Rostos do Protestantismo Latino Americano - José Miguez Bonino

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Escola . Superior de Teologia · Rostos do . Protestantismo Latino-Americano JosÉ MiGUEL BONiN

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José Míguez Bonino

Rostos do protestantismolatino-americano

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2003

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Traduzído do original Rastros deI protestantismo lattnoemertceno.publicado pela editora Nueva Creación, Buenos Aires. fílíal de WilliamB. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Míchígan, EUA. ©1995 ISEDET.

Direitos em língua portuguesa reservados à

Editora Sinodal 2003Rua Amadeo Rossi. 46793030-220 São Leopoldo - RS'TeI.: (51) 590-2366Fax: (51) 590-2664E-mail: [email protected] page: www.editorasinodal.com.br

Capa: Editora Sinodal

Traducão: Luís M. Sander

Revisão: Letícia Schach

Coordenação editorial: Luís M. Sander

Série: 'Teologia na América Latina

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações 'Ieolô­gicas/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Thologia (IEPG)da Escola Superior de Thologia (EST) da Igreja Evangélica deConfissão Luterana no Brasil (IECLB).

CIP - Brasil Catalogação na PublicaçãoBibliotecária responsável: Cristina 'Iroller CRB 10/1430

B715r BONINO. José MíguezRostos do Protestantismo Latino-Americano / José Mí­

guez Bonina; Tradução Luís Marcos Sander - São Leopol­do. RS: Sínodal, 2002.

156 p.

ISBN 85-233-0694-3

1. Luteranismo 2. Protestantismo 3. América Latina I. Título.

CDU -284CDD-284

Índice para catálogo sistemático1. Luteranismo - América Latina 2842. Protestantismo - América Latina 284

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Índice

Prefácio................................................................................ 5Capítulo 1O rosto liberal do protestantismo latino-americano............ 9

1. Existe essa relação e que importância tem? 102. Que projeto liberal? 133. Renunciar à herança liberal? 22

Capítulo 2O rosto evangélico do protestantismo latino-americano..... 31

1. Um protestantismo evangélico 312. Crescimento e diversificação 413. Sombras e luzes do "evangélico" 46

Capítulo 3O rosto pentecostal do protestantismo latíno-amerícano ... 53

1. O que representa o pentecostalismo dentro doprotestantismo latino-americano?.............................. 55

2. A teologia do pentecostalismo 593. Uma teologia pentecostallatino-americana?.............. 62

Capítulo 4Um "rosto étnico" do protestantismo latino-americano? 75

1. Como aproximar-nos do tema? 762. Protestantismo de missão e protestantismo étnico..... 793. Nação, etnia e missão 91

Capítulo 5Em busca de coeréncia teológica: a trindade como critériohermenêutico de uma teologia prostestante latino-americana 97

1. O futuro do protestantismo....... 972. O que significa a trindade como critério hermenêutico? 1013. Rumo a uma crístología trinitária.............................. 106

Capítulo 6Em busca da unidade: a missão como princípio materialde uma teologia protestante latino-americana.................. 115

1. A ambigüidade da defíníção missionária. 1172. Por que uma míssíología trinitária? 1223. Missão e evangelização............................................... 126

Notas 135

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Prefácio

O inesperado convite para apresentar as conferências daCátedra Camahan em 1993 foi a tentação da qual nasceu

este livro. Não me pediram nem sugeriram um tema, mas sesupunha que tivesse algo a ver com "algum tema teológico deseu interesse, no qual esteja trabalhando", como se costumadizer em cartas desse tipo. O tema que finalmente defini - soba pressão de divulgá-lo - é de meu interesse. Para ser maisexato: é quase uma obsessão. Porém não é um tema no qualeu tenha trabalhado profunda e sistematicamente. Ademais,ele se move entre a história da igreja, a história da teologia, ateologia sistemática e a interpretação social. Esta imprecisãome liberta de aderir a uma metodologia estrita, mas me expõefortemente à improvisação e à superficialidade. Não obstante,a paixão venceu a sensatez e assim nasceram as conferênciase o livro.

Até começar a embaraçar-me no caminho, na busca dosfios do tema, na necessidade de envolver-me com temas e his­tórias que não conhecia, não me perguntei que espírito maléfi­co me haveria tentado. Não sou dado à introspecção - talvez,por temor do que pudesse vir a encontrar -, mas cheguei àconclusão de que duas interrogações são provavelmente asresponsáveis pela escolha do tema. E ambas são vergonhosa­mente subjetivas. A primeira é a necessidade, que na realidadenunca havia sentido explicitamente, de tomar clara para mimmesmo minha identidade confessional e doutrinal. E aqui tiveuma surpresa. Já fui catalogado diversamente como conserva­dor, revolucionário, barthiano, liberal, catolizante, moderado,liberacionista. É provável que tudo isto esteja certo. Não sou euquem tem de se pronunciar a respeito. Porém, se tento definir­me em meu foro íntimo, o que "sai de dentro de mim" é quesou evangélico. Nesse solo parecem haver-se afundado, ao lar­go de mais de 70 anos, as raizes de minha vida religiosa e deminha militãncia eclesiástica. Dessa fonte parecem haver bro­tado as alegrias e os conflitos, as satisfações e as frustraçõesque se foram tecendo ao longo do tempo. Aí brotaram as ami­zades mais profundas e aí se gestaram distanciamentos dolo­rosos; aí descansam as memórias dos mortos queridos e a

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esperança das gerações que vi nascer e crescer. Se verdadeira­mente sou evangélico ou não, tampouco compete a mim dizê­lo. Nem me preocupa que outros o afirmem ou neguem. O quesou de verdade compete à graça de Deus. Mas pelo menos issoé o que eu sempre quis ser.

