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Rostos do Protestantismo Latino Americano - José Miguez Bonino
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~Escola .Superior deTeologia
,
· Rostos do. Protestantismo
.~ Latino-Americanoo
~ JosÉ MiGUEL BONiNcr.-~
José Míguez Bonino
Rostos do protestantismolatino-americano
~'• ~E5cola
. .,/1Superior de~... Teologia
2003
Traduzído do original Rastros deI protestantismo lattnoemertceno.publicado pela editora Nueva Creación, Buenos Aires. fílíal de WilliamB. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Míchígan, EUA. ©1995 ISEDET.
Direitos em língua portuguesa reservados à
Editora Sinodal 2003Rua Amadeo Rossi. 46793030-220 São Leopoldo - RS'TeI.: (51) 590-2366Fax: (51) 590-2664E-mail: [email protected] page: www.editorasinodal.com.br
Capa: Editora Sinodal
Traducão: Luís M. Sander
Revisão: Letícia Schach
Coordenação editorial: Luís M. Sander
Série: 'Teologia na América Latina
Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações 'Ieolôgicas/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Thologia (IEPG)da Escola Superior de Thologia (EST) da Igreja Evangélica deConfissão Luterana no Brasil (IECLB).
CIP - Brasil Catalogação na PublicaçãoBibliotecária responsável: Cristina 'Iroller CRB 10/1430
B715r BONINO. José MíguezRostos do Protestantismo Latino-Americano / José Mí
guez Bonina; Tradução Luís Marcos Sander - São Leopoldo. RS: Sínodal, 2002.
156 p.
ISBN 85-233-0694-3
1. Luteranismo 2. Protestantismo 3. América Latina I. Título.
CDU -284CDD-284
Índice para catálogo sistemático1. Luteranismo - América Latina 2842. Protestantismo - América Latina 284
Índice
Prefácio................................................................................ 5Capítulo 1O rosto liberal do protestantismo latino-americano............ 9
1. Existe essa relação e que importância tem? 102. Que projeto liberal? 133. Renunciar à herança liberal? 22
Capítulo 2O rosto evangélico do protestantismo latino-americano..... 31
1. Um protestantismo evangélico 312. Crescimento e diversificação 413. Sombras e luzes do "evangélico" 46
Capítulo 3O rosto pentecostal do protestantismo latíno-amerícano ... 53
1. O que representa o pentecostalismo dentro doprotestantismo latino-americano?.............................. 55
2. A teologia do pentecostalismo 593. Uma teologia pentecostallatino-americana?.............. 62
Capítulo 4Um "rosto étnico" do protestantismo latino-americano? 75
1. Como aproximar-nos do tema? 762. Protestantismo de missão e protestantismo étnico..... 793. Nação, etnia e missão 91
Capítulo 5Em busca de coeréncia teológica: a trindade como critériohermenêutico de uma teologia prostestante latino-americana 97
1. O futuro do protestantismo....... 972. O que significa a trindade como critério hermenêutico? 1013. Rumo a uma crístología trinitária.............................. 106
Capítulo 6Em busca da unidade: a missão como princípio materialde uma teologia protestante latino-americana.................. 115
1. A ambigüidade da defíníção missionária. 1172. Por que uma míssíología trinitária? 1223. Missão e evangelização............................................... 126
Notas 135
Prefácio
O inesperado convite para apresentar as conferências daCátedra Camahan em 1993 foi a tentação da qual nasceu
este livro. Não me pediram nem sugeriram um tema, mas sesupunha que tivesse algo a ver com "algum tema teológico deseu interesse, no qual esteja trabalhando", como se costumadizer em cartas desse tipo. O tema que finalmente defini - soba pressão de divulgá-lo - é de meu interesse. Para ser maisexato: é quase uma obsessão. Porém não é um tema no qualeu tenha trabalhado profunda e sistematicamente. Ademais,ele se move entre a história da igreja, a história da teologia, ateologia sistemática e a interpretação social. Esta imprecisãome liberta de aderir a uma metodologia estrita, mas me expõefortemente à improvisação e à superficialidade. Não obstante,a paixão venceu a sensatez e assim nasceram as conferênciase o livro.
Até começar a embaraçar-me no caminho, na busca dosfios do tema, na necessidade de envolver-me com temas e histórias que não conhecia, não me perguntei que espírito maléfico me haveria tentado. Não sou dado à introspecção - talvez,por temor do que pudesse vir a encontrar -, mas cheguei àconclusão de que duas interrogações são provavelmente asresponsáveis pela escolha do tema. E ambas são vergonhosamente subjetivas. A primeira é a necessidade, que na realidadenunca havia sentido explicitamente, de tomar clara para mimmesmo minha identidade confessional e doutrinal. E aqui tiveuma surpresa. Já fui catalogado diversamente como conservador, revolucionário, barthiano, liberal, catolizante, moderado,liberacionista. É provável que tudo isto esteja certo. Não sou euquem tem de se pronunciar a respeito. Porém, se tento definirme em meu foro íntimo, o que "sai de dentro de mim" é quesou evangélico. Nesse solo parecem haver-se afundado, ao largo de mais de 70 anos, as raizes de minha vida religiosa e deminha militãncia eclesiástica. Dessa fonte parecem haver brotado as alegrias e os conflitos, as satisfações e as frustraçõesque se foram tecendo ao longo do tempo. Aí brotaram as amizades mais profundas e aí se gestaram distanciamentos dolorosos; aí descansam as memórias dos mortos queridos e a
6 Rostos do protestantismo latino-americano
esperança das gerações que vi nascer e crescer. Se verdadeiramente sou evangélico ou não, tampouco compete a mim dizêlo. Nem me preocupa que outros o afirmem ou neguem. O quesou de verdade compete à graça de Deus. Mas pelo menos issoé o que eu sempre quis ser.
Mas as coisas não são tão simples e daqui parte a segunda interrogação. Que significa ser evangélico? E, ainda porcima, evangélico latino-americano? E ser evangélico latino-americano hoje? Nada disso é tão claro assim. Por um lado, haveriaque buscá-lo em nossas histórias: de onde viemos? Algumasdessas histórias - por exemplo, as do protestantismo clássicoou as do catolicismo sobre cujo pano de fundo temos definidonossos perfis - estudei com certo cuidado. Outras - particularmente as trajetórias espirituais, teológicas e sociais do mundo evangélico anglo-saxão - conheço só em traços muito gerais (e este trabalho me impôs a feliz obrigação de aprenderalgo mais delas). Ainda outras - as de nossas igrejas e movimentos religiosos evangélicos latino-americanos - ainda nãoestão escritas, mas vão sendo perfiladas nos trabalhos de umasérie de jovens historiadores. E a teologia dos evangélicos latino-americanos? O território é mais inexplorado ainda. Há conferências, livros, sermões, revistas nas quais os notáveis destahistória escrevem. São uma rica pedreira, apenas aberta. Mascomo viviam teologicamente sua fé os "simples crentes"? Ondeestão as histórias de vida, as expressões espontâneas diante damorte ou do amor, ou mesmo da vida cotidiana? Como descobrir as "mentalidades"? Thdo isto está suficientemente fluidopara que alguém se aventure a fazer conjecturas, propor hipóteses ou imaginar cenários sem a possibilidade (e, portanto,sem a responsabilidade) de sustentá-las cientificamente. O queofereço não é mais do que isto.
Na América Latina "protestante" e "evangélico" (ou "evangelista") têm sido sinônimos. Há cerca de 40 anos, Adam F.Sosa questionava essa identificação e sustentava que nossasigrejas eram, na verdade, "evangélicas" e não, protestantes.Minha reação a essa tese foi negativa e procurei demonstrar afirme raiz protestante - "herdeiros da Reforma de Lutero eCalvino" - das igrejas evangélicas latino-americanas. Aindahoje sustento isso, porém é preciso admitir que, no caso damaioria de nossas igrejas, a herança tem sido "re-monetarízada" em outras terras e com outros moldes e que a ignorânciadesses processos de mediação foi um grave obstáculo para queos evangélicos nos entendêssemos a nós mesmos como protes-
Prefácio 7
tantes. Este livro é, em parte, uma tentativa de refletir sobreessa "transferência".
Neste ponto, precisamente, se inscreve minha maior frustração durante essas conferências. Decidi circunscrever o tema a "três rostos" do protestantismo latino-americano - oliberal, o evangelical e o pentecostal-, excluindo conscientemente o que tem sido chamado de "protestantismo de imigração" ou "igrejas de transplante" ou "igrejas étnicas". Minhasrazões, que eu acreditava serem suficientes, eram, em parte,que este tema requereria um enfoque e uma metodologia diferentes, mas principalmente que eu carecia - e ainda careço dos conhecimentos históricos e que não há suficiente trabalhode pesquisa do tema para que se possa falar com certa idoneidade sobre ele. làmpouco me ocorria que esta exclusão fosseuma negação da importância e significado dessas igrejas. Emuito menos, que não as considerasse uma autêntica manifestação do protestantismo latino-americano. A reação francamente indignada de muitos pastores destas igrejas - queridoscompanheiros de estudo, amigos pessoais com os quais falamos com inteira franqueza, colegas no ministério e na docênciacom os quais trabalhamos em toda sorte de tarefas comunstodos os dias - me demonstrou que eu não sabia o que haviafeito. Minha decisão, que eu acreditava ser simplesmente funcional e "econõmíca'', não podia ser entendida de outra maneira do que como uma tomada de posição. E, mais profundamente, demonstrava que, ainda que eu sentisse desde as maiores profundezas de meu coração e de minha experiência que"pertencemos juntos" como cristãos e igrejas evangélicas, nãosabia dar conta desse sentimento e dessa experiência em termos históricos e teológicos. Por isso, decidi incluir um novocapítulo, não porque haja encontrado uma resposta, e simporque não podemos nos conformar sem tentá-lo: será umcapítulo de interrogações mútuas, algumas talvez irritantes, dequestões abertas, possivelmente de algumas propostas. Tudo,porém, presidido - ao menos de minha parte - pela convicçãode que Jesus Cristo nos constituiu já num sujeito de fé singular e seu Espírito tomou isso visível no caminho e nas tarefasque crescentemente temos feito e fazemos em comum.
A imagem evocada pelo titulo que escolhi é ambígua: são"rostos" distintos porque se trata de diferentes sujeitos? Ousão "máscaras" de um sujeito único e, neste caso, qual é orosto que se oculta atrás dessas máscaras? É a busca de umaresposta que me levou a procurar uma chave hermenêutica
8 Rostos do protestantismo latino-americano
que permita reconhecer a identidade única, a diversidade reale a convivência dessa identidade em cada uma das manifestações desse sujeito que é "o protestantismo latino-americano".Este é o sentido da exploração teológica dos dois últimos capítulos. A analogia trinitária não deve ser buscada, em todo caso,de forma direta ou atributiva - isso seria o pior erro -, masna unidade de intenção, de propósito, na comunhão de amor.O que isto significa em termos das formas e expressões doutrinais, institucionais, missionárias, testemunhais, cultuais- dessa unicidade, é uma tarefa que os evangélicos latinoamericanos ainda temos pela frente.
Duas observações para terminar esta apresentação e apologia pro liber meo. Ao reler o texto comprovo que às vezes otom passa da argumentação e da análise para a retórica e aexortação. Não me desculpo por isso. De que valem argumentos e análises se não procuram convencer, se não estão aserviço de uma paixão? Mas não quero ser interpretado comoquem pretende ter respostas definitivas, e sim como alguémque convida a unir-se na reflexão e na paixão por esta promessa e esta dor que é o protestantismo latino-americano. Foitambém a serviço desse convite que me permiti uma dose talvez exagerada de notas como referências e perguntas abertaspara um diálogo que acredito que nosso protestantismo necessita.
É de bom gosto incluir a esta altura do prefácio os agradecimentos. Isso resultaria num elenco interminável de colegas, amigos, irmãos e irmãs na fé por todo o nosso continentee em outras partes. Não quero deixar no anonimato os trêsinterlocutores e amigos que me acompanharam nestas conferências e nos seminários das manhãs, a professora EIsa 1à.meze os professores Antônio Gouvêa Mendonça e Bernardo Campos, cujos comentários, informações e críticas me ajudaram aaprofundar, ampliar e corrigir o texto inicial: sem dúvida, muitos traços do esquema inicial dos "rostos" ganharam em precisão por sua ajuda. E seguramente, a meus três filhos, que mefornecem, amiúde à mesa familiar quando os netos o permitem, as informações e referências históricas, sociológicas e bíblicas que eu não poderia reunir por mim mesmo. Os 48 emque desfrutei da paciência e da impaciência de Noemí, minhaesposa, é algo que está além de todo reconhecimento.
José Míguez BoninoBuenos Aires, março de 1995
Capítulo 1
O rosto liberal do protestantismolatino-americano
Cristianismo protestante na América Latina? Por que ecomo? Comecemos com algumas opiniões e juízos:
[O protestantismo é] uma forma do capitalismo norte-americano, elemento conquistador, amigo do capitalista e inimigo dooperário, que se propôs, mediante suas escolas, seus templos eseus esportes, a americanização do povo. 1
O protestantismo latino-americano, portanto, aqui se estabelece no bojo de uma invasão estrangeira e traz as marcas dosectarismo e do individualismo que o caracterizavam. Resultou,pois, numa aculturação que nada tem a ver com nossa origeme formação histórica, e num subproduto das conquistas políticas, econômicas e culturais dos séculos passados.ê
Creio firmemente que estender a Reforma ao mundo latinoamericano de uma maneira inteligente e vigorosa é provocar aslutas de consciência nas quais são forjados e temperados osgrandes caracteres tão necessários para o engrandecimento e asalvação das repúblicas e é levar a ele o sopro vivificador dasliberdades de tal modo conquistadas pelos povos do norte.ê
o controversista católico, o protestante "arrependido" dadécada de 1960 e o entusiasta intelectual evangélico de 1916têm avaliações muito diferentes. Parecem coincidir, porém, noreconhecimento da existência de uma relação histórica e ideológica entre o protestantismo latino-americano, o projeto liberal modernizador de setores politicos latino-americanos e ainfluência norte-americana. Qualquer observador isento de preconceitos terá de reconhecer nessa relação ao menos uma verossimilhança cronológica. Com algumas especificações queindicarei oportunamente, a segunda metade do século passadoé o lugar histórico onde convergem na América Latina essestrês processos: o projeto liberal, o predorrúnio da presença dosEstados Unidos e a entrada do protestantismo. Que relação osliga, quais são as caracteristicas de cada um desses fatores,
10 Rostos do protestantismo latino-americano
como avaliar histórica, ideológica e teologicamente esse período: estas são as perguntas que têm sido objeto de apaixonadasdiscussões e que dizem respeito à autoconsciência e à identidade do protestantismo latino-americano. Minha contribuiçãoa essa discussão se limita, neste contexto, a colocar três perguntas: 1) Se existe uma relação, que importãncia históricatem? 2) Onde reside a "afinidade" que teria tornado possívelessa relação? 3) Como respondemos os protestantes a esse"suposto" passado histórico em função de nossa missão aqui eagora?
1. Existe essa relação e que importância tem?
Não vamos nos distrair com a análise do que Jean-PierreBastian qualifica - e descarta- como a "hipótese conspíratíva'",Segundo ela (como o manifesta nossa primeira citação), asmissões protestantes não teriam sido outra coisa do que "aponta de lança", "o acompanhamento ideológico" ou "a legitimação religiosa" da penetração econômica, política e culturaldos Estados Unidos na América Latina: em todo caso, uminstrumento consciente e deliberado do projeto neocolonial.Essa é uma teoria que foi esgrimida amiúde por polemistascatôlicos romanos, às vezes em aliança com os nacionalismosde direita, e depois por alguns marxistas, e que perturbou aconsciência de não poucos protestantes "progressistas" na década de 1960, levando às vezes a repúdios e "confissões" prematuros.
Excluindo as coincidências no tempo, muito poucas evidências respaldam tal teoria. Seria necessário, inclusive, precisar os argumentos de datas, já que o projeto imperialista dosEstados Unidos sô toma corpo na América Latina após a guerra de secessão naquele país (1860), quando a presença protestante já tinha aqui mais de duas décadas. Em todo caso, éantes à influência e pressão britãnicas desde as guerras deindependência que se deveria atribuir (para o bem ou para omal) a abertura do panorama religioso no continente.
Por outro lado, é muito difícil fazer generalizações. Nãoobstante os elementos comuns que permitem falar de "umahistôria da América Latina", deve-se levar em conta a existência de uma grande diversidade entre as várias nações e regiõesem termos de cronologia, na orientação que tomaram os paísesindependentes, nas formas de sua incorporação ao processo
o rosto liberal 11
neocolonial e nas características e tempos de entrada do protestantismo.
Muito diferente - e, em minha opinião, muito melhorfundamentada - é a "hipótese associativa", que o próprio Bastian formula nestes termos:
Portanto, a razão de ser das sociedades protestantes na AméricaLatina durante essas décadas tinha menos a ver com o "imperialismo norte-americano" do que com as lutas políticas e sociais internas ao continente e que se resumia no confronto entreuma cultura política autoritária e essas minorias que buscavamfundar uma modernidade burguesa baseada no indivíduo redimido de sua origem de casta e, portanto, igualado numa democracia participativa e representantiva, esperando com isso pôrfim aos privilégios plurísseculares."
Certamente esta tese não impede Bastian de reconhecerque "o surgimento dos protestantismos de maneira sistemáticaa partir da segunda metade do século 19 encontra sua explicação na expansão do modelo de produção capitalista, em escalacontínental'", nem que, particularmente por volta de 1916, omovimento missionário adota o lema do "panamericanismo" eque, assim, "se abriu um caminho dificil" pelo qual "o protestantismo se misturava com a penetração ideológica norte-americana no continente"?
O valor desta hipótese reside no fato de reconhecer que aentrada do protestantismo se explica fundamentalmente poruma situação endógena à América Latina (a luta por uma modernização liberal) e que aí o protestantismo se alia com setores latino-americanos que impulsionam tal projeto, principalmente (na tese de Bastian) com as "associações libertárias" dedistintos tipos (lojas maçónicas, associações operárias, gruposde intelectuais, sociedades parapoliticas).
Se aceitamos em princípio essa hipótese (mais tarde faremos algumas observações críticas), cabe fazer várias perguntas. Em primeiro lugar, quem são os protestantes que assumem essa "associação"? Dos estudos que têm sido realizadosultimamente parece depreender-se que se trata, ao menos atéo fim do século 19 - que é o período mais importante para estetema - de alguns missionários vinculados a igrejas mais "liberais" (metodistas, presbiterianos e alguns batistas) e a alguns"intelectuais" (alguns dos quais são ex-sacerdotes dissidentes)que ingressaram cedo no protestantismo. O mais curioso é que- como veremos - esses missionários têm uma formação
12 Rostos do protestantismo latino-americano
espiritual e teológica conservadora e pietista que combina malcom a orientação secularista de seus "sócios" latino-americanos mais radicalizados. Cabe supor que a "associação" tenhaocorrido com base numa coincidência em afirmar uma sociedade democrática - para a qual o modelo norte-americanoatraía a todos - e, provavelmente mais ainda, na necessidademissionária de conseguir uma abertura para a liberdade deconsciência e de culto. Os dirigentes latino-americanos, porsua vez, encontravam nessa aliança um apoio para sua lutacontra a oposição clerical às reformas que pretendiam introduzir. Não me parece exagerado suspeitar que tenhamos aí maisuma convergência de interesses do que uma semelhança deidéias. Voltaremos a este tema no próximo capítulo. Em todocaso, trata-se das elites de um e de outro lado, enquanto que,no que diz respeito aos novos conversos que entravam no protestantismo oriundos de setores margínaís da sociedade (à parte das repercussões no àmbito da liberdade religiosa), a "associação" teve muito pouca importância.
Impõe-se, todavia, uma segunda consideração. Não encontrei estatísticas da população protestante na América Latina por volta de 1840, mas as referências e informações disponíveis nos fazem pensar em poucas dezenas de milhares, dosquais a maíoria eram estrangeiros ou produto da escassíssimaobra missionária, quase reduzida à colportagem e a "tentativas" de missão (Argentina, Brasil) muitas vezes frustradas. Omaior impacto no séc. 19 ocorre na segunda metade do século,com as condições abertas pelos triunfos dos setores liberais.Ainda assim, as estatísticas de 1903 mantêm-se abaixo de 120mil pessoas'', Costuma-se dizer que a presença protestanteteve um peso muito maior do que seu número. Pode ser queassim seja. Porém é curioso que isso só seja dito pelos protestantes. Uma consulta aos trabalhos históricos dos autores "seculares" mais reconhecidos (tanto latino-americanos quantode fala inglesa) mostra uma ausência quase total de referêndas à presença protestante. Mesmo aqueles, como HalperinDonghí ou o norte-americano Burns, que dedicam seções àdiscussão da problemática religiosa da época e à luta pelatolerãncía religiosa, não atribuem ao protestantismo nenhumpapel como "sujeito" desses processos. É lapidar a conclusãode John Iynch: "Não obstante, depois de um século de crescimento, o protestantismo era um fenômeno raro e exótico naAmérica Latina. Na luta pelas consciências (minds), a fé católica tinha um rival mais forte [o positivismo)."9 Acaso vamos
o rosto liberal 13
querer atribuir tal vazio apenas a "preconceitos" compartilhados por autores tão diversos? Não seria o caso, antes, que,desafiados pela necessidade de "inserir-se na história" e dereivindicar sua legitimidade latino-americana, alguns dos primeiros historiadores ou intelectuais protestantes "inflamos"participações ou ações limitadas e circunstanciais de protestantes ou o reconhecimento de latino-americanos notáveis [Sarmiento, Alberdi, Juárez, Bel1o, etc.), amiúde em citações seletivas e descontextualizadas na totalidade da obra desses autores, e as transformamos em chave hermenêutica para entender uma história na qual nossa presença naverdade foimarginal?
Ironicamente, essa reivindicação voltaria como condenação frente à crise do modelo ao qual se vinculava e, assim,desencadearia sentimentos de mal-estar, culpa e auto-rejeiçãonuma geração posterior.
2. Que projeto liberal?
A historiografia protestante mais recente coincide em situar no Congresso Evangélico do Panamá (1916) um momentodecisivo na autoconsciência do protestantismo latino-americano. Com duas limitações, concordo com essa interpretação.Em primeiro lugar, trata-se preponderantemente de um congresso "missionário"; neste sentido, serve para delinear a concepção e estratégia da empresa missionária, que não deve serconfundida com a vida cotidiana, a piedade e a prática dascongregações evangélicas no continente. Em segundo lugar,trata-se de um congresso realizado sob a hegemonia das denominações históricas "liberais" (utilizo este termo aqui em suaacepção norte-americana de "progressista" ou "avançado"), influenciadas em diversos graus pela teologia liberal e do evangelho social dos Estados Unidos: metodistas, presbiterianos,discípulos de Cristo, Convenção Batista Americana (do nortedos Estados Unidos) e, mais ainda, pelos setores missionários"liberais" dessas denominações. Não estão presentes, ou nãotêm influência decisiva, as missões britànicas ou missões como a Convenção Batista do Sul, a Aliança Cristã e Missionária,a Igreja do Nazareno ou os Irmãos de Plymouth, que já estavam presentes na América Latina e desempenhariam um papelmuito importante no período seguinte.
Mesmo assim, o Congresso do Panamá é importante paranosso tema: condensa uma reflexão das missões norte-amerí-
14 Rostos do protestantismo latino-americano
canas que, desde a Conferência Missionária de Edimburgo de1910 (da qual foram marginalizadas as missões na AméricaLatina), vinha se desenvolvendo e adquirindo forma orgânica.E lança uma série de iniciativas, particularmente o Comitê deCooperação para a América Latina (CCLA) como organismopermanente de coordenação, com os programas de consulta ede publicações, que frutificam em conselhos ou federações regionais e diversas formas de cooperação. Por tudo isso convémque nos detenhamos um pouco para situar o Congresso doPanamá de 1916 sobre seu pano de fundo histórico, eclesial eteológico.
1. Estados Unidos e América Latina desde meados do séc.19. O presidente Monroe havia definido em 1823 sua doutrina,resumida na expressão "a América para os americanos", depois de diversas vacilações e supostamente como proteção contra o risco de que a Europa consolidada da restauração de1814 pretendesse recuperar posições na América Latina. Seguramente, entretanto, a doutrina tinha um significado mais amplo: a reivindicação da América Latina como um espaço desegurança, controle político e hegemonia comercial dos Estados Unidos. A isso se deve, sem dúvida, o fato de haver rejeitado a iniciativa da Grã-Bretanha de fazer essa declaração protetora em conjunto. As conseqüências não se fizeram sentir deimediato: tanto a concentração na conquista do oeste quantoas crises internas e a preocupação em consolidar o controleterritorial e "a conquista dos mares" (Mahan) ocupavam o primeiro plano. Por volta de meados do século, porém, o velholema do "destino manifesto"lO é interpretado como critério darelação com os vizinhos do sul. Negociada a anexação da Flórida e das Luisianas, o controle do Caribe (particularmenteCuba e Porto Rico) aparece como a meta imediata. E as estratégias para incorporar o 'Iexas, o Novo México e a baixa Califórnia - já explícitas desde a década de 1820 - vão desde aproposta de compra até a inserção da população e, finalmente,a guerra em 1845.
A penetração econômica é mais lenta, e, até fins do século,a Grã-Bretanha mantém a hegemonia econômica e comercialna maior parte dos paises da América Latina. As mudanças,contudo, iam favorecendo os Estados Unidos. E, ao fmal doperíodo colonial, o modelo mercantilista perdia altura na América Latina. Por algum tempo as revoluções de emancipaçãosopraram em seu favor ao branquear e ampliar as relações
o rosto liberal 15
mercantis diversificadas que já existiam, fundamentalmentecom a Grã-Bretanha e a França. As elites crioulas que predominaram nas primeiras décadas do século só tentavam transferir em beneficio próprio o monopólio comercial, o patronatoreligioso e a estrutura social coloniais. Durante certo tempoconseguiram fazê-lo sem maiores dificuldades. Em breve, porém, tomou-se evidente que o modelo mercantil estava se esgotando e que era necessário avançar rumo a um modelo produtivo. Isso implicava incorporar uma nova força de trabalhoao sistema econômico, o que significava estimular a imigraçãoe a educação da própria população. Mas tudo isso só podia virde mãos dadas com uma transformação da mentalidade, comnovos hábitos e valores: em suma, com a entrada na "modernidade" ilustrada11. E ai topam também com a resistência deum Vaticano católico que assumiu a bandeira da luta contra amodernidade liberal e que, pouco a pouco, recupera o controleda desorganizada igreja latino-americana que ficara à derivaapós as lutas pela independência. A nova elite que vai assumindo o poder - em longas e complexas lutas - a partir demeados do séc. 19 representa essa nova visão. Seus sonhosdemocráticos e progressistas e suas necessidades econômicasvão aproximando-a do modelo norte-americano, e, embora ainda tenha reservas semelhantes às de seus antecessores, vai"gravitando naturalmente" nessa direção, como George Adamsjá o predizia em 1823 12 • A absorção econômica da AméricaCentral ocorre já nas últimas décadas do século; a hegemoniano Brasil e nos paises do norte da América do Sul cresce apartir de fins do século, e o resto, só depois da Grande Guerra(1914-18).
O rosto "conquistador" da política "panamerícana" dos Estados Unidos desperta, como sabemos, reações distintas naselites governantes da América Latina. Alguns governos queremconservar relações "européias" como freio de contenção; outrospropõem uma espécie de "panamerícanísmo" bolivariano. Equase todos se manifestam - sinceramente ou não - contrários a intervenções armadas. Por volta da década de 1880 osEstados Unidos começam a redefinir sua política em termos de"panamertcanísmo'' e em 1888 convocam a Washington todosos paises latino-americanos para participar da Primeira Conferência Internacional de Estados Americanos. GordonConnell-Smith resume o problema de interpretação nas seguintes frases lapidares:
'Iem sido um mito cuidadosamente cultivado que o sistema in-
16 Rostos do protestantismo latino-americano
teramencano. estabelecido de toda forma como resultado daconferência de Washington, se basearta nos ideais de SimónBolivar, e que Bolivar seria o pai do panamericanismo (...) 1àlmito (0.0) não se baseia na realidade; antes, o mito cría suaprópría realidade. 13
Diferente é o "panamerícanísmo" que campeou nos congressos continentais do Panamá (1825), de Lima (1847), deSantiago do Chile (1856) e mais uma vez de Lima (1865) onde os Estados Unidos estiveram ausentes -, que se entenderam justamente como tentativas de criar defesas tanto frente ao avanço norte-americano quanto ante a ameaça da Europa. A tensão entre essas duas concepções se evidencia na conferéncia de 1888: a oposição de vários governos (marcadamente do governo argentino) frustrou várias propostas norte-americanas (p. ex., a de uma união alfandegária), e o veto dosEstados Unidos, por sua vez, rejeitou resoluções contrárias ao"direito de conquista" ou à "cláusula Calvo", que teria impedido estrangeiros de apelar a outras leis que as que estivessemem vigor no país onde moravam (00') e faziam negócios. A conduta posterior dos Estados Unidos sob Theodore Roosevelt(1901-1909), William 1àft (1909-1913) e inclusive WoodrowWilson (1913-1921) não fez senão confírmar os temores latinoamericanos. Esta última referência é importante porque o "discurso" de Wilson tenta dar uma definição "liberal" do panamericanismo.
Neste hemísférío, o futuro será muito diferente do passado (...)Os estados latíno-amertcanos sofreram mais imposições [econômicas] (...) do que qualquer outro povo do mundo (...) Nada mecausa mais alegria do que pensar que em breve se emanciparãodessas condições e que devemos ser os prímeíros a contríbuírpara tal emancipação (o .•) Devemos mostrar-nos amistosos eentender seu interesse, esteja ele de acordo com o nosso ou não. 14
Mas quando o próprio Wilson destaca que, "como o comércionão conhece fronteiras, (o .. ) a bandeira desta nação deverá iratrás deles [dos comerciantes norte-americanos] para derrubaras portas das nações que não queiram se abrir" e, unindo aação à palavra, exerce pressão sobre a politica interna do México, incluindo intervenções armadas, e intervém no Caribe(República Dominicana, Nicarágua e Haiti) , entende-se a conclusão do historiador norte-americano van Alstyne que fala de"um forte cheiro de farisaísmo na diplomacia norte-americana"15•
2. Estamos assim em 1916. E na América Latina a inter-
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pretação "latino-americana" do Congresso (evangélico) do Panamá aparece escrita em português pelo distinto educador brasileiro Erasmo Braga e em espanhol pelo professor uruguaioEduardo Monteverde (os documentos oficiais estão só em inglês) sob o titulo Panamericanismo: aspecto religioso. Ingenuidade? Cumplicidade deliberada? Convicção genuína? Provavelmente tudo isso e, ao mesmo tempo, nada disso. Na medida(limitada) em que o protestantismo latino-americano desse periodo está formulado e representado pelo Congresso do Panamá, fica claro que trata-se de uma aliança explícita com "0
panamericanismo". Mas que panamericanismo? O do discursode Wilson ou o de suas ações? O da Conferência de Washington ou o dos "congressos continentais"? Está claro tambémque os líderes reunidos no Panamá vêem o futuro dos paíseslatino-americanos como um "projeto liberal". Mas que projetoliberal? Ao referir-se aos governos progressistas da segundametade do século 19, Halperin os distingue e divide em liberais(México, Rio da Prata, Uruguai), césaro-progressistas (Venezuela, Guatemala, América Central, Equador) e oligárquicos(Colõmbia, Peru, Chile), além do Brasíl-", É claro que a problemática neocolonial é entendida e assimilada de maneiras muito diversas. O que representa o Congresso do Panamá nessadiversidade?
Não posso me deter aqui num estudo detalhado da história, dos conteúdos e das conseqüências desse evento. Há umavasta bibliografia na qual se podem encontrar as diversastnterpretações'". É, além disso, creio eu, um fato ambíguo noqual se dão diferenças, divergências e contradições. Não obstante, se se toma a opinião das pessoas que evidentementeconduziram o processo preparatório e desempenharam um papel decisivo no desenvolvimento do congresso e na implementação de suas resoluções, é possível achar uma visão bastantehomogênea do protestantismo ilustrado que as inspira.
No que diz respeito ao "panamericanismo", quase não énecessário argumentar em favor da rejeição do "intervencionismo" armado. Na verdade, vários missionários já o haviam condenado explicitamente em relação com a guerra contra o México e as intervenções na América Central, e haviam denunciado os interesses econômicos ocultos atrás delas. Dez anos depois, uma missionária conservadora como Susan Strachan falava, nos conflitos da administração Coolídge com o governomexicano, do esforço "heróico" de Calles, que "merecia as oraçôes e a simpatia de todo cristão verdadeiro em sua luta gígan-
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tesca". E acrescentava: "Ele se defronta com dois inimigos insaciáveis, sendo um deles a igreja de Roma e o outro as empresas comerciais estrangeiras rivais que causaram os transtornos políticos do México durante as duas últimas décadas, "18
'Iudo isso, entretanto, é para eles uma excrescência de umarelação cultural, política e econômica que deve ser aberta, generosa e fecunda para ambas as "Américas", Uma das seçôesdo informe do Congresso do Panamá'? reconhece que "os ofensores foram agentes comerciais agressivos, o tipo de concessionários que praticam pilhagens, gerentes e industriais cheios dearrogância e insolência, turistas fanfarrôes, representantes diplomáticos e consulares malcriados e, ocasionalmente, missionários complacentes", Considera, contudo, que a maioria dopovo norte-americano não é assim, E o informe, citando oescritor Garcia Calderôn, convida a olhar, antes, "o espetáculodessa outra América, que desdenha o materialismo violento ea cobiça imoral dos homens prátícos'w. Por isso se insiste nanecessidade de um maior contato mútuo, de uma relação quedestrua os preconceitos e dissipe "os temores de que a novadoutrina [panamericanista] encerre o gérmen do predomínioda águia do norte'v'. Não obstante, não vacila em ver na abertura do Canal do Panamá ou na recém-inaugurada Estrada deFerro Panamericana fatos auspiciosos que se destacam comopenhor dessa nova relação e não parecem maculados pelo "materialismo violento" ou pela "cobiça",
Seria possivel multiplicar quase ad inlinitum as citaçõesque demonstram que, a partir dessa "ingenuidade", o trabalhodo CClA e de seus operadores na América Latina, pessoascomo Guy Inman, Stanley Rycroft e outros, coloca-se a serviçode uma relação crescente entre os Estados Unidos e a AméricaLatina, em nivel missionário, educacional, social e econômico,São precisamente a unidade e interconexão desses aspectos oque caracteriza a versão de panamericanismo que eles promovem, É evidente que as dimensões religiosa, educacional e social -especialmente de assistência - predominam sobre aeconômica, mas não se desligam dela, Só tentam "purificá-la"denunciando suas corrupções, que atribuem a defeitos moraisde alguns de seus agentes e não a razões estruturais implícitasno sistema ou na ideologia que a promove,
No protestantismo norte-americano nem todos compartilham dessa "ingenuidade", Num artigo publicado em 1929,Charles P, Miller, na época presidente da Federação MundialCristã de Estudantes, fala da "invasão americana [dos Estados
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Unidos) do mundo" e a vincula à nova "racionalidade" econômica que assume o controle da totalidade da vida da naçãonorte-americana. Duas breves citações resumem sua análise esua preocupação:
Seja qual for o futuro que está à nossa frente. o fato concreto éque a estrutura fundamental (framework] nacional neste momento é a da produção e do comércio. É a máquina da indústriae do comércio norte-americanos que nos dá a coesão nacional.O sistema e a técnica que essa máquina gerou são as forçasmais dinãmicas de nossa vida nacional. Numa medida da qualainda não tomamos consciência. essas forças estão mudandonossa mentalidade como indivíduos e nossos costumes comosociedade (...) Este é. em resumo. o quadro dos Estados Unidosvisto pelas nações que sentem o pleno impacto de sua invasãoeconômíca.ê-
A influência dessas idéias não se fará sentir no protestantismo latino-americano até duas ou três décadas mais tarde,mas o impacto do evangelho social. unido às preocupaçõesantiimperialistas introduzidas por socialistas e anarquistas nadiscussão política latino-americana. desperta em alguns líderes protestantes latino-americanos certos questionamentos daênfase "panamerícanísta" do CCIA. Voltaremos a este ponto naseção 3.
3. As incoerências. Segundo minha interpretação, as incoerências que se percebem no Panamá - e que se transformarão em contradições mais abertas em Montevidéu (1925) eHavana (1929) - provêm de duas fontes. A primeira é teológicae tem a ver com uma dupla influência na formação acadêmicae na orientação espiritual dos dirigentes. É verdade. como dizBastian, que muitos dos líderes missionários fizeram seus estudos nas universidades liberais da Nova Inglaterra (Harvard,Yale. Columbia) e ai absorveram elementos das ideologias liberais progressistas, que em parte interpretaram teologicamentecom o evangelho social que se insinuava em suas igrejas desdeo começo do século. Por outro lado. porém. o movimento missionário ao que se somam está fortemente marcado pelo "segundo despertar", com sua soteríología individualista e subjetiva: a pessoa de John R MoU, talvez a figura simbólica maisimportante em todo esse movimento, é a ilustração mais cabaldessa posição "conservadoramente progressista". Se a visãoliberal os leva a esboçar um modelo missionário socialmentecomprometido, a soteríología missionária os obriga a aplicar de
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imediato a surdina. A discussão surgida no Panamá em tomoao Informe da Comissão de Mensagem, e que levou a umacorreção do tom teológico ligeiramente liberal e progressista daproposta da Comissão, ilustra essa tensão, à qual aludiremostambém no próximo capítulos',
A segunda razão da incoerência surge da sobreposição dedois modelos democráticos debatidos na época entre os teóricos politicos norte-americanos. C. B. MacPherson os caracterizou muito bem ao distinguir as duas visões "liberais": "a democracia como proteção" e "a democracia como desenvolvimento".A primeira começa quando se dá por assentada uma sociedadecapitalista regida pelo mercado e, por conseguinte, por umcerto conceito de ser humano e de sociedade: o ser humanocomo "maxímízador de utilidades" é definido como o racionalmente mais eficiente, ou seja, o que obtém o maior ganho coma maior economia de esforço. A sociedade não é senão umasoma de indivíduos com interesses conflituosos, já que cadaum persegue essa "maxímízação'', inevitavelmente, em algumamedida, em detrimento dos outros. A formulação filosófica dessa visão foi o utilitarismo, expresso por Bentham como "o cálculo de felicidade", a maior felicidade do maior número. Como,porém, medir a felicidade? Visto que é necessária uma medidaquantitativa, o que aparece imediatamente é o dinheiro: "Odinheiro é o instrumento com o qual se mede a quantidade dedor ou de prazer" (Bentham). Qual poderia ser, pois, a funçãodo estado, das leis e do governo senão a proteção da "equanimidade" (fairness) desse processo social? Para tanto, devemassegurar o funcionamento livre e sem travas do mercado, eeste garantirá, na luta da competitividade, a subsistência, aabundância, a igualdade e a segurança. O governo é o "árbitro"que impede os "golpes baixos". O voto, secreto, universal efreqüente, é o instrumento suficiente que assegura que o estado cumpra esse papel (em principio, tanto Jeremy Benthamquanto James Mill pensavam num voto limitado ou qualificado, mas depois se convenceram de que os problemas que geraria tomavam preferível um voto universal).
Desde meados do século 19, entretanto - e isto é importante para nosso tema -, aparece uma nova visão democrática. A classe operária faz sentir seu peso, tanto pelo espetáculode sua miséria quanto pela força de seu protesto. John StuartMill articula sua crítica da seguinte maneira:
Confesso que não me alegra o ideal de vida sustentado pelas
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pessoas que crêem que o estado normal dos seres humanos sejao da luta para vencer as dificuldades: que os empurrões. cotoveladas e pisadelas no próximo sejam o destino mais desejávelpara a humanidade ou que não sejam senão meros sintomasdesagradáveis de uma das fases do progresso índustríal.ê"
Por conseguinte. uma nova geração de intelectuais - JohnStuart Mill, John Dewey, McIver - propõe uma concepçãodiferente. O humano é um ser que procura melhorar como sermoral e que não quer apenas acumular, mas desenvolver-se. Asociedade. por sua vez, é um processo em busca de maiorliberdade e igualdade. Por conseguinte. a meta é "o avanço dacomunidade no tocante ao intelecto, à virtude, atividade prática e eficácia" (Stuart Mill). A partir dessa posição, critica omodelo de seu pai (James Mill), mas não rejeita o capitalismo.Como avançar, então. rumo a uma sociedade diferente? A pergunta toma-se-lhe difícil: propõe qualificações do voto que assegurem uma melhor distribuição dos recursos, a criação decooperativas, os partidos políticos representativos. John Dewey dá uma contribuição decisiva: o caminho é a educação. Oobjetivo é "desenvolver uma geração melhor". Esta é a linhaque predomina no Panamá em 1916.
4. O projeto educacional missionário. Não é necessanauma grande perspicácia para perceber que é na educação. muito mais do que no nível político e social, que o protestantismomissionário liberal encontra uma possibilidade de integrar seusdiversos fios: isso corresponde a uma tradição protestante quepode ser remontada até a Reforma e que desempenhou umpapel fundante no protestantismo norte-americano: a ênfasena educação e na criação de escolas; oferece uma mediaçãoinobjetável para com o social sem obrigar a pronunciar-se sobre regimes políticos ou definições econômicas; permite reconciliar a ênfase "conversíonísta" com a preocupação ética e anoção liberal de um desenvolvimento pessoal - "uma educação que forma caráter" é uma frase que permeia os programaseducacionais protestantes em todo o continente - e ofereceum amplo campo de colaboração com as novas elites ilustradas da América Latina, obcecadas com a "redenção do povo"mediante a educação. As duas vertentes de aproximação aotema da educação que se esboçam no projeto missionário estão magnificamente ilustradas nas discussões registradas novolume 1 do informe do Panamá-", De um lado estão os queencaram a missão educacional como um caminho para a decí-
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são religiosa; do outro. os que esperam a conversão como umdesenvolvimento do crescimento "integral" do aluno em contato com a educação de uma escola evangélica. Uns e outros.porém. coincidem - ao menos nessa etapa da história do protestantismo no continente - em que aí se cumprem os diversos propósitos da "colaboração missionária" para a redençãodo povo e a construção de um novo nuturo para as naçõeslatino-americanas. Jether Pereira Ramalho resumiu muito bem- referindo-se ao Brasil- a inspiração do projeto educacionalprotestante em toda a América Latina:
A proposição central deste trabalho [sua pesquisa) é demonstrarque os princípios e as características da prática educativa introduzidas no Brasil. no final do século passado e nas primeirasdécadas do atual, pelos colégios oriundos das denominaçõeshistóricas do protestantismo, provenientes de missões norteamericanas, só podem ser interpretados na medida em que sãorederidos: à versão ideológica que os inspira mais profundamente e lhes dá sentido e às condições estruturais da nova sociedade em que vão atuar.ê"
3. Renunciar à herança liberal?
1. O fracasso do "projeto liberal": Rubem Alves o chamoude "projeto utópico" do protestantismo na América Latina edescreveu seu naufrágio no "protestantismo da reta doutrína'V."Utópico" pode ter aqui o significado positivo de um "princípioprotestante" libertador que - como disse Tillich - foi incapazde abrir um caminho para a cultura ocidental que a levassealém da crise da Grande Guerra. E pode também ser lido nosentido negativo: uma expectativa sem fundamento na realidade. destinada a espatifar-se contra esta. No primeiro sentido assim o leram os apologistas do protestantismo latino-americano - sugerimos que suas conquistas foram historicamentemuito pouco significativas.
Provavelmente deve-se concluir que. como projeto histórico concreto para a América Latina desde meados do século 19e por mais de um século. o projeto fracassou. Olhando retrospectivamente. o que sempre tem a sabedoria dos fatos irreparáveis. é possível perceber que o fracasso era inevitável. Emprimeiro lugar. por causa da ambigüidade de uma posturateológica que não permitiu aos dirigentes missionários. em suamaioria. integrar o projeto em sua autocompreensão teológica
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e por causa de uma insuficiência analítica que não percebeu aincompatibilidade entre o projeto da "democracia do desenvolvimento humano" e a razão econômica e política que ditava ofuncionamento do "panamericanismo" dos Estados Unidos. Emsegundo lugar, porque não chegou a penetrar mais do que empequenos grupos dos membros de suas próprias igrejas e menos ainda nas igrejas das correntes de santidade e fundamentalistas que entraram em grandes ondas na América Latina jádesde o final do século e de alguma maneira impregnaram todoo protestantismo latino-americano. Em terceiro lugar - e fundamentalmente - porque o projeto em si era inviável na América Latina: as próprias elites que o auspiciaram topavam comimpossibilidades devidas à estrutura social e à sua própriaambivalência e acabaram derrotadas ou absorvidas no modelocapitalista dependente.
'Ialvez os primeiros anúncios da crise se fazem sentir porvolta de 1930 e têm importància para nosso tema. Com efeito,a crise do capitalismo mundial de 1929 teve conseqüênciasdecisivas para a vida social, econômica e política da AméricaLatina. A recessão econômica expulsou milhares de trabalhadores rurais, que buscaram um espaço nas cidades ou nosnovos centros mineradores e industriais. O desemprego, a anomia social e a pobreza das massas despertaram o protestosocial e abriram as portas aos movimentos socialistas. A resposta política do sistema foi o "populismo": a tentativa de geraruma mudança social mediante uma "aliança" de setores populares e elites culturais e econômicas latino-americanas, dentrodas estruturas do sistema capitalista.
A corrente protestante mais tradicional, ainda sob o impulso do movimento missionário, tentou encontrar sua identidade e definir sua missão nessa nova situação como - usandoos termos de Bastian - "uma via humanizante que instauravaos valores fundadores numa sociedade dístorcída'?". "A independência política", escrevia em 1942 o destacado missionáriopresbiteriano W. Stanley Rycroft, "não trouxe liberdade para opovo, no verdadeiro sentido da palavra. Essa liberdade aindaprecisa ser conquistada, e está intimamente ligada à difusãodo cristianismo evangélico."29 Essa visão otimista se repete nosescritos de alguns dos jovens líderes protestantes da AméricaLatina: p. ex., os mexicanos Alberto Rembao e Gonzalo BáezCamargo, o brasileiro Erasmo Braga, o argentino-norte-americano Jorge P. Howard e missionários como Samuel Guy Inrnane Juan A. Mackay. Entre a brutalidade de um capitalismo
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desalmado e o materialismo de um comunismo que pregava aluta de classes, esses líderes viram o protestantismo como aguarda avançada dessa democraciaverdadeira, socialmente progressista, modernizante e participativa da qual falamos na seção precedente. A ênfase do "evangelho social" na redençãosocial e a dos evangélicos na transformação da pessoa pareciam, assim, encontrar sua unidade.
Nessa linha foram criados, nas décadas de 1930 a 1950,"conselhos" ou "federações" de igrejas na maior parte dos paises do continente. Seus propósitos declarados eram a cooperação na publicação de literatura, a representação comum anteas autoridades públicas, a defesa da liberdade religiosa e acooperação na evangelização e na educação cristã. Indicamosacima quais eram a teologia e a ideologia dominantes. Umvigoroso programa de publicações difundiu traduções de alguns dos clássicos antigos e moderno da teologia protestante;fundaram-se seminários interdenominacionais em Cuba, naArgentina e em Porto Rico e renovaram-se os seminários denominacionais de outros paises, nutrindo uma geração de lídereslatino-americanos com mentalidade ecumênica e preocupaçãosocial que haveriam de emergir nas décadas de 1950 e 1960. Aprimeira Conferência Evangélica Latino-Americana (I CELA),convocada e orientada a partir do próprio continente, reúne-seem Buenos Aires em 1949.
Entre os líderes desse protestantismo não faltam aquelesque avançam mais um passo com uma critica decidida aomodelo burguês capitalista e uma simpatia explícita pelo socialismo democrático. O próprio Mackay critica um informe doConselho Missionário Internacional "que reproduz os desejos einteresses da sociedade burguesa ocidental que vê o cristianismo como a alma de sua cultura, mas não como seu juíz">'.Essa atitude critica aparece nos movimentos ecumênicos dejovens que, em 1941, se juntam como União de Ligas JuvenisEvangélicas (UIAJE), cujo primeiro congresso adota como lema "Com Cristo, um mundo novo" e conclama a uma lutacontra "o presente sistema capitalista baseado na opressão ena desigualdade económica" e a favor de "um sistema de cooperação". Opções semelhantes aparecem nos documentos dasdécadas de 1930 e 1940 das assembléias da Igreja Metodistado Chile, do Uruguai e da Argentina. Na década de 1940 aparecem os "movimentos estudantis cristãos" inspirados pela Federação Mundial Cristã de Estudantes, orientada principalmente a partir da França nessa mesma linha e que posterior-
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mente, junto com a participação no movimento ecumênico dopós-guerra e a partir de uma teologia mais européia, geraria asnovas lideranças das décadas de 1950 e 1960.
Enquanto isso, outra ala do protestantismo, nascida dosmovimentos de santidade do final do séc. 19 nos Estados Unidos, seguiria uma direção diferente. No próximo capítulo tentaremos analisar esse desenvolvimento e as tensões que delese originaram. Agora, porém, precisamos dar mais um passona configuração da fisionomia do "rosto liberal". 'Iodo o mundocoincide em situar por volta de 1960 um momento critico quePrien chama de "a crise dos estados oligárquicos nacionais",Dussel de "a crise dos estados independentes" e "a crise dalibertação" e Bastian de "a crise do capitalismo dependente:entre a resistência e a submissão". A promessa do projetodesenvolvimentista no qual o protestantismo - e boa parte do"mundo ilustrado" latino-americano - havia depositado suasesperanças se desvanece no fracasso dos planos de ajuda daAliança para o Progresso de Kennedy e dos projetos do Conselho Econômico para a América Latina (CEPAL). Fica claro queo "socialismo utópico" que campeia nos documentos da ULAJE- e nos movimentos universitários vinculados à "reforma universitária" - requer uma política mais radical e uma fundamentação ideológica mais sólida. O rosto faminto das grandesmaiorias mostra-se nos cinturões de miséria que começam aformar-se em tomo das grandes capitais. Faz-se necessáriauma nova forma de analisar a dinàmica das sociedades "periféricas". A "teoria [sócio-econômica] da dependência" propõeuma versão própria da análise marxista, mudanças radicaisdas estruturas da relação entre mundo desenvolvido e mundodependente e um projeto socialista adequado às condições do'Ierceíro Mundo.
No ambiente religioso, a consciência dessa crise repercuteprofundamente na América Latina. A renovação teológica eeclesial do Vaticano II é relida na ótica da "transformação dasociedade" na Assembléia Episcopal de Medellín em 1968 e apreocupação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) com "ospaíses em vias de desenvolvimento" converte-se em "transformação estrutural" na Conferência de Genebra de 1966, onde adelegação latino-americana desempenhou um papel importante, e na América Latina no movimento "Igreja e Sociedade naAmérica Latina' (ISAL) de 1960. A nova liderança que surgeassume essa perspectiva, apoiada numa visão teológica de inspiração barthiana, que procura combinar uma teologia bíblica
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de redenção numa ótica histórica com um chamado à militância ativa nos movimentos sociais e políticos de libertação. Noprotestantismo, os nomes de Valdo Galland, Jorge César Motta, Richard Shaull, Emílio Castro, José Míguez Bonino e outrosabrem o caminho que Rubem Alves, Julio de Santa Ana, Gonzalo Castillo, Jether P. Ramalho, Raúl Macín e outros, de diversas maneiras e com matizes diferentes, tentarão desenvolver.Do conjunto dessas linhas - e de desdobramentos análogosno catolicismo - nasce por volta do fmal da década de 1960 achamada "teologia da Iíbertação'?".
2. O que fazer com esse fracasso? A geração de 1960 percebe claramente o fracasso do modelo desenvolvimentista e,ante o nó górdío representado pelo entrelaçamento do idealhumanista e do capitalismo dependente, recorre à técnica deAlexandre Magno: desembainha a espada e corta o nó: liberdade, democracia, desenvolvimento tomam-se termos pejorativos; uma interpretação unilateral da "teologia da crise" e umaaplicação igualmente parcial da análise marxista alimentam oque chamarei, mais modestamente, de "estratégia da ruptura".Sem dúvida, fatores psicológicos também intervêm na durezacom que a ruptura se manifesta em alguns setores do protestantismo (e também do catolícísmo): a tomada de consciênciade que a busca de justiça a que a realidade humana do continente e a fé cristã os haviam impulsionado fora ideologicamente manipulada num sistema de opressão produz uma crisepessoal justamente nas pessoas mais lúcidas e comprometidasdessa geração. O núcleo central dessa crise, porém, é dadopelos elementos objetivos que indicamos. Descartado o "protestantismo liberal" e vedado teológica e ideologicamente o "protestantismo conservador", ocorre nesse protestantismo umacrise eclesial e teológica que ainda não superamos.
É essa a única resposta possível ao "fracasso" histórico doprojeto liberal? A partir de setores do pás-modernismo, e ironicamente por razões opostas às da geração de 1960, esta pareceser a única possibilidade. Acabou-se a época dos "grandes relatos" que assinalavam a senda da história e inspiravam autopia do progresso; as ideologias morreram e chegamos aofím da história. 'Iarnbém aqui a estratégia de Alexandre é aúnica proposta para resolver o problema da crise da modernidade liberal. 'Ialvez seja mais penoso ainda o estado de ânimode cinismo desesperançado que alguns "revolucionários" dadécada de 1960 parecem assumir ante o poder avassalador e
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aparentemente invencível do neoliberalismo e da "nova ordemeconômica internacional".
É necessário reconhecer que a crise do modelo desenvolvimentista e a instalação do neoliberalismo implicam gravessuspeitas ante toda tentativa de recuperar a "herança humanista" que acompanhou e freqüentemente legitimou os projetos desenvolvimentistas. Surgem perguntas como: por que oprojeto "liberal" se deixa absorver tão facilmente e se coloca aserviço dos interesses de uns poucos? Vale a pena fazer oesforço de separar os aspectos "humanistas" do projeto reformista e tentar reintegrá-los em termos de uma "opção pelospobres"? Não há uma contradição inerente à totalidade ideológica que o liberalismo representa e que impossibilita essarecuperaçãoê-? Será que o liberalismo alguma vez foi "democrático"?
Há, entretanto, também outras perguntas igualmente urgentes. Em algum momento, Gustavo Gutiérrez caracterizou ateologia da libertação dizendo que "a meta é a liberdade; alibertação é o caminho". Se a liberdade é sempre - historicamente, ao menos'< - "um alvo móvel" e a libertação - também hístorícamente - um caminho sem fim, temos direito dedesvincular uma da outra? Ou, antes, é possível desvinculálas sem desvirtuar a libertação que buscamos? Como crentes,a "liberdade" que Jesus Cristo nos oferece gratuitamente nãoé a raiz e o sentido de nossa participação na históríaê-? Épossível renunciar à "utopia da liberdade" sem destruir a esperança e tirar de qualquer busca de libertação sua qualidadehumana?
Pessoalmente, proponho a "estratégia da paciência": o esforço de "desatar os nós", tentar desenredar os fios e prepararnos para voltar a tecer, no tear de um momento históricodistinto, uma compreensão social e teológica nova.
Para tanto, creio que é indispensável recuperar alguns dosfios do tecido da modernidade. Creio, em outras palavras, queo chamado "projeto liberal" representa o encontro e a interaçãode fatores diferentes e parcialmente divergentes que geram umatensão não resolvida ao longo da história moderna. Com efeito,não é novidade para ninguém que a "modernidade" herda umacomplexa série de tradições nas quais se misturam de diversasmaneiras os "grandes relatos" bíblicos e das culturas mediterrâneas, que, por sua vez, em certas ocasiões assumem e reínterpretam vários elementos. A variedade e multiplicidade de
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sentidos dessa herança clássica são ilustradas. p. ex .. na forma diversa em que ela é "recuperada" pelo Renascimento italiano e pelo da Europa do Norte. Thdo isso se processa no novomolde cientifico, tecnológico e econômico que vai se forjandona Europa nos séculos 16 a 19, até desembocar no capitalismoindustrial burguês. As grandes palavras de sua ideologia cobrem as ambigüidades dessa história. Os grandes lemas damodernidade - a razão. a liberdade, o indivíduo, a democracia- são, de fato, entendidos e vívídos de maneira diversa - e,mais ainda, ambígua - nesse longo processo histórico gestadodesde o fmal da Idade Média. Assim, a razão é a capacidadehumana de discernir e discernir-se a partir de si mesma e semse submeter a uma autoridade externa, e é também a racionalidade técnica que Vai resolvendo os problemas, a serviço da"maxímízação'' da produção e da utilidade. A liberdade é odireito inalienável de cada ser humano de dispor de si mesmo,a suma dos direitos definidos secularmente na Carta da Revolução Francesa e, em termos teístas, na norte-americana, e é,ao mesmo tempo, o direito "sagrado" à propriedade que só éprotegido no mercado livre da competitividade. O indivíduo é apessoa-sujeito que assume sua singularidade e responsabilidade sem se perder na coletividade, e é também o indivíduoauto-suficiente que defende sua privacidade como uma fortaleza dentro da qual se protege de todos os demais. A sociedade,por conseguinte, pode ser entendida como o "pacto" defensivodos interesses contrapostos dos indivíduos (como diria Hobbes) ou como uma estrutura humana insita que conduz àbusca do bem comum; a democracia é o governo "representativo" que assume e substitui a sociedade, e é, ao mesmo tempo, a organização "partícípatíva" na qual a comunidade organiza sua convívêncía.
Os "e", "também" e "ao mesmo tempo" do parágrafo anterior poderiam ser multiplicados. Mas não constituem nem visões equilibradas nem elementos integrados numa sintese. Sãomotivos em conflito que disputam o controle da superestrutura ideológica das sociedades e, inclusive, convivem conflituosamente num autor ou em autores muito próximos, como bemse pode perceber numa comparação cuidadosa, p. ex., entre Ateoria dos sentimentos morais (1759) e A riqueza das nações(1776) de Adam Smíth, ou na já mencionada divergência naconcepção de liberalismo entre James Mill e seu filho JohnStuart Mill. Na crescente maré do triunfo da (suposta) liberdade econômica, da razão técnica, do individualismo competitivo,
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da democracia puramente eleitoral, naufragaram as utopiashumanistas desde Kant até os socialistas utópicos - e poderíamos dizer: até Marx!
Na Améríca Latina, o protestantismo liberal ficou presonessa tragédia de duas maneiras: seu discurso "liberal" foiempregado - na escassa medida de seu peso social - comolegitimador do capitalismo interno e externo mais selvagem e,ao mesmo tempo, reinterpretado em suas próprias fileiras como "ideologia" da ascensão social ou como "teologia da prosperidade". Isto é o que percebemos com razão na década de 1960.Acaso isso significa que os protestantes de hoje devemos repudiar essa herança? Minha resposta é: não. Não, porque é aherança protestante da liberdade, da identidade própria e daresponsabilidade da pessoa na solidariedade da comunidade,da autonomia da razão humana (da razão da vida e do amorativo) na construção da cidade terrena, da racionalidade daesperança numa história da qual Jesus Cristo é Senhor. O quecabe é a re-interpretação dessa história como história em busca de um futuro, justamente como resposta à negação de todofuturo, implícita e explícita na ideologia e na política do "Iim dahistória". Reclamamos a herança do protestantismo utópico daqual fala Rubem Alves, mas a reclamamos reinterpretada e revivida em nosso tempo, com os marginalizados de nossas sociedades e, a partir deles, como protesto frente ao suposto "fim
da história" e como programa na construção de um novo projeto histórico de nossos povos.
Capítulo 2
O rosto evangélico do protestantismolatino-americano
1. Um protestantismo evangélico
1. Os iniciadores do protestantismo "crioulo". Eles sãomissionários - em sua maioria norte-americanos ou brítânícos (entre estes vários escoceses) - que chegam à AméricaLatina a partir da década de 1840. É notável perceber que, nãoobstante sua diversidade confessional - metodistas, presbiterianos e batistas em sua maioria - e de origem - americanae britãnica -, todos compartilham um mesmo horizonte teológico, que se pode caracterizar com o termo evangélico - utilizado aqui em sua acepção anglo-saxã! -, que Marsden definemuito bem dizendo que os evangélicos são "pessoas que professam uma total confiança na Bíblia e se preocupam com amensagem da salvação que Deus oferece aos pecadores pormeio da morte de Jesus Cristo", e acrescentando: "Os evangélicos estavam convictos de que a aceitação sincera dessa mensagem do 'evangelho' era a chave para a virtude durante a vidapresente e para a vida eterna no céu e que sua rejeição significava seguir o caminho largo que termina nas torturas doinferno.'?
'Iodos podemos reconhecer nesse resumo a teologia dopietismo e do Grande Despertar (ou avivamento) do séc. 18 queassociamos aos nomes de Wesley e Whitefield na Grã-Bretanhae de Jonathan Edwards nos Estados Unidos e que permeia amaior parte do protestantismo anglo-saxão e seguramente atotalidade de seu etos missionário. Este é o pano de fundoteológico da missão à América Latina em suas origens na segunda metade do séc. 19. Porém essa teologia havia sofrido,desde meados do século, influências significativas que vale apena salientar. Se fixamos - mais ou menos arbitrariamente- o ano de 1870 para fazer um balanço, teriamos de anotar aomenos os seguintes dados:
O segundo despertar, na década de 1850 (que podemosassociar com nomes como os de Iyman Beecher, TImothy Dwight
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e sobretudo Charles Finney), que é continuado com a grandecruzada evangelizadora e missionária de Moody, tem características próprias:
a) Corresponde ao crescimento da população urbana, penetra nos colleges e nas universidades e em setores comerciaisda classe média e tem um prestigio religioso que não havia sidoalcançado pelo "avivamento" rural ou de fronteira.
b) 'Ieologícamente supera - o que já se percebe no próprioJonathan Edwards - o conflito entre a tradição calvinista e aarminiana: na prática, admite-se um certo livre-arbítrio (sejaqual for a forma em que é justificado teologicamente) e umapossibilidade de crescimento na santidade.
c) Ao individualismo já acentuado do primeiro despertaracrescenta-se um alto grau de subjetivismo: alguém chamou aatenção para a diferença entre a hinódia do "primeiro despertar", centrada na admiração pelo aspecto inefável da graça (p.ex., "Mil vozes para proclamar", de Charles Wesley, e até Amazing grace, de John Newton), e a do segundo, que se detém nadescrição dos maravilhosos sentimentos que essa graça desperta:
No seio de minha alma uma doce quietudese espalha inundando meu ser,uma calma infinita que só poderãoos amados de Deus conhecer.Paz, paz, que doce pazé aquela que o Pai nos dá;peço-lhe que inunde para sempre meu sercom suas ondas de amor celestial [e de pazl."
d) O despertar religioso e a reforma social (revival andreform) são vistos como estreitamente aliados: os evangelistasda década de 1850 assumem, junto com a causa da moralização da sociedade, a da abolição da escravatura e a do combateà pobreza.
Concluída a guerra civil norte-americana (1865), o paísentra numa era de otimismo que contagia também o evangelicalismo. Os Estados Unidos aparecem agora como um modelodestinado a inspirar o mundo inteiro: o despertar evangélico,os avanços sociais e a educação se apóiam e sustentam mutuamente. Nas palavras de um orador na reunião internacional da Aliança Evangélica Mundial (Nova Iorque, 1873), o verdadeiro cristianismo
(...) educa os jovens, alimenta o faminto, cura o enfermo. Rego-
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zíja-se com o crescimento dos elementos da civilização material.Sustenta. porém. que todos esses elementos são subordinados.O método dívino de melhoramento humano começa no coraçãodos homens mediante a verdade evangélica, e dali se expandepara fora até renovar a totalídade.?
Não me parece necessário provar que são essa teologia eessa piedade que alimentam em grande parte a visão dos primeiros missionários e que delas se nutrem os primeiros conversos. Muitos dos testemunhos destes últimos são bastanteestereotipados e seguem uma espécie de "estrutura" que corresponde ao esquema básico da "teologia soteríológíca evangélica". Como mostra, compare-se um "resumo" da mensagemcom o testemunho de uma mulher convertida, e atente-se aomesmo tempo para o caráter polêmico e o conteúdo "evangélico" que ambas as citações complementam:
O cristão evangélico crê: que Jesus veio ao mundo para salvaros pecadores. Que Jesus os salva se eles querem ser salvos.'Iodos nós somos pecadores; logo. ele quer salvar a todos. Não háoutro Salvador. Jesus tem todo o poder. A igreja não pode salvaruma alma. porque é necessário que a pessoa renasça.5
"Com sua morte Cristo me abriu as portas do céu. Seu sangue derramado lavou todos os meus pecados. Jesus pagou tudoo que eu, pecadora, devia à justiça de Deus. É por sua mediaçãoque alcanço o perdão. e não por meio do confessor..."6
Sem dúvida, tanto na mensagem dos missionários quantona consciência das novas congregações aparecem diferençasque se devem à peculiar situação desse "campo missionário".Uma é a prioridade da polêmica anticatólica que ocupa o maiorespaço nas publicações evangélicas da época, tanto repetindoos argumentos clássicos da controvérsia dos séculos 17 e 18quanto denunciando os casos de corrupção. obscurantismo ouautoritarismo da Igreja Católica Romana ou de seus representantes. Por isso se faz necessário munir os novos conversos deconhecimentos e argumentos para esse conflito, de modo quehá uma ênfase muito grande no estudo da Bíblia e das doutrinas fundamentais do protestantismo. Outra é a peculiar importância que se dá à Bíblia, que é exaltada ao mesmo tempocomo "arma" na "luta contra o erro" e como um meio indispensável para a evangelização. Em ambos os sentidos, a Escrituraé concebida como tendo um "poder", uma certa eficácia intrínseca que repreende, convence e converte. Finalmente, a necessidade de encontrar o espaço social para sua vida e seu desen-
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volvimento pessoal e comunitário obriga o crente a preocuparse com as condições políticas que assegurem essa possibilidade: liberdade religiosa, secularização de serviços como a educação, o matrimõnio ou os cemitérios, não-discriminação notrabalho e na educação e inclusive preocupação com a condição dos mais pobres. Porém deve-se notar que essa "dimensãopública" não é integrada de maneira direta no horizonte de suafé: ela fica como "uma conseqüêncía" derivada ou como umaesfera "independente" em que se deve dar um testemunho dehonradez e responsabilidade. Quando as condições sociais nãomais parecem exigir essa defesa das liberdades, ela facilmentese desprende dessas posições.
2. Mudanças no horizonte teológico evangélico. As idéias eatitudes centrais dessa teologia evangélica modelam a fé e avida das congregações que vão se formando ao longo dessasdécadas e dominam o protestantismo crioulo pelo menos até aGrande Guerra. Pouco a pouco, entretanto, irão se insinuandodiferenças, ainda só larvadas em 1916, cujos efeitos têm marcado até hoje o protestantismo latino-americano. Para entendê-las temos de voltar ao cenário norte-americano. Ali, o protestantismo "evangélico" se confrontava, desde o último terçodo século, com os desafios de uma cultura urbana reclamadapelo secularismo, de uma cíêncía que colocava em xeque "verdades" cristãs consideradas fundamentais e do liberalismo teológico - chamado genericamente de "modernismo" - que parecia ameaçar a confiabilidade da Escritura e elementos centrais da crístología e soteríología evangélica. Como responde oprotestantismo "evangélico" a esses desafios? Examinemos brevemente três aspectos: a "piedade" evangélica, a ética social ea "defesa da fé".
a) O que caracteriza a piedade evangélica nas últimas décadas do século 19 é "o movimento de santidade", que Marsden chamou de "a vida vitoriosa". Combinam-se aqui, comosalientávamos acima, a tradição wesleyana da santificação eperfeição cristã e a tradição calvinista da luta permanente contra o pecado. Uma e outra, porém, coincidem em afmnar um"batismo do Espírito Santo" que permite ao crente libertar-sedo poder do pecado e viver uma vida cristã "vitoriosa". "Serrepleto do Espírito", ser "totalmente consagrado" e expressõessemelhantes constituem a linguagem simbólica dessa piedade,tal como a expressa, por exemplo, o conhecido hino de Havergal":
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Que minha vida inteira esteja consagrada a ti, Senhor, que minhas mãos sejam guiadas pelo impulso de teu amor;que meus lábios possam dar testemunho de teu amor e euofereça meus bens somente a ti, Senhor;que meu tempo todo esteja dedicado a teu louvor e minha mentee seu poder sejam consagrados a tua honra;toma, ó Deus, minha vontade e faze-a tua, nada mais;toma, sim, meu coração e nele terás teu trono.
No mundo da tradição wesleyana, a insistência na experiência da "segunda bênção" - a plenitude da santificação originou divisões frente ao que alguns consideravam um abandono da busca de santidade por parte das igrejas metodistas:nascem assim, além do Exército da Salvação (Inglaterra, 1880),a Igreja de Deus (Anderson, ID, 1880), a Aliança Cristã e Missionária (1887), a Igreja do Nazareno (1908) e a Igreja dos Peregrinos (Pilgrim Holiness Church, 1897). A importãncia dessedesenvolvimento para nosso tema pode ser percebido na datada entrada (de 1897 a 1914) de todas essas igrejas na AméricaLatina. No mundo evangélico de tradição reformada, o movimento de santidade tem o mesmo vigor e ênfase. Derivou,entretanto, numa maior preocupação doutrinal, como indicasua participação na formação do grupo das "Conferências deKeswick" e das Prophecy Conferences, antecedentes imediatosdo fundamentalismo.
b) David Moberg falou da "grande inversão" que aconteceno evangelicalismo norte-americano nas primeiras décadas doséculo 20 no tocante à preocupação social". Com efeito, dafórmula revivel and reiorm se passa à alternativa "evangelização ou reforma social". A inversão parece ocorrer em duasetapas: a primeira (de 1870 a 1900) significa uma retração daesfera política como meio de reforma social, concentrando-se aação no âmbito privado da caridade; na segunda, como dizMarsden, "toda preocupação social progressista, política ouprivada, toma-se suspeita para os revivalistas evangélicos e érelegada a um lugar mínímo'". Os historiadores costumamsugerir três causas: 1) O triunfo do modelo metodista de santidade relega a tradição reformada muito ligada nos EstadosUnidos, desde o início, à "construção do reino de Deus" naAmérica. Por conseguinte, a santidade fica desconectada dahistória para transformar-se numa experiência subjetiva, individual- ou, quando muito, da pequena "comunidade" -, quereduz o serviço a uma ação caritativa; 2) a experiência carismática de viver numa espécie de "nova díspensação", numa
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"era do Espírito Santo", leva a desprender-se da "história dasalvação", a relegar o Antigo 'Iestamento e, por conseguinte, apreocupação reformada com uma lei divina que deve ser instaurada também na sociedade: o predomínio crescente do prémilenarismo e o subseqüente dispensacionalismo introduzidopor Nelson Darby e difundido amplamente no mundo evangélico consagram essa separação ao "dar por terminado" o período do "governo humano" e o período da lei e ao ver toda ahistória da salvação somente como etapas necessárias para aera presente, cujo único objeto é a pregação do evangelho; 3) aaparição, a partir da década de 1910, do "evangelho social",que é percebido como uma forma do modernismo ou liberalismo teológico e produz uma rejeição nos setores evangélicos,pois estes o vêem como a negação de doutrinas fundamentaisda fé. C. S. Scofield, um dos mais bem-sucedidos promotoresdo díspensacíonalísmo, dirá sem rodeios que a única respostade Cristo à escravidão, à intemperança, à prostituição, à distribuição desigual das riquezas e à opressão dos fracos é pregara regeneração mediante o Espírito Santo'",
c) O que chamamos de "fundarnentalísrno" é um fenômeno complexo, e seria ridículo tentar abordá-lo em poucas linhas. Não obstante, é imprescindível dedicar-lhe alguma atenção aqui, com uma advertência: referimo-nos só ao fundamentalismo como fenômeno do mundo evangélico no final do séc.19 e no início do séc. 2011. A primeira observação histórica deimportáncía é que será bom distinguir uma primeira etapa quese estende mais ou menos até o começo da Grande Guerra e,posteriormente, uma segunda, muito mais espetacular. Caracterizamos estas etapas como "a defesa da fé" e "a defesa daAmérica cristã", respectivamente.
1) O fundamentalismo aparece como a reação de uma féque se sente ameaçada pelo avanço do secularismo e de umaciéncia que nega a realidade do sobrenatural. Como responder? Basicamente se delineiam duas respostas, que refletemduas concepções filosóficas. Uns distinguem o nível da ciênciado nível da religião: o primeiro é o âmbito dos fatos objetivos; osegundo, o da experiência subjetiva, do sentimento: poderíamos dizer que temos ai a expressão da herança romántica nacultura norte-americana. Outros, por sua vez, conhecem umúnico critério de verdade: o dos fatos e dados concretos darealidade, que qualquer pessoa pode observar diretamente: esta é a tradição do "realismo do senso comum" de origem escocesa que predominou no pensamento norte-amerícano '".
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Para esta última perspectiva é indispensável ter uma fonteinfalível, específica e irrefutável para afirmar os fatos do mundo sobrenatural com a mesma força com que o "senso comum"afirma os do natural. Para isso se recorre à Escritura. Porconseguinte, quando as descobertas da ciência parecem entrarem conflito com as afirmações da Escritura, trata-se de umahipótese cientifIca equivocada ou de uma interpretação erradada Escritura. As distintas formas do "concordísmo'' ou da "harmonização" partem desta premissa. Além disso, o único critério que pode ser aplicado à leitura da Bíblia é que os textosdevem ser lidos e interpretados "literalmente" (a menos queeles mesmos indiquem outra coisa). "Literalmente", é claro,significa neste caso de forma positivista, como dados objetivoscomprováveis pela observação e razão (portanto, num sentidomuito diferente daquele que esse termo tem em seu uso medieval ou no uso que dele faz Lutero). Inspiração plena e verbal,interpretação literal e inerrãncia são as muralhas indispensáveis para proteger a verdade da fé. Eis aqui o fundamentalismo.
Uma posição desse teor parece exigir total intransigência:não pode haver espaços indefInidos entre a verdade e o erro.No movimento de avivamento e santidade nem todos estavamdispostos a essa íntransígêncía. Moody, por exemplo, sustentava: "Mantenhamos a verdade, mas, por todos os modos, mantenhamo-la com amor e não com um porrete (c1ub) teológico."13Na tradição reformada, entretanto, tais concessões parecemindiferentismo: "É-nos dito constantemente que não ataquemos, mas que simplesmente ensinemos a verdade. Este é ométodo do covarde e conciliador, não foi o método de Cristo",responde 'Iorrey, um dos colaboradores de Moody. Essas duasposições sempre existiram dentro do fundamentalismo, mas éevidente que a segunda teve maior ascendência e definiu atéhoje o perfil do fundamentalismo.
Na combinação de literalismo e intransigência se insere otema do prê-milenarismo. Como tal, a interpretação pré-mílenarista sempre existiu na discussão escatológica. Ela salientaque vivemos antes do milênio, o qual inaugurará um tempodiferente, que precede o estabelecimento do reino de Deus (comdiversos esquemas na sucessão e natureza dos acontecimentos vindouros). A opinião dominante no protestantismo emgeral e no norte-americano em particular havia sido majoritariamente pós-mílenarísta. Segundo ela, as promessas apocalípticas do milênio, o derramamento do Espírito, a luta contrao anticristo (freqüentemente identifIcado com o papa ou os
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chefes de outras religiões) teriam lugar neste tempo e levariama uma era de ouro: o milênio de Apocalipse 20, a última épocada história presente, em que o Espírito seria derramado e oevangelho seria difundido por todo o mundo, e em cujo finalaconteceria o retomo de Cristo e a história chegaria a seu fim.Na disposição otimista e secularizante da segunda metade doséculo 19, a visão pós-mílenarísta se "naturaliza" cada vez mais:o caminho do Reino passa a ser identificado com o progressohumano e os avanços da cultura norte-americana são vistoscomo sinais de um futuro em que a conjunção da religião e doprogresso da civilização criará uma nova era de paz, justiça eprosperidade.
Essa "naturalização" da escatologia, da qual se acusava (eainda se acusa) o evangelho social, não poderia deixar de repugnar à fé evangélica. Por um lado, esta a via como umanegação da transcendência (dír-se-ía, em termos da época, do"sobrenatural"). Por outro, transformava a revelação bíblicanuma "fantasia poética" sobre a história que o ser humano vaiforjando, e tal coisa é totalmente inaceitável na concepção deverdade do "realismo do senso comum". O pré-milenarismomostra-se, pois, como uma reação contracultural, que tira dacultura secular toda pretensão escatológica: esta história, estasociedade e estas igrejas, na medida em que algumas delas seadaptam ao mundo, são um campo de batalha onde o verdadeiro evangelho tem de ser pregado e os homens e as mulheres, chamados a reunir-se na congregação escatológica queespera o "arrebatamento", o começo do milênio ou "a apariçãodo Senhor".
O escocês Nelson Darby dá a essa visão uma hermenêutica bíblica baseada na interpretação dos livros de Daniel e Apocalipse, que conhecemos como "díspensacíonalísrno'' e que temuma enorme influência em todo o mundo evangélico. Seu discípulo norte-americano C. S. Scofield publica uma tradução daBíblia cujas notas aplicam sistematicamente essa interpretação à totalidade da Escritura e que teve uma enorme difusão.Enquanto que na Grã-Bretanha Darbyiniciou uma denominação independente - as igrejas dos Irmãos de Plymouth ouIrmãos livres e as que delas surgiram -, nos Estados Unidoso movimento vive no interior das igrejas exístentes'<.
A "defesa da fé" toma-se concreta na defesa das Escrituras, com as características que indicamos acima. Em certosentido, todavia, a Bíblia não é só um "meio" de defesa da fé,mas um "objeto de fé" que adquire uma espécie de autonomia.
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Em seu livro Fundamentalism, o inglês James Barr o expressaassim:
Para os fundamentalistas a Bíblia é mais do que a fonte daverdade para sua religião (...) Faz parte da própria religião. narealidade é praticamente o centro da religião (...) Na mentalidadefundamentalísta, a Bíblia funciona como uma espécie de correlato de Cristo (...) Cristo é o Senhor e Salvador pessoal (00') aBíblia é uma entidade verbalizada, "ínscríturada" ('00) Na medidaem que Cristo é o Senhor e Salvador divino. a Bíblia é o símboloreligioso supremo, tangível, articulado, que se pode possuir e éacessível ao ser humano na terra. 15
Cristo está, é claro, ontologicamente acima da Escritura,mas epístemologícamente está subordinado a ela. Por isso éessencial ter a Bíblia, honrá-la, dar-lhe o lugar de honra nocoração e na mente, mas também na mesa da copa ou sobre ocriado-mudo, ao lado da cama. De alguma maneira, ela é oícone e o sacramento da fé.
2) 1àlvez não seja tão estranho que esse movimento contracultural se transforme, especialmente a partir do início daGrande Guerra. na defesa de uma cultura: a defesa da Américacristã. Afinal de contas, todo universo simbólico de ampla difusão desempenha um papel cultural na sociedade. Não interessa agora investigar a gestação desse fenômeno, mas também não podemos passar por cima dele, porque desempenhaum papel significativo no movimento missionário. Dentro dofundamentalismo evangélico coexistiam diferentes atitudes para com a cultura e a sociedade. Entretanto, predominavam asque poderíamos chamar de mediadoras, representadas por umareafmnação do que se considera a "tradição evangélica norteamericana" ("the old time religion", que deveria ser defendidacontra os avanços do secularismo, do modernismo e da imoralidade), representada, por exemplo, pelo tristemente famosoWilliam J. Bryan (do "julgamento do macaco", que conhecemosna versão teatral de "Herdarás o vento") e pela linha maisreformada de uma transformação da cultura sobre a base doensino cristão (p. ex., do professor J. Gresham Machen, dePrínceton).
A Grande Guerra (1914-18) radicalizará as posíções, Quase até a entrada dos Estados Unidos no conflito, os setoresevangélicos fundamentalistas se mostraram reticentes em relação a essa guerra: o mundo caminha para seu fím, as guerras nada podem melhorar. A partir de 1917 opera-se uma mu-
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dança. Revisam-se as interpretações milenaristas e ao binõmioclassicamente representativo do anticristo (o papa e os muçulmanos) se acrescenta agora Bismarck. Participar dessa guerratorna-se um dever cristão:
O Kaiser jogou impudicamente a luva: a Alemanha infiel [berçodo liberalismo teológico] contra o mundo crente - a Kulturcontra o cristianismo -, o evangelho do ódio contra o evangelhodo amor. Assim Satanás se personifica: "Eu e Deus" (...) Jamaisos cruzados levantaram o machado de combate numa guerramais santa contra os sarracenos do que a que hoje nossos soldados da cruz travam hoje contra o alemão.!"
Três elementos completam o quadro desse fundamentalismo no fmal da guerra: o acréscimo do "comunismo bolchevique" à trindade do anticristo, substituindo o Kaiser agora derrotado; a batalha para desterrar da cultura norte-americanatudo que pudesse ameaçar a pura fé evangélica (dai o julgamento de Scopes contra o ensino da teoria da evolução nasescolas'? e outras cruzadas semelhantes); e a transferência dafrente de combate para o sul agrário que legitima assim emtermos religiosos seu conflito com o norte industrial.
Estamos, é claro, tomando traços gerais: as coisas sempresão mais matizadas e diversificadas do que estes breves parágrafos sugerem. Porém o quadro me parece fundamentalmentecorreto como pano de fundo para entender aspectos de nossoprotestantismo latíno-amerícano". Como tudo isso afetou asigrejas? Os historiadores costumam falar de três variantes: a)Nas denominações mais tradicionais - episcopais, presbiterianos, metodistas, batistas - formam-se setores internos quelevam a batalha para o seio da denominação, com maior êxitoem umas do que em outras, mas sem conseguir "expulsar"sistematicamente seus adversários nem assumir o controle nacional da denominação (sem dúvida, as batalhas mais durasocorreram na Convenção Batista do Sul-? e nas duas igrejaspresbiterianas maiores); b) Em algumas denominações, particularmente das igrejas de santidade e dos nascentes movimentos pentecostais, sua tradição pietista e evangélica foi comoque moldada novamente pela influência fundamentalísta: e c)alguns dos fundamentalistas mais extremos, particularmenteos dispensacionalistas para os quais a "separação" era umartigo de fé, formaram suas próprias denomínaçôes-v.
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2. Crescimento e diversificação
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1) "Atomização dos protestantismos". Jean-Pierre Bastianchama de "atomízação dos protestantismos" o período que elesitua entre 1949 e 1959. Essa caracterização parece-me inadequada, porque pressupõe uma identidade protestante préviadefinida pela "opção liberal". O erro provém, creio eu, do fatode julgar a "identidade" com base nas opções dos lideres missionários e locais representados nas conferências, e de nãoprestar suficiente atenção ao desenvolvimento da piedade evangélica como substrato real do protestantismo missionário latino-americano. làmbêm não é melhor a interpretação de Hans.Jürgen Prien, que tende a englobar a maioria das missõesnorte-americanas sob a qualificação de pietistas, conservadoras e fundamentalistas, sem esclarecer o que entende especificamente sob esses termos. Só Pablo Deiros se mostra maismatizado e cuidadoso na análise do penodo que chama de"desenvolvimento" e situa entre 1930 e 196()21. 1àmbêm eleadota uma classificação do protestantismo latino-americanoem três grupos principais: libertacionistas, conservadores efundamentalístasê'. Na apresentação>, contudo, torna-se evidente que trata-se, antes, de tendéncias presentes no mundoevangélico como um todo e que se acentuam mais caracteristicamente em algumas ou outras igrejas do que de uma típología que permita distinguir entre estas.
Creio que para abordar devidamente o tema é necessáriopartir do período anterior. E aqui minha tese é que até 1916 oprotestantismo missionário latino-americano é basicamente "evangélico" segundo o modelo do evangelicalismo norte-americano do "segundo despertar": individualista, cristológico-soteriológico numa perspectiva basicamente subjetiva, com ênfasena santificação.
Ele tem um interesse social genuíno, que se expressa nacaridade e na ajuda mútua, mas que carece de perspectivaestrutural e política, exceto no tocante à defesa de sua liberdade e à luta contra as discriminações; portanto, tende a serpoliticamente democrático e liberal, mas sem sustentar tal opção em sua fé e sem fazer dela parte integrante de sua piedade.
A partir do pós-guerra (1918) começam a ocorrer mudanças dentro desse padrão fundamental. A análise dessas modificações é crucial para entender o fenômeno que Bastian qualifica como "atomízação". Porém tal análise só será possível namedida em que contarmos com uma pesquisa histórica que
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trabalhe seriamente com a história das mentalidades, as histórias de vida, a investigação do cotidiano: em suma, que resgate a vida objetiva e subjetiva das comunidades evangélicas enão só seus aspectos formais e institucionais. Ainda assim,atrevo-me a sugerir algumas pistas e hipóteses:
1) A partir do começo do século, porém mais ainda depoisda Grande Guerra e aceleradamente a partir de 1930, engrossam o protestantismo evangélico uma série de missões querepresentam o movimento de santidade e as linhas milenaristas e fundamentalistas da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Damboriena, sempre obcecado com esse tema, fala de1.707 missionários estrangeiros em 1916 e 6.361 em 195724 •
Depois da II Guerra Mundial ocorre uma nova onda de entradade missionários. Mas também deve-se contabilizar o fato deque as próprias igrejas "mães", "clássicas" (metodistas, presbiterianos, batistas) são fortemente influenciadas por esses movimentos. 1bdo o protestantismo evangélico absorve em amplamedida as características dessa "nova onda" evangélica: umdualismo e espiritualismo mais acentuados, uma ética de separação do mundo acompanhada por rigidez legalista25 .
2) A "mentalidade" de classe vai se definindo no protestantismo evangélico em direção aos nascentes estratos médios. Éneste contexto que devemos situar, em minha opinião, a relação mais profunda entre protestantismo e liberalismo burguês.O aporte do protestantismo evangélico (e talvez também do de"transplante") para o desenvolvimento do liberalismo burguêsna América Latina não consiste tanto na influência política oucomercial norte-americana, nem sequer na transferência deuma ideologia como tal, e sim numa série de atitudes e numhorizonte de significação que são gerados a partir de sua própria conversão e que coincidem com as aspirações de ascensãode certos setores da sociedade e com o etos do liberalismo burguês.
Aqui, as categorias sociológicas de Max Weber ou a análiseestrutural de Durkheim são mais úteis para entender essefenómenos do que a teoria política ou os determinismos econômicos. Em outro trabalho tentei salientar alguns dados paraesse tipo de análise, que não repetirei agora-", Trata-se, emsíntese, de destacar como o chamado à conversão como decisão pessoal, total e transformadora, que está no próprio centroda evangelização, significa a recriação de uma identidade, aconstituição de um sujeito que se sente capaz de decidir por simesmo, responsável e livre - "você tem de decidir", ''você está
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só diante do Salvador" -, com uma nova consciência de simesmo que o anima a tomar iniciativas. Em relação ao pentecostalismo, Doug Petersen falou neste sentido de uma "essertiveness", uma certa "segurança pessoal" como correlato daexperiência de conversão e dos novos papéis que ele assumena comunidade. Se acrescentamos a isso uma série de valoreséticos, temos o quadro de sujeitos eminentemente preparadospara o modelo líberal-modernízador.
3) Na medida em que essa mentalidade de classe se afírmae que, nas décadas subseqüentes, um número cada vez maiorde evangélicos acedem em realidade a modestas classes médias, a vertente política e social do socialismo e do comunismotoma-se-lhes tão inaceitável quanto a anti-religiosa. Emboranão me seja possível prová-lo, atrevo-me a pensar que, até adécada de 1920, a maioria dos evangélicos inclinam-se porpartidos democráticos entre populares e de classe média quelhes assegurem a liberdade religiosa - os radicais na Argentina ou no Chile, os colorados no Uruguai, os liberais na Colômbia, o PRI no México -, mas que, a partir desses anos, reagemcada vez mais fortemente contra a ideologia "de esquerda". Aadmiração pela democracia norte-americana, o antícomunísmo do fundamentalismo dos Estados Unidos a partir da década de 1920 e a ideologia de sua classe os levam nessa direção.Ainda não se voltam para a direita por causa da conexão clerical dessa ideologia, mas não demorarão muito a sentir-se atraídos por promessas militares de moral, ordem e estabilidade.
4) A tensão que sempre existiu na aliança do protestantismo e do liberalismo como "sócios" na luta pela democratizaçãoe contra os setores conservadores e clericais toma-se maispolémica quando os intelectuais mais moderados de fins doséculo 19 são sucedidos pela dura militância anti-religiosa dolivre pensamento e do posítívismo-". No Rio da Prata, por exemplo, aparecem, originadas especialmente no anarquismo espanhol, traduçôes de Feuerbach, Baur e Strauss, obras de Renane outros autores "modernistas", que circulam em bibliotecasde sindicatos e partidários do socialismo e do anarquismo eque são assumidas por certos intelectuais. Clemente Ricci publica em 1906 no periódico evangélico La Reforma uma tradução da refutação do professor italiano Aníbal Fiori do famosolivro de Milesbo (Emilio Bossí), Jesus Cristo nunca existiu,traduzido para o espanhol em 1905, e toma a publicá-la comolivro em 1922. Escrevendo em 1928, Ricardo Rojas demonstra
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em seu livro El Cristo invisible bastante conhecimento de certos aspectos de alta critica, das obras de Renan, Binet Sanglée outros. Não há por que pensar que isso fosse excepcional. Osexemplos poderiam ser multiplicados, tanto em nível culto quanto popular. O "combate pela fé" se trava fortemente agora também nesta frente.
5) Esse é o quadro em que se dá a recepção do fundamentalismo, e talvez especificamente do fundamentalismo pré-mílenarista. Embora darbystas (Irmãos Livres) e outras denominações fundamentalistas e pré-milenaristas (Adventistas, Aliança Cristã, União Evangélica) estivessem na América Latina desde ínícíos do século, a polêmica sobre esses temas só pareceativar-se bastante mais tarde. Inclusive, não aparece entre asdoutrinas fundamentais e só indiretamente no tratamento devários temas num manual de Grandes verdades biblices publicado pelos Irmãos livres só em 194428 • Não obstante, já naConferência Evangélica de Montevidéu (1925) a tensão se evidencia em dois temas. Um deles é a relação com o catolicismoem função do "status teológico" que uns e outros lhe atribuíam: para alguns, ele é uma igreja com a qual diferimos emalguns temas; para outros, é uma igreja que se desviou doevangelho; para outros ainda, é uma forma de paganismo disfarçado ou o anticristo. O outro tema, menos explícito, é aatitude para com o liberalismo teológico, que é discutido àsvezes como o conflito de opções prioritárias pela evangelizaçãoou pela ação social, como critica ao "evangelho social" ou naprópria definição de "evangelho". Quando se define o "evangelho" no Informe de Montevidéu, começa-se na trilogia harnackiana: "a paternidade de Deus" é continuada, em termos protestantes clássicos, com "a centralidade de Cristo" e é completada "evangelicamente" com "o pecado e a necessidade de arrependímenro">.
6) A intensificação do conflito se dá de diferentes maneirasnos diversos países. Mas já em torno do fim da década de 1940ela é muito forte, e não é arbitrário o fato de Bastian a situarem 1949, ano da I CEIA (Conferência Evangélica Latino-Americana) de Buenos Aires. A representação ainda é muito ampla.Mas, simbolicamente, irrompem na Conferência representantes do Conselho Evangélico Internacional de Carl Mdntyre.Unanimemente a Conferência rejeita sua tática "putschísta"para introduzir-se na reunião, porém não há dúvida de quesua denúncia do modernismo liberal e comunista produz seu
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impacto. No Brasil, igrejas e setores de igrejas logo embarcamno movimento, e em todas as partes - ainda que não se comprometam organicamente - o fundamentalismo separatistacresce em diversas denominações. A história posterior dispensa maiores explicações. Pode-se, caso se queira, segui-la muitobem no manual de história de Deírosê", As organizações protestantes de ampla participação - concilios, federação de jovens, campanhas conjuntas de evangelização - são desatívadas ou alienadas. Os setores interessados em manter um testemunho social ativo se agrupam (amiúde com o "ecumenismo" internacional) e criam suas organizações (MEC, ISAL, MISUR CELADEC, etc.). Buscam, de diversas formas, uma articulação teológica na teologia dialética ou numa "teologia daação de Deus na história". Porém não conseguem obter a participação de certas igrejas nem o apoio de boa parte dos membros (e às vezes tampouco das lideranças) das próprias igrejasdas quais fazem parte. Em torno de 1960 se percebe essa crisemuito claramente nas discussões da 11 CELA (1961) e, maisainda, nas da III CELA (1969). O rompimento torna-se logomais evidente: ecumênicos ou evangélicos, CLA! ou CONELA,"direita" ou "esquerda", "evangélicos" ou "líbertacíonístas": nãose aceitam "terceírísmos",
7) Um novo fator incrementa a oposição. As mudançasque, a partir da década de 1950, e mais especificamente apartir do Concilio Vaticano 11, parecem aproximar o catolicismode posições evangélicas, levam as igrejas evangélicas a adotar- estimuladas, sem dúvida, pelo movimento ecumênico uma atitude de diálogo. A condenação da Igreja Católica Romana como "antíevangélíca" é sucedida por uma aceitação damesma como um possível "sócio" na missão evangelizadora,atitude esta que os setores mais conservadores vêem comouma "traição do evangelho".
O que parece importante destacar- e esta é minha teseneste ponto - é que não se trata de igrejas contra igrejas nemde denominações contra denominações. Embora algumas igrejas, em alguns países, fiquem voltadas para uma direção ououtra e algumas se alinhem claramente no setor "evangélico",a crise atravessa todas as denominações e até as congregaçõeslocais. A ruptura, interna e externa, parece absoluta e defínítíva. Até em torno de 1990, a tese da "atomízação" de Bastianparece justificada.
46 Rostos do protestantismo latino-americano
3. Sombras e luzes do "evangélico"
A "atomízação'' e a "críse de identidade" do protestantismolatino-americano, das quais tanto se fala, estão muito ligadasao desenvolvimento desse processo do "mundo evangélico" e àsrespostas e reações que ele despertou dentro do próprio campoprotestante. Vinculando o movimento evangélico que acabamos de delinear e o pentecostalismo, Bastian fala de "um protestantismo sectário e mílenarísta" que, entre os anos de 1930e 1949, "irrompeu fora e independentemente do protestantismo estabelecido de origem liberal". Deixando de lado nestemomento a identificação do pentecostalismo com o processo doprotestantismo evangélico nas décadas precedentes, pareceme errôneo falar de "a partir de fora e independentemente". Oparentesco de origem, de piedade e até de teologia e a interpenetração das ondas missionárias anteriores e das novas nosobrigam a considerar o fenômeno como "interno ao protestantismo evangélico missionário" na América Latina. O que chamei de "o rosto evangélico do protestantismo latino-americano"define sua identidade desde o começo e até o presente. E umaidentidade protestante latino-americana que exclua esses traços não é concebível. Mais ainda: me atreveria a dizer que ofuturo do protestantismo latino-americano será evangélico ounão será. E por isso que interessa tanto tomar consciência deprocessos e direções negativos que ocorreram em nossa história protestante.
1. A influência do fundamentalismo extremo, divisionistee majoritariamente, ainda que não só, pré-milenarista tem tidoefeitos negativosnoprotestantismo evangélicona medida em que:
1.1) nos tem vinculado aos - e tem sido correia de transmissão dos - piores traços da ideologia e da política dos Estados Unidos, ao ponto de assumir como próprias as campanhasideológicas reacionárias da "nova direita religiosa" dos EstadosUnidos e apoiar os "regimes de segurança" e as políticas repressivas que, durante as últimas décadas, acompanharamessa política (os exemplos do Chile, da Guatemala e do apoiomaterial e ideológico aos "contras" na Nicarágua são ilustraçãosuficiente do que dizemos)?':
1.2) no campo ético, tem desenvolvido os aspectos maisvulneráveis da tradição evangélica e pietista: o legalismo e ajustiça própria, a oposição do material e do espiritual, a "separação do mundo", que na prática induz a uma dupla moral, os
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critérios sociais e políticos introvertidos (basta que um governopermita ou favoreça as igrejas para que seja aceitável: "Nóstemos liberdade para pregar" costuma ser a resposta ante osreclamos pelos direitos humanos);
1.3) na vida eclesiástica, a "doutrina da separação" temlevado ao isolamento e ao divisionismo.
1.4) O mais grave, porém, me parece ser a distorção doutrinal que legitima e, ao mesmo tempo, reforça essas tendências. Atrevo-me a dizer que esse tipo de fundamentalismo produziu, em vários sentidos, uma caricatura do rosto autenticamente evangélíco>:
a) A rica e transformadora experiência da fé se transformana aceitação de um esquema teológico estreito e estereotipado,mal chamado de "plano de salvação", como se se tratasse deum computador em que se tem de tocar algumas teclas paraobter os resultados desejados;
b) o reconhecimento da centralidade da Palavra bíblicavivificada pelo poder do Espírito Santo transforma-se numa"bíblíolatría" baseada numa hermenêutica ao mesmo tempoarbitrária e racionalista, além de estéril e repetitiva: em lugardo rico tesouro do qual "o escriba sábio tira coisas novas evelhas", o estudo da Bíblia vira um exercício de permanenterepetição;
c) em lugar da riqueza da comunhão fraterna em JesusCristo dos collegia pietetis luteranos, das "classes" e gruposmetodistas ou das congregações batistas, o pré-milenarismodespoja a comunidade de fé de todo o seu significado, transformando a igreja numa espécie de "sala de espera" do milênio,sem nenhuma significação soteríológíca:
d) o mesmo esquema transforma a história humana numa série de números e sinais a serem decifrados, em vez de umespaço onde o poder de Jesus Cristo avança e nos convida aparticipar de sua luta: a espera alegre da "parúsía do Senhor"vira uma charada de somas e subtrações de anos e datas.
Certamente participei de cultos e reuniões em númerosufícíente e tive uma relação fraterna com um número demasiado de homens e mulheres dessa persuasão para não saberque essa é uma caricatura quando se a relaciona com sua vidacristã concreta: vi aí a alegria da salvação, a vida transformada, o amor fraterno, a solidariedade e o serviço, o testemunhono mundo e até a participação em causas de justiça e paz.
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Jesus Cristo é maior do que nossas imagens dele, e o Espíritoé mais poderoso que nossas expectativas mesquinhas. E elessão capazes de atuar apesar de nossas distorções teológicas.Mas vi também o mal que essas distorções têm causado: aspolêmicas estéreis, as divisões desnecessárias, as oportunidades de testemunho perdidas e os "antítestemunhos" na vidaprivada e pública de igrejas e crentes. Nenhuma igreja tem omonopólio desses elementos negativos e nenhuma está totalmente isenta deles. Mas é bom identificá-los dentro e fora denossa casa para corrigi-los.
2. Não há como deixar de perguntar-se: se essa tendênciatem tantos aspectos negativos, como é possível que tenha obtido e obtenha tão ampla difusão em nossas igrejas?
2.1) Sem dúvida há fatores sociais - já salientados - quetêm contribuído para isso. Por outro lado, Rubem Alves analisou com muita perspicácia aspectos psicológicos ligados à segurança e ao sentido de poder que operam nesse fundamentalismo, que ele analisa com profundidade no "protestantismo dareta doutrina" de sua própria igreja de origem. 1à.mpouco podemos silenciar o fato de que a soberba, a acusação indiscriminada e a zombeteira auto-suficiência com que muitos de nóstemos respondido ao fundamentalismo não fizeram mais doque confirmá-lo.
2.2) Há, entretanto, um elemento positivo que me parecemais importante: confrontados a partir de fora pela crítica destrutiva das correntes positivistas e atéias e a partir de dentropelas linhas teológicas que pareciam esvaziar de conteúdo a féevangélica, muitos evangélicos viram no fundamentalismo aúnica barreira que podiam levantar ante esses inimigos, a única defesa de uma fé que dava sentido a sua vida. Se por causada crítica atéia e do liberalismo teológico perdiam a Escritura,de cujas páginas haviam recebido a mensagem da salvação, seo fervor de sua piedade se esfriava numa religião tão formal eritualista quanto a que haviam deixado ao se converter, se orelativismo ético os submergia numa anomia, destruindo asnormas que haviam pautado sua vida, e se o relativismo religioso destruía a motivação e a urgência para comunicar amensagem a outros, o perigo era mortal e era necessário buscar uma resposta. O fundamentalismo se lhes apresentavacomo uma resposta segura, como um baluarte inexpugnável ecomo uma arma poderosa no combate pela verdadeira fé.
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3. Se houvesse uma saída para essa situação, a respostadeveria surgir do próprio seio da piedade evangélica. Ela chegade duas maneiras. Uma, que olharemos mais de perto no próximo capítulo, é o movimento pentecostal. A outra, à qual dedicaremos algumas poucas linhas para concluir nossa reflexãodeste capítulo, é o que tem sido chamado de movimento "neoevangélico", um neologismo que não me agrada: eu prefeririafalar simplesmente da renovação evangélica que na AméricaLatina é representada principalmente pela Fraternidade 'Teológica Latino-Americana (FTL), vinculada com os nomes de RenéPadilla, Pedro Savage, Samuel Escobar, Pedro Arana, Emilio A.Nunez e muitos outros, e que tem tido uma gravitação cada vezmaior no mundo evangélico desde suas origens em 1970. Semdúvida ela também tem sido estimulada e nutrida por movimentos no exterior, particularmente em grupos evangélicosdos Estados Unidos e na ala evangélica do anglicanismo britànico. Mas tem um rosto próprio e uma história particular emnosso continente. Eu me animaria a destacar o que consideroos traços mais significativos:
3.1) Resgata-se e recupera-se uma tradição evangélica,particularmente ligada ao movimento anabatista dos séculos16 e 17 e ao despertar evangélico do séc. 18 na Inglaterra e nosEstados Unidos (de que falamos antes) tanto na tradição reformada quanto na wesleyana, mas também às origens de nossopróprio protestantismo missionário na América Latina. Os trabalhos de Escobar, Arana e Padilla nos mostram, ao mesmotempo, que não se trata da mera reivindicação de uma tradição, e sim de buscar nela elementos que fecundem uma reflexão teológica e uma prática evangélica para a América Latinade hoje;
3.2) o movimento começa com uma afirmação da centrelidade das Escrituras, na dupla frente da critica ao literalismotorpe e à interpretação arbitrária do fundamentalismo e de umliberalismo que parecia reduzir a Bíblia a uma coleção de documentos do passado ou a um repositório de verdades religiosas e éticas gerais e universais. Na reunião de Cochabamba de1970 isso foi expresso da seguinte maneira:
O assentimento à autoridade da Bíblia poderia ser consideradouma das características mais gerais do movimento evangélicona América Latina (...) Cabe, entretanto, admitir que o uso realda Bíblia por parte da generalidade do povo evangélico latinoamericano nem sempre coincide com esse assentimento que adistingue. A Bíblia é reverenciada, mas a voz do Senhor que fala
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nela nem sempre é obedecida (000) Necessitamos de uma hermenêutica que em cada caso faça justiça ao texto bíblico (...) Amensagem bíblica tem indiscutível pertinência para o homemlatino-americano, porém sua proclamação não ocupa entre nóso lugar que lhe corresponde,33
Desde então o trabalho se aprofundou e ampliou, e podemosvê-lo em comentários bíblicos, trabalhos de tradução e exegese
Capítulo 3
O rosto pentecostal do protestantismolatino-americano
Em sua famosa obra Siete ensayos sobre la realidad pe-ruana, Carlos Mariátegui sentenciava em 1928:
O protestantismo não consegue penetrar na América Latina porobra de seu poder espiritual e religioso, mas de seus serviçossociais (ACM, missões metodistas da serra, etc.). Este e outrossinais indicam que suas possibilidades de expansão normal encontram-se esgotadas. 1
Naquela época Maríáteguí tinha razão: o protestantismo jácontava com quase meio século na região; as igrejas estavaminstaladas, mas só haviam conseguido, em nível estritamentereligioso, colher membros no que há anos chamei de "o pósolto na superfície da sociedade latino-americana". O que oescritor peruano não podia adivinhar era que, 20 anos antes,numa cidade portuária do Chile e um par de anos depois nacrescente São Paulo, havia começado a gestar-se um protestantismo que, nas transformações sociais que começavam aaparecer quase na data em que ele escrevia, derrubaria a barreira que fechava para o protestantismo o acesso às massaspopulares.
O mais notável dos missionários vindos para a AméricaLatina, concordando explicitamente com a critica de Maríáteguí, sustentava que "nenhum movimento cristão pode ter êxitose não comove as massas (...) Estou convencido de que boaparte do esforço missionário e a obra cristã em geral errarampor tentar alcançar exclusivamente os líderes.'? 1àlvez fosseuma confissão, depois de 16 anos em que tentou, precisamente, a "evangelização dos intelectuais". Vinte e cinco anos depois, já radicado nos Estados Unidos e depois de uma touméelatino-americana, John A. Mackay - pois é dele que se trata- saudaria o crescimento pentecostal como cumprimento daquela visão de 1939:
Os pentecostais tinham algo a oferecer, algo que fez vibrar pessoas letargadas pela monotonia e desesperança de sua exístên-
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cía, Milhões responderam ao evangelho. Sua vida foi transformada, seu horizonte foi ampliado; a vida cobrou um significadodinâmico. A realidade de Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo- que antes não passavam de termos sentimentais ligados aoritual e ao folclore - cobraram novo significado, tomaram-semeios pelos quais se comunicavam luz, força e esperança aoespírito humano. Elas se transformaram em pessoas com umpropósito para viver.3
Entrementes, com efeito, o movimento pentecostal estavabem avançado nesse desenvolvimento que já começava a fascinar os estudiosos de fenômenos religiosos.
Todas as histórias do pentecostalismo latino-americanocomeçam com o "despertar" associado ao nome do missionárioWillis C. Hoover, da Igreja Metodista, e à cidade de Valparaíso,no Chile, e continuam com Francescon e as Assembléias deDeus no Brasil. Logo o pentecostalismo se multiplica, diversifica e expande, e a partir da década de 1950 se apresenta comoo rosto popular do protestantismo na América Latinas: 14.500em 1938, 1 milhão em 1950, 37 milhôes em 1980. E os entusiastas falam de 65 milhôes de pentecostais no final do milênio.
Não é meu propósito seguir essa história. Menos aindatentar "típífícar" os diversos "pentecostalísmos". Interessa-nostambém aqui refletir sobre sua piedade e teologia. E para fazerisso vamos limitar-nos ao que tem sido chamado de "pentecostalismo crioulo", colocando entre parênteses as novas correntes pentecostais da última década e os movimentos carismáticos dentro das igrejas "tradicionais". Não se trata de negar ousubestimar a importância desses movimentos. Quanto ao primeiro, creio que sua diferença em relação ao pentecostalismocrioulo é de ordem qualitativa: inscreve-se em outra dinãmicasocial, relacionada com as condições e estratificações sociaisgeradas na aplicação das políticas econômicas e sociais do"neolíberalísmo'': tem outra racionalidade, mais vinculada aouso de meios criados pela "razão técnica" e empregados "apartir de cima" sobre as novas condições, muito diferente da"criação social" popular do pentecostalismo crioulo. Gera, porconseguinte, outro tipo de adesão, mais ligada ao "consumo debens religiosos" do que à incorporação ativa a um sujeito religioso intencional. Creio, portanto, que requer outros métodosde pesquisa e outras pautas teológicas de avaliação. Não é esteo caso dos movimentos carismáticos dentro de igrejas já estabelecidas. Estes, contudo, também diferem por originar-se sobre o pano de fundo de uma prática religiosa protestante ou
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católica já estabelecida e, em geral, dentro dos parâmetros damesma e por pertencer, em sua maioria, a setores de classemédía, com suas características psicológicas e sociais próprias.E de se esperar que um trabalho metodológico mais preciso eprofundo permita entender melhor essas realidades do camporeligioso latino-americano atual".
1. O que representa o pentecostalismo dentrodo protestantismo latino-americano?
Diferentemente do que fizemos em casos anteriores, nãome parece adequado começar com as raízes estrangeiras dopentecostalismo. Não se trata de negá-lo; voltaremos a isso nasegunda seção deste capítulo. Começar aí, entretanto, obscureceria a natureza do fenômeno que tencionamos evocar. Semdúvida teve importância o contato do pastor Hoover com asprimeiras manifestações pentecostais norte-americanas; curiosamente, por meio de uma carta e um livrinho enviados daÍndia à esposa do missionário por uma amiga missionária quehavia descoberto lá o movimento nascido na Califórnia apenasquatro anos antes. Ou a história do italiano valdense LuígíFrancescon, que havia recebido o batismo do Espírito numacongregação batista de fala italiana de Chicago em 1907 e veioà Argentina e ao Brasil em 1910 como resultado de uma visão.Esses "dísparadores", porém, só fazem despertar uma vivênciareligiosa de setores populares latino-americanos. A sementepoderá ter sido produzida em Los Angeles ou Chicago, mas foiplantada em terra latino-americana, alimentou-se das substâncias vitais desta terra e as novas massas populares latinoamericanas comprovaram que o sabor de seus frutos correspondia às exigências de seu paladar. Francescon, Hoover ouBerg podem ter tido um sotaque estrangeiro, mas "a língua doEspírito" que falavam encontrou eco nos portuários de Valparaíso ou nos operários de São Paulo e foi repetida na linguagemde rotos [integrantes da classe baixa] chilenos, de indígenastobas ou aymaras ou de camponeses centro-americanos.
1. O protestantismo latino-americano não reparou no queestava ocorrendo até que as congregações pentecostais começaram a multiplicar-se em sua vizinhança. Para o protestantismo "evangélico" elas representavam um desafio e uma tentação. Podiam reconhecer nos pentecostais sua própria teologia,
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suas posturas éticas e seu zelo evangelizador. Porém suas manifestações lhes pareciam estranhas e seu crescimento os assustava e, ao mesmo tempo, os seduzia. Alguns se entrincheiram em sua identidade denominacional e os rejeitam, outrosse entusiasmam e os emulam. Geraram-se conflitos e, em alguns casos, rupturas. Batistas e Irmãos Livres sofreram maisagudamente essas tensões, mas elas não estão ausentes entremetodistas, presbiterianos ou Discípulos de Cristo.
2. Para o protestantismo "liberal" o tema foi mais difícilainda. A primeira reação foi decididamente negativa. A IgrejaMetodista do Chile o resolveu drasticamente em 12 de setembro de 1909: Hoover e seus seguidores foram expulsos da Igreja Metodista e os ensinamentos e práticas de seu movimentoforam rejeitados por serem "antlmetodistas, contrários às Escrituras e irracionais". "Nesse dia", comenta Hollenweger, "osmetodistas asseguraram a lei e a ordem, mas perderam o coração das pessoas. Os pentecostais [chilenos] celebram o dia12 de setembro como o aniversário de sua reforma."6 O tempoapararia as arestas. Durante muitos anos, porém, o veredictoseria o mesmo.
Quando a Igreja Metodista qualifica o pentecostalismo como "irracional", ela levanta um problema que não pode ficarsem resposta. Com base em que racionalidade se emite essejuízo? É possível que haja uma racionalidade que permita entender o que ocorre? Uma nova geração do "protestantismoliberal" começa a tentar responder essas perguntas. Seu instrumental para fazer isso nasce da racionalidade moderna queconformou esse protestantismo: tenta-se buscar a respostanas ciências sociais.
3. A partir dessa perspectiva aparecem uma série de hipóteses diversas, mas que têm um denominador comum: vêem opentecostalismo como um movimento que se situa na transição da América Latina de uma sociedade tradicional a umamoderna ou, mais especificamente, na transição de uma sociedade majoritariamente agrária a uma parcialmente industrializada, de uma sociedade rural a uma urbana. A inserção dopentecostalismo nesse espaço de mudança é vista a partir devárias perspectivas. Embora este não seja nosso ponto centralde concentração, convém repassar rapidamente algumas dasteses mais caracteristicas:
Embora haja alguns trabalhos anteriores, curiosamente
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três obras protestantes - duas delas suíças e uma brasileirade origem alemã - são as primeiras que tentam uma análiseprofunda do fenômeno pentecostal.
O professor e historiador Walter Hollenweger? o vê comoum fenômeno típico da cultura das classes populares: trata-sede uma religião oral, que se expressa em símbolos - canto,dança - e emoção, pré-conceitual, da qual não se pode esperar uma teologia explícita e sistematizada. A perspectiva empregada corresponde a uma visão para a qual há uma espéciede "progresso" de etapas mais primitivas, inarticuladas e primárias para outras mais evoluídas, caracterizadas pelo discurso escrito, capazes de abstração e sistematização. Nesta teoriahá uma certa verdade: parece, com efeito, que tanto no niveldo desenvolvimento psíquico individual quanto no nivel dassociedades, os processos de abstração, conceitualização e sistematização levam certo tempo para desenvolver-se. Amiúde,entretanto, essas teorias revelam certos preconceitos: que setrata de um avanço de formas "inferiores" para outras "superiores"; que as segundas são mais "profundas" ou têm maiorriqueza do que as primeiras; que a "abstração" capta com maiorprecisão as realidades às quais se refere. Surpreende-nos, então, quando culturas "desenvolvidas" regressam a manifestações que acham mais satisfatôrias,mais completas, mais expressívas''.
Os sociólogos Emilio Willems e Christian Lalive d'Epinayestudam o pentecostalismo chileno e brasileiro seguindo umesquema weberiano: o pentecostalismo funciona como umasaida ou uma maneira de responder à crise pessoal e coletivadesencadeada pela passagem de uma cultura rural tradicionala uma cultura urbana, industrial e democrática. Para Wíllems?o pentecostalismo constrôi um caminho de transição rumo auma nova identidade, modos de vida e estrutura social, e porele os fiéis podem entrar positivamente na sociedade moderna,adaptando-se a ela'", Para Lalíve!', por sua vez, o que o pentecostalismo lhes oferece é um "refúgio", que, ao mesmo tempoque lhes permite viver na nova sociedade, os protege, recriandona comunidade eclesial uma espécie de "sociedade tradicional"substituta. Para ambos, a nova identidade que a conversãoproporciona, a liderança aberta que não se legitima profissionalmente, e sim pelo carisma pessoal, e a solidariedade cara acara da comunidade pentecostal são os novos fatores que fazem do pentecostalismo uma religiosidade adequada à condição de anomia produzida pela mudança.
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làmbém para o sociólogobrasileiro Francisco Cartaxo Rolim12
a transição é fundamental. Faz, porém, duas críticas importantes a seus predecessores. A primeira é que eles se preocupam mais com "o que o pentecostalismo faz" do que com "o queo pentecostalismo é", a saber, um movimento religioso e, portanto, postado no plano simbólico, de busca de sentido. A segunda é que a transição na sociedade não deve ser vista principalmente como uma passagem do agrário ao urbano, da sociedade tradicional à moderna, e sim como uma transição deum sistema económico para outro, especificamente, para ocapitalismo dependente. Por conseguinte, o problema tem aver com um conflito de classe. Seguindo uma linha marxista,Rolim pressupõe que a identidade dos setores sociais só podeser construída em relação com sua posição na estrutura social. Assim, o pentecostalismo faz parte de uma identidadeprópria de uma "classe indefinida" que se situa entre a classemédia e os trabalhadores-", necessariamente portadora de umaconsciência ambígua. Por isso, quando o compara com as comunidades de base (CEBs), conclui que, ao passo que o pentecostalismo desloca o reclamo de justiça social para o mundoespiritual (porque não tem uma inserção definida de classe nomundo operário), as CEBs criam consciência social porque sãouma classe "em si e para si". Embora esta proposição sejamuito discutível, o enfoque de Rolim tem o valor de ver o pentecostalismo não só como parte de uma dinâmica social, mascomo urna estrutura de significado, como um fenômeno especificamente religioso. 'lenta inclusive definir sua teologia - que,naturalmente, chama de "ideologia pentecostal" - e reconhecea medida de continuidade que existe entre essa religiosidade ea religiosidade tradicionallatino-amerícana.
Mais uma vez devemos perguntar-nos se essas são aspressuposições adequadas para entender um fato religioso. Érazoável pensar que a posição na estrutura social influencie ascaracterísticas do fenômeno religioso. Entretanto, acaso o faráao extremo que Rolim supõe? Ainda dentro da mesma perspectiva, os trabalhos de Néstor Garcia Canclini permitem avançarmais. Por um lado, se é verdade que os sentidos construídospor um setor social tentam harmonizar sua visão da realidadecom as condições objetivas nas quais vive, também é verdadeque não se trata de visões "congeladas", e sim de processosdinâmicos, nos quais cada setor luta para impor uma perspectiva do mundo que tem a ver não só com sua situação estrutural' mas também com suas tradições - neste caso, com
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suas tradições religiosas - e com outros elementos: "o que ohomem imagina para além de suas condições materíaís">'. Então, "é razoável pensar (...) que devamos considerar a possibilidade de que haja outras ordens da vida humana (conflituosasou não) que se expressem através de canais religiosos: o medoda morte ou da doença, o sentido de culpa, a busca de umsentido transcendente para a vida"15. Nesta direção começama aparecer estudos que buscam uma perspectiva hermenêuticado sistema simbólico pentecostal utilizando trabalhos de autores tão diversos como Ricoeur, Cassirer, Bourdieu ou Luckmann.
4. Não convém esquecer que todos esses ensaios compartilham uma posição comum: olham o pentecostalismo a partirde fora. Mesmo um "observador participante" - como se define Lalive - continua desfrutando dessa "vantagem", que poderia garantir uma maior objetividade, e sofrendo dessa limitação, o difícil acesso aos dados de uma subjetividade que nãocompartilha e que constitui o próprio cerne daquilo que estuda. Por isso não é de estranhar que os pentecostais olhem deforma dubitativa esses estudos: por um lado, reconhecem-seneles em sua realidade social; por outro, sentem que não selevou em conta o que é mais decisivo e vital para eles.
Uma segunda ou terceira geração de pentecostais, queconhece a fundo as categorias dos trabalhos realizados e nãorejeita algumas de suas hipóteses, começa a elaborar a partirde dentro uma compreensão mais profunda da experiênciapentecostal. Duas obras recentes me parecem particularmentevaliosas nesse sentido: a pesquisa da equipe chilena apoiadapelo SEPADE que foi publicada em dois tomos com o sugestivotitulo En tierra extreiiew e os trabalhos do encontro pentecostal latino-americano realizado no Chile em 199017. Antes de mereferir a eles, entretanto, gostaria de propor o tema da "teologiapentecostal normativa", que nos permitirá - na última parte- um diálogo com essas novas tentativas.
2. A teologia do pentecostalismo
1. Existe uma teologia "pentecostel"? Embora quase todosos autores advirtam que é necessário levar em conta as variações teológicas existentes dentro do pentecostalismo, a maioriacoincide em propor um esquema teológico vertebrado em tomode quatro temas:
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A salvação, pela graça de Deus, obtida pela morte vicáriade Jesus Cristo - o sangue redentor - e recebida pela fé. Aquié central a experiência da conversão, pois, se é verdade que agraça é gratuita e para todos, a experiência pessoal dessa graça, muitas vezes mas nem sempre associada a uma conversãodramática e biograficamente identificável, confere realidade pessoal à salvação-".
O batismo do Espírito Santo, interpretado como uma "segunda experiência", testemunhada pelo "dom de línguas" evinculada à santificação, que às vezes é entendida como umprocesso de crescimento e outras como um dom divino concedido numa experiência única e definitiva. Embora nem todosos pentecostais atribuam o mesmo peso ao "dom de línguas",para todos o "receber poder" é central para o batismo do Espírito ou no Espírito.
A saúde divina como promessa para todos os crentes, quese toma realidade na comunidade da igreja, habitualmentemediante a oração e a imposição de mãos. Deve-se reconhecerque a ênfase na saúde não é igual nos diversos ramos dopentecostalísmo'v.
Uma escatologia apocalíptica, quase sempre pré-milenarista, cujos subtemas costumam ser: a ressurreição, a segunda vinda e o Reino milenar, o juízo e o Reino eterno.
Este esquema não implica a negação das outras doutrinasclássicas da fé. Algumas declarações doutrinais incluem a inspiração das Escrituras (Assembléias de Deus, 1949), qualificada em alguns casos como "verbal" (Igreja de Deus de Cleveland), a doutrina de Deus e da trindade (Igreja de Deus deCleveland e Assembléias de Deus), uma crístología calcedonense (ambos os grupos), o batismo (normalmente de crentes) e aigreja. Mas o que Donald Dayton chama de "o padrão quádruplo" (Cristo é o salvador, o santificador, aquele que cura e o reique vem) parece representar adequadamente a tradição comum do pentecostalísmo-",
2. Devemos incluir este resumo no contexto do que destacamos no capítulo precedente sobre os "avivamentos" ocorridos nos Estados Unidos na segunda metade do século 19,porque ai se acende a faísca do despertar pentecostal. Na verdade, toda a teologia do avivamento norte-americano se inscreve numa "teologia do Espírito" que se move, por assim dizer,em três etapas que em boa medida se sobrepõem: a conversãocomo obra subjetiva do Espírito na salvação, a santiJicação
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como "segunda bênção" - seja repentina ou gradual, plena oucrescente, às vezes chamada de "batismo do Espírito" - e a"plenitude do Espírito" (ou "receber o poder do Espírito"), associada no pentecostalismo ao dom de línguas e a outras manifestações extáticas (às vezes consideradas uma "terceira bênção" e outras vezes identificadas com a segunda).
Habitualmente se fala do começo do pentecostalismo comas manifestações do ministério do pastor negro William Seymour no salão da rua Asuza em Los Angeles em 1906. Em suaobra clássica intitulada The Holiness-Pentecostal Movement inthe United Ststes", V. Synan caracteriza essa teologia como"armíníana, perfeccionista, pré-milenarista e carismática".
Essa interpretação, porém, foi criticada pelas pessoas quevêem uma dupla orígem-", sendo que um de seus componentes está mais ligado à tradição reformada e batista. Seguindoessas interpretações, o pastor Douglas Petersen, missionáriodas Assembléias de Deus na Costa Rica, sustenta em sua tesede doutorado que se deve falar de duas correntes que convergem no movimento: a tradição wesleyana de santidade e alinha pré-milenarista e dispensacionalista das Conferências deKeswick e das "Propbecy Conferences" em sua inserção dentrodo movimento de Moody, Thrreye outros evangelistas. A "recuperação" do dom de línguas, cuja longa tradição conhecemos eque já tivera manifestações nos avivamentos da segunda metade do séc. 19, vem a transformar-se num elemento distintivodo pentecostalismo desde o ministério de Parham em 'Iopeka.Kansas (do qual se desliga - em parte devido às tendênciasracistas de Parham - o evangelista leigo Seymour), e a tradição do "empowerrnent" relacionado com a evangelização. saúde e milagres, mais ligada à linha Keswick e igualmente recebida em algumas linhas do desenvolvimento pentecostal. Aconvergência das duas linhas não impede que as ênfases sejamdistintas entre aqueles que estão mais ligados a uma ou outra.
3. O rápido desenvolvimento posterior, tanto na própriaCalifórnia quanto no leste e em igrejas batistas de Chicago.gera logo uma variedade de igrejas. sejam igrejas novas, sejaentre as existentes no movimento de santidade que assumemo pentecostalismo. Essa é a tradição teológica das diversasigrejas pentecostais que entram na América Latina na primeirametade deste século.
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3. Uma teologia pentecosta1latino-americana?
1. Os trabalhos de Sepúlveda e Campos, que mencioneianteríormente, buscam uma expressão teológica que se originena própria experiência pentecostal latíno-amerícana. Assim,Sepúlveda descreve a teologia pentecostal da experiência chilena inicial (1910-1960) "no contexto da exclusão", cujos eixosseríam: a) uma visão maniqueísta do mundo (Espírito versusmatéria, céu versus terra, igreja versus mundo, crente versusgentio, Deus versus diabo, bem versus mal e alma versus corpo), como uma radicalização devida "a uma experiência real danegatividade e crueldade do mundo". "Quando um pentecostaldiz: 'Este mundo nada oferece, só oferece perdição', não estáfazendo uma afirmação dogmática, e sim narrando ou tematízando sua própria experiência" (miséria, desemprego, doença,alcoolismo, etc.); b) "determinismo e pessimismo antropológico" descreveríam respectivamente a experiência do "homemvelho", incapaz de libertar-se por si mesmo de certos "vícíos",e seu sentimento de impotência frente a forças objetivas quenão pode dominar (personificadas em Satanás e nos demônios); c) no pentecostalismo chileno, diferentemente do norteamericano, a afirmação do "poder do Espírito Santo" não corresponde a uma doutrina e uma codificação, mas a um reconhecimento da obra do Espírito em "múltiplas manifestações(...) desde as línguas angélicas até a simples alegria, passandopela dança, pelas visões, etc. (...) a certeza da proximidade e dapresença viva de um Deus perdoador e acolhedor (...) É umaforma de reapropriação social e popular do poder de Deusfrente à sua apropriação sacramental pela Igreja Católica e àsua apropriação racionalista pela pregação do protestantismohistórico"; d) igualmente, frente à apropriação da Bíblia pelos"profissionais da religião", "desaparece toda mediação entre ocrente e a Bíblia que não seja a iluminação e inspiração doEspírito Santo; cada crente pode ter sua própria Bíblia, a ler,compreender e pregar; e) finalmente, há "uma 'igreja militante'na qual se entra pela conversão e à qual se subordina seusinteresses pessoais, da qual se participa plenamente e com aqual se assume um compromisso total"23.
2. Essa teologia é suficiente? Provavelmente, ninguém quetenha lidado ainda que rnínímamente com irmãos e congregações pentecostais vai querer disputar a exatidão dessa interpretação. Sepúlveda, entretanto, quer levantar a pergunta acer-
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ca de como o pentecostalismo crioulo pode evoluir teologicamente frente às mudanças que acontecem na sociedade (emseu caso, o do Chile, frente à abertura social de 1964 a 1973 eà ditadura de 1973 a 1985). É que agora o pentecostal já nãose percebe simplesmente como alguém excluído de um mundodominado por Satanás, e sim como um possível participantede mudanças democráticas que melhorem a condição de todos, alguém excluído por fatores históricos (a ditadura) quepodem ser identificados. As pessoas com essa percepção começam a ler a Bíblia com outros olhos, a ver a militáncia e amissão cristã de outra maneira, a buscar sua "identidade pentecostal" em outros termos. Ao mesmo tempo, porém, essamudança implica uma certa "mediação ideológica" na qual muitos temem perder sua identidade evangélica e alguns vêemcomo única saída a defesa do status quo e, portanto, se inclinam a linhas de participação social e política que o assegurem(com o que, de fato, também assumem uma mediação ideológica de outro signo).
Ocorre-me que haveria aqui uma pergunta a ser colocada:em que medida essas opções ideológicas são resultado da experiência geral do povo pentecostal - como parece pensarSepúlveda - e em que medida são opções ideológicas de alguns dirigentes, que não são necessariamente assumidas pelamaioria? As indicações dos resultados da votação no próprioChile em plebiscitos e eleições em circunscrições com umapresença pentecostal significativa parecem sugerir que nemsempre as opções dos dirigentes, que são seguidas no planoreligioso, também o são no plano político. Essa suspeita podeser corroborada em outras experiências "políticas" de líderespentecostais em outros países latino-americanos. Esta observação, todavia, não invalida a afirmação fundamental de Sepúlveda no sentido de uma evolução da consciência pentecostal de um plano predominantemente simbólico para um planomais histórico.
Parece necessário salientar que essa passagem a uma participação social e política mais marcante tem ao menos trêsformas de expressão, que em alguns aspectos são contraditórias.
a) Por um lado, é evidente que surge nas igrejas pentecostais uma consciência social que se expressa em "serviço aosmais necessitados", não mais simplesmente em nível pessoal eocasional, mas de forma institucionalizada, e não mais só aosmembros da igreja, mas à comunidade que os rodeia. Os pro-
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gramas de serviço à ínfãncía das Assembléias de Deus na América Central, os serviços sociais, médicos e jurídicos oferecidosem muitas igrejas pentecostais e outros projetos semelhantes- que às vezes sofrem alguma resistência por parte de pastores ou grupos mais tradicionais - mostram ao mesmo tempoum avanço institucional e um sentido mais reflexivo de responsabilidade social.
b) Em segundo lugar, várias consultas latino-americanasde igrejas pentecostais - por certo não de todas elas - tentaram articular convicções éticas relativas à sociedade, uma espécie de "projeto de credo social". O "Encontro de PentecostaisLatino-Americanos" realizado em Salvador, Bahia (Brasil) emjaneiro de 1988, constata o seguinte:
As experiências narradas pelos palestrantes e compartilhadaspor todos os grupos nos permitiram reconhecer como um fatonovo, e já com certa força no universo pentecostal, o surgimentode igrejas pentecostais que, superando uma tendência históricaà marginalização do social, vêm se comprometendo com os quesofrem e descobrindo novas formas de participação socíal.ê?
O encontro seguinte tem lugar em Santiago do Chile emdezembro de 1990 sob o tema "Pentecostalismo e libertação" ese propõe a "propiciar um espaço para debater problemas,desafios e contribuições do movimento pentecostal no contextolatíno-amerícano'w. Dois parágrafos me parecem significativospara resumir essa nova consciência:
O movimento pentecostal se situa, majoritariamente, entre ossetores mais empobrecidos de nossos campos e cidades. A partirdessa realidade, que foi também a realidade a partir da qualJesus situou seu ministério (Lc 4.18), o pentecostalismo desafiauma sociedade em pecado e em franco processo de decomposição. Ao mesmo tempo ele é desafiado pela necessidade de justiçae restauração de nossos povos, e aí ressaltam a marginalizaçãoda mulher, dos aborígenes, dos negros, dos jovens. A esses desafios são dadas respostas esperançosas, mas também muitasvezes escapistas.
Reafirmamos nossa convicção na obra do Espírito Santo, quese manifesta nos diversos dons; nas experiências de fé que produzem impacto na vida pessoal. na vida familiar, na vida comunitária e em toda a criação. transformando-as e enchendo-as daplenitude de Deus. Plenitude de Deus que se mostra na multiforme graça do Senhor, nas ações libertadoras do Espírito querompem estruturas pecaminosas de destruição. miséria e mortevencidas por Jesus Cristo; nos testemunhos poderosos de mu-
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lheres e homens que, na igreja e fora dela, lutam e trabalhampela "vida abundante", promessa de Jesus, com os pobres, ostristes, os que não têm quem os socorra, os oprimidos.
Thmei a liberdade de destacar frases que, entre outras,marcam um significativo aprofundamento da consciência teológica: uma leitura da Bíblia que vai além do literal e chega auma fusão, que o pentecostal já faz na prática, do horizontesocial do texto e do próprio horizonte social; uma visão dasociedade que leva em conta os aspectos estruturais da vidahumana - opressão, discriminação, decomposição social- evê neles um âmbito de ação do Espírito; e, por conseguinte, aconsciência de que, nesse espaço - fora da igreja - há umagenuína vocação evangélica.
c) Ao lado dessas ações de serviço e dessas reflexões emnivel teológico e social se desenvolve, amiúde sem maior contato com aquelas, uma "atividade política" de líderes e grupospentecostais que, inclusive, tem chamado a atenção de observadores não-crentes. Os exemplos conhecidos do Peru nas últimas eleições, de parlamentares evangélicos no Brasil, de tentativas de formar partidos políticos evangélicos na Argentina eoutros menos conhecidos em nivel de eleição de autoridadescomunitárias e municipais ou de funcionários em postos deindubitável sentido político, para não falar da presença evangélica na vida e nas lutas políticas da América Central, constituem uma nova realidade que não podemos excluir de nossaanálíse-".
As observações que fiz a partir de contatos pessoais, geralmente ocasionais e um tanto superficiais, me sugerem que, namaioria dos casos, não há ainda uma vinculação consciente dafé que professam com a atividade política que assumiram, exceto pela afirmação muito geral de "fazer o bem" ou "procurarajudar" e das possibilidades de evangelização (p. ex., levar aBíblia e a oração para o seio da vida política ou favorecer ascondições de trabalho da igreja e, inclusive, defender a liberdade religiosa). Não que essas motivações não sejam genuínas e,até certo ponto, legitimas. Porém a falta de mediação entreuma estrutura de pensamento ético-social e uma compreensãoanalítico-critica do âmbito político pode facilmente trair a honestidade das pessoas que participam (quando optam por posições ideológicas cujas conseqüências sociais não chegam aperceber) ou dar lugar a uma instrumentalização "teocrática"do poder - habitualmente bastante limitado - dessa participação.
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Por outro lado, a falta de experiência das pessoas queassumem essas atividades - em não poucos casos, pastorescuja popularidade local foi construída a partir de sua liderançareligiosa ou atividade beneficente - as toma muito vulneráveisàs tentações do poder ou às "artimanhas" de uma políticacaracterizada pelo clientelismo. Talvez fosse desejável que acrescente consciência social dessas e de outras comunidadesevangélicas que habitualmente estiveram ausentes da atividade política se encaminhasse para a participação em "movimentos sociais"; associações de bairro, grupos que se ocupam dediversos interesses da comunidade, associações de consumidores, movimentos ecológicos, entidades de direitos humanos,associações de apoio a escolas ou hospitais e muitas outrasformas de participação social em nível local ou nacional. Emprimeiro lugar, porque as metas e propósitos estão mais delimitados e especificamente definidos, e os crentes podem participar mais confiadamente; em segundo lugar, porque as relações são mais pessoais e cara a cara, mais semelhantes ao queestão acostumados na comunidade eclesial; e, finalmente, porque há um nível menor de corrupção e a luta pelo poder émenos violenta. Neste sentido, os participantes podem adquirirexperiência, ao mesmo tempo que dão uma contribuição paraa vida pública. As constituições mais modernas de nossos paises começam a incluir diferentes possibilidades de participaçãoindireta ou semidireta na vida política, nas quais os evangélicos podem começar a canalizar sua consciência social. Certamente isso não substitui nem reduz a importãncia e a necessidade da vida política, em sentido mais estrito, e da participação partidária, mas talvez proporcione um espaço onde as vocações políticas específicas possam despertar e se desenvolver.
3. É claro que nem todo o pentecostalismo, nem sequertodo o pentecostalismo crioulo, compartilha dessa nova consciência e se abre espontaneamente a uma participação social epolítica. Ocorre que temos também aqui expressões de dirigentes pentecostais. Mas fica em pé a pergunta se as igrejas quese moveram nessa direção e os dirigentes que as expressam"explicitam" um desenvolvimento real da consciência religiosae expressam as aspirações sociais do povo pentecostal ou se,pelo contrário, introduzem um "revulsívo" que provocará umacrise interna ou conspirará contra a continuidade do crescimento que o tem caracterizado.
O problema é real, mas não pode ser resolvido com facili-
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dade: estamos, finalmente, frente a um pentecostalismo pujante, crescente, porém ameaçado pelos mesmos fatores sociais que tomam possível seu desenvolvimento? A perguntanão é puramente retórica quando vemos as opções sociais epolíticas de importantes setores pentecostais no próprio Chile,no Peru, no Brasil ou na Guatemala. Parece que o pentecostalismo, ao constituir-se num ator central do campo religioso,enfrenta decisões em que já não poderá perpetuar uma vivência de sua experiência de salvação nas condições de suas origens. Pode ser que muitos pentecostais contem entre os pobrese marginalizados, mas conjuntamente representam um atorsocial e político, o que modifica o contexto de sua experiênciae, conseqüentemente, os conteúdos implícitos nela.
Num excelente artigo, que, por respeito à sua complexidade e riqueza me eximo de resumir, Bernardo Campos desenvolve, com um aparato teórico diferente do de Sepúlveda, umatese semelhante: a exclusão da qual o pentecostal é vítima setransforma em fator positivo porque lhe permite romper com osentido da "sócio-produção oficial" e "criar seu próprio sentido".
Dessa maneira, a ruptura de um sentido opera simultaneamente a criação (recomposição) de outro sentido. 'Irata-se de umlabor artesanal, com o qual a comunidade pentecostal produz(reconstrói) o mundo, autoproduzíndo-se.ê?
Até aqui tudo bem. Um pouco mais adiante, porém, Camposcontinua afirmando:
Dessa forma, a comunidade pentecostante articula uma visãodo mundo cunhando-a com os elementos de que dispõe no momento. Não importa se, para o caso, esse elementos já estãoidentificados com os modos de conhecer ou os modos de atuarde formações religiosas católicas ou protestantes, se correspondem a ideologias (...) ancestrais de seu mundo social antigo (.. .)ou se são estranhos à sua produção nacional.28
É verdade que nessa reconstrução "não importam" os modos de conhecer e de atuar que já façam parte da bagagemprévia das pessoas que reconstroem? A própria experiênciareligiosa - seja pentecostal, seja qualquer outra - não estácondicionada por essa "bagagem"? Em relação ao movimentopentecostal, vários observadores têm notado aparentes "paradoxos e contradições". André Droogers-", por exemplo, salientaalguns desses paradoxos:
a) A fé pentecostal reabilita os leigos por meio dos dons do
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Espírito Santo. Não obstante, há igrejas com uma forte estratificação e determinação do poder.
b) Há ampla possibilidade de expressão emocional numcontexto de uma direção rígida comumdiscurso fundamentalista.
c) Os pentecostais rejeitam este mundo e se apartam dele.Ao mesmo tempo, porém, são vistos como cidadãos e trabalhadores exemplares.
d) Os crentes evitam a política... Entretanto, alguns autores vêem nas igrejas pentecostais um protesto social e nestemomento algumas igrejas intervêm ativamente na política eoutras surgem como a alternativa santa frente ao comunismo.
e) As pessoas aparecem rejeitando a sociedade e esperando a vinda de Cristo, mas também comprometidas com o aquie agora.
f) Os movimentos carismáticos impõem que as pessoassejam da mesma igreja, mas as congregações mantêm umaampla autonomia.
g) Por um lado, as mulheres ocupam um papel central navida congregacíonal, e, não obstante, formalmente sua posiçãosubordinada é justificada com a Bíblia na mão.
Em nível puramente empírico, alguns desses "paradoxos"deveriam ser examinados com cuidado. Para mencionar apenas dois exemplos: no tocante ao último, referente à situaçãoda mulher na comunidade pentecostal, é interessante levar emconta a tese, ainda inédita, de Elisabeth Brusco, que mostracomo a modificação das condutas "machistas", embora semvariar o símbolo da subordinação feminina, de fato muda aprática da relação e, por conseguinte, a autovalorização e aautoconsciência da mulherê". O outro "paradoxo" exigiria umdesenvolvimento mais amplo: trata-se da relação entre a participação do leigo na comunidade pentecostal e a forte estruturação hierárquica que dá um poder quase total aos dirigentes.Este tema nos levaria a uma discussão do conceito de poder,na qual não podemos entrar neste momento. Mas seria interessante levar em conta duas observações que Bourdieu colocaem tensão mútua ao estudar o tema do poder. Por umlado. afirma:
A concentração de capital político nas mãos de um pequenonúmero de pessoas é algo muito dificil de evitar, e, portanto, oque ocorre com maior probabilidade é que os indivíduos maiscompletamente comuns fiquem desprovidos dos instrumentos
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materiais e culturais necessários para participar ativamente dapolítica...
Por outro lado, reconhece:
A coincidência estrutural dos interesses específicos dos delegados e dos interesses dos mandantes constitui a base do milagrede um ministério sincero e eficaz. As pessoas que servem bemaos interesses dos mandantes são as que servem bem a seuspróprios interesses ao servir aos outros.
Embora Bourdieu se refira aqui ao poder político, suasobservações são, como ele mesmo diz, pertinentes - mutatismutandis - também no aspecto relígíosov. Neste sentido, jáLalive chamava a atenção para o fato de que, embora o poderministerial fosse exercido de maneira autoritária e tradicionalno mundo pentecostal, o acesso dependia do "carisma", dapossibilidade de que o dirigente fosse capaz de promover einterpretar a experiência religiosa comum.
4. Questões abertas para uma reflexão teológica. O problema colocado pelos "paradoxos" é, na realidade, mais profundoe tem a ver com a relação entre a lógica linear da racionalidade"ilustrada" à qual estamos habituados e a racionalidade dosimbólico, que inclui uma "multívocídade" que, às vezes, seaproxima muito mais da "racionalidade da vida" como é experimentada pelo povo. Pretender reduzir a segunda à primeiraacarreta o grave risco de esterilizar a experiência.
Na conversa que se estabeleceu no curso das conferênciasque deram origem a este livro, Bernardo Campos colocou oproblema em termos que ajudam a reflexão. Ele definiu a "pentecostalidade" como uma "categoria religiosa" que aparece, aomenos, em toda a história do cristianismo, como uma "experiência espiritual" imediata e transformadora (uma "experiência extática"), cujo primeiro Iogos - sua primeira articulaçãointelectual - é "o testemunho", uma atividade narrativa quese expressa no culto e que "encontra uma primeira racionalização na pregação pública, no discurso apologético ou na oração (experiência contemplativa)". A partir daí há uma transiçãopara a formulação ética ou a confissão dogmática e a articulação tcolõgícav. O pentecostalismo, numa situação histórica esocial particular, neste caso a das sociedades latino-americanas, vive essa experiência e a expressa na vida e no culto. Oprocesso de "teorização" mal e mal começou. Daí que hajacerta "esquizofrenia" entre sua experiência e a teologia que"herdou". A transição para uma articulação própria leva tem-
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po. Não obstante esses esclarecimentos, ainda considero válidas a observação acerca do problema da transição a que Sepúlveda alude e nossa objeção à solução de Bernardo Campos.De fato, um setor importante do pentecostalismo se vê obrigado a "reconceítualízar'' os simbolos que "ressígníficou". E essa"reconceítualízação" teológica, ainda que seja sempre perigosaporque pode enfraquecer a dinãmica do símbolo, não é indiferente, mas realimenta o significado do simbolo. Em outraspalavras, o símbolo pode ser "tnultivoco", mas se é simplesmente absurdo ou contraditório em relação a seu novo "significado", mais cedo ou mais tarde acaba sendo descartado. Neste sentido, persiste a necessidade de que o movimento pentecostal examine sua teologia explícita em termos da teologiaimplicite em sua experiência fundante.
Não se trata de uma critica ao pentecostalismo. Na realidade, as observações que fiz aplicam-se em maior ou menormedida a todo o protestantismo evangélico latino-americano, etalvez não só a ele. E menos ainda podem ser interpretadascomo um convite a tomar seu perfil menos nítido ou a "moderar" a intensidade de sua experiência. Exatamente porque opentecostalismo é, quantítatívamente, a manifestação mais significativa e, qualitativamente, a expressão mais vigorosa doprotestantismo latino-americano, seu futuro é decisivo não sópara o protestantismo em seu conjunto, mas também paratodo o campo religioso e sua projeção social. Neste sentido,muitos perceberam que a roupagem teológica que o pentecostalismo latino-americano herdou é demasiado estreita para abrigar sua experiência ou para permitir-lhe a expressão livre deseu vigor. Trata-se, pois, de que a partir dessa mesma experiência ele se liberte das distorções e encontre uma linguagemteológica que lhe sírva para explorar a riqueza da experiênciado Espírito e para superar, assim, as contradições que amiúdese percebem entre sua experiência religiosa, seu vigor eclesíal,sua consciência de solidariedade e sua pertença popular, porum lado, e a linguagem e o marco teológicos em que as pretende enquadrar e expressar, por outro.
Dois aspectos dessa necessidade de revisão me parecemcentrais, pois creio que neles a conceitualização dentro da qualo símbolo foi assumido contradiz de tal maneira a experiênciae a prática reais da grande maioria do movimento pentecostalatual, que ameaça provocar uma crise de fé em novas geraçõespentecostais. Refiro-me ao fundamentalismo bíblico e ao apocalipsismo pré-milenarista.
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a) "A escravidão da letra e a liberdade do Espírito". Sublinhamos repetidamente a centralidade da Escritura na vivênciapentecostal (na realidade, em toda a vida evangélica latinoamericana). Ela é seu sinal de identificação, quando caminhapara sua igreja com a Bíblia debaixo do braço; é sua "arma dedefesa", quando outros zombam de sua fé ou a desqualífícam:e de "conquista", quando dá seu testemunho e o ratifica: "é oque Deus diz em sua palavra"; é a resposta a seus dilemas,quando abre a Bíblia "sem olhar" e "lhe salta aos olhos" o textoque responde à sua necessidade ou problema imediato; ela lhedá uma "linguagem" para louvar o Senhor, para orar, para darseu testemunho.
O que acontece, contudo, quando se trata de expressarconceitualmente "o que é" e "como se entende" essa Escritura?'Iodos os documentos doutrinários pentecostais que conheçoafirmam indubitavelmente o princípio somente a Escritura:não poucos acrescentam uma palavra sobre sua "inspiraçãoverbal", sua "infalibilidade" ou sua qualidade de "palavra inspirada e infalível de Deus". O ensino a esse respeito na maioriados seminários das igrejas pentecostais adota uma interpretação fundamentalista do sentido literal dos textos e, em muitoscasos, segue a hermenêutica dispensacionalista da Bíblia deScofíeld. Normalmente, quando um pentecostal explica por quea Bíblia é palavra de Deus aduz essas razões... ainda que muitas vezes a explicação culmine com uma referência a "como eleou ela encontrou na Bíblia a mensagem de vida e salvação","como Deus lhe falou".
Quando se colocam lado a lado a conceitualidade fundamentalista com a qual se expressa doutrinalmente o sígnífícado da Escritura e a vivência da mesma e a interpretação e ouso dos textos na pregação ou exortação, percebemos umaincongruência: são duas aproximações ao "livro" totalmentediferentes: uma busca nele "verdades" irrefutáveis; a outra,uma inspiração, um poder, uma orientação para viver e atuar,uma resposta a sua angústia ou uma expressão de sua alegria.Uma tenta acertar indubitavelmente a "letra" e interpretá-la apartir do positivismo do "senso comum"; a outra discerne nelao que "lhe diz o Espírito" e a interpreta no âmbito do "milagre".São duas maneiras de viver a Bíblia: para o fundamentalismo,ela é um testemunho objetivo, em alguma medida externo, que"está aí". O pentecostal, no dizer de Campos, "sente-se partedo texto, 'renarra' a Bíblia, sente uma 'congenialidade com otexto'" que lhe permite atualizá-lo, revívê-lo em sua situação,
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prolongá-lo. Na tradição teológica ela tem sido chamada de"interpretação espiritual", tendo assumido diversas formas eocupado um lugar importante na vida da igreja.
1àlvez seja possível dizer que essas duas maneiras de vivera Bíblia podem conviver - e de fato o fazem - e até sercompatibilizadas. Creio que as coisas são mais complexas, porque, por um lado, a concepção de Escritura e a tradição cultural atuantes no fundamentalismo contêm implicitamente visões teológicas e ideológicas que limitam o horizonte conceitualdo pentecostalismo. E o fato de que a liberdade da interpretação "espiritual" deste se realiza apesar da conceitualidade fundamentalista impede que a Escritura funcione adequadamentecomo "controle" da liberdade de interpretação.
Em vez de constituir uma "mediação" que permita umacomunicação fluida e uma inter-relação sadia entre o texto e aexperiência, a conceitualidade fundamentalista "interrompe"essa relação em ambas as direções: nem a dinãmica da experiência pessoal e social do pentecostalismo consegue informaradequadamente a leitura do texto nem este fazer uma críticadinãmica e construtiva daquela. É claro que a obra do Espíritomuitas vezes supera essas contradições. Mas quão mais ricapoderiam ser a experiência, a prática e a leitura sem o lastrode um esquema hermenêutico que muito pouco tem a ver coma identidade real da experiência e da fé do crente!
Na medida em que essa crítica seja justificada, o teólogopentecostal é chamado a repensar, a partir de sua comunidade, as categorias de uma hermenêutica que corresponda àmaneira como sua comunidade "vive a Escritura" e, ao mesmotempo, ao necessário respeito pela distãncia que o texto mantém até mesmo dentro da unidade entre texto e experiência etexto e prática. Provavelmente, sem desprezar os aportes queos estudos bíblicos e a história da interpretação deram a essareflexão, o que eu chamaria de as três dimensões fundamentais da experiência da Bíblia no pentecostalismo proporcionariam o "insumo" básico dessa reflexão: em primeiro lugar, aBíblia como relato que é escutado, repetido e memorizado noculto, no estudo, na leitura diária - em contraposição à Bíbliacomo repositório de textos de prova. Em segundo lugar, a Bíblia como o instrumento mediante o qual o Espírito nos guiaem meio às alternativas e decisões de toda ordem. Finalmente,a Bíblia como "linguagem" expressiva das vivências da fé: otemor, a alegria, o louvor, a confissão, a súplica.
b) "Nossa salvação está agora mais perto do que quando
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no princípio cremos" (Rm 13.11). Sepúlveda nos explica o quetem significado a esperança do "regresso próximo" do Senhorna experiência dos "excluídos". Mas também nos indica que ospentecostais não podem mais ver a si mesmos simplesmentecomo excluídos. Na verdade, eles estão agora em ambos oslados da beira do crescente mar da exclusão; entre os que,precariamente, conseguiram um espaço em terra firme e tentam assegurar aí sua morada e junto com muitos mais, e maísconscientes de sua condição comum, com os quais lutam infrutiferamente para emergir das águas. Em ambos os casos, anecessidade de encontrar "um lugar no mundo" se lhes tornaimperiosa e tentam avançar para satisfazê-la. Alguns se aferram a um "evangelho da prosperidade" que lhes promete segurança, progresso material e tranqüilidade como conseqüênciaquase automática da fé. Outros procuram ajudar a si mesmose a outros mediante diversas formas de solidariedade social.Alguns aspiram incorporar-se à construção da cidade terrenamediante a participação social e política. Em nenhum dessescasos a conceitualidade apocalíptica pré-mílenarísta, em certos casos dispensacionalísta, que receberam corresponde à suavivência e sua prática histórica. Parece-me que, como conseqüência disso, o discurso apocalíptico - o quarto pilar dateologia clássica: "o Senhor volta" - vai se transformando numa afirmação um tanto oca ou tende a ficar relegado.
Essa perda seria lamentável: a dimensão apocalíptica é,com efeito, parte constitutiva da fé evangélica, inseparável damensagem do Novo 'Iestamento e necessária para dar sentidoe marcar o caráter de uma participação responsável na história. Para isso, porém, tem de ser purificada de alguns dostraços adquiridos na interpretação mílenarista e escapista queassumiu no fundamentalismo anglo-saxão desde finais do século passados' e retornar a seu sentido bíblico: a afirmação dopoder de Deus no não-poder dos sacrificados da terra; o chamado à "resistência" (à hypomone) aos poderes escravizantesdeste mundo e o anúncio do triunfo final do rei crucificado; ojuízo das potestades e a aniquilação do poder da injustiça, dacrueldade, da opressão, da destruição e da morte, não comomero "escape" da alma individual para outro mundo, e simcomo a chegada do reino de Deus enquanto destino da históriae do mundo; e, por conseguinte, a comunidade do Messiasressuscitado como o espaço onde o Espírito Santo constrói um"sinal" do mundo novo e os crentes como as testemunhasdessa nova realidade que aguardamos.
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Essa "reconceítualízação'' da linguagem e dos símbolosbíblicos acerca do "fim" e da relação do fim com a história e aigreja não pode ser simplesmente o resultado de uma revisãoteológica: tem de ser o acompanhamento teológico e bíblico daprópria experiência de fé, de luta e de sofrimento, embora, aomesmo tempo, de poder e de esperança dos crentesê-.
Faço essas observações estando agudamente conscientede sua precariedade. Gostaria que fossem vistas apenas comoperguntas abertas. Não posso pretender, a partir de minhaprópria experiência e formação, formular uma resposta quetem de ser dada a partir da própria vida, experiência e reflexãodo pentecostal. 'Irata-se simplesmente, portanto, de perguntasa meus irmãos pentecostais, em função da fé evangélica quecompartilhamos.
Capítulo 4
Um "rosto étnico" do protestantismolatino-americano?
No prólogo de sua notável e pioneira obra sobre o protestantismo brasileiro, Emile Léonard esclarece que "deixamos deconsiderar as igrejas de colônias estrangeiras, cujos problemas, não apresentando nada de especificamente brasileiro, nãoserão aqui discutidos"1. É curioso que um autor capaz comoLéonard - cujo propósito é estudar os "problemas institucionais e práticos (...) levantados pela implantação e desenvolvimento de crenças e de igrejas" e do "corpo social' no qual seencarnam essas crenças, fazendo das igrejas realidades, realidades humanas, com todas as peculiaridades" - não encontrenada de especificamente brasileiro na implantação e no desenvolvimento das numerosas comunidades protestantes (principalmente alemãs, mas também japonesas, letãs, holandesas)que foram chegando desde muito cedo ao Brasil.
De fato, sua própria chegada, assim como a de boa partedo "protestantismo de imigração", não é nem casual nem carente de significado. Como dizíamos acerca das igrejas de missão, seguindo a Bastian neste ponto, temos de repetir quetampouco essas imigrações chegam como um fenômeno "exógeno", por mero impulso próprio, mas sim em resposta a certaspolíticas ímígratórías gerais, quando não a convites expressos,das mesmas elites modemizadoras que abrem as portas àsmissões. Esse mesmo fato define em boa parte, inicialmente,os locais de assentamento, as condições materiais e o statusque se lhes outorga, as dificuldades com que se deparam e, porconseguinte, as respostas ideológicas, institucionais e teológicas que elas vão desenvolvendo. Nesse sentido, não obstantesuas grandes diferenças, há um denominador comum no momento e nas condições históricas em que as igrejas "de missão" e "de imigração" entram na América Latina, no lugar queocupam na consciência e no propósito dos dirigentes latinoamericanos e nas condições sociais, culturais e religiosas queprecisam enfrentar. Que umas e outras respondam, em algunssentidos, de formas muito diversas a essas condições é precí-
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samente um dos temas que merecem estudo, porque podedizer-nos alguma coisa a respeito do caráter de umas e outras-.
1. Como aproximar-nos do tema?
1. Um problema de vocabulário que é mais do que vocabulário. Elas foram designadas de diversas maneiras: Daniel P.Monti (referindo-se ao Rio da Prata, 1967) e Bastian falam de"igrejas de residentes" (subentendendo-se estrangeiros residentes), porém é mais corrente falar de "igrejas de imigração". Esteé o termo usado por Damboríeria, Deiros e Prien(Einwanderungsprotestantismus). A pesquisa sobre essas igrejas na Argentina, levada a cabo por uma equipe do Centro deEstudos Cristãos, dirigido por Christian Lalive d'Epínay, aparece sob o titulo Las iglesias deI trasplant&. As designações "deresidentes", "de imigração" e "de transplante" dizem algo acerca dessas comunidades religiosas. As duas primeiras destacam a forma de sua entrada e a terceira sugere o modo desta.Entretanto, essas três designações são insuficientes e podemtomar-se equívocas. Com efeito, no primeiro caso parece sugerir-se que o que caracterizaria essas igrejas é sua origem exógena: elas vêm "de fora". Mas isso acontece com todas as igrejas que entram na América Latina, inclusive com a Igreja Católica Romana. E isso não é um mero truísmo: "vêm de fora"significa que entram a partir do contexto de uma cultura, deuma língua, de configurações institucionais, de usos e costumes plasmados em outra parte e em outro tempo. A imagemdo "transplante", segundo indica Villalpando em seu prólogo,foi tomada de um escrito meu em que cito a conclusão a quechega Robert Ricard num estudo da implantação da IgrejaCatólica no México: "O que se estabeleceu no México", diz Ricard, "não foi uma Igreja mexicana, e sim uma Igreja espanhola transplantada para o México."4 Mutatis mutandis, indicariaVíllalpando, isso ocorreu com as igrejas de imigração na Argentina. A analogia, contudo, não é totalmente exata: a IgrejaCatólica é trasladada para a América e imposta a uma população autóctone; as igrejas de imigração são trasladadas com apopulação original na qual nasceram.
Na realidade, forçando um pouco as coisas, poderíamosdizer que a própria natureza da fé cristã, por sua inevitávelreferência histórica, é ser "transportada" por testemunhas deum lugar - da Palestina, digamos - e "introduzida" em outro.
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Ela não pode nascer "espontaneamente" de uma cultura ou deuma religiosidade preexistente. O que de fato difere são osmodos da imigração. Porém os imigrantes que constituem essas igrejas protestantes diferem também sensivelmente em nosso caso: alguns são "colônias" de camponeses (galeses na Argentina ou menonitas no Paraguai), outros são implantes comerciais (donos ou administradores de fazenda nas provínciasde Buenos Aires ou na Patagônia ou empregados das empresasbritânicas no Chile ou na Argentina), outros são traballladores"de cor" importados para obras públicas (as estradas de ferroou plantaçôes na América Central ou no Brasil). E também asformas do transplante variam: em alguns casos, trata-se diretae estruturalmente da criação de uma "filial" oficial, uma extensão de igrejas nacionais no país de origem; em outros, trata-sede uma imigração de grupos populacionais de uma mesmaorigem nacional e religiosa que se reúnem e organizam em suanova localização no país de imigração. E outra é, ainda, asituação dos últimos anos, de ímígrações de países orientais Coréia, Japão, 1àiwan - vínculadas a denominaçôes de missão em seus próprios países de origem, onde também são minorias. Poderíamos aprofundar-nos nessas diferenciaçôes. Masa pergunta é: há algo em comum que seja mais significativo eprofundo que sua origem exógena?
2. Igrejas étnicas? Creio que esta é a pergunta que se quisresponder ao utilizar essa expressão. Aqui não se estaria maísfalando simplesmente da origem ou do modo de entrada, e simda própria natureza de uma Igreja; não de um acidente histórico, mas de uma característica constitutiva. Como veremos,esta designação amplia e complica o tema. Mas também abreuma temática teológica mais profunda e significativa do que amera menção da origem e do modo de entrada.
Ela complica o tema, em primeiro lugar, porque amplia opanorama. Se, em termos muito elementares, a característicadistintiva dessas igrejas é sua "homogeneidade étnica", entãoentram nesse quadro as igrejas indígenas, como a Igreja Unidatoba na Argentina ou as igrejas indígenas moravas misquitasna Nicarágua ou igrejas quase exclusivamente negras no Panamá, para citar apenas alguns casos.
Mas ela complica o tema, principalmente, porque introduza complexa e discutida categoria "étnico". Os estudos antropológicos debateram e continuam debatendo sobre uma definiçãoou identificação adequada do que constitui uma "etnia" e sobre
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o que é "etnícídade". Em 1964, num resumo citado com freqüência, R. Narroll destaca quatro indicadores geralmente empregados pelos antropólogos para definir uma etnia: 1) umacomunidade que em grande medida se perpetua biologicamente a si mesma; 2) compartilha valores culturais fundamentaisrealizados com unidade manifesta em formas culturais; 3) integra um campo de comunicação e interação; e 4) conta commembros que se identificam e são identificados por outros eque constituem uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem",
No século passado, uma antropologia voltada em grandemedida para o estudo de culturas chamadas "primitivas" colocava a maior ênfase em elementos objetivos, como a reprodução biológica e os usos culturais. Posteriormente, a crescenteconsciência, nas ciências sociais, dos valores subjetivos e, poroutro lado, a mobilidade de migrações que criam constantemente novas minorias étnicas fizeram com que se salientassea importãncia da comunicação e interação e das redes sociaisque são criadas por adscrição própria (as pessoas que se identificam conscientemente com uma comunidade ou um grupo)e adscrição por outros (as pessoas que são identificadas pelasdemais como pertencentes a esse grupo). Por outra parte, também se tem destacado a importãncia dos processos de transformação que acontecem no interior de uma etnia. Não é maispossível sustentar uma visão estática, como se as culturasétnicas se reproduzissem sem mudanças ao longo do tempo edo espaço. Finalmente, é importante levar em conta a pluralidade de adscrições que ocorrem numa sociedade moderna:uma pessoa pode identificar-se como "alemã" em termos étnicos, como "de classe média" em termos sociais, como "agnóstica" em termos religiosos e como "socialista" em termos ideológicos ou políticos. Ou seja, as dimensões em que se assumea identidade étnica podem variar. E, por sua vez, as redes decomunicação e as organizações que se estabelecem sobre abase da identidade êtnica podem definir seus limites de formasdiversas: por exemplo, admitindo ou rejeitando outras pessoascom base em opções ideológicas, políticas ou religiosas ou nouso da mesma língua".
Tudo isso deveria levar-nos a sermos muito cuidadosos aofalar de "igrejas étnicas" como se defrníssemos uma unidadehomogênea e estática, totalmente identificável em termos deuma origem nacional, um idioma e uma série de usos culturaisuniformes e imutáveis. A importãncia e a significação que a
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dimensão religiosa tem na definição da identidade étnica variam consideravelmente de um grupo para outro e dentro deum mesmo grupo, e de um momento para outro". Na próximaseção vamos tentar ilustrar algumas dessas variações ao discutir características de "igrejas étnicas", sobretudo em igrejasoriginadas da imigração no Cone Sul da América do Sul".
2. Protestantismo de missãoe protestantismo étnico
A distãncia e a falta de comunicação entre igrejas de missão e igrejas étnicas, pelo menos há até quase 50 anos, são umfato inegável. Podemos, mais ainda, falar de desconfiança e"deslegítímação" mútua. Nenhuma Igreja de imigração - naquela época elas já estavam presentes por cerca de meio séculona Argentina, no Uruguai e no Brasil (para referir-nos só a estaparte do Cone Sul) - participou do Congresso do Panamárealizado em 1916. Em Montevidéu (1925) já houve um representante da Igreja Valdense, um do Comité Protestant Française um da Igreja Presbiteriana da Escócia - todos de origemreformada -, além de um da Igreja Luterana Unida, que a essaaltura já havia assumido uma linha de missão. Por outro lado,porém, não houve nenhuma representação de igrejas de imigração no Congresso Evangélico realizado em Havana em 1929.Só a Primeira Conferência Evangélica Latino-Americana (Buenos Aires, 1949) registrou unia presença da Igreja Valdense, daIgreja Protestante de Fala Francesa, das Igrejas Menonitas doParaguai e (como observador) do Sinodo Evangélico Alemão doRio da Prata. A Confederação de Igrejas Evangélicas do Rio daPrata, criada em 1939, já contava com quatro igrejas "étnicas"e outras três se uniram a ela no período de 1940-19499 .
1. Desconhecimento e rejeição. Os estereótipos mútuospodem ser marcados com facilidade. Aos olhos das igrejas demissão, as étnicas apareciam como catolizantes, igrejas de estado, formalistas e "mundanas". Freqüentemente encontramse referências que as identificam com o protestantismo e anglicanismo europeus que determinaram a decisão da ConferênciaMissionária de Edimburgo em 1910 de excluir a América Latina por ser "um continente cristão". A ordem litúrgica, o uso deuma língua estrangeira e a renúncia a fazer "proselitismo"eram incompreensíveis e escandalosos para a mentalidade mís-
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sionária e evangelizadora dos "evangélicos". E o consumo debebidas alcoólicas ou tabaco, a dança e outras atividades sociais de algumas dessas igrejas chocavam a ética puritana damaioria das igrejas de missão.
As igrejas de imigração, por sua vez, traziam desde suaorigem uma forte desconfiança para com as "igrejas livres",que em muitos casos se apresentavam, nos países de origem,como proselitistas em detrimento da "igreja do povo" (Vo1kskirche). Sua piedade parecia desordenada, fanática ou "entusiasta", própria de "seitas" que, ainda no conhecido vade-mécumalemão de Kurt Hutten (3. ed., 1954), apareciam como "Seher,Grübler, Enthusiasten" (visionários, fantasiosos, fanáticos) 10.
E sua pregação inflamada e repetitiva lhes parecia superficial,carente de sólida base confessional ou doutrinária.
É claro que sempre houve exceções em nível pessoal, particularmente entre alguns missionários estrangeiros nas igrejas de missão aos quaís as relações ecumênicas haviam colocado em contato com as igrejas européias e entre líderes nacíonaís com uma formação e experiência mais ampla. làmbémhouve exceções em nível institucional, particularmente entre aIgreja Valdense e a Metodista, que colaboraram na formaçãoteológica (com breves intervalos) desde a década de ISSO (incluindo os Discipulos de Cristo a partir de 1917).
Desde o final da década de 1930, porém, começam a estreitar-se relações fraternas e de colaboração entre as igrejasde imigração e as de missão identificadas com o que chamamos de "rosto liberal" do protestantismo latino-americano, nomarco da já mencionada Confederação de Igrejas Evangélicasdo Rio da Prata (1939), que posteriormente teve continuidadena Federação de Igrejas Evangélicas da Argentina (FAlE) e naFederação de Igrejas Evangélicas do Uruguai (FUIE), da Comissão de Literatura do Comitê de Cooperação para a AméricaLatina (CCIA, 1925) e da formação teológica nas associaçõesde instituições de educação teológica (a ASIT na região sul eoutras no Brasil, no Caribe e na região norte) que se organizama partir de 1960. As suspeitas, contudo, não desapareceram:quando, na década de 1950, se coloca a questão do possívelingresso da Igreja Reformada Argentina (de origem reformadaholandesa) à associação ecumênica que, na época, auspiciavaa Faculdade Evangélica de 'Ieología de Buenos Aires, aparecem, embora já houvesse "associados" calvinistas (a Junta deMissões da Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos ea própria Igreja Valdense), inconvenientes - que às vezes pa-
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recem referir-se a uma questão teológica, como um supostofundamentalismo calvinista; outras vezes, a uma questão demodalidades éticas; e outras têm mais a ver com uma desconfiança instintiva para com uma igreja "étnica" européia - eessa incorporação tem de esperar até que se organize o Instituto Evangélico Superior de Estudos 'Ieológícos (ISEDET), queconta com uma presença mais ampla de igrejas "de ímígração"!':
Os leitores que olham esse panorama a partir de outrasregiões - o Caribe, os países do Pacífico, a América Central, oMéxico - encontrarão paralelos e diferenças, tanto em termosde tempo quanto de modalidade, mas atrevo-me a crer que aexperiência da região do Rio da Prata, à qual me limitei namaior parte, não é qualitativamente diferente da experiênciadas outras regiões. Além disso, é preciso destacar que, a partirda Conferência Evangélica de 1949, tem continuado uma relação em nível Iatíno-americano - cuja forma institucional foi aUnidade Evangélica Latino-Americana (UNEIAM) e depois oConselho Latino-Americano de Igrejas (ClAI) - que teve umdesenvolvimento muito amplo e na qual houve uma participação, na condição de protagonistas, de igrejas de missão e igrejas étnicas em igual medida. Elas também participaram ativamente de movimentos como Igreja e Sociedade na AméricaLatina (ISAL), a Federação de Estudantes Cristãos, os Movimentos Estudantis Cristãos (MECs) e de outras organizaçõesecumênicas da década de 1960 em diante. Cabe salientar, nãoobstante, que essas organizações evangélicas latino-americanas - e, em boa parte, as organizações correspondentes emnível local - têm só parcialmente merecido a participação e orespaldo das correntes que chamamos de "evangélica" e "pentecostal", entre as quais, com efeito, surgiram estruturas deunidade alternativas, como a Confraternidade 'Ieológíca LatinoAmericana (CONELA) ou as convocatórias do Congresso Latino-Americano de Evangelização (ClADE I, CLADE II e ClADEIII), com as quais só recentemente foram estabelecidas relações, como assinalamos num capítulo anterior.
2. Por onde passam as fronteiras? Essas observações bastante anedóticas colocam, não obstante, uma pergunta maisprofunda e necessária para que se superem realmente os malentendidos e se estabeleçam relações fecundas e duradouras:por onde passam as verdadeiras fronteiras? O que é que realmente separa as diversas correntes do protestantismo latinoamericano? 'Irata-se de uma pergunta que não pode ser res-
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pondida unilateralmente a partir de uma dessas correntes,nem superficialmente em função da boa vontade e de umaatitude de abertura, ainda que estas sejam imprescindíveis.Felizmente, creio que estamos em ótimas condições para abordar o tema. Creio, inclusive, que já iniciamos esse caminho noámbito da prática ecumênica, na formação do ministério, notestemunho e esforço comum em questões de natureza social,na defesa dos direitos humanos, no trabalho de difusão dasEscrituras. Creio, porém, que devemos a nós e ao Senhor aomenos duas tarefas: uma é a de incorporar efetivamente nessarelação as correntes evangélicas e pentecostais do protestantismo de missão, o que não pode significar "absorver" os demais nas estruturas e relações ecumênicas que já temos, e simas revisar, modificar ou superar e recriar juntos essas estruturas e relações de maneira que assumam efetivamente as legitimas e sérias perguntas que nos são dirigidas a partir dessascorrentes. A outra tarefa consiste em considerar a fundo otema de "missão e evangelização" e "identidade étnica", quesão possivelmente os nós centrais, ou talvez o nó teológico eeclesial central dessa relação. Entrementes, e como uma humilde contribuição a essa tarefa, gostaria de explorar algunstrechos dessa fronteira e verificar se ela é uma linha simplesmente imaginária ou artificialmente traçada ou se de fato existe e por onde passa.
a) Uma primeira linha demarcatória seria a que, utilizando o vocabulário corrente nas igrejas protestantes européias,passa entre as "igrejas livres" e as "igrejas tenitoriets" ou "nacionais" ou "do povo" (Volkskirchen), de algum modo vinculadas organicamente ao estado ou pelo menos à nação. A clássica obra de Ernst Troeltsch intitulada Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen ["As doutrinas sociais das igrejase grupos cristãos"], de 191212 , consagrou os termos "igreja" e"seita" como categorias sociológicas características, justamente, das igrejas - que se concebem como coincidentes com umpovo, das quais se faz parte por nascimento e que, por conseguinte, praticam majoritariamente o batismo de infantes, quese integram com a cultura nacional, tém relação orgânica como estado e não praticam o proselitismo fora de suas fronteiras- e das seitas - que são formações voluntárias, nas quais seentra por decisão pessoal, que praticam majoritariamente o"batismo de conversos", são contraculturais, não têm vinculação com o estado e praticam o proselítísmov'. Infelizmente, ovocabulário de Troeltsch e Max Weber assumiu significados
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que os autores não lhe quiseram dar, transformando uma caracterização sociológica numa luta por legitimação doutrinal eaté legal. 'Irata-se, na verdade, de duas formas de ser igreja quetêm permeado a história, ao menos desde o século 4, e cujafundamentação teológica e concepção missionária e pastoralcom certeza continuarão presentes, não necessariamente entre igrejas particulares, e sim no seio das próprias igrejas. Nãoobstante, creio que - ao menos na situação latino-americana- temos de relativizar as diferenças entre um e outro modelo.
Por um lado, a própria concepção do relacionamento entreigreja e povo/nação/etnia é diferente em diferentes igrejas "étnicas". O anglicanismo, por exemplo, parece conceber-se comoa dimensão religiosa da nação e considerar que em cada naçãoa igreja nacional deve organizar-se autonomamente. Por isso,inicialmente se propôs a formação de uma igreja de modeloanglicano na nova nação independente dos Estados Unidos daAmérica do Norte, não como uma extensão da Igreja Anglicanada Inglaterra, mas como uma igreja autônoma. 1àl coisa eraimpossível no panorama religioso dos Estados Unidos e a IgrejaEpiscopal foi, na realidade, uma das "igrejas livres" no camporeligioso plural existente no país». Na América Latina, o anglicanismo enfrentou um dilema: ou reconhecia a Igreja CatólicaRomana como "a igreja" da nação latino-americana - o que fezem muitos casos - e, portanto, reduzia sua ação aqui aoministério dirigido aos "expatriados ingleses" e seus descendentes como uma espécie de "capelania" da nação inglesa noexterior ou à evangelização das "nações indígenas autóctones"que não tivessem sido alcançadas pela Igreja Católica - o quetambém foi feito por sociedades missionárias da Igreja da Inglaterra - ou se transformava numa "igreja livre", em uma dasigrejas que competiam no campo religioso latino-americano.Esta parece ser a opção da Igreja Episcopal, como a defineKater num estudo da região centro-americana:
Uma vez mais, estão em jogo a identidade anglicana e os modelos eclesiais que têm definido o anglicanismo. O anglicanismolatino-amelicano pode desempenhar um papel ativo no processode reflexão, para que juntos, e em diálogo com crístãos de outrastradições, os anglicanos busquemos outros modelos de igrejaque se encaixem mais adequadamente na realidade deste continente, e de outros. 15
Algumas das igrejas étnicas entram ou se consolidam naAmérica Latina em momentos em que suas nações de origemalcançam a unidade nacional. Este é o caso da Alemanha, que
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se unifica sob Bismarck em 1871. E, em grau distinto, é também o caso da migração dinamarquesa para a Argentina, cujomaior contingente chega depois de 1875, quando "os novosares nacionalistas começaram a soprar a partir do sul da Jutlãndia depois da guerra de 1864"16. É lógico que a identificaçãode igreja e nacionalidade se manifeste com maior força em taissituações, ainda que, como veremos, de forma um tanto distinta em cada um desses casos!". 1ànto no Brasil quanto no Uruguai e na Argentina, essa vinculação entre nacionalidade eigreja marcou profundamente a vida das igrejas de origem alemã, criando profundas tensões e até divisões18.
Mencionamos, em terceiro lugar, igrejas que, embora etnicamente homogêneas e semelhantes às anteriores em algunsdos traços derivados dessa situação, vivem uma relação diferente com a nacionalidade. Este é o caso da Igreja Valdense,porque remonta a uma igreja minoritária - e por muito tempoperseguida - em seu país de origem, para a qual a tradiçãoreligiosa, a língua patoá e, em todo caso, a identificação com os"vales valdenses" do Piemonte eram mais fortes que a vinculação com a identidade nacional, ainda que, ideologicamente,coincidisse com a corrente liberal e anticlerical do garibaldismoque conseguiu a unidade19. Esse é também o caso da imigração holandesa, que se identifica majoritariamente com as igrejas reformadas da Holanda que, desde o cisma de 1834 queconsolidou, em 1869, a Christelijke Gereforrneerde Kerken inNederland, ficaram desvinculadas da Igreja Reformada da Holanda, mais estreitamente vinculada ao estado.
Deve-se, além disso, observar que, embora as igrejas "étnicas" fossem, em muitos casos, "igrejas do estado" em seuspaíses de origem, viram-se, em alguns casos, libertadas paratransformar-se de fato em "igrejas livres" ou obrigadas a fazê10 na nova situação. Por exemplo, a imigração alemã ao Brasilchega a partir de 1823/1824, bastante antes da unificação daAlemanha. A respeito dessas migrações precoces, Walter Altmann faz uma observação interessante: "Entre os aspectosque lhes [sc. esses imigrantes alemães] foram mais agradáveisestava, sem dúvida, a possibilidade de organizarem autonomamente suas comunidades religiosas. Criaram-se comunidadeslivres da tutela de organismos eclesiásticos atrelados, comoigrejas de Estado, aos governos territoriais alemães."20 Por outro lado, estavam obrigadas pela necessidade de pagar seuspastores e manter fmanceiramente suas congregações quandoo apoio recebido do país de origem não era suficiente ou era
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interrompido. E, mais importante ainda, porque de fato se encontravam com "igrejas nacionais", com uma Volkskirche - aIgreja Católica Romana - que gozava de forma exclusiva dasrelações com a sociedade que haviam modelado seu status esuas formas de atuação nos paises de origem e agora tinhamde operar, não como "as igrejas do povo", e sim como as igrejasde um espaço social, cultural e religioso parcial e delimitado, eamiúde discriminado ou ameaçados'.
'lendo dito e considerado tudo isso, creio que cabe reconhecer que há uma diferença no modo como umas e outrasigrejas - as de missão e as de imigração - se situam nasociedade. Em minha opinião, a diferença reside em que asprimeiras prolongam e reproduzem na América Latina, comsuas condições religiosas diferentes, mas, do ponto de vistaantropológico e, em parte, politico, análogas, a experiéncia norte-americana do século 19, que o teólogo metodistaAlbert Outler-caracterizou como uma "imensa e complexa irrupção do Espírito que resgatou a causa cristã e definiu o protestantismo[norte-americano] de grande parte do século passado". "Iransformou o reavívamentísmo", continua dizendo ele, "de um fatoepisódico numa instituição permanente. Relegou os sacramentos e a educação cristã a um lugar marginal e seu próprio etosteológico se identificou com a palavra 'evangélico'." Finalmente,Outler resume essa nova formação religiosa:
O traço mais destacado desse Segundo Despertar é seu fervoremocional, concentrado sempre nestes dois pontos, e quase sóneles: 1) a salvação: libertação do pecado e da culpa (do infernoe da condenação) e 2) uma moralidade pessoal "auto-íníbídora".[Este é] o triunfo efetivo no Novo Mundo do "protestantismoradical" tão severamente reprimido na Europa pelas igrejas deestado luteranas, refonnadas e anglicanas dominantes. Essatradição protestante era majoritariamente "montanísta" em suaeclesíología (igreja "baíxa", igreja "livre"): anti-sacerdotal, antisacramental, antiintelectualista. Ela fazia uma distinção pejorativa entre teologia especulativa e fé existencial. Suspeitava deum clero erudito. Considerava a conversão, e não a iniciação, oclímax: da experiência cristã. Insistia na religião pessoal como aúnica essência verdadeira do cristianismo.
Como salientamos, nem todas as igrejas de missão correspondem a esse esquema, nem as de imigração são todas outotalmente alheias a ele. Parece-me, porém, que há uma certaverdade nesse quadro, que nos ajudaria a entender-nos melhor uns aos outros dentro de toda a família evangélica-protestante da América Latina.
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b) Essas últimas considerações excedem o campo sociológico e político e nos conduzem a uma segunda linha de demarcação que valeria a pena explorar: a que se refere à teologia deum e de outro tipo de igrejas. Em princípio, poderia ser fácilcontrapor "igrejas da Reforma" com uma doutrina luterana oucalvinista clássica e igrejas de missão que se desenvolvem apartir das igrejas dissidentes do mundo anglo-saxão. SamuelEscobar fez essa distinção, traçando - à semelhança de Outler- a linhagem eclesial e teológica do protestantismo evangélicolatino-americano a partir da "Reforma radical" do século 16:igrejas "voluntárias", livres da tutela do estado, criticas da cultura imperante e, muitas vezes, socialmente vinculadas aossetores pobres ou margínalízadoss'. Em relação aos EstadosUnidos, Richard Niebuhr ofereceu uma interpretação semelhante em sua clássica obra The Social Sources ofDenominationalism ["As fontes sociais do denomínacíonalísrno'Ps.
Trata-se, sem dúvida, de uma diferença a se levar emconta. Se tomarmos, por exemplo, o trabalho de Lalive d'Epínay sobre dez25 igrejas de imigração na Argentina, acharemosalgumas indicações significativas: todas elas consideram "a ordem no culto e na vida espiritual" entre as trés orientações"que essa denominação enfatiza particularmente"; sete delas acolocam em primeiro lugar, uma coloca em primeiro lugar aeucaristia, uma a justificação pela fé e uma a conversão e onovo nascimento. Por certo, o resultado teria sido distinto emigrejas evangélicas ou pentecostais. O próprio Lalive destacauma diferença marcante no "tipo de piedade":
É interessante assinalar que os dois itens que defmem umaespiritualidade "ardente" (hot) (.. -l nunca foram mencionados,ao passo que dez denominações insistem (...) na ordem, numavida cultual "fria" icool, se se nos permite utilizar estes conceitosda linguagem pietista, e também da linguagem do jazz). Assinala-se aqui um consenso quanto ao estilo da vida religiosa, etambém quanto a um certo racionalismo da fé (a saúde seria umconceito mais do campo médico do que da vida relígíosal.ê"
Outra observação interessante, também salientada por La-live, é que oito das dez igrejas escolhem, no tocante à autoridade da Bíblia, uma alternativa que a reconhece como "inspirada em seu fundo e em suas idéias, mas seus redatores, sereshumanos, podem ter introduzido erros (conceitos superadosl'<".Esta resposta provavelmente seria também comum à corrente"liberal", mas não à evangélica e à pentecostal.
Esse levantamento é significativo, mas exige algumas reti-
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ficações: 1) é uma pesquisa quantitativa usando a técnica do"leque de respostas": ou seja, a formulação das respostas possíveis é determinada pelo pesquisador; 2) trata-se de um levantamento feito entre os dirigentes das igrejas, em sua maioriapastores; tenho a impressão, depois de anos de experiénciacom ambos os tipos de igreja, que uma pesquisa qualitativa,que incluísse distintos niveis de membros, poderia alterar significativamente as respostas, provavelmente com mais respostas "evangélicas" nas igrejas de imigração; 3) mais importanteé que as alternativas colocadas na seção "doutrínal" da pesquisa me parecem mais direcionadas a marcar os pontos ondepossivelmente estejam as discrepãncias mais visíveis: "glossolalia" e profecia, saúde, atuação comprometida na sociedade(marcada pela condição de membro em clubes, sindicatos oupartidos políticos) do que a explorar as teologias realmentevigentes na piedade e no ensino dessas igrejas.
Não é minha intenção desconhecer as diferenças que essapesquisa destaca nem as observações válidas, como aquela deEscobar mencionada acima. Gostaria, isto sim, de colocá-lasnum contexto histórico e religioso mais amplo. Em nível histórico, deve-se observar que, se o protestantismo clássico recebido pelas igrejas de missão é remodelado em sua história anglosaxã, o de imigração proveniente da Europa central passa porvárias mediações, às vezes diversas, às vezes coincidentes. Colocando a questão em termos gráficos: Lutero e Calvino chegam da Europa depois de atravessar os filtros da ortodoxiaprotestante, do racionalismo, dos movimentos pietistas, quasecontemporaneamente com as revisões liberais. Os pastores deigrejas de origem alemã, suíça, francesa ou escocesa que respondem a Lalive em 1970 a respeito da autoridade da Escritura certamente leram, em suas faculdades de 'Ieología e seminários, Schlatter ou Vinet, Harnack ou Herrmann e Barth. Pergunto-me, por outro lado, se um estudo cuidadoso não mostraria que a maior parte dos pastores das primeiras migraçõesrepresentariam teologicamente antes a ortodoxia ou o pietismoou alguma mescla de ambos em diversas proporções. Sabemosdo peso que o despertar do século 19 teve na Escócia e no Paísde Gales. E sabemos também que a influéncia desses movimentos não faltou no risveglio (despertar) valdense quase nomomento em que os valdenses zarpavam para o Uruguai e aArgentínaw, Na Argentina, tanto a Igreja Evangélica LuteranaArgentina (lEIA) quanto a Igreja Evangélica Congregacíonal,que se desliga do Sínodo (Alemão) do Rio da Prata, têm um
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forte componente pietista e rígorísta. A prtmeira se vincula aoSínodo de Míssúrí dos Estados Unidos, criado sob a direção deWilhelm Walther, cuja adesão ao pietismo é conhecida, e asegunda corresponde em parte a uma imigração de gruposalemães que viveram durante muito tempo uma existência própría e isolada na Rússia - costuma-se chamá-los de teutorussos ou "alemães do Volga" - também com forte influênciapietista (além disso, os líderes da cisão se relacionam com aIgreja Congregacional dos Estados Unidos). Nesses dois casos,parece haver paralelos interessantes no Brasil. Por outro lado,em seu estudo sobre as igrejas alemãs do Brasil, Hans-JürgenPríen comprovou a dificuldade de identificar as linhas teológicas predominantes nos prtmeiros pastores. No único caso emque obtém informações precisas na prímeíra metade do século19, no do pastor Sauerbronn, a teologia é o que na Alemanhase chamava de "neología", vinculada às linhas teológicas deSchleiermacher, Nitzsch, Neander. Sauerbronn rejeita a idéiada inspiração verbal e define "a revelação cristã", ao estilo"schleíermacheríano'', como arraigada na experíêncía-",
Essas referências histórtcas tomadas ao acaso não visamprovar que há diversidade teológica entre as igrejas de imigração, que nelas freqüentemente competem posições teológicasanálogas às que encontramos nas igrejas de missão e muitasvezes aparentadas com elas. Minha intenção é, antes, ressaltarque essas diferenças teológicas não afetam grandemente o comportamento "étnico" em relação com o meio: ortodoxos ou pietistas, biblicistas ou liberais, "mundanos" ou "ascéticos", provenientes de igrejas de estado ou livres, até há muito poucosanos todos tendem a compreender sua missão e o émbito desua responsabilidade exclusiva ou quase exclusivamente emtermos da comunidade étnica. 'Ianto é assim que mesmo igrejas de forte influência "evangélica", como a Congregacíonal e aIgreja Evangélica Luterana Argentina que se caracterizam a simesmas como igrejas "míssíonárías", definem essa missão como a de reativar a fé dos protestantes nominais, o que Lalivechama de "missão ínterna'<v. E a Igreja Evangélica Pentecostal(ucraniana) só se abre ao uso do idioma e à evangelização nomeio crtoulo em fins da década de 1970.
Não obstante tudo isso, também no que diz respeito àteologia, embora devamos relativizar a diferença entre igrejasde missão e igrejas de imigração, não a devemos ignorar. Atrever-me-ia a caractertzá-la como uma tendência das prtmeirasa uma orientação pneumatológica e das segundas a uma orien-
Um "rosto étnico" 89
tação cristolôgice em suas teologias. Digo "tendência" porquenem umas nem outras excluem ou relegam a crístología ou apneumatología. A tendência se percebe, antes, nas referênciasa uma piedade mais subjetiva nas primeiras e mais ligada aossímbolos e às formas objetivas nas segundas; a uma concepção mais cara a cara de igreja num caso e a uma mais institucional no outro; a uma interpretação mais livre, circunstanciale exortativa da Escritura frente a outra mais exegética e docente. Seria muito difícil precisar mais essas diferenças. Seria,inclusive, necessário um estudo mais cuidadoso e documentado para justificá-las. Creio, porém, que não me equivoco aoperceber que há uma certa "dissonância" que uns e outrosexperimentam no contato com comunidades da outra linha euma sensação de "familiaridade" em comunidades de seu próprio setor, que não resultam apenas de diferenças de culturaou de língua, e sím de "tonalidade" teológica, percebida nãotanto intelectualmente, mas antes na forma de se sentir esituar em sua vida religiosa.
c) As referências desses últimos parágrafos ficam condicionadas porque algumas das igrejas étnicas assumem, emdistintos momentos, uma tarefa missionária que excede asfronteiras da comunidade étnica. Esse é o caso de pelo menosduas igrejas cujas circunstâncias são diferentes. A Igreja Evangélica Luterana Unida (IELU) tem uma dupla origem: na primeira (1909-1920), os missionários trabalham com imigrantesluteranos de vários idiomas: sueco, inglês, alemão. A partir de1920, porêm, com a chegada do missionário norte-americanoMuller, a IELU surge como igreja de evangelização na população de fala espanhola, criando uma série de congregações deconversos na Grande Buenos Aires e em alguns lugares dointerior. Ao mesmo tempo, em outras regiões do país, formamse congregações de língua alemã e, em tomo da guerra e dopós-guerra (1939-1945), constitui-se uma série de igrejas deimigrantes - em alguns casos, refugiados - de origem estoniana, letã, húngara.
Diferente é o caso da Igreja Reformada Argentina (IRA),que, sob a influência de alguns missionários holandeses e,sobretudo, norte-americanos, toma uma decisão explicita deestender seu campo de crescimento à população crioula, organiza seus recursos e pessoal para esse fim e, em poucos anos(1960-1968) triplica suas congregações e seus locais de culto.Em outras palavras, como o expressa Lalive, a IRA decide "renunciar a ser uma igreja determinada por sua origem étnica
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para transformar-se numa igreja evangelistica dírígídaa todasas nações'v". Em ambos os casos, teríamos rupturas com omodelo de "conservação" ou "missão interna", mas rupturasque, de alguma maneira, são provocadas a partir de fora davida da própria igreja por missionários ou sociedades missionárias que tomam a iniciativa de realizar uma tarefa evangelizadora entre a população local, às vezes à margem da comunidade étnica local e inclusive com tensões nela--.
Outra é a situação de igrejas que seguiram um processoprogressivo de "naturalização". Trata-se, neste caso, de uma19reja que vai sendo integrada ao panorama religioso nacionalpor fatores sociológicos e históricos - as sucessivas gerações,II ascensão social e a subseqüente incorporação em diversossetores da vida nacional, os casamentos mistos. Como índicepara a aculturação Lalive tomou o uso da língua e, para anacionalização, a formação de um pastorado Iocalv'. 'leria sidointeressante incluir um terceiro indicador: a quantidade e aproporção de membros da igreja que entram nela a partir "de.ora do campo religioso étnico" que a igreja representa: emoutras palavras, a quantidade de "conversos". No levantamen1.0 de 1970 só duas igrejas - a IRA e a IELA - incluem específícamente a evangelização do povo argentino na definição desua missão. Ainda assim, é claro que a atual maioria das outras - a Anglicana, a IERP, a IELU, a Igreja Valdense, a IgrejaPresbiteriana - têm um número minoritário mas significativode membros de origem nacional não pertencentes ao grupoétnico, de ministros da mesma origem e, em muitos casos, decongregações quase totalmente ou totalmente nacionais. Acasoessa mudança ocorreu espontaneamente, por um processo denaturalização da igreja? Deve-se a mudanças na concepção teológica derivadas da relação ecumênica em nível nacional ou emnível ecumênico internacional? 'Iem a ver com a formação nacionalde seus pastores em seminários unidos, ou com as transformações sociais: participar de uma sociedade crescentementepluralista, ver-se obrigados por circunstãncias econômicas amigrar a outra região onde não podem participar de sua igrejaétníca>, ou com o fato de assumir, devido à crescente integraçãona sociedade nacional, problemáticas sociais e até politicas sobreas quais se vêem obrigados a "refletir" teológica e eclesialmente? É provável que vários desses fatores estejam atuantes emdiversas proporções em cada caso'"; Prefirodeixaraqui em abertoessas perguntas e colocar um último tema que me parece centralpara toda esta discussão: a relação entre etnicidade e missão.
Um "rosto étnico"
3. Nação, etnia e missão
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1. .~ todos os gentios". Já "a primeira história da igreja"coloca o tema de "etnia" e "missão". Para Lucas, com efeito, háuma clara seqüência: cumprindo as promessas de Deus, JesusCristo "começou a fazer e ensinar" o que diz respeito ao reinode Deus. 'lendo completado sua obra, o Senhor ressuscitadocontinua, no poder do Espirito Santo, estendendo sua obra ecruzando todas as fronteiras - Jerusalêm, Judêia, Samariaatê "os confins da terra". Promessa (Antigo 'Iestamento), cumprimento (evangelho), missão marcam o caminho do propósitode Deus. A estrutura do livro dos Atos dos Apóstolos estádeterminada por essa rota. Quando interrompe sua história,Lucas deixa o "apóstolo dos gentios" olhando para esses "confms da terra" (At 28.28) que o próprio Paulo assumirá: a Espanha, o nec plus ultra ocidental do mundo (Rm 15.24,28).
Já a trajetória profêtica presente em Gênesis inclui "todasas familias da terra" no propósito de Deus (Gn 12.1-3) ao constituir em Abraão seu povo eleito. E essa relação salvífica com"os gentios" ou "os povos" (ta ethne) recebe uma expressãoclássica em Is 2.2-2236• Essa "bênção" que se estende de Israelaos "povos" só se transforma em "missão" como anúncio econvite no judaísmo por volta do ano 300 a.C.: os "prosélitos"são como um prenúncio dessa missão que Lucas transformano próprio sentido da existência da igreja.
Cabe ao apóstolo Paulo a tarefa de fundamentar teologicamente esse salto qualitativo na história da salvação, que é "amissão aos gentios". O tema tem sido estudado repetidamentee, embora haja aspectos ainda debatidos, uma coisa é clara:em Jesus Cristo, a justiça redentora de Deus irrompe no universo inteiro, derruba o muro que separa judeus e gentios econvoca todas as "nações". Uma nova era, a definitiva, começou. Sabemos dos conflitos que Paulo teve de enfrentar emrelação ao significado e às conseqüências concretas dessa novasituação. Trata-se, particularmente, de saber como entender acondição de "povo eleito". Romanos 9 a 11 é a expressão maiselaborada e precisa que o apóstolo oferece sobre o dilema dacondição e do futuro do povo de Israel: a justificação por graçapor meio da fé é a chave'? e o desenvolvimento da "história dasalvação" é o marco teológico dentro do qual ele articula suainterpretação: há um tempo de graça para que "a plenitude dosgentios" se incorpore à promessa e em seu cumprimento Israelé introduzido novamente nessa história. Mas nem uns nem
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outros entram por mérito próprio, e sim unicamente pela graçade Deus.
Não obstante o papel decisivo que o apóstolo Paulo tem noque diz respeito à missão entre os gentios e a vocação particular ao qual ele se sente convocado pelo Senhor ressuscitado,sabemos que o ministério aos não-judeus ou a gentios-prosélitos foi muito mais amplo. A igreja de Roma, à qual Paulo sedirige, já tem gentios-prosélitos e possivelmente gentios convertidos. A comunidade samaritana à qual (e a partir da qual)provavelmente são escritos o quarto evangelho e as epístolasjoaninas, a igreja de Antioquia e as comunidades de que temosconhecimento no Egito e na Siria atestam um amplo desenvolvimento independente da missão paulina. Seja qual for suarelação direta ou indireta com Paulo, a Epístola aos Colossenses desenvolve uma concepção complementar à "história dasalvação" de Atos e Romanos: a unidade de judeus e gentiosestá enraizada na própria criação, na dimensão cósmica dapessoa do Filho (Cl 1.12-23). Em Efésios, ela é o cumprimentoda vontade original de "reunir todas as coisas em Cristo" (Ef1.9-14).
2. Quem são ta ethne e como caracterizá-los? Os estudoslingüísticos nos tornaram muito cautelosos ao tentar identificar o sentido das palavras e seu uso. É bom lembrar-nos dissoquando lidamos com termos como "gentios", "nações", "povos".Já os vocábulos hebraicos originais e suas traduções para ogrego e o latim representam interpretações diversas. E quandohoje em dia falamos de "nações", de "etnias" e de "povos", ascoisas se complicam mais ainda. Em termos muito gerais, atrever-nos-íamos a dizer que, no uso vétero-testamentário, o termo goyim, que se costuma traduzir por "nações", representa:a) a diversidade dos distintos povos, caracterizados por seulugar de origem (sua "terra"), sua consangüinidade ('famílías'')ou sua "língua", reconhecidos, especialmente na tradição profética, como criação do Senhor Javé e submetidos à sua soberania, ainda que não o conheçam e honrem a outros deuses, eb) em contraposição ao povo ('am) de Israel, o povo do pacto,como o conjunto dessas nações na medida em que não conhecem nem honram o único Deus verdadeiro. No primeiro sentido, Israel pode ser contado entre os demais povos; no segundo,é agudamente distinguido deles. No Novo 'Iestamento, emborao primeiro sentido não tenha desaparecido, predomina o segundo quando se utiliza a expressão "as nações" ou "os gen-
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tios". E por isso a igreja nascente se esforça para entender deque maneira os gentios podem, como Israel, ser "povo de Deus".
Que são, pois, as "nações" enquanto diversidade de "povos", no primeiro sentido que mencionamos? O Novo 'Iestamento não se ocupa muito do tema; talvez só reconheça aexistência dessa diversidade e, no Apocalipse, a presença dos"povos, nações, tribos e línguas" no drama do juizo e da redenção, que culmina na nova Jerusalêm que recebe, cumprindo aprofecia de Isaías (60.11), "a honra e a glória das nações" (Ap21.26).
Com base no reconhecimento da soberania universal deDeus e da extensão universal da redenção em Jesus Cristo,parece fácil abandonar essa variedade de famílías, tribos, povos, línguas e nações e reduzi-las a uma humanidade comum.O pensamento grego clássico emprestou a essa noção umaandaimaria filosófica, uma "razão" universal que todos os sereshumanos temos em comum e frente à qual as singularidadessão acidentais e sem importància. E a tradição liberal amalgamou as duas correntes e definiu "direitos humanos": igualdade, liberdade e fraternidade de todos sem distinções.
Seria ao mesmo tempo ingrato e sumamente perigoso menosprezar essa herança universalista. Ela é uma conquistahumana à qual não podemos renunciar; menos ainda hoje,quando a história política, econômica, científica e técnica nosmisturou numa só grande urbe cosmopolita. Mas seria igualmente tolo não perceber como essa diversidade jamais deixoude reclamar seus direitos, de afirmar suas identidades, de fazersentir sua presença. 'Iem-no feito de forma perversa, proclamando-se "nações" eleitas, não poucas vezes reclamando legitimidade religiosa e missões divinas, avassalando outras nações e manifestando-se violentamente quando se a desconhece. E o tem feito construtivamente, desenvolvendo suas culturas, organizando-se para o bem comum, criando, a partir de sie sem renunciar à sua peculiaridade, relações de cooperação,organizações internacionais e projetos comuns.
Será possível passar do mero reconhecimento dessa diversidade para uma compreensão teológica dela? O caminho maistrilhado no mundo protestante tem sido o de uma teologia das"ordens da críação'<". A nação aparece, assim, como uma realidade ordenada por Deus e, embora corrompida pelo pecado,de validade permanente. Parece que esse conceito predominouna forma em que as "igrejas de imigração" têm interpretado
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sua "etnicidade". Em alguns casos, a ênfase recaiu mais na"etnicidade" como cultura, como "modo de ser" (alemães, dinamarqueses, escoceses ou galeses), inclusive como "cultura evangélica" (alemã, dinamarquesa, etc.). Mesmo aí, porém, a vinculação à "mãe pátria" ocupa um lugar fundamental. E, freqüentemente, os residentes se sentem como representantes de suanação de origem e a serviço dos interesses dela. Esse perigo deidentificação de "etnicidade", "cultura étnica" e "nação" (de origem) torna-se sumamente grave em situações conflituosas como aquela criada pelo nacional-socialismo alemão. Mas a equação da idéia bíblica de "os povos" como sinõnimo da formapolítica do "estado-nação" moderno introduz, em todo caso,um perigoso elemento de confusão e o risco de sacralizar osinteresses políticos, econõmicos ou ideológicos de uma determinada nação num determinado momento.
Se rejeitamos a identificação de diversidade étnica com anacionalidade como uma "ordem da criação", como reconhecerteologicamente essa diversidade?
3. Espaço, história e missão. O pastor e teólogo luteranobrasileiro Vítor Westhelle colocou a problemática teológica darelação tempo-espaço em seu artigo "Re(ll)gião, o Senhor dahistória e o espaço ílusórío'v". Quando nos lembramos doshorrores perpetrados pelas "ideologias do espaço" - geopolítica, expansionismo, Blut und Boden - não podemos deixar desentir um calafrio ao ver reivindicada a legitimidade do "espaço", aparentemente contra a do "tempo" e da história. Entretanto, ao superar essa primeira sensação e prosseguir cuidadosamente com a leitura, a importância e a urgência do temase nos impõem. O espaço representa, nas palavras de Westhelle,
o território de um povo, a terra que pisamos, a cultura à qualpertencemos, o meio ambiente com o qual ínteragímos, a casaem que moramos, as ruas familiares que cruzamos, as redespessoais às quais estamos ligados ou das quais dependemos (...)cadavez mais intrinsecamente ligados à nossa autocompreensão,"?
Acaso estamos condenados a optar entre "espaço" e "his-tória"? O autor nos propõe uma revisão tanto da visão de uma"história ideal" desvinculada do espaço quanto de um "espaçoilusório" que é simplesmente o locus de um conflito de poderes. E, em lugar dele, nos fala - alinhado com algumas observações de Foucault - de um "espaço tangencial", representado pelo "deserto" na experiência de Israel ou por "Gólgota" na
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de Jesus, "quando o círculo do poder é interceptado por umespaço tangencial que revela os limites do espaço próprio e orosto da alteridade como epífanta'<.
Não é possível seguir detalhadamente o trabalho de Westhelle, que me permito recomendar. Parece-me, contudo, queuma visão trinitária do tema poderia ser um marco teológicoadequado para situar a problemática que ele nos coloca e queé central para o tema de nossa reflexão sobre as "igrejas étnicas".
A criação, com efeito, é a afirmação do espaço, de umespaço ordenado, povoado de espécies, lugar de diálogo comDeus, de comunhão humana e de produção de vida. Nem opecado, nem a violéncia, nem a corrupção humana anulamdefinitivamente a santidade desse espaço: Javé o reconstrói erestaura para "as famílias" de povos (Gn 10). A encarnação doFilho, longe de ser a dissolução do espaço pela presença dotempo eterno, é sua confirmação: num lugar, em meio a umpovo, uma cultura, uma condição política e social e uma linguagem, o Filho de Deus "arma sua tenda", "nascido de mulher, nascido sob a lei" (GI 4.4).
O ministério terreno do Filho tem os limites e as limitações desse espaço. Porém o Espírito abre esse espaço rumo ao"outro". A maravilhosa narrativa de Me 7.24-30 acerca da curada mulher síro-fenícía dramatiza a crise dos espaços fechados:Jesus se atém a seu limite. E o Espírito o repreende na voz de"um outro total": em terra estranha, de outra raça, mulher econtaminada por uma filha endemoninhada. E Jesus, que naseqüência dessas passagens ganhou todas as discussões, perde justamente esta: "Disseste a palavra justa".
A universalidade da hístóría da salvação não é a dissolução dos espaços específicos, étnicos e diferenciados. Não é umanegação da etnicidade como criação de Deus, como espaço deencarnação do evangelho de Jesus Cristo. É, isso sim, a negação do espaço fechado sobre si mesmo. O que o apóstolo Paulorejeita é "a etnicidade como méríto'<'. A universalidade da graça não é a eliminação de raça, sexo ou condição social, e simsua libertação para o exercício do amor-e.
Uma doutrina autõnoma da criação transforma a etnícídade num espaço fechado, imutável, que se justifica a si mesmo e que só pode conceber a relação com o outro como domínio. Essa é a etnicidade teológica do apartheid, dos "teutocristãos", do "destino manifesto", da "cultura ocidental e cristã", da "missão confiada à raça branca". No outro extremo,
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uma doutrina autônoma da redenção reduz o ser humano aum pecador sem nome, nem terra, nem povo, nem cultura,nem família - e, na versão subjetivista e individualista quetanto nos tem afetado, sem corpo nem comunidade!
Com razão Westhelle reclama contra ambas as tergiversações' representando, em nível teológico, uma critica legítima àmodernidade liberal. E, ao mesmo tempo, protege esse reclamodas tendências dissolventes de uma certa pós-modernidade aosalientar que "por esse reconhecimento da 'alteridade' meupróprio espaço recebe um significado religioso, porque em seulimite o outro toma-se epííãníco'w.
Será que perdemos, nessa reflexão teológica, o sentidoconcreto de nosso tema: a presença do "rosto étnico" junto aosdemais do protestantismo latino-americano? Creio que não. Eme atreveria a concluir com três afirmações que, mais do quepropostas, já são experiência em nossas relações entre igrejasde origem étnica e de origem missionária: 1) o protestantismolatino-americano necessita que as igrejas étnicas mantenhame recriem constantemente a memória de sua terra, de sualíngua, de sua "mentalidade", de suas tradições teológicas; 2) oprotestantismo latino-americano necessita que essa memóriaseja oferecida e recebida, não como um "pacote fechado", mascomo uma participação ativa que gera constantemente, emuns e outros, a identidade evangélica nesse espaço particularlatino-americano no qual nos encontramos juntos, e 3) o protestantismo latino-americano - de origem étnica e de origemmissionária - necessita abrir-se, a partir dessa identidade, aoespaço e à história da sociedade latino-americana, onde o Espírito de Deus está sempre presente e ativo. E por entre tudoisso, o protestantismo latino-americano não pode se esquecerque toda identidade é sempre criação que Deus ama e preservae "velha criatura" que tem de morrer e ressuscitar "à imagemdo Ressuscitado".
Capítulo 5
Em busca de coerência teológica: a trindadecomo critério hermenêutico de uma teologia
protestante latino-americana
'Ientamos, nos capítulos antertores, seguir o desenvolvimento teológico do protestantismo latino-amertcano, o desenvolvimento desses "rostos" simultâneos, às vezes tão superpostos, às vezes mal conformados, às vezes em confronto. Apergunta é: para que fazemos este exercício? Embora nossotrabalho não tenha sido estrttamente histórtco, constato queestas palavras de Rubem Alves correspondem plenamente àminha intenção:
O historiador (...) é alguém que recupera memórias perdidas eas distribui. como se fossem um sacramento. por aqueles queperderam a memória. Na verdade, que melhor sacramento comunitário existe que as memórias de um passado comum, marcadas pela experiência da dor. do sacrificio e da esperança?Recolher para distribuir. Ele não é apenas um arqueólogo dememórias. É um plantador de vísões e de esperanças.'
1. O futuro do protestantismo
1. A exploração dessas visões com respeito ao futuro doprotestantismo latino-amertcano se desdobra em várias perguntas: será que o novo interesse pela religião que se percebeem nossas terras - e não só nelas - é uma fase passageiranum processo histórtco que se encaminha inexoravelmente, amédio e longo prazo, para "um mundo sem religião"? Em todocaso, o protestantismo continuará crescendo ou tem ele umteto ou limite que, mais cedo ou mais tarde. deterá seu avanço? As formas mais dinâmicas do protestantismo - fundamentalmente o pentecostalismo - estão fatalmente condenadas aos mecanismos de rotínização e burocratização descrttospor Max Weber, que o levam a imitar as "igrejas tradicionais"?Qual é. em todo caso, o futuro dessas "igrejas tradicionais"?
98 Rostos do protestantismo latino-americano
As tentativas de responder essas perguntas já constituemuma crescente bibliografia. Há de tudo nela. Já em 1968 Lalivefalava desse "teto". Outros sociólogos, como David Stoll e DavidMartin - com avaliações distintas - prevêem uma continuação do crescimento. Alguns entusiastas falam de 80 milhões deevangélicos na América Latina no final do século. Em algunscírculos da Igreja Católica Romana se olha esse processo comalarme, às vezes utilizado como incentivo para a própria tarefaevangelizadora, outras vezes como denúncia de uma "invasão"que se precisa tentar conter por todos os meios. Pessoalmente,pedidos de origens diversas me tentaram a imaginar, sem qualquer pretensão de clarividência, possíveis cenários e a proporalgumas aproximações (que poderão ser vistas especialmenteem quatro artigos recentess.)
Muitas das tentativas de responder essa pergunta procederam com base num esquema sociológico que pressupõe como cenário histórico a passagem da sociedade tradicional paraa modernidade. Esta seria, em tal caso, o futuro de toda ahumanidade. Aceitando-se esse modelo, a sociologia da religiãoelaborada por Max Weber doravante nos permite projetar ocampo religioso, com diversos cálculos dependentes da celeridade, lentidão ou descompensações que possam ocorrer naquela passagem. Em resumo, o final da história está amanhecendo progressivamente sobre a humanidade: uma ordem mundial homogênea, caracterizada pela economia do livre mercado,pela abundância para todos, pela era tecnológica e pela democracia representativa. É interessante registrar que o profetamaior desse "paraíso", o japonês-norte-americano Francis Fukuyama, observou, num artigo recente, que não foi em todasas partes que se gestou o "novo mundo" no ventre da democracia e - embora não lhe agrade inteiramente - admite quebem pode haver lugares onde o "fim da história" ande de mãosdadas com regimes autoritários.
As exceções ao mundo de Fukuyama são, seguramente,mais amplas e profundas do que ele está disposto a admitir.Num trabalho ao mesmo tempo erudito e atrevido, O império eos novos bérberoe', um historiador e especialista em 'IerceíroMundo, o francês Jean Christophe Rufín, pinta um cenáriomuito diferente: um "império", o mundo desenvolvido, rico,tecnológico, democrático e ilustrado, que se dobra sobre simesmo e levanta barreiras frente aos "novos bárbaros" do 'Ierceiro Mundo e, ao mesmo tempo, constrói guetos e fortificaçõespara manter controlados os "bárbaros" dentro de suas pró-
Em busca de coerência teológica 99
prías fronteiras; e um 'Ierceíro Mundo heterogêneo, caracterizado por "estados-tampões" ao longo das fronteiras Norte-Sulque separam os mundos, por "feitorias" onde o mundo do Norte tem interesses e "representantes" e terrae incognitee, mundos abandonados a si mesmos na maior parte do 'Ierceíro Mundo (e as "terras ignotas" no seio do próprio Primeiro Mundo).Alguns dos sinais de crise emitidos recentemente pelos projetos econômicos latino-americanos, precisamente nos "estadostampões" e "feitorias" - escrevo no início de 1995 - prestamcerta verossimilhança ao cenário de Rufin. É mais provável,entretanto, que a realidade venha a ser uma mescla, em diversas proporções, das duas visões: em todo caso, um panoramaconfuso, cambiante e conflituoso. Que lugar poderão ter a religião em geral e o protestantismo em particular numa AméricaLatina em que estados-tampões, feitorias e terras ignotas seseparem e superponham ao mesmo tempo?
2. É moeda corrente supor que, à medida que as sociedades tradicionais se incorporem à "modernidade" - e possivelmente depois à pós-modernidade (supondo que esta venha aser outra coisa do que uma "modernidade" à qual se tenhaamputado a alma) -, a religião tende a enfraquecer-se e desaparecer. A experiência das últimas décadas parece questionaresse axioma. Já Luckmann, em A religião invisíveJ4, havia colocado perguntas a respeito do "desaparecimento da religião" edestacado que a busca de um "horizonte de significado" dealguma maneira transcendente continua ocorrendo, ainda quede formas distintas - com uma pluralidade de horizontes na sociedade moderna. Num interessante artigo sobre "Religiões populares e modernidade no Brasíl'", o professor brasileiro de ciências sociais Ali Pedro Oro destaca ao menos trêsformas em que o religioso se toma "necessário" em sociedadescomo a brasileira, com setores modernos e setores marginalizados: como provedora de sentido em setores médios e atéaltos - um sentido que a modernidade exige, mas é incapaz deproporcionar; como "reencantamento do mundo" que permitesacralizar ou "ressacralízar" a vida", mesmo num ambienteurbano; e como religião de êxtase que toma possível projetarse "para fora" do mundo ordinário e aceder a outro estado deconsciência que liberta a pessoa da prisão de uma cotídíanídade insuportável. Embora estas duas últimas funções tenhamsua maior atração em setores marginais, não deixam de sersentidas como necessidade nos setores médios e altos. A partir
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de uma localização geográfica e cultural muito diferente, o sociólogo B. W. Hargrove dedica dois capítulos de sua sociologiada religião aos novos movimentos religiosos que surgem, segundo sua interpretação, como conseqüência da "crise de confiança na cultura ocidental moderna", uma crise para a qualtanto as pessoas que se sentem "alienadas" quanto as quecaem numa situação de "anomía'' buscam e produzem umaresposta",
Dentro dessas possibilidades, as igrejas evangélicas - seja que mantenham o ritmo de seu crescimento, ou o diminuam, ou cheguem a um ponto de "saturação" - terão, semdúvida, um lugar nesse panorama complexo e confuso masenormemente dinãmico. No campo religioso latino-americano,a presença evangélica já não é e seguramente não será maisum fenômeno periférico, acidental ou "folclórico". Seu crescimento levou alguns a esperar, querer ou temer que elas venham a substituir a Igreja Católica Romana, ou seja, a ocuparo lugar e cumprir a função que esta desempenhou e desempenha na sociedade e na cultura latino-americanas. Abstraindodo fato de que não creio que isso seja histórica e sociologicamente realizável, tal proposta me pareceria uma tentação perigosíssima. Nosso secular debate com o catolicismo deixaria deser evangélico se se transformasse em competição pelo poder,pelo domínio das almas, pela hegemonia do campo religioso.Ttete-se. pelo contrário, de uma discussão sobre como, de acordo com o evangelho, a igreja deve estar presente no mundo. Oque os evangélicos rejeitamos não é que se tenha estabelecidoou se procure estabelecer uma "cristandade católica romana",e sim que se estabeleça uma "crístandade'".
3. A responsabilidade do protestantismo, seja qual for seulugar na vida religiosa latino-americana, é o testemunho fiel doevangelho, que se mede pela fidelidade na propagação do evangelho, pela fidelidade em que se o vive e pela fidelidade com quese o celebra, ou seja, em sua evangelização, seu comportamento e seu culto. Disso nos ocuparemos, em parte, no últimocapítulo. Agora, entretanto, gostaria de demorar-me na buscade fidelidade na compreensão do evangelho, ou seja, na teologia. É possível que a teologia não seja o mais importante nemo primeiro que deve ocupar-nos, mas certamente é indispensável.A igreja não pode existir sem se interrogar constantemente a simesma, à luz da Escritura, acerca da fidelidade de seu testemunho, da coerência entre sua mensagem, sua vida e seu culto.
Em busca de coerência teológica 101
Há algumas décadas, René Padilla destacava que as igrejas evangélicas latino-americanas eram igrejas "sem teologia".Se a análise que esboçamos é ao menos parcialmente adequada, a debilidade teológica do protestantismo latino-americanonão consiste tanto na ausência de teologia, nem em seus desvios - que existem, como vimos -, mas, antes, em seus "reducíonísmos", A herança evangélíca dos "despertares" angloamericanos, cujo fervor e impulso não devemos menosprezarnem perder, produziu uma dupla redução, cristológica e soteriológica. E, embora as chamadas "igrejas de imigração" tenham retido, em sua definição doutrinal, as formulações clássicas da Reforma, na prática não funcionaram - por diversasrazões - como corretivo desse reducionismo. Este, por suavez, combinou-se com o caráter individualista, subjetivista eaistórico da visão religiosa da modernidade, desembocando emalgumas das graves deformações de que sofrem nossas igrejas.Assim, a teologia se resume à crístología, esta à soteriologia e,por fim, a salvação fica caracterizada como uma experiênciaindividual e subjetiva. É verdade que, lentamente, temos tentado superar esses estreitamentos. E o tentamos, mais umavez, quase exclusivamente em "chave crístológíca", mas semchegar a colocar a cristologia no marco total da revelação. Porisso estou propondo hoje uma perspectiva trinitária que aomesmo tempo amplie, enriqueça e aprofunde a própria compreensão cristológica, soteriológica e pneumatológica que estána raiz de nossa tradição evangélica latino-americana. O quese segue é, pois, apenas uma espécie de "ruminações" ou "pistas" teológicas.
2. O que significa a trindadecomo critério hermenêutica?
Ao propor a doutrina trinitária como critério hermenêutíco no desenvolvimento de uma teologia, parece-me necessáriodestacar três riscos: o primeiro é esquecer que a doutrina datrindade - não, por certo, a realidade do Deus trino - é umaformulação teológica da igreja que procura integrar a totalidade da experiência da revelação, não como se pretendesse "abarcar" essa totalidade ou "esgotar" seu significado, mas simcomo uma "lembrança" permanente de que cada vez que falamos de Deus, de sua palavra, de sua ação, estamos falandodessa riqueza inescrutável e inesgotável que chamamos Pai,Filho e Espírito Santo. A doutrina, porém, não é nem menos
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nem mais do que isso: uma tentativa da igreja; por isso, oobjeto de nossa fé não é a doutrina da trindade, e sim o Deustrino. A doutrina tem o caráter de um princípio diacrítico, quenos permite distinguir, discernir, corrigir.
Em segundo lugar, não devemos nos deixar obcecar pelo"número mágico" três e transformar a doutrina da trindadenuma espécie de adivinhação numérica - para ver quantos"três" conseguimos encontrar na natureza, na ciência ou nocosmo; os exemplos dessa "pítagorízação" da trindade são legião na história da doutrina. Mais perigoso ainda é ver natrindade uma espécie de "divisão de trabalho" em Deus, umarepartição de funções que nós, depois, podemos manipularpara servir-nos do "funcionário divino" que mais nos convenhana ocasião. Assim temos proclamado eras do Pai, do Filho oudo Espírito ou temos justificado nossos reducionismos confessionais proclamando que nossas teologias são "do primeiroartigo", "crístocêntrícas" ou "espirituais".
Finalmente, quando falamos do "mistério" da trindade, ébom definirmos em que sentido nosso Deus é mistério: ele o é porsua liberdade, porque nunca poderemos sondar "a mente deDeus", porque permanece sempre essa "alterídade", essa transcendência divina ante a qual, em última análise, só nos cabecair de joelhos, calar num silêncio de amor e reverência e adorar:
Santo, santo, santo,meu coração te adora;meu coração sabe dizer-te:Santo és tu, Senhor!
Porém Deus não é o mistério obscuro e inomeável de alguns misticos; não é o "abismo" que não admite qualificações.O Deus da Escritura, o Deus do evangelho é o "mistério revelado" (Ef 3.1-13); é o Deus que disse seu nome e entrou numpacto (Êx 3); é o Deus que quis qualificar sua ação, chamando-a amor, justiça, fidelidade.
Raros serão os evangélicos latino-americanos que neguema trindade. Creio, porém, que não é injusto dizer que essaafirmação ficou como uma doutrina genérica, que não informaprofundamente a teologia e, o que é pior, a piedade e a vida denossas igrejas. Para que ela constitua verdadeiramente umcritério hermenêutico, é preciso explorar com maior profundidade o que é que afirmamos na doutrina da trindade. A igrejafez isso, especialmente nos primeiros séculos. No século 16,Calvino e depois teólogos anglicanos souberam aproveitar essa
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tradição. Alguns teólogos católicos latino-americanos (Juan LuisSegundo, José Comblin, Leonardo Boff Ronaldo Munoz, entreoutros'') têm chamado recentemente a atenção para sua ímportãncia. O protestantismo latino-americano tem de reclamare cultivar essa tradição trínítáría, sem nos amedrontar porquea terminologia às vezes parece abstrusa e vetusta. Três dasafirmações clássicas me parecem particularmente fecundas para nosso tema.
1. Em primeiro lugar, devemos lembrar-nos que a doutrina da trindade é a expressão do que a Escritura nos revelaacerca da história de Deus com seu povo. Com efeito, nessahistória Deus se manifestou como Javé, o Senhor soberanoque esteve antes do "princípio de todas as coisas" (Gn 1.1),cuja palavra origina tudo o que é e tudo o que vem a ser. Nessahistória Deus manifesta sua liberdade de decidir e escolher (naverdade, escolhe o povo mais fraco e insignificante da terra efaz um pacto com ele [Dt 7.7-8; 26.5ss.]) e de "ficar" fielmentecom a humanidade até chegar a "armar sua tenda" e habitarcom ela. Nessa história a comunidade de Pentecostes recebe apresença desse Deus como efusão na vida da própria assembléia e de seus membros. O Deus da trindade não é eterno naintemporalidade de um princípio ideal ou de uma constanteindeterminada. Ele é o Deus que faz história: crer no Deustrino é entrar nessa história10.
Juan Luis Segundo expressou isso muito graficamente aodizer que Deus é sempre aquele que "está antes que nós",aquele que "está conosco" e aquele que "está em nós". O "antes" é a expressão da transcendência e liberdade de Deus emtoda a sua obra: quando descobrimos a presença de Deus nanatureza, na história, na igreja, no pão e vinho da comunhãoou na relação pessoal da oração, não estamos "tomando possede Deus", não estamos lhe prescrevendo que apareça; ele precede e transcende todas as suas manifestações. Não há templo, nem sacramento, nem oração, nem igreja, nem doutrina,nem experiência que o contenha (l Rs 8.27; Is 66.1-2; 55.8). E,como nos adverte pela boca de Jeremias (7.1-14), ele podedestruir todo templo - ou experiência, ou igreja, ou sacramento - que se transforme em ídolo!'. À liberdade soberana doDeus que está sempre "antes" corresponde a liberdade profética do juízo purificador. "Com" significa que, não obstante, Deusse faz realmente carne neste mundo, que não se recusa atomar-se vulnerável, tomar nome humano em nossa história,
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tornar-se nosso vizinho: fazer-se palavras humanas, gestos,lei, povo, presença visível, audível. À encarnação de Deus nahistória correspondem a palavra concreta de um livro - aBíblia - e a congregação concreta de um povo - a igreja onde Deus verdadeiramente está, de maneira plena e real. O"em" expressa a própria vida de Deus em nossa vida, a energiaque nos permite ser ("nele vivemos, e nos movemos, e existimos"; At 17.28) e que garante essa vida para sempre; a forçado Espírito que repleta a totalidade de nossas capacidades edons e nos permite consagrá-los a seu serviço, a alegria desentir sua presença e de celebrá-la com emoção e a viva voz. Àmorada desse Deus "em" nós correspondem a experiência, aoração, a pregação, o culto, não como meros fenómenos psicológicos ou simbólicos, mas como "sarça ardente" de sua presença.
2. O mesmo Juan Luis Segundo foi o primeiro a insistir,entre nós, em recuperar uma tradição dos pais gregos - particularmente dos chamados "capadócios" - para a qual a trindade significava primordial e fundamentalmente "a comunhãodas pessoas" da trindade12 . Recentemente Leonardo Boff desenvolveu com cuidado essa linha teológica em seu livro Atrindade, a sociedade e a libertação. Reduzindo-o a uma linguagem menos técnica, isso significa afmnar que Deus, emseu próprio ser, não é o Eu absoluto dos filósofos, nem o monarca unipessoal que projeta nos céus a imagem de um imperador absoluto, nem a solidão inacessível do "Uno" em egrégioisolamento; antes, Deus é em si mesmo uma permanente conversação, uma comunhão de amor, uma identidade de propósito e uma unidade de ação: Pai, Filho e Espírito Santo. Umescritor do século 6 parece ter sido aquele que utilizou umtermo grego para sublinhar essa afirmação: pertchoresis (morar um no outro, "in-habitar" e/ou compenetrar-se um comoutro). As referências bíblicas que sustentam essa maneira deexpressar-se são mais do que abundantes, particularmente noEvangelho de João (17.21-23; 10.30,38; 14.11) e nas fórmulasternárias que encontramos em Paulo (Rm 8.10; 1 Co 2.11; 2 Co13.14; 1.21-22). Por isso, com a mesma energia a igreja diráque as pessoas são irredutíveis uma à outra - "outro é o Pai,outro é o Filho, outro é o Espírito Santo" - e que "o Pai estátotalmente no Filho e totalmente no Espírito Santo" e assimsucessivamente em relação ao Filho e ao Espírito. Não se tratade um enigma a resolver: a diferenciação e a unidade não seopõem porque "Deus é amor".
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o que aqui se nos revela é a natureza da realidade última:a vida de Deus é comunhão. não se afirma a identidade retraindo-se sobre si, mas abrindo-se ao outro: a unidade não ésingularidade. e sim comunicação plena. À semelhança dessanatureza fomos crtados>: na participação nessa constante "conversação" divina encontramos o sentido de nossa existência. avida abundante; sobre esse modelo devemos estruturar nossasrelações humanas. Nem a autoridade onímoda de um sobre osdemais, nem a uniformidade indiferenciada da massa. nem aauto-suficiência do self-made mano e sim a perichoresis doamor é nossa origem e nosso destino como pessoas, comoigreja. como sociedade.
3. A tradição teológica ocidental. talvez mais pragmática.tentou afirmar a mesma verdade em relação com a ação doDeus trino ao cunhar, a partir de Agostinho, a fórmula opustrinitatis ad extra indivisum (ou opera trinitatis ad extra indivisa sunt ["a(s) obra(s) da trindade voltada(s) para fora éísão)índívísalsl'f}'". Ou seja. o que o Deus trino faz no mundo - nacriação. na reconciliação. na redenção - é sempre. ao mesmotempo e de maneira concertada. obra do Pai. do Filho e doEspírito. Mesmo que talvez se explique que. teologicamente,nos acostumamos a "apropriar" a cada uma das pessoas respectivamente essas três formas de ação de Deus. é necessárioque evitemos transformar essa apropriação numa separação.OUo Weber nos adverte, com razão:
Só quando também não perdemos de vista a unidade de Deusem sua obra, podemos evitar uma "teologia do primeiro artigo"isolada, um "cristocentrismo" isolado ou um "espiritualismo"isolado na teologia. Pode-se até dizer que aqui a doutrina datrindade alcança sua relação mais imediata com a piedade; emtodo caso, não é dificil se dar conta de que, com a ruptura ou oretrocesso da doutrina da trindade na consciência da comunidade, a própria piedade toma-se unilateral e, nessa medida,perde em vitalidade e ríqueza.P
Conhecemos muito bem, em nossa experiência latino-americana. o que tem sido uma "piedade da providencia" passivaou conservadora no catolicismo popular. uma "piedade cristomonísta" que se esquece do reino de Deus e se desinteressa domundo em nossa comunidade evangélica e uma "espiritualização" que se perde na perseguição descontrolada de experiências cada vez mais espetaculares e esotéricas em alguns grupos pentecostais. A doutrina trinitária nos lembra que o Deus
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que vem ao nosso encontro na criação e na história, no perdãodos pecados e na busca de santificação é o mesmo Deus Pai,Filho e Espírito Santo ao qual devemos responder sempre segundo a plenitude e "plurídímensíonalídade" de sua obra.
3. Rumo a uma cristologia trinitária
É minha convicção que essas afirmações trinitárias nosoferecem uma estrutura de pensamento teológico que poderesgatar-nos dos reducionismos que afligem o protestantismolatino-americano. Desenvolver essa convicção nos levaria a aplicar esse critério aos distintos loci theologici. Seria particularmente significativo fazê-lo em relação à eclesíología, à doutrinada santificação ou à escatologia. É evidente que essa tarefaescapa, neste momento, a nossas possibilidades, porque significaria abordar a totalidade dos temas doutrinais. Mas, já queinsisti no estreitamento "crístológíco" como um aspecto centralde nossa debilidade teológica, permitam-me concluir este capítulo destacando alguns dos aspectos nos quais o critério trinitário poderia corrigir e enriquecer a crístología característicadas igrejas evangélicas latino-americanas.
1. A fé em Jesus Cristo no mundo das religiões. Um dosproblemas que a teologia evangélica tem de enfrentar em nossaépoca é como responder à crescente e complexa pluralidadereligiosa de nossos povos.Tradtcíonalmente. definíamo-nos como "a verdade do evangelho" frente aos "erros do romanísmo"(esta era nossa linguagem). Juan Mackay teve a perspicáciateológica de desprender-se dos argumentos apologéticos secundários - purgatório, veneração dos santos, maríología - ecolocar o debate em termos crístológícos: o contraste entre o"Cristo da morte" trazido da Espanha (ou da África, segundosua análise) a nossas terras com a conquista e o "Cristo vivo"do evangelho, o Cristo ressuscitado, vivente, próxímo'", Entretanto, a discussão se colocava dentro de uma referência crístológíca mutuamente aceita. Este não é mais o caso: os novosmovimentos religiosos, a presença ativa de outras grandes religiões, o renascimento - ou melhor, a manifestação e a vindicação pública - das religiões indígenas ou afro-americanasnegadas e ocultadas, tudo isso nos coloca uma problemática nova.
Como entender essa nova realidade? O crescimento pentecostal introduziu o problema dentro de nossa própría vidaevangélica, porque não podemos ignorar o fato de que a píeda-
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de popular pentecostal e carismática incorpora muitos elementos e manifestações tipicas da piedade popular. A esse respeitojá há estudos de autores pentecostais, como os da equipe chilena auspiciada pelo SEPADE, já citados (especialmente vol, lI,caps. 4 e 5) e o interessante artigo de Bernardo Campos sobre"O influxo das 'huakas' ou a espiritualidade pentecostal noPeru" (trabalho preparado para a Associação Ecumênica de'Ieólogos do 'Ierceíro Mundo [ASElT] e não publicado até omomento), que reconhecem e afirmam a legitimidade desseselementos. Será suficiente, frente a isso, que os protestantesnos empenhemos em repetir, como já o temos feito por mais deum século, o grito de combate da ínquísíção: tudo isso nãopassa de superstição, paganismo, bruxaria ou artimanhas deSatanás?
Sabemos que a igreja enfrentou de diversas maneiras, apartir do século 2, a pergunta: como Jesus Cristo se relacionacom o mundo das religiões? Encontramos, inclusive, sinaisdesse tema já no Novo 'Iestamento, O movimento missionáriodos séculos 18 a 20 manifestou a mesma diversidade de enfoques. Alguns tentaram típíflcar as várias linhas como: Cristocontra as religiões, Cristo nas religiões, Cristo por sobre asreligiões (como seu "cumprimento") e Cristo com as religiões(na linha de uma crístología do Iogos)!7.
Os protestantes temos reagido com razão contra toda forma de "sincretismo". Com razão, mas nem sempre com discernimento. Nos termos de um agudo dito de Jesus, temos visto"o argueiro no olho do próximo" (o sincretismo, a idolatria e amagia que denunciávamos no catolicismo), mas não temospercebido "a trave em nosso olho" (p. ex., a incorporação deelementos da cultura e da ideologia anglo-saxã em nossa própria religiosidade). De alguma maneira temos nos autodesígnado como os únicos possuidores e juízes de uma tradição doutrinal pura e absoluta, e a partir dai temos condenado a mesclada religiosidade popular católica.
1àl posição é, de qualquer ponto de vista, inaceitável. Porum lado, já salientamos que nossa própria "religiosidade popular" não é imune à assimilação de elementos da cultura e dareligiosidade dominantes na sociedade. Por outro, só por preconceito ou miopia se pode negar que a tradição bíblica tanto em Israel quanto na igreja - atesta a assimilação eincorporação de termos, categorias, formas litúrgicas e tradições das culturas e religiões circundantes. Conscientes dessesfatos, alguns dos mais lúcidos teólogos e teólogas de uma nova
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geração se puseram a trabalhar sobre o tema, mostrando oscondicionamentos e limitações de nossas próprias experiências- e, portanto, concepções - de Deus e da fé, e destacando anecessidade de prestar atenção, com humildade e respeito, aoutras experiências e concepções. O diálogo no qual se descobrem diferenças e coincidências, no qual se reconhecem influências e contribuições mútuas seria a nova forma de abordar esse tema. Parece-me que se trata de uma atitude sadia ecorreta. A pergunta fundamental que devemos fazer-nos, entretanto, parece-me ser se todas essas influências e contribuições que nos vêm da cultura e de outras experiências religiosasforam, ao serem assumidas em nossa própria experiência defé, "reínterpretadas e ressignificadas" a partir da revelação doDeus do pacto ou se, pelo contrário, foram "batízadas" semnascer de novo. Se, efetivamente, devemos tomar distânciatanto de uma atitude de "purismo" quanto de uma aceitaçãoacritica, como pensar teológica e pastoralmente esse dilema?Creio que um enfoque crístológíco trinitário pode servir-nos deguia nessa tarefa.
O que significaria encarar esse tema no marco de umacristologia trinitária? Em primeiro lugar, não desligar o JesusCristo neotestamentário da Palavra "que era desde o princípio""com Deus e era Deus". Digo expressamente palavra, e não"Logos", porque não se trata de um princípio racional eternoque informaria toda a realidade, e sim da Palavra criadora quecriou e recria constantemente o mundo, do Espírito de poder evida que dinamiza o mundo natural e humano: a dabar e oruach de Javé que se fez carne não têm estado ausentes tantodo mundo natural quanto da história dos povos, como o diz demaneira tão bela e vigorosa o profeta Amós: "Não fui eu que fizsubir os filisteus de Caftor e os siros de Quir?" (9.7); ou Isaías:"(Ciro) é meu pastor (...) o ungido" (44.28; 45.1); ou o salmista:"se tiras teu Espírito (de toda a criação), morrem e voltam a seupó; envias teu Espírito, eles são criados e renovas a face daterra" (104.29-30). Reconhecer na história, nas culturas, naslutas e nas religiões dos povos a presença dessa Palavra edesse Espírito não é ceder ao paganismo, e sim confessar aquele sem o qual "nada do que foi feito se fez" (Jo 1.3). Com razãodizia um cristão da Ásia: "Nosso Deus não é um deus inválidoque chegou à Ásia às costas de um missionário."
Porém não é menos certo que uma teologia cristã nãopode desligar a Palavra e o Espírito de Deus da "carne" do filhode Maria, de seu ensinamento, de sua mensagem, de sua vida
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e de sua morte, de sua ressurreição e seu senhorio. Aí estão asmarcas da autêntica Palavra e do Espírito do Deus do pacto.Pelo critêrio da presença de Deus nele se mede toda supostapresença desse Deus na história humana; aí se afirma o genuino e se rejeita o idolátrico em toda religião e em toda culturahumana - inclusive em nossa religião e em nossa culturalNão está equivocada EIsa 1àmez quando interpreta a luta pelaidentidade de Quetzacoatl como Deus de vida ou de morte nacultura maia e asteca à luz do combate profêtico da Escriturapelo verdadeiro Deus!". E, em minha opinião, Leonardo Boffnão está desencaminhado quando propõe "a gratuidade dagraça de Deus" e "o compromisso com a misericórdia e a justíça" como marcas de uma verdadeira apropriação cristã de qualquer tradição cultural.
Mas há tambêm uma "pista trinitária" frente à perguntaacerca do como dessa "transsígnífícação" das tradições religiosas e culturais. Com efeito, a possibilidade de uma transformação genuína só existe quando o Espírito de Deus trabalha nahistória e na cultura dos povos para atestar o sígnífícado deJesus Cristo em sua vida. Esse processo ficou rompido emnossa América pela violenta imposição da religião espanhola. Osincretismo latino-americano não é resultado de uma excessiva tolerãncia ou acomodação - como às vezes temos dito osprotestantes - e sim da tentativa brutal de "apagar" a hístôríadesses povos e substitui-la por outra, supostamente cristã. Eleé produto de uma resistência, quando a conquista anulou aspossibilidades de uma evangelização genuína. É claro que oevangelho nunca "volta vazio". Mas esses séculos sem verdadeiro encontro e diálogo pesam gravemente. 1àlvez se nos dêhoje aos evangélicos (como se está dando em alguns lugares apartir da Igreja Católica) uma oportunidade de recuperar algodesse encontro. É justamente aqui que valorizo a experiênciaque está ocorrendo no que chamamos de "pentecostalísmo crioulo". Aí se opera uma evangelização "a partir de baixo", a partirda vivência e da realidade dos setores populares. 'leremos dedizer uma palavra mais sobre o discernimento dessa obra doEspírito. Mas uma teologia trinitária tentará ver e ouvir o queo Espírito do Senhor - o Jesus Cristo presente - opera na fédesses setores populares para atualizar a unidade da Palavraeterna da criação, da carne histórica de Jesus Cristo e daexperiência de fé do pOV019 •
2. A trindade e a responsabilidade social dos cristãos. Es-
llO Rostos do protestantismo latino-americano
sa perspectiva crístológíca trinitária vem igualmente guiar-nosnaquela que talvez seja a questão mais instigante e debatidano mundo evangélico: nossa responsabilidade ante a problemática de nossas sociedades. Creio que não é exagerado dizerque a crtstología e a soteríología quase exclusivas na tradiçãoevangélica latino-americana se enquadram no marco de umainterpretação sacerdotal. Com efeito, Jesus Cristo vem "limpar-nos" da mancha do pecado mediante seu sacrificio expiatório (veja-se praticamente toda a hínología centrada no temado "sangue" que "lava", "do preço" pago em nosso benefício).Quem duvida disso? Mas, à parte dos problemas teológicos queessa exclusividade implica (dos quais o mais grave é a cisãoque muita pregação "evangelizadora" corrente introduz entre oFilho e o Pai), trata-se de uma leitura "redutora" e unilateral daEscritura. Há uma tradição profética que Jesus assume e reclama para si que não pode ser reduzida legitimamente a "predição" ou "tipologie". Vale aqui recordar a sóbria admoestaçãode Bonhoeffer de não se passar com demasiada rapidez doAntigo 'Iestamento ao Novo.
Essa tradição profética, situada no marco da teologia bíblica do pacto, tem a ver com a redenção como libertação daescravidão aos poderes opressores da história - e não só dasculpas pessoais ou coletivas - e para um pacto que exige aprática da justiça, misericórdia e fidelidade, um pacto de sha10m histórica e não só de resgate escatológico. A partir daquelainterpretação sacerdotal "redutora", toda a vida da Palavra encarnada - o ensino, o ministério, os atos de poder de Jesus fica reduzida a uma espécie de "prefácio" à sua morte e ressurreição: uma conclusão na qual, curiosamente - ou não coincidem os fundamentalistas dispensacionalistas e o superliberal existencialista Rudolf Bultmann-vl
O "evangelho social" tentou restaurar a perspectiva profética insistindo nos "princípios sociais" de Jesus. Mas tanto suainterpretação "liberal" desses princípios quando sua incapacidade de vinculá-los a uma visão teológica mais plena frustraram em parte essa tentativa. No movimento carismático, ainsistência em Jesus Cristo como "Senhor" e, por conseguinte,na fé como "díscípulado" abria as portas para um desenvolvimento crístológíco mais pleno. Não obstante, parece-me queele não conseguiu defmir os conteúdos sociais mais profundosdo discipulado para o qual convoca. Hoje, por outro lado, nodesenvolvimento dos trabalhos históricos, o "ceticismo" comreferência à possibilidade de acesso ao "Jesus histórico" está
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dando lugar a trabalhos de contextualização social e históricaque, sem negar as dificuldades de falar de tpisissime verba ouipissime acta de Jesus, mostram-nos o movimento gerado porJesus dentro da tradição profética nas condições conflituosasdo século 121• Na América Latina, esses trabalhos confírmamurna hermenêutica dos evangelhos centrada na mensagem doReino e na inserção de Jesus na "tradição dos pobres" emconflito com as tradições da condução religiosa e política dossetores dominantes do judaísmo e do poder imperial-é.
Não se trata agora, de maneira nenhuma, de substituirum unilateralismo sacerdotal por um profético, e sim de afirmar claramente a unidade de ambas as interpretações. O Servo sofredor que carrega o fardo de nosso pecado e nos libertada culpa para iniciar urna vida nova é também o profeta quepurifica o templo de mercadores e nos convoca para um pactode justiça e shalom. EIsa 'Iarnez, trabalhando sobre a tradiçãopaulina, resumiu, com muita razão, a mensagem da justificação pela fé corno "livres de toda condenação" para poder amare servir em verdade e justíça>.
Se entendemos nossa crístología em termos trinitários,ternos de levar seriamente em conta urna atuação da Palavra edo Espírito do trino Deus que atua no mundo corno convite e,ao mesmo tempo, corno juízo na busca de shalom e justiçaantes que nós cheguemos e à parte de toda ação dos crentes edas igrejas. Esse mesmo Jesus Cristo, que nos convoca a participar de sua obra na sociedade e na história, define os conteúdos de paz e justiça em seu ensino e em sua ação históricae, no poder do Espírito Santo, nos capacita para discernir osmodos e as características de nossa participação corno crentese corno igrejas no presente histórico em que nos cabe atuar. Aconsciência de sua transcendência nos impede de fixar numaproposta social, econômica ou política o horizonte último dessaação; seu "esvaziamento" numa vida condicionada social e culturalmente nos protege de uma "assepsia" histórica com a qualfreqüentemente disfarçamos corno neutralidade piedosa o que nãopassa de traição ao evangelho e, ao mesmo tempo, a nosso povo.
3. A trindade e o "Cristo no Espírito". Ricardo Rojas profetizava em 1928:
o mundo necessita novamente da vinda do Messias; e se há 20séculos veio à terra, como homem de carne, o Cristo dos ritos etemplos, hoje esperamos o Cristo social, que virá no Espírito,como ele o anunciou, para a elevação das almas e a paz dos povos.ê"
112 Rostos do protestantismo latino-americano
Acaso seu vaticínio estará se cumprindo no crescimentodo cristianismo pentecostal de nosso tempo? De fato, a tradição evangélica latino-americana é fortemente pneumatológíca.'Ianto em sua expressão nos "avivamentos" quanto no "movimento de santidade" do século 19 e no pentecostalismo doséculo 20, a adscrição à "obra do Espírito" tem sido a dinâmicafundante e fundamental. Não obstante, nenhum desses movimentos desenvolveu uma verdadeira teologia do Espírito, e menos ainda uma teologia do Espírito Santo num contexto trinitário. Na realidade, tal teologia tem estado ausente na tradiçãoteológica dominante no Ocidente. O catolicismo não teve umateologia pneumatológtca, talvez, como o dizia não faz muito umeminente teólogo católico, "porque a igreja substituiu o Espírito".
O protestantismo clássico deu ao Espírito Santo um papelpassivo de legitimação da Escritura, uma espécie de "selo" subjetivo de aprovação, que nada contribuia para a interpretaçãode seu conteúdo. E o protestantismo pietista e evangélico lheatribuiu um papel na "subjetivação" da fé como experiéncia. Omovimento pentecostal destacou as manifestações extraordinárias do Espírito, mas sem as vincular à totalidade da "obrado Espírito" e menos ainda a seu contexto trinitário. Atreverme-ia a sugerir, no contexto da hermenêutica que venho propondo, que uma crístología trinitária deveria considerar, naAmérica Latina, a relação Cristo / Espírito em relação com aomenos dois temas: a liberdade e o poder do Espírito, e o discernimento do Espírito Santo.
Com efeito, na linguagem bíblica o Espírito é o poder, aforça de Deus (por certo, em nossa perspectiva, do Deus trino)atuando no mundo e na história para cumprir o propósitodivino. Essa palavra e esse poder armaram sua tenda entrenós em Jesus o Cristo. Parece-me que a tendência de algunshistoriadores contemporãneos da teologia a ver no Novo 'Iestamento uma oposição de "crístologías do lagos" e "crístologíasdo Espírito" não leva suficientemente a sério a relação entre"palavra" e "espírito" na tradição bíblica e está demasiado influenciada pelo peso que assumiram posteriormente as interpretações helenizantes de "palavra" como "logos". Não é este omomento de aprofundar um estudo do uso teológico dos conceitos de "palavra" e "espírito" no Antigo e no Novo 'Iestamentos. Limito-me a sugerir que, embora haja diversos matizes etradições bíblicas em ambos os casos, tanto uma noção quantoa outra incluem um elemento fundamental de ação, força erealização, e outro de propósito, vontade e revelação. Pela Pa-
Em busca de coerência teológica 113
lavra e pelo Espírito, Deus manifesta sua vontade - ou seja,se manifesta a si mesmo - e a realiza dinamicamente nomundo e na história.
Se não estou equivocado, a experiência do Espírito Santoé, no pentecostal, a experiência do "poder do Espírito Santo".Na expressão das origens do pentecostalismo nos Estados Unidos, o verbo empower, to be empowered aparece constantemente. E, embora o português não tenha esse verbo, os termos"receber o Espírito", ou "ficar cheio do poder do Espírito", ou"agir no poder do Espírito", ou "o Espírito de poder" têm amesma conotação. Trata-se do poder para testemunhar, paracurar, para expressar-se em línguas, para ser "inteiramentesantificados". Atrever-me-ia a falar aqui, em termos do capítulo 8 de Romanos, da experiência do Espírito como antecipaçãoda redenção final: é "conhecimento cara a cara", é eliminação"de toda fraqueza e de toda doença", é louvor e gozo pleno nummilagre e numa situação extática em que desaparecem nossafinitude e nosso pecado. Entretanto, essa perspectiva escatológica fica aqui, como em quase toda a tradição evangélica latino-americana, restrita à obra do Espírito no ãmbito da redenção e, mais estreitamente ainda, da redenção individual ou,quando muito, da igreja. Quanto à antecipação da plenitude daobra do Espírito na redenção da totalidade da criação - daqual também fala Romanos 8 - nada escutamos. Nossa teologia evangélica latino-americana não parece saber nada do Espírito que renova a face da terra, do Espírito que unge Ciro, doEspírito que faz falar a jumenta de Balaão (Nm 22) ou que ungeMeliquisedeque, sacerdote e rei pagão (Gn 14.17ss.}25. Em outras palavras: sabemos do poder do Espírito, mas não da liberdade do Espírito para atuar ubi et quando visum est deo ["ondee quando aprouver a Deus"]. Nesse vazio fica sufocada a vocação profética da igreja no mundo.
O tema da liberdade e do poder do Espírito, porém, reclama o do discernimento do Espírito. O "poder" -é, com efeito,um "bem religioso" muito cobiçado. Quem o possui - como"rnaná", "carisma" ou legitimação da "ordem sagrada" - gozade um espaço de liderança, de prestígio, de influência. Masacaso esse bem é sempre o Espírito Santo? Esta é uma problemática muito concreta e muito conflituosa na vida de nossasigrejas.
O discernimento do Espírito é, nos termos do Novo 'Iestamento, um dom do próprio Espírito, não uma fórmula que seaplique mecanicamente. Mas não se trata de um círculo vicio-
114 Rostos do protestantismo latino-americano
so porque há certos critérios ligados ao caráter e ao propósitodo Deus trino manifestados na história da revelação. O Espírito Santo é o Espírito do Deus criador que dá vida, a protege eredime, do Deus do pacto que permanece fiel e exige justiça emisericórdia. Quando o poder e a liberdade do Espírito sãoinvocados e reclamados para ações e condutas que conspiramcontra a vida, a justiça e a misericórdia, temos razões paraduvidar de que seja o Espírito Santo.
O Novo 'Iestamento estabelece uma dupla relação entreJesus Cristo e o Espírito. Por um lado, Jesus Cristo vem e atua"no poder do Espírito", ou seja, no propósito e no poder de Javéassim como se manifestaram na criação e no pacto. Por outrolado, Jesus Cristo outorga o Espírito. Não pode haver contradição, mas deve haver complementação de ambas as afirmações. O Espírito que Jesus Cristo concede não é outro do queaquele no qual ele mesmo atua e que é reconhecido pela continuidade desse propósito e dessa obra, agora interpretados edefinidos na própria ação do Filho. Por isso se justifica, aindaque não haja por que aferrar-se literalmente à fórmula, a expressão do credo ocidental: o Espírito "procede do Pai e doFilho {fllioque)". O apóstolo Paulo, por sua vez, toma muitoconcretos esses critérios: não é o "caráter espetacular" dasmanifestações, e sim os "frutos" do Espírito (GI 5.22-23) quelegitimam a reivindicação de ter recebido os "dons do Espírito",como ilustra muito bem a ampla discussão do tema em 1Corintios 12-14. É verdade que em 1 Corintios 12 Paulo propõea afirmação "Cristo é Senhor" como prova de se ter o Espírito.Mas também exige que quem está no Espírito do Senhor ande"segundo o Espírito" (Rm 8.1; GI 5.16,25; CI 2.6), ou, nas palavras de 1 João 2.6: "Aquele que diz que permanece nele, essedeve também andar assim como ele andou." E recordemos que"andar" no Senhor ou no Espírito significa, segundo Paulo ouJoão, "andar no amor". Quando se utiliza o poder divino comoinstrumento para auto-engrandecer-se e dominar ou explorarpor ganho econômico, a fidelidade ao evangelho nos obriga aduvidar da legitimidade desses dons.
Esta tentativa pretende apenas mostrar algumas das possibilidades de desenvolver uma perspectiva hermenêutica trinitária na interpretação e integração da temática teológica,como correção e sustentação de nossa resposta às exigênciasda vida e missão das igrejas evangélicas latino-americanas emnosso tempo.
Capítulo 6
Em busca da unidade:a missão como princípio material
de uma teologia protestantelatino-americana
Em que consiste a identidade protestante? Ou mais precisamente: há um critério teológico de referência para identificaruma teologia protestante? 'lemos suposto que os clássicos "somente" - sola tide, sola scriptura, solus Christus - identificassem o protestantismo. Mais tecnicamente, fala-se de um"princípio formal" (a autoridade exclusiva da Escritura) e deum "princípio material" (a doutrina da justificação pela fé) como os eixos sobre os quais se constrói uma teologia protestante. Na realidade, trata-se de resumos cunhados com propósitostestemunhais ou polêmicos, com um valor mais simbólico doque estritamente teológico. Ao primeiro, ligado ao advérbio "somente", é preciso sempre acrescentar que, de fato, nem a fé,nem a Escritura, nem Cristo nunca estão sós, e sim numcontexto teológico mais amplo que permite definir seu verdadeiro conteúdo. O diálogo teológico dos últimos 40 ou 50 anosnos ensinou a relativizar essas formulações. Os dois princípios- formal e material - resultam de uma longa história, cujaorigem nos reformadores é um tanto remota e imprecisa1. Porcerto há nesses princípios um conteúdo significativo que énecessário resgatar. Paul Tillich contribuiu para a discussãodo "próprio" protestante com sua formulação do "princípio protestante", que interpreta a justificação pela fé como um princípio antiidolátrico que "contém o protesto humano e divino contra toda pretensão de absolutizar qualquer realidade relativa,inclusive de uma igreja protestante'<. Rubem Alves, por suavez, retoma o princípio protestante de Tillich e vê nas origensdo protestantismo latino-americano a atuação de um "princípio utópico" desinstalador em relação à absolutização católica,mas um princípio que o próprio protestantismo abandonou aoabsolutízar-se "no protestantismo da reta doutrina e numaatitude cada vez mais conservadora'".
116 Rostos do protestantismo latino-americano
Comojá destacamos, tanto a autoridade da Escritura quanto a doutrina da salvação pela graça somente e da justificaçãopela fé foram consistente e vigorosamente afirmadas no protestantismo latino-americano. Parece-me claro, porém, que elasfuncionaram de maneira diferente do que na ortodoxia protestante: eram armas teológicas utilizadas na "batalha pelas almas". E esse combate não era simplesmente anticatólico: era- e continua sendo -, antes, o testemunho de uma experiência religiosa nova, transformadora, vital, da qual se convida ohomem latino-americano a participar.
Essa afirmação, que não requer comprovação no tocanteao "rosto evangélico" e ao "pentecostal" do protestantismo missionário latino-americano, parece-me ser válida também parao próprio "rosto liberal", embora não o seja, ao menos na mesma medida, para as chamadas "igrejas de imigração", por razões que indicamos no capítulo 4. Não só porque a mesmapiedade informa a vida das igrejas "liberais", "evangélicas" e"pentecostaís", mas porque até mesmo os líderes liberais concebem a presença protestante na América Latina como essencialmente missionária e, se se empenham em tarefas educacionais, sociais e até mesmo políticas, justificam-nas como partedessa missão evangelizadora. Seria muito simples - e umtanto enfadonho - documentar essa afirmação com citaçõesdos congressos do Panamá, de Montevidéu e de Havana, dastrês CElA e de destacados "liberais" latino-americanos dosúltimos 50 anos como Gonzalo Báez-Camargo, Alberto Rembao, Erasmo Braga, Sergio Arce, Jorge P. Howard ou Sante U.Barbieri.
A participação das chamadas "igrejas históricas" (incluindo neste caso as de imigração) da América Latina no movimento ecumênico oferece uma interessante contraprova: na integração do Conselho Missionário Internacional, da Conferênciade Vida e Obra e da de Fé e Constituição no Conselho Mundialde Igrejas (integração institucional que ainda não conseguiutransformar-se em plena unificação de propósito e funcionamento), os participantes latino-americanos alistaram-se quaseexclusivamente no primeiro ou na segunda, ou em ambos. Fée Constituição nunca conseguiu firmar pé nas igrejas latinoamericanas. Atrevo-me a dizer que a razão é precisamenteesta: a unidade como missão - evangelizadora e social - fazsentido na autocompreensão do protestantismo latino-americano; a unidade como projeto predominantemente doutrinalou eclesiástico não evoca resposta. De fato, os organismos "e-
Em busca da unidade 117
cumênícos" que as igrejas latino-americanas gestaram no continente - particularmente a UNELAM e o CLA!. e inclusive oCaNEIA- mantêm a mesma orientação: têm privilegiado quase exclusivamente a dimensão evangelizadora e, em diversasmedidas, social da colaboração e da unidade, mas têm negado,esquivado ou ao menos não incorporado significativamente aconsideração da unidade doutrinal e orgânica.
Por isso. se se tenta descobrir um "princípio material", ouseja, aquela orientação teológica que, por expressar melhor avivência e a dinãmica da comunidade religiosa, dê consistênciae coerência à compreensão do evangelho e se constitua emponto de referência para a construção teológica dessa comunidade, temos de falar da "missão como 'princípio material' deuma teologia protestante latino-americana". Só que, no casodo protestantismo latino-americano, esse princípio não se apresenta como uma formulação teológica explicita, e sim, antes,como um etos que impregna o discurso, o culto, a própria vidada comunidade evangélica, uma autocompreensão que se manifesta em suas atitudes, seus conflitos e suas príorídades-,
1. A ambigüidade da defíníção missionária
Admitir que "missão-evangelização" é o princípio que define o protestantismo latino-americano nos envolve de imediatona ambigüidade histórica e teológica desse movimento. Qual éa relação entre missão e colonialismo? Como se expressamessa relação e as reações a ela na "teologia da missão"? a quesignificaria uma teologia da missão proposta a partir de umaperspectiva trinitária?
1. Missão e colonialismo. A evangelização que alcança aArnerica Latrna a partir do secuío 19 se inscreve. com efeito. natotalidade da empresa missionária do protestantismo europeu- em nosso caso, particularmente do anglo-saxão - nos séculos 18 e 19. E hoje em diajá é um lugar comum recordar queessa missão avança na crista da expansão colonial e neocolonial e carrega as marcas dessa relação. A enorme literaturaexistente sobre esse tema me dispensa de estender-me sobreeste ponto.
No capítulo 1 rejeitei uma interpretação simplista da relação entre protestantismo e imperialismo. Sustento que, no caso da América Latina. há uma tensão que se evidencia, por
118 Rostos do protestantismo latino-americano
exemplo. na permanente discussão sobre o significado do panamericanismo. Mas é necessário colocar-se uma perguntamais de fundo: até que ponto a própria autocompreensão quedirigiu e mobilizou a enorme empresa missionária européia enorte-americana dos séculos 18 e 19, tal como se reflete emsuas atitudes, seu culto, sua teologia, carrega as marcas doespírito colonialista? Algumas poucas observações bastarão para explicar de que estamos falando.
O que poderiamos chamar "o caso metodista" é um bomexemplo. 'Iodos conhecem a preocupação de John Wesley como problema da pobreza - inclusive suas tentativas de entenderas causas econõmicas da mesma -, sua oposição à escravidãoe sua critica à política colõnia de seu país, particularmente naÍndia e na África. Curiosamente, por volta do fim do século(1800) a Igreja Metodista inglesa havia silenciado esses temase expulso de seu seio as correntes trabalhistas. O estudiosonorte-americano Bernard Sernmel" defendeu uma tese interessante. que ele resume nos termos "liberalismo. ordem e missão": na revolução industrial que estava em gestação no periodo do nascimento e crescimento do metodismo. este conseguiuincorporar no processo de mudança social que gera uma novaclasse - que hoje chamamos de média - grupos importantesdos setores marginais que, assim, assumiram a cosmovisão eo etos burgueses. Na realidade, deve-se observar que o próprioWesley já percebeu - com um assombro não isento de alarme- os primórdios desse processo. A expansão colonial que acompanhou o desenvolvimento industrial permitiu que os dirigentes metodistas canalizassem o fervor do despertar para a empresa missionária. No teólogo mais influente do metodismodesse periodo, Richard Watson, a relação tornou-se conscientee expressa: com o advento do Império Britãnico, os cristãospodiam cumprir sua missão de compaixão para com os pagãossubmersos "nas trevas e na corrupção da grosseira idolatria".Estes, com efeito, "merecem nossa atenção, tanto como pagãosque se encontram nas trevas quanto como súditos britânicos".Deus prepara o "grande ataque contra o paganismo"; por issodesperta o zelo missionário num país com uma marinha poderosa e colõnias de ultramar: "Essa coincidência entre nossosdeveres e nossas oportunidades. nossos desejos e nossos meios(...) não é acidental." A mão de Deus move os navios para quelevem "não só nossas mercadorias, mas também nossos missionários; não só nossos bales [fardos). mas também nossasblessings [bênçãos)."6 O interessante aqui não é o providencia-
Em busca da unidade 119
lismo ingênuo, e sim a passagem para a consciência burguesa- empresária, triunfalista, conquistadora - que assume, simultânea e coincidentemente, a empresa religiosa e a econômico-política no mesmo "etos conquistador". Esse fenômenometodista não é um caso isolado. Cinqüenta anos mais tarde,quando os Estados Unidos haviam orientado sua visão de "destino manifesto" na direção do neocolonialismo, o presbiterianoJosiah Strong se expressava, em Princeton, em termos semelhantes acerca da "missão" dos Estados Unidos, em suas obrasOur Countxy (1886) e Tbe New Age: or the Coming Kingdom(1893).
Enrique Dussel fez observações filosóficas interessantessobre o "eu conquisto" - em lugar do cogito cartesiano como núcleo constitutivo da consciência burguesa. Um estudodo vocabulário "militar" do discurso missionário - campanhas, conquista, combate, ofensiva, soldados da cruz, "hostesda fé" e muitas outras expressões - parece apontar para esse"eu conquisto" religioso como núcleo da consciência missionária. A hínología missionária da época une curiosamente o motivo da compaixão com os da suposta abjeção, ígnoráncía edesamparo dos "objetos" da missão e da conquista dos "confms da terra" para Jesus Cristo, o Rei:
De geladas cordilheiras / de praias de coral,de etiópicas ribeiras / do mar meridional,nos chamam afligidas / a dar-lhes liberdadenações submergidas / em densa obscuridade.Nós, iluminados / de celestial saber,tantos desgraçados / veremos perecer?Às nações demos / de Deus a salvação;o nome proclamemos / que operou a redenção.
A perspectiva das lutas anticoloniais de libertação de nosso século nos toma dificil conciliar essas manifestações com a"boa consciência" dos que as expressaram. Justamente essaunidade, entretanto, atesta até que ponto a "ideologia" colonialista foi intemalizada. James S. Dennis, professor de míssíología em Princeton, colega de Strong, escreve em 1897 um alentado volume sobre "Missões cristãs e progresso social", fundamentando "empiricamente" sua tese:
O cristianismo, em virtude de sua própria energia benfeitoracomo poder transformador e superador na sociedade, já escreveu uma nova apologia [grifo do autor] das missões. Não senecessita de um argumento requintado para demonstrar isso.Os simples fatos que o resultado do esforço missionário revela
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em todos os campos o estabelecem de maneira fidedigna (...) Ocrístíanísmo (...) é imorredouro e as missões cristãs representam, no momento presente, a única promessa e o único poderde ressurreição espirttual no moribundo mundo do paganismo.7
Muito poucas pessoas se atreveriam hoje a repetir tal tesee menos ainda nesses termos, embora alguns profetas do "neoliberalismo" e da "nova direita religiosa" pareçam haver encontrado uma versão renovada dela. Poderiam, todavia, surgir duasperguntas: a primeira, se a missão e evangelização pós-colonial- ou até anticolonial- que mudou a designação das juntas edo pessoal de missão - juntas de ministérios globais, obreirosfraternais, compartilhar de recursos - encontrou uma articulação teológica coerente com a transformação desejada. A segunda, talvez mais importante, é se as características imperialistas que marcaram o etos e a linguagem das missões que nosformaram não ficaram impressas em nossa própria evangelização crioula.
2. Em busca de uma nova teologia da missão. Não é meupropósito repassar agora o desenvolvimento da teologia da missão do último século, mas gostaria de fazer algumas observações antes de retomar ao campo evangélico latino-americanos.
"À parte de algumas exceções" - diz Wilhelm Andersenreferindo-se ao labor missionário protestante do século 18 eespecialmente do século 19 - "o pietismo tem sido, até esteséculo, o solo no qual cresceu a atividade missionária."9 Comefeito, é nesse solo que se geram na Grã-Bretanha, na Alemanha, na França, na Suíça, nos países escandinavos, nos Estados Unidos, as "sociedades missionárias", às vezes relacionadas com as igrejas e outras vezes formadas por indivíduos,mas normalmente pouco ligadas à ortodoxia doutrinal de suasconfissões. 'Ianto é assim que, desde o início do presente século(de 1910 em diante), as conferências missionárias de Edimburgo colocam a integração de "missão" e "igreja" como um deseus objetivos. Dentro dessa busca começam a articular-se"teologias da missão" inseridas na globalidade de uma perspectiva teológica. Duas me parecem ter sido as tentativas dominantes e mais frutíferas: uma míssíología eclesíológíca e umamíssíología da soberania de Jesus Cristo e do reino de Deus.
Dito de forma muito geral, na primeira se procura entender a missão como central para a própria definição de igreja.Interpretando a Conferência de Madras de 1938, Karl Hartenstein caracteriza muito bem essa perspectiva:
Em busca da unidade 121
"Missão" significa também "igreja" e "igreja" significa também"missão" (0.0) Não falamos mais de (000) missões e igrejas; falamosda Igreja, da comunidade de Deus no mundo, de sua tarefafundamental, da qual as igrejas antigas e as jovens, as queenviam e as que estão surgindo participam em termos absolutamente íguaís. Está-se construindo o santuário de Deus entreos povos, e mãos negras e brancas, morenas e amarelas participam da tarefa o 10
Nem todos interpretam essa identificação de missão e igreja da mesma maneíra.vleólogos anglicanos trabalham em Madras com o conceito de igreja como extensão da encarnação, "ocorpo que Deus criou mediante Jesus Cristo" o Os delegados daEuropa continental, em termos mais protestantes, falam do"perdão dos pecados em Cristo e nova vida de discipulado"como "o dom decisivo [de Deus] para o mundo" mediante oministério da igreja. 'Iodos, porém, concordam que toda definição da igreja deve ser míssíológíca e toda definição da missão,eclesiológica. Na Conferéncia de missão de Wíllíngen (1952),um trabalho do teólogo holandês J. C. Hoekendijk causa agitação teológica ao criticar duramente essa visão eclesiocêntricada missão:
A concepção eclesiocêntrica, que desde Jerusalém (1928) pareceter sido o único dogma quase indiscutido da teoria da missão,nos aferrou tão estreitamente, nos enredou numa trama tãodensa, que mal podemos dar-nos conta da medida em que nosso pensamento se "eclesífícou". Não escaparemos nunca desseabraço asfixiante a menos que aprendamos a perguntar-nos denovo o que significa repetir uma que outra vez nosso amadotexto missionário: "Esse evangelho do Reino deve ser pregadoem todo o mundo" e a tentar encontrar nossa solução para oproblema da igreja nesse marco de Reíno-Evangelho-Jestemunho (apostoladol-Mundo.!'
Na linha da proposta de Hoekendijk, em que a igreja e suamissão ficam inseridas na relação Cristo-mundo, desenvolvese toda uma tarefa teológica, que se percebe, com distintastonalidades, em quase toda a míssíología dos últimos 40 anos.A ênfase no senhorio de Jesus Cristo e no reino de Deus e suapresença ativa na história humana caracteriza uma linha evidente nas formulações ecumênicas do CMI. E na Conferênciade Lausanne e na corrente "evangelícal" que ela expressa, aênfase recai na mediação da igreja como aquela que, no poderdo Espírito, anuncia esse Reino no mundo e convida a aceitara soberania redentora de Jesus Crtsto'".
122 Rostos do protestantismo latino-americano
As observações de Hoekendijk apontam para um perigoque a obra missionária e evangelizadora freqüentemente nãosoube evitar: uma espécie de "monopólio eclesiástico" de JesusCristo e do Espírito Santo e, por conseguinte, um "triunfalismoeclesiástico" que, longe de corrigir os reflexos coloniais ou neocoloniais da missão, os sustenta e alimenta. Cabe perguntarse, entretanto, se a teologia missionária do senhorio de JesusCristo e da primazia do reino de Deus é, por si mesma, correção suficiente para esses reflexos. Não se presta ela demasiadamente a um novo imperialismo cristão, que, no fím das contas, acaba sendo também eclesiástico? Na América Latina, esse risco de uma teologia "imperial" do reino de Deus é, emparte, contrabalançado pela "opção pelos pobres" como critériode interpretação do reinado de Jesus Cristo e da missão doReino. Richard Shaull trabalhou nessa direção na década de60, sendo seguido por latino-americanos como Gonzalo Castillo ou Rubem Alves (em seus primeiros trabalhos). A interpretação eclesíológíca de Jon Sobríno e a míssíológíca de EmilioCastro são excelentes exemplos dessa hermenêutica: o Cristoque identifica sua missão com o reino de Deus é o Cristo que,por sua vez, se identifica com os pobres - é a tese de Sobrino.O Cristo que reina é o "Cristo servo", esclarece Castro13. Parece-me, contudo, que ambas as linhas seriam fortalecidas seprocurássemos levar a sério uma proposta quase esquecida deWillingen em 1952:
(...) teologicamente precisamos aprofundar-nos mais ainda; precisamos remontar o impulso originário da fé ao Deus trino: sódesse ponto de vista podemos ver sinoticamente a empresa missionária em sua relação com o reino de Deus e em sua relaçãocom o mundo. 14
2. Por que uma missiologia trinitária?
A pergunta é inteiramente legítima. Ela seria colocada,sobretudo, por uma tradição protestante para a qual a doutrina trinitária sempre foi mais uma espécie de resumo da história da salvação (uma trindade "econômica") do que uma afirmação acerca do próprio ser de Deus (uma trindade "imanente"). O missiólogo nessa tradição possivelmente veria em nossainsistência nessa tema uma espécie de especulação que podeacabar desviando a atenção. E interessante observar que ochamamento de Willingen citado acima ficou quase sem reper-
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cussão na missiologia protestante e nos desdobramentos daComissão de Missão e Evangelização do CM!.
Creio que se trata de uma "má economia". Enquanto aigreja e o Reino permanecerem como horizonte último da missão/evangelização, esta será um ato de obediência e/ou umaexpressão da fé. Certamente essas motivações são bíblicas eevangélicas. Obediência e testemunho são dimensões da vidacristã que não podem ser ignoradas nem relegadas. Creio, porém, que essas mesmas motivações são fortalecidas e aprofundadas quando o horizonte último é "a própria vida de Deus" e,portanto, a missão não é só obediência e testemunho, mastambém contemplação, oração, louvor, participação - comodiriam os irmãos ortodoxos - no que Deus mesmo "é" e, porconseguinte, no que ele "faz".
Creio que é essa relação que o autor da Epístola aos Efésíos estabelece - mais ainda se a lemos em conjunção com ohino cristológico de Cl 1.10-27 - quando situa o fato missionário fundamental, a inclusão dos gentios junto com os judeus, derrubando o "muro de separação" (Ef2.14-19), na perspectiva do "mistério" oculto "desde antes da criação do mundo": a recapitulação do universo inteiro em Cristo (1.1-14 e3.1-13). O próprio Deus incorpora o crente no ámbito dessemistério, que não é outro do que o do amor de Deus que habitapela fé no crente, e o introduz na "total plenitude de Deus"(3.14-19).
1. Em termos da elaboração teológica posterior, o que Paulo faz nessas passagens é unir a "trindade econômíca" (o queDeus faz) e a "imanente" (o que Deus é). A chave para interpretar as repetidas (e às vezes complexas e redundantes) formulações trinitárias que encontramos nos primeiros séculos é vêlas como o esforço de estabelecer firmemente essa unidade, deproteger-se contra toda formulação que pudesse negá-la e dearticulá-la com a maior clareza possível, afirmando ao mesmotempo os grandes "feitos de Deus" e a "plenitude de Deus" emtodos e cada um deles. Excesso de "purismo teológico"? Demaneira nenhuma! Pelo contrário, é uma afirmação fundamental da fé. É a revelação de Deus testemunhada pela Escritura um "retrato autêntico" de Deus ou uma "imagem" paraconsumo religioso? Está Deus real e totalmente "comprometido" nas ações que a história da salvação nos relata ou essahistória é apenas um de vários e diversos cenários nos quaisDeus atua, reservando-se uma entidade "privada" diferente?
124 Rostos do protestantismo latino-americano
Fica, atrás dessa revelação ou para além dela - ad usumChristianorum - um mistério de Deus que talvez seja acessível por outros meios: gnósticos, místicos ou mágicos? Leonardo Boff expressa muito bem a resposta:
Ora, Deus se revela assim como é. Se para nós Ele aparece comoTrindade é porque Ele é em si mesmo 1iindade; não apenas paranós mas também nele mesmo, Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Se Deus apareceu como mistério fontal e princípio sem princípio (...), portanto, como Pai, é porque Deus é Pai. Se Ele se nosrevelou como Palavra esclarecedora e Verdade, portanto, comoFilho ou Lagos eterno, é porque Deus é verdade. Se Ele se noscomunicou como Amor e Força que busca a realização do desígnio último de Deus, portanto, como Espírito Santo, é porqueDeus é Espírito Santo. A realidade trínítáría faz com que a manifestação divina na história seja trinitária e a manifestaçãorealmente trinitária de Deus nos faz compreender que Deus é defato 1iindade de Pessoas, Pai, Filho, Espírito Santo.l"
2. Ao falar da pericboresis. destacávamos a unidade quenasce da comunicação "íntratrínítáría": a eterna conversação,o vínculo de amor que Deus é em si mesmo. Agora temos desublinhar a outra "direção" desse diálogo: seu caráter extrovertido; ele não se esgota em si mesmo: "desborda'', por assimdizer, em relação com a realidade criada: o mundo, o ser humano, a história. Essa relação entre as três pessoas comorealidade imanente em Deus e como presença e ação na totalidade da criação é o que a teologia clássica chamou de as"missões" na trindade. Missão tem aqui o significado etimológico de envio. O Novo 'Testamento é muito explícito a esse respeito: o Filho é "enviado" pelo Pai (Jo 3.16; 5.23,36,38); o Espírito Santo é enviado pelo Pai mediante o Filho (Lc 24.49; Jo14.16,26; 15,26; 16.7; G14.6). Esse envio não é um ato acidental ou limitado a um momento. Embora ele tenha uma "data"em que se toma manifesto de uma vez para sempre (efapax)Natal e Pentecostes -, esses momentos revelatórios decisivosencontram sua origem numa "missão" eterna que correspondeà própria realidade trinítária. Por isso se pode falar do "Cordeiro imolado desde a criação do mundo" (Ap 13.8) ou do Espíritoque Deus "envia" para sustentar sua criação e a própria atividade do homem nela (SI 104.29-30; o verbo usado aqui é shaIech, o mesmo do qual derivamos "enviado" ou "apóstolo").
3. Nesse "diálogo missionário" nós somos incluídos. As"vísítas" de Deus, desde a criação atê a redenção e a criação da
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igreja, incorporam sempre o ser humano como ator ou co-atorda missão divina. Nesse sentido há um legítimo syn-ergismoque não desmerece a absoluta prioridade da ação divina porque essa mesma ação possibilita, exige e incorpora em suaprópria dinâmica o "sócio" que Deus escolhe. No relato dacriação, essa missão se chama trabalho, labor. Por isso, o ritmo semanal da ação divina incorpora um ritmo semanal navida humana; a continua sustentação e a continua criação deDeus se instrumentam numa ação humana que elas envolveme excedem. mas não esvaziam nem alienam. Na história dasalvação, essa missão se chama "pacto", aliança. Por isso, ajustiça. a misericórdia, a paz (shalom) de Deus se corporificamna boa lei, no bom governo, na comunidade fiel: a "palavra" ouo "espírito" que Deus envia incorpora aqueles que, por sua vez.Deus inclui em seu "envio".
Na plenitude do tempo, o "enviado", Jesus Cristo. assume"os que creram ... e os que hão de crer" na mesma missão.Como o diz graficamente a versão latina na oração de Jesus:"Sicut tu me missiste in mundo et ego missi eos in mundo" (Jo17.18). Quando Paulo fala de "ser conformado" à imagem deCristo, ou de "reproduzir" as marcas de Cristo. ou, de maneiramais atrevida. de "cumprir" em seu corpo a continuidade daobra redentora. não está falando de uma imitação externa emenos ainda de uma ação autônoma do crente, e sim de umaparticipação que permite dizer. pela fé. "Cristo vive em mim".O "testemunho" do evangelho que a igreja foi chamada a proclamar é sempre "no poder do Espírito". No Espírito que o Paie o Filho enviam, a própria trindade dá testemunho da veracidade do evangelho. A missão evangelizadora não é um atoexterno cumprido pela igreja. e sim "o rosto visível" da missãodo Deus trino.
A "missão" do Espírito não tem a ver tão-só com a palavrada redenção, mas também com a totalidade da obra do Deustrino; por conseguinte, com o trabalho, com a justiça, com apaz. enfim. com a história do mundo e da humanidade. Aspessoas. crentes ou não. que são incorporadas nessa obra. são"enviadas". tanto quanto o puderam ser Ciro (rei persa), Melquisedeque (sacerdote do Deus do céu) ou o soldado que Cornélio enviou para buscar Pedro ("vai com eles I...) porque eu osenviei" - At 10.20).
'Irabalho, governo e sociedade humana, testemunho e serviço do evangelho. construção da história são igualmente participação na totalidade dessa missão do Deus trino que é "o
126 Rostos do protestantismo latino-americano
mesmo", Pai, Filho e Espírito Santo, em tudo que faz. Mas aigreja tampouco se equivocou ao sublinhar, junto com a unidade dessa obra, a distinção das dimensões da mesma: "o Painão é o Filho nem o Espírito, o Filho não é o Pai nem o Espírito,o Espírito não é o Pai nem o Filho". Fórmulas como esta nãosão mero jogo verbal. O que se tem chamado de "propriedades"ou "apropriações" refere-se especificamente a essa distinçãonecessária. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo quando cria epreserva o mundo, quando convida para a fé em Jesus Cristoe constrói sua igreja, quando fecunda e dirige a história. Masele o é de maneira distinta e, por conseguinte, incorpora osseres humanos em sua obra - os "comissione" - de maneiradistinta. Honrar a unidade dessa obra e corresponder à diversidade dessas distinções é a tarefa do pensamento e, ao mesmotempo, da prática da igreja.
Há distinções precisas e necessárias na forma em que aunidade inseparável da obra do Deus trino e de nossa participação nela na tarefa cultural, social, política, económica, eclesial e evangelizadora é, ao mesmo tempo, reconhecida e respeitada e a particularidade de cada uma dessas tarefas é igualmente levada em conta. Distinções referentes ao sujeito próprio dessas ações - sociedade organizada, igreja, pessoas individualmente - à modalidade de participação nas distintasidentidades que temos como membros de uma sociedade, defamílias e da comunidade de fé e ao modo de execução dessaparticipação: o uso do poder, as esferas da lei e do evangelho,a autonomia própria, querida e ordenada por Deus, de cadauma dessas esferas. Uma teologia e uma ética teológica cuidadosa, assim como uma pastoral que respeite a liberdade cristã,devem trabalhar dando atenção a esses temas. E nesse marcodevemos situar também uma reflexão sobre essa "evangelização" que está no coração de nossa compreensão protestantelatino-americana do evangelho.
3. Missão e evangelização
Simplificando, poderíamos, talvez, dizer que o protestantismo latino-americano teve a tendência de confundir evangelização e missão; ou seja, de reduzir a totalidade da missão deDeus à "tarefa evangelizadora" concebida de modo estreito como o anúncio do chamado "plano de salvação" e o convite àconversão. Embora possamos dizer, com gratidão, que essa
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obra tena sido abençoada e nrrilhões de pessoas tiverana unaverdadeiro encontro com o Senhor e entraram numa nova vida, também devemos dizer, com pesar, que nos ternos recusado a participar da plenitude da obra do Deus trino. A partir doreconhecímento dessa deficiência, gostaria de perguntar-meagora onde estão nossos problemas centrais em relação com aevangelização e como a compreensão da evangelização no contexto da míssão total de Deus pode guiar-nos na resposta aesses problemas. Certamente a mesma reflexão deveria serfeita acerca de nosso culto e nossa piedade, e acerca de nosso"caminhar", nossa conduta. Não obstante, concentramo-nosagora na evangelização, precisamente por causa da ímportãncia singular que ela tem tido e tem para a comunídade evangélica latíno-amerícana,
1. Profetas e evangelistas. Quando Billy Graham, questionado a respeito da "neutralidade" social de sua pregação, respondeu: "Não sou una profeta do Antigo 'Iestamento, e sina unaevangelista do Novo 'Iestamento'', fez, creio eu, uma distinçãolegítima, mas em termos gravemente distorcidos. O Novo 'Iestamento reconhece uma vocação e una dona particular de "evangelista": a evangelização como proclamação do evangelho econvite para a fé tem sua identidade própria. Mas desprenderessa tarefa da mensagem profética do Antigo e do Novo 'Iestamentos introduz na obra de Deus e em Deus mesmo umadícotomía que depois se reproduz na igreja e na vida do crente-",
É dificil negar que essa dícotomía tenha tido conseqüências sérias em nossas igrejas evangélicas. Ela não só distinguiu, mas separou a evangelização do serviço, a conversão dabusca da justiça, a adoração de Deus da vida do mundo, aparticipação na comunidade de fé da responsabilidade na sociedade. Inclusive as contrapós, criando "facções" antagônicasdentro das igrejas e entre elas. 'Iemos suposto que possamos"priorizar" por nossa conta aspectos da obra de Deus e, maísainda, escolher "o deus" que queremos honrar: que os liberaisse ocupem do Criador, os evangélicos do Salvador e os pentecostais do Espírito! 'Iemos crido que uma comunidade cristãpoderia fazer uma coisa sem a outra e que poderíamos isolar aevangelização e o serviço como compartímentos estanques quese admínístram com conteúdos, propósitos e critérios independentes. 'Iemos, inclusive, criado instãncias institucionais autônomas e concorrentes para assumír essas tarefas em nívellocal, denomínacíonal e supradenomínacíonal, com "cliente-
128 Rostos do protestantismo latino-americano
las" diferenciadas e em conflito. Nessa especialização, a mensagem do evangelho se transformou freqüentemente num esquema doutrinário formal, reduzido a uma interpretação particular da doutrina da expiação, na qual o Pai, o Filho e Espírito Santo parecem personagens que "desempenham" papéis enão o Deus vivo das Escrituras. E o serviço à sociedade setransforma numa atividade feita "a partir de fora" e evangelicamente asséptica ou numa forma de coação a serviço do crescimento da igreja. Esta pode ser uma caricatura; se o é, infelizmente é a caricatura de um rosto que temos visto demasiadasvezes.
Se a missão é participação na plenitude da "missão deDeus", toda evangelização deve ser -junto com a proclamaçãoda reconciliação operada na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo - testemunho da criação boa de Deus e chamadopara cultivá-la e cuidar dela, anúncio da justiça de Deus econclamação a praticá-la e servir a ela. Uma mensagem que,em meio à repressão e à tortura, fala do Crucificado como seele não tivesse nada a ver com os pobres crucificados da história ou que, na crescente destruição e marginalização de grandes setores da população, apresenta Jesus Cristo como se elenada tivesse dito sobre esse tema, como se o Espírito Santonão fosse aquele que desceu sobre Amós, Oséias e Tiago, comose os que sofrem e morrem não fossem "imagem e semelhança"do Criador, não merece ser chamada de evangélica. Mas umaevangelização que dissesse tudo o que há a dizer a respeitodisso sem um chamado ao arrependimento, à fé e ao discipulado, tampouco é participação na missão do Deus trino. Umaevangelização verdadeiramente trinitária - assim como umaadoração e uma ação que o sejam - é o convite a participarem fé da própria vida do Deus trino e, por isso. da totalidadedo que Deus fez, faz e fará para cumprir seu propósito de ser"tudo em todos".
2. Evangelização e crescimento da igreja. Está a evangelização a serviço do crescimento da igreja ou da transformaçãodo mundo? Uma polêmica interessante desencadeou-se na Igreja Católica Romana, após o Concílio Vaticano Il, em torno dessetema. Ela tinha a ver com o antigo tema da conservação ourecuperação da cristandade. Enquanto alguns sustentavamque a criação ou manutenção de uma "sociedade cristã" cujoscostumes, estruturas, leis e valores se fundamentassem na féeram indispensáveis para que as grandes massas chegassem à
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fé e perseverassem nela, outros davam as boas-vindas a umasecularização que tirou da igreja os apoios externos, deixando-a entregue à própria vitalidade e força de sua mensagem eque, portanto, deu lugar à formação de cristãos conscientes,comprometidos, maduros que, embora sejam minoria, são fermento na socíedade'? Na Europa, o livro do cardeal Jean Daniélou intitulado A oração, problema POliÜC018 , que sustentavaa primeira posição, foi motivo de uma polêmica na qual intervieram alguns destacados teólogos dominicanos como JeanPierre Jossua e Claude Geffré'", Em nosso meio, são bem conhecidas a critica aguda que Juan Luis Segundo moveu contraa "pastoral de cristandade", bem como sua tese de uma minoria de cristãos "adultos" cuja missão não é "converter as maiorias", mas dar testemunho do propósito de salvação e plenífícação de Deus para toda a humanídade-". Na encíclica Evangelii Nunüandi, de 1976, Paulo VI tentou reconciliar e integraros temas da conversão pessoal e da evangelização da cultura.Não é meu propósito deter-me nesse debate, no qual estão emjogo complexos temas teológicos como os do universalismo, dapiedade popular, da relação entre fé e amor. Interessa-me, antes, que nos perguntemos se se coloca um problema semelhante em nosso protestantismo e como.
Não há dúvida de que a prática evangelizadora tradicionaldo protestantismo latino-americano apontou para a conversãodo indivíduo e que, embora tenha sido levada a cabo em campanhas de evangelização e reuniões de pregação em templos,salões ou ao ar livre, nas quais fatores coletivos desempenharam um papel importante, ela se alimentou principalmente derelações face a face de amizade, família, vizinhança. A "síngularízação" da experiência foi uma de suas características maismarcantes. Cada pessoa devia ter "um encontro pessoal com oSenhor", muitas vezes claramente datado, que podia ser testemunho em privado e em público. Esperava-se, inclusive, queas crianças que nasciam e cresciam numa família evangélicachegassem a um momento de "decisão pessoal", o que fez comque, em igrejas que praticavam o batismo de infantes, muitosmembros escolhessem o "batismo de crentes" (expressão queconsidero errônea, mas que era a que se utilizava). Neste ponto,a crítica de uma "religiosidade massiva", "herdada", "tradicional"católica estava quase sempre presente na pregação evangélica.
Provavelmente uma enquete sobre o tema nos diria que amaioria dos evangélicos pensa assim ainda hoje. Não obstante,as práticas de evangelização massiva hoje em voga introduzem
130 Rostos do protestantismo latino-americano
elementos que dão às coisas um sentido diferente. Quando aênfase é colocada no "crescimento da igreja" - entendido emseu sentido numérico - a conversão pessoal se transformanum meio: o que está em jogo é o número, não a pessoa dosconvertidos. A pergunta dominante é, então: como se conseguem mais conversos? Surgem aqui os métodos de crescimento: por exemplo, a teoria das "unidades homogêneas", que significa realmente como se ganha melhor uma etnia, um setorda população, uma classe social. 1àlvez sem o querer ou sem opensar, já estamos falando do "sustentáculo cultural" da evangelização. Outro exemplo: quando o possível acesso de evangélicos a funções de governo - parlamento, prefeituras, mínístérios - é bem-vindo tendo como base que eles poderão facilitara evangelização - introduzir a Bíblia nas escolas ou a oraçãono parlamento ou conceder facilidades - é evidente que sepensa em utilizar as estruturas da sociedade para "fazer cristãos", e esta é a premissa fundante da concepção de cristandade.
A partir da perspectiva teológica que viemos sublinhando- e que creio que, neste caso, estaria corroborada por umaanálise sociológica - deveríamos descartar a disjuntiva: evangelização do individuo ou da sociedade. Em primeiro lugar,porque separa a obra do Deus Criador daquela do Deus Redentor: o Deus que se dirige a cada pessoa é o mesmo que estabeleceu as relações que constituem a pessoa e que envia o Espírito que opera tanto nessas relações - no lugar em que elanasceu, nas relações que a socializaram, no meio em que atua,nos valores que internalizou - quanto no espírito do indivíduo. 'Ianto nessas relações quanto na identidade pessoal queas sintetiza de maneira própria e intransferível, o Espírito combate o poder destrutivo do pecado e recria constantemente aforça construtiva do amor. 'Ianto em seu foro íntimo quanto emsuas relações sociais, o evangelho chama o ser humano aoarrependimento e à conversão. Em ambas as dimensões davida, o Espírito compromete os crentes na obra transformadora de Deus. Ao mesmo tempo, porém, trata-se de duas formasdistintas de presença divina e de ação humana, nenhuma dasquais pode ser vista simplesmente como um instrumento daoutra. Em outros termos, uma evangelização verdadeira deveapontar tanto para esse núcleo pessoal que toma um ser humano sujeito responsável de sua própria existência quantopara a urdidura das relações interpessoais e estruturais que orodeiam, o condicionam e constituem seu âmbito de existência
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Em busca da unidade 133
aparecer como "neutra", fria e "burguesamente respeitável".Seguramente há mais verdade evangélica num grito espontãneo de Aleluia! do que em muitos esmerados argumentos apologéticos. Por certo há, além disso, um uso legítimo de uma"razão instrumental" que nos indica métodos e meios eficazese compatíveis com o propósito evangelizador. Minha preocupação surge quando essa razão instrumental se toma autônomae substitui a "razão evangélica" que nasce da própria vida divina e da "pedagogia de Deus" em sua missão.
Provavelmente esse é um ponto adequado para concluireste capítulo. Entramos aqui num âmbito de pastoral que merece uma consideração mais cuidadosa, ampla e experta doque aquela que eu posso dar-lhe. Minha preocupação é queessa consideração mantenha uma relação constante com ocentro de nossa fé e que o fervor evangélico de nosso protestantismo latino-americano se afirme, purifique e expresse apartir da plenitude da fé evangélica no Deus uno e trino: Pai,Filho e Espírito Santo.
Notas
Capítulo 1:
o rosto hõeral do protestantismo latino-americano
1 Regís PlANCHET, La intervención protestante en México y Sudamérica,Revista Católica, El Paso, 1928, p. 180; v. também, do mesmo autor, Lapropaganda del Protestantismo en México, Revista Católica, El Paso, 1922;cf. Camilo CRlVELLI, Los protestantes y la América Latina, Isola de Liri:Macioce y Písaní, 1931, p. 104-107.
2 Waldo CESAR et al., Protestantismo e imperialismo na América Latina,Petrópolis: Vozes, 1968, p. 12.
3 Erasmo BRAGA, Panamericanismo: aspecto religioso, Nueva York: Sociedad para la Educación Misionera en los Estados Unidos y el Canadá,1917, p. 199s.
4 Jean-Pierre BASTIAN, Historia del protestantismo en América Latina, México: Casa Unida de Publicaciones, 1990, p. 178ss. As diversas vertentesde argumentação se repetem cada vez que há circunstáncias que "ameaçam" modificar o campo religioso. A este respeito é interessante umapesquisa de Alejandro FRIGERIO intitulada La ínvasíón de las sedas: eldebate sobre nuevos movímíentos religiosos en los medios de comunicación en Argentina, Sociedad y Rehgton, n. lO/lI, p. 24-51, 1993.
5 Jean-Pierre BASTIAN, op. cit., p. 187.6 Id., ibid., p. 22.7 Ibíd., p. 160.8 A cifra indicada para 1903 é de Joseph I. PARKER (Ed.), Interpretative
Statistical Survey ofthe World Mission ottheCbrtstien Church, New York/London: Intemational Míssíonary Council, 1938, deduzindo a cifra correspondente ao Caribe não-hispânico.
9 John IYNCH, The Catholic Church, in: Leslie BETHELL (Ed.), Latin America: Economy and Society, Cambridge: Cambridge Uníverstty, 1989, p.331-336, especialmente o resumo à p. 332 citado no texto.
10 O tema do "destino manifesto" tem uma longa história na cultura e napolítica dos Estados Unidos, não alheia a concepções messiânicas e ainfluências teológicas. Duas obras que resumem bem e interpretam essahistória são: Albert K. WEINBERG, Manifest Destiny: A Study ofNationalist Expansionism in Amerícan Hístory, Baltimore: John Hopkíns, 1935, eFrederíck MERK, Manifest Destiny and Mission in American History: AReinterpretation, New York, 1963.
11 Voltaremos ao tema da busca, por parte dos dirigentes latino-americanosliberais, de uma imigração que contribuísse para o novo modelo, no capítulo 4: Um rosto étnico do protestantismo latino-americano?
12 Cito ap. Cordon CONNELL-SMm-I, Los Estados Unidos y la América Latina, México: Fondo de Cultura Económíca, 1974, p. 84-85.
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13 1d., íbíd., p. 134.14 Cit. ap. ibid., p. 160.15 R. W. van ALSTINE, The Rising American Empire, Oxford, 1960, p. 160.16 Veja Tulio Halperin DONGHI, Historie contemporánea de América Latina,
Buenos Aires: Alianza, 1986, p. 189-250.17 Há uma ampla bibliografia nos livros de história de Hans-Jürgen Príen,
.Jean-Píerre Bastian e Pablo A. Deiros.18 Citado no artigo de Juan Stam intitulado La misión latinoamericana y el
imperialismo norteamerícano, 1àller de 'Ieologie, México. v. 9, p. 52, 1981.'Iodo o artigo é sumamente interessante dado o momento histórico, o augedo fundamentalismo nos Estados Unidos e sua marca política nacionalista, bem como o caráter da própria Missão Latino-Americana naquela época.
19 Informe n. 2, cit. ap. BRAGA-MONIEVERDE, ibid., p. 41.20 Ibid., p. 19.21 Ibíd, p. 18.22 Francis P. MILLER, Americanism and Christisnity, New York: Student
Dívísíon, National Council ofYoung Men's Christian Assocíatíons, 1929. Areflexão desse discurso do Prof. Miller está dirigida principalmente à relação com a Europa e aos esforços da Federação Cristã Mundial de Estudantes (WSCF/FUACE) para redefmir a base teológica e as linhas de umareconstrução social com base na responsabilidade pessoal e na democracia participativa. Percebe-se muito bem a síntese das idéias do evangelhosocial, da democracia participativa e das novas preocupações teológicasque começam a aparecer na Europa.
23 Embora não tenhamos muitos estudos biográficos adequados sobre alguns dos primeiros missionários, os poucos trabalhos existentes parecemcoincidir nesse perfil: cf., só como mostras, Irven PAUL, A Yankee Reiormer in Chile: The Life and Works of David Trunbull, Califórnia: WilliamCarey Library, 1973; G. Stuart McINTOSH, The Life and Times ofJohnRitchie. 1878-1952, Lima: NUC Research Monographs, 1988; John H.SINCLAIR, John A. Mackay: un escocés con alma latina, México: CasaUnida de Publicaciones, 1990.
24 Principles oiPolitical Economy, livro IV, capo VI, seção 2. in: Warks, v. 3,p.754-755.
25 Christian Work in Latin America, New York: The Míssíonary EducationMovement, 1917, V. 1.
26 Jether Pereira RAMALHO, Prática educativa e sociedade, Rio de Janeiro:Zahar, 1975, p. 10. Esta obra é um estudo cuidadoso das correspondentes escolas brasileiras no contexto histórico do Brasil e das linhas ideológicas que tiveram influência nesse projeto educativo.
27 Rubem ADIES, Función ideológica y posibilidades utópicas del protestantismo latinoamericano, De la Iglesia y la Socieded, Montevideo: TierraNueva, 1971, p. 4ss. V. também, do mesmo autor, Protestantismo e repressão, São Paulo: Ática, 1979.
28 Jean-Pierre BASTlAN, op. cit., p. 189.29 W. Stanley RYCROFT, Sobre este fundamento, Buenos Aires: La Aurora;
México: Casa Unida de Publicaciones, 1944. p. 212. Quase na mesmadata, Jorge P. HOWARD publica seu livro Lalibertad religiosa en AméricaLatina, Buenos Aires: La Aurora, 1945, um levantamento destinado a
Notas 137
mostrar - ante uma campanha antimissionária da Igreja Católica -,com testemunhos de líderes intelectuais e políticos latino-americanos, acontribuição do protestantismo para a vida democrática da América Latina. E as mesmas editoras - La Aurora e Casa Unida de Publicaciones ligadas ao CCLA, publicam também por esses mesmos anos (1949 e 1951)a tradução para o espanhol do livro de Federico Hoffet, Imperialismoprotestante, afogueada apologia do papel progressista do protestantismo,em nível mundial, na construção de democracias avançadas, progressistas e bem-sucedidas, em comparação com o atraso dos países onde dominava o catolicismo romano.
30 V. John A. MACKAY: "The function of Chrístíaníty in relation to such acultural effort [modem bourgeoís society] ís not that of provídíng a soul toperpetuate it but a reactive to produce a crísis" ["Afunção do cristianismoem relação a tal esforço cultural (a moderna sociedade burguesa) não é ade oferecer uma alma para perpetuá-lo, mas um reativo para produziruma crise"]. The Theology of the Laymen's Foreígn Míssíon Report, International Review ofMissions, v. 22, p. 180, 1933.
31 Não me deterei aqui em definir as características ou analisar o desenvolvimento e a situação atual da teologia da libertação. Os dois últimoscapítulos deste livro pretendem dar por assentados elementos centraisdessa teologia a partir de uma perspectiva teológica protestante. 'Ialvez,porém, não seja ocioso destacar que creio que a inspiração, a metodologiabásica e as intuições centrais da teologia da libertação têm plena vigênciapara o pensamento e a prática da fé em nosso contexto histórico e eclesial.
32 O sociólogo e ensaísta peruano Aníbal QUIJANO colocou o tema da "criseda modernidade" que ocorre quando suas "promessas prímígênias delibertação da sociedade e de cada um de seus membros das desigualdadessociais e das hierarquias fundadas sobre elas" parecem ser negadas econtraditas pela própria história da modernidade. Em seu texto Modernided, identidad y utopia en América Latina. Lima: Conejo, s. d. (Coleção 4Suyus), Quijano critica a forma em que a "modernidade" se estabeleceuna América Latina, mas propõe "as bases de outra modernidade" que searraigue nas próprias tradições culturais latino-americanas e nas experiências históricas e atuais. V. também o recente e sugestivo ensaio deEnrique DUSSEL intitulado Sistema-mundo, dominação e exclusão: apontamentos sobre a história do fenômeno religioso no processo de gIobalização da América Latina, in: Eduardo HOORNAERr (Ed.), História da Igrejana América Latina e no Csribe, 1945-1995, Petrópolis/São Paulo: Vozes/CEHILA, 1995, p. 39-79.
33 1àlvez o "ao menos" dessa frase chame a atenção. É que aqui se colocaum tema escatológico da maior importância: a esperança num reino deDeus e numa vida eterna - oferecidos pelo Deus trínítárío, o Deus criador, o Deus do amor dinãrnico - é compatível com a imagem de um "céu"estático e uma vida "eterna" sem novidade, sem crescimento, sem diálogocriador? Se seremos "como ele é", se Deus será "tudo em todos", seriaquase herético conceber uma eternidade hierática, "congelada" e uniforme. Ora, é precisamente esse "céu" onde todo crescimento é meramentequantitativo que se nos oferece como "meta da história" em algumasversões neoliberais.
34 Esse é o tema que EIsa 1àmez desenvolveu magnificamente em sua interpretação da justificação pela fé como libertação de toda condenação, uni-
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versal em seu propósito, que possibilita a aparição de um sujeito humanolivre para servir em amor aos demais. EIsa 1AMEZ, Contra toda condena:la justificación por la fe desde los excluídos, San José, Costa Rica: DEI,1991 fedo em port.: Contra toda condenação: ajustificação pela fé, partindo dos excluídos, São Paulo: Paulus, 1995].
Capítulo 2:
o rosto evangélico do protestantismo latino-americano
1 Não é fácil orientar-se na selva de significados, matizes, acepções, conotações, denotações e sobreposições no uso do vocábulo "evangélico", no queos lingüistas chamariam de sua "políssemía''. Em inglês, os dicionáriosresolvem facilmente uma primeira acepção: "evangelícal" é definido como"relativo aos evangelhos ou ao evangelho". Mas numa segunda ou terceiraacepção aparecem os problemas. O norte-americano Webster New Collegiate Dictionary fala de uma diferenciação com "protestant" e se internaem precisões teológicas ao defini-lo como um setor do protestantismo que,originalmente dentro do anglicanismo e posteriormente em igrejas livres,afirma "que a essência do evangelho consiste principalmente em suasdoutrinas da condição pecaminosa do homem e sua necessidade de salvação, da revelação da graça de Deus em Cristo, da necessidade de umarenovação espiritual e da participação na experiência de redenção mediante a fé". Embora mais cauteloso, o brítâníco Oxford 5tudents' Dictionary tampouco pode evitar o tema: "aqueles protestantes que sublinhama ímportãncía de uma fé pessoal" e de arrepender-se pela morte de JesusCristo (?; "rnaking amends for the death of Jesus Chríst"). Porém o termo,assim como a definição, está longe de ser preciso. E as recentes distinções(particularmente nos Estados Unidos) entre "evangélicos", "evangélicosconservadores" e "neo-evangélícos" não tornam as coisas mais claras. NaAlemanha, particularmente na Prússia, várias igrejas territoriais com influências pietistas adotaram o termo "evangelísche". E, para confundirmais o quadro, na América Latina o termo "evangélico" é utilizado indistintamente para todas as igrejas originadas direta ou indiretamente daReforma e, em muitos casos, ê praticamente sinônimo de protestante.Neste trabalho, preferi deixar intacta a equívocídade do uso latino-americano, esperando que os contextos permitam ao leitor determinar o sentido.
2 George M. MARSDEN, Fundamentalism and American Culture: The Shapíng of Twentíeth-Century Evangelicalism: 1870-1925, New York: OxfordUníversíty, 1980, p. 3.
3 Tradução de V. Mendoza do hino "Far away in the depth of my soultoníght", de W. D. Cornell; melodia "Wonderful peace". Aparece em hinários metodistas, batistas e de várias denominações evangélicas de princípios do século em toda a América Latina.
4 Joseph ANGUS, Duty of the Church in Relation to Míssíon, in: PhilipSCHAFF, S. Irenaeus PRIME (Eds)., History, Essays, Orations and OtherDocuments of the 5Mh General Conference of the Evange1ical Allianceheld in New lVrk, October 2-12, 1873, New York, 1874, p. 583, cito ap.George M. MARSDEN, op. cít., p. 12.
5 Editorial, E1 Estandarte Evangelico, 15 fev. 1894, p. 2.
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6 20 dez. 1894, p. 3. Um interessante trabalho sobre a leitura dos "testemunhos" e sua importância, que ao mesmo tempo salienta a necessidade deseu maior estudo, foi apresentado no encontro realizado no México porocasião dos dez anos de falecimento de Gonzalo Báez Camargo, por CarlosGarma Navarro: Conversos, creyentes y cambio cultural. É evidente quetestemunhos, "histórias de vida", etc. constituem elementos indispensáveis para recuperar a experiência religiosa do povo cristão (em nosso caso,do povo evangélico latino-americano). Ao mesmo tempo é necessário levarem conta as caracteristicas particulares desse tipo de materiais e as precauções metodológicas (basicamente as diversas formas do que os sociólogos chamam de "triangulação") que devem ser tomadas ao se avaliaresses materiais. Veja, entre outros, as observações metodológicas em Thomas ROBBINS, Cults, Converts and Charisma: The Sociology of New Religious Movements, London: SAGE, 1988, e o artigo muito interessante deR Stephen WARNER, Oenology: The Making of New Wine (um estudo decampo numa igreja presbiteriana na Califórnia), in: Anthony ORUN, JoeFAGIN, Gideon SJOBERG, A Case for the Case Study, California: Uníversíty of California, 1991, p. 175-195. Em Bapüst Battles New Brunswíck:Rutgers Uníversíty 1990, Nancy AMMERMAN oferece um interessanteexcurso metodológico em seus Apêndices A e B, p. 287-340.
7 É interessante observar que Francis R Havergal (1836-1879), de confissãoanglicana, tem em 1850 uma experiência de conversão, que descrevenestes termos: "I committed my soul to the Saviour and earth and heavenwere brighter from that moment") (Entreguei minha alma ao Senhor edesde esse momento céu e terra ficaram mais luminosos). Condição demembro da Igreja Anglicana, teologia "míldly Calvíníst" (tibiamente calvinista) - diz um biógrafo - e experiência "evangélica" ("creio" - dizia ele- "numa salvação gratuita e plena"). A síntese que domina esse movimento não poderia ser ilustrada de maneira melhor.
8 The Great Reversal: Evangelism versus Social Concern, Philadelphia: Lippincott, 1972. Cf. Donald DAYTON, Discovering an Evange1ical Heritage,New York: Harper and Row, 1976, e Richard PIERARD, The Unequel Yoke,Philadelphia: Lippincott, 1970.
9 George M. MARSDEN, op. cít., p. 86.10 Resumo de id., ibid., p. 255, nota 30, de C. 1. Scofie1d's Question Box,
compilado por EUa A. POBLE, Record ofChristian Work, Chicago: MoodyBible Institute, s. d.
11 O tema do "fundamentalísrno" readquiriu atualidade hoje como fenômenoreligioso ou religioso-político que surge em diversas religiões (p. ex., nojudaísmo e no islamismo), bem como em movimentos políticos caracterizados pelo autoritarismo ou pela intransigência. Neste sentido são interessantes a pesquisa dirigida e editada por Martin MARIY e R ScottAPPLEBY, Fundamentalisms Observed, Chicago: University of Chicago,1991, e a avaliação dos mesmos editores em sua obra The Glory and thePower: The Fundamentalist Challenge to the Modem World, Boston: Beacon, 1992. Já faz uns 30 anos que um singular escritor norte-americano,Eríc Hoffer, tentou encontrar em traços de caráter, experiências sociais de"frustração" e uma determinada "mentalidade" características comuns adiversos movimentos de massas - religiosos, sociais ou políticos - queele definia como formas de fanatismo: a personalidade que chamava "thetrue believer". Embora não se refira especificamente ao fundamentalismo,
140 Rostos do protestantismo latino-americano
trata-se evidentemente de uma tentativa de achar as "estruturas psicológicas" que correspondem ao que hoje em dia designamos com esse nome:Eric HOFFER, The 'Itue Believer. New York: Harper and Row, 1966. Muitas tentativas na mesma direção se seguiram depois. O trabalho de Martye Appleby que indicamos acima (The Gloiy end the Power) inclui observações a esse respeito. Não obstante. embora exista entre todos esses movimentos uma série de elementos psicológicos e atitudes políticas análogas,não creio que seja conveniente trabalhar o tema em termos tão gerais.Trata-se de movimentos que surgem dentro de um contexto históricodefinido e que devem ser considerados primeiramente à luz desse contextoe não como meros "casos" de um fenômeno generalizado.
12 Sobre a importãncia da escola filosófica escocesa do sentido comum e osurgimento do fundamentalismo na América do Norte veja Martin MARIY.R Scott APPLEBY. The Gloty end the Power. p. 59-60. e George M. MARSDEN. Fundamentalism and American Culture, p. 14-16. 110-116.
13 What was Christ's Attitude Thward Error: A Symposíum, Record ofChristian Work. p. 600. 602, novo 1899; cito ap. Stanley N. GUNDRY. Love themIn: The Proclamation Theology of D. L. Moody, Chicago. 1976. p. 217-218.
14 Martin MARIY. R Scott APPLEBY. The GImyand the Power, p. 48-52.resumem uma interpretação interessante das características da escatologia pré-milenarista e pós-milenarista. Há uma boa discussão teológica dotema em James BARR. Fundamentalism. London: SCM. 1977. passim.
15 James BARR. op. cit .. p. 36.16 Cito ap. George M. MARSDEN. Fundamentalism and American Culture,
p. 151; citação de Henry WKITERSON em The Kíng's Busíness, V. 9. p.1026-1027. dez. 1918. de um editorial de The Louisvillle Courier JournaI.
17 Sobre o tema da criação e da evolução das espécies. que curiosamenteapareceu novamente em discussões sobre a educação nas campanhaseleitorais em vários estados dos Estados Unidos em fins de 1994. vejaMartin MARIY. R Scott APPLEBY, The Glory and the Power. p. 53-56.
18 O fenômeno fundamentalista, tal como se deu particularmente no mundoanglo-saxão. foi interpretado de diversas maneiras: como uma reaçãocontracultural, como uma forma de "natívísmo", como uma manifestaçãodo pré-milenarismo e inclusive (o autor alemão Riesenbrandt) como "patriarcalismo radical". Um tanto inesperadamente. na discussão dos "conteúdos básicos" da educação básica do novo plano proposto na Argentina.levantou-se uma forte oposição religiosa (majoritariamente católica) à inclusão do tema da evolução e do próprio nome de Darwín, e o Ministérioda Educação parece ter-se visto obrigado a modificar sua proposta. provocando a renúncia de vários dos educadores que trabalharam na preparação do projeto.
19 Com respeito aos conflitos na Convenção Batista do Sul é fascinante ocuidadoso e equilibrado estudo de Nancy AMMERMAN. Baptist Bettles. aque nos referimos anteriormente (nota 6).
20 C. W. DOLlAR. A History ofFundamentalism in America. Greenville: BobJones Uníversíty, 1973; Introdução. p. 7; capo V, p. 14; capo XXI. p. 32.Este livro é interessante por ser uma história do fundamentalismo apartir de dentro do fundamentalismo.
21 Pablo A. DEIROS. Historia deI cristianismo en América Latina. BuenosAires: Fratemidad 'Ieológíca Latinoamericana. 1992. Veja do mesmo autor.
Notas 141
Protestant Fundamentalism in Latin Ameríca, in: Martin MARIY, R ScottAPPLEBY (Eds.), Fundamentalism Observed, v. I, p. 142-196.
22 Pablo A. DEIROS, Historte del cristianismo, p. S02.23 Id., íbíd., p. S03-S06.24 Prudencío DAMBORIENA, S.J., El protestantismo en América Latina, Frí
burgo: FERES, 1962, tomo I, p. 32. Damboriena explica esse aumentoprincipalmente em termos da recolocação de missões, missionários e recursos deslocados por causa da perda de campos missionários na Ásia,como na China, Indochina, etc. (p. 27-45). As outras cifras que ele dá parao mesmo período sugerem que uma causa exógena não consegue explicar, p. ex., o aumento de obreiros locais de 2.176 para 14.299 ou o demembros comungantes de 170.S27 para 4.230.413.
25 Por exemplo, é interessante observar que em IS94 se podia discutir livremente, no El Estandarte Evangélico, o uso de vinho nas mesas metodistas, sem que uns e outros fizessem disso um artigo de fé, enquanto que,em tomo de 1930, o voto de abstinência e a fita branca que o atestavaeram quase um requisito para ser membro da Igreja Metodista latinoamericana.
26 Cf. Historia y misión, in: Protestantismo y liberalismo, San José de CostaRica: DEI, 1983, p. 15-36.
27 Sobre essa transição veja Leopoldo ZEA, /Las ideas en Iberoaméríca en elsíglo XIX, La Plata: Universidad Nacional de La Plata, Departamento deFilosofia, 1956, p. 43ss. Quanto ao significado ideológico dessa transiçãoé interessante uma citação de Zea que, mutatis mutandis, talvez tambémtenha sentido para os evangélicos: "abandona-se a discussão pela liberdade e se estabelece a ordem que permitirá o progresso material de cadapaís e, com ele, a liberdade como conseqüência" (p. 43).
28 Originalmente artigos no El Sendero del Creyente, v. XXXV, que em 1945foram publicados num livro com o mesmo título.
29 Christian Work in Latin America, Montevideo: CCIA, 1926, tomo I, p. 350.30 Pablo A. DEIROS, Historie dei cristianismo, p. 771s., SOl-808.31 O desenvolvimento dessa linha em setores fundamentalistas norte-ame
ricanos foi amplamente estudado. A melhor referência que conheço é oestudo de Erlíng JORS1AD, The New Christian Riglit: 1981-1988, Lewíston/Queenston: Edwin Mellen, 1987, com excelentes notas bibliográficas.
32 Um trabalho recente de George M. MARSDEN, Understanding Fundamentalism and Evangelicalism, Grand Rapids: Eerdmans, 1991, é muitoesclarecedor para situar a relação entre o evangelicalismo e os recentesdesdobramentos do fundamentalismo.
33 Declaración Evangélica de Cochabamba, Fraternidad de 'Ieólogos Latinoa-mericanos, Pensamiento Cristiano, n. 69, p. 19, mar. 1971.
34 Let the Earth Hear His Voice, Minneapolis: World Wide Publications, 1975,p.25s.35 Buenos Aires: Certeza, 1975.36 Ibid., p. 35.37 Let the Earth Hear His Voice, p. 310.38 Veja os números do ano de 1990 do Boletin 'Ieolôgico publicado pela FTL
e as palestras e discussões da reunião de Quito no n. 42-43 de setembrode 1991.
142 Rostos do protestantismo latino-americano
39 O informe CLADE III: Tercer Congreso Latinoamericano de Evangelizaciôn. Buenos Aires: FTL, 1993, 867 p., inclui a totalidade dos trabalhospreparatórios, as palestras, os debates e os documentos finais do CLADEIII e é o melhor material para avaliar o processo que a FTL inspirou e aamplitude de participação que obteve.
Capítulo 3:
o rosto pentecostal do protestantismo latino-americano
1 Carlos MARlitrEGUI, Siete ensayos sobre la realidad peruana. Lima: Amauta, 1975, p. 172-173.
2 John A. MACKAY, How my Mind Has Changed in the Last Thírty Years,The Christian Centwy. p. 875, jul. 1939.
3 Latín America and Revolution-II: The New Mood in the Churches, TheChristian Centwy, p. 1.439, 24 novo 1965.
4 O Prof. Mendonça me chamou a atenção para um relato contido na obrade Emile LÉONARD, O protestantismo brasileiro, São Paulo: ASTE, S. d.(publicação original de 1951-1952), sobre uma manifestação de caráterpentecostal em 1840, no ministério de um missionário presbiteriano e exsacerdote católico, José Manoel de Conceição, que depois continuaria esseministério por si mesmo (p. 56ss.). Léonard foi talvez o primeiro a percebero que Bernardo Campos chama de "a pentecostalidade" - e que Léonarddefine como "o iluminismo" - no protestantismo brasileiro. Cf. seu libroL'lllutninisme dans un protestantisme de constitution récente (Brésil),Paris: Presses Universitaires de France, 1952.
5 Há várias tentativas de tipificar os pentecostalismos na América Latina oude elaborar o que Petersen chamou de "taxonomías do pentecostalismolatino-americano". O Prof. Antonio Gouvea Mendonça distingue entre o"pentecostalísrno clássico" e o "neopentecostalísmo" e, dentro deste, entreum "pentecostalísmo autónomo" e o "pentecostalísrno de cura". O bispoManuel Gaxiola-GAXIOLA, da Igreja Mexicana Pentecostal Unida, fala dedistintos "agrupamentos" de igrejas pentecostais: autóctones, denominações fundadas por igrejas estrangeiras e um tipo especial de igrejas que seassemelham ás igrejas messiânico-proféticas independentes da África (Latin American Pentecostalism: A Mosaic wíthín a Mosaic, Pneume, V. 13, n.2, p. 107, 1991). As primeiras, em sua opinião, teriam nascido com escassa ou nenhuma influéncia estrangeira e suas práticas se derivariam diretamente das tradições do povo em que surgem. Carmelo ADlAREZ, de suaparte, distingue também entre um "pentecostalísmo crioulo" com certoarraígamento histórico na América Latina e igrejas implantadas mais recentemente por missões estrangeiras, que ele associa à "igreja eletrónica"e a evangelistas como Jimmy Swaggart (Latin American Pentecostals:Ecumenical and Evangelicals, Catholic Ecumenical Review, n. 23, n. 1-2,p. 93ss., out. 1986). No último capítulo, faremos algumas observações arespeito disso. 1àmbém deve-se levar em conta o forte colorido ideológicode muitos desses movimentos, vinculados direta ou indiretamente à "novadireita religiosa" nos Estados Unidos. Veja a respeito disto os trabalhos deErling JORSlAD, The Politics of Moralism: The New Christian Right inAmerican Life, Minneapolis: Augsburg, 1981, e sobretudo sua ampla pes-
Notas 143
quísa e análise em The New Christian Right: 1981-1988, Lewiston/Queenston, Edwin Mellen, 1987 (Studies in Amerícan Relígíon, 23). Em sua teseainda não publicada, Douglas Petersen questiona as taxonomias baseadas na "origem" -local ou em missões estrangeiras -, pois o que importa não é a origem histórica, e sim a medida de efetiva "índígenízação"alcançada. Parece evidente que ainda carecemos de critérios que nospermitam uma tipificação mais adequada. Por outro lado, o caráter sumamente dinámico de todo o processo toma díficíl definir tais critérios.
6 Walter HOLLENWEGER, Spiritus: Estudios sobre Pentecostalismo, v. 1, n.1, 1985.
7 São muitas as publicações do professor Hollenweger, partindo de suamonumental tese em oito volumes, Handbuch der Plingstbewegung, Genf:Õkumeníscher Rat der Kirchen, 1965, mimeografada. As referências queutilizamos aquí encontram-se em id., El pentecostalismo: história y doetrina, Buenos Aires: La Aurora, 1976.
8 Em publicações mais recentes, o Prof. Hollenweger revisou e ampliou suasteses iniciais. Veja, por exemplo, íd., Veinte anos después, Spiritus: Estudios sobre Pentecostalismo, v. 2, n. 1, 1986. Reproduzido por Juan SEPÚUlEDA (Ed.J, Antologia sobre pentecostalismo, Santiago de Chile, 1989.
9 Emilio WILLEMS, Followers of the New Faith, Nashville: Vanderbilt University, 1967. Do mesmo autor, Relígíous Mass Movements and SocialChange in Brazil, in: E. N. BAKlANOFF (Ed.), New Perspectives on Brezil,1966.
10 Recentemente, o sociólogo brítáníco David MARTIN retomou, com algumas variantes, a mesma tese em seu livro 1bngues ofFire, 2. ed., Oxford:Basil Blackwell, 1991, que, curiosamente, foi celebrado no mundo anglosaxão como um "descobrimento", mas cuja informação, conhecimento daAmérica Latina e metodologia nos parece que deixam muito a desejar.
11 Chrístían Lalive d'EPINAY, El refugio de las masas, Santiago de Chile:Editorial deI Pacífico, 1968 fedo em port.: O refúgio das massas: estudosociológico do protestantismo chileno, Rio de Janeiro: Paz e 'Ierra, 1970).Do mesmo autor há vários artigos (citados na bibliografia do livro mencionado) e Religion, dynamique social et dépéndence, Paris: Mouton, 1975.
12 Pentecostais no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1985.13 Id., ibid., p. 15.14 Las culturas populares en e1capitalismo, México: Nueva Imagen, 1983, p. 22.15 Daniel P. MÍGUEZ, Estilos de vida e identidades, manuscrito, 1993.16 Amerindia, Santiago de Chile, tomo I, 1988; tomo lI, 1991.17 Carmelo AUTAREZ (Ed.J, Pentecostalismo y liberación, San José de Costa
Rica: DEI, 1992.18 Como curiosa exceção a essa "universalidade da graça" deve-se mencio
nar a "Igreja de Deus", do Brasil, presbiteriana em sua origem, que aderefirmemente à doutrina da dupla predestinação e, por conseguinte, não faztentativas de proselitismo ou de "converter as pessoas", mas simplesmente recebe a quem se aproxima e "atesta" sua eleição. Não obstante, é umaigreja que tem crescido extraordinariamente e continua crescendo.
19 A ênfase quase exclusiva na "cura divina" caracteriza alguns movimentospentecostais mais recentes e o "neopentecostalísmo" ao qual fazemos alusão na nota 5. Neste sentido parecem-me de grande interesse algumas
144 Rostos do protestantismo latino-americano
observações do Prof. Mendonça sobre a preponderância do tema dos "espíritos" nesse neopentecostalismo de cura divina. Ele considera que essatendência, introduzida por missionários da "Igreja Quadrangular" em torno de 1950, produz um "desequilíbrio no pentecostalismo clássico", namedida em que assume o imaginário social popular de um mundo regidopor espíritos bons e maus e propõe uma forma de "manejar" o mundo dosespíritos, restrita aos que detenham o poder "mágico". Dessa maneira sedeslocam os conteúdos evangélicos: o pecado é possessão demoníaca. alibertação se realiza por exorcismo, freqüentemente o manejo dos espíritosutiliza "instrumentos", como chaves abençoadas, tocar um objeto. A igrejanão é aqui principalmente a congregação de crentes comprometidos. Estamos - pergunta-se Mendonça - frente a uma nova religião? Poder-seia ver também aqui, pensando no pano de fundo afro-americano, umamanifestação sincrética.
20 Raíces teológicas delpentecostalismo, Buenos Aires: Nueva Creación, 1991,p.9s.
21 Grand Rapids: Eerdmans, 1971, p. 217.22 Robert M. ANDERSON, The Vision of the Disinherited: The Making of
American Pentecostalísm, New York: Oxford Uníversíty, 1979, capítulosobre The Message of Pentecostalism.
23 Pentecostal Theology in the Context of the Struggle for Lífe, in: D. KIRKPJITRICK (Ed.l, Faith Bom in the 5truggle for Life, Grand Rapids: Eerdmans, 1988, p. 299ss.
24 Documento de síntese, Encontro de Pentecostais Latino-Americanos, Salvador, Bahia, Brasil, 6 a 9 de janeiro de 1988, mimeografado, p. 5.
25 Esta e as demais citações desse encontro são tomadas de seu Documentofinal, publicado ap. Carmelo AllTAREZ, op. cít., p. 252-254.
26 Ainda há poucas investigações confiáveis e abrangentes dessa atividade etrabalhos sobre seu significado social e teológico. Os poucos trabalhosque chegaram a nossas mãos se referem aos "evangélicos" em geral. Porexemplo, David S1DLL, Is Latin America 'Iiirning Protestant?: The Politicsof Evangelical Growth, Berkeley: University of California, 1990; RethinkingProtestantism in LatinAmerica, Philadelphia: 'Iemple Uníversity, 1993;René PADILLA, De la marginación al compromiso: los evangélicos y lapolítica en América Latina, Buenos Aires: Fraternidad 'Ieológíca Latinoamericana, 1990; Fortunato MALLIMACI, Protestantismo y política partidaria actual en Argentina: del campo religioso al campo político, la luchapor la legitimidad, Buenos Aires, 1994 (mimeografado); Paul FRESTON,1eocratas fisiológicos: nova direita e progressistas: protestantes e políticana Nova República, Rio de Janeiro: CEDI, 1989.
27 Lo testimonial: un caso de teologia oral y narrativa, in: Carmelo AllTAREZ,op. cit., p. 128.
28 Id., íbíd., p. 129, grifes meus.29 In: Algo más que opio, San José de Costa Rica: DEI, 1991, p. 26.30 Elizabeth BRUSCO, The Household Besis ofEvangelical Religion and the
Reformation of Machismo in Colombie, Míchígan: Uníversíty MicrofilmInternational, 1986. A bacharel Móníca TI\RDUCCI apresentou na Universidade de Buenos Aires um trabalho sobre o mesmo tema sob o título"Servir al marido como al Senor": las mujeres pentecostales.
Notas 145
31 Pierre BOURDIEU, Language and Symbolic Power, Cambridge: Cambrídge Polity, 1991, p. 173 e 215.
32 Cf. artigo citado na nota 27. p. 126.33 Sobre a importância do "milenarismo" como elemento central do funda
mentalismo entabulou-se uma interessante discussão entre Emest SANDEEN (The Roots ofFundamentalism: Brítísh and Amerícan Míllenaríanism 1800-1930, Chicago: Uníversíty of Chicago, 1970) e George MARSDEN [Defíníng Fundamentalism, Christian Scholars Review, n. 1, p. 141-151.1971); veja a resposta de Sandeen no número seguinte da mesma publicação. Enquanto que Sandeen considera que o milenarismo é "a raiz" dofundamentalismo, Marsden o vê como "uma das raízes" de um movimento cuja característica defmidora é a rejeição da modernidade.
34 Uma discussão significativa da relevância atual do "evangelho apocalíptico" de Paulo e, ao mesmo tempo, uma critica aguda das deformações eadulterações que tem sofrido encontram-se no livro de J. Chrístían BEKER, Paul's Apocaliptic Gospel: The Coming Tríumph of God, Phíladelphia: Fortress, 1989.
Capítulo 4:
Um "rosto étnico" do protestantismo latino-americano?
1 Emíle-G. LÉONARD, O protestantismo brasileiro: estudo de eclesíología ede história social, São Paulo: ASTE, 1964. p. 17 (grifos meus).
2 Não cremos que seja necessárto tentar resumir os dados históricos daentrada das igrejas de imigração na América Latina. As obras de Príen,Bastían, Deiros e outros às quais nos referimos dão os dados básicos eincluem as referências bibliográficas necessártas para empreender umestudo mais detalhado dos aspectos históricos.
3 Waldo L. VILLALPANDO (Ed.), Las igJesias del trasplante: protestantismode ínmígracíón en la Argentina, Buenos Aires: CEC, 1970.
4 Robert RICARD, La. conquête spirituelle du Mexique, Paris. 1933; cito ap.J. MÍGUEZ, Las perspectivas deI cristianismo en América Latina, Cuadernos de Embelse, FUMEC, 1964. p. 1-13.
5 R NARROLL, Ethnic Unit Classífícatíon, Current Anthropology, V. 5, n. 4,resumido por Fredrík BARTI-I en Los grupos étnicos y sus fronteras, México: Fondo de Cultura Econórníca, 1976, p. l l ,
6 Encontramos apresentações que resumem de forma clara e simples essadiscussão no livro editado por Fredrík Barth indicado na nota anterior (p.9-49) e na compilação editada por Roberto RINGUELET, Procesos de contacto interétnico, Buenos Aires: Búsqueda, 1987, p. 13-48. Ambos incluem uma bibliografia abundante.
7 Waldo VILLALPANDO, op. cít., p. 9, cita expressões de Roger Bastide (Brésilo terre de contrastes. Paris: Hachette, 1957, p. 241) sobre a importânciada religião na preservação cultural: "De um modo geral, a religião é ocentro mais importante da resistência. Podem-se mudar a língua, o modode viver e as concepções sobre o amor. A religião integra a última trincheira ao redor da qual se cristalizam os valores que não querem morrer. Osagrado é, nas batalhas das civilizações, o último baluarte que recusarender-se." Em alguns dos "despertares étnicos" que - para surpresa de
146 Rostos do protestantismo latino-americano
muitos - vêm cobrando força em diversas partes do mundo, esta afirmação de Bastide parece confirmar-se. Creio, porém, que, como generalização, ela deve ser tomada com cautela; é verdade que, entre esses "renascimentos étnicos", há alguns nos quais o elemento religioso desempenhaum papel importante (mesmo que só ideologicamente), mas outros fatorescomo a língua, a filiação política ou ideológica e os interesses econômicoscomuns ocupam um lugar ao menos da mesma ímportãncía na autoafirmação e nas lutas étnicas.
8 Na impossibilidade, por razões tanto de espaço quanto de conhecimento,de considerar o tema a partir de fontes primárias e à altura da grandediversidade de igrejas que podem ser consideradas étnicas na AméricaLatina, decidi fazer só algumas observações com base em trabalhos depesquisa realizados sobre algumas igrejas no Cone Sul, particularmentena Argentina, no Uruguai e no Brasil. Com respeito ao Brasil, utilizeiprincipalmente, junto com os trabalhos histórtcos de Mendonça, citadosanteriormente, os livros de Martin N. DREHER, Igreja e gerrnanidade:estudo critico da história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana noBrasil, São Leopoldo: Sinodal; Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre: EST SãoLourenço de Brindes, 1984; André DROOGERS, Religiosidade popularluterana: relatório sobre uma pesquisa no Espírito Santo em julho de1982, São Leopoldo: Sinodal, 1984; e Hans-Jürgen PRIEN, EvangelischeKirchwerdung in Bresilten, Gütersloh: Gerd Mohn, 1989. Na Argentina. amencionada pesquisa Las igJesias del trasplante e a tese de Maria M.BERG. Dinamarca bejo la cruz del sur: los asentarnientos daneses delcentro-sur de la províncía de Buenos Aires. 1850-1930, Universidade deBuenosAíres, 1994. Outras indicações aparecem nas respectivas referências.
9 Dados documentados respectivamente nos informes dos congressos doPanamá. de Montevidéu e de Havana citados em capítulos precedentes.Com respeito à Confederação Evangélica do Rio da Prata. veja HoracioGUALDIERI. FAlE: Apuntes para una historia de las relaciones eclesialesen el Rio de la Plata, Buenos Aires. s. d. (mimeografado), e Eugenio E.MOHR, Confederación de Iglesias Evangélicas del Rio de la Pieis, teseapresentada no ISEDET, Buenos Aires. 1993.
10 Kurt HUTIEN, Seher, Grúbler, Enthusiasten: Sekten und relígíõse Sondergemeinschaften der Gegenwart, Stuttgart: Quell. Nas edições iniciais eaté 1954 ao menos, igrejas como a metodista. nazarena. etc. aparecemsob a designação de "comunidades perfeccíonístas". Na 8 a edição. de 1962.desaparecem os metodistas. mas os nazarenos continuam.
II Faço essa observação com base em referências indiretas e de comentáriosde pessoas envolvidas nessas conversações. mas não conheço documentação específica sobre elas.
12 Ernst mOELTSCH. Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppeno in: íd., Gesammelte Schrtiten, 3. ed., Tübingen: J. C. B. Mohr, 1923.v. I, p. 358-377.
13 Além da obra de Troeltsch citada na nota anteríor, veja Max WEBER. Díeprotestantischen Sekten, in: id., Gesammelte Auisêtze zur Religionssoziologic. v. I, p. 207-236. As distinções de 'Iroeltsch e Weber foram refinadasposteriormente. incluindo categorias mais precisas e delimitadas, comoigreja universal. ecclesie. seita estabelecida e seita. Veja a esse respeito J.Milton YINGER, Religiôn, persona, sociedsd, Madrid: Razôn y Fe, 1968. p.192-208.
Notas 147
14 Numa reflexão sobre o anglicanismo na "Região Central da América", osecretário de educação da Igreja Episcopal no Panamã, John L. Kater,descreve essa concepção anglicana, citando a clássica formulação de Hooker: "cada igreja foi originalmente organizada para servir a um povo ou auna nação particular (...) A imposição da monarquia papal (...) foi umdesenvolvimento tardio, que despojou as igrejas de sua habilidade paraservir adequadamente sua própria nação." E então Kater mostra comoessa concepção não pôde funcionar nos Estados Unidos, para concluircom uma teoria dos "distintas ramos" da igreja e, portanto, da pluralidade. In: Ashton J. BROOKS (Ed.), Eclesiologie: presencia anglicana en laRegíón Central de América, San José, Costa Rica: DEI, 1990.
15 Id., íbíd., p. 33.16 Maria M. BERG, op. cít., p. 277.17 Embora não seja o caso da imigração protestante (valdense) da Itálía, é
interessante observar que a colônia italiana na Argentina sentiu fortemente a pressão de consolidar a unidade italiana para uma "identidadenacional italiana" em lugar das identidades regionais de origem que haviam predominado anteriormente. Cf. Eduardo J. MÍGUEZ, 'Iensíones deidentidad: reflexíones sobre la experiencia italiana ínmígrante en la Argentina, in: F. J. DEVOTO, E. J. MÍGUEZ (Eds.) , Asociacionismo, trabajo eidentidad étnica: los italianos en América Latina en una perspectiva comparada, Buenos Aires: CEMlA-CSER-IEHS, 1992, p. 333-358.
18 Não vamos nos deter no complexo problema da identidade étnica "germãníca" da nação "alemã", que, como indicamos mais adiante, manifesta-seem algumas das cisões posteriores, nem na debatida questão da adesãoou oposição à "germanídade" impulsionada pelo nacional-socialismo. Otema é discutido em relação ao Brasil nas obras de Dreher e Prien jácitadas. No tocante à Argentina e ao Uruguai, é sumamente ilustrativo oartigo de Alejandro WRZIN (parte de uma investigação que o autor estácontinuando), Pastor Wilhelm Nelke, un impulsor de la germanidad en elRio de la Plata, Cuademos de 7eología, Buenos Aires, ISEDET, v. 12, n. 2,p. 29-57, 1992.
19 Em sua Storia dei Valdesi, 10000: Cíaudíana, 1980, v. 3, p. 196-202, ValdoVINAY faz esta interessante observação: "Em seu foro íntimo os evangelistas se regozijaram com a independência nacional (...) Mas sua espírítualídade do despertar {risvegJiata] separava com rigor a esfera espiritual dapolítica e eles não conseguiam ver um vínculo vital efetivo entre o evangelho pregado e a libertação política e social de seu povo." Cf. tambémGiorgio roURN, Los Valdenses, Montevideo: Iglesia Valdense, 1983, v.Ill/2, p. 274ss.
20 Walter ALlMANN, Lutero e libertação: releitura de Lutero em perspectivalatino-americana, São Leopoldo: Sinodal, São Paulo: Ática, 1994, p. 121s.(grifos meus).
21 Vale a pena registrar aqui que, embora tenham sido recebidas e até convidadas, as comunidades estrangeiras foram amiúde discriminadas socialmente, rejeitadas pelas elites tradicionais e sofreram, em muitos momentos, nas mutações políticas dos distintos países, graves discriminações em temas como a construção de seus templos, o matrimônio e osepultamento de seus membros e a educação religiosa de seus filhos, etiveram sérios conflitos com o estado, que, ocasionalmente, só foram su-
148 Rostos do protestantismo latino-americano
perados mediante a intervenção dos representantes diplomáticos dos países de origem.
22 Albert C. OUTLER, Evangelism in the llésleyan Spirit, Nashville: Tídíngs,1971, p. 60-61 (grifas meus).
23 Samuel ESCOBAR, La fe evangélica y las teologias de la hberectôn. ElPaso: Casa Bautista de Publícacíones, 1987, p. 45s.
24 H. Richard NlEBUHR, The Social Sources of Denomineiionelism, NewYork: Merídían Books, 1957 (edição original de 1929). Níebuhr vê, ao longode toda a história, o surgimento das "igrejas dos deserdados" como umprotesto contra a "acomodação" das igrejas aos interesses das classesdominantes e sua incapacidade para manter o testemunho ético e profético da fé cristã. Quanto à Reforma e aos movimentos radicais do século16, veja p. 34-53, e uma tese geral sobre a origem social do denomínacíonalismo às p. 21-25.
25 O estudo documentado no livro se limita a dez igrejas; em seus resumosfinais Christian lALIVE acrescenta a Igreja Evangélica de Fala Francesado Rio da Prata, cujos dados ele conhece mas não inclui (veja op. cít., p.164, nota 6). Descontei esse dado e me ative aos indicados no livro; daí adiferença entre meus dados e as cifras dele.
26 Id., íbíd., p. 165.27 Ibid., p. 164.28 Esse despertar, que acontece nas igrejas valdenses depois da unidade
(1848), representa diversas influências "evangélicas" - pietismo reformado, batistas, "darbístas", metodistas e o anglicanismo evangélico - bemdocumentadas nas histórias que mencionamos; Valdo VINAY, op. cít., v.3, p. 73-165; Gíorgío TOURN, op. cít., v. ll/2, p. 274ss. No momento emque concluía este trabalho, chegou-me às mãos a obra, recentementepublicada, de Roger GEYMONlIT, EI templo y la escuela: los valdenses enel Uruguay, Montevideo: Cal y Canto, OBSUR, Fundacíón Giovanni Agnelli, 1994. Embora o autor não analise a orientação teológica dos primeiros pastores, chama a atenção para um aspecto que corresponde a nossotema: o contraste entre o que Geymonat chama de "o píetísmo dos pastores vindos da Itália em fins do século 19 e inícios do século 20, imbuídosde um decidido espírito de evangelização" e a atitude majoritãria do que"poderíamos qualificar de 'militância religiosa passíva'" da maioria doscolonos (p. 120-121).
29 Hans-Jürgen PRIEN, Evangelische Kirchwerdung, p. 91-93.30 Christian lALIVE, op. cit., p. 174.31 Id., ibid., p. 171.32 Um caso muito interessante é o da Igreja Presbiteriana Escocesa, que até
há poucos anos teríamos caracterizado como eminentemente "étnica",sem perceber que sua história inicial teve uma intenção evangelizadora emissionãria que depois se extinguiu. Mesmo sem contar a obra missionária iniciada por presbiterianos de origem norte-americana (cf. Daniel P.MONTI, Presencia deI protestantismo en el Río de la Plata durante el sigloXIX, Buenos Aires: La Aurora, 1969), a congregação rural residente escocesa de Chascomús e seu pastor Robertson iniciaram um trabalho deevangelização que depois foi descontinuado. Essa significativa história foirecuperada e analisada numa interessante tese do pastor Girvan ChristíeMcKAY, Growth and Decrease of Presbyterian Missiotiery Outreach in
Notas 149
Argentina, Buenos Aires: ISEDET, 1974. Em anos recentes essa vocaçãoparece ter sido reencontrada, porém não sem tensões e conflitos.
33 Chrístían IALIVE, op. cít., p. 166-170.34 Numa palestra feita no ISEDET (Buenos Aires, 1983), Walter Altmann
destacou como a crise econômica que obrigou muitos luteranos brasileiros a emigrar para a periferia das cidades ou para a fronteira com oParaguai gerou uma integração religiosa ou a formação de comunidadeseclesiais abertas.
35 A discussão sobre aculturação, adaptação, assimilação, pluralidade cultural é totalmente pertinente a nosso tema, mas escapa a nossas possibilidades. Haveria que falar aqui, em relação com o tema que nos ocupa, aomenos de dois aspectos. Um é o modelo de recepção e tratamento daimigração que distintos países adotaram: em alguns, houve uma "políticadura" de pressão social, cultural e política para assimilar a população quese recebia - que abandonassem seu idioma, seus usos particulares, aendogamia -, o que poderiamos chamar de a ideologia do "crisol deraças"; em outros, uma "política branda" de educação bilíngüe, estímuloa manifestações culturais diversas e até aceitação de dupla nacionalidade(o que nem sempre significa maior apreço pelas etnias imigrantes, maspode ser também uma forma de discriminação). A maioria dos paíseslatino-americanos, buscando construir uma identidade própria, aderiu,com distintos graus de intensidade e execução, à primeira. Mas veja-setambém, em relação à política imigratória argentina, o interessante artigode Dolores JULIANO, EI discreto encanto de la adscripción étnica voluntarta, in: R RINGUELET (Ed.), op. cít., p. 83-109. 1àmbém são interessantes os trabalhos de Roy A. Preíswerk: alguns de seus textos foram recolhidos no livro editado por seu sucessor, Gilbert RIST, A contre-courents,l'enjeu des réleiions interculturelles, Lausanne: Edítíons d'en Bas, 1984;veja especialmente o artigo do próprio Rist, Pour une épístemologíe interculturelle, e o de Matthias PREISWERK, Identíté culturelIe et développement. Isto conduz a um segundo tema, a saber, como se gera uma "identidade"? Em vários países latíno-amerícanos - tomo a Argentina comoexemplo - tem havido um conflito entre duas formas de entender aconformação de uma "identidade nacional": uma, que eu chamaria de"mítica", que postula uma certa "essência" ou "ser nacional", vinculadaao solo, ao sangue ou à ideologia - que pode ser religiosa - e que érepresentada por símbolos: a bandeira, o hino, algum personagem, etc.Curiosamente, tambêm algumas igrejas de imigração entenderam suaidentidade neste sentido e lutaram para mantê-la. Outra linha - que,como se verá, considero mais frutífera - é a que as ciências sociaismodernas nos propõem: a identidade de um povo não é uma entidadeestática e supra-histórica, e sim uma autopercepção, uma "elaboração dapertença social" que é gerada na consciência de um povo na interação decondições objetivas e da criação intersubjetiva. 1àl elaboração é possívelem relação com um "outro" externo (quer dizer, na pluralidade dos povos)e com "outros" internos (quer dizer, na pluralidade dentro de um povo, emnosso caso, a pluralidade religiosa). Por isso, a identidade ê criada a partirdas identidades: não há um único modo de ser, como, por exemplo,argentino (ou "rnetodista", se vamos ao caso). E ê a interação dessesdistintos modos que permite criar símbolos sufícíentemente amplos paraincluir essa diversidade. Alguns trabalhos recentes colocaram esse temade forma sumamente interessante e frutífera; entre outros: COHEN, The
150 Rostos do protestantismo latino-americano
Symbolic Construction ofCommunity, 'Iavístock, 1985; KERrZER, RitualPolitics and Power, New Haven: Yale Uníversíty, 1989; Craíg CALHOUN(Ed.) , Social Theory and the Politics of Identity, Oxford: Blackwell, 1994;Anthony GlDDENS, Modemity and Self-Identity, Cambridge: Polity, 1991;Jorge lARRAÍN, Ideology and Cultural Identity, Cambrídge: Polity, 1994.
36 Numerosas passagens proféticas apresentam basicamente a mesma mensagem. A esse respeito, há um bom resumo no artigo sobre "os gentios"(ethnon) na seção do M, escrita por BERTI-IAM, in: Gerhard KITTEL (Ed.),Tbeologicel Dictionexy of the New 1estament, Grand Rapids: Eerdmans,1964, v. n. p. 364-369.
37 Krister STENDHAL argumentou - com razão, em minha opinião - quenão se deve ver a discussão da relação entre judeus e gentios como "umcaso" no qual Paulo "aplica" a doutrina da justificação pela fé, e sim, pelocontrário, como o problema crucial em tomo do qual o apóstolo defineessa doutrina: Paul Among Jews and Genttles, Philadelphia: Fortress,1964, p. 2, 36-37.
38 É claro que não se trata aquí de resumir ou analisar esse complexo temateológico. 1àlvez a discussão favorável mais cuidadosa se encontre na obrade Helmut TI-llELlCKE, Theologische Ethik, Tübíngen: J. C. B. Mohr (paulSiebeck), 1955, especialmente v. n. Dietrich BONHOEFFER reinterpretouo conceito de forma mais dinâmica em sua doutrina dos "mandatos":Ethik (editada postumamente), München: Kaiser, 1949, seção 11 (há tradução para o português publicada em sucessivas edições pela EditoraSinodal). Emil BRUNNER também trabalha a partir da perspectiva dasordens da criação em sua ética: Das Gebot und âie Ordnungen, 1932Itrad, para o inglés: The Dtvitie Imperative, Philadelphia: Westminster,1947), v. Ill, criticada duramente por Karl BARTI-I em Nem (1934) porconsiderá-la uma perigosa concessão à teologia natural e às pretensõesde um estado racista! Num sentido perigosamente próximo desta últimainterpretação: Paul ALTI-lAUS, Die deutsche Stunde der Kirche, Gõttíngen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1933.
39 Re(li)gion, the Lord of History and the lllusory Space, in: Lutheran \furldFederation Studies: Region and Religion, Geneva: IWF, 1994.
40 ld., íbíd., p. 82.
41 lbid., p. 94.42 Cf. Ernst KÃSEMANN, Gottesgerechtigkeit beí Paulus, in: Joumal for
Theology and the Cburch, Harper, 1965, v. 1, p. 108-109.43 Nils A. DAHL, Studies in Paul, Minneapolis: Augsburg, 1977, p. 109.44 Vitor WESTI-lELLE, op. cít., p. 95 (grifos meus). Fica-me um tema para o
qual o autor não retoma e que me parece importante: é a abertura doespaço próprio pelo reconhecimento da alteridade que se toma epífánícao suficiente, sem a relação dessa "epifania" existencial com uma aberturapara o "futuro de Deus"? Mais simplesmente: pode haver uma teologiabíblica sem esse "metarrelato" que tanto desgosta o pós-modernismo,mas que parece inerente à escatologia bíblica? Não correm, nessa visão, otempo humano e o propósito divino o risco de ficar reduzidos a momentose espaços descontínuos? Possivelmente temos aqui uma conversação luterano-reformada que convém continuar mantendo.
Notas
Capítulo 5:
151
Em busca de uma coerência teológica:a trindade como critério hermenêuticade uma teologia protestante latino-americana
1 RubemADlES, Dogmatismo e tolerância, São Paulo: Paulinas, 1982, p. 170.2 EI futuro del protestantismo, Boletín 'Ieolôgico, n. 42-43, p. 155-157, set.
1991: Kirchlicher Pluralismus und wechselnde Koalitionen, Jahrbuch Mission 1992, p. 19-31; Campo religioso latinoamericano y desafios ecuménicos, Tópicos '90, Santiago de Chile, Centro Diego de Medellín, n. 7, p.11-22, jan. 1995, e Ecumenismo y unidad de la íglesía, palestra apresentada na III Assembléia do ClAI, Concepción, Chile, 1995.
3 Jean-Christophe RUFIN, L'empire et les nouveaux barbares, Mesnil surl'Estrée: Jean-Claude Lattes, 1991.
4 Thomas LUCKMANN, La religión invisible: el problema de la religión en lasocíedad moderna, Salamanca: Sígueme, 1973.
5 Sociedad y Rcligiôn, Buenos Aires, n. 10/11, p. 52-61, jun. 1993.6 Cf. o recente texto de Leonardo BOFF, 'Ieologis: e ecologia, São Paulo:
Paulinas, 1994.7 B. W. HARGROVE, The Sociology of Religion, Chicago: Harlan Davison,
1989, caps. 14 e 15.8 A tendência de setores da Igreja Católica Romana, neste momento apa
rentemente dominantes em sua condução central e no CELAM, a retomar, numa versão atualizada, um novo projeto de cristandade, implica,em minha opinião, uma grave divergência com a concepção evangélica demissão e evangelização, com sérias conseqüências em nível teológico, ecumênico e pastoral. 'Ienteí articular esse problema na apresentação feita àAssembléia do ClAI mencionada na nota 2 e, mais extensamente, numartigo escrito por ocasião do Quinto Centenãrio: Evangelio y cristiandad:apuntes para una reflexíón sobre 500 anos de evangelización católica enAmérica Latina, in: Quinientos afios de evangelización en América Latina,Buenos Aires: IDEAS-REDLA, 1992, p. 93-111, e em Cuademos de 'Ieologia, v. 13, n. 1, p. 27-46, 1993.
9 Juan Luis SEGUNDO, Nuestra idea de Dtos, Buenos Aires: Carlos Lohlé,1970 [ed. em port.: Nossa idéia de Deus, São Paulo: Loyola, 1977]: Ronaldo MUNOZ, El Dios de los cris tianos, Santiago de Chile: Paulinas, 1987[ed. em port.: O Deus dos cristãos, Petrópolis: Vozes, 1986]: José COMBUN, El Espiritu Santo y la liberación, Madrid: Paulinas, 1987 [ed. emport.: O Espírito Santo e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1987]: LeonardoBOFF, A 1hndade, a sociedade e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986.
10 Essa é a perspectiva teológica em que Ronaldo Muüoz (cf. nota 9) desenvolve o tema trinitãrio.
11 Esse tema, central na ênfase calvinista na soberania de Deus, resgatadoe atualizado radicalmente no Rõmerbrief (Comentãrio da Epístola aosRomanos, edição de 1921) de Barth, constitui o eixo das conferênciaspronunciadas em Buenos Aires, na Cátedra Camahan, por Juan A. MACKAY em 1953 e publicadas sob o título Realidad e idolatria en el cristianismo, Buenos Aires: La Aurora, 1970.
152 Rostos do protestantismo latino-americano
12 Éjusto salientar que foi E. Peterson o primeiro (1935) a chamar a atençãopara as interpretações teológicas que, ao reduzir a doutrina da trindade adistinções modais dentro de uma concepção unitária, não só não faziamjustiça à revelação, mas refletiam e legitimavam um modelo de dominaçãoimperial. Veja E. PETERSON, Monotheismus als politisches Problem, reproduzido em Theologische 1taktate, München, 1951; A. SCHINDLER,Monotheismus ais theologisches Problem: Erich Peterson und díe Kritíkder politischen Theologíe, Gütersloh, 1978, e Jürgen MOLTMANN, 'Itinidad y Reino de Dios, Salamanca: Sígueme, 1983, p. 208-212.
13 Convém aqui recordar Martin BUBER, que, em sua breve e já clássicaobra lli y tú (Diaiogisches Leben, 1947) propunha essa interpretação dialogal como base de uma antropologia a partir de uma perspectiva teológica judaica. lli y tú, Buenos Aires: Galatea Nueva Visión, 1956.
14 AGOSTINHO, De 1Hnitate, 1.4.7; Mígne, PL, 42/804.15 Otto WEBER, Grundlagen der Dogmatik, Neukirchen: Neukirchener, 1955,
vol. I, p. 435.16 Juan A. MACKAY, El otro Cristo espeiiol: un estudio de la hístorta espiri
tual de Espana e Hispanoamérica, México / Buenos Aires / Guatemala:CUPSA / La Aurora / Semilla, 1988. A primeira edição em espanhol,tradução de Gonzalo Báez-Camargo, é de 1952.
17 Recordar-se-ào particularmente o debate no Conselho Missionário Internacional e as clássicas obras William E. HOCKING (Ed.), Re-ThinkingMission: A Layman's Enquíry after One Hundred Years, New York: Harperand Brothers, 1932, e a resposta critica de Hendrik KRAEMER The Christian Message in a Non-Chrtstisn World, London: Edinburgh House, 1938,que resumem dois pontos de vista antagônicos. Um bom resumo da problemática e uma bibliografia inicial encontram-se no livro de Paul F.KNITIER No Other Name?, Maryknoll, New York: Orbis, 1985. O mesmoKnitter prepara una obra com vários autores com o título The UniquenessofJesus, que será publicada em 1994/95 pela 'Iemple Uníversíty Press, deFiladélfia. Sobre a questão do "sincretismo" - verdadeiro e falso - parece-me interessante o capítulo 7 de Leonardo BOFF, Igreja, carisma epoder, Petrópolis: Vozes, 1981.
18 EIsa 1AMEZ, Quetzacoatl y la lucha de los díoses, Pasos, San José, CostaRica: DEI, n. 35, p. 9-22, 1991.
19 'Iodo esse conjunto de temas reclama um estudo, uma reflexão e umadiscussão detida e aberta, que já teve início. É claro que fica fora dasperspectivas deste trabalho entrar nesse tema. Permítír-me-ía, contudo,salientar apenas a necessidade de deslindar ao menos dois temas: (1) arelação entre o caráter transcendente da "experiência de Deus" que confessamos e os condicionamentos de toda ordem (históricos, ideológicos,psicológicos, culturais) da "materialidade" dessa experiência e das manifestações doutrinais, litúrgicas ou éticas que toma essa confissão; (2) orisco de confundir, na discussão da evangelização cristã da Amêrica Latina, o problema do "poder" com o da "verdade": denunciar o crime econtra-senso de uma evangelização baseada no poder não significa renunciar à comunicação da "verdade" do evangelho, reconhecendo todasas ambigüidades inerentes a qualquer formulação e comunicação humanas dessa verdade.
20 Uma rápida olhada na pregação evangelizadora dos púlpitos e campanhasevangélicas revela a escassa presença de textos dos evangelhos e, partícu-
Notas 153
larrnente, da vida e dos ensinamentos do Senhor Jesus durante sua vidaterrena. A menção dos evangelhos costuma limitar-se a textos da semanada paixão ou à interpretação isolada de alguns ditos de Jesus. Creio quevaleria a pena fazer um estudo mais cuidadoso desse aspecto da teologiaevangélica latino-americana "em ação".
21 Os trabalhos sobre as condições sociais do penado do nascimento docristianismo, iniciados no final do século passado pela escola de Chicago(Shailer Mathews, Shirley Jackson Case e outros), foram retomados, comas necessárias correções, por autores como Scroggs, Meeks, Theíssen,Horsley e outros. Particularrnente os trabalhos de Horsley e Crossan mostram claramente a raiz do "movimento de Jesus" na tradição profética.Em espanhol temos agora a fundamental obra de J. D. CROSSAN, Jesús,vida de un campesino judio (Barcelona, 1994) [ed. em port.: O Jesushistórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, Rio de Janeiro:Imago, 1994], que resume, atualiza e, ao mesmo tempo, aprofunda osestudos sobre o tema.
22 Entre a ampla literatura a esse respeito destaco os trabalhos de JonSOBRINO, Cttstologie desde América Latina (1976) fedo em port.: Cristologia a partir da América Latina, Petrópolis: Vozes, 1983], Jesús en América Latina (1982) fedo em port.: Jesus na América Latina, São Paulo:Loyola, 1985] e Resurrección de la verdadera Igiest« (1981) fedo em port.:A ressurreição da verdadeira igreja, São Paulo: Loyola, 1982]; Raúl VIDALES, Desde la tradición de los pobres (1978): Juan L. SEGUNDO, Elhombre de hoy ante Jesús de Nazaret (1982, V. Il/l, p. 69-284) fedo emport.: O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, São Paulo: Paulinas,1985]: e a tese inédita de René KRÜGER, Díos y el Mamón: estudiosemântico y hermenéutico del proyecto económico y social en Lucas,ISEDET, 1987.
23 EIsa lAMEZ, Contra toda condena: la justífícacíón por la fe desde losexcluídos, San José, Costa Rica: DEI, 1991 [ed. em port.: Contra todacondenação: a justificação pela fé, partindo dos excluídos, São Paulo:Paulus, 1995).
24 Ricardo ROJAS, El Cristo invtsible. Buenos Aires: Líbrería "La Facultad",1928, p. 343.
25 A opinião mais corrente é que o "Altíssimo" do qual Melquisedeque aparece como sacerdote é a divindade cananéia honrada em Jerusalém antesde sua conquista por Davi e sua aceitação do javísmo. Em todo caso, oque importa aqui é a suposição do autor: o próprio Deus de Israel semanifesta em Melquisedeque abençoando Abraão.
Capítulo 6:
Em busca da unidade: a missão como princípio materialde uma teologia protestante latino-americana
1 Quanto à história dessa formulação, veja o detalhado trabalho históricocritico de A. RITSCHL, Über die beiden Principien des Protestantismus, in:id., Gesammelte Aufsãtze, Freíburg: J. C. B Mohr, 1893, v. I, p. 234-257.
2 Paul TILLICH, Tbe Protestant Era, Chicago: Uníversíty of Chicago, 1957,p. 163 e passím.
154 Rostos do protestantismo latino-americano
3 Rubem ADJES, Protestantismo e repressão, São Paulo: Átíca, 1979. p.40-41 e passírn.
4 Atrever-me-ia a dizer que, se queremos caracterizar o princípio materialda justificação pela fé como o eixo da Reforma. valeria em alguma medidatambém esta observação. Com efeito. creio que há uma grande distânciaentre o uso que a ortodoxia luterana fez do lema articulus stantis etcadentis ecclesiee e a intenção da expressão de Lutero nos Artigos deEsmalcalda, em que essa formulação busca apoio ("De hoc articulo [ajustificação pela fé] cedere aut aliquid contra illum Iergire aut permitterenemo piorum potest, etiamsi coelum et terra ac omnia conuant'). O erroconsiste, em minha opinião. em isolar esse critério doutrinal de sua função na própria teologia crístológíca de Lutero; em função do ''was Cbrtstum treibt", da autocomunicação de Jesus Cristo na "viva vox" da proclamação. a justífícação pela fé tem seu lugar e significado.
5 The Methodist Revolution, New York: Basic Books, 1973.6 Ibíd.. p. 162-163.7 Christian Mission and Social Progress: A Socíologícal Study of Foreígn
Míssíons, New York: Fleming H. Revell, 1897. p. x.8 Felizmente temos hoje um amplo e documentado guia para estudar esse
desenvolvimento na obra de David J. BOSCH, 1tansforming Missioti: Paradígm Shifts in the Theology of Míssíon, New York: Orbís, 1991. A ediçãoem português está sendo preparada pela Editora Sinodal.
9 WilhelmANDERSEN. 7bwards a Ttieology otMission. London: SCM. 1955.p.15.
10 Karl HARrENSTEIN. Das Wunder der Kirche unter den V61kern der Erde,Berlin: Martin Schlunk, 1939, p. 194s.
11 J. C. HOEKENDIJK, Evangelische Miesionszcttschrtit, 1952, p. 9; trad. emInternational Review ofMissions, p. 324-336, 1952.
12 Let the Earth Hear His Voice: Intemational Congress on World Evangelizatíon, Lausanne, Swítzerland, Mínneapolís, Minn.: World Wíde, 1975,particularmente The Lausanne Covenant, p. 3-9. § 1. 6 e 14 e as apresentações na seção m.
13 Veja especialmente Jon SOBRINO. Resurrección de la verdadera tglesia:los pobres. lugar teológico de la teología, Santander: Sal 'Ierrae, 1981.especialmente caps. 1-5 fedo em port.: Ressurreição da verdadeira igreja,São Paulo: Loyola, 1982); Emilio CASTRO. Freedom in Mission: An Ecumenical Enquíry, Geneva WCC. 1985. especialmente caps. 4 e 5.
14 Wilhelm ANDERSEN. op. cít .. p. 10.15 A Titiidede, a sociedade e a libertação. Petrópolis: Vozes. 1986. p. 124.16 'Iodos sabemos que, felizmente. a genuína integridade da fé evangélica de
Billy Graham o levou a superar na prática o reducionismo dessa interpretação. Mas também é certo que não foi suficiente para informar os conteúdos de sua visão acerca do que é "a mensagem" do evangelista.
17 O tema tem preocupado também pastoralmente. A famosa frase de Kierkegaard, "quando todos são cristãos, ninguém é cristão". resume a problemática de uma "cristandade" formal que cobre e anula a falta de umcompromisso de fé pessoal e ativo. É interessante observar que Karl Barthna Igreja Reformada e o padre Hurtado - este sem questionar radicalmente a base doutrinal do batismo de infantes - na Igreja Católica no
Notas 155
Chile propuseram a suspensão da prática do batismo de infantes comourna disciplina necessária para recuperar a autenticidade de uma Igrejadesnaturada por um cristianismo apenas nominal. Veja Karl BARIH, Diekirchliche Lehre von der 1àufe, Zollíkon-Zurích: EvangelischerVerlag, 1947.
18 La priére, problême politique, Paris: Fayard, 1965.
19 A polêmica apareceu em castelhano na publicação Cristianismo de masaso minorias, Salamanca: Sígueme, 1968.
20 Veja especialmente suas obras: 'ieologi« abierta para ellaico adulto: v. 2:Esa comunidad llarnada Iglesía, Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1968 fedo emport.: teologia aberta para o leigo adulto: v. 2: Essa comunidade chamadaigreja, São Paulo: Loyola, 1976]; Masas y minorias en la dialéctica de laItberecion, Buenos Aires: La Aurora, 1973 fedo em port.: Massas e minorias na dialética divina da libertação. São Paulo: Loyola, 1975]: e Acciónpastorallatinoamericana: sus motivos ocultos, Buenos Aires: Búsqueda,1972 fedo em port.: Ação pastoral latino-americana: seus motivos ocultos,São Paulo: Loyola, 1978].
21 O vocabulário paulino sublinha essa dupla dimensão de diversas maneiras. Remeto aqui a um breve comentário de alguns aspectos desse vocabulário em meu livreto Integración humana y unidad cristiene, Rio Piedras Puerto Rico' La Reforma, 1969, p. 42-46, e a algumas interessantespãginas de L. CERFAUX, Le chrétien dans la théologie paulinienne. Paris:Cerf, 1962, p. 243-245.