente do que não sabia mos.
"Neste ponto de vista, todas as sciencias que nos fazem
conhecer os mysterios da natureza, são revelações, e póde
dizer-se que ha para a humanidade uma revelação incessan-
te; a astronomia revelou o mundo astral, que não conhecia-
mos; a geologia revelou a formação da terra; a chimica a
lei das affinidades; a physiologia as funcções do organismo,
etc.; Copernico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier, foram
reveladores.
“O caracteristico essencial de qualquer revelação deve
ser a verdade. Revelar um segredo é tornar conhecido um
facto; si a coisa é falsa, jã não é um facto e, por consequen-
— 217 —
cia, não existe revelação. Toda revelação desmentida por
factos deixa de o ser, si fôr attribuida a Deus. Não podendo
Deus mentir nem enganar-se, ella não póde emanar delle:
deve ser considerada o producto de uma concepção humana.
"Qual é o papel do professor deante dos seus discipulos,
senão o de um revelador? O professor ensina-lhes o que elles
não sabem, o que não teriam tempo nem possibilidade de
descobrir por si mesmos, porque a sciencia é obra collectiva
dos seculos e de uma multidão de homens que trouxeram,
cada qual, o seu contingente de observações aproveitaveis
áquelles que vêm depois. O ensino é, pois, na realidade, a
revelação de certas verdades scientificas ou moraes, physicas
ou metaphysicas, feitas por homens que as conhecem a ou-
tros que as ignoram e que, si assim não fôra, as teriam ignora-
do sempre.
"Mas, o professor não ensina senão o que aprendeu: é
um revelador de segunda ordem; o homem de genio ensina o
que descobriu por si mesmo: é o revelador primitivo; elle
traz a luz que pouco a pouco se vulgariza. Que seria da hu-
manidade sem a revelação dos homens de genio que appare-
cem de tempos a tempos?
“Mas, que são esses homens de genio? E porque são
homens de genio? Donde vieram? Que é feito delles? No-
temos que a maior parte traz, ao nascer, faculdades trans-
cendentes e alguns conhecimentos innatos, que com pouco
trabalho desenvolvem. Pertencem realmente á humanidade,
pois que nascem, vivem e morrem como nós. Onde, pois,
adquiriram esses conhecimentos que não puderam aprender
durante a vida? Dir-se-á, com os materialistas, que o acaso
lhes deu a materia cerebral em maior quantidade e de melhor
qualidade? Neste caso, não teriam mais merito que um le-
gume maior e mais saboroso que outro.
“Dir-se-á, como certos espiritualistas, que Deus lhes
deu uma alma mais favorecida que a do commum dos ho-
— 218 —
mens? Supposição igualmente illogica, pois que taxaria Deus
de parcial. A unica solução racional deste problema está na
preexistencia da alma e na pluralidade das vidas. O homem
de genio é um espirito que tem vivido mais tempo; que, por
consequencia, adquiriu e progrediu mais do que aquelles que
estão menos adeantados. Incarnando-se, traz o que sabe, e,
como sabe muito mais que os outros, e não tem necessidade
de aprender, é o que se chama um homem de genio. Mas o
seu saber é o fructo de um trabalho anterior e não o resulta-
do de um privilegio. Antes de renascer, era elle pois espirito
adeantado: reincarna-se para fazer aproveitar aos outros o
que já sabe ou para adquirir mais."
("O genio não se explica pela hereditariedade nem tam-
pouco pelas condições do meio. Si a hereditariedade pudesse
produzir o genio, elle seria muito mais frequente. A maior
parte dos homens celebres tiveram ascendentes de intelligen-
cia mediocre e sua descendencia foi-lhes notoriamente inferior.
Christo, Socrates, Joanna d'Arc nasceram de familias obs-
curas. Sábios illustres sahiram dos centros mais vulgares,
por exemplo, Bacon, Copernico, Galvani, Kepler, Hume,
Kant, Locke, Malebranche, Reaumur, Spinosa, Laplace, etc.
Jean Jacques Rousseau, filho de um relojoeiro, apaixona-se
pela philosophia e pelas letras na loja de seu pae; d'Alem-
bert, enjeitado, foi encontrado na soleira da porta de uma
egreja e creado pela mulher de um vidraceiro. Nem a ascen-
dencia nem o meio explicam as concepções geniaes de Sha-
kespeare.
"Os factos não são menos significativos, quando consi-
deramos a ascendencia dos homens de genio. Seu poder
intellectual desapparece com elles, não se encontra em seus
filhos. A prole conhecida de tal ou tal grande poeta ou ma-
thematico é incapaz das obras mais elementares nestas duas
especies de trabalhos; a maior parte dos homens illustres
tiveram filhos estupidos ou indignos. Pericles gerou dois
patetas, que foram Parallas e Xantippo. Sóphocles, Aristar-
— 219 —
co, Themistocles não foram mais felizes com os filhos. Que
contraste entre Germanico e Caligula, entre Cicero e seu
filho, Vespasiano e Domiciano, Marco-Aurelio e Commodo!
E que dizer dos filhos de Carlos Magno, de Henrique IV,
de Pedro o Grande, de Goethe, de Napoleão? " — Léon
Denis, "O Problema do Ser, do Destino e da Dor.")
"Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos
e pelos esforços da sua intelligencia; mas, entregue ás pro-
prias forças, o seu progresso seria muito lento, si elles não
fôssem auxiliados por homens mais adeantados, como o alum-
no é ajudado pelos professores. Todos os povos tiveram
homens de genio, vindos em diversas epochas para dar-lhes
impulso e tiral-os da inercia.
"Desde que se admitte a solicitude de Deus pelas suas
creaturas, porque não admittir que os espiritos, capazes, por
sua energia e superioridade de conhecimentos de fazerem
avançar a humanidade, se incarnem pela vontade de Deus,
com o fim de activarem o progresso em sentido determinado?
Porque não admittir que elles recebam uma missão, como
um embaixador a recebe do seu soberano? Tal é o papel dos
grandes genios. Que vêm elles fazer senão ensinar aos homens
verdades que estes ignoram, e que ignorariam durante longos
periodos, afim de lhes dar um ponto de apoio mediante o qual.
possam adeantar-se mais rapidamente? Esses genios, que
apparecem através dos seculos como estrellas brilhantes,
deixando um longo traço luminoso sobre a humanidade, são
missionarios ou, si o quizerem, messias. As coisas novas que
elles ensinam aos homens, quer na ordem physica, quer na
ordem philosophica, são revelações. Si Deus suscita reveladores
para as verdades scientificas, póde, com mais forte razão,
suscital-os para as verdades moraes, que são um dos elementos
essenciaes do progresso. Taes são os philosolhos cujas idéas
têm atravessado os seculos."
"E' com razão que o Espiritismo é considerado a tercei-
ra das grandes revelações. Vejamos em que essas revelações
differem e qual o laço que as liga entre si.
— 220 —
“MOYSÉS, como propheta, revelou aos homens o conhe-
cimento de um Deus unico, Soberano Senhor e Creador de
todas as coisas; promulgou a lei do Sinai, e lançou as bases
da verdadeira fé; como homem, foi o legislador do povo
pelo qual essa primitiva fé, purificando-se, devia um dia
espalhar-se por sobre a terra.
“O Christo, tomando da antiga lei o que é eterno é di-
vino e rejeitando o que era transitorio, puramente discipli-
nar e de concepção humana, accrescentou a revelação da vida
futura, de que Moysés não falou, assim como a das penas e
recompensas que aguardam o homem depois da morte.
“A parte mais importante da revelação do Christo, por
ser a fonte primitiva, a pedra angular de toda a sua doutri-
na, é o ponto de vista inteiramente novo sob o qual elle faz
encarar a divindade. Não é mais o Deus terrivel, ciumento,
vingativo, de Moysés; o Deus cruel e implacavel, que réga a
terra com o sangue humano, que ordena a tortura e o exter-
mínio dos povos, sem exceptuar as mulheres, as crianças e
os velhos, e que castiga aquelles que poupam as victimas; o
Deus que Jesus nos revéla não é mais o Deus injusto que
pune um povo inteiro pela falta do seu chefe, que se vinga
do culpado na pessoa do innocente, que fére os filhos pelas
faltas dos paes; mas um Deus clemente, soberanamente
justo e bom, cheio de mansidão e misericordia, que perdôa
ao peccador arrependido, e dá a cada um segundo as suas
obras; não é mais o Deus de um povo privilegiado, o Deus dos exercitos, presidindo aos combates para sustentar a sua
propria causa contra o Deus de outros povos; mas o Pae
commum do genero humano, que extende a sua protecção
por sobre todos os seus filhos e os chama todos a si; não é
mais o Deus que recompensa e pune só pelos bens da terra,
que faz consistir a gloria e a felicidade na escravidão dos
povos rivaes e na multiplicidade da progenitura, mas sim o
que diz aos homens: “A vossa verdadeira patria não é neste
mundo, mas no Reino Celeste: é lá que os humildes de cora-
— 221 —
ção serão elevados e os orgulhosos serão humilhados." Não é
mais o Deus que faz da vingança uma virtude e ordena a
retribuir olho por olho e dente por dente; mas o Deus de
misericordia, que diz: “Ferdoae as offensas si quereis ser
perdoados; fazei o bem em troca do mal; não façaes aos
outros o que não quereis que vos façam." Não é mais o Deus
mesquinho e meticuloso que impõe, sob as mais rigorosas
penas, o modo como quér ser adorado, que se offende pela
inobservancia de uma fórmula; mas o Deus grande, que vê o
pensamento e que se não honra com a fórma. Emfim, não é
mais o Deus que quér ser temido, mas o Deus que quér ser
amado.
"Sendo Deus o centro de todas as crenças religiosas e o
fim de todos os cultos, o caracter de todas as religiões é confor- me á idéa que ellass têem de Deus. As religiões que fazem de
Deus um ser vingativo e cruel, julgam honral-o com actos
de crueldade, com fogueiras e torturas; as que têem um
Deus parcial e cioso, são intolerantes e mais ou menos meti-
culosas na fórma, conforme o crêem mais ou menos contami-
nado das fraquezas e ninharias humanas.
"Toda a doutrina do Christo é fundada sobre o caracter
que elle attribue á Divindade. Com um Deus imparcial, so-
beranamente justo, bom e misericordioso, elle fez do amôr
de Deus e da caridade pelo proximo a condição indeclinavel
do salvamento, dizendo: "Amae a Deus sobre todas as coisas,
e ao vosso proximo como a vós mesmos; nisto está toda a lei e os prophetas; não existe outra." Sobre esta crença, assentou
elle o principio da igualdade dos homens perante Deus, e o
da fraternidade universal. Mas, era possivel amar esse Deus
de Moysés? Não; só se podia temel-o.
“Esta revelação dos verdadeiros attributos da Divinda-
de, de par com a immortalidade da alma e da vida futura,
modificava profundamente as relações mutuas dos homens,
impunha-lhes novas obrigações, fazia-os encarar a vida pre-
— 222 —
sente sob outro aspecto, e devia, por isso mesmo, reagir contra
os costumes e as relações sociaes.
“E' este, incontestavelmente, por suas consequencias, o
ponto capital da revelação de Christo, cuja importancia não
se comprehendeu sufficientemente, e, contrista dizel-o, é
tambem o ponto de que mais a humanidade se tem afastado,
que mais se desconheceu na interpretação dos seus ensinos.
Entretanto, o Christo accrescenta: "Eu tenho ainda muitas
coisas que vos dizer, mas vós NÃO AS PODEIS SUPPORTAR AGORA;
eis porque vos fato por parahotas; mais tarde, porém, VOS EN-
VIAREI o Consolador, o Espirito de Verdade, que RESTABELE-
CERÁ todas as coisas e vol-as explicará todas" (João, XIV e
XVI).
"Si o Christo não disse tudo quanto poderia dizer, é
porque julgou conveniente deixar certas verdades na sombra,
até que os homens chegassem ao estado de comprehendel-as.
Como elle o confessou, o seu ensino era incompleto, pois an-
nunciára a vinda daquelle que devia completal-o; assim,
pois, previra que as suas palavras não seriam bem interpre-
tadas, e que os homens se desviariam do seu ensino; em
summa, que se desfaria o que elle fez, uma vez que todas as
coisas devem ser restabelecidas: ora, só se restabelece aquillo
que foi desfeito.
"Porque chama elle o novo messias de Consolador?
Este nome significativo, e sem ambiguidade, é uma revela-
ção. Assim, elle previra que os homens teriam necessidade
de consolações, o que implica a insufficiencia daquellas que
achariam na crença que iam fundar. Talvez nunca o Christo
fôsse tão claro, tão explicito, como nestas ultimas palavras,
ás quaes poucas pessoas prestaram attenção, provavelmente
por se ter evitado esclarecel-as e aprofundar-lhes o sentido
prophetico.
“Si o Christo não poude desenvolver o seu ensino de
maneira completa, é porque faltavam aos homens conheci-
— 223 —
mentos que só podiam adquirir com o tempo, e sem os quaes
não o comprehenderiam; muitas coisas existem que parece-
riam absurdas no estado dos conhecimentos de então.
"Por completar o seu ensino", deve entender-se no sen-
tido de explicar e desenvolver, não o de ajuntar verdades no-
vas, porque tudo se encontra ahi em estado de germen, fal-
tando-lhes só a chave para se apanhar o sentido das suas
palavras.
"Mas quem se julga autorizado a interpretar as Escri-
pturas Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possue as
necessarias luzes, senão os theologos? Quem o ousa? A scien-
cia, que, antes de tudo, dispensa toda e qualquer permissão
de quem quer que seja para fazer conhecer as leis da nature-
za, e que, de pés juntos, salta sobre os erros e prejuizos?
Quem tem esse direito? — Neste seculo de emancipação
intellectual e de liberdade de consciência, o direito de exame
pertence a todos, e as Escripturas não são mais a arca santa
na qual ninguem se atreveria a tocar com a ponta do dedo
sem correr o risco de ser fulminado. Quanto ás luzes especiaes,
necessarias, as dos theologos, por mais esclarecidos que fossem
os da edade média, e em particular os Padres da egreja, não
os impediam entretanto de condemnar como heresia o mo-
vimento da terra e a crença nos antipodas; e, sem remontar
tão longe, os theologos dos nossos dias não lançaram o aná-
thema á theoria dos periodos da formação da terra? Queren-
do a todo custo encontrar no Evangelho a confirmação de
um pensamento preconcebido, giraram sempre no mesmo
circulo, sem abandonar o seu ponto de vista, de modo que
só viram o que quizeram vêr. Por mais instruidos que fossem
os theologos, não podiam comprehender causas dependentes
de leis que desconheciam.
"Mas, quem póde dar interpretações diversas, e muitas
vezes contradictorias, fóra mesmo da theologia? O futuro, a
logica e o bom senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos,
— 224 —
á medida que novos factos e novas leis se forem revelando,
saberão separar os systemas utopicos da realidade. Ora, as
sciencias ensinam certas leis; o Espiritismo ensina outras;
mas todas são indispensaveis á intelligencia dos textos sa-
grados de todas as religiões, desde Confucio e Budha até ao
Christianismo. Quanto á theologia, ella não poderá judiciosa-
mente allegar as contradicções da sciencia, visto como tam-
bem não está sempre de accôrdo comsigo mesma.
"O Espiritismo, partindo das proprias palavras do Chris-
to, como este partiu das de Moysés, é consequencia directa
desta doutrina. A' idéa vaga da vida futura, accrescenta
elle a revelação da existencia do mundo invisivel que nos
rodeia e povôa o espaço; com isso, precisa elle a crença, dá-
lhe um corpo, uma consistencia, uma realidade no pensamen-
to. Define os laços que unem a alma ao corpo e levanta o
véo que occultava aos homens os mysterios do nascimento e
da morte. Pelo Espiritismo, o homem sabe de onde vem,
para onde vae, porque está na terra, porque soffre tempo-
rariamente: elle vê por toda a parte a justiça de Deus. Sabe
que a alma progride incessantemente através de uma série
de existencias successivas, até attingir o gráo de perfeição
que póde approximal-o de Deus. Sabe que todas as almas,
tendo um mesmo ponto de partida, são creadas eguaes, com
uma mesma aptidão para progredir, em virtude do seu livre
arbitrio; que todas são da mesma essencia, e que não ha
entre ellas diíferença sinão quanto ao progresso realizado;
que todas têem o mesmo destino e attingirão ao mesmo fim,
mais ou menos cedo, segundo o seu trabalho e boa vontade.
"A pluralidade das existencias, cujo principio o Christo
ensinou no Evangelho, sem todavia definil-o como a muitos
outros, é uma das mais importantes leis reveladas pelo Es-
piritismo, pois que demonstra a sua realidade e necessidade
para o progresso. Com esta lei, o homem explica todas as
anomalias apparentes da vida humana; as differenças de
posição social; as mortes prematuras que, sem a reincarna-
— 225 —
ção, tornariam inuteis á alma as existencias ephemeras; a
desigualdade de aptidões intellectuaes e moraes, pela ancia-
nidade do espirito, que mais ou menos aprendeu e progrediu, e
traz, nascendo, o que adquiriu em suas existencias anteriores.
"Com a doutrina da creação da alma em cada nascimen-
to, vem-se a cahir no systema das creações privilegiadas;
os homens são extranhos uns aos outros, nada os liga, os la-
ços de familia são puramente carnaes: não são de nenhum
modo solidarios com um passado em que não existiam; com a
crença no nada depois da morte, todas as relações cessam
com a vida: elles não são solidarios no futuro. Pela reincar-
nação, são solidarios no passado e no futuro, e, como as suas
relações se perpetuam, tanto no mundo espiritual como no
corporal, a fraternidade tem por base as proprias leis da
natureza; o bem tem um alcance e o mal consequencias ine-
vitaveis.
"Com a reincarnação, desapparecem os prejuizos de
raças e de castas, pois que o mesmo espirito póde tornar a
nascer rico ou pobre, capitalista ou proletario, chefe ou su-
bordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os
argumentos invocados contra a injustiça do servilismo e da
escravidão, contra a sujeição da mulher á lei do mais forte,
nenhum ha que tenha a primazia, em logica, sobre o facto
material da reincarnação. Si, pois, a reincarnação estabelece
em uma lei da natureza o principio da fraternidade universal,
tambem estriba na mesma lei o principio da igualdade dos
direitos sociaes e, por conseguinte, o da liberdade.
“Si tiraes ao homem o espirito livre, independente, so-
brevivente á materia, fareis delle uma machina organizada,
sem objectivo nem responsabilidade, sem outro freio alem
da lei civil e apta para ser explorada, como um animal in-
telligente. Nada esperando depois da morte, nenhum óbice o
impede de augmentar os gozos do presente; si soffre, dis-
— 226 —
tingue apenas a perspectiva do desespero e o nada, como
refugio.
"Com a certeza do futuro, de tornar a achar os que
amou, e com o temor de revêr aquelles a quem offendêra, todas
as suas idéas mudam.
"O Espiritismo, ainda que só tirasse o homem da duvida
relativamente á vida futura, teria feito mais pelo seu aper-
feiçoamento moral do que todas as leis disciplinares, que o
detém algumas vezes, mas que o não transformam.
"Sem a preexistencia da alma, a doutrina do peccado
original não seria somente inconciliavel com a justiça de
Deus, que tornaria todos os homens responsaveis pela falta
de um só, mas seria um contrasenso, e tanto menos justifi-
cavel quanto, segundo essa doutrina, a alma não existia na epocha em que se pretende fazer remontar-lhe a responsabilida-
de. Com a preexistencia, o homem traz, ao renascer, o ger-
men das suas imperfeições, dos defeitos de que se não corri-
giu, que se traduzem pelos instinctos nativos, e propensões
para tal ou tal vicio. E' esse o seu verdadeiro peccado original,
do qual soffre naturalmente as consequencias, mas com esta
differença capital: — que supporta a pena das suas proprias
faltas, e não as de outrem; e com esta outra differença, ao
mesmo tempo consolatoria, animadora e soberanamente jus-
ta: que cada existencia lhe offerece os meios do resgate pela
reparação, e do progresso, quér despojando-se de alguma
imperfeição, quér adquirindo novos conhecimentos, e assim
até que, estando sufficientemente purificado, não tenha mais
necessidade da vida corporal, e possa viver exclusivamente
da vida espiritual, eterna e bemaventurada.
"Pela mesma razão, aquelle que progrediu, moralmente
traz, ao renascer, qualidades nativas, como o que progrediu
intellectualmente traz idéas innatas; identificado com o bem,
pratica-o sem esforço, sem cálculo, e, por assim dizer, sem
— 227 —
pensar. Aquelle que é obrigado a combater as suas más ten-
tencias, vive ainda em luta contra ellas; o primeiro já venceu,
o segundo procura vencer. Existe, pois, a virtude original, e o
peccado ou antes o vicio original.
"O Espiritismo experimental estudou as propriedades
dos fluidos espirituaes e sua acção sobre a materia. Demons-
trou a existencia do perispirito, suspeitado desde a antiguidade
e designado por S. Paulo sob o nome de corpo espiritual, isto é,
corpo fluidico da alma depois da destruição do corpo tangivel.
Hoje sabemos que esse invólucro é inseparavel da alma, fór-
ma um dos elementos constitutivos do ser humano, é o vehi-
culo da transmissão do pensamento, e durante a vida do
corpo serve de laço entre o espirito e a materia. O peris-
pirito representa importantissimo papel no organismo e numa
multidão de affecções, que se ligam á physiologia assim como
á psychologia.
"O Espiritismo, longe de negar ou destruir o Evangelho,
vem, ao contrario, confirmar, explicar e desenvolver, pelas
novas leis da natureza, que revela, tudo quanto o Christo
disse e fez; elucida os pontos obscuros do ensino christão,
de tal sorte que aquelles para quem eram inintelligiveis certas
partes do Evangelho ou pareciam inadmissíveis, as compre-
hendem e as admittem, sem difficuldade; com o auxilio desta
novel doutrina, veem melhor o seu alcance e pódem distin-
guir entre a realidade e a allegoria; o Christo parece-lhes
maior: já não é simplesmente um philosopho, é um Messias
divino.
"Ao demais, si se considerar o poder moralizador do Espi-
ritismo, pelo fim que aponta a todas as acções da vida, pelas con-
sequencias do bem e do mal que faz sentir, pela força moral, a coragem e as consolações que dá nas afflicções, pela inalteravel
confiança no futuro, pela idéa de se ter perto de si os seres a quem
se amou, a segurança de os revêr, a possibilidade de se entre-
ter com elles; emfim, pela certeza de que tudo quanto se fez,
— 228 —
quanto se adquiriu em intelligencia, sabedoria, moralidade,
até á ultima hora da vida, não está perdido, mas tudo aprovei-
ta ao adeantamento — reconhece-se que o Espiritismo realiza
todas as promessas do Christo a respeito do Consolador annun-
ciado. Ora como é o Espirito da Verdade que preside ao grande
movimento da regeneração, a promessa da sua vinda acha-se
por essa forma realizada, porque, de facto, é elle o verdadeiro
Consolador.
Si, a estes resultados, se addicionar a rapidez prodigiosa
da propagação do Espiritismo, apezar de tudo quanto se põe
em campo para supplantal-o, não se póde negar que a sua
vinda seja providencial, visto como elle triumpha de todas
as forças e da má vontade dos homens. A facilidade com que
é acceito por tão grande numero, e isso sem constrangimento,
sem outros meios mais que o poder da idéa, próva que elle cor-
responde a uma necessidade, qual a de crêr-se em alguma coisa
para encher o vácuo aberto pela incredulidade, e que, por con-
sequencia, appareceu opportunamente."
"Os afflictos são em grande numero; não é pois de admi-
rar que, tantas pessoas acolham uma doutrina que consola,
de preferencia ás doutrinas que desesperam, porque é aos des-
herdados, mais que aos felizes do mundo, que se dirige o Es-
piritismo. O doente vê chegar o medico com maior satisfac-
ção do que aquelle que está de saude; ora, os afflictos são
os doentes e o Consolador é o medico.
"Vós, os que combateis o Espiritismo, si quereis que o
abandonemos para vos seguir, dae mais e melhor do que elle;
curae com maior segurança as feridas da alma. Dae mais
consolações, mais satisfacções ao coração, esperanças mais
legitimas, maiores certezas; fazei do futuro um quadro mais
racional, mais seductor; mas não julgueis vencel-o com a
perspectiva do nada, com as alternativas das chammas do
inferno ou com a inutil contemplação perpetua.
— 229 —
* *
*
"A primeira revelação era personificada em Moysés,
a segunda no Christo, a terceira não o é em individuo algum.
As duas primeiras são individuaes, a terceira collectiva; ahi
está um caracter essencial de grande importancia. Ella é col-
lectiva no sentido de não ser feita ou dada como privilegio
a pessoa alguma, por consequencia, ninguem pode inculcar-
se como propheta exclusivo; foi espalhada simultaneamente
por sobre a terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e
condições, desde a mais baixa até á mais alta da escala, con-
forme esta predicção narrada pelo autor dos Actos dos Apos-
tolos: "Nos ultimos dias, disse o Senhor, derramarei o meu es-
pirito sobre toda a carne; vossos filhos e filhas prophetizarão, os mancebos terão visões e os velhos sonhos" (Actos, 2:17, 18).
Ella não proveiu de nenhum culto especial, afim de servir
um dia a todos de ponto de reunião." (1)
"As duas primeiras revelações, sendo fructo de ensino
pessoal, foram forçosamente localizadas, isto é, apparece-
ram num só ponto, em torno do qual a idéa se propagou pou-
____________
(1) "O nosso papel pessoal, no grande movimento de idéas que se prepara
pelo espiritismo, e que começa a operar-se, é o de um observador attento,
que estuda os factos para procurar a sua causa e tirar-lhe as consequencias.
Confrontámos todos aquelles que nos tem sido possivel reunir, compará-
mos e commentámos as mstrucções dadas pelos espíritos em todos os pon-
tos do globo, e depois coordenámos methodicamente o conjuncto; em sum-
ma, estudámos e démos ao publico o fructo das nossas indagações, sem at-
tribuirmos aos nossos trabalhos valor maior que o de uma obra philosophi-
ca deduzida da observação e da experiencia, sem nunca nos considerarmos
chefe da doutrina, nem procurarmos impôr as nossas idéas a quem quer
que seja. Publicando-as, usámos de um direito commum, e aquelles que as
acceitaram o fizeram livremente. Si essas idéas acharam numerosas sympa-
thias, é poaque tiveram a vantagem de corresponder ás aspirações de um
avultado numero, mas disso não colhemos vaidade alguma, uma vez que a
sua origem nos não pertence. O nosso maior merito é a perseverança e a
dedicação á causa que abraçamos. Em tudo isto, fizemos o que outro qual-
quer poderia ter feito como nós; razão pela qual nunca tivemos a preten-
são de nos julgar propheta ou messias, e ainda menos de nos apresentar
como tal."
— 230 —
co a pouco; mas foram precisos muitos seculos para que el-
las attingissem as extremidades do mundo, sem mesmo o
invadirem inteiramente. A terceira tem isto de particular: não
sendo personificada em um só individuo, surgiu simultanea-
mente em milhares de pontos differentes, que se tornaram
centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se esses centros,
os seus raios reunem-se pouco a pouco, como os circulos for-
mados por uma multidão de pedras lançadas na agua, de
tal sorte que, em dado tempo, acabam por cobrir toda a su-
perficie do globo.
"Tal é uma das causas da rapida propagação da doutri-
na. Si ella tivesse surgido num só ponto" — attentemos bem!
"si fôsse obra exclusiva de um homem, teria formado sei-
tas em roda de si; teria talvez decorrido meio seculo, porém,
sem que ella attingisse os limites do paiz onde começara, ao
passo que após dez annos, extende raizes de um pólo ao ou-
tro. (1)
__________
(1) — Escripto em 1867. Seu autor considera o Espiritismo, mar-
cando epocha, de Janeiro de 1857, data da 1.ª edição do "Livro dos Espi- ritos".
Por ser de importancia historica, achamos indispensavel dizer algumas
palavras sobre a origem do Espiritismo. Trazemos para aqui a opinião in-
suspeita do dr. João Antunes ("O Espiritismo", pag. 19 e segs. da collecção
"Psychologia Experimental"): "Foi ha pouco mais de sessenta annos. Hydesville era uma peque-
na aldeia do Estado de Nova York envolvida em pradarias ridentes, ac-
cusando nitidamente o cunho caracteristico da actividade americana.
John Fox era um velho rendeiro, typo de yankee de rigidas e inabata- veis convicções protestantes.
Ora, uma suave e tranquilla noite, começaram de ouvir-se ruidos syn-
chronicos, afôfados uns, nitidos outros, que despertaram na attenção ex-
pectante das filhas de Fox a curiosidade, o desejo da inquirição do mys-
terio. A conversação entabolou-se e a tiptologia surgiu naquelle contacto
rudimentar com o obsidiante visitante d'além-campa. Quem obsidiava a
casa de Fox? — Joseph Ryan.
E queria o contacto claro e franco da opinião publica. O temperando
ás exigencias de Ryan, a familia Fox deslocou-se para Rochester. Começa-
ra a luta. Ryan operava o bater cadenciado de mesas com respostas per-
turbadoras.
Contra Fox ergueu-se a avalanche dos ministros da sua crença, dos
— 231 —
"Esta circumstancia, inaudita na historia das doutri-
nas, dá a esta uma força excepcional e um irresistivel poder
de acção; de facto, si a perseguirem num ponto em determi-
nado paiz, é materialmente impossivel perseguil-a em toda
a parte e em todos os paizes. Para um lugar em que a sua mar-
cha fôr embaraçada, haverá mil outros em que ella florescerá.
Ainda mais: si a impedirem num individuo, não poderão im-
pedil-a nos Espiritos, que são a sua origem.
___________
pamphletos irreverentes, da critica causticante. E, a despeito de tudo, as
mesas tornavam-se á forma classica do vinculo e da correspondencia com
as entidades astraes do mysterio.
O ultimo desafio consistiu na constatação publica e juridica do pheno-
meno perante uma Commissao idonea. A experiencia realizou-se em Co-
rynthial Hall, com selecta assistencia e, caso interessante, o espirito pers-
crutante da Commissão de Inquerito "não descobriu o menor vislumbre de fraude".
A idéa espirita avançava a passo de gigante. A Commissao ia sendo
lynchada. Começava a perseguir-se a idéa; era a melhor fórma de vingar.
Reuniu-se segunda, terceira Commissao. Resultado identico. Os espiritos —
garantiam commissionados insuspeitos — manifestaram-se. A ameaça,
a critica, o sarcasmo, não derruiam as theorias nascentes e, passados tem-
pos, eram aos milhares os espiritas na America".
Mas a verdadeira origem historica do Espiritismo data de 1827, com
as notaveis experiencias do Dr. J. Larkin, medico da cidade de Wrenthan
(Massachusetts), muitíssimo conhecido em sua epocha nos Estados Uni-
dos, o qual, entre 1837 e 1848, havendo emprehendido pesquizas sobre o
magnetismo animal, obteve manifestações supranormaes muito notaveis,
cuja natureza, nitidamente espirita, induz a affirmar que, si se tivessem dado
a conhecer estas manifestações tanto quanto ellas mereciam, o movimento
espirita em vez de datar dos "golpes batidos" de Hydesville, com as irmãs
Fox, datariam das experiencias magneticas do Dz. J. Larkin. As revistas
espiritas que appareceram nos Estados Unidos trataram amplamente da
questão do Dr. Larkin e de suas experiencias; a revista The Spiritual Te-
legraph (1852-1857) reivindica para elle o direito de ser registrado entre os
precursores mais notaveis do Espiritismo. Entre os historiadores do movi-
mento, Mrs. Emma Harding é a unica a falar delle em sua obra "Modern
American Spiritualism".
— 232 —
"Ora, como os Espiritos estão em toda a parte e existi- rão sempre; si, por um acaso impossivel, se conseguisse suffo- cal-a em todo o globo, ella reappareceria pouco tempo depois, porque repousa sobre um facto que está na natureza, e não se póde supprimir as leis da natureza. Eis ahi o de que se de- ____________
Este honrado scientista, depois de innumeras peripecias, não queren-
do comprometter sua reputação profissional, viu-se obrigado, ante a elo-
quencia dos factos, a chamar collegas seus, que testemunharam a veraci-
dade dos factos. Das somnambulas que trabalharam com o Dr. Larkin,
tornou-se notavel Mary Jane, pelas excellentes faculdades que possuia.
E, "além das personalidades mediumnicas de "Katy", — diz o eminentis-
simo scientista Ernesto Bozzano — das "fadas" e do “grumete", varias
outras se manifestaram ainda, declinando seus nomes e suas qualidades;
indicavam os lugares onde tinham nascido e morrido, e forneciam detalhes
minuciosos sobre as occorrencias da sua existencia terrestre. O Dr. Lar-
kin, que era um pesquizador meticuloso e systematico, transcrevia estes
dados para um registro especial, que, no correr dos annos, ficou cheio de
informações biographicas concernentes á existencia terrestre de 270 espi-
ritos de mortos, informações que elle se encarregava de verificar uma a
uma, constatando sempre a verdade dos dado obtidos, assim como os de-
talhes mais insignificantes. Foi isto que fel-o triumphar definitivamente
do seu septicismo, estabelecendo a sua convicção, que os espiritos e mortos
se communicavam por intermedio da somnambula Mary Jane. Esta con-
clusão tinha a grande vantagem de resolver de um golpe, assim, as outras
perplexidades de interpretação até alli impenetraveis ao raciocinio do Dr.
Larkin".
— Merecem attenção os factos da vida de John Wesley, fundador da
Egrcja Methodista, o qual já em 1716, registrou "em seu "Diario" um cento
de historias de apparições", chegando ao ponto de estabelecer um colloquio
com os Espiritos e dispensar estas phrases: "Estes Espiritos amam as tre-
vas (escuridão). Apaga a vela e talvez fale". A sua filha Anna apagou a ve-
la e o parocho repetiu a sua adjuração nas trevas; mas houve apenas pan-
cadas em resposta. Com isto, elle disse: “Anna, dois christãos são por de-
mais fortes para o diabo; desce a escada. Pode ser que, quando eu estiver
sozinho, elle terá coragem de falar." “A filha, tendo saido, elle disse: “Si
tu és o Espirito de meu filho Samuel, peço-te que dês ires pancadas e mais ne-
nhuma".
Estes testemunhos são confirmados pela sra. Wesley. (Veja-se a obra
"Wesley e seu seculo" — á venda na "Imprensa Melhodista", S. Paulo —
Vol. I, liv. I, cap. III).
— 233 —
vêm persuadir aquelles que sonham o anniquilamento do
Espiritismo.
"Entretanto, esses centros disseminados poderiam ainda
permanecer por muito tempo isolados uns dos outros, confi-
nados como estão alguns em paizes longinquos; era necessa-
rio entre elles uma ligação, que os puzesse em communhão
de idéas com seus irmãos em crença, communicando-lhes o
que se fizesse além. Esse traço de união, que na antiguidade
faltaria ao Espiritismo, hoje objectiva-se nas publicações es-
palhadas por toda a parte, condensando, sob uma fórma uni-
ca, concisa e methodica, o ensino dado universalmente sob
fórmas multiplas e em diversas linguas.
"As duas primeiras revelações só podiam ser o resultado
de um ensino directo; como os homens não estivessem ainda
bastante adeantados afim de concorrerem para a sua elabo-
ração, ellas deviam ser impostas pela fé sob a autoridade da
palavra do mestre. Comtudo, notamos entre ellas bem sen-
sivel differença, devida ao progresso dos costumes e das idéas,
si bem que feitas no mesmo povo e no mesmo meio, mas após
dezoito seculos de intervallo. A doutrina de Moysés é abso-
luta, despotica; não admitte discussão, e impõe-se ao povo
pela força, A de Jesus é essencialmente conselheira; é livre-
mente acceita, e só se impõe pela persuação; foi combatida
desde o tempo do seu fundador, que não desdenha discutir
com os seus adversarios.
"A terceira revelação, vinda numa epocha de emancipa-
ção e madureza intellectual, em que a intelligeucia já desen-
volvida não se resolve a representar um papel passivo, em
que o homem nada acceita ás cégas, mas quer vêr onde o
conduzem, quer saber o porque e o como de cada coisa — de-
via ser ao mesmo tempo o producto de um ensino e o fru-
cto do trabalho, da pesquiza e do livre-exame. Os Espíritos
não ensinam sinão justamente o que é mister para guiar no
caminho da verdade, mas abstem-se de revelar o que o homem
— 234 —
póde achar por si mesmo deixando-lhe o cuidado de discutir,
verificar e submetter o conjuncto ao cadinho da razão, dei-
xando-lhe mesmo muitas vezes adquirir experiencia á sua
custa. Fornecem-lhe o principie e os materias: a elle per-
tence aproveitai os e pôlos em pratica.
"Como os elementos da revelação espirita fossem forne-
cidos simultaneamente, em uma multidão de pontos, a ho-
mens de todas as condições sociaes e de diversos graus de
instrucção, é bem claro que as observações não podiam ser
feitas em toda a parte com o mesmo resultado; e as conse-
quencias a tirar, a deduccção das leis que régem esta ordem
de phenomenos, em resumo, a conclusão que devia firmar
as idéas, não podiam sair sinão do conjuncto e da correlação
dos factos. Ora, cada centro isolado, e circumscripto a um cir-
culo resti icto, não véndo a maior parte das vezes sinão uma
ordem particular de factos, algumas vezes contraditorios em
apparencia, geralmente só tendo relações com uma unica ca-
tegoria de Espiritos e, demais, embaraçado por influencias
locaes e pelo espirito de partido, achava-se na impossibili-
dade material de abranger o todo, e, por essa mesma razão
incapaz de ligar as observações isoladas a um principio com-
mum. Apreciando cada qual os factos sob o ponto de vista
de seus conhecimentos e crenças anteriores, ou da opinião
particular dos Espiritos que se manifestassem, haveria bem
cedo tantas theorias e systemas quantos centros, todos elles
incompletos por falta de elementos de comoaração e exame.
Em uma palavra, cada qual se teria immobilizodo na sua re-
velação parcial, julgando possuir toda a verdade. ignorondo
que em cem outros lugares se obtinha mais ou melhor.
"Além disso, convem notar que em parte alguma o en-
sino espirita foi dado integralmente; prende-se elle a um tão
grande numero de observações, a assumptos tão differentes
que exigem conhecimentos e apridões mediumnicas especiaes,
sendo impossivel resumir num mesmo individuo todas as con-
dições necessarias. Como o ensiino deve ser collectivo e não
— 235 —
individual, os Espiritos dividiram o trabalho, disseminando
os assumptos de estudo e observação como, em algumas fa-
bricas, a confecção de cada parte de um mesmo objecto é
repartida por diversos operarios.
"A revelação fez-se assim parcialmente em diversos lu-
gares e por uma multidão de intermediarios: e é dessa ma-
neira que ainda neste momento ella prosegue, porque ainda
não foi revelado tudo. Cada centro encontra em outros cen-
tros o complemento do que elle obteve, e o conjuncto, a
coordenação de todos os ensinos parciaes constituiram a dou- trina espirita.
"Era necessario agrupar os factos espalhados para conhe-
cer a sua correlação, reunir os documentos diversos, as ins-
trucções dadas pelos espiritos sobre todos os pontos e sobre
todos os assumptos, para comparal-as, analysal-as, estudar-
lhes as analogias e differenças. Sendo as communicações da-
das por Espiritos de todas as ordens, mais ou menos escla-
recidos, era preciso apreciar o grau de confiança que a razão
permittia conceder-lhes, distinguir entre as idéas systemati-
cas individuaes ou isoladas e as que tinham a sancção do
ensino geral dos Espiritos — entre as utopias e as idéas
praticas, afastar as que eram notoriamente desmentidas pe-
los dados da sciencia positiva e da logica, utilizar igualmen-
te os erros, as informações fornecidas pelos Espiritos, mesmo
os da mais baixa classe, para o conhecimento do estado do
mundo invisivel, e formar com isso um todo homogeneo.
Era preciso, numa palavra, um centro de elaboração, inde-
pendente de qualquer idéa preconcebido, de todo o prejui-
zo de seita, resolvido a acceitar a verdade tornada evidente,
embora contrária ás opiniões pessoaes. Este centro formou-se
por si mesmo, pela força das cousas e sem designio pre-
meditado.
*
* *
"Tem outro caracter a revelação espirita, resultante das
proprias condições em que é feita, pois que, apoiando-se sobre
— 236 —
factos, é ella, e não póde deixar de ser, essencialmente progres-
siva, como todas as sciencias de observação. Por sua essencia,
ella contráe alliança com a sciencia que, sendo a exposição
das leis da natureza, em uma certa ordem de factos, não póde
ser contrária á vontade de Deus, o autor dessas leis. As des-
cobertas da sciencia glorificam a Deus em vez de o rebaixar; ellas só destróem o que os homens construíram sobre as idéas
falsas que formaram acerca de Deus.
"O Espiritismo estabelece, pois, como principio absoluto
somente o que é demonstrado com evidencia, ou o que se
deduz logicamente da observação. Tocando em todos os ra-
mos da economia social, aos quaes presta o apoio das suas
proprias descobertas, elle sempre assimilará todas as doutri-
nas progressivas, de qualquer ordem que sejam, chegadas ao
estado de verdades praticas, e sahidas do dominio da utopia;
sem isso elle se suicidaria; cessando de ser o que é, mentiria
á sua origem e ao escopo providencial.
"O Espiritismo, marchando com o progresso, não será
jamais excedido, porque si novas descobertas lhe demonstrarem
que está cm erro sobre um ponto, elle se modificará sobre esse
ponto; si uma nova verdade se revelar, elle a acceitará. (1)
RAÇA ADAMICA
Segundo o ensino dos Espiritos, a raça adamica é uma dessas grandes immigrações, ou, por outra, uma dessas co- lonias de Espiritos, vindos de outra esphera, que deu nasci- mento á raça symbolizada na pessoa de Adão, e, por esse __________
(1 "Perante declarações tão claras e tão categoricas, como as que con-
tém este capitulo, cáem todas as allegações de tendencia ao absolutismo e á
autocracia dos principios, todas as falsas assimilações que as pessoas pre-
venidas ou mal informadas prestam á doutrina. Ao demais, essas declara-
ções não são novas; temol-as repetido muitas vezes em nossos escriptos,
para não deixar duvida alguma a esse respeito. Além disso, assignalam o
nosso verdadeiro papel, o unico que ambicionamos, o de trabalhador",
— 237 —
motivo, chamada raça adamia. Quando ella chegou, a terra
era povoada desde tempos immemoriaes, como a America, quando nella chegaram os europeus.
"A raça adamica, mais adeantada que aquellas que a
precederam na terra, é de facto a mais intelligente; é ella que
leva todas as outras ao progresso. A Genesis nol-a apresenta,
desde a sua apparição, industriosa, apta para as artes e scien-
cias, sem ter passado pela infancia intellectual, o que não é
proprio das raças primitivas, mas que concorda com a opi-
nião de que ella se compunha de Espiritos que já haviam pro-
gredido. Tudo próva que ella não é antiga na Terra, e nada
se oppõe a que não esteja ahi apenas ha alguns milhares de
annos, o que não estaria em contradicção com os factos geolo-
gicos, nem com as observações anthropologicas, mas ao con-
trario tenderia a confirmal-as.
"A doutrina que faz proceder todo o genero humano
de uma individualidade, ha seis mil annos, não é admissivel
no estado actual dos conhecimentos. As principaes conside-
rações que a contradizem, tiradas da ordem physica e da or-
dem moral, resumem-se nos pontos seguintes:
"Sob o ponto de vista physiologico, certas raças apresen-
tam typos particulares caracteristicos, que permittem dar-
se-lhes origem commum. Existem differenças que evidente-
mente não são o resultado dos effeitos do clima, pois os bran-
cos que se reproduzem no paiz dos negros não se tornam negros,
e reciprocamente. O ardor do sol queima e torna trigueira a
epiderme, mas nunca transformou o homem branco em preto,
achatando-lhee o nariz, mudando-lhe os traços da physionomia, e
tornando-lhe encarapinhados os longos e luzidios cabellos. Sabe-
se hoje que a côr do negro provém de um tecido peculiar sub-
cutaneo inherente á especie.
"E' preciso, portanto, considerar as raças negra, mongo-
lica, caucasica, tendo origem propria e havendo nascido si-
multanea ou successivamente em diversas partes do globo;
— 238 —
o seu cruzamento produziu raças mixtas, secundarias. Os
caractéres physiologicos das raças primitivas são o indicio
evidente de que ellas provém de typos especiaes. As mesmas
considerações existem, pois, para o homem como para os ani-
maes, quanto á pluralidade das origens.
"Adão e seus descendentes são representados na Genesis
como homens essencialmente intelligentes, porquanto desde
a segunda geração, fundaram cidades, cultivaram a terra
e trabalharam em metaes. Seus progressos nas artes e scien-
cias foram rapidos e constantes. Não se póde, pois, conceber
que elles tivessem, por descendentes, povos numerosos tão
atrazados, de intelligencia tão rudimentar, que ainda hoje
marcham a par da animalidade, e que perdessem todos os tra-
ços e até a menor lembrança do que faziam seus paes. Dif-
ferença tão radical nas aptidões intellectuaes e n0 desenvol-
vimento moral attesta, não menos evidentemente, uma dif-
ferença de origem. Independentemente dos factos geologicos,
a próva da existenoia do homem na Terra antes da epocha
fixada pela Genesis é tirada da população do globo.
"Sem falar da chronologia chineza, que remonta, diz-se, a
trinta mil annos, documentos mais authenticos attestam que
o Egypto, a India e outras regiões eram povoadas e flores-
ciam ao menos tres mil annos antes da era christã, mil an-
nos, por conseguinte, depois da creação do primeiro homem se
gundo a chronologia biblica. Documentos e observações re-
centes não deixam hoje duvida alguma sobre as relações que
existiram entre a America e os antigos Egypcios; donde não
se póde deixar de concluir que esse continente já era povoado
nessa epocha. Seria preciso, pois, admittir que em mil annos
a posteridade de um só homem pudesse cobrir a maior parte
da Terra; ora, uma tal fecundidade seria contrária a todas
as leis anthropologicas.
"A impossibilidade torna-se ainda mais evidente si se
admittir, com a Genesis, que o diluvio destruisse todo o genero humano, á excepção de Noé e sua familia, que não era nume-
— 239 —
rosa, no anno do mundo de 1656, ou 2348 antes da era christã.
Seria então, realmente de Noé, que dataria o povoamento do
globo; ora, quando os hebreus se estabeleceram no Egypto,
612 annos depois do diluvio, este paiz já era um poderoso im-
perio que deveria ter sido povoado, sem falar dos outros pai-
zes, em menos de seis seculos, pelos unicos descendentes de
Noé, o que é inadmissivel.
"Devemos notar, de passagem, que os egypcios acolhe-
ram os hebreus como extrangeiros; seria para admirar que
elles tivessem perdido a lembrança de uma communicade
de origem tão proxima, quando conservavam religiosamente
os monumentos da sua historia. Uma logica rigorosa, corro-
borada pelos factos, demonstra, pois, peremptoriamente, que
o homem existe sobre a Terra desde tempo indeterminado,
bem anterior á epocha assignaldada pela Genesis. O mesmo
succede com a diversidade dos troncos primitivos; porque,
demonstrar a impossibilidade de uma proposição, é demons-
trar a proposição contrária. Si a geologia descobrir vestigios
authenticos da presença do homem antes do grande periodo
diluviano, a demonstração será ainda mais absoluta. (Allan
Kardec — "A Genesis")
O PARAIZO PERDIDO
O FRUCTO PR0HIBID0 — ADÃO E EVA — CAIM
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
"Si, literalmente, a falta de Adão foi devida a ter elle
comido um fructo, ella não póde, inconstestavelmente, por
sua natureza quasi pueril, justificar o rigôr com que elle foi
castigado. Racionalmente tambem não se póde admittir o
que se suppõe geralmente; de outra sorte, considerando Deus
esse facto um crime irremissivel, condemnava a sua propria
obra, pois havia creado o homem para a propagação. Si Adão
entendesse nesse sentido a prohibição de tocar no fructo da
— 240 —
arvore, e si se houveesse conformado com ella escrupulosa-
mente, onde estaria a humanidade, e o que teria sido dos de-
signios do Creador?
"Deus, por certo, não creou Adão e Eva para ficarem sós
na terra; e a prova está nas proprias palavras que lhes diri-
giu logo após a sua formação, quando ainda se achavam no
paraizo terrestre: "Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e
multiplicae-vos, enchei a terra e dominae-a". (Genesis, cap.
1:28). Estabelecida a prolificação do homem como uma lei,
desde o paraizo terrestre, a sua expulsão não poderia ter por
causa o facto supposto.
"O que fez dar credito a essa supposição, foi o senti-
mento de vergonha que se apoderou de Adão e Eva, com a
presença de Deus, e que os levou a se esconderem. Mas essa
vergonha é por si mesma uma figura para comparação: a qual
symboliza a confusão que todo culpado experimenta em pre-
sença daquelle a quem offendeu.
"Qual foi, pois, em definitiva, essa falta tão grande que
poude ferir de reprovação, perpetuamente, todos os descen-
dentes daquelle que a commetteu? — Caim, que assassinou
seu irmão, não foi tratado com tanta severidade. Nenhum
theologo poude jamais definil-a logicamente, porque todos
giraram num circulo vicioso, aferrados ao sentido literal.
"Hoje sabemos que essa falta não é um acto isolado, pe-
culiar a um só individuo, porem abrangendo, sob um facto
allegorico unico, a universalidade das prevaricações de que
se póde tornar culpada a humanidade, ainda imperfeita da
terra, e que se resume nestas palavras: infracção á Lei de Deus.
Eis a razão por que a falta do primeiro homem, que symboliza
a humanidade, symboliza-a tambem por um acto de deso-
bediencia.
"Dizendo a Adão que elle tiraria a sua nutrição da terra
com o suor do seu rosto, Deus symbolizou a obrigação do
— 241 —
trabalho; mas, porque motivo fez Elle do trabalho uma pu-
nição? Que seria da intelligencia do homem, si este não a des-
envolvesse pelo trabalho? Que seria da terra, si ella não fôsse
fecundada, transformada, saneada pelo trabalho intelligente
do homem?
"Disseram: (cap. 2:5 e 7): "O Senhor Deus não tinha
ainda feito chover sobre a terra, e não havia homens para
cultival-a. O Senhor formou, então, o homem, do limo da
terra. Taes as palavras, que, juntas a estas: Enchei a terra,
provam que o homem era, desde a sua origem, destinado a
occupar toda a terra e a cultivai-a; e por outra, que o paraizo
não era um lugar circumscripto a um canto do globo. Si a
cultura da terra fôsse uma consequencia da falta de. Adão,
resultaria que, si Adão não peccassa, a terra teria ficado in-
culta e os planos de Deus não se realizariam.
"Porque razão disse Elle á mulher que ella teria dôres
ao lhe nascerem os filhos, visto haver commettido a falta?
Como póde a dôr do parto ser castigo, sendo, como é, conse-
quencia do organismo e estando provado physiologicamente
ser ella necessaria? Como póde ser punição um phenomeno
que está de accôrdo com as leis da natureza? E' o que os
theologos ainda não explicaram, nem poderão explicar era-
quanto não sahirem do plano em que se collocaram; entre-
tanto essas palavras, em apparencia tão contraditorias, pódem
ser justificadas.
"Observemos em primeiro lugar que, si no momento da
creação de Adão e Eva suas almas acabassem de ser tiradas
do nada, como se ensina, elles deviam ser inscientes de todas
as coisas; não deviam saber o que é morrer. Uma vez que se
achavam sós na terra, emquanto viverem no paraizo terres-
tre, não tinham visto ninguem morrer; como pois poderiam
comprehender em que consistia a ameaça de morte que Deus
lhes fazia? Como poderia Eva comprehender que dar á luz
entre dôres seria punição, ella que acabava de fazer a sua
— 242 —
apparição na terra nunca tendo tido filhos e sendo a unica
mulher no mundo?
"As palavras de Deus não deviam, pois, ter sentido algum
para Adão e Eva. Apenas tirados do nada, não deviam saber
porque nem como delle tinham sahido; não deviam compre-
hender o Creador nem o fim da prohibição que se lhes fazia.
Sem experiencia alguma das condições da vida, peccaram co-
mo creanças que agem sem discernimento, o que torna mais
incomprehensivel ainda a terrivel responsabilidade que Deus
fez pesar sobre elles e sobre toda a humanidade.
"O que é impenetravel para a theologia, o Espiritismo
explica sem difficuldades, racionalmente, pela anterioridade
da alma e a pluralidade das existencias, lei sem a qual tudo é
mysterio e anomalia na vida do homem. Admittindo que
Adão e Eva tivessem já vivido, tudo se justificará: Deus não
lhes fala mais como a creanças, mas como a entes em estado
de comprehendel-o e o comprehendem, provando evidente-
mente que elles tinham uma existencia anterior. Admittamos,
tambem, que elles tenham vivido num mundo mais adeantado
e menos material que o nosso, onde o trabalho do espirito sup-
pria o trabalho do corpo: que, pela sua rebellião á lei de Deus,
figurada pela desobediencia, foram delle excluidos e exilados
por punição sobre a terra, onde o homem, em consequencia
da natureza do globo, é forçado ao trabalho corporal, e então
Deus tinha razão para dizer: No mundo em que ides viver,
de hoje em de ante, cultivar eis a terra e della tirareis a vossa nutrição com o suor do rosto; e á mulher: Tereis dôres quando
derdes á luz, porque é essa a condição desse mundo.
"O paraizo terrestre, cujos traços se têem procurado in-
utilmente sobre a terra, era pois a figura do mundo feliz onde viveu. Adão, ou antes a phalange dos espiritos de que elle é a
personificação. A expulsão do paraizo marca a occasião em
que esses espiritos vieram incarnar-se entre os habitantes
deste mundo, e a mudança de situação que foi a sua conse-
quencia. O anjo armado de uma espada chammejante, que
— 243 —
defende a entrada do paraizo, symboliza a impossibilidade em
que os espiritos de mundos inferiores estão de penetrar nos
planetas superiores antes de o merecerem pela sua purifi-
cação.
“Caim (depois da morte de Abel) respondeu ao Senhor:
"A minha iniquidade é demasiadamente grande para poder
obter o perdão, Vós me expulsaes da terra, e irei occultar-me
das vossas vistas. Serei fugitivo e errante sobre a terra, e,
quem quér que me encontre, me matará". O Senhor lhe res-
pondeu: "Não, isso não acontecerá; porque, quem quér que
seja o que matar Caim, será punido severamente. E o Senhor
poz um signal em Caim, afim de que aquelles que o encontras-
sem o não matassem".
"Caim, tendo-se retirado de deante di Senhor, vagueou
pela terra, e foi habitar para os lados da região oriental do
Eden. E, tendo-o conhecido, sua mulher concebeu e pariu
a Henoch. Elle edificou (Vaiehi boné; literal: estava edifi-
cando) uma cidade que chamou Henoch (Enochia), do nome
de um filho (cap. 4:13-a 16).
"Si se tomar a Genesis á letra, eis a que consequencia
se chaga: Adão e Eva estavam sós no mundo, depois da sua
expulsão do paraizo terrestre; foi só posteriormente que ti-
veram por filhos Caim e Abel. Ora Caim, tendo matado seu
irmão, e tendo-se retirado para outra região, não tornou a vêr
seu pae e mãe, que de novo ficaram sós; e somente muito tem-
po depois, na idade de cento e trinta annos, foi que Eva teve
um filho chamado Seth. Depois do nascimento de Seth, vi-
vera elle ainda, segundo a genealogia biblica, oitocentos annos
e teve filhos e filhas.
"Quando Caim veiu estabelecer-se no Oriente do Eden,
não havia pois sobre a terra senão tres pessoas: seu pae e sua
mãe, e elle só do seu lado. Entretanto, teve uma mulher e
um filho; que mulher seria essa, e onde foi elle buscal-a? O
texto hebreu diz: Elle estava edificando uma cidade, e não ele
— 244 —
edificou, o que indica uma acção presente e não anterior;
mas uma cidade suppõe habitantes; porque não se deve pre-
sumir que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem
que a pudesse elle só construir.
"Dessa mesma narração, deve-se inferir que a região
era povoada; ora, não o podia ser pelos descendentes de Adão,
que então só consistia de Caim.
"A presença de outros habitantes é comprovada igual-
mente por estas palavras de Caim: "Serei fugitivo e errante,
e quem quér que me encontre me matará", e da resposta que
Deus lhe deu. Por quem esperava elle ser morto, e para quê o
signal que Deus lhe poz para preserval-o, si elle não devia
encontrar ninguem? Si, pois, existiam sobre a Urra outros ho-
mens além da familia de Adão, é porque esses ahi estavam
antes delle; donde se deduz esta consequencia tirada do pro-
prio texto da Genesis: que Adão não é o primeiro, nem o unico
tronco do genero humano.
"Foram precisos os conhecimentos que o Espiritismo
trouxe, concernentes ás relações do principio espiritual e do
material, sobre a natureza da alma, sua creação, estado de
simplicidade e ignorancia, sua união com o corpo, sua mar-
cha progressiva e indefinida através das existencias succes-
sivas pelos mundos, que são outros estádios no caminho do
aperfeiçoamento, sua libertação gradual da influencia da ma-
teria pelo uso de seu livre arbitrio, a causa das suas inclina-
ções boas ou más e das suas aptidões, o phenomeno do nasci-
mento e da morte, estado do espirito na erraticidade, emfim
o futuro, que é o premio dos seus esforços para se aperfeiçoar
e da sua perseverança no bem — para lançar a luz sobre to-
das as partes da Genesis espiritual.
"Graças a esta luz, o homem sabe donde vem, para onde
vae, porque razão está na terra e porque soffre; sabe que o
seu futuro está nas suas mãos, e que de si proprio depende a
duração do seu captiveiro neste mundo. A Genesis, despida
— 245 —
da allegoria estreita e mesquinha, apparece-lhe grande e digna
da magestade, da bondade e da justiça do Creador.
"Considerada sob este ponto de vista, a Genesis confun-
dirá a incredulidade e vencel-a-á." (Allan Kardec — "A Ge-
nesis").
ALLAN KARDEC — SUA VIDA E SUA OBRA —
O QUE DIZ O "Estado de S. Paulo" SOBRE O SABIO
FLAMMARION
E' de imprescindivel necessidade a inclusão destas linhas,
sobre a individualidade de Allan Kardec. Sobre seu nome e
sua memoria tem sido lançado o que de mais insensato possa
produzir o "preconceito sectario", mesmo da parte de pes-
soas illustradas e de... responsabilidade.
Quem collaborou com um Pestalozzi; quem produziu
as obras como essas cuja relação o leitor vae vêr; quem viveu
trabalhando pelo aperfeiçoamento moral e intellectual da
mocidade; quem deixou discipulos cujos nomes se integraram
no patrimonio intellectual da humanidade — não podia ser
uma nullidade, não podia ser um mystificador, muito menos
um "embaixador do diabo", conforme pensam alguns dos
profitentes das doutrinas do Crucificado. Com embaixadores
da estructura moral de Kardec, o diabo ficaria fallido em
dois tempos.
Nascido no catholicismo, educou-se Kardec no protes-
tantismo, de cuja crença se fez adepto. Era doutor em medi-
cina e bacharel em sciencias e letras, e além disso, falava e
escrevia correctamente o allemão, o inglez, o italiano e o
hespanhol, conhecendo tambem a lingua hollandeza. Como
sabe o leitor, Allan Kardec era francez. Professor abalizado,
escreveu diversas obras didacticas, entre as quaes avultam:
"Plano para o melhoramento da instrucção publica", 1828;
"Curso Theorico e Pratico de Arithmetica, segundo o methodo
— 246 —
de Pestalozzi, para uso dos Professores e das Mães de familia",
1829; "Grammatica Frahceza Classica", 1831; "Manual para
exames de capacidade"; "Soluções Racionaes de Questões e
Problemas de Arithmetica e de Geometria", 1846; "Progranima
dos Cursos Ordinarios de Physica, Chimica, Astronomia e
Physiologia", que o autor fazia, como professor, no Lyceu
Polymathico; "Pontos para os exames da Municipalidade e
da Sorbonne", acompanhados de "Instrucções Especiaes sobre
as Difficuldades Orthographicas", obra muito estimada na
epocha da sua apparição, da qual ultimamente se faziam
novas edições (1866).
Apresentamos á apreciação do leitor uma synthese ma-
gnifica, sobre a obra de Kardec, graças á competente opero-
sidade de Leopoldo Cirne, illustre jornalista e sincero crente
nas verdades do christianismo.
"Ha meio seculo — foi precisamente a 18 de Abril de
1857 — um grave pensador lançava aos ventos da publicida-
de, em Paris, uma obra que — mal suspeitariam os seus
contemporAneos — devia constituir-se dentro em pouco
tempo a pedra angular do edificio levantado á sabedoria do
porvir. Esse pensador chamava-se Allan Kardec, e a obra,
que seria ao mesmo tempo o começo de sua immortalização,
intitulava-se "O Livro dos Espiritos".
"Da sua publicação, com effeito, data verdadeiramente o
movimento de renovação espiritualista que illuminou a ultima
metade do seculo passado e fará a gloria e a redempção do
seculo em que vivemos. Porque os phenomenos de que trata
esse livro, e que lhe deram origem, são quasi tão velhos como
o proprio mundo. Quem, de facto, remontando ás tradições
dos mais antigos povos, e reparando mesmo, pelo poder evo-
cativo da lembrança, nas narrativas que lhe embalaram o
berço, transmittidas de paes a filhos, desde os mais remotos
ascendentes, não reconhecerá esse phenomeno, ora intermit-
tente, ora constante, das manifestações das almas do outro
— 247 —
mundo, ou a intervenção dos espiritos nos successos da vida
humana? O que lhes faltava era a coordenação logica, a
observação systematizada, fria e analytica, que as fizesse
apear das regiões da lenda para o dominio da experimentação
scientifica.
"Foi esse precisamente o papel de Allan Kardec. E'
verdade que, ao seu tempo, esses phenomenos até então dis-
persos desordenadamente através do passado, adquiriram um
cunho de regularidade e mesmo de generalidade, que os per-
mittiu observar em seu conjuncto como em cada uma de
suas partes.
"Sceptico ao começo, quanto á ordem mais rudimentar
das manifestações — a das mesas giratorias, objecto inerte,
movidas por uma intelligencia — Allan Kardec, que ao
mais sólido preparo scientifico reunia um largo espirito de
tolerancia e de bom senso, não hesitou em observar, a convi-
te de um amigo, as denominadas dansas das mesas, que res-
pondiam ás perguntas formuladas, mesmo mentalmente, e
constituiam por essa epocha o entretenimento favorito de
alguns salões parisienses.
"O reflectido pensador soube, porém, vislumbrar, num
instantaneo lampejo, o que aos demais havia escapado até
alli, isto é: que, si no movimento voluntario das mesas e na
natureza intelligente das respostas havia um factor estranho
ao circulo dos experimentadores, e si esse factor se affirmava
uma individualidade que pertencera ao numero dos vivos e
sobrevivera, em seus elementos espirituaes imponderaveis, á
destruição do corpo pela morte, a prova, ha tantos seculos
reclamada, da immortalidade da alma estava feita.
"Começaram então as pesquizas e observações nesse
dominio, conduzidas por Allan Kardec com uma prudencia,
uma sagacidade e uma elevação de vistas que fazem honra
ao seu espirito. As manifestações ao demais adquiriam, como
dissemos, uma regularidade e uma generalização por quase
— 248 —
todos os paizes da Europa e da America, que facilitando,
pela multiplicidade, o exame, só uma coisa tornavam difficil:
a classificação dos factos, em suas differentes categorias, e a
escolha das doutrinas oriundas dessa fonte mysteriosa e in-
visivel.
"A simultanea irrupção de taes phenomenos — não
percamos de assignalar de passagem — em pontos afastados
do nosso globo e, a partir dahi, a sua constancia e tendencia
para a universalização, cada dia mais accentuada, devia fazer
reflectir os adversarios do Espiritismo que ha nisso um eviden-
te symptoma de intervenção providencial, dir-se-ia que um
plano deliberado nos conselhos do Altissimo, e executado
pelos mensageiros invisiveis de sua vontade soberana, com o
fim de fazer entrar a humanidade em uma nova phase de
progresso e de adeantamento. E essa consideração bastaria
para desarmar as suas prevenções; e assim succederia indu-
bitavelmente, si estivessem elles, porém, de boa fé.
"Collocado no vestibulo desse mundo invisivel, que
acabava de attestar multiplicadamente a sua presença em
torno ou acima dos homens, começou Allan Kardec por in-
terrogar os seus habitantes de todas as categorias e delles
receber, quér a revelação de suas differentes situações
pessoaes, boas, mediocres ou más, segundo a natureza de
sua conducta aqui na terra e o seu grau de adeantamento
ou de inferioridade moral, quér os ensinos doutrinarios, da
parte dos mais elevados espiritos, acerca do universo e de
Deus, das leis geraes da vida, da pluralidade de mundos e
de existencias da alma, do destino das creaturas, dos mais
arduos problemas, em summa, que pódem interessar o pen-
samento humano.
"Incomprehendido ao começo, a sua obra — obra de
um joeirador em campo inexplorado — despertou as zom-
barias e sarcasmos de uns, o desprezo de outros e a opposi-
ção tumultuaria de muitos que, presentindo na nova doutri-
— 249 —
na, calcada na moral igualitaria, pacifica e fraterna dos
Evangelhos de Jesus, um óbice ao desregramento de suas
ambições, erigiram-se em adversarios implacaveis, tocados por
esse instincto de conservação tão verdadeiro nos individuos
como em certas instituições. Mas Allan Kardec seguiu im-
pavido a sua derrota. E fiel á missão que se havia imposto e
que, de resto, lhe viera a ser ostensivamente revelada pelos
seus guias espirituaes, não vacillou, não esmoreceu, e, desde a
sua iniciação e durante quatorze annos de uma actividade
consecutiva e infatigavel, entregou-se a essa ardua e difficili-
ma tarefa de propor as mais variadas questões e recolher
ditados, revelações, ensinamentos dos espiritos, comparando-
os entre si e escolhendo aquelles que mais de accôrdo se mos-
travam com os dados da sciencia positiva e com os ditames
do "bom senso", de que foi, com inteira propriedade, appel-
lidado a incarnação, por Camillo Flammarion, no magnifico
discurso pronunciado á beira do seu tumulo.
"Desse rude, mas glorioso labor, em que os mais crueis
ataques lhes foram dirigidos pelos adversarios de todos os
matizes, e que elle arrostou com impeccavel serenidade de
animo, só descansou para recolher-se a essas regiões tran-
quillas da immortalidade, de que se tornara o arauto e cam-
peão. E' que elle havia comprehendido todo o alcance e ma-
gnitude da obra que, por um impulso verdadeiramente pro-
videncial, fôra levado a emprehender. Que póde realmente
haver de mais importante, entre todas as questões que agitam
a mente humana, que essa demonstração da immortalidade
da alma, feita unicamente pelo Espiritismo, sobre as bases
inatacaveis da observação experimental?
"O que provoca as lutas encarniçadas, os odios e deses-
peros em que se agita a sociedade contemporanea, é precisa-
mente a incerteza de uma vida futura, a perspectiva de que
os unicos prazeres e gozos reservados ao homem consistem
nos bens deste mundo. Dêem-lhe a certeza de que isto não é um começo nem um fim, mas uma passagem; de que para
— 250 —
além do tumulo o destino humano se desdobra, no infinito e
na eternidade, em novas e grandiosas fórmas de actividade, e
a calma se restabelecerá nos espiritos, e o homem se prenderá
inifinitamente menos ás coisas transitorias e se esforçará,
antes e acima de tudo, por desenvolver as suas faculdades
espirituaes, adaptando-as á acquisição das verdadeiras rique-
zas moraes, aquellas que, no profundo dizer do divino Mestre,
"os ladrões não roubam, os vermes não róem e em que a
ferrugem não dá" Mais ainda: demonstrem-lhe, pelo teste-
munho das proprias almas que se foram, como faz o Espiri-
tismo, que a justiça divina, indefectivel e perfeita, sem a sua
sancção na vida espiritual, como nas futuras existencias pla-
netarias, ou reencarnações, e ahi estará o mais poderoso dos
freios para cohibir os desregramentos e habitos dissolutos a
que, particularmente na nossa epocha de tormentosa crise
moral, se entegam as creaturas, sem deslustre e para ver-
gonha da nossa civilização.
"Eis o que, no seu amplo descortino de verdadeiro illu-
minado, desde o começo comprehendeu Allan Kardec, para
já não falarmos na abundante e bemdita fonte de consolações
que representa para a humanidade essa permuta de affectos,
através do tumulo, com os seres caros que se partiram deste
illusorio mundo. E foi por assim ter comprehendido que con-
sagrou abnegadamente a essa obra todas as generosas e se-
renas energias do seu espirito." (Do "Livro do Centenario"
— Federação Espirita Brasileira — Rio de Janeiro — 1906)
*
* *
— O grande pensador, o grande illuminado deixou tres
discipulos ou tres sábios, que lhe continuaram a obra, dando
ao pensamento tres direcções differentes, mas collimando o
mesmo fim, a verdade espiritual: Camillo Flammarion, o
astronomo: Léon Denis, o philosopho; Gabriel Delanne, o
scientista.
— 251 —
Sabe o leitor que Flammarion, com a sua obra monu-
mental "Deus na Natureza", reduziu ao silencio o materialis-
mo do grande pensador aliemão Luiz Buchner, em sua obra
"Força e Materia". Causou a maior sensação nos meios scien-
tificos o apparecimento de Flammarion astronomo-philosopho-
scientista, quando o materialismo classico do grande escriptor
germanico fazia escola no meio culto da Europa central. Sub-
stituiu o sábio astronomo francez a “philosophia do desespero"
da escola da "materia", pelas verdades esplendentes, vivas e
consoladoras da escola espiritualista.
E' com a palavra de Flammarion que encerraremos
estas linhas, sobre a individualidade de Léon Hyppolite
Denizard Rivail, ou Allan Kardec. Antes, porém, de o fazer,
permittido nos seja transcrever algumas das expressões usa-
das pelo nosso grande orgão, "O Estado de S. Paulo", sobre o
sábio astronomo francez.
“Annuncia o telegrapho a morte de Camillo Flammarion.
Eis uma noticia que ha de passar indifferentemente ao espi-
rito de mui pouca gente. O nome do velho astronomo francez
era daquelles que de ha muito transpuzeram as raias da sua
patria, nas asas da celebridade, fazendo-o conhecido nos mais
recuados paizes, onde, pelos seus livros, as suas opinões e
theorias sempre tiveram vasta leitura e repercussão. Grande
scientista, mas tambem "grande divulgador da sua sciencia",
Flammarion era um dos autores de obra mais disseminada, e
não haverá exaggeração, talvez, em dizer que o seu nome era,
em todo o mundo, mais popularizado do que o de outros seus
illustres compatriotas e contemporaneos, como Pasteur, Ana-
tole France, Curie, Clemenceau. Fazendo, de par com as
suas pesquizas scientificas de astronomo, o que se poderia
chamar, sem muita impropriedade, o “Romance do Uni-
verso", suas idéas engenhosas acerca dos mundos espalha-
dos pelo espaço, em muito contribuiram, de certo, para a vul-
garização de innumeros conceitos scientificos que, por qualquer
outro vehiculo não lograriam tão larga nem tão prompta disse-
— 252 —
minação como tiveram, mercê da sua preciosa faculdade de
poetizar a astronomia. Quem não conhece algum dos seus li-
vros, tão popularizados e de leitura sempre interessante,
onde se enfeixavam as mais engenhosas hypotheses cosmo-
gonicas com os mais incontestes dados da sciencia? Tratando
da pluralidade dos mundos habitados, hypothese tão grata á
imaginação de toda a gente, Flammarion grangeou, melhor
do que qualquer outro romancista, milhares e milhares de lei-
tores apaixonadissimos em todo o globo, constituindo-se as-
sim a base da uma fama como poucos, modernamente, terão
tido mais larga e persistente."
Bastam-nos esses conceitos do longo artigo do “O Estado
de S. Paulo", de 5 de Junho de 1925, cujo redactor soube
prestar as merecidas homenagens a esse grande bemfeitor
da humanidade.
Pois bem. E' esse vulto gigantesco, é esse sabio que im-
mortalizou o seu nome no coração e na memoria da humani-
dade, quem nos vae falar sobre seu mestre e amigo Allan
Kardec. Pedimos, pois, a benevola attenção do leitor, para
o discurso magistral pronunciado sobre o tumulo de Allan
Kardec, pelo sabio astronomo:
"Senhores: Annuindo com satisfacção ao convite dos ami-
gos do laborioso pensador, cujo corpo terrestre aqui jaz a
nossos pés, eu me recordo, com sentimento pezaroso, de um
dia de dezembro de 1865. Naquelle dia solenne, dissera o su-
premo adeus ao pé do tumulo do fundador da Livarría Aca-
demica, o honrado Didier, que foi, como editor, convencido
collaborador de Allan Kardec na publicação das obras funda-
mentaes de uma doutrina, que lhe era cara; este morreu tam-
bem subitamente, como si o céo quizesse poupar a estes dois
integros Espiritos o embaraço philosophico de sairem desta
vida por modo differente do geral. A mesmo reflexão tem ca-
bimento a respeito do nosso antigo collega Jobard, de Bru-
xellas.
— 253 —
"Hoje a minha tarefa é mais ardua, porque desejaria po-
der representar ao pensamento dos que me ouvem e ao de mi-
lhões de pessoas, que em toda a Europa e no Novo Mundo se
têem preoccupado com o problema, ainda mysterioso, dos
phenomenos chamados espiritas, desejaria, como vinha di-
zendo, representar-lhes o interesse e o futuro philosophico do
estudo desse phenomeno, ao qual se têem dedicado, como
ninguem o ignóra, homens eminentes entre os nossos contem-
poraneos. Muito folgaria com lhes fazer entrever que hori-
zontes desconhecidos ao pensamento humano se desdobrarão
deante de seus olhos, á medida que se alargarem os conheci-
mentos positivos das forças naturaes em acção ao pé e em
torno de nós. Estimaria mostrar-lhes: que taes conhecimentos
são o mais efficaz antidoto da lepra do atheismo, que parece
inficionar particularmente esta epocha de transição, e, final-
mente, dar aqui publico testemunho do relevante serviço que
o autor do Livro dos Espiritos prestou á philosophia, provo-
cando a attenção e a discussão sobre factos até então perten-
centes ao dominio morbido e funesto das superstições reli-
giosas. (Note o leitor: quem fala é tambem philosopho!)
Seria, com effeito, de summa importancia fazer sentir
aqui, deante deste grande tumulo, que o exame methodico
dos phenomenos erradamente chamados sobrenaturaes, em
vez de levantar o espirito de superstição e de abater as ener-
gias da razão, dissipa, muito ao contrario, os erros e as illu-
sões da ignorancia e fomenta melhor o progresso, do que a
negação illegitima dos que se não querem dar ao trabalho de
vêr.
Não é, porém, aqui o lugar para uma discussão irreve-
rente. Deixemos somente baixar dos nossos pensamentos so-
bre a face impassivel do homem aqui deitado, os testemunhos
de affecto e sentimentos de saudade, que formem em torno
delle e do seu tumulo uma atmosphera balsamica de effluvios
do coração. E, pois, que sabemos sua alma immortal sobrevi-
ver a estes despojos mortaes, assim como preexistiu a elles; que
— 254 —
laços indestructiveis ligam o mundo visivel ao mundo invisi-
vel; que esta alma existe hoje tão completa como ha tres dias,
e que não é impossivel achar-se aqui no meio de nós; digamos-
lhe que não quizemos vêr-se dissipar a sua imagem corporea
e encerrar-se no sepulchro sem lhe honrar unanimemente os
trabalhos e a memoria, sem pagar o tributo de reconhecimen-
to á sua encarnação terrestre, tão digna e utilmente preen-
chida. Em breves traços, vou esboçar as pri ncipaes Unhas da sua
carreira literaria.
Morto na idade de 65 annos, Allan Kardec consagrou a
primeira parte da sua vida a escrever obras classicas, elemen-
tares, destinadas, principalmente, ao uso dos preceptores da
mocidade. Quando, em 1855, as manifestações, julgadas no-
vas, das mesas falantes, das pancadas sem causa apreciavel,
dos movimentos insolitos de objectos e de moveis, começaram
a attrair a attenção publica e chegaram a produzir nas ima-
ginações ardentes uma especie de febre, devido á novidade
dessas experiencias, Allan Kardec, estudando a um tempo o
magnetismo e os seus singulares effeitos, acompanhou, com
a maior paciencia e a mais judiciosa perspicacia, as experien-
cias e as tentativas innumeras feitas em Paris. Recolheu e
coordenou os resultados obtidos por essa longa observação e,
com elles, compoz um corpo de doutrina publicado em 1857,
com a primeira edição do "Livro dos Espiritos".
"Todos sabeis quão grande successo alcançou essa obra
em França e no extrangeiro. Havendo já attingido a 15.ª edição (quando, em 1912, foi publicado o 50.ª milheiro das
“Obras Posthumas", estava na 52.ª edição franceza o "Livro
dos Espiritos"; nota do revisor) tem espalhado por todas as
classes a doutrina elementar, que não é nova, pois a escola
de Pythagoras, na Grecia, e a dos Druidas, na nossa pobre
Gallia, ensinavam os seus princípios fundamentaes, posto que
revestissem uma fórma de occasião, por sua correspondencia
com os phenomenos.
— 255 —
"Depois dessa primeira obra, vieram á luz successiva-
mente o "Livro dos Mediums", ou Espiritismo experimental,
"Que é o Espiritismo?" ou resumo, sob a fórma de perguntas
e respostas, o "Evangelho segundo o Espiritismo", o "Céo e o
Inferno" e a "Genese". A morte surprehendeu-o ao tempo em
que infatigavelmente activo, elle trabalhava numa obra sobre
a relação do magnetismo com o Espiritismo. Pela Revue Spirite
e pela Societé Spirite, de Paris, tinha-se constituido, de certo
modo, o centro para onde tudo convergia, o laço de união de
todos os experimentadores. Ha mezes, conhecendo que estava
proximo o seu termo, preparou os elementos de vitalidade para
aquelles estudos, depois da sua morte, e creou um directorio
central, que o substituisse. Levantou rivalidades, fez escola
de caracter um pouco pessoal e deixou os espiritas separados
dos espiritualistas.
“D'ora em deante, senhores, (tal é pelo menos o voto dos
amigos da verdade), devemos ser todos unidos pelos laços da
mais fraternal solidariedade, empregando os mesmos esforços
na elucidação do problema, pelo desejo geral e impessoal
da verdade e do bem.
“Increpou-se ao digno amigo, a quem rendemos hoje as
ultimas homenagens, não ser elle o que se chama um sabio: não ter sido physico-naturalísta-astronomo e ter preferido cons-
tituir um corpo de doutrina moral, a applicar a discussão scien-
tifica á realidade, á natureza dos phenomenos.
"Talvez fôsse melhor que as coisas tivessem assim come-
çado. E' preciso não amesquinhar o valor do sentimento.
Quantas consolações tem levado aos corações esta crença
religiosa! Quantas consciencias se têem expandido aos raios
da belleza espiritual!
“Nem todos são felizes na terra, onde muitas affeições
são despedaçadas, onde muitas almas têem sido envenenadas
pelo scepticismo. Não é de grande valia ter trazido ao Espi-
— 256 —
ritismo tantos seres, que fluctuavam num mar de duvidas,
e que eram indifferentes á vida physica e á intellectual?
"Tivesse Allan Kardec sido homem da sciencia, e sem
duvida não teria podido prestar estes benéficos serviços, nem
propagar á distancia o estimulo nos corações. Elle foi o que
chamarei "o bom senso encarnado". Razão firme e judiciosa,
applicava, sem descanso, á sua obra, as intimas indicações
do senso commum. Não era essa uma qualidade somenos na
ordem das coisas, que nos occupam. Era, seguramente, a pri-
meira de todas e a mais preciosa, sem a qual a obra não se te-
ria popularizado nem distendido pela terra as suas grandes
raizes.
"A maior parte dos que se têem dedicado a esses estudos,
lembram-se de haver, na realidade, na mocidade ou em cir-
cumstancias especiaes, sido testemunhas de inexplicaveis ma-
nifestações. Bem poucas são as familias que não as têem ob-
servado. O essencial era applicar-lhes a razão firmada no bom
senso e examinal-as segundo as regras do methodo experi-
mental. Como previra o fundador desse estudo lento e dif-
ficil, deve elle, em sua complexidade, entrar agora no periodo
scientifico.
"Os phenomenos physicos, que a principio não provoca-
vam exame sério, devem ser objecto da critica experimental,
a que devemos a gloria dos modernos progressos e as mara-
vilhas da electricidade e do vapor. Este methodo deve tambem
abranger os phenomenos de ordem maravilhosa, a que nos
temos referido, para os dissecar, medir e definir.
“Porque, senhores, o Espiritismo não é uma religião,
mas uma sciencia, da qual apenas conhecemos o abc. Já pas-
sou o tempo dos dogmas.
“A natureza abraça o universo, e o proprio Deus, que
outr'ora se considerava feito á imagem do homem, não póde
ser agora considerado pela metaphysica, senão como um
Espirito na natureza. Não existe o sobrenatural.
— 257 —
"As manifestações obtidas pelos mediums, como as do
magnetismo e do somnambulismo, são de ordem natural, e
devem ser rigorosamente submettidas ao cadinho da experi-
encia. Não ha milagres. Assistimos ao romper da aurora de
uma sciencia desconhecida. Quem poderá prever a que conse-
quencias conduzirá, no mundo do pensamento, o estudo po-
sitivo desta nova psychotogia?
"A sciencia governa o mundo, e não será descabido, nes-
te discurso funebre accentuar a sua obra actual e as inducções
novas, que ella nos descobre, precisamente em referencia ás
nossas pesquizas.
"Nunca em epocha alguma da historia, a sciencia des-
lumbrou a vista dos homens com tão grandiosos horizontes.
Sabemos hoje que a terra é um astro e que a nossa vida actual
se completa no céo. Pela analyse da luz, conhecemos os ele-
mentos da combustão, no sol e nas estrellas, a milhões e a tri-
lhões de leguas do nosso observatorio terrestre. Pelo calculo,
possuimos a historia do céo e da terra, tanto em seu passado
mais remoto, como em seu futuro. Pela observação, determi-
namos o peso dos globos celestes, que gravitam no espaço.
O globo, que habitamos, é um átomo perdido nas profundezas
infinitas do espaço, e a nossa propria existencia é uma fracção
infinitesimal da nossa vida eterna.
"O que, porém, mais nos póde impressionar, é o admiravel
resultado dos trabalhos physicos feitos nestes ultimos annos:
que vivemos no meio de um mundo invisivet, em constante agi-
tação em redor de nós. Sim, meus senhores; isto é para nós
uma grande revelação.
"Contemplae, por exemplo, a luz neste momento diffun-
dida na atmosphera por este brilhante sol; contemplae este
azul tão suave da abobada celeste; apreciae estes effluvios de
ar tépido, que nos acariciam as faces; reparae nestes monu-
mentos e nestes campos; e por mais que tenhamos abertos os
olhos, nada vemos do que aqui se passa!
— 258 —
"De cem raios de sol apenas um terço é essencial á nossa
vista, directamente ou reflectidos por estes corpos; os dois
terços existem e agem junto de nós, mas de modo invisivel,
embora real. São quentes, comquanto não sejam luminosos
para nós, e são muito mais activos do que os que apreciamos,
pois são elles que attráem para o sol as flores e produzem as
acções chimicas. São elles que elevam, sob a fórma tambem in-
visivel, o vapor dagua, de que se formam as nuvens; exercen-
do assim, incessantemente, em torno de nós e de maneira oc-
culta e silenciosa, um movimento colossal, çomparavel ao es-
forço de milhares de cavallos. Si os raios calorificos e chi micos,
que agem constantemente na natureza, nos são imperceptí-
veis, é porque os primeiros férem lentamente, e os segundos
rapidamente, a nossa retina. Os nossos olhos só percebem os
objectos entre dois limites, áquem e além dos quaes nada
vêem.
"O nosso organismo terrestre póde ser comparado a uma
harpa de duas cordas, que são o nervo optico e o auditivo.
Uma certa especie de movimento põe em vibração o primeiro,
e outra especie differente, o segundo. Vae nisso toda a sensa-
ção humana, mais fraca que a de seres vivos, de certos insectos,
por exemplo, nos quaes as cordas da vista e da audição são
mais delicadas. Ora, na natureza existem, não duas, mas
dez, cem, mil especies de movimentos. A physica nos ensina,
pois, que vivemos no meio de um mundo invisivel e que não
é impossivel que seres, igualmente invisiveis, vivam na terra,
com sensações differentes das nossas, sem que lhes possamos
apreciar a presença, salvo quando se nos manifestam por fac-
tos pertencentes á ordem das sensações.
"Deante de taes verdades, que começam a bruxolear,
quanto é absurda e sem valor a negação a priori!
"Quando se compara o pouco que sabemos e a exiguídade
da nossa esphera de percepção, a quantidade do que existe,
não se póde deixar de concluir que nada sabemos, que tudo
nos falta conhecer.
— 259 —
"Com que direito, pois, pronunciaremos a palavra "im-
possivel" deante dos factos, que testemunhamos, sem poder-
mos descobrir a causa unica? — A sciencia fornece-nos dados
tão autorizados como os precedentes, sobre os phenomenos
da vida e sobre a força que nos anima. Basta-nos considerar
a circulação das existencias. Tudo é metarmophose. Em seu
eterno curso, os átomos constitutivos da materia passam
incessantemente de um a outro corpo, do animal ao vegetal,
da planta á atmosphera, da atmosphera ao homem, e o nosso
corpo, durante a vida, muda constantemente de substancia,
como chamma, que não brilha senão pela constante renovação
de elementos; e, quando a alma o dispa, esse corpo, tantas
vezes transformado, entrega definitivamente á natureza to-
das as suas moleculas para não mais as haver. O absurdo dog-
ma da resurreição da carne, é substituido hoje pela alta dou-
trina da transmigração das almas.
“Vede este sol de Abril, que brilha nos céos e que nos inun-
da com os seus raios vivificadores. Acordam as campinas,
desabrocham os primeiros rebentos das arvores, floresce a
primavera, sorri o azul celeste e a resurreição opéra-se por
toda a parte. Entretanto, é da morte que surge toda esta vida;
é das ruinas que lhe provém a animação!
“Donde vem a seiva destas arvores, que reverdecem em
campo de mortos? Donde vem a humidade que lhes alenta
as raizes? Donde todos os elementos que lhes fazem appare-
cer, aos beijos carinhosos de Maio, as flores silenciosas e os
passarinhos, que alegram a natureza com suas melodias?
“Vêem da morte, meus senhores!... Vêem desses cada-
veres sepultados na noite sinistra dos tumulos! Por lei supre-
ma da natureza, o corpo material é um aggregado transitorio
de moléculas, que lhe não pertencem e que a alma congrega,
segundo um determinado typo, para formarem orgãos, que
a ponham em relação com o mundo physico. E emquanto
o nosso corpo se renóva, peça por peça, pela perpetua subs-
tituição das particulas, emquanto elle pende e um dia des-
— 260 —
camba, massa inerte, para o tumulo, de que não mais se ergue,
o nosso Espirito, ser pessoal, guarda sempre a identidade in-
destructivel e reina como soberano sobre a materia de que se
revestiu, estabelecendo, por esse facto, constante e univer-
sal, a sua personalidade independente, a sua essencia espiri-
tual não sujeita ao imperio do tempo e do espaço, a sua gran-
deza individual, a sua immortalidade.
"Em que consiste o mysterio da vida? Por que laços se
prende a alma ao organismo? Que é o que os desfaz para que
ella se escape? Sob que fórma e em que condições existe ella
depois da morte? Que recordações, que affectos guarda?
Como se manifesta?
"São estes, meus senhores, sérios problemas que ainda
estão longe de ser resolvidos e cujo conhecimento constituirá
a sciencia psychologica do futuro. Podem alguns negar a exis-
tencia da alma e de Deus, affirmar que não existe a verdade
moral, que não ha, na natureza, leis intelligentes e que nos,
os espiritualistas, somos victimas de pura illusão.
"Pódem outros, vice-versa, declarar que conhecem, por
particular privilegio, a essencia da alma, a fórma do Ser Su-
premo, o estado da vida futura, e qualificar-nos de atheus,
porque a nossa razão não admitte a sua fé. Uns e outros, não
poderão impedir que estejamos em face dos maiores proble-
mas, que nos interessamos por estas coisas, que não nos são
indifferentes e estranhas, e que tenhamos o direito de appli-
car o methodo experimental da sciencia contemporanea do
descobrimento da verdade.
"E' pelo estudo positivo dos effeitos que se remonta ao
conhecimento das causas. Na ordem dos estudos, generica-
mente denominados espiritas, os factos existem, embora não
se conheça o modo da producção. Existem tão realmente como
os phenomenos electricos, luminosos, calorificos, mas não lhes
conhecemos nem a biologia, nem a physiologia.
"Que é o corpo humano? Que é o cerebro? Qual a ac-
— 261 —
ção absoluta da alma? Ignoramos. Tambem ignoramos a
essencia da electricidade, a essencia da luz. E', pois, de summa
sabedoria observar todos esses factos, sem idéa preconcebida
e procurar descobrir as causas, que são, porventura, de espe-
cies diversas e mais numerosas do que o temos julgado.
"Que importa que joguem sobre este genero de estudos o
sarcasmo ou o anáthema aquelles, cuja vista é turvada pelo
orgulho ou por preconceitos, que os impedem de comprehen-
der os ansiosos desejos do nosso pensamento ávido de conhe-
cer? Mais alto elevaremos as nossas contemplações!
"Tu fôste o primeiro, Mestre e amigo; fôste o primeiro que
desde os meus primeiros passos na carreira astronomica, tes-
temunhaste a mais viva sympathia por minhas deducções
relativas á existencia das humanidades celestes; pois que, do
meu livro Pluralidade dos mundos habitados, fizeste a pedra
angular do edificio doutrinario que tinhas archictado em
tua mente. Muitas vezes conversámos sobre essa vida celeste
tão mysteriosa, e agora, oh! alma, já sabes, por uma visão di-
recta, em que consiste ella — a vida espiritual, para a qual
voltaremos, olvidando-a emquanto aqui estamos.
"Agora, já és nesse mundo, donde viemos, e colhes o fruc-
to dos teus estudos terrestres. O teu envólucro dorme a nossos
pés, o teu cerebro está paralyzado, os teus olhos fechados para
nunca mais se abrirem, a tua palavra extincta para não mais
poder ser ouvida...
“Bem sabemos que todos cahiremos neste derradeiro som-
no, nesta inercia, neste pó. Não é, pois, neste envólucro que
pomos a nossa gloria e esperança. O corpo tomba, mas a alma
ergue-se e volta para o espaço.
“Um dia seremos em melhor mundo, lá no céo immenso,
onde se exercerão as nossas poderosas faculdades. Continua-
remos os estudos que, aliás, tinham, na terra, um theatro
mui pequeno para que se desenvolvessem satisfactoriamente
Preferimos crêr nesta verdade a julgar que estás todo inteiro
— 262 —
neste cadaver, e que a tua alma tenha sido destruida pela ces-
sação do movimento de um orgão.
"A immortalidade é a luz da vida, como este brilhante
sol é a luz da natureza.
"Até logo, meu caro Allan Kardec, até logo!"
A FORÇA DO PRECONCEITO
CHARLES RICHET — CHARLES R. BROWN — ALBERTO SEABRA
"Quando Harvey demonstrou que o sangue circula, pro-
vocou durante 30 annos as indignações de todos os professo-
res, sobretudo os de Paris.
“Quando Lavcisier estabelecia que a vida é uma com-
bustão, um phenomeno chimico, arruinou as lamosas idéas
de Stahl e Willis.
“Quando Claude Bernard demonstrou que o organismo
dos animaes produz assucar, teve contra si todos os medicos
e todos os physiologistas.
“Pasteur, edificando a maravilhosa theoria microbiana,
teve contra si opposições formidaveis.
“Antes de Marey, antes de nossos primeiros ensaios de
aviação, chamavam de loucos incorrigiveis os que procuravam
construir machinas voadoras mais pesadas que o ar.
“Jean Muller, um dos maiores entre os physiologistas,
tinha dito: “Não se medirá nunca a rapidez da vibração ner-
vosa." Dois annos depois, Helmholtz lhe dava a medida
exacta.
"Prévost e Dumas disseram: “Nunca se poderá purifi-
car a substancia globular do sangue". Ora vós todos sabeis
que hoje a preparação da hemoglobina crystallizada pura é
uma das mais faceis operações da chimica physiologica."
(Richet).
— 263 —
"Ha cincoenta annos, os homens diziam que era scienti-
ficamente impossivel tocar um vehiculo carregado de cem
pessoas, illuminado, aquecido e movido por uma corrente de
electricidade tirada de um fio.
"Diziam tambem que era impossivel reconhecer-se a voz
de um amigo ou transmittir-se uma firma por meio da elec-
tricidade.
“Diziam que era impossível obter-se communicação com
lugares distantes pelo telephone sem fio.
“Diziam que o presente phenomeno do hypnotismo e de
curas pela suggestão, hoje reconhecidos pelos scientistas, eram
impossiveis.
“Em todas estas e em muitas outras coisas erraram re-
dondamente, os nossos antepassados. Estamos sempre apren-
dendo mais a respeito das forças subtis e invisiveis do mun-
do." (Brown)
"... E' o gesto classico de Lavoisier ao revoltar-se contra
os aerólithos: “Não ha pedras no céo, como quereis que ellas
cáiam na terra?"
"...E' o estado mental de Bouillaud, agarrando pelo gas-
nête o representante do phonographo de Edison: “Miseravel!
pois havemos de ser victimas de um ventriloquo?"
“Em todos os tempos, homens superiores, que honram a
epocha em que florescem, engrandecendo-a com suas investi-
gações pcssoaes, nada vêem, nada comprehendem fóra do re-
canto em que exercem a sua actividade; dahi o perseguirem,
com intolerancia e zombaria, a pesquiza de taes phenomenos,
pesquiza tão meritoria quanto as suas, delles. A coisa é tão
real, que Eugéne Nus dedicou a sua obra "Choses de l'autre
monde" aos manes dos sábios que foram agraciados, que re-
ceberam patentes e palmas, que foram condecorados e enter-
rados, mas que repelliram a rotação da terra, os meteoróli-
thos, o galvanismo, a circulação do sangue, a vaccina, a ondu-
— 264 —
lação da luz, o pára-raios, o daguerreótypo, o vapor, a hélice,
os paquetes, as estradas de ferro, a homeopathia, o magnetis
mo e o "resto". (Seabra).
E' de Victor Girard: "A maior parte das verdades supe-
riores, que mais honra fazem á humanidade, até á data do seu
triumpho definitivo, foram sempre tratadas com ironia e des-
prezo, consideradas como visões chimericas ou arroladas en-
tre os mythos pueris, as ficções e utopias as mais insensatas.
O progresso está habituado a fazer assim a sua entrada na his-
toria, amaldiçoado pelo passado, que elle desloca ou destróe,
mas abençoado pelo futuro, que elle fecunda e transfigura".
(Coelho Netto — "A Vida além da Morte").
Esse negativismo é o mesmo em que vivia mergulhada,
com toda a sua philosophia, aquella rã do bréjo. E' o mesmo
em cujo circulo se encontram philosophando aquelles que,
nada conhecendo do Espiritismo, não hesitam, comtudo,
em atacal-o por todos os lados e por todos os modos, com to-
das as armas ou sem arma alguma, convencidos de que só
no seu circulo se acham as idéas que devem prevalecer em tudo,
por tudo e acima de tudo.
Os homens passam, com seus preconceitos e philosophias,
mas a verdade fica...
Eis por que, nada impedirá que seja uma torturante rea-
lidade isso que vem sendo annunciado pelos mensageiros da
Verdade:
"O fim do Espiritismo é desenvolver as inclinações su-
periores da alma, é conduzil-a pela mão da sciencia — á ver-
dade; por intermedio da moral — á caridade; pela influencia
da arte — á belleza; através da religião — ao Creador."
— 265 —
O ESPIRITISMO ENTERRADO VIVO POR UM PASTOR
PRESBYTERIANO — SEITA QUE COMMETTE
ASSASSINIOS EM NOME DO EVANGELHO, EM
PLENO SECULO XX! O "CELEBRE" PROF. SCO-
PES E O ABBADE DE WESTMINSTER — OU-
TRAS NOTAS —
Profundamente instructivas as lições daquella inspirada
fabula oriental da rã, e do artigo do rev. Othoniel Motta, so-
bre a intolerancia que se esconde nas dobras do credo secco
e vazio. Com referencia ao espiritismo, á doutrina espiritista,
que deve merecer o respeito e a tolerancia que as demais cren-
ças exigem, temos ainda que dizer mais algumas palavras.
Queremos que o leitor se convença de que "não açoitamos
o ar", na phrase de Paulo, quando affirmamos a injustiça
commettida por aquelles que só enxergam no espiritismo
"um amontoado de erros e absurdos".
Crente na doutrina espiritista, sob o seu triplice aspecto
"religioso-scientifico-philosophico”, não admittimos fora da do
Evangelho outra moral que nos ensine principios mais posi-
tivos e efficazes para a obra de regeneração e de formação do
caracter do homem.
E' com profundo pezar que observamos a accentuada
indisposição dos nossos irmãos dissidentes contra o espiritis-
mo. Emtanto, fazemos justiça aquelles que receiam seja o
espiritismo uma "ante-sala" dos manicomios. E' que, tomando
a nuvem por Juno, são impressionados pelo espectaculoso de
certos agrupamentos que, com a rotulagem de “centros espiri-
tas", por ahi formigam, semeando idéas e acções plenamente
reprovadas pelo espiritismo. Tambem o catholicismo e o pro-
testantismo não escapam á esperteza de aventureiros que,
embiocados nesses nomes, exploram a credulidade dos sim-
ples e humildes, chegando mesmo a exercer forte influencia no
animo de muita gente apparentemente incapaz de se deixar
— 266 —
vencer por suas artimanhas. Não se multiplica, dia a dia,
o numero de feiticeiros que, com suas rézas, imagens, ve-
las, santos, rosarios, bentinhos, etc., embrulham o seu pro-
ximo? E todas essas operações custam sempre boas quan-
tias. Esses taes têem procuração para falar em nome da Egreja
ou em nome de Jesus Christo? Podemos dizer que todos os
catholicos fazem a mesma coisa? Certo que não.
Ha 24 annos plantou-se nas immediações da cidade de
Sorocaba, no "Barro Vermelho", um pobre preto, que, certo
de estar realizando um verdadeiro apostolado, exerce a mis-
são de curar as enfermidades do corpo e do espirito. Tão gran-
de é a credulidade dos simples, que foi alli levantado um tem-
plo, que é, por assim dizer, propriedade exclusiva desse "cu-
randeiro". Nesse templo — diz a brilhante escriptora patri-
cia, Yaynha Pereira Gomes, em o "Diario da Noite" n.° 1.145
─ nesse templo "encontram-se de mistura santos da egreja e
chefes politicos, marechaes da Republica e devotos que sararam.
Até Juca Pato, de violão em punho, nos seus momentos de des- abafo. Ultimamente, dizem, mas eu creio que são os seus inve-
josos, elle dirige-se directamente a Deus pelo telephone. Contam
até que ligou o apparelho e S. Pedro attendeu. Não é comtigo que
quero falar. Chama Jesus Christo. Jesus não está. Tudo isso,
certamente, não passa de invencionice..." — Mas, dirá o lei-
tor, é assim mesmo que se formam essas crendices espalhadas
no mundo. Perguntamos nós: esse homem, com o seu "apos-
tolado" de vinte e quatro annos, deve ser tomado como a per-
sonificação do Christianismo? E' responsavel o Evangelho
por essa fabrica de superstição? E porque ainda existe esse
emporio de fanatismo? Será porque os adeptos desse homem
sejam instruidos na doutrina do Christo? Esse curandeiro
é a Egreja Catholica?
Lá no norte do nosso paiz, no heroico Estado do Ceará,
formou-se ha poucos annos uma seita que deprime a nossa
mentalidade, á vista dos attributos que os seus adeptos ado- ravam em um sacerdote. Tão longe levaram o seu fanatismo,
— 267 —
que milagroso não era só o sacerdote, mas tambem um ani-
mal que lhe pertencia: um boi mestiço de zebu! O pobre "cor-
nipede" era tratado como uma divindade, pois delle se conhe-
ciam tantos milagres... Na mangedoura cheia de flôres, o
animal alimentava-se regaladamente, manducando deliciosos
bôlos e outros productos de confeitarias, trazendo ao pescoço
rosarios, bentinhos e fitas enlaçadas. Era uma divindade que
punha em alvoroço uma multidão respeitavel.
Por ordem do Governo do Estado, e para seccar a fonte
de explorações, foi sacrificado esse boi, na praça publica, fac-
to que provocou explosões de fanatismo, em sérios conflictos.
"O sacrificio se deu entre lamentações e lagrimas copiosas dos
romeiros inconsoláveis, havendo quem dissesse, depois, que um
dos penitentes enlouqueceu ante a scena tragica..."
Este caso é magistralmente tratado pelo nosso illustre
collega, dr. Lourenço Filho, provecto professor de Pedagogia
e Psychologia da Escola Normal da nossa Capital, em o seu
lindo volume "Joaseiro do Padre Cicero". O dr. Lourenço Fi-
lho esteve longo tempo no Estado do Ceará, a pedido do res-
pectivo governo, para reorganizar, como reorganizou, o en-
sino publico. Esteve alli commissionado pelo Governo do
Estado de S. Paulo.
Perguntamos: responde o Evangelho por esse fanatismo?
Foi a verdade evangelica a inspiradora dessa seita? Aquelles
fanaticos reflectem as verdades prégadas pela Egreja Ca-
tholica?
Ha alguns annos os annaes judiciarios desta Capital fo-
ram sacudidos por um escandalo formidavel, commettido pelo
pastor de uma egreja que seguia a orientação da Reforma pro-
testante, onde havia baptizados, casamentos, celebração
eucharistia, escola dominical, sermões evangelicos, etc. To-
dos os jornaes puzeram-se a campo, no exercicio pleno da sua
missão, da sua "potencialidade constructora, saneadora, mo-
ralizadora", em pról dos interesses da sociedade. Os matuti-
— 268 —
nos e os vespertinos tiveram a sua tiragem bastante augmen-
tada, tal o interesse febril que a população manifestava pela
acção da justiça. Ficou apurado que dita egreja era bem fre-
quentada, não somente por pessoas de condição humilde, mas
por distinctas familias da alta sociedade! A Biblia era lida e
explicada com toda a regularidade em os cultos religiosos, três
ou quatro vezes por semana. Prégava-se alli a moral evangeli-
ca; funccionavam diversas classes da escola dominical, muito
frequentadas por menores e adultos, que buscavam a instruc-
ção evangelica. Mas... ao lado de todas as apparencias da
piedade, commettiam-se muitas scenas e "crimes" que só
as trevas podiam esconder. O "lugar sagrado" havia sido
convertido em antro de seducção de senhoras e donzellas. O
espirito publico achava-se fortemente emocionado pela natu-
reza do "facto", que gritava por justiça. Afinal, o pastor
viu-se envolvido em um processo criminal, cujo desfecho foi
a sua condemnação a muitos annos de prisão.
Para muita gente, ou melhor, para a maioria da popu-
lação ledora dos jornaes, respondia por esses escandalos, o
protestantismo. E' que os jornalistas tambem estavam cer-
tos de que aquella egreja era, de facto, "protestante”, rotu-
lagem que tinha a sua razão de ser, porque o pastor e seus
“officiaes da egreja” seguiam a mesma orientação religiosa
observada pelas egrejas evangelicas. Entretanto, maior in-
justiça não era possivel, porquanto, a despeito de todas as
exterioridades, a tal egreja não era protestante. Diversos pas-
tores, á frente dos quaes se achava o illustrado presbyteriano,
Eduardo Carlos Pereira, endereçaram ao Juiz summariante
uma representação, pedindo fôsse rectificado nos autos, o
nome da falsa egreja, que se apropriara indevidamente da deno-
minação “evangelica”, pois não era reconhecida pela Alliança
Evangelica Internacional. Pairou, pois, durante algum tempo,
por sobre o honrado nome da Egreja Evangelica Brasileira,
a nuvem do descredito e da prevenção, quando não havia ra-
zão para isso, visto como, ninguem ignora que os protestantes
jamais seriam capazes de endossar as fraquezas e os crimes
— 269 —
commettidos sob a capa do Evangelho. Esses espertalhões
não faziam uso da liberdade de consciencia e de pensamento
assegurada pela nossa Constituição Federal: commettiam
abuso dessa liberdade, não em nome da "doutrina evangelica",
mas no da baixeza de seus instinctos.
O grande orgão "Correio Paulistano", decano da impren-
sa paulista, publicou, em sua edição de 25 de Maio de 1928,
uma noticia tristissima, sobre uma seita que trabalha nos Es-
tados Unidos, cujos membros fazem exactamente o que o
Christianismo não recommenda. Merece transcripção essa
noticia, que tornará esclarecido este capitulo. Eis, na integra,
o que nos diz o abalizado orgão: "Os mysterios da Klu-Klux-
Klan — Revelados agora pelo seu ex-Grão Dragão, que ha tres
annos se encontra no presidio.
"A famosa associação secreta Klu-Klux-Klan, que surgiu
em 1886, fundada pelos sudistas em Pulaski (Tennesee), volta
a intensificar a sua acção. O seu fim resumia-se nesse tempo
em "manter a supremacia da raça branca nos Estados dos es- cravos negros.”
“E' de calcular que os methodos empregados, as gerar-
chias e o pittoresco da linguagem muito contribuiram para
causar entre os pobres pretos ignorantes e supersticiosos de
então, o pavor do mysterioso e inexplicavel. Calcule-se que
sahiam durante a noite procissões macabras de vultos de ca-
puzes, conduzindo tochas, á luz das quaes praticavam execu-
ções crudelissimas, por vezes. Tinha a Klu-KIux-Klan as alti-
sonantes gerarchias do "Grande Cyclope", do “Grão-Turco",
da “Grande Sentinella" e outras que imperavam tyranni-
camente sobre o espirito escravizado e vilipendiado do negro.
Taes proezas chegaram a causar uma tal ou qual reacção de
hostilidade, que, em 1889, os seus proprios fundadores deci-
diram dissolver a tenebrosa associação.
“Em 1915 reappareceu em Atlanta (Georgia) a Klu-Klux-
Klan, que se extendeu rapidamente, originando os mais san-
— 270 —
grentes conflictos xenóphobos cm toda a America do Norte.
Fôra seu revivificador William Joseph Simmons, padre pro-
testante laico, ao qual a guerra insufflára uma especie de mys-
ticismo imperialista. A nova Klu-Klux-Klan tinha por fim
consagrar-se, como sociedade protestante, ao ensino da re-
ligião christã, compromettendo-se como sociedade de bran-
cos, á manutenção perpetua da supremacia da raça branca.
Os membros desta associação devem ser naturaes dos Estados
Unidos, christãos e observadores fieis das instituições do paiz,
sendo excluidos os extrangeiros, catholicos, judeus ou revo-
lucionarios.
"Em 1921 o “New York Word" calculava que os filiados
nesta associação attingiam o numero de meio milhão. Em
1923 esta cifra subia a 2.500.000 Chegou a exercer uma in-
fluencia politica tremenda, actuando até sobre as decisões
dos partidos para a eleição presidencial. Em 1924 tornou im-
possivel a candidatura do democrata Alfred Smith, mobili-
zando quasi metade dos eleitores atraz do nome de Mc. Adoo.
E assim foram seguindo estes factos...
"Agora surge o magistrado do Supremo Tribunal, Van
Barrickman, resolvido a terminar com a perigosa actividade
que Klu-Klux-Klan está desenvolvendo na Pennsylvania em
face da nova candidatura de Alfred Smith e que póde ser
considerada como uma terrivel ameaça para a ordem publica.
Serviu-se para formular as suas accusações, das declarações
dum dos grandes dignitarios da Klu-Klux-Klan, Daniel C.
Stephenson, que chegou a ser um verdadeiro ditador na In-
diana e que actualmente se encontra no presidio, desde 1925,
por ter commettido o rapto que foi seguido de violação e mor-
te na pessoa duma joven de Indianopolis. Este Daniel C.
Stephenson tivera o grau de “Grão Dragão" — gerarchia
immediata ao “Bruxo Imperial Supremo" — e nada tinha
revelado até agora sobre os segredos da sinistra ordem. Neste
momento, despeitado pelo abandono a que os seus camaradas
o votaram, descobriu, com pormenores, não só a organização
— 271 —
interior da Klu-Klux-Klan, mas uma lista enorme de assas-
sinios, saques e outras violencias criminosas. Informou ainda
o ex-“Grão Dragão" que, em 1922, a Klu-Klux-Klan chegou
a manejar a seu bel-prazer os magistrados e os legisladores
de varios Estados, conseguindo recolher quantia num total
de 60 milhões de dollares.
"Com estas e outras revelações pretende-se fazer decahir
a terrivel seita e beneficiar a candidatura de Alfred Smith,
que, sendo branco, é catholico, liberal e irlandez." ("Correio
Paulistano").
─ Mil e um abusos são commettidos diariamente por
pessoas que professam as doutrinas "christãs", tanto na Egre-
ja Catholica como na Egreja Protestante. Responde a Egreja
Catholica por isso? E' connivente a Egreja Protestante com
os autores desses abusoa? E' responsavel Jesus Christo pelos
crimes dessa perigosissima seita cuja historia o leitor acabou
de lêr? — Ninguem ousaria em responder affirmativamente.
Voltemos agora a nossa vista para o espiritismo. "Centros"
existem por ahi, com o rótulo de espiritismo, onde muitas
praticas se fazem, menos as espiritas. São innumeros os taes
"centros", que não passam de fócos de ignorancia, cujos fre-
quentadores, nascidos em outra escola, trazem para esses cen-
tros o lastro das suas antigas crenças acerca da Divindade,
e, em nome dessas crenças praticam não o espiritismo, mas
o legitimo "espertismo". Um dos pontos do programma dos
espiritas, é o apoio franco e decisivo ás autoridades e á impren-
sa, na denuncia das explorações commettidas por essas agen-
cias de mystificação que, usurpando o nome de uma crença
respeitavel como as demais crenças assentadas nos princípios
moralizadores do Evangelho, outra obra não produzem além
dessa que nos envergonha e entristece, não somente pelos
maleficios decorrentes de uma falseada devocionalidade, como
principalmente pela confusão de nomes e de principios dou-
trinarios no espirito da nossa sociedade.
— 272 —
Divulgadora da idéa e orientadora da opinião, é a impren-
sa a mais poderosa arma de que se soccorrem os homens para
os grandes combates no campo da verdade. Eis por que, ser-
vimo-nos dessa arma para vir a publico, em defesa dos prin-
cipios postos em duvida por aquelles que, pondo de lado es-
ses mesmos principios, pretendem julgal-os através dos ac-
tos de individuos que não os representam, nem mesmo os
conhecem.
Paginas atraz, viu o leitor que o proprio pastor paulista,
o illustre prof. Othoniel Motta, confessou que o protestantis-
mo brasileiro não póde combater o espiritismo, pela simples
razão de que os pastores protestantes não o conhecem. Pois
bem. Não pensa assim um collega seu. O illustre e esforçado
pastor presbyteriano, revmo. Orlando Ferraz, pretende olhar
as coisas através de outro prisma, cujas faces lhe filtram os
raios luminosos da verdade em feixes de uma só côr: a rosada.
Julga elle que o espiritismo póde ser combatido e esmagado
apenas por meio de palavras, sem o auxilio mesmo do lastro
que a logica exige quando se pretende provar o erro ou a fal-
sidade de uma asserção. Não concorda elle com o seu illustre
collega Othoniel Motta. Acha mesmo que não é pesada tarefa
a de quem se propõe transformar uma verdade em uma men-
tira. Tudo depende do arranjo e da habilidade em armar as
palavras em fórma elegante e artistica, sem feição syllogísti-
ca. Segundo pensa e affirma implicitamente este nosso irmão,
"virtudes", "caracter", "moralidade", tudo isso é privilegio
dos protestantes, e só os protestantes são moralizados, só
elles possuem caracter. Os espiritistas, esses... nem é bom
falar! São os maiores envenenadores da sociedade, porque a
sua crença, ainda que baseada no Evangelho, é um abysmo
onde férve a immoralidade. Falando do alto da sua cadeira
theologica, com a certeza de que a sua palavra possue os en-
cantos e a força de um evangelho, compara o espiritismo com
o catholicismo, e conclue pela condemnação de ambos, por-
que aquelle pécca damnadamente com a sua terrivel "rein-
carnação", e este com o seu manhoso "purgatorio".
— 273 —
Não se assuste o leitor deante dos andaimes da nossa
construcção: os traçados da planta e o instrumental não nos
pertencem. Tomamol-os a emorestimo. Aquillo que nos per-
tence é quasi nada: apenas o trabalhinho de ir buscar e collo-
car ao alcance dos olhos de quem nos lê, o material com que
o pastor pretende construir ocaixão mortuario para o enterro
do espiritismo, e enterro de 5.ª classe.
Eis o material arranjado pelo nosso irmão, revmo. Or-
lando Ferraz:
"Timbrando-se no artificioso de suas theorias bellas, en-
galanadas, e ate mesmo artisticamente consoladoras, ahi vae
o Espiritismo medrando e florindo. E', comtudo, um florir e
reflorir de petalas murchas ao sôpro magico de uma illusoria
vitalidade. São ouropeis que só pódem enriquecer, envaide-
cer ou consolar os que os tomam pelo ouro de subido valor.
Que valem, no entretanto, essas risonhas doutrinas? Não
são ellas afinal meras theorias ou mesmo absurdas hypothe-
ses? Não são, porventura, architectadas ao sabor morbido
dos sentidos? Onde o fundamento dessa exdruxula philoso-
phia ou dessa pretensa sciencia? Os textos biblicos de que lan-
çam mão para defender suas irrisorias idéas, não se compa-
decem, absolutamente, com o bom senso e, quem diria, com as
regras de uma criteriosa interpretação! Hermeneutica e Exe-
gese são novidades que os espertes bem pódem substituir, ou
dispensar] A capciosa theoria das reencarnações é uma subli-
me creação engendrada que leva a palma ao matreiro Purga-
torio romanista. Neste, só descem as almas dos que morrem
em peccado venial; mas a theoria das reencarnações é a es-
trada aberta larga e ampla! Adeus, moralidade; adeus, vir-
tudes!! A responsabilidade tremenda, que pesa sobre os hom-
bros dos homens neste mundo, em face do destino eterno, vôa
aos ares em estilhaços! A theoria accommodaticia e dissolven-
te do Purgatorio affrouxa, como é natural, os laços da res-
ponsabilidade pessoal, prorogando-lhe illusoriamente o praso
da sua salvação; a theoria das reencarnações sólta desabrida-
— 274 —
mente as redeas! Salvação, premio, moralidade, peccado, pu-
nição e juizo, são, no Espiritismo, termos cuja significação
já se perdeu no mundo anti-diluviano. O Espiritismo não
se apresenta com esta feição desnuda, desataviada e anti-
esthetica, está claro; ha nelle até excesso de enscenação Pie-
dade, caridade e pureza, etc., é uma libação que transborda
continuamente de seus labios. Haverá corações que sejam
confortados e alimentados por estas phantasias? Não duvi-
damos; porque afinal costuma-se ouvir que mais vale a fé
que o pau da barca."
"O Romanismo, ainda que fracamente, contrapõe á onda
terrivel do peccado um inferno de labaredas temerosas e de
visões terrificantes, posto que attenuado por um accommoda-
ticio purgatorio, especie de valvula ecclesiastical O Espiri-
tismo é a rampa por onde descamba o já desmantelado carro
da moralidade! Sua divisa de anarchismo religioso é a nega-
ção da justiça, do castigo e do inferno. O ideal da perfeição,
segundo a sua doutrina, é attingido por qualquer caminho,
mais cedo ou mais tarde. Que importa que se tenha arrojado
no lamaçal do vicio, das podridões mais execraveis, se um
dia fatalmente se ha de bater á porta da mansão dos justos!
Adeus moralidade!" (“O Estandarte" n.° 5, de 1923, pag. 5;
"Revista de Cultura Religiosa", Julho-Setembro de 1924, pag.
286).
— Ahi tem o leitor o arrazoado massiço e fulminativo
de um pastor-juiz que, vivendo em um meio onde só vivem
criaturas privilegiadas, virtuosas, puras e santas, pontifica
em assumpto que lhe é radicalmente desconhecido. Seme-
lhantemente aos avisos que lemos em taboletas plantadas
nas proximidades de curvas perigosas das estradas de roda-
gem, esperavamos que nos apontasse o rev. Orlando, já não
dizemos em taboletas, mas por meio de uma fléxa, os trechos
mais escabrosos dessa “rampa por onde descamba o ja desman-
telado carro da moralidade".
— 275 —
Ainda tem razão o rcvmo. Othoniel Motta, quando af-
firma que o protestantismo brasileiro está "miseravelmente armado" para enfrentar o romanismo e o espiritismo. Seja-
nos permittido repisar um ponto já conhecido do leitor. A isso
nos fórça a sentença condemnatoria do rev. Orlando Ferraz.
E' o em que o rev. Othoniel affirma, com todas as letras, que
os pastores protestantes não conhecem nem mesmo as obras
dos fundadores do protestantismo: "Pois bem, esse livro (livro
de um espirita ex-pastor) essa fortaleza de papelão do espi-
ritismo, não póde ser atacado pelo couraçado do protestan-
tismo brasileiro. Elle está recheado por exemplo de citações
de obras de Luthero e de Calvino que não se encontram em
nossas bibliothecas, de modo que nem podemos verificar a
exactidão dessas citações! E ahi vae o calhambeque a fusti-
gar-nos com bolas de neve, impunemente!"
Vê o leitor a divergencia que separa esses dois pastores
presbyterianos: este, alarmado, mostra-nos a verdade núa
e crúa, confessando publicamente que os pastores não conhe-
cem as proprias obras dos fundadores do protestantismo,
obras estudadas e citadas pelo tal espiritista ex-pastor! Aquel-
le, sem medir os perigos a que expõe o seu nome de orientador
de um rebanho, vem dizer exactamente o contrario, tachando
de immoral o proprio Evangelho, só porque é annunciado fóra
do pulpito protestante...
Não ficamos ferido com os golpes literarios do nosso pre-
zado amigo e irmão, rev. Orlando Ferraz. Reconhecemos-lhe
o direito de pensar como queira e de dizer o que lhe aprouver
sobre o espiritismo. Pedimos-lhe, porém, que nos devolva o
troco, reconhecendo igual direito, do lado de cá. Não usámos,
entretanto, das flores e ramagens de uma literatura perfu-
mada como a sua, porque a natureza deixou-nos num can-
tinho do esquecimento. Fizemos o nosso trabalho, o nosso
pobre trabalhinho, de accôrdo com as nossas possibilidades,
contentando-nos com a pobreza do nosso vocabulario. Nada
temos a dizer sobre a transbordante dialectica do ardoroso
— 276 —
pastor, porque aquella anecdota que vem logo no começo
destas paginas terá dado uma orientação mais facil ao leitor,
para julgar a "questão". Já não queremos citar o caso da rã
do bréjo, aliás um caso suggestivo, porque foi em um bréjo
que encontrámos boa dóse de conhecimentos philosophicos...
Cumpre-nos lembrar ao rev. Orlando Ferraz que o pro-
testantismo, apezar do monopolio das "virtudes" está com
as suas bases bastante abaladas. Não se moleste o nosso ir-
mão; vamos repetir o que já leu. Basta que attentemos para
o facto de ser a Allemanha o berço de Luthero, onde o protes-
tantismo dominou as massas. Pois a Allemanha está meio
desprotestantizada. No "Estandarte” n.° 36, de 1925, sob a
epigraphe "O momento", lemos um artigo, de cujos conceitos
tiramos a conclusão de que os laços da Reforma estão alli
bastante afrouxados. Vejamos uns trechos.
"Passando a occupar-se dos effeitos da politica clerical
no actual momento, informa o dr. Adolpho Keller que na
Allemanha, com seus 65% de população protestante, os
quatro ultimos chancelleres da Republica eram catholicos,
como igualmente o era o ha pouco fallecido Presidente. Na
Hollanda, onde a maioria do povo é protestante, quasi todos
os ministros são catholicos! O anno passado, na Allemanha,
houve necessidade de se fecharem 88 instituições evangelicas
por falta de fundos, ao passo que desde 1919 mais de 700
instituições romanistas, incluindo monasticas, foram alli aber-
tas ao publico. Os protestantes, ou sejam 65% da população
allemã, contam com 16.700 pastores, ao passo que os catho-
licos, 33 % da população, teem um exercito de 22.262 sa-
cerdotes."(?!).
Esses algarismos, fornecidos pelos proprios protestan-
tes, dispensam qualquer commentario. A arithmetica fala
por si e por nós.
Parece-nos a nós que esse depauperamento do protestan-
tismo e subsequente decadencia, na terra onde nasceu a Re-
forma, têm a sua explicação naquelle artigo do rev. Othoniel
— 277 —
Motta. A doutrina do Crucificado vae sendo aos poucos absor-
vida pelo systema de fórmulas theologicas representado pelo
"credo" imposto aos homens, muito embora a mentalidade dos
nossos dias não possa supportar algemas espirituaes. A idéa
de liberdade está sujeita, como todas as idéas, á lei da pro-
gressividade. Ankylozada em seus dogmas que não progridem,
porque são dogmas e como taes fóra de analyse, a egreja re-
formada soffrerá maiores decepções, com o correr dos annos.
Aferrado ao seu "credo", ignora o homem que o seu des-
tino eterno nunca dependerá da sua fidelidade aos artigos
desse credo. Os factos nos auxiliam nesta affirmativa. Lem-
bra-se o leitor daquelle caso ruidoso que abalou o mundo in-
teiro, o de um professor norte-americano que havia ensinado
a theoria da evolução a seus alumnos? Apaixonou de tal modo
a alma da grande nação norte-americana, que esse professor
foi submettido a jury, num vastissimo campo de... base-
ball, porque de todos os pontos do paiz affluiram curiosos,
em multidões colossaes, que, temerosos do naufragio da Bi-
blia, queriam vêr o julgamento do grande criminoso. E as-
sim, dando uma feição berrantemente espectaculosa ao caso
o puritanismo escandalizado deu mostras de que o incendio
do seu zelo foi produzido apenas pela fidelidade a uma fórma
especial de fé, e nunca ao conteudo do Evangelho. A proposito,
brilhante jornalista da nossa terra, em o "Estado de S. Paulo",
de 12 de Julho de 1925, estampou magnifico artigo na secção
"Vida Forense”, commentando a exdruxulice desse phenome-
no social, mostrando que, "mais efficiente do que o "veredictum"
do jury seria a critica severa da doutrina exposta." Um dos
advogados da accusação, o sr. William Jenning Bryan, pro-
testante exaltado, apaixonou-se tanto com o caso peccaminoso, que veiu a succumbir, devido a uma congestão cerebral'
Afinal, o professor foi condemnado a uma multa pecu-
niaria, puerilmente irrisoria, (100 dollares) e á perda da cadei-
ra, mas... foi chamado immediatamente pela Universidade
— 278 —
de John Hopinks, onde foi leccionar mediante os vencimentos
que lhe foram offerecidos, de cinco mil dollares.
Mais duas palavras sobre esse "criminoso", cujo acto
causou escandalo em todo o globo, não pela sua natureza,
mas pelo aspecto com que o dramatizaram os espiritos apai-
xonados. O protestantismo inglez, mais vizinho do catholi-
cismo e menos parente do presbyterianismo norte-americano,
mostrou-se mais tolerante, menos bellicoso, menos aspero,
menos fanatico, segundo a adjectivação do nosso irmão rev.
Othoniel Motta.
Em a parte redactorial do "Estado de S. Paulo", de 15
de Julho de 1925, lemos o protesto lançado aos quatro ventos
pelo revmo. R. H. Charles, zeloso arcediago da abbadia de West-
minster, contra a iniquidade de que foi victima o professor
Scopes. A auctoridade desse alto prelado da egreja anglicana
dispensa commentarios. Leiamos a brilhante defesa do "cri-
minoso", feita por esse illustre theologo inglez (os gryphos
são nossos):
"A lei, por cuja infracção se instaurou processo contra
o prof. Scopes, é uma péssima lei. Com effeito, ella equivale ao
amordaçamento da verdade e a um esforço por ensinar a mentira,
Se eu fizesse parte desse jury ter-me-ia balido firmemente pela
absolvição, porque não creio que uma lei iniqua deva ser im-
posta. Não acho que se deva punir um homem pela violação
de uma lei prejudicial á verdade e á moralidade. A religião é
um processo de desenvolvimento, que não está em opposição
ás leis da sciencia, mas ao contrario, em harmonia com ellas.
A evolução já estava esclarecida e comprehendida, emquanto
o Velho Testamento ainda era o grande inintelligivel. O Chris-
tianismo como se revelou através da evolução é muito mais
interessante do que era antes de estabelecer-se a theoria evolucio-
nista. Os sacerdotes intelligentes acceitam de boa vontade as
novas descobertas da sciencia e dos investigadores, porque todos
se encaminham para a verdadeira revelação de Deus. O trabalho
— 279 —
da sciencia nos auxitia a achar nas coisas o pensamento de
Deus" (Do "Estado de S. Pauto", secção Notas e Informa-
ções).
─ Vemos, pois, que o protestantismo inglez, desfigurado
e anemiado, como dizem alguns irmãos reformistas, por não
ser aggressivo mas tolerante, produz mais e melhor do que
o credo que excommunga e que manda para o banco dos réos
um christão, pelo grande crime de ser amante e propagador
da verdade...
Digamos mais alguma coisa concernente á prodigiosa
terra de Lincoln, onde — dizem certos irmãos protestantes —
a doutrina da Reforma domina as massas. E' verdade que esse
pedaço de ouro do Novo Mundo foi, de facto, colonizado e
povoado por protestantes. Mas, tambem é verdade que a
doutrina reformista ainda não chegou a fermentar toda a
massa.
Calculada a sua população em 120.000.000 de habitantes,
vemos que, nem ao menos 40 % pertencem á egreja reformada.
E' o "Estandarte" que nos dá o numero exacto de protestantes
existentes nos Estados Unidos. Em a sua edição de 5 de Julho
de 1928, lemos isto: "Segundo, o censo religioso dos Estados
Unidos, que publicou o "Christian Herald", existem ali... 46.883.730 protestantes."
Pelos dados censitarios publicados pelos compendios de
geographia adoptados nas escolas de ensino secundario, o
catholicismo é professado alli por 18.000.000 de habitantes,
ou sejam 15 % da população total. Os judeus figuram com o
numero approximado de 5.000.000 de adeptos, ou sejam 4%.
Consequentemente, os protestantes representam 39%,
os catholicos 15 % e os judeus 4%. E os restantes 42%?...
A estatistica dos divorcios é uma próva contrária ao pro-
gresso espiritual. "Não separe o homem aquillo que, em seu
proposito, Deus ajuntou, porque são dois em uma só carne."
— 280 —
Esse preceito evangelico é letra morta. Vejamos o que nos
dizem os algarismos. Em 1922, por exemplo, houve 70.000
divorcios. Doze mezes depois, isto é, após um anno de exem-
plos, de experiencia, de pregação e de divulgação dos precei-
tos cimentadores da paz individual, da paz domestica, da paz
social, era de esperar um adoçamento nesses impulsos sepa-
rativos; era de esperar que esses 70.000 exemplos exercessem
alguma influencia no animo dos candidatos a seguidores des-
ses exemplos... — E' bom notar que, la, entre os casaes, não
se observa a restricção dos casos em que o Divino Mestre
permittiu a separação conjugal. Fazemos esta observação,
por se tratar da terra dos puritanos, a cujos olhos deve estar
bem vivo o episodio registrado pelo evangelista: "E chegaram-
se a Elle os phariseus, tentando-o e dizendo: E' porventura
licito a um homem repudiar a sua mulher, por qualquer causa?
─ Responde Jesus: Todo aquelle que repudiar a sua mulher
si não é por causa de adulterio, commette adulterio." (Math.
19:1-12).
Essa condicionalidade estabelecida pelo Mestre dos mes-
tres é letra morta para os puritanos. Os homens sobrepõem
aos textos biblicos os seus caprichos e os seus desejos. Os tri-
bunaes registram o que de mais extravagante e de mais risi-
vel se possa imaginar, no capitulo dos divorcios. Uma senhora
requereu divorcio, unicamente porque o seu marido achára
muito feio o córte dos cabellos de sua cara metade, á la garçon-
ne. Não podia ella supportar as risadas que o seu esposo não
podia conter, não na rua, mas no recesso do lar. Uma outra
propoz acção de divorcio, pelo facto de pretender seu marido
fazer um vôo de Chicago a Paris, em aeroplano. Alléga essa
senhora que os maridos não se pódem entregar aos azares de
uma viagem aérea sem o consentimento das esposas, accres-
centando que o seu marido pretende fazer a viagem acompa-
nhado de um grupo de moças pertencentes embora ás melho-
res familias de Chicago. ("Estado de S. Paulo" n.° 17.975,
telegramma na 1.ª pagina). Agora é um marido que pleiteia
perante os tribunaes a dissolução dos laços matrimoniaes,
— 281 —
porque a sua esposa, que era magra, engordara demasiada-
mente, porque come muito, come o dia inteiro. E os juizes
vivem atrapalhados deante da perturbadora sciencia juri-
dica que o sabor matrimonial vae firmando diariamente na
grande terra das deliciosas novidades.
Certamente o leitor será apreciador apaixonado, como
nós, daquella soberba secção "Vida forense", do grande orgão
"O Estado de S. Paulo", publicação reservada aos domingos.
O autor dos lindos e encantadores artigos, Plinio Barretto,
conhecedor profundo dos segredos da psychologia humana,
tem tratado, frequentemente, das tricas forenses levantadas
nos tribunaes americanos, acerca da jurisprudencia sempre
nova e fresca mas... sempre reformada pelos casos de divor-
cio, cada qual possuindo o cunho da mais estonteadora origi-
nalidade.
Consulte o leitor um dos volumes da excellente "Chroni-
ca Forense” do inspirado advogado paulista que, de par com
invejavel cultura juridica, possúe aprimorada cultura litera-
ria e philosophica, qualidades a que sabe alliar as delicias e
os encantos de finissimo humorismo, desse humorismo que
sanifica e que supprime todos os succos hapaticos. Essa col-
laboração dominical — “Vida forense” — tem sido a pri-
meira refeição tambem das representantes do sexo fraco,
pois as producções de Plinio Barretto encerram sempre as
mais seductoras lições de Economia Social, vasadas em lin-
guagem de incomparavel belleza. São lições de mestre, e de
mestre profundamente inspirado, que sabe sentir para poder
vibrar com lealdade, com firmeza, com autoridade que edifica
porque instrue.
Mas, deixemos de digredir. Aquelles 70.000 casos de
descasados, ao envez de convidar os esposos e os noivos á
meditação, parece que incentivaram mais ainda o gôsto pelo
descasamento: doze mezes depois, os juizes tiveram maior
trabalho com as victimas da embriaguez do separativismo,
pois decretaram a separação de "297.108" corações!
— 282 —
Que significa essa progressão gritadora? Que o Evange-
lho domina os corações? Não. Quér dizer: os 250.000.000
de exemplares das Sagradas Escripturas, espalhados desde
1816 pela Sociedade Biblica Americana (para não falar nos
da Sociedade Biblica Britannica), ainda não constituem um
indice seguro, segundo o qual se possa affirmar que as cons-
ciencias estejam saturadas da doutrina encerrada nesses
mesmos volumes. Prevalece, ainda, o amor ao credo, ao
"esqueleto", na feliz expressão do revmo. Othoniel Motta,
em que pése á these do revmo. Orlando Ferraz.
Acerca da solidez e da unidade de vistas entre as nume-
rosas seitas, eis o que nos diz o notavel theologo, revmo.
Charles R. Brown:
"Deploramos a multidão de seitas e a consequente luta
entre as mesmas." "Mas este gosto pela variedade tem passado
os limites do razoavel, porque tem multiplicado desnecessaria-
mente as seitas e criado rivalidades humilhantes." "As tentativas
para unir as egrejas teem sido, até aqui, infelizes." "Em nossas
missões domesticas (ou nacionaes) e extrangeiras, a egreja,
assim subdividida, lem soffrido severas criticas e, muitas vezes,
derrotas." “Nas missões domesticas o trabalho sectario tem
sido, em muitos logares, uma iniquidade, que muito tem pre-
judicado à causa de Christo na salvação da humanidade." (Obra
citada)
Não se gabem, pois, certos espiritos optimistas, que
defendem a multidão de seitas do protestantismo, como uma
próva da pujança da Reforma. A multiplicidade, segundo a
autorizada palavra desse pastor norte-americano, não revéla
vitalidade, mas fraqueza, que tem redundado — diz elle —
em lutas, derrotas e iniquidades.
Ha cerca de 50 annos, o economista belga, Emilio Lave-
leye, escreveu um trabalho — "O futuro dos povos catholi-
cos" — em que vem um estudo comparativo dos cantões
suissos, catholicos e protestantes, para mostrar a superiorida-
— 283 —
de destes. Pois bem. Em o "Estandarte" n.° 23, de 1924, pag.
5, columna 1.ª, o revmo. Othoniel Motta (que conhece a
Europa), fazendo referencia a esse trabalho do economista
belga, diz: "...excellente em seus dias, é absolutamente fóra
de proposito agora. Com a evolução dos povos, aquelles concei-
tos se tornaram caducos e insustentaveis. Tive occasião de "vêr"
isto na Suissa, quando lá estive, cotejando os cantões catholicos
com os protestantes. Citar aquelle folheto é um "gravissimo pe-
rigo": é expâr o flanco a um golpe certeiro do adversario." E'
Othoniel Motta quem fala, e não nós.
Isso, com referencia á Suissa, onde, ha uns 30 annos,
era real a supremacia do protestantismo. Agora, com referen-
cia aos Estados-Unidos. Eis o que nos diz o mesmo orgão
evangelico, o "Estandarte", em a sua edição n.° 19, de 1928:
"Romanizando-se — Do The Wotchman Examiner extra-
hiu nosso apreciado confrade do "O Jornal Baptista” a
seguinte tristissima noticia: Diaconos e diaconizas da Egreja
Protestante Episcopal nos Estados Unidos estão protestando
contra as praticas catholico-romanas no seio da sua denomina-
ção. Pedem elles que a Convenção Geral a reunir-se em Was-
hington, no mez de Outubro, tome um passo para por um
fim á missa, á adoração do sacramento, ás orações á Virgem
Maria, invocação dos santos, culto de imagens e reliquias,
confissão auricular, pratica da penitencia, uso do rosario e
da agua benta. Parece-nos que taes egrejas já foram tão
longe nas suas praticas, que alcançaram o romanismo. A
mesma tendencia verifica-se na Inglaterra."
─ Essa “tristissima noticia", como lhe chama o "Estan-
darte", orgão presbyteriano, mostra a gravidade da situação
em que se encontra o Protestantismo, tanto nos Estados-
Unidos como na Inglaterra (e tambem na Allemanha), ou seja
nos maiores reductos da Refórma do sec. XVI. Vê-se que os
nossos irmãos protestantes se acham alarmados deante da
romanização que se vae operando nas doutrinas e praticas
da sua egreja. Não somos, pois, visionario, nem exaggerado,
— 284 —
quando affirmamos que os alicerces da egreja protestante
estão bastante abalados. Ainda ha pouco, ouviram os nossos
irmãos a palavra do grande evangelista, dr. John Mott, an-
nunciando propheticamente a crise sem exemplo pela qual
vae passar muito breve a egreja, devido á influencia do ma-
terialismo, contra cujos assaltos — dizemos nós — não po-
derá defender-se, porquanto, paralyzada em seus dogmas
que não progridem, continua a pregar doutrinas sem base
no Evangelho, e a combater doutrinas baseadas na palavra
do Divino Mestre, proclamadas pelos apostolos e repetidas
hoje pelas vozes que surgem de todos os pontos do planeta.
"A humanidade — diz um grande philosopho —" cansada
dos dogmas e das especulações sem próvas, mergulhou-se no
materialismo ou na indifferença. Não ha salvação para o
pensamento senão em uma doutrina baseada sobre a expe-
riencia e o testemunho dos factos".
Fechemos estas linhas, apresentando ao leitor um caso
bastante curioso, colhido na excellente obra "Classificação dos Criminosos; Introducção ao Estudo do Direito Penal",
do nosso grande mestre e amigo, dr. Candido Motta, uma
das mais brilhantes mentalidades que honram as cathedras
da Faculdade de Direito desta Capital.
Eil-o. "Um grande escriptor norte-americano, o dr. M.
Charles Carrol, fiel interprete do grande odio dos norte-ame-
ricanos ao negro, c autor da obra intitulada "O negro é um ani-
mal ou A' imagem de Deus”, descobre pelos textos da Bi-
blia que o negro é um animal, creado com uma linguagem
articulada e mãos, afim de que possa servir seu senhor, o
branco. E, em apoio da sua these, cita, entre outras, esta
próva.: que o homem foi creado á imagem de Deus; ora,
Deus não é negro, todo o mundo o sabe; logo, o negro não é
a imagem de Deus; logo, elle não é homem! (Jean Finot)"
— 285 —
O ESPIRITISMO ANALYSADO PELO MEDICO DOS PA-
PAS LEÃO XIII E PIO X
Antes do ponto final, queremos offerecer á apreciação do
leitor o juizo feito sobre o Espiritismo, por um sábio medi-
co italiano, absolutamente insuspeito, porque não foi adepto
do Espiritismo. A doutrina espiritista, baseada na verdade
evangelica, na verdade scientifica e na verdade philosophica,
tem a seu favor a força do raciocinio são, de homens insus-
peitos, de homens de grandes responsabilidades, que não
ignoram o perigo a que exporiam os seus nomes, si se deixas-
sem levar de respeitos humanos quando em busca da verdade.
Verá o esforçado evangelista patricio, rev. Orlando Ferraz,
que a tal doutrina não é uma arvore que só produz fructos
venenosos... Quem vae falar é o illustre dr. José Lapponi, medico dos Papas Leão XIII e Pio X, e professor de anthro-
pologia Applicada na Academia Romana de Conferencias His-
torico-Juridicas.
Sabemos que o Papa Leão XIII, uma das maiores men-
talidades que honraram o nosso seculo, pela sua cultura bri-
lhantissima e pelo seu espirito de larga visão e de profunda
tolerancia, encarregou o seu medico particular, o notavel
professor Lapponi, de estudar meticulosamente o Espiritismo.
Queria o Chefe da christandade catholica uma base sólida
em que pudesse firmar um juizo seguro acerca da doutrina
codificada por Allan Kardec, possivelmente para armar a
Egreja contra ella.
Acceitando a honrosa incumbencia, o eminente anthro-
pologista italiano metteu mãos á obra. Fel-o com absoluta
isenção de animo, como deve fazer um espirito despido de
preconceitos e de prejuizos humanos. Após alguns annos de
rigorosa investigação, de acurado estudo, de paciente analyse
e comparação, de par com a mais escrupulosa observação
dos factos, concluiu a sua espinhosa tarefa, reunindo em um
livro o fructo do seu trabalho. Esperavam certos espiritos
conservadores da epocha, que o dr. Lapponi construiria um
arsenal completo, onde seriam amontoadas todas as armas
necessarias para dar combate a essa doutrina que ameaçava
— 286 —
invadir os cinco continentes, com a impetuosidade de um
terrivel furacão. Tal, porém não se deu. O illustre scientista,
em seu — "Estudo Medico-Critico", revelou-se um espirito
emancipado de preconceitos religiosos ou philosophicos, con-
fessando a verdade integral que alcançou em seus estudos.
Em algumas centenas de paginas, apresenta-nos o notavel
medico o resultado de seus trabalhos, concluindo que o Es-
piritismo não é isso que os espiritos pouco tolerantes apregoam
segundo um juizo falho de base. Julga elle que a doutrina
codificada por Kardec tem base sólida, porque está edificada
sobre a rocha da verdade dos factos, sobre a verdade que o
mundo invisivel apresenta, sobre o testemunho de uma le-
gião de homens insuspeitos. Diz o illustre medico:
"O Espiritismo demonstra, do modo mais incontrastavel
que se possa desejar, esse sobrenatural, que o racionalismo e o
materialismo combinados, forcejam, obstinadamente ha se-
culos, mas sempre em vão, por destruir, por exterminar. E,
singular humilhação infligida aos soberbos pela Justiça Divi-
na! os que mais obstinadamente combatem o sobrenatural
em materia de Religião, são dos primeiros a reconhecel-o
nos phenomenos do Espiritismo".
"Mas devemos nos apressar em accrescentar que, entre
os que, na Italia e fóra della, attestam a existencia real dos
maravilhosos phenomenos espiriticos, ha pessoas superiores a
toda a excepção. Com effeito não poucas, entre ellas, occu-
pam lugar eminente nas respectivas classes de jornalistas,
romancistas, literatos, professores, mathematicos, astronomos,
geologos, physicos, chimicos, anthropologistas, naturalistas,
medicos, philosophos, theologos, magistrados, politicos, di-
plomatas, sociologos. Sabe-se que Napoleão III, que de certo
não era ingenuo nem disposto a passar por tal, ficou estupe-
facto deante das manifestações surprehendentes provocadas,
em sua presença e na de sua côrte, e com as maiores cautelas
que se pódem desejar, pelo doutor Home.
O peso de tantos e tão serios testemunhos accresce com
a circumstancia de serem a maior parte d'aquelles, que os
prestaram, sabios de primeira ordem, acostumados a consi-
— 287 —
derar os tactos debaixo dos pontos de vista mais variados,
a analysar as suas relações, a considerar as particularidades
e as circumstancias, as causas e os effeitos.
"O celebre naturalista Alexandre Humboldt, convidado a
20 de Junho a se pronunciar, em presença do rei Frederico
Guilherme IV, sobre certos phenomenos espiriticos, pronun-
ciou as seguintes memoraveis palavras: "Os phenomenos não
se pódem negar; compete agora á sciencia explical-os".
"Recordamos, como especial homenagem, a Commissão
eleita em 1869 pela Sociedade Dialectica de Londres, em que
figuravam Alfredo Russel Wallace, Augusto de Morgan, C.
F. Warley, Hell, Chambers Howit Edmonsds.
"As experiencias desta illustre Commissão em 1871, fo-
ram continuadas, com acurado e escrupuloso exame, por
•outro inglez illustre, William Crookes, physico que não receia
confrontos em parte alguma do globo; que aos 20 annos
tinha já publicado importantes trabalhos sobre a luz polari-
zada; que mais tarde produziu importantes trabalhos sobre
os espectros luminosos dos corpos celestes; que inventou o
photometro de polarização e o microspectroscopio; que es-
creveu trabalhos de Chimica bastante apreciados; que é autor
de um Tratado de Analyse Chimica que se tornou classico;
que contribuiu grandemente para os progressos da photo-
graphia celeste; que fez, sobre a photographia lunar, trabalhos
que a Sociedade Real de Londres reputou dignos de premio
especial; que o governo inglez enviou a Oran para lá estudar,
com outros homens de sciencia, o eclipse solar; que é instruido
em medicina, em hygiene publica e em sciencias naturaes,
como provam os seus apreciados trabalhos sobre a peste bovi-
na; que descobriu um processo de amalgamação metallica, por
meio do sodio, hoje largamente applicado na Australia, na
California e na America do Sul, para a extracção do ouro; que
descobriu um novo corpo metallico, o thallio; que finalmente
fez conhecer o estado radiante da materia, o qual permittiu
hoje a outra famosa descoberta dos raios de Roentgen, tão
util para a photographia chamada do invisivel.
— 288 —
"Um homem de tão alta intelligencia e de sciencia tão
vasta, um homem que passou a sua vida a indagar, com o
maximo rigor, os mais arduos segredos da natureza, quiz exa-
minar os phenomenos espiriticos e sujeital-os á critica severa
das sciencias experimentaes. Nas suas pesquizas foi auxiliado
por dois outros physicos de merecimento, William Huggins e
E. W. Cox. Por meio de apparelhos de precisão, e registrado-
res automaticos, elle examinou escrupulosamente, até nas
mais insignificantes particularidades, todos os phenomenos
que se verificaram debaixo de seus olhos. Experimentou re-
petidas vezes em pleno dia, em aposentos escolhidos por elle
e bem illuminados, seja pela luz solar, seja pela luz electrica,
seja á luz phosphorica. Elle proprio assistiu aos preparativos
dos seus Médios, para ter a certeza de que nada occultavam
debaixo das roupas. As mesas da experiencia eram arranjadas,
examinadas e dispostas por elle.
“Ora, bem estudados os phenomenos espiriticos no meio
de tantas precauções e com o maior scepticismo scientifico, devia elle lealmente repetir o que já antes delle havia dito
Alfredo Russel Wallace: “Adquiri certeza da realidade dos
phenomenos espiriticos".
“Nem se creia que, naquelle periodo de tempo, os illus-
tres personagens que constituirain a Commissão da Socie-
dade Dialectica e William Crookes começassem a soffrer al-
guma alteração das funeções cerebraes, pois que, ao mesmo
tempo, os diversos sábios acima referidos tinham em mãos ou-
tras obras admiraveis, posteriormente publicadas; e, depois
dessa epocha cada um delles deu provas não duvidosas da
conservação do poder intellectual. Quanto a Crookes, em par-
ticular, lembremos a proposito, que os seus trabalhos sobre
o estado radiante da natureza remontam a 1878, e que suas
ultimas demonstrações sobre tal ponto foram feitas em 1879,
no Congresso da Associação Britannica para os Progressos
da Sciencia, e em 1880 na Escola de Medicina e no Observa-
— 289 —
torio de Paris em presença de muitissimos homens de scien-
cia, entre os quaes o chimico Wurtz e o almirnate Monchez.
Os estudos sobre o Espiritismo, como já dissemos, foram fei-
tos por Crookes em 1871.
"Por ultimo não têem faltado pessoas que, menospre-
zando um dia o Espiritismo, se tornaram, depois de repetidas
observações e experiencias, senão defensores convictos, tes-
temunhas delle, embora em suas observações e experiencias
puzessem a maior dóse de duvida e de scepticismo.
“Praz-nos fechar este capitulo com as mesmas palavras
com que Crookes fechava a relação das suas observações e
experiencias.
“A gente — diz Crookes — sempre ávida do sobrenatu-
ral, nos pergunta: Acredítaes nisso vós, ou não acreditaes? —
Nós respondemos: somos chimicos, somos physicos; o nosso
mistér não consiste em acreditar ou deixar de acreditar, mas
sim em averiguar, de modo positivo, si um dado phenomeno
é ou não imaginario. Feito isto, o mais não é de nossa compe-
tencia. Ora, quanto á realidade dos phenomenos, nós a affir-
mamos, ao menos provisoriamente, porque, com immensa
estupefacção dos nossos sentidos e de nossa intelligencia, a
evidencia nos obriga a admittil-a. Lembre-se o leitor de que
não aventuramos, nem hypotheses, nem theorias de especie al-
guma. Attestamos simplesmente os factos, só para o fim e pela
razão unica de que em toda a nossa longa carreira procuramos
fazer conhecer a verdade. As Commissões de investigadores,
os homens insignes e praticos de todas as nações, que se reu-
niram para vigiar severamente as nossas experiencias, con-
cluem comnosco. Mais uma vez: não vos affirmamos que isto
é verosimel, mas vos affirmamos que isto “é".
“Em vez de duvidar ou de crêr ao acaso, o que é a mesma
coisa, e de imaginar que fômos capazes de desperdiçar o tem-
— 290 —
po a estudar passe-passes de charlatães (como si fosse possi-
vel tal puerilidade), dae-vos ao trabalho de examinar primei-
ro os factos, como nós, um tempo incrédulos, nos resignámos
a fazer. Mostrae-nos com critica severa, em que ponto errá-
mos no decurso de nossas experiencias. Particularizae e sug-
geri, si souberdes, meios de exame mais demonstrativos. In-
ventae complexos de difficuldades mais insuperaveis e mais
subtilmente combinadas do que aquellas de que rodeámos os
nossos Médios, sem que elles jamais o soubessem. Mas não ve-
nhaes, assim inconsideradamente tratar os nossos sentidos
corporaes de mentirosos ou facilmente enganados; não accu-
seis a nossa razão de demencia (que, entre parenthesis, só nós,
depois de tão rigorosos estudos, teremos o direito de reconhecer
em vós), com o pretexto de que os factos contrariam os vossos
juizos antecipados, semelhantes aos que nós tambem alimen-
támos no passado. E' difficil ser mais sceptico e mais positivo
do que nós em materia de cousas experimentaes. Si tendes
mais confiança em vós do que em nós, seja pela vossa ignoran-
cia, seja pela vossa sciencia de curioso, de que lado se deve
collocar um homem sensato? Sustentamos que toda a mascara
de presumpção ou de bondade desdenhosa cáe do rosto á vista
de certos phenomenos effectuados por Médios reaes e verda-
deiros, nos nossos laboratorios; que os mais atrevidos moteja-
dores tornam-se semelhantes áquelles astuciosos camponezes
que nas feiras, piscam os olhos para os companheiros, zomban-
do de um apparelho de Rhumkorff, e depois mudam de re-
pente de côr, apenas têem tocado os fios da machina. Final-
mente, rejeitar levianamente os testemunhos de homens, a
quem foi confiada a tarefa de examinar um facto e dar a sua
razão, equivale a deprezar todo o testemunho humano, tenha
elle a importancia que tiver. Porque não ha facto algum na
historia sagrada ou profana, ou nos annaes da sciencia, que se
baseie em próvas mais sólidas e mais efficazes do que as que
nos tornaram, não só convencidos, mas até opprimidos pela
evidencia. Não ouseis, pois, proclamar a superioridade dos
vossos sentidos e do vosso scepticismo sobre os nossos sentidos
— 291 —
e sobre o nosso scepticismo; e fiquem assim terminadas estas
controversias ociosas."
Diz o dr. Lapponi, logo em seguida: “Subscrevemos sem
restricções estas saplentissimas palavras. E si aos olhos de al-
guem tivermos de passar por ingenuo, nós, ate á demonstra-
ção contrária, preferimos ser ingenuo com Wynne, com Hug-
gins, com Russel Wallace, com Tindall, com Humphry Davy,
com Richardson, com Humboldt, e com Crookes, não fa-
lando em muitos outros e eminentissimos sábios, a ser intelli-
gente e entendido com quem presume julgar sem nenhum exa-
me prévio."
Apresenta o illustre professor italiano uma lista de nomes
de eminentes homens, que são testemunhas da realidade dos
factos sobre que se apoia o Espiritismo:
"Victor Meunier, publicista; Laroche Hein, publicista;
Carlos Lemont, autor dramatico; Maximo d'Azeglio, literato,
artista, politico; Walter Scott, romancista; Augusto Vacque-
rie, literato; Victor Hugo, romancista; Victorien Sardou, dra-
maturgo; Prof. Scarpa; Prof. Vespaziani; Prof. Damiani;
Prof. G. Mazzini; Prof. Macchia; Napoleão III; Terencio Ma-
miani; Prof. Angelo Brofferio; Prof. G. Gerosa; Chiaja Ercoli;
Bianchi; Moelli Gabrielli; Romanelli; Verdinosi; Finzi Er-
macora; Scozzi; Ballatore, general; Prof. Hoffmann; Doutor
Dexter; Falimadge; Wynne, mathematico; Augusto de Mor-
gan, presidente da Sociedade de Mathematicas de Londres;
Swedenborg, um dos corypheus do Espiritismo, mas ao mes-
mo tempo mathematico, physico, naturalista e insigne astro-
nomo; Lodge, mathematico e physico; Flammarion, astrono-
mo; Barthus, geologo; Zoellner de Leipzig, astronomo; Chal-
lis, astronomo; Deuton, geologo; A. Y. Tindall, physico; Ocho-
rowitch, physico, inventor do thermo-microphono; Thury,
de Genebra, physico; Fechner, physico; Buttleroff de S. Pe-
tersburgo, chimico; Hare, chimico; Carus, medico e psycho-
logista; Cuovkel, physico; Du Prel; Gibier; Tamburini; Limo-
nelli; Ascenzi; Vizioli; Ceolfi; Penta; Luciani; Capuano; Mapes,
— 292 —
chimico; Humphrey Davy, chimico; L. Terni, anthropolo-
gista; Morselli, anthropologista; Lombroso, anthropologista;
Wagner, zoologista; Perty, naturalista; Humboldt, natura-
lista; D. Sexton, medico, geographo e geologista; Carlos Ri-
chet, medico e physiologista; Game Culy, medico; Schiappa-
relli, philosopho; Filopanti, philosopho e mathematico; abbade
Garo, conego de Nancy; abbade Rocha; Flournoy; Hammond,
pastor evangelico; Simmons, magistrado; John Edmonds,
magistrado; Aksakoff, conselheiro de Estado do Czar; Eula,
ex-ministro da graça, justiça e cultos na Italia; Senior, lente
de Economia Politica em Oxford; Conde Constantino de
Bodisco, camarista do Czar; Conde Ad. Poniviski, De Giers,
ministro da Russia e chanceller do Imperio; Lincoln, presi-
dente dos Estados-Unidos; Darsin, majór-general; J. B. Rous-
taing, advogado na Côrte Suprema de Bordeaux; Balfour,
ex-lord do Thesouro em Londres; Falcomen, prof. de Direito;
V. E. Gladstone, primeiro Ministro Inglez; senador Negri;
Jourowitch, que ha pouco (1905) fez um contracto com Pal-
ladino para nove mezes de experiencia, em Paris. (Dr. José
Lapponi — obra citada, Livraria Francisco Abes & Cia.
RICHET E O ESPIRITISMO — CONGRESSO DE PES-
QUIZAS PSYCHICAS ' "
Toda a vez que se pronuncia o nome de Charles Richet
a maior autoridade contemporanea em assumptos perti-
nentes á physiologia e á psychophysiologia — aflora aos la-
bios de certas pessoas um sorriso de ironia, denunciador da
duvida sobre as convicções do sábio medico e professor fran-
cez. Pois não ha razão para essa ironia e para essa duvida.
O brilhante orgão “O Estado de S. Paulo", de 23 de De-
zembro de 1927, dá-nos conta dos trabalhos realizados ulti-
mamente num notavel Congresso de Metapsychica, reunido
em Paris. Da secção "Notas e Informações" extraimos algu-
— 293 —
mas palavras do grande professor da Faculdade de Medicina
de Paris:
"Quando falei deste Congresso á imprensa de Paris, não
podia prever que seria ouvido por um auditorio tão numeroso,
cerca de 350 pessoas, vindas para tomar conhecimento de ob-
servações precisas e experiencias rigorosas. De facto, foi um
Congresso tão sério e tão technico como todos os demais con-
gressos scientificos, pelo que, no futuro, ninguem mais poderá
improvisar-se psychologo, como ninguem já se improvisa
astronomo ou geologo. E os que intentarem ridicularizal-o,
sem o ter estudado, analysado e aprofundado, não terão voz
nem voto no capitulo.
"Reprovou-se o não termos feito demonstrações (como
em um circo ou theatro de prestidigitações). Mas um Congres-
so não é um laboratorio e não se póde, deante de um auditorio
de trezentas e tantas pessoas, fazer experiencia alguma,
efficaz, pelo menos. Só se pódem fazer investigações ou de-
monstrações depois de precauções delicadas, minuciosas, em
presença de tres ou quatro sábios experimentados no silencio
e na solidão dos gabinetes de estudo. E' preciso contentar-se
pois com as exposições feitas pelos sábios, os professores de
zoologia, de physica, de medicina, de chimica, que se entre-
garam a tão arduos trabalhos. Tivemol-os de Leipzig, de
Bruxellas, de Londres, de Praga, de Athenas, de Munich,
de Bonn, de Varsovia, sobretudo, que apresentaram photo-
graphias estupendas."
Para que o leitor faça uma idéa mais approximada desse
Congresso, presidido pelo prof. Richet, vamos transcrever a
correspondencia que, a respeito, foi publicada pelo conhecido
diario italiano, da capital paulista, "Fanfulla", em data de
28 de Setembro de 1927:
“Uma revelação verdadeiramente sensacional foi feita
hoje pelo prof. James Mc. Master Bird, de New-York, pe-
— 294 —
rante os membros do Congresso Internacional de Pesquizas
Psychicas. O prof. Bird projectou na téla as impressões digi-
taes de um "espirito" que, no caso especial mencionado,
eram exactamente iguaes ás impressões digitaes do pae da
pessoa que tinha servido de "medium” na experiencia duran-
te a qual foram registradas as impressões digitaes do "espi-
rito".
“Deve-se notar que o pae do "medium" havia fallecido
ha quinze annos quando foi realizada a experiencia e que a
exactidão das impressões digitaes do fallecido e as do suppos-
to “espirito" foram controladas por um official de policia.
“O prof. Bird explicou minuciosamente as suas experien-
cias, nas quaes servira como "medium" Mrs. L. R. C. Cran-
don, de Boston, durante as quaes os “espiritos” assumiram
formas humanas e agiram como um ser vivo, deixando impres-
sões que foram photographadas e mostradas aos congressis-
tas. O prof. Bird projectou tambem uma photographia de
um “medium” que mostra a mão de um espirito. O "medium” declarára ter recebido do espirito um aperto de mão que lhe
pareceu ser de um ser humano, embora indefinido.
“Muitos outros congressistas referiram á attenta assem-
bléa outros casos de manifestações semelhantes, mas sem
duvida alguma as revelações do prof. Bird produziram muita
surpreza entre os scientistas e em particular entre os jornalis-
tas e o publico que foram admittidos ás sessões do Congresso.
“O SEXTO SENTIDO (RICHET) — Outros congressistas que
tomaram a palavra na sessão inaugural, são: Sir Oliver Lodge,
sábio physico inglez, o qual expoz brevemente um estudo
seu, para a eliminação do “medium” nas experiencias espiri-
tas, e a pesquiza da verdadeira natureza dos phenomenos
espiriticos; e o prof. Charles Richet, francez, acclamado
presidente do Congresso, o qual, no seu discurso de abertura,
disse que “a Metapsychica está em caminho para tornar-se
uma sciencia importantissima”. Declarou mais que hoje se
— 295 —
póde affirmar a existencia de outro sentido — "o sexto" — e
prometteu demonstrar aos congressistas, nas proximas sessões,
este novo sentido, que seria "a força psychica" (ou a facul-
dade medianimica)
"A sessão dos trabalhos do Congresso durará cinco dias,
durante os quaes são esperadas outras importantes commu-
nicações dos scientistas e estudiosos que de todos os pontos
da terra se dirigiram a Paris, afim de referir aos congressistas
os resultados de numerosas experiencias realizadas debaixo
de condições differentes e com differentes typos de "medium". Suas communicações são interessantissimas, pois que muitas
vezes são acompanhadas de diagrammas e photographias que
demonstram irrefutavelmente as affirmações de suas theorias
a respeito desta sciencia que ainda está no berço."
CHARLES R. BROWN, COELHO NETTO, ALLAN
KARDEC E CHARLES WAGNER —
— FINALIDADE DAS RELIGIÕES —
"Já assisti reverentemente á missa segundo o rito roma-
no, na Egreja de S. Pedro, em Roma; já ouvi cem homens
da Egreja Grega cantar a missa na Cathedral de Kremlin,
em Moscou; já ouvi um côro de meninos indios cantar a
missa na missão russa das costas de Alaska; já assisti ao
serviço de sexta-feira da paixão na Cathedral da Egreja
Grega, em Athenas; já ouvi o chamado á oração, vindo do
alto dos minaretes e vi mussulmanos devotos prostrarem-se
em culto na Mesquita de Santa Sophia, em Constantiniopla;
contemplei semblantes estolidos de chinezes nos Pagodes da
velha Shanghai; vi o sacerdote budhista dirigir o culto dos
japonezes no grande templo de Hongwangi, em Kioto, e vi
as faces banhadas de lagrimas de judeus devotos que derrama-
vam os corações em oração fervente perante as ruinas do
Templo, em Jerusalem. E todos estes cultos eram differentes
do meu. Entretanto, o espirito de todos era semelhante áquelle
— 296 —
que encontro em meu peito: a convicção de uma dependencia
do Invisivel, o desejo profundo de ter communhão com o
Eterno. E é preciso confessar que eu me sentiria anormal e
incompleto si em todos os meus propositos não tivesse parte
com elles nesta mesma persistencia e insaciavel fome do
coração!" Essas confissões do rev. Brown fazem-nos lembrar
aquellas sublimes verdades pregadas lá nas longinquas e,
para nós, mysteriosas regiões do Oriente, jamais esquecido
pelo Divino Mestre: "Os caminhos para Deus são tantos
como as respirações dos filhos dos homens. Qualquer que
seja o caminho em que um homem se approxime de mim,
nesse caminho o saúdo, porque todos os caminhos são meus."
"Homem de fé — diz Coelho Netto — o Livro de
minh'alma, aqui o tenho:0 é a Biblia. Não o encerro na bi-
bliotheca, entre os de estudo, conservo-o sempre á minha
cabeceira, á mão. E' delle que tiro a agua para a minha sêde
de verdades; é delle que tiro o pão para a minha fome de
consolo; é delle que tiro a luz nas trévas das minhas duvidas;
é delle que tiro o balsamo para as dôres das minhas agonias.
E' o vaso em que, semeando a Caridade, vejo sempre verde
a Esperança, abrindo-se na flôr celestial que é a Fé.
“Eis o livro que é a valisa com que ando em peregrina-
ção pelo mundo. Tenho nelle tudo." “Os pontos cardeaes da
minha Religião são os quatro Evangelhos. Lendo-os, confor-
to-me e, quanto mais os medito, mais me sinto approximar
de Deus. Si deixei o caminho que trilhava tortuoso, sombrio,
sempre eriçado de espinhos, a pique sobre esse abysmo flam-
mejante, o Inferno, com que a Igreja ameaça aos que se
atrevem a discordar de um só dos seus imperativos férreos,
foi guiado por esses quatro esplendores. Tive a minha estrada
de Damasco e da cegueira em que jazia levantei-me em des-
lumbrante claridade, e vi! Vi a Verdade e, seguindo-a, achei-
me entre vós. Aqui estou!"
“Religiões não se discutem. Nem eu as discutirei senão
quando m'as quizerem impôr. Cada qual se communica com
— 297 —
Deus conforme o ensino da sua crença. Discutir religiões
seria o mesmo que discutir linguagens, condemnando, por
exemplo, a inglesa por pobre em verbos, a alleman por abs-
trusa na syntaxe, a portuguesa por inflada nos diphtongos
e etc. Religiões são idiomas. Assim como ha varias lin-
guas, todas exprimindo as mesmas idéas, ainda que em ter-
mos differentes, ha varias religiões, cada qual com o
seu symbolo, o seu rito, todas, porém, collimando o
mesmo Ideal. As religiões primitivas, com cerimonias bar-
baras, sanguinolentas, foram os primeiros tartareios da Fé.
Os idiomas transmittem o pensamento, as religiões traduzem a
crença: uns servem para a communicação dos homens entre
si, na vida; outras entendem com o destino da alma além
da morte. O lume é um e o mesmo, qualquer que seja a lenha;
tanto calor e brilho dá o tronco do cedro como o do pinheiro,
do álamo, do carvalho ou do jequitibá e com um pouco de
folhas sêccas o pastor, na montanha, aquece-se e alumia-se.
O necessario é ter lume — Fé.
"A crença equilibra o homem entre o céo e a terra, e,
nos dois extremos em que elle se apoia, o peso deve ser o
mesmo — Amor: amor de Deus sobre todas as coisas, amor
ao proximo, como a nós mesmos." (Coelho Netto — "A
vida além da morte")
"A melhor de todas as religiões é aquella que só ensina o
que é conforme á bondade e justiça de Deus; que dá de Deus
a idéa maior, a mais sublime, e não o rebaixa emprestando-
lhe as fraquezas e as paixões da humanidade; que torna os
homens bons e virtuosos e lhes ensina a amarem-se todos
como irmãos; que condemna todo o mal feito ao proximo;
que não autoriza a injustiça sob qualquer fórma ou pretexto
que seja; que nada prescreve de contrario ás leis immuta-
veis da natureza, porque Deus não se póde contradizer;
aquella cujos ministros dão o melhor exemplo de bondade,
caridade e moralidade; aquella que procura melhor combater
o egoismo e lisonjear menos o orgulho e a vaidade dos ho-
— 298 —
mens; aquella, finalmente, em nome da qual se commette
menos mal, porque uma boa religião não póde servir de pre-
texto a nenhum mal; ella não lhe deve deixar porta alguma
aberta, nem directamente, nem por interpretação." (Kardec
─ "O que é o Espiritismo")
E' de Charles Wagner este postulado precioso:
"A religião não consiste numa tradição rigida e intangi-
vel a receber e a conservar em blóco, mas num "bem" vivo
que se transmitte, renovando-se. A religião não é um dogma-
tismo individual, limitado, exclusivo que só poderia ter como
consequencia divisões e anáthemas. E' um espirito largo, com-
prehensivo, procurando e accentuando o que une e procla-
mando-o acima daquillo que nos divide. Desprezando, excluin-
do, negando o direito de outro crente por differenças de “fórma",
tornar-nos-iamos culpados de desprezo, de exclusão e de
negação para com o proprio Deus operando na alma do crente.
"Não somos descrentes, somos crentes, mas crentes con-
sencidos de que só o fundo da fé é eterno, ao passo que a fór- ma, embora veneravel, e por indispensavel que seja, é tran-
sitoria.
“Admittimos, pois, entre crentes de confissões e de con-
cepções differentes e todos os homens religiosos, quaesquer que sejam, um parentesco essencial, que os predestina á col-
laboração, e esta collaboração procuramos organizal-a, per-
suadidos de que será uma fonte de riqueza.
"Foi neste espirito que Charles Wagner deu as “boas
vindas" ecumenicas a todos os congressistas, filhos dos velhos
prophetas de Israel, discipulos de Mahomet e de Budha,
discipulos de Christo de todas as denominações." (Discurso
pronunciado no Congresso do Progresso Religioso, realizado em Paris, a 16 de Julho de 1915. "O Estado de S. Paulo”, de 17-
VII-1913)
— 299 —
A MEDIUMNIDADE EM FACE DA BIBLIA. —
FACTOS E NÃO PALAVRAS. — NA INGLA-
TERRA, NA ALLEMANHA, NO MEXICO E
NO BRASIL. — FALA A GRANDE IMPRENSA.
Vamos falar mais alguma coisa acerca das relações
intimas entre o mundo visivel e o mundo invisivel. Ve-
remos que a harmonia da Creação se desdobra em todos
os sentidos, como que a convidar o homem a admirar
essa interpenetração, esse interentrozamento existente
entre o inundo terreno e o mundo espiritual. Conven-
cer-se-á o leitor de que este estudo jamais constituiu
privilegio do Espiritismo...
Declaremos, preliminarmente, que não ha Biblia
espirita, nem Biblia protestante, nem Biblia catholica.
A Biblia é uma só. Ha, sim, diversas traducções e diver-
sas edições. Traductores e editores não são creadores.
Acceitamos a traducção protestante, do mesmo modo
que acceitamos a traducção catholica. Os protestantes
não incluem nas suas edições os livros de Judith, de To-
bias, de Baruc, de Ecclesiastico e de Macchabeus. A
omissão desses cinco livros não diminue nem augmenta
o valor da Biblia. Por outro lado, a Egreja Catholica tam-
bem não faz questão fechada da acceitação desses cinco
livros, como canonicos; não impõe aos catholicos a sua
acceitação, porque ella mesma, seculos passados, ora
acceitava, ora rejeitava ditos livros. E' o que lemos no
Prefacio da traducção do Padre Antonio Pereira de
Figueiredo, edição brasileira, approvada pelo Arcebispo
da Bahia (Edição Garnier).
— 300 —
Entremos, pois, no assumpto. Disse Jesus aos seus
ouvintes: "Pois si vós, sendo maus, sabeis dar boas dá-
divas a vossos filhos, quanto mais o vosso Pae Celes-
tial dará bom espirito áquelles que !h'o pedirem?"
(S. Luc. XI:13). (Traducção de S. Jeronymo e do Padre
Figueiredo).
Que significam essas palavras do Divino Mestre?...
O apostolo Paulo, interpretando fielmente o pensamento
de Jesus, deu instrucções bem claras aos crentes da egre-
ja de Corintho, acerca dos diversos dons ou diversas rae-
diumnidades que são conferidas aos homens piedosos,
chegando a mencionar algumas dellas: a da sabedoria,
a da sciencia, a das curas, a das maravilhas (ou factos
que causam admiração), a da prophecia ou videncia
(I Reis, 9:9), a do discernimento dos espiritos, a da inter-
pretação de linguas. (I Cor. XII).
Adverte o apostolo que esses dons revelam o poder
do Invisivel: O Espirito é que opéra tudo isso, sendo os
crentes apenas instrumentos, mediadores ou mediums.
Aos crentes da egreja de Thessalonica recommenda:
"Não extinguaes o Espirito, NÃO DESPREZEIS AS PRO-
PHECIAS. EXAMINAE TUDO; ABRAÇAE O QUE FOR BOM."
(I Thess. V:19-21).
Vae mais longe a sua recommendação, quando se
dirige aos Corinthios: “Segui a caridade, anhelae aos
dons espirituaes, e SOBRE TODOS AO DE PROPHECIA. Quero, pois, que todos vós tenhaes o dom de linguas: PORÉM
MUITO MAIS QUE PROPIIETIZEIS." (I Cor. XIV: 1-5).
Porque o apostolo eleva tão alto o valor do pro-
phetismo? Porque fala na excellencia desses meios de
communicação com o mundo invisivel?
Responda elle mesmo: Deus quér a salvação de TO-
DOS OS HOMENS; quer que TODOS os HOMENS cheguem
ao pleno conhecimento da verdade. (I Tim. 2:4). Confir-
ma elle o ensino dado por Jesus: só a verdade tornará
emancipados os homens, dos erros e das fraquezas que
— 300 —
combatera dentro de cada um; só a verdade dirá onde
estão os discipulos do Mestre, isto é, os fazedores da
vontade do Pae Celestial. (S. João, 8:31, 32).
E porque o apostolo exalta assim a autoridade dos
mensageiros do Além? Responda elle ainda: porque
esses mensageiros são administradores de Deus, para
servirem á humanidade, na obra de regeneração. (He-
breus, 1:14). Assim como tiveram os Magos os seus
guias e protectores espirituaes (Math. 2:1, 2, 12), que os
conduziram á mangedoura de Bethlem —, os demais
homens contam tambem com a ajuda dos administra-
dores de Deus, com a differença, porém, que estes apon-
tam, não mais a suave estrada de Bethlem, mas os acli-
ves do caminho do Cal vario, em cujas margens se lê
esta advertencia, escripta pelo grande pródigo da es-
trada de Damasco: Todo aquelle que quizer viver uma
vida de discipulo do Mestre dos mestres, terá que car-
regar a sua cruz. (II Tim. 3:12).
Outro apostolo, que andou em companhia de Jesus,
recommenda: "Não creiaes a todo o espirito, MAS PROVAE
si os ESPIRITOS SÃO de Deus". (I S. João, 4:1). Este aviso
do discipulo amado quér dizer que ha espiritos que falam
a verdade (os espiritos que amam a Deus, porque Deus é a
Verdade Infinita), e ha espiritos que não falam a ver-
dade (espiritos que ainda não amam a Verdade Infinita
ou Absoluta).
A' vista dessas passagens biblicas, dá-nos vontade
de exclamar como exclamou Moysés, quando lhe pedi-
ram que fizesse calar os labios de dois homens que, me-
diumnizados, falavam no meio do povo. Lembra-se o
leitor desse episodio? Si não o tem de memoria, vamos
folhear a nossa Biblia:
"Haviam porém ficado no campo dois homens, um
dos quaes se chamava Eldad, e o outro Medad, sobre os quaes repousou o espirito; porque tambem elles mes-
mos tinham sido alistados, mas não haviam saido para
— 301 —
ir ao tabernaculo. E como prophetizassem no campo,
veiu correndo um moço, e deu por noticia a Moysés,
dizendo: Eldad e Medad prophetizam no campo. Então
Josué, ministro de Moysés, disse: Meu senhor Moysés,
prohibe-lh'o. Moysés lhe respondeu: Que zêlos são
estes que mostras por mim? Quem déra que todo o povo prophetizasse, e que o Senhor lhe désse o seu espirito!"
(Numeros, XI:26-29) (Nesta passagem Moysés diz muito
mais do que á primeira vista parece. Medium extraor-
dinario, sabia elle dar o justo valor a essas communica-
ções feitas pelo espirito. Não se esquecia, porém, de que
falava a um povo ignorante. Não se esquecia de que, a
um povo que só palpitava pela vida material, não era
opportuno apresentar verdades espirituaes. "Cada indi-
viduo dá para limite da verdade o limite de sua percep-
ção sensorial. A rã do bréjo taxou de mentirosa a rã do
lago. Como poderia haver alguma coisa maior do que o
bréjo?" Vinte seculos depois de Moysés, veiu Jesus,
que declarou: "Tenho ainda muitas coisas que vos dizer,
mas vós não as podeis supportar agora." (S. João, 16:12).
Como reveladores da verdade, Moysés e Jesus sabiam
que não seriam comprehendidos, mas ridicularizados,
si houvessem falado mais do que falaram. Como Mes-
tres, jamais perderam de vista aquelles tres factores
indispensaveis para o bom exito da sua missão de ins-
truetores e educadores: as pessoas a quem falavam, o
meio em que falavam, a epocha em que falavam.
Quarenta seculos depois de Moysés, nós ainda não
lhe comprehendemos a palavra! E, tão pretensiosos e
tão rebeldes somos, que chegamos a baptizar com o
nome de ignorantes e de hereticos áquelles que, como
nós, querem aprender com esses Mestres o caminho da
verdade!!!)
Desde o primeiro livro da Biblia — o de Genesis
─ até o ultimo — o do Apocalypse —, só vemos o ensino
ministrado por espiritos.
— 303 —
O espirito da mãe de Lamuei apparece-lhe e dá-lhe
esta sábia, edificante e instructiva communicação:
"...Abre a tua bocca a favor do mudo, pelo direito de
todos os que se acham cm desolação. Abre a tua bocca,
julga recta mente, e faze justiça aos pobres e necessita-
dos." (Prov. 31-1-9).
Pela natureza dessa communicação, pela excellen-
cia dos conselhos ahi contidos, póde-se affirmar que
esse espirito é de Deus — de accôrdo com a doce adver-
tencia do apostolo S. João.
Um espirito apparece a Moysés, fala-lhe e cm se-
guida lhe dá os dez mandamentos (Actos dos Apostotos,
7:35-38); um espirito apparece a Manué e á sua mulher,
fala-lhes claramente por mais de uma vez (Juizes, 13:3,
8, 9, 10, 15, 16, etc.); espiritos, com seus corpos perispi-
ritaes, apparecem a diversas pessoas (Math. 27:53);
o espirito de um macedonio communica-se com Paulo
(Actos, 16:9); alguns espiritos communicam-se com Moy-
sés (Gaiatas, 3:19); a taes espiritos esse propheta deu o
nome de Senhor (Deuteronomio, 4:12, 13); um espirito
fala com Aarão e Miriam, e promette manifestar-se a
um medium vidente ou propheta, ou a communicar-se
por meio de sonhos (Numeros, 12:6); as instrucções do
Velho Testamento foram dadas por espiritos (Actos,
7:53); muitos espiritos annunciam o nascimento de Jesus,
a uns pastores, que ficaram atemorizados deante dos
effeitos luminosos da apparição (Luc. 2:10-15); Deus e
Senhor eram os nomes que Moysés dava ao espirito
que lhe falava no Monte Sinai (Exodo, 3:1-4); os judeus
acreditavam que os espiritos do mundo invisivel se com-
municavam com os incarnados deste mundo (Actos,
23:9); Jeremias, propheta ou medium vidente, esperou
dez dias a communicação de um espirito (Jeremias, 42:7);
o sacerdote Zacharias turbou-se quando viu um espirito (Luc. 1:11, 12); Ezequiel, medium vidente e auditivo,
descreve a visão que teve, de um espirito, que se incor-
— 304 —
porou nelle: "Então entrou em mim o espirito, quando
falava commigo, e me poz em pé, e ouvi o que me fa-
lava (Ezequiel, 2:2 e cap. 1, onde vem a descripção do
facto); um espirito annuncia a José, em sonho, o nas-
cimento de Jesus Math. 1:20); um espirito apparece em
sonhos, a José, e recommenda-lhe que fuja com a fami-
lia para o Egypto, afim de escaparem da furia de Hero-
des (Math. 2:13); um espirito apparece em sonhos aos
Magos, e dá-lhes instrucções, para que não cáiam na
cilada preparada pelo rei Herodes (Math. 2:7-12); o pro-
pheta Daniel, medium vidente, viu um espirito voando
e que repousou sobre elle, dando-lhe instrucções (Daniel,
4:8,9 e cap. 9:21,22).
Onde iríamos parar, si quizessemos citar as passa-
gens concernentes á communicação dos espiritos? Para
fechar esta parte do capitulo, basta que lembremos ao
leitor o facto de ser o ultimo livro do Novo Testamento
um trabalho exclusivo dos espiritos, pela intermediação
ou pela mediumndade espantosa do discipulo amado,
autor do quarto Evangelho e de tres espistolas.
A communicabilidade dos espiritos foi annunciada
na velha dispensação. O propheta Joel não era extranho
a essa realidade. "Vossos filhos e vossas filhas prophe-
tizarão, vossos mancebos terão visões e vossos velhos
sonharão sonhos", porque o Espirito seria derramado
sobre as criaturas de Deus. (Joel, 2:28-29; Actos dos Apostolos, 2:17 — discurso do apostolo Pedro).
Só se admiram dos phenomenos espiriticos, aquel-
les que se esquecem do que ha dentro da Biblia. O Espi-
ritismo não descobre nem inventa phenomenos. Estuda-
os, investiga-os, analysa-os á luz da sciencia, á luz da
razão, á luz da Sagrada Escriptura. "Na natureza nada
se perde e nada se crêa; tudo se transforma." Antes do
grande Lavoisier descobrir essas doze palavras, a pala-
vra já existia, e tambem já existiam as forças do mundo
— 305 —
invisivel. As leis que régem a natureza são sábias, porque
sábio é o Legislador; são immutaveis, porque são eternas;
são eternas, porque são perfeitas.
Jesus, o Mestre, affirmou que os homens seriam
sempre assistidos pelo mundo invisivel. Não particula-
rizou, não individualizou crença alguma. A assisten-
cia espiritual é para TODOS OS HOMENS e para TODOS OS
TEMPOS. Os crentes expulsarão demonios ou espiritos
maus, falarão novas linguas, pegarão nas serpentes,
porão a mão nos enfermos e os curarão. (Marc. 16:17-
18). Esta faculdade foi concedida não somente aos dis-
cipulos — como erroneamente pensam alguns — mas
a todos os que crêrem. (Marc. 16:17).
Não ha uma só pessoa neste "valle de lagrimas"
que ignóre esses factos a que se refere o segundo evan-
gelista. Ha, sim, quem os capitúle entre as obras de fei-
ticeiros. Não nos causa admiração esse juizo. Do mes-
mo modo que o leitor, tambem nós temos ouvido de cer-
tas pessoas, dignas de respeito, esta affirmativa: "Deus
não existe." Essa negativa ainda não destruiu a existen-
cia do Creador. "O rei de Sião censurou asperamente a
um visitante, porque este lhe dissera que em seu paiz a
agua era dura como pedra". A descrença brutal do rei
siamez não conseguiu derreter as geleiras do paiz onde
nasceu o pobre do visitante. Galileu esteve a pique de
ser queimado vivo, por haver dito que a terra não estava
parada. Teve que engulir a sua audacia, para não ser
assado num póste. Apezar da boa vontade da Egreja, em
querer fazer parar a terra, eis que o nosso desobediente
planeta continúa a dar elegantemente as suas voltas,
tanto ao redór de si como ao redór do Sol.
Obras de feiticeiros? Bemdita feitiçaria, que Jesus
foi o maior dos feiticeiros, porquanto arrancou, com as
labaredas do seu amôr e com as doçuras da sua humil-
dade, ao curar enfermos e a afastar espiritos maus, ex-
clamações como estas: "E todo o povo, ao vêr isto, dava
— 306 —
louvores a Deus" E todo o povo ficava maravilhado, por-
que nunca se viram taes coisas em Israel"! "Tu és o Santo de Deus!" "Bemdito o que vem cm nome do Senhor!"
Disse Jesus: "Em verdade vos digo que aquelle
que crê em mim, fará tambem as obras que eu faço, e
fará outras ainda maiores, porque vou para o Pae."
(S. João, 14:12).
Que significam essas palavras? — Si o Christo
affirmou que os que n'Elle crêrem, farão obras ainda
maiores do que as realizadas por Elle mesmo, é porque
vê em seus irmãozinhos capacidades, energias, valor, que,
instrumentalizados pela fé, podem operar grandes coi-
sas, grandes, sim, aos nossos olhos. O homem deve pos-
suir, portanto, em estado latente, certas faculdades, susceptiveis de desenvolvimento e de grandes realizações.
A fé será, pois, a força accionadora das "obras ainda
maiores", a que Elle se refere. Diz o dr. J. B. Roustaing:
"Aquelle que tem fé, obra em consequencia desta e
suas obras são todas ascensionaes. Aquelle que crê fir-
memente cm Jesus, isto é, que segue zelosamente o ca-
minho que Elle traçou, do amor e da verdade, se tornará
puro como Elle e fará actos semelhantes aos seus, tanto
mais que, voltando á esphera que lhe era própria, Jesus
de veria ter mais liberdade de acção para inspirar e guiar
os seus verdadeiros e sinceros imitadores. Jesus não
praticou, entre os homens, senão as obras que elles pu-
dessem comprehender, proporcionadas ás suas intelli-
gencias. Dizendo "que elles pudessem comprehender",
não temos em mente dizer que pudessem inteirar-se das
causas. Falando desse modo, queremos significar que
podiam apenas apprehender os resultados, interpretan-
do-os do ponto de vista em que se achavam collocados."
(Obr. cit., vol. IV, pag. 397).
*
* *
Vejamos o que nos diz a Biblia acerca do entrelaça-
mento dos dois mundos, o invisivel e o visivel:
— 307 —
COMMUNICAÇÃO POR MEIO DE SONHOS: "Vossos ve-
lhos serão instruidos por meio de sonhos." (Joel, 2:28; Actos, 2:17; Math. 1:20; cap. 2:7-12).
CURAS POR MEIO DE OBJECTOS MAGETIZADOS: Len-
ços e aventaes, applicados aos doentes e obsidiados,
operavam a cura e expelliam espiritos obsessores. Actos dos Apostolos, 19:11, 12).
CURAS Á DISTANCIA: O creado do centurião de Ca-
pernaum e o filho de um regulo foram curados á dis-
tancia. (Math. 8:5-13; João, 4:47-54).
CURAS PELA IMPOSIÇÃO DAS MÃOS: O homem hydro-
pico e o que tinha a mão mirrada. (Luc. 14:2-4; Marc.
5:2-5).
CURAS OPERADAS PELOS APOSTOLOS: O homem côxo,
á porta do templo; outro côxo, de nascimento. (Actos,
5:1-8; cap. 14:8-10).
MEDIUMNIDADE CURADORA: Curae os enfermos, ex-
pelli os maus espiritos, dae de graça, o que de graça
recebeis. (Math. 10:8; Luc. 9:2; cap. 10:9).
ESCRIPTA AUTOMATICA: O rei Jorão recebe uma com-
municação, escripta pelo espirito do proheta Elias.
(II Chron. 21:12). Durante um banquete, em que toma-
ram parte mil e uma pessoas, apparece um escripto na
parede. (Daniel, 5:5).
LEVITAÇÃO: O propheta Ezequiel é levado de um
lugar para outro, ficando pasmado durante sete dias.
(Ezeq.: 3:10-15). Philippe é arrebatado e transportado
á distancia. (Actos dos Apost., 8:59). Um machado de
ferro fluctúa na agua, pelos effeitos physicos da medium-
nidade de Eliseu. (IV Reis, 6:6 - trad. do Padre Figuei- redo, ou II Reis, 6:6 na trad. de Almeida).
MATERIALIZAÇÃO: Jacob luta com um espirito ma-
terializado. (Gen. 52:24). O rei de Babylonia vê a mão
materializada de um espirito a escrever na parede. (Da- niel, 5:5). Jeusus materializou-se deante de dois disci-
— 308 —
pulos (Luc. 24:15, 16,29-31). Manué e sua mulher viram
um espirito materializado. (Juizes, 13:19-20).
PHENOMENO DA TROMBETA: Exodo, 19:13, 16, 19;
cap. 20: 18. Apocalypse, 1:10.
FACTOS MARAVILHOSOS PELA ACCÇÃO DE ESPIRITOS:
Com Moysés: Exodo, 4:1-31; Com Gedeão: Juizes, 6:
36-40. Com Anna: I Samuel, 1:10, 11, 17, 26, 27; cap. 10:
2, 6, 9, 10).
TRANSE: Abrahão cáe em transe. (Genesis, 15:12).
Daniel cáe em transe. (Dan. 8:18). Saulo cáe em transe.
(Actos, 9:3-9; II Corinthios, 12:2).
EFFEITOS PHYSICOS DE TRANSPORTE: O propheta
Elias recebe alimentos collocados ao seu lado, no deserto,
por um espirito. (III Reis, 19:5, 6 trad. de Figueiredo,
ou I Reis, trad. de Almeida).
EFFEITOS LUMINOSOS: Moysés com o rosto resplan-
descente. (Exodo, 34:29, 30). Os apostolos viram linguas
de fogo, produzidas pelo Espirito de Verdade. (Actos 2:3). Paulo, antes da conversão, viu "um resplendor de
luz" (Actos, 9:3). Tres apostolos ficaram maravilhados
deante dos effeitos luminosos da transfiguração do Mes-
tre. (Math. 17:1, 2; Marc. 9:1-33; Luc. 9:28-36). Nuvem
de fogo (Nehemias, 9:12,19).
MEDIUMNIDADE AUDITIVA: Moysés ouviu a voz do
espirito, a quem deu o nome de Deus e Senhor. (Exodo,
19:19-20). Fez-se ouvir a voz do mundo invisivel por
occasião do baptismo de Jesus. (Luc. 3:22). Ouve-se a
voz do Além, annunciando que Jesus é glorificado.
(S. João, 12:28).
MEDIUMNIDADE PARA ADIVINHAR: Por meio de um
copo. (Gen. 44:5) Daniel era tido como principe dos adi-
vinhos. (Dan. 4:8,9).
MEDIUMNIDADE COM MUSICA: Eliseu exerce a me-
diumnidade por meio de musica. (IV Reis, 3:15). David
afastava, assim, maus espiritos. (I Reis ou I Samuel,
16:14-23).
— 309 —
MEDIUMNIDADE COLLECTIVA: O espirito communi-
ca-se, desdobrado, a setenta pessoas, ao mesmo tempo.
(Numeros, 11:25).
Moysés prohibiu, não a communicação dos espiri-
tos — coisa impossivel — mas a evocação dos espiritos.
Já o leitor conhece as razões que determinaram essa
prohibíção. Como, porém, estamos esflorando este capi-
tulo respeitante ás faculdades mediumnicas ou mediani-
micas, opportuno se nos afigura indicar algumas passa-
gens biblícas, que nos esclarecem ainda mais a surra-
dissima questão da prohibição feita pelo grande guia
do povo de Israel.
Indiquemos, pois, dois motivos, bastante fortes,
que levaram o propheta a não permittir que se evocassem
os espiritos:
FALSOS MEDIUMS — 'Como conheceremos a palavra
que o Senhor não falou? Quando o tal propheta falar
em nome do Senhor, e tal palavra se não realizar, nem
succeder assim, esta é palavra que o Senhor não falou:
com soberba o falou o tal propheta; não tenhas temor
delle." (Deuteronomio, 18:21,22).
Tambem o apostolo Pedro avisa que ainda haverá
falsos prophetas e falsos ensinadores da verdade, a qual
elles mesmos negam com a sua conducta. (II S. Pedro,
2:1).
MEDIUMS VIDENTES MYSTIFICADORES — "Não vos
enganem os vossos prophetas que estão no meio de vós,
nem os vossos adivinhos, nem deis ouvidos aos vossos
sonhos, porque elles vos prophetizam falsamente em
meu nome; não os enviei." (Jeremias, 29:8-9; Zacharias, 10;22).
"Os prophetas prophetizam falsamente, e os sacer-
dotes dominam pelas mãos delles, todos movidos por
interesses proprios, a troco de dinheiro (Jeremias, 5:31; Miquéas, 3:11).
— 310 —
"São prophetizadores mentirosos, enganadores vai-
do sos, que seguem o seu proprio espirito e que nada veem.
(Ezequiel, 15: 2, 3, 6).
Moysés foi sabiamente inspirado, quando fez aquel-
a prohibição! Assistiam-lhe carradas de razoes. Si elle
estivesse hoje na terra, com aquella missão, deixar-nos-
ia desconcertados...
*
* *
Vejamos o que nos dizem os jornaes, e jornaes insus-
peitos, porque não são filiados ao espiritismo. Comece-
mos pelo vespertino carioca, "Vanguarda". Em a edi-
ção de 23 - Jan. - 1925, na 1.ª pagina, lemos uma noticia
que, por ser longa, não será transcripta na integra. Della
extraimos uma pequena parte, que é a seguinte:
“Scenas patheticas foram testemunhadas na egreja
parochial de Bradford, missão assistida por mais de
400 pessoas cégas, estropiadas, paralyticas, rheumati-
cas e epilepticas. Uma mulher paralytica era cuidadosa-
mente e com difficuldade, carregada a hombros para o
interior do templo. Outras pessoas que, em virtude da
avançada edade, viviam presas ao leito, foram branda-
mente collocadas ao pé do altar. O momento mais to-
cante do officio foi o em que, sem nenhum signal conven-
cionado, numa explosão emocional, as mães que condu-
ziam os filhos, alguns delles sériamente doentes, se agru-
param em volta do altar, para que mr. Hickson lhes
ministrasse a bençam do bispo de Bradford. O officio
fôra o mais simples e durante a sua celebração o clero
da diocese em toda a parte se concentrava em préces
silenciosas. Mr. Hickson juntou as mãos dizendo que
nada do que se passava naquelle Lugar era novo para a cura
espiritual."
No "Diario Nacional", desta Capital, de 26 - Fev.
1928, encontramos um artigo escripto por "A. F.", sob
o titulo "Medicina dos Espiritos", do qual extrahimos
apenas uma pequena parte. Eil-a: — "Lá (o Mexico)
— 311 —
Como aqui, o exercício da medicina é privativo dos douto-
res que cursaram 6 annos de Faculdade e registraram os
seus diplomas no Departamento da Saude Publica. Vem,
porém, um "medium", o sr. Macias Quintero, pela se-
gunda vez denunciado pelo "crime" de exercicio illegal
da medicina, dar o que fazer áquelle Departamento da
administração publica.” “Mas lá na terra da Cuanhte-
moc que é o que fez a Saude Publica? Examinou, de
facto, o caso, verificando o seguinte: 1.°) que o sr. Quin-
tero, o medium em questão, trabalha num dos gabinetes
da Sociedade de Estudos Psychophysiologicos: 2.°) que,
em estado de transe, por elle se manifesta o espirito do
doutor Jean Martin Charcot, o grande Charcot que todo
estudante de medicina conhece: 3.°) que o espirito de
Charcot examina os doentes, presentes ou não, faz o dia-
gnostico, levando por vezes a minucia ao ponto de pre-
cisar a dósagem de glycose na urina dos diabeticos,
ainda não dosada chimicamente, rematando pela pres-
cripção de medicamentos sob fórma classica allopa-
thica; 4.°) que silencia sobre os “casos perdidos”. “Se-
gundo os jornes mexicanos, os medicos que examinaram
a involuntaria faculdade do sr. Quintero, puderam carac-
terizar a exactidão dos diganosticos e a rapida cura
dos doentes. Deante dessas conclusões, o Departamento
da Saude Publica concedeu, a titulo excepcional, uma
licença ao sr. Quintero, para exercer a medicina”.
Do vespertino paulistano “O Combate", de 27 do
mesmo mez de Fevereiro de 1928: “Um caso não vulgar
de diagnose pelo somnambulismo — 'Um jornal de Ber-
lim narra o seguinte: Numa pequena aldeia da Flo-
resta Negra, chamada Ottenheim, dois irmãos, filhos
de um camponez abastado, davam consultas medicas,
ha quasi dois annos, e obtinham resultados espantosos
com as suas curas, se bem que ambos fossem absoluta- mente ignorantes no terreno da medicina. Os diagnosticos
eram por elles obtidos por meio do somnambulismo
— 312 —
(uma das modalidades medianimicas). O mais velho dos
dois irmãos, fazia, por meio de hypnotismo, com que o
mais jovem cahisse num estado de transe, e este, então,
diagnosticava a molestia do enfermo e receitava-lhe os
medicamentos necessarios para a cura, sem antes pedir
qualquer indicação sobre os soffrimentos do paciente, nem tampouco sujeital-o préviamente a qualquer exame medico.
Conseguiram deste modo os irmãos Rodolfo e Julio
Seller, o restabelecimento completo de doentes que ha-
viam sido declarados incuraveis pelos medicos officiaes,
facto esse que foi confirmado, num processo a que ti-
veram que sujeitar-se os dois irmãos ultimamente, pelos
medicos chamados como testemunhas. A fama do poder
mediumnico do jovem Seller, que apenas conta 21 annos
de existencia, levava á pequena aldeia de Ottebheim,
emfermos das mais longinquas villas e cidades da Flo-
resta Negra, todos ansiosos por sujeitar-se ao tratamento
dos "dois medicos milagrosos", e isso bastou, naturalmen-
te, para que os dois moços fossem accusados de accôrdo
com uma velha lei de quasi setenta annos, do Estado de
Baden, de exercerem feitiçaria. O parapsychologo de
Berlim, dr. Giogan, examinou e observou os processos
empregados pelos irmãos Seller em mais de quinze casos
diversos e elle confirma que os diagnosticos feitos em
estado de transe estavam perfeitamente de accôrdo com
a medicina. Os accusados foram condemnados, pró for- ma, (isto é, por simples formalidade), ao pagamento de
uma multa de cem marcos, e elles protestaram."
E' do grande orgão "O Estado de S. Paulo", de
29 de Fevereiro de 1928, o seguinte telegramma rece-
bido do Mexico, contendo uma noticia que certamente
vae sensacionalizar áquelles que ainda não a leram:
"Curas maravilhosas — Mexico, 28 (A.) — O estra-
nho phenomeno, que offerece o chamado "Nino Fi-
dencio”, adquire cada vez maior vulto no paiz. Indigenas,
fanaticos, jornalistas e homens de sciencia, que pre-
— 313 —
senciaram as curas desse estranho ser, concordam em
proclamar um caso jamais visto em todo o Mexico.
Milhares de homens, mulheres e crianças, encaminham-
se diariamente para o humilde villarejo de Espinazo,
no Estado de Coahuila, lugar deserto que aos poucos
está se transformando em um grande acampamento
habitado por uma multidão, que se installou em ten-
das de campanha ou em casas de madeira. (Note o lei-
tor: os dois jovens allemães são filhos de um camponez
"abastado", ao passo que o joven mexicano é habitante
de um "humilde villarejo", em "lugar deserto"). “O Nino
Fidencio, que tem somente 18 annos, é favoravel ao
'vegetarianismo”, fazendo curas com hervas, flôres e,
sobretudo, com passes de mãos. Trata perto de 300 pes-
soas diariamente, sem receber um real sequer ou pre-
sentes, e a totalidade dos que vão á sua procura regressa
curada ou convencida de estar curada. O movimento a
Espinazo é tão intenso, que as Estradas de Ferro Nacio-
naes registam, de um momento para outro, um augmen-
to consideravel nas suas rendas. Basta accentuar que,
antes da descoberta deste “joven illuminado”, as Ferro-
carris nunca venderam mais que 800 pesos de passagens
por mez. Em Dezembro passado, essa renda ascendeu
a mais de 20 mil pesos, e, em Janeiro, a mais de 20 mil”.
─ Que diremos, deante dos factos? Que confir-
mam apenas o solenne aviso do doutrinador dos gentios?
Não. “Os factos teem a sua linguagem e os algarismos a
sua logica". “A propaganda pelos factos é irrespondivel.”
“Ha dois meios, diz Léon Denis, para adquirir-se a scien-
cia de além-tumulo: de um lado o estudo experimental,
de outro a intuição e o raciocinio, de que só as intelli-
gencias exercitadas sabem e se podem utilizar. A expe-
rimentação é perferida pela grande maioria dos nossos
contemporaneos e está mais de accôrdo com os habitos
do mundo Occidental, bem pouco iniciado ainda no co-
nhecimento dos secretos e produndos cabedaes da alma.
— 314 —
Os phenomenos physicos bem verificados têm para os
nossos sabios uma importancia inegualavel. Em muitos
homens a duvida não póde cessar nem o pensamento
libertar-se do seu estado de torpor senão a poder do
facto."
Ha poucos annos a imprensa teve ensejo de relatar
aquelles factos que abalaram o Estado do Pará e os Es-
tados visinhos, referentes ao maravilhoso poder media-
nimico da senhora de um commerciante paraense. A
proposito, publicou o illustre homem de letras, dr. No-
gueira de Faria, um livro assás interessante, com o ti-
tulo de "O Trabalho dos Mortos". Traz abundantes
documentos e photographias, ao lado do testemunho de
pessoas respeitaveis e insuspeitas, como sejam: dois ex-governadores do Estado, tres membros do Tribunal de
Justiça, um juiz federal, um juiz estadual, treze medicos,
um medico legista, dois lentes da Faculdade de Direito,
tres advogados, dois jornalistas, senadores, pharmaceuti- cos, commerciantes e muitas outras pessoas.
Ao lado dessas curas operadas por jovens inteira-
mente leigos em medicina, de par com a mediumnidade
curadora que se revela entre homens e mulheres de todas
as classes sociaes, vem assentar praça o dom prophetico
da videncia. E os vossos mancebos terão visões — lá
diz o propheta Joel. Lembremos um facto recente, que
abalou profundamente o espirito da população carioca,
em Outubro de 1925. Em letras garrafaes, os orgãos da
imprensa do Rio de Janeiro occuparam-se do maravi-
lhoso phenomeno, sem comtudo saber explical-o, tal a
perturbação que os proprios materialistas sentiram dean-
te de tão extranho acontecimento. O conhecido verper-
tino paulistano "Diario da Noite", em a sua edição de
26 desse mez, estampou pormenorizada reportagem
sobre o “maravilhoso" acontecimento, acompanhada
da photographia do medium vidente, que serviu de ins-
trumento para que o mundo invisivel interviesse no mun-
— 315 —
do visivel que nos hospeda. Dessa reportagem vamos
extrair uma parte, servindo-nos da mesma epigraphe,
que abrange o espaço aberto de tres columnas:
"Eu sou S. Francisco de Paula!" "Um phenomeno
curioso — Recordando Joanna D'Arc — A predicção —
Os detalhes — Outras notas — Um homem illuminado"
"O sr. José Julio Pires, socio do restaurante “O Gaia-
to de Lisboa", sito á Rua Chile, 15, professa, ha muito
tempo, o espiritismo. Sua actuação, porém, nos centros
esotericos, tem passado desapercebida. E' um adepto
obscuro das theorias de Allan Kardec. Nada mais. Nem
por isso, entretanto, deixa o sr. Julio de ser um espiri-
tista e, como tal, segundo se vae vêr, um ílluminado. —
O sr. Julio residia, com sua familia, composta de 14
pessoas, á Travessa Carneiro, no Estacio, bem na ala
do morro de S. Carlos.
"Seriam 22 horas e meia e o sr. Julio, deixando o
seu estabelecimento, foi a uma casa visinha, em mangas
de camisa. Quando regressava, vindo pelo meio da rua,
ao chegar bem defronte do seu estabelecimento commer-
cial, sentiu um forte abalo no corpo e, instinctivamente,
parou. O sangue como que se lhe gelara. Olhou para a
frente e viu, claramente, nitidamente, a dois passos, o
vulto de um frade, de barbas crescidas, longas, vene-
raveis, vestindo uma tunica branca, muito alva. O ho-
mem ficou aterrado. Que seria? O vulto descerrou os
labios e falou com energia: "Eu sou S. Francisco de
Paula!"
Não era possivel ao sr. José Julio mover um
pé. Todo elle tremia, todo elle era uma pilha electrica.
A visão estendeu a mão e ordenou-: “Vae, caminha!"
─ O homem ficou aturdido. Que fazer? “Corre á tua
casa! — accrescentou a visão. Tua familia está em pe-
rigo! Salva-a, ordeno-te!" — O sr. Julio quiz caminhar,
quiz regressar ao seu estabelecimento, em cuja porta,
no meio da rua, se achava. Era em vão o esforço des-
— 316 —
pendido. — "Tua familia e teus visinhos correm immi-
nente perigo!" — voltou, ainda, a visão. — "Corre, sal-
va-os!"
O homem teve um suspiro prolongado. Sua vista
turvou-se. Moveu os pés. — “Pára!" — ordenou a visão,
erguendo o braço. E a visão esclareceu-o: “Vae tudo des-
moronar-se na Travessa Carneiro, onde resides tu e
tua familia. Corre a salval-a! Dá aviso aos teus visinhos!
Segue immediatamentr, e eu te seguirei, tambem!"
Subitamente, o vulto desappareceu. Como que o
homem viu a realidade e assim correu ao seu estabeleci-
mento, afoito, aturdido, sem pronunciar palavra e, ves-
tindo o paletó, que estava no cabide, saiu a correr, como
um louco, portas a fóra. Saiu-lhe no encalço um sobri-
nho do socio, de 14 annos, e alguns freguezes. Que será?
era o que perguntavam todos. Apenas saiu da casa, o
sr. Julio, entrando na Avenida, seguido de outras pes-
soas, começou a alugar automoveis, dizendo a cada
"chauffeur”: “Toca para a Rua Maia Lacerda! Urgen-
te! Urgente!" — Ninguem comprehendia aquella allu-
cinação: “Estará louco o hoteleiro?”
Os seus companheiros, sem comprehender, embora,
aquillo tudo, seguiram-no, no corso de automoveis para
a Rua Maia Lacerda. Quando os automoveis chegaram
ao fim da Rua Maia Lacerda, o sr. José Julio desceu
e saiu a correr, subindo a Travessa, sempre a gritar:
"Saiam de casa! Saiam de casa!” — As pessoas que o
seguiam ficavam abysmadas, mas, como o homem
coordenava as idéas e já lhes tinha narrado a historia,
durante o trajecto feito no automovel, adoptaram a
sua conducta e começaram a despertar tambem os mo-
radores. Em cinco minutos, todas as familias da Tra-
vessa Carneiro, alarmadas com os gritos desesperados
do sr. José Julio, e de seus amigos, foram despertadas.
O homem entrou na casa de n.° 9 de sua propriedade e
acordou com grande escandalo, todas as pessoas, “Va-
— 317 —
mo-nos embora! Vamo-nos embora! A casa vae cair!
Vamo-nos embora!"
Na casa do sr. Julio dormiam 14 pessoas; todas ellas
foram despertadas e sairam, em desespero. As crianças,
estremunhadas em chôro, eram atiradas á rua, onde fi-
cavam, á mercê da chuva que então cahia, com certa
inclemencia. E o homem saiu a gritar: "Fujamos! Fu-
jamos!"
Ninguem se conformava com aquella gritaria deses-
perada do hoteleiro. "Elle está maluco!" — A verdade,
entretanto, é que, mesmo considerando maluco o homem
dos gritos alarmantes, todos iam saindo de casa, carre-
gando os moveis numa confusão pavorosa e lá ficavam
á chuva a discutir o caso, aos gritos...
“Mas, afinal — indagou um visinho — que é
o que vae succeder? "O sr. Julio respondeu á bruta:
“Tua casa vae ficar soterrada!" — E de tal fórma estas
palavras foram ditas que o homem, voltando á sua casa,
tirou dahi a familia e os moveis, ficando, como os outros,
no meio da rua, á espera do que viesse a acontecer.
O homem illuminado que revolucionára em cinco
minutos, todos os moradores da Travessa Carneiro, não
cessára um instante de gritar. Deante de si, tal qual
recebera a communicação, via, rolando no espaço (cli-
ché astral), em destroços, todas as casas da Travessa
Carneiro!
Elle partiu, naquella mesma hora, em tres automo-
veis, conduzindo a sua familia para outro local, para a
residencia de seu socio.
Os habitantes das casinhas condemnadas pelo hote-
leiro permaneciam na rua, desabrigados á mercê da chu-
va, á espera da catastrophe que parecia ter falhado.
“Elle está louco! gritavam todos. Subitamente, porém,
o paredão, que estava construido na aba do morro,
ruiu.
“Fujamos!' — E, dentro de cinco minutos, como
— 318 —
annunciára José Julio Pires, todas aquellas casinhas, em
numero de 19, eram soterradas com entulhos do desmo-
ronamento do paredão!
E foi assim que se cumpriu a terrivel prophecia do
socio do restaurante "O Gaiato de Lisboa". ("Diario
da Noite”, de 26-X-1925).
SÓ OS DOENTES PRECISAM DE MEDICO
“E aconteceu que, estando Jesus sentado á mesa numa
casa, eis que vindo muitos publicanos, e peccadores, sen-
taram a comer com elle, e com os seus discipulos. E vendo
isto os phariseus, diziam aos seus discipulos: Porque
come o vosso mestre com os publicanos, e peccadores?
Mas ouvindo-os Jesus, disse: Os sãos não têm necessi-
dade de medico, mas sim os enfermos.” (S. Math. 9:10-12).
"Jesus dirigia-se especialmente aos pobres e aos
desherdados, por serem esses os que mais careciam de
consolações, aos cegos doceis e de boa fé, porque dese-
javam ver, e não aos orgulhosos, que suppunham pos-
suir toda a luz e de nada necessitar.
"Esta maxima, como tantas outras, encontra sua
applicação no Espiritismo. Estranha-se ás vezes que
a mediumnidade seja concedida a pessoas indignas,
capazes de fazer della mau uso: parece, dizem, que
tão preciosa faculdade devera ser attributo exclusivo
dos mais merecedores.
“Digamos, primeiramente, que a mediumnidade
se prende a disposições organicas de que todo homem
póde ser dotado, assim como possue a vista, a audição,
a voz. Não existe uma só faculdade de que o homem,
em virtude do livre arbitrio, não possa abusar, e si Deus
só houvesse concedido a palavra, por exemplo, áquel-
les que são incapazes de proferir cousas más, have-
— 319 —
ria mais mudos do que falantes; Deus concedeu ao
homem faculdades, deixando-o livre quanto ao uso del-
las, mas punindo sempre o abuso.
"Si o poder da communicação com os Espiritos
não fôsse concedido senão aos mais dignos, quem ousa-
ria pretendel-o? — Demais, onde está o limite da dig-
nidade e da indignidade? A mediumnidade é concedida
sem distincção, afim de que os Espiritos possam tra-
zer luz a todas as posições e classes sociaes, ao pobre
como ao rico, aos judiciosos para fortifical-os no bem,
aos viciosos para corrigil-os. Não serão estes os doen-
tes que precisam de medico? Por que razão Deus, que
não quer a morte do peccador, o privaria do soccor-
ro, que o póde tirar do lodaçal? Os bons Espiritos vêm
auxilial-o, e os conselhos que elle recebe directamente
são de natureza e impressional-o mais vivamente do que
si os recebesse por meio diverso. Deus, em sua bon-
dade, para lhe poupar o trabalho de ir procurar a luz
ao longe, põe-lh'a ante os olhos; ora, não será elle mais
culpado por não a fitar? Poderá excusar-se com a sua
ignorancia, quando elle proprio houver escripto, visto
com seus olhos, ouvido com os seus ouvidos e pronun-
ciado com os labios a propria condemnação? Si não apro-
veita, então é punido com a perda ou a perversão da fa-
culdade, de que os maus Espiritos se apoderam para
obsedal-o ou enganal-o, sem prejuizo das afflicções reaes
a que Deus submette os servidores indignos, e os cora-
ções endurecidos pelo orgulho e pelo egoismo.
"A mediumnidade não implica necessariamente re-
lações habituaes com os Espiritos superiores; é simples-
mente uma aptidão para servir de instrumento mais ou
menos docil aos Espiritos em geral. Bom medium não
é quem se communica facilmente, mas quem fôr sympa-
thico aos bons Espiritos e somente por elles assistido.
E' neste sentido unicamente que a excellencia das quali-
dades moraes é toda poderosa na mediumnidade."
— 320 —
O ESPIRITISMO.—SEUS ATACANTES E SEUS DEFENSORES.
"Os que dizem que as crenças espiritas ameaçam
invadir o mundo, proclamam, ipso facto, a força do Espi-
ritismo, porque jamais poderia tornar-se universal uma
idéa sem fundamento e destituida de logica. Assim, si
o Espiritismo se implanta por toda parte, si, principal-
mente nas classes cultas, recruta adeptos, como todos
facilmente reconhecerão, é que tem um fundo de ver-
dade. Baldados, contra essa tendencia, serão todos os
esforços dos seus detractores e a próva é que o proprio
ridiculo de que procuram cobril-o, longe de lhe amorte-
cer o impeto, parece ter-lhe dado novo vigôr, resultado
que plenamente justifica o que repetidas vezes os espi-
ritos hão dito: "Não vos inquieteis com a opposição;
tudo o que contra vós fizerem, se tornará a vosso favor
e os vossos maiores adversarios, sem o quererem, servirão á vossa causa. Contra a vontade de Deus não poderá
prevalecer a má vontade dos homens."
"Por meio do Espiritismo, a humanidade tem que
entrar numa nova phase, a do progresso moral que lhe
é consequencia inevitavel. Não mais, pois, vos espanteis
da rapidez com que as idéas espiritas se propagam.
A causa dessa celeridade reside na satisfacção que tra-
zem a todos os que as aprofundam e que nellas vêm al-
guma coisa mais do que futil passatempo. Ora, como cada
um o que acima de tudo quér é a sua felicidade, nada ha
de surprehendente em que cada um se apegue a uma idéa
que faz ditosos os que a esposam.
“Tres periodos distinctos apresenta o desenvolvi-
mento dessas idéas: primeiro, o da curiosidade, que a
singularidade dos phenomenos produzidos desperta; se-
gundo, o do raciocinio e da philosophia; terceiro, o da
applicação e das consequencias. O periodo da curiosidade
— 321 —
passou; a curiosidade dura pouco. Uma vez satisfei-
ta, muda de objecto. O mesmo não acontece com o
que desafia a meditação séria e o raciocinio. Come-
çou o segundo periodo, e o terceiro vira inevitavel-
mente.
"O Espiritismo progrediu principalmente depois
que foi sendo melhor comprehendido na sua essencia in-
tima, depois que lhe perceberam o alcance, porque tan-
ge a corda mais sensivel do homem: a da sua felicidade,
mesmo neste mundo. Ahi a causa da sua propagação, o
segredo da força que o fará triumphar. Emquanto a
sua influencia não attinge as massas, elle vae felicitando
os que o comprehendem. Mesmo os que nenhum pheno-
meno têm testemunhado, dizem: á parte esses phenome-
nos, ha a philosophia, que me explica o que nenhuma
outra me havia explicado. Nella encontro, por meio
unicamente do raciocinio, uma solução racional para os
problemas que no mais alto grau interessam ao meu fu-
turo. Ella me dá calma, firmeza, confiança; livra-me do
tormento da incerteza. Ao lado de tudo isto, secun-
dária se torna a questão dos factos materiaes.
"Quereis, vós todos que o atacaes, um meio de com-
batel-o com exito? Aqui o tendes. Substitui-o por algu-
ma coisa melhor; indicae solução mais philosophica para
dodas as questões que elle resolve; dae ao homem outra
certeza que o faça mais feliz, porém, comprehendei bem
o alcance desta palavra certeza, porquanto o homem
não acceita como certo, senão o que lhe parece loglco.
Não vos contenteis com dizer: "isto não é assim"; dema-
siado facil é semelhante affirmativa. Provae, não por
negação, mas por factos, que isto não é real, nunca o
foi e não póde ser. Si não é, dizei o que o é, em seu lugar.
Provae, finalmente, que as consequencias do Espiri-
tismo não são tornar melhor o homem e, portanto, mais
feliz, pela practica da mais pura moral evangelica, moral
— 322 —
a que se tecem muitos louvores, mas que muito pouco
se pratica. Quando houverdes feito isso, tereis o direito
de o atacar.
"O Espiritismo é forte porque assenta sobre as pro-
prias bases da religião: Deus, a alma, as penas e as re-
compensas futuras; sobretudo, porque mostra que essas
penas e recompensas são consequencias naturaes da vida
terrestre e, ainda, porque, no quadro que apresenta do
futuro, nada ha que a razão mais exigente deva recusar.
“Que compensação offereceis aos soffrimento deste
mundo, vós cuja doutrina consiste unicamente na nega-
ção do futuro? Emquanto vos apoiaes na increduli-
dade, elle se apoia na confiança em Deus; ao passo que
convida os homens á felicidade, á esperança, á verdadei-
ra fraternidade, vós lhes offereceis o nada por perspectiva
e o egoísmo por consolação. Elle próva pelos factos, vós
nada provaes. Como quereis que se hesite entre as duas
doutrinas?
"Falsissima idéa formaria do Espiritismo quem jul-
gasse que a sua força lhe vem da pratica das manifesta-
ções materiaes e que, portanto, obstando-se a taes
manifestações, se lhe terá minado a base. Sua força está
na sua philosophia, no appêllo que dirige á razão, ao bom
senso. Na antiguidade, era objecto de estudos myste-
riosos, que cuidadosamente se accultavam ao vulgo.
Hoje, para ninguem tem segredos. Fala uma linguagem
clara, sem ambiguidades. Nada ha nelle de mystico,
nada de allegorias susceptiveis de falsas interpretações.
Quer ser por todos comprehendido, porque chegados são
os tempos de fazer-se que os homens conheçam a verdade.
Longe de se oppôr á diffusão da luz, deseja-a para todo
o mundo. Não reclama crença céga; quer que o homem
saiba porque crê. Apoiando-se na razão, será sempre
mais forte do que os que se apoiam no nada.
“Os obstaculos que tentassem offerecer á liberdade
das manifestações poderiam pôr-lhes fim? Não, porque
— 323 —
produziriam o effeito de todas as perseguições: o de
excitar a curiosidade e o desejo de conhecer o que foi pro- hibido. De outro lado, si as manifestaõçes espiritas fossem
privilegio de um unico homem, sem duvida que, segre-
gado esse homem, as manifestações cessariam. Infeliz-
mente para os seus adversarios, ellas estão ao alcance
de toda gente e todos a ellas recorrem, desde o mais pe-
quenino até ao mais graduado, desde o palacio até á
mansarda. Poderão prohibir que sejam obtidas em pu-
blico. Sabe-se, porém, precisamente que em publico não
é onde melhor se dão e sim na intimidade. Ora, podendo
todos ser mediums, quem poderá impedir que uma fa-
milia, no seu lar, um individuo, no silencio do seu gabine-
te, o prisioneiro no seu cubiculo, entrem em communi-
cação com os espiritos, a despeito dos esbirros e mesmo
na presença delles? Si as prohibirem num paiz, poderão
obstar a que se verifiquem nos paizes visinhos, no mun-
do inteiro, uma vez que nos dois continentes não ha
lugar onde não existam mediums? Para se encarce-
rarem todos os mediums, preciso fôra que se encarce-
rasse a metade do genero humano. Chegassem mesmo,
o que não seria mais facil, a queimar todos os livros
espiritas e no dia seguinte estariam reproduzidos, por-
que inatacavel é a fonte donde dimanam e porque nin-
guem póde encarcerar ou queimar os espiritos, seus ver-
dadeiros autores.
"O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguem
póde inculcar-se como seu creador, pois tão antigo é
elle quanto a creação. (Desde os primeiros versiculos
do livro de Genesis até os ultimos do Apocalypse, fala-
se dos "espiritos", mensageiros, anjos, etc.; a palavra
"Espiritismo" não deriva do nome de um homem; é
uma palavra generica, abrangendo tudo quanto se refere
ao homem espiritual, á vida do espirito, á immortali-
dade; refere-se exactamente ao Reino do Céo, o reino
de Jesus, o da espiritualidade; em uma palavra, Espi-
— 324 —
ritismo quer dizer a revelação, feita pelo "Espirito de
Verdade", o "Espirito Consolador", que chegou a seu
tempo, conforme a promessa do Christo). Encontramol-o
por toda parte, em todas as religiões, principalmente na
religião catholica e ahi com mais autoridade do que em
outras, porquanto nella se nos depara o principio de tudo
o que ha nelle: os espiritos em to dos os gráos de elevação,
suas relações occultas e ostensivas com os homens, os
anjos guardiães, a reincarnação, a emancipação da alma
durante a vida, a dupla vista, todos os generos de mani-
festações, as apparições e até as apparições tangiveis.
Quanto aos demonios, esses não são senão os maus es-
piritos e, salvo a crença de que aquelles foram destinados
a permanecer perpetuamente no mal, ao passo que a
senda do progresso se conserva aberta aos segundos,
não ha entre uns e outros mais do que simples differença
de nomes.
"Que faz a moderna sciencia espirita? Reúne em
corpo de doutrina o que estava esparso; explica, com os
termos proprios, o que só era dito em linguagem allego-
rica; póda o que a superstição e a ignorancia engendra-
ram, para só deixar o que é real e positivo. Esse o seu
papel. O de fundadora não lhe pertence. Mostra o que
existe, coordena, porém não crêa, por isso que suas bases
são de todos os tempos e de todos os lugares. Quem,
pois, ousaria considerar-se bastante forte para abafal-
a com sarcasmos, ou, afinal, com perseguições? Si a
proscreverem de um lado, renascerá noutras partes, no
proprio terreno donde a tenham banido, porque ella
está em a natureza e ao homem não é dado anniquilar
uma força da natureza, nem oppôr veto aos decretos de
Deus.
"Que interesse, ao demais, haveria em obstar-se
á propaganda das idéas espiritas? E' exacto que ellas
se erguem contra os abusos que nascem do orgulho e do
egoismo. Mas, si é certo que desses abusos ha quem apro-
— 325 —
veite, á collectividade humana elles prejudicam. A col-
lectividade, portanto, será favoravel a taes idéas, con-
tando-se-lhes por adversarios sérios apenas os interes-
sados em manter aquelles abusos. As idéas espiritas, ao
contrario, são um penhor de ordem e tranquillidade,
porque, pela sua influencia, os homens se tornam me-
lhores uns para com os outros, menos ávidos das coisas
materiaes e mais resignados aos decretos da Provi-
dencia.
*
* *
"Perguntam algumas pessoas: Ensinam os espiri-
tos uma moral nova, qualquer coisa superior ao que disse
o Christo? Si a moral delles não é sinão a do Evangelho,
de que serve o Espiritismo?
"Este raciocinio se assemelha notadamente ao do
califa Omar, com relação á bibliotheca de Alexandria:
“Si ella não contém, dizia elle, mais do que está no
Alcorão, é inutíl; logo, deve ser queimada. Si contém
coisa differente, é nociva; logo, tambem, deve ser quei-
mada."
“Não, o Espiritismo não traz uma moral differente
da de Jesus. Mas, perguntamos, por nossa vez: Antes
que viesse o Christo, não tinham os homens a lei dada
por Deus a Moysés? A doutrina do Christo não se acha
contida no Decalogo? Dir-se-á, por isso, que a moral de
Jesus era inutil? Perguntaremos, ainda, aos que negam
utilidade á moral espirita: Porque tão pouco praticada
é a do Christo? E porque, exactamente os que com
justiça lhe proclamam a sublimidade, são os primeiros
a violar-lhe o preceito capital: o da caridade univer-
sal? Os espiritos vêem não só conformal-a, mas tambem
mostrar-nos a sua utilidade pratica. Tornam intelligi-
veis e patentes verdades que haviam sido ensinadas sob
a fórma allegorica. E, juntamente com a moral, trazem-
nos a definição dos mais abstractos problemas da psycho-
logía.
— 326 —
"Jesus veiu mostrar aos homens o caminho do ver-
dadeiro bem. Porque, tendo-o enviado para fazer lem-
brada sua lei que estava esquecida, não havia Deus de
enviar hoje os espiritos, afim de a lembrarem nova-
mente aos homens, e com maior precisão, quando elles
a olvidam para tudo sacrificar ao orgulho e á cobiça?
Quem ousaria pôr limites ao poder de Deus e traçar-lhe
nórmas? Quem nos diz que, como o affirmam os espiri-
tos, não estão chegados os tempos preditos e que não che-
gamos aos em que verdades mal comprehendidas, ou
falsamente interpretadas, devam ser ostensivamente re-
veladas ao genero humano, para lhe apressar o adeanta-
mento? Não haverá alguma coisa de providencial nessas
manifestações que se produzem simultaneamente em
todos os pontos do globo?
"Não e um unico homem, um propheta quem nos
vem advertir. A luz surge por toda parte. E' todo um
mundo novo que se desdobra ás nossas vistas. Assim
como a invenção do microscopio nos revelou o mundo
dos infinitamente pequenos, de que não suspeitavamos;
assim como o teiescopio nos revelou milhões de mundos
de cuja existencia tambem não suspeitavamos, as com-
municações espiritas nos revelam o mundo invisivel
que nos cerca, nos acotovela constantemente e que, á
nossa revelia, toma parte em tudo o que fazemos.
“Decorrido que seja mais algum tempo, a existen-
cia desse mundo, que nos espera, se tornará tão incon-
testavel como a do mundo microscopico e dos globos dis-
seminados pelo espaço. Nada, então, valerá o nos terem
feito conhecer um mundo todo; o nos haverem iniciado
nos mysterios da vida de além-tumulo? E' exacto que
essas descobertas, se se lhes póde dar este nome, contra-
riam algum tanto certas idéas acceitas. Mas, não é real
que todas as grandes descobertas scientificas hão egual-
mente modificado, subvertido até, as mais correntes
idéas? E o nosso amôr-proprio não teve que se curvar
— 327 —
deante da evidencia? O mesmo acontecerá com relação
ao Espiritismo, que, em breve, gozará do direito de ci-
dade entre os conhecimentos humanos.
"As communicações com os seres do além-tumulo
deram em resultado fazer-nos comprehender a vida fu-
tura, fazer-nos vêl-a, iniciar-nos no conhecimento das
penas e gozos que nos estão reservados, de accôrdo
com os nossos meritos e, desse modo, encaminhar para
o espiritualismo os que no homem somente viam a ma-
teria, uma machina organizada. Razão, portanto, tive-
mos para dizer que o Espiritismo, com os factos, matou
o materialismo. Fôsse este o unico resultado por elle
produzido e já muita gratidão lhe deveria a ordem so-
cial. Elle, porém, faz mais: mostra os inevitaveis effei-
tos do mal e, conseguintemente, a necessidade do bem.
Muito maior do que se pensa é, e cresce todos os dias,
o numero daquelles em quem elle ha melhorado os sen-
timentos, neutralizado as más tendencias e desviado do
mal. E' que para esses o futuro deixou de ser coisa im-
precisa, simples esperança, por se haver tornado uma
verdade que se comprehende e explica, quando se vêem
e ouvem os que partiram lamentar-se ou felicitar-se pelo
que fizeram na terra. Quem disso é testemunha entra
a reflectir e sente a necessidade de a si mesmo se conhe-
cer, julgar e emendar.
"Os adversarios do Espiritismo não se esqueceram
de armar-se contra elle de algumas divergencias de
opiniões sobre certos pontos de doutrina. Não é de admi-
rar que, no inicio de uma sciencia, quando ainda são in-
completas as observações e cada um a considera do
seu ponto de vista appareçam systemas contraditorios.
Mas, já tres quartos desses systemas cahiram deante de
um estudo mais aprofundado, a começar pelo que attri-
buia todas as communicações ao espirito do mal, como
si a Deus fôra impossivel enviar bons espiritos aos ho-
mens: doutrina absurda, porque os factos a desmentem;
— 328 —
impia, porque importa na negação do poder e da bon-
dade do Creador". (Qual o lucro visado pelo espirito do mal, em fazer com que um materialista se torne espi-
ritualista? Qual a vantagem em deixar escapar-se-lhe
das mãos uma alma que já lhe pertencia, para fazel-a
adoradora de Deus?...)
"Os espiritos sempre disseram que nos não inquie-
tassemos com essas divergencias e que a unidade se es-
tabeleceria. Ora, a unidade já se fez quanto á maioria
dos pontos e as divergencias tendem cada vez mais a
desapparecer. Tendo-se-lhes perguntado: “Emquanto se
não faz a unidade, sobre que póde o homem, imparcial
e desinteressado, basear-se para formar juizo?" elles
responderam:
"Nuvem alguma obscurece a luz verdadeiramente
pura; o diamante sem jaça é o que tem mais valor; jul-
gae, pois, dos espiritos pela pureza de seus ensinos.
Não olvideis que, entre elles, ha os que ainda se não se
despojaram das idéas que levaram da vida terrena. Sa-
bei distinguil-os pela linguagem de que usam. Julgae-os
pelo conjuncto do que vos dizem, vêde se ha encadea-
mento logico nas suas idéas; si nestas nada revéla igno-
rancia, orgulho ou malevolencia; em summa, si suas
palavras trazem todas o cunho de sabedoria que a ver-
dadeira superioridade manifesta. Si o vosso mundo fôsse
inaccessivel ao erro, seria perfeito e longe disso se acha
elle. Ainda estaes aprendendo a distinguir do erro a ver-
dade. Faltam-vos as lições da experiencia para exer-
citar o vosso juizo e fazer-vos avançar. A unidade se
produzirá do lado em que o bem jamais esteve de mis-
tura com o mal; desse lado é que os homens se colligarão
pela força mesma das coisas, porquanto reconhecerão
que ahi é que está a verdade.
“Aliás, que importam algumas dissidencias, mais
de fórma do que de fundo? Notae que os principios fun-
damentaes são os mesmos por toda parte e vos hão de
— 329 —
unir num pensamento commum: o amor de Deus e a prá-
tica do bem. Quaesquer que se supponham ser o modo
de progressão ou as condições normaes da existencia fu-
tura, o objectivo final é um só: fazer o bem. Ora, não ha
duas maneiras de fazel-o".
"Antagonismo só poderia existir entre os que querem
o bem e os que quizessem ou praticassem o mal. Ora,
não ha espirita sincero e compenetrado das grandes ma-
ximas moraes ensinadas pelos espiritos que possa querer
o mal, nem desejar mal ao seu proximo, sem distincção
de opiniões. Si erronea fôr alguma destas, cedo ou tarde
a luz para ella brilhará, si a buscar de boa fé e sem pre-
venções. Emquanto isso se não dá, um laço commum
existe que as deve unir a todas num só pensamento:
uma só méta para todas. Pouco, por conseguinte, impor-
ta qual seja o caminho, uma vez que conduza a essa
méta. Nenhuma deve impôr-se por meio do constrangi-
mento material ou moral e em caminho falso estaria
unicamente aquella que lançasse anáthema sobre ou-
tra, porque então procederia evidentemente sob a in-
fluencia de maus espiritos.
"O argumento supremo deve ser a razão e melhor
a moderação garantirá o triumpho da verdade do que
as diatribes envenenadas pela inveja e pelo ciume. Os
bons espiritos só prégam a união e o amôr do proximo
e nunca um pensamento malévolo ou contrário á cari-
dade póde provir de fonte pura. Ouçamos sobre este as-
sumpto, e para terminar, os conselhos do Espirito de
Santo Agostinho:
"Por bem largo tempo, os homens se têem estraça-
lhado e anathematizado mutuamente em nome de um
Deus de paz e misericordia, offendendo-o com semelhan-
te sacrilegio. O Espiritismo é o laço que um dia os unirá,
porque lhes mostrará onde está a verdade, onde o erro.
Porém, durante muito tempo ainda haverá escribas e
phariseus que o negarão, como negaram o Christo.
— 330 —
Quereis saber sob a influencia de que espiritos estão
as diversas seitas que entre si fizeram partilha do mun-
do? Julgae-o petas suas obras e pelos seus principios.
Jamais os bons espiritos foram os instigadores do mal,
jamais aconselharam os odios dos partidos, nem a sêde
das riquezas e das honras, nem a avidez dos bens da terra.
Os que são bons, humanitarios e benevolentes para to-
dos, esses os seus predilectos e predilectos tambem de
Jesus, porque seguem a estrada que lhes este indicou
para chegarem até elle." (Allan Kardec — "Livro dos Espiritos").
A EGREJA UNIVERSAL. — A OBRA DE JESUS.
"O Christianismo não póde desapparecer, porque
os seus principio; contém o germen de renascimentos
infinitos; deve, porém, despir as differentes formas re-
vestidas no curso das idades, regenenar-se nas fontes da
nova revelação, apoiar-se na sciencia dos factos e voltar
a ser uma fé vivaz. Nenhuma concepção religiosa, ne-
nhuma fórma cultual é immutavel. Dia virá em que os
dogmas e os cultos actuaes irão se reunir aos destroços
dos antigos cultos; o ideal religioso, porém, não ha de
perecer; os preceitos do Evangelho dominarão sempre
as consciencias, como a grande figura do Crucificado
dominará o fluxo dos seculos
"As crenças, as differeníes religiões, tomadas em
sua ordem successiva, poderiam, numa certa medida,
ser consideradas os degraus que o pensamento galga em
sua ascensão para concepções cada vez mais vastas da
vida futura e do ideal divino. Sob esse prisma, têem sua
razão de ser, mas chega sempre um tempo em que as
mais perfeitas se tornam insufficientes, um momento
em que o espirito humano, em suas aspirações e seus
— 331 —
impulsos, se eleva acima do circulo das crenças usuaes,
para buscar mais completas fórmas do conhecimento.
"Então elle percebe o encadeamento que prende
todas essas religiões. Comprehende que todas ellas se
ligam por uma base de principios communs, que são as
impereciveis verdades, ao passo que todo o resto, fór-
mas, ritos e symbolos são coisas transitorias, passageiros
accidentaes da historia humana.
'A sua attenção, desviando-se dessas fórmas, dessas
expressões religiosas, volta-se para o futuro. Ahi vê
se elevar acima de todos os templos, de todas as reli-
giões exclusivistas, uma religião mais vasta, que a todas
abrangerá, que já não terá ritos, nem dogmas, nem barrei-
ras, mas dará testemunho dos factos e das verdades uni-
versaes, uma Egreja que, por sobre todas as seitas e
todas as egrejas, extenderá as vigorosas mãos para pro-
teger e abençoar. Vê-se erigir um templo em que toda
a humanidade, recolhida e prosternada, unirá os pensa-
mentos e as crenças numa mesma communhão de amôr,
numa mesma profissão de fé que se reumirá nestas
palavras: Pae nosso que estaes nos céos!
"Tal será a religião do futuro, a religião universal.
Não será uma nstituição fechada, uma orthodoxia re-
gida por estreitas nórmas senão uma fusão dos cora-
ções e dos espiritos
„O moderno espiritualismo, com o movimento de
idéas que provoca, prepara o seu advento. Sua acção
crescente arrancará as actuaes egrejas á immobilidade
que as detém e as obrigará a voltar-se para a iuz que
se espraia no horizonte.
"E' verdade que, em presença dessa luz, á vista das
profundezas que vem illuminar, muitas almas aferradas
ao passado tremem ainda e sentem-se tomadas de ver-
tigem. Temem pela sua fé, pelo seu ideal envelhecido e
vacillante; deslumbra-a; essa luz demasiado v va. Não
é Satanaz, dizem ellas, quem faz brilhar aos olhos dos
— 332 —
homens numa enganadora miragem? Não será isso obra
do espirito do mal?
"Tranquillizae-vos, pobre almas, não ha outro
espirito do mal senão a ignorancia. Essa radiação é o
chamado de Deus; Deus quer que delle vos approximeis,
que abandoneis as obscuras regiões, afim de pairardes
nas espheras luminosas.
"As egrejas christãs não têem razão de se alarmar
com esse movimento. A nova revelação não as vem des-
truir mas esclarecel-as, regeneral-as, fecundal-as. Si a
souberem comprehender e acceitar, nella encontrarão
um inesperado auxilio contra o materialismo que inces-
santemente lhes açoita as bases com suas ondas rugi-
doras; nella hão de encontrar um novo potencial de vida.
"Já reparastes nessas grutas guarnecidas de esta-
lactites e de alvissimos crystaes, e nas galerias subter-
raneas das minas de diamante? Todas as suas riquezas
se acham immersas na sombra. Nada revela o esplendor
que alli se occulta. Penetre, porém, a luz no seu interior
e tudo immediatamente se illumina; scintillam os crys-
taes e o precioso mineral: as abóbadas, as paredes, tudo,
em chispas deslumbrantes, resplandece.
Essa luz é a que o novo espiritualismo traz ás
egrejas. Sob os seus raios, todas as riquezas occultas do
Evangelho, todas as gemmas da doutrina secreta do
Christianismo, sepultadas sob a densidade do dogma,
todas as verdades veladas emergem da noite dos seculos
e reapparece com todo o esplendor. Eis o que a nova
revelação vem offerecer ás religiões. E' um soccorro do
céo, uma resurreição das coisas mortas e esquecidas que
ellas encerram em seu seio. E' uma nova floração do pen-
samento do Mestre, aformoseada, enriquecida, resti-
tuida á plena luz pelos cuidados dos espiritos celestes.
'Comprehendel-o-ão as egrejas? Sentirão ellas o
poder da verdade que se manifesta e a grandeza do pa-
pel que lhes cumpre desempenhar ainda, si a souberem
— 333 —
reconhecer e assimilar? Não o sabemos. Mas o que é cer-
to é que em vão tentariam combatel-a, embaraçar-lhe
a marcha ou lhe deter o surto: "Nisso está a vontade
de Deus, — dizem as vozes do espaço; — os que con-
tra ella se levantarem serão despedaçados e dispersos.
Nenhuma força humana, nenhum dogma, nenhuma per-
seguição seria capaz de impedir a nova doação, comple-
mento necessario do ensino do Christo, por elle annun-
ciada e dirigida."
'Dito foi: "Quando chegarem os tempos, eu derra-
marei o meu espirito sobre toda a carne; os vossos filhos
e as vossas filhas prophetizarão; os vossos mancebos te-
rão visões e vossos velhos sonharão sonhos".
“E' chegada essa epocha. A evolução physica e o
desenvolvimento intellectual da humanidade fornecem
aos espiritos superiores bem destros instrumentos, bem
aperfeiçoados organismos para lhes permittirem que
manifestem sua presença e espalhem suas instrucções.
Tal é o sentido dessas palavras.
“As potencias do espaço estão em actividade, e
por toda parte sua acção se faz sentir. Mas, perguntar-
nos-ão, quaes são essas potencias?
“Membros e representantes das egrejas do mundo,
ouvi-o e gravae-o em vossa memoria: Lá, muito acima
da terra, nos campos vastissimos do espaço, vive, pensa,
trabalha, uma Egreja invisivel que véla pela humanidade.
Ella se compõe dos aposto os, dos discipulos do Christo
e de todos os genios dos tempos christãos. Perto delles
encontrarieis tambem os elevados espiritos de todas as
raças, de todas as religiões, todas as grandes almas que
viveram neste mundo em conformidade com a lei de
amôr e caridade.
“Porque os julgamentos do céo não são os julgamen-
tos da terra. Nos ethéreos espaços não se pedem contas
ás almas dos homens, nem de sua raça, nem de sua re-
ligião, mas de suas obras e do bem que praticaram.
— 334 —
"E' a Egreja universal; não é restricta como as egre-
jas convencionaes da terra; abrange os espiritos de todos
os que soffreram pela verdade. São as suas decisões,
inspiradas por Deus, que régem o mundo; é a sua vonta-
de que subleva, nos momentos escolhidos, as grandes
vagas da idéa e impelle a humanidade para o abrigado
porto, através dos temporaes e dos escolhos. E' ella que
dirige a marcha do moderno espiritualismo e patrocina
o seu desenvolvimento. Por elle combatem os espi-
ritos que a constituem: uns, do seio dos espaços, influ-
indo sobre os seus defensores — porque não ha distan-
cias para o espirito, cujo pensamento vibra através
o infinito; — outros, baixando á terra, onde, ás vezes,
revestindo elles proprios um corpo de carne, renascem
entre os homens, para desempenhar ainda o papel de
missionarios divinos.
"Deus guarda em reserva outras forças occultas,
outras almas de escól para a hora da renovação. Essa
hora será annunciada por grandes crises e successos dolo-
rosos. E' necessario que as sociedades soffram; é pre-
ciso que o homem seja ferido pa a cahir em si, para sen-
tir o pouco que é e abrir o coração ás influencias do alto.
“A terra ha de presenciar dias tenebrosos, dias de
luto; tempestades se hão de desencadear. Para que ger-
mine o grão, são necessárias as nevadas e a triste incu-
bação do inverno. Violentos sôpros virão dissipar as ne-
voas da ignorancia e os miasmas da currupção. Mas pas-
sarão as tempestades; o céo reapparecerá em sua limpi-
dez. A obra divina se expandirá em um novo surto. A
fé renascerá nas almas, e novamente irradiará mais ful-
gurante, sobre o mundo regenerado, o pensamento de
Jesus
*
* *
“Jesus não é um instituidor de dogmas, um creador
de symboios; é o iniciador do mundo no culto do senti-
— 335 —
mento, na religião do amôr. Outros assentaram a crença
sobre a idéa da justiça. A justiça não basta; são preci-
sos o amôr dos homens. a caridade, a paciencia, a simpli-
cidade e mansidão. E' por essas coisas que o Christia-
nismo é superior e imperecivel e que todos os que amam
a humanidade pódem se dizer christãos, mesmo quando
se achem divorciados da tradição de todas as egrejas.
"A religião de Jesus não é exclusivista: une todas as
almas crentes num vinculo commum; prende todos os
seres que pensam, sentem, amam e soffrem, em um mes-
mo amplexo, em uma mesma communhão de amôr. E' a
fórma simples e sublime que vae direita ao coração, com-
move e engrandece o homem, franqueia-lhe as infinitas
sendas do ideal. Esse ideal de amôr e de fraternidade,
foram precisos dezenove secuios para ser comprehendido,
para que pudesse penetrar na consciencia da humanida-
de. Ahi entrou elle pouco a pouco, sob os germens de
todas as transformações sociaes.
'Assegurando a todos o direito de participar do
reino de Deus, isto é, da luz e da verdade, Jesus preparou
a regeneração da humanidade; collocou os marcos da
revelação futura. Fez entrever ao homem a extensão
dos seus destinos, a possibilidade de se elevar até ás
espheras divinas, pelos caminhos da provação e da dôr,
pelas vias da fé e do trabalho.
"Fez mais ainda o Christo. Pelas manifestações
de que era o centro e que continuaram depois de sua
morte, elle havia approximado as duas humanidades, a
invisivel e a visivel, humanidades que se penetram, se
vivificam, se completam mutuamente. A egreja nova-
mente as separou; despedaçou o vinculo que prendia os
mortos aos vivos. Reduzida ás suas proprias inspirações,
abandonada a correntes de opiniões oppostas, a todo
os sopros das paixões, não mais soube discernir e inter-
pretar a verdade. O pensamento de Jesus ficou velado;
— 336 —
as trévas envolveram o mundo, trévas espessas como
as da idade média, cuja influencia ainda pésa sobre
nós.
"Mas, depois de seculos de silencio, o mundo invisi-
vel de novo se descerra; illumina-se, agita-se até ás suas
maiores profundezas. As legiões do Christo e o proprío
Christo estão em actividade. Soou a hora da nova dis-
pensação. Essa dispensação é o moderno espiritualismo.
Eil-o que se levanta com o feixe de suas descobertas,
com a multidão dos seus testemunhos, com o ensino dos
espiritos. As columnas do templo que erige ao pensa-
mento sóbem pouco a pouco e erguem-se alterosas. Ha
trinta annos não passava de bem mesqu nha construc-
ção. E — vêde! — já é um edificio moral, sob cujas abó-
badas milhões de almas têem encontrado asylo, no meio
das procéllas da existencia. A multidão dos que gemem
e soffrem volta para elle os seus olhares. Todos aquelles
para quem a vida se tornou molesta, todos os que são
assediados por sombrios desassocegos ou presa da des-
esperança, nelle hão de encontrar consolação e amparo;
aprenderão a lutar com bravura, a desdenhar a morte, a
conquistar melhor futuro.
"Os pensadores, os generosos espiritos que traba-
lham pela humanidade, nelle encontrarão os meios de
realizar o seu ideal de paz e de harmonia. Porque só
uma fé vivaz, uma crença forte, consorciadora das al-
mas, será capaz de preparar a harmonia universal.
Póde já prever-se que é o moderno espiritualismo que
a ha de realizar. Elle fez mais para isso em cincoenta
annos do que o catholicismo em muitos seculos. Na hora
actual, acha-se elle disseminado por todos os pontos do
globo. Os seus adeptos, cujo numero se tornou incalcu-
iavel, audam-se todo pelo nome de irmãos. Uma lite-
ratura consideravel, centenas de jornaes, federações,
sociedades, são manifestações de sua crescente vitalidade.
“Sólido por seu passado remotissimo, que é o da
— 337 —
humanidade, cerot do seu futuro, o Espiritismo se ergue
em face das doutrinas sem bases e do scepticismo vacil-
lante. Avança resolutamente pela estrada aberta, a des-
peito dos obstaculos e das opposições interesseiras, se-
guro da victoria final, porque tem por si a sciencia e a
verdade!
"E' um acto solenne do drama da evolução humana
que começa; é uma revelação que illumina ao mesmo tem-
po as profundezas do passado e as do futuro, que faz
surgirem da poeira dos seculos as crenças em lethargo,
anima as com uma nova chama e as faz, completando-
as, reviver.
"E' um sôpro vigoroso que desce dos espaços e cor-
re sobre o mundo; ao seu influxo todas as grandes ver-
dades se restabelecem. Magestosas, emergem da obscu-
ridade das idades, para desempenhar a tarefa que o
pensamento div.no lhes assigna. As grandes coisas se
fortalecem no recolhimento e no silencio: no olvido ap-
parente dos seculos haurem allas novas energias. Reco-
lhem-se em si mesmas e se preparam para as tarefas do
futuro.
"Por sobre as ruinas dos templos, das civilizações
extinctas e dos imperios derrocados, por sobre o fluxo
e refluxo das marés humanas, uma grande voz se eleva;
e essa voz conclama: São vindos os tempos; os tempos são
chegados!
'Das profundezas estrelladas baixam á terra legi-
ões de espiritos, para empenhar o combate da luz contra
as trevas. Já não são os homens, já não são os sábios,
os philosophos que lançam uma nova doutrina. São os
genios do espaço que vêem até nós e nos sopram ao pen-
samento os ens nos destinados a regenerar o mundo.
São os espiritos de Deus! Todos os que possuem o dom
da clarividencia os percebem pairando sobre nós, asso-
ciando-se aos nossos trabalhos, lutando ao nosso lado
pelo resgate e ascensão da alma humana.
— 338 —
'Grandes coisas se preparam. Que os trabalhadores
do pensamento estejam a postos, se querem tomar parte
na missão que Deus offerece a todos os que amam e
servem a verdade." (Léon Denis — "Christianismo e
Espiritismo")
QUEIMADA VIVA, LANÇADA NO INFERNO E... NO CÉO!
MEDIUMNISMO CANONIZADO
E' o capitulo final. julgamos opportuno deixar
consignado nestas ultimas paginas aquelle facto que
abalou, não somente a alma e o coração da França,
mas a toda criatura que tem uma alma e um coração: o
do martyrio de uma donzella, pelo crime de salvar a
sua patria! Referimo-nos á Joanna d'Arc.
Muita gente ha que julga ainda esse facto através
do laconismo e da frieza de certos historiadores. Para
imprimir autoridade a essa referencia historica, passa-
mos a palavra a um padre francez, um espirito eman-
cipado dos preconceitos humanos e por isso mesmo
profundamente respeitador da verdade.
Verá o leitor que o Espiritismo recebeu arrhas
da Egreja Catholica, pois outra coisa não é o recuo
por ella feito em o nosso seculo XX, annullando um
acto que praticou 478 annos antes. E' um assumpto
que nos convida ao raciocínio, á meditação, ao exame
sereno e persistente; que nos convence de que, de
facto, só a verdade nos obriga a sacrificar tudo e até a
propria vida, para defendel-a; que a verdade nos de-
clara positivamente que o mundo espiritual está intima-
mente irmanado com o mundo terreno, porque assim o
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disse Jesus e assim o sentiram os Apostolos, conforme o
ensino das proprias Egrejas Catholica e Protestante,
em o "Credo dos Apostolos": Creio na communhão
ou communicação dos santos.
Que é o que significam as apparições e visões de
que nos falam as obras devocionaes e historicas, da
bibliographia dessas Egrejas?...
Não nos esqueçamos de que o facto historico que
nos vae prender a attenção teve lugar no seculo XV,
ou seja um seculo antes da Reforma protestante. Quer
dizer: a Inglaterra estava, como a França, sob a di-
recção espiritual do Papa.
Para a boa comprehensão da parte historica, vamos
copiar, antes, as palavras de um francez, contidas em
seu "Diccionario Pratico Illustrado", traduzido para o
nosso idioma. Diz Jayme de Séguier: "Joanna d'Arc
ou Darc, denominada a Donzella D'Orléans, heroina
francesa, nascida em Domremy, em 1412. Foi pastora
até á idade de 18 annos. Profundamente religiosa, caía
frequentemente em extases, durante os quaes lhe parecia
ouvir vozes sobrenaturaes, entre outras as de S. Mi-
guel e de Santa Catharina, que lhe impunham a missão
de salvar a patria, prestes a succumbir ao peso da
invasão inglesa. Joanna partiu da sua aldeia e, arros-
tando mil perigos, conseguiu chegar até junto do rei
Carlos VII, a quem logrou convencer da sua missão
divina. O soberano confiou-lhe o commando de uma
pequena hoste de soldados, á frente da qual Joanna
atacou os Ingleses, obrigando-os a levantar o cêrco
de Orléans e vencendo-os em Patay. Levou em seguida
Carlos VII a Reims, onde o fez sagrar (1429). Julgando
a sua missão terminada, quiz então retirar-se, mas
teve de ceder ás supplicas do rei e de continuar a luta.
No anno seguinte, tentou apoderar-se de Paris, mas
soffreu um revés e foi ferida num assalto, o que muito
abalou o seu prestigio. Abandonada, traída talvez pelos
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seus, quando procurava defender Compiégne, caiu nas
mãos dos Borgonheses, que a entregaram aos seus
alliados ingleses. Estes submetteram-na ao julgamento
de um tribunal ecclesiastico. Joanna defendeu-se com
sangue frio e intelligencia extraordinarios; mas os
iniquos juizes condemnaram-na como feiticeira e he-
rética. Joanna foi queimada viva em Ruão (30 de maio
de 1431). Personificação da ideia mais elevada do pa-
triotismo, Joanna D'Arc não é apenas uma gloria
francesa, é uma das mais nobres figuras da historia
da humanidade. Foi beatificada em 18 de abril de
1909.” (Obra citada).
"O ANJO DA FRANÇA — Estaes admirada e escan-
dalizada, senhora, de ter a congregação romana, que
canonisou Bento Labre e Pedro Arbues, recusado ca-
nonisar Joanna d'Arc. Sem duvida ignoraes a razão
profunda que causou a condemnação á fogueira da
incomparavel virgem de Domremy. O que me espanta
não é a repugnancia da curia, mas a indifferença da
França.
Joanna d'Arc foi o nosso Messias nacional e si
tivessemos a memoria do coração, o dia da sua morte
ou o do seu nascimento seria feriado, ha muitos seculos,
pelo povo que lhe devia a sua salvação.
Qual a lenda que possa ser comparada á historia
tão poetica, tão maravilhosa e tão commovente da
virgem de Domremy? Nenhuma vida mais pura
nem mais fecunda foi cortada por uma morte mais
tragica e dolorosa. Nenhuma Paixão teve tanta seme-
lhança com a Paixão do Salvador. Nenhum Sanhedrim
jamais copiou tão exactamente o que julgou o Liber-
tador do mundo, como o que condemnou á fogueira a
Libertadora da França.
Joanna, bem joven ainda, tinha ouvido sua madri-
nha contar, talvez sob a sombra do velho carvalho
das fadas, a prophecia de Merlim, o encantador: "Vejo
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a Gallia perdida por uma mulher, vejo a Gallia salva
por uma virgem dos confins da Lorena, vinda de uma
velha floresta, vejo um anjo com. azas de côr do céo, bri-
lhando de luz e. com uma corôa nas mãos, uma corôa real;
vejo um cavallo de guerra, branco como a neve; vejo uma
armadura de batalha, que brilha como prata. Oh! quanto
sangue! como jórra e corre em torrentes através de um
nevoeiro côr de sangue! vejo uma virgem guerreira. Ella
combate e peleja no meio de um circulo de lanças, parece
que ella cavalga sobre o dorso dos archeiros. O sangue
cessou de correr, o raio de retumbar e o relampago de
luzir. Vejo a calma nos céos, bandeiras que fluctuam,
ouço o som de clarins, de sinos e gritos de alegria e cantos
de victoria! A virgem guerreira recebe das mãos do anjo a
corôa real. Um. homem está de joelhos, cobre-o uma grande
capa de arminho, é coroado pela virgem guerreira."
Esta prophecia que é o resumo cia vida de Joanna,
na sua phase brilhante, relata-nos a gloria do seu Tha-
bor. Eis que chegam as longas agonias do jardim das
Oliveiras, antecipando as do Sanhedrim e as do Cal-
vario. Trahida pelos seus compatriotas, esquecida pelo
seu rei, que ella fez sagrar, Joanna é entregue como
feiticeira aos principes dos sacerdotes e o interrogatorio
começa: "Pretendeis, lhe diz o bispo Cauchon, ter tido
revelações, visões? Estaes bem certa disso?"
─ Sim, meu senhor, porque é a verdade.
─ Donde vinham essas vozes?
─ De Deus.
─ Serão essas vozes as de Santa Catharina ou
de Santa Margarida, que vos appareceram?
─ Sim.
─ Quai dos dois papas é o verdadeiro?
─ Ha então dois papas?
─ Se sois inspirada por Deus deveis saber ao
quai dos dois papas deveis obedecer.
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— Eu nada sei, o papa é que deve saber si obedece
a Deus e eu tenho de obedecer áquelle que obedece a
Deus.
─ Desde que estaes presa, as vossas vozes têm-vos
promettido a soltura?
─ Ainda ha pouco me disseram: "Soffre corajosa-
mente o teu martyrio, ganharás o paraizo."
─ Acreditaes que haveis de ganhal-o?
─ Creio tanto como si lá estivesse.”
A fé singela da virgem martyr illuminava o seu
bello semblante, dando-lhe uma expressão celeste. Os
seus olhos negros, reflectindo o suave brilho da inspi-
ração, estão voltados para o céo, cujo azul contemplam,
através da janella o sombrio edificio. Cauchon tira-a
do seu extase, dizendo-lhe:
─ Joanna, credes que estaes em estado de peccado
mortal?
─ Deus é testemunha de todos os meus actos.
─ Julgaes, então, inutil a confissão, ainda estando
em peccado mortal?
─ Eu nunca commetti peccado mortal.
─ Como sabeis isso?
─ As minha vozes me teriam reprehendido e as
minhas santas me teriam abandonado.”
Joanna é reconduzida para o calabouço, onde pouco
depois apparece Cauchon todo paramentado, acompa-
nhado por sete padres:
─ Quereis receber os sacramentos da egreja,
Joanna? Sujeitae-vos á egreja?
─ Si o meu corpo morrer na prisão eu vos peço
para elle a terra sagrada; si m‟a recusardes, eu me
enccmmendo a Deus, que sempre tem-me inspirado.
─ Eis o que é grave: entre vós e Deus está a
Egreja; quereis, sim ou não, submetter-vos á Egreja?
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─ Eu vim procurar o rei, para salvação da Fran-
ça por mando de Deus e de suas santas. A essa Egreja,
a do alto, eu me submetto em tudo que fiz e disse.”
Um seculo mais tarde uma outra victima devia
subir á fogueira na grande praça de Florença. Essa
victima era um padre; chamava-se Savonarola. O
arcebispo lhe disse:
─ Eu vos separo da Egreja.
─ Da Egreja militante, sim, da Egreja triumphan-
te, não; vós não tendes esse poder.
Joanna d'Arc tinha servido de modelo ao apostolo-
martyr.
─ Portanto recusaes, disse-lhe Cauchon, submet-
ter-vos ao julgamento da Egreja militante?
─ Eu me submetto a essa Egreja desde que ella
não exija o impossivel.
─ Que quereis dizer com isso?
─ Renegar as visões que tenho tido, consentidas
por Deus.
─ Mas si a Egreja declara que essas visões são
diabolicas?
─ Nesse caso appéllo para Deus somente; não
acceito o juizo de nenhum homem.
─ Não vos submetteis, portanto, ao nosso santo
Padre, o papa, nem aos nossos senhores, os cardeaes?
─ Reconheço-me sujeita a elles; mas a Deus
em primeiro lugar.
─ Respondeis-me com idolatria, incorrereis como
apóstata.
─ Sou uma boa christã e morrerei como christã."
"Chega o dia 30 de Maio de 1431, diz um grande
historiador; dia esse o mais augusto, o mais triste
que veiu á terra, depois do drama do Golgotha. Avi-
sam á virgem que ella vae morrer e por cumulo da
infelicidade ella não ouve mais as vozes das suas irmãs
do paraizo. Abandonada como o Christo no Calvario,
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com a sua agonia e no vácuo, sente collocarem-lhe na
cabeça a mitra dos condemnados pela inquisição. A
gentalha a insulta como apóstata, do mesmo modo
que insultaram Jesus como btasphemador! A donzella
no seu grande coração perdoa a todos, perdão sublime
que abrange dois reis e dois reinos. Apresentam-lhe
uma cruz que ella abraça muito estreita e longamente.
As labaredas a envolvem, lambendo o seu corpo virgi-
nal.
─ "Meu Deus, Jesus, Maria, minhas vozes! Sim,
as minhas vozes eram de Deus!
Todos os proprios juizes e carrascos choram, Joan-
na desapparece no meio das chammas e da fumaça;
repentinamente, porém, o vento desvia os turbilhões
de fogo e deixa vêr pela ultima vez a victima "que vae
ser libertada por uma grande victoria. Joanna dá um
grito terno e terrivel:
─ Jesus!
O soldado que desempenha neste outro Calvario o
papel de Longinus “vê partir da terra de França e voar
para o céo uma pomba branca"!
Concentremo-nos, senhora, deante da maravilhosa
fogueira desta virgem que salvou a França e que morreu
por ella antes de ter vinte annos de edade. Por muito
tempo os historiadores a desconheceram, a rebaixaram,
encobrindo-nos a verdadeira causa da sua morte. Houve
mesmo um homem de espirito que teve a triste coragem
de insultar a sua memoria, por instigação de um rei
da Prussia. Outros mais habeis quizeram roubar a sua
gloria, rehabilitando-a. Nós, filhos da Gallia, apostolos
da liberdade sagrada, que chamamos liberdade de cons-
ciencia, nós a admiramos, a veneramos como a nossa
grande santa, como nossa padroeira.
Que respostas humildes e altivas, intrépidas, ella
deu a esses juizes que se julgavam os interrpretes da
Justiça e da Verdade! Quanta fé nos espiritos celestes
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que a guiavam e ajudavam-na a cumprir a sua missão!
Tirae dessa vida milagrosa a inspiração, a communi-
cação com o mundo invisivel, e ella não será compre-
hendida. Acceitando-as, tudo se torna claro. Fortificada
por essa assistencia mysteriosa, por seus colloquios
frequentes com as amigas do céo, a virgem heroica
recusa renegar as suas vozes, abdicar sua consciencia,
deante de uma autoridade que se considerava infallivel
na mesma occasião em que essa pretendida infallibilida-
de ia ser brilhantemente desmentida.
Joanna, perante esse bispo e seus acólytos, era o
valente espirito da Gallia, talvez uma virgem reencar-
nada da ilha de Senn, que se levantou altiva e soberba
deante do juizo de Roma, reivindicando a liberdade
imprescriptivel da consciencia humana. Encarnação en-
cantadora e maravilhosa de um espirito celeste, ella
via pela segunda vista, as fórmas ethéreas de seus espi-
ritos protectores, de seus "anjos da guarda" a quem
ella chamava Santa Catharina e Santa Margarida. As
vozes desses espiritos puros eram para ella as vozes
do céo, a voz de Deus, a voz da cosnciencia que jamais
engana. Essa voz intima, verdadeiramente infallivel, ella
a preferia á dos padres de Roma; e nisso consistia o
crime irremissivel, a grande apostasia que devia tomar a
nobre heroina em martyr incomparavel.
Essa é a razão, senhora, porque a virgem de Dom-
remy nunca será canonisada. Não, Roma não póde
julgar cm contrario do que julgára e collocar nos alta-
res a virgem que teve a assombrosa audacia de dar pre-
ferencia ás vozes dos "santos" á voz de um bispo. Além
disso, como collocal-a junto de Maria Alacoque, depois
de ter lançado aos ventos o pó que foi a sua prisão?
Joanna d'Arc nunca será uma santa romana, porém
será sempre uma santa gauleza, que terá por altares
todos os corações generosos que ainda vibram do santo
amôr da Patria.
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O' virgem singela e pura! Vejo daqui o lugar onde
estava o “carvalho das fadas", a planicie em que, quan-
do menina, guardavas o rebanho de teu pae, o cemiterio
onde tuas santas falaram á tua alma e chóro enternecido!
Parece-me que tu estás aqui, perto de mim, que me falas
baixinho, como tuas santas te falavam. Suspeito tam-
bem como tu; porque não posso renegar as minhas
vozes intimas; estremeço ás vezes como tu estremecias
na tua prisão de Ruão. Mas a tua meiga voz me confor-
ta, me consola e me anima dizendo-me que pairas
agora sobre a nossa querida França, como um anjo
protector. Não, tu não consentirás que ella morra suf-
focada pelas garras do genio funesto que condemnou a
tua carne virginal ás torturas da fogueira. O céo, eu
creio, te enviou entre nós, como um anjo do bom soccor-
ro, mas tambem como um penhor de um favor maior.
Os tempos se approximam, e si a terra da Judéa teve o
privilegio sem exemplo de estremecer sob os passos
do Redemptor, a terra dos cavalleiros, eu o espero,
ouvirá brevemente, para repetir a todas as nações, o
Verbo dos "mensageiros divinos” que estão preparando a
ascensão dos mundos.” (Padre V. Marchai — "O Espi-
rito Consolador", 2.ª edição, Empreza Typographica
Editora e Livraria "O Pensamento”, Rua Rodrigo
Silva, 40 — S. Paulo)
*
* *
O prefacio da 1.ª edição desse livro, escripto na
França, traz a data de 1878, o que significa: foi escripto
31 annos antes do decreto do Vaticano, declarando
beatificada a donzella d Orléans, ha seculos queimada
viva, depois que o mesmo Vaticano a declarou feiticei-
ra e heretica. A proposito dessa beatificação, lemos
algumas palavras do nosso illustre patricio dr. Leal
de Souza, o brilhante literato e inspirado poeta, com-
panheiro inseparavel de Bilac:
— 347 —
"Ora, irmãos meus, a santificação (decretada pelo
Vaticano) é um acto meramente ecclesiastico e exclu-
sivamente humano, em que se apassiva a soberania
divina, permittindo monstruosas iniquidades, seculares e
até perpetuas. Vejamos.
Condemnada como herege por um tribunal de
bispos, Joanna d'Arc foi queimada viva. Dobrados
seculos sobre as labaredas que a consumiram, a Egreja,
ao termo trabalhoso de longos inqueritos e pesquizas,
reconheceu que não soube distinguir entre uma santa e
uma peccadora, e confessou que martyrizára a santa,
suppondo castigar uma heretica. Reparando tardiamen-
te o seu erro, collocou lhe uma aureola á cabeça e uma
espada á cinta, ergueu-a num altar, e mandou adoral-a.
Mas, perguntemos, nos extensos seculos decorridos
entre o martyrio e a santificação, onde esteve a alma
de Joanna? No Paraizo? Não, que o Paraizo não é
lugar de hereticos, e Joanna foi officialmente queimada,
pela Egreja, como heretica. Esteve, pois, no inferno,
ou no purgatorio.
"E Deus — a summa bondade e a summa justiça
─ só porque os bispos erraram, consentiu que, por
seculos, uma santa padecesse no inferno ou penasse
no purgatorio, ou então, sendo a summa sapiencia,
precisou que se fizesse um inquerito na terra, para saber
que havia uma santa abandonada ás furias infernaes!
Absurdo! Blasphemia!
"Outro exemplo. Quando, pela força victoriosa das
armas e pela vontade enthusiasta do povo francez,
Napoleão Bonaparte ascendeu ao throno imperial, des-
cobriram os seus aulicos, entre os seus ancestraes, um
pobre clerigo fallecido na obscuridade, e, dispondo-se a
santifical-o, a Egreja iniciou o inquerito basilar da
canonisação. Solicitou-se ao monarcha sem nobreza de
sangue os emolumentos para a marcha do processo
canonico, e, negando-os, o guerreiro coroado explicou:
— 348 —
"Si descobrem um santo entre os meus parentes, pódem
roubar-me as glorias, attribuindo-lhe a fundaçâo da minha dynastia". O processo parou, e Deus, na sua bondade e
na sua justiça, em homenagem ao orgulho despotico
de um soldado, permittiu que se deixasse um santo
apagado no silencio e no olvido, sem resplendor e sem
culto! Absurdo! Absurdo!
"Assim, catholicamente, a Egreja é quem faz o
santo, sem intervenção de Deus, avisando o céo e a
terra: "Desta data em deante, Pedro, ou Paulo, é
santo." “Segundo o Espiritismo, os Espiritos superio-
res, que correspondem aos santos, não attingem ao
seu alto gráo de superioridade mediante inquerito ou
concessão de contingentes criaturas terrenas, mas pela
força natural do seu aperfeiçoamento, e a sua hierarchia
independe do nosso reconhecimento, sendo elles pro-
prios, com a graça paternal de Deus, que nos revelam a
sua elevação, sem que se declarem santos ou illumina-
dos." (De uma Conferencia feita pelo dr. Leal de Souza,
outr'ora atheu — 1924).
Agora, tres perguntinhas, por nossa conta. Fa-
zemol-as, de accôrdo com os passos dados pela Egreja.
Não vão essas perguntas além do que o raciocínio nos
impõe. E, si a razão nos foi dada pelo Creador, é para
que façamos uso della, assim como fazemos uso das
outras faculdades concedidas pelo mesmo Creador e
Pae de todos os homens. Ao demais, “quem usa de
um direito não causa damno a ninguem”, assim dizem
os nossos magistrados porque assim lhes diz a razão...
e tambem o Direito Civil.
A Egreja Catholica apresenta-se ao mundo como "a
depositaria de toda verdade”. Como dispenseira, pois
dessa graça, julga-se infallivel em todos os seus actos.
Pois bem. No exercicio do direito conferido pela infal-
libilidade, submetteu a rigoroso julgamento essa joven
franceza, accusando-a como feiticeira e associada do
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diabo. Mandou-a para o inferno, e os que alli vão ter
nunca jamais poderão sair. Sabemos que os demonios e
as almas que lhes cáem ás garras, não recebem os fa-
vores da graça, nem por essas entidades se rézam mis-
sas. A donzella foi mandada para o inferno, porque
alli é a morada eterna do diabo e dos feiticeiros e hereti-
cos.
A 18 de Abril de 1909, a mesma Egreja, fazendo
uma revisão do processo que condemnou a joven fran-
ceza, descobriu nelle erros gravissimos, através dos
quaes era clara, claríssima a innocencia da grande he-
roina.
1.ª Pergunta. Si a alma de Joanna estava no
inferno, foi isso com pleno consentimento de Deus,
que está sempre de accôrdo com o Vaticano. Como
admittir uma excepção, permittindo-se-lhe a sahida,
de um salto, para o céo?
2.ª Pergunta. Verificado o erro gravissimo nesse
processo, não seria o caso de a Egreja fazer o mesmo,
com referencia aos processos identicos, pelos quaes
foram, pela inquisição, queimados e torturados pela
roda, muitos milhões de feiticeiros e hereticos?
3.ª Pergunta. Em face da infallibilidade da Egreja,
perguntamos, quando procedeu ella de accôrdo com a
verdade e a justiça: em 30 de Maio de 1431 ou em 18
de Abril de 1909?
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