Mas as coisas não são tão simples e daqui parte a segun­da interrogação. Que significa ser evangélico? E, ainda porcima, evangélico latino-americano? E ser evangélico latino-ame­ricano hoje? Nada disso é tão claro assim. Por um lado, haveriaque buscá-lo em nossas histórias: de onde viemos? Algumasdessas histórias - por exemplo, as do protestantismo clássicoou as do catolicismo sobre cujo pano de fundo temos definidonossos perfis - estudei com certo cuidado. Outras - particu­larmente as trajetórias espirituais, teológicas e sociais do mun­do evangélico anglo-saxão - conheço só em traços muito ge­rais (e este trabalho me impôs a feliz obrigação de aprenderalgo mais delas). Ainda outras - as de nossas igrejas e movi­mentos religiosos evangélicos latino-americanos - ainda nãoestão escritas, mas vão sendo perfiladas nos trabalhos de umasérie de jovens historiadores. E a teologia dos evangélicos lati­no-americanos? O território é mais inexplorado ainda. Há con­ferências, livros, sermões, revistas nas quais os notáveis destahistória escrevem. São uma rica pedreira, apenas aberta. Mascomo viviam teologicamente sua fé os "simples crentes"? Ondeestão as histórias de vida, as expressões espontâneas diante damorte ou do amor, ou mesmo da vida cotidiana? Como desco­brir as "mentalidades"? Thdo isto está suficientemente fluidopara que alguém se aventure a fazer conjecturas, propor hipó­teses ou imaginar cenários sem a possibilidade (e, portanto,sem a responsabilidade) de sustentá-las cientificamente. O queofereço não é mais do que isto.

Na América Latina "protestante" e "evangélico" (ou "evan­gelista") têm sido sinônimos. Há cerca de 40 anos, Adam F.Sosa questionava essa identificação e sustentava que nossasigrejas eram, na verdade, "evangélicas" e não, protestantes.Minha reação a essa tese foi negativa e procurei demonstrar afirme raiz protestante - "herdeiros da Reforma de Lutero eCalvino" - das igrejas evangélicas latino-americanas. Aindahoje sustento isso, porém é preciso admitir que, no caso damaioria de nossas igrejas, a herança tem sido "re-monetaríza­da" em outras terras e com outros moldes e que a ignorânciadesses processos de mediação foi um grave obstáculo para queos evangélicos nos entendêssemos a nós mesmos como protes-

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Prefácio 7

tantes. Este livro é, em parte, uma tentativa de refletir sobreessa "transferência".

Neste ponto, precisamente, se inscreve minha maior frus­tração durante essas conferências. Decidi circunscrever o te­ma a "três rostos" do protestantismo latino-americano - oliberal, o evangelical e o pentecostal-, excluindo consciente­mente o que tem sido chamado de "protestantismo de imigra­ção" ou "igrejas de transplante" ou "igrejas étnicas". Minhasrazões, que eu acreditava serem suficientes, eram, em parte,que este tema requereria um enfoque e uma metodologia dife­rentes, mas principalmente que eu carecia - e ainda careço ­dos conhecimentos históricos e que não há suficiente trabalhode pesquisa do tema para que se possa falar com certa idonei­dade sobre ele. làmpouco me ocorria que esta exclusão fosseuma negação da importância e significado dessas igrejas. Emuito menos, que não as considerasse uma autêntica mani­festação do protestantismo latino-americano. A reação franca­mente indignada de muitos pastores destas igrejas - queridoscompanheiros de estudo, amigos pessoais com os quais fala­mos com inteira franqueza, colegas no ministério e na docênciacom os quais trabalhamos em toda sorte de tarefas comunstodos os dias - me demonstrou que eu não sabia o que haviafeito. Minha decisão, que eu acreditava ser simplesmente fun­cional e "econõmíca'', não podia ser entendida de outra manei­ra do que como uma tomada de posição. E, mais profunda­mente, demonstrava que, ainda que eu sentisse desde as maio­res profundezas de meu coração e de minha experiência que"pertencemos juntos" como cristãos e igrejas evangélicas, nãosabia dar conta desse sentimento e dessa experiência em ter­mos históricos e teológicos. Por isso, decidi incluir um novocapítulo, não porque haja encontrado uma resposta, e simporque não podemos nos conformar sem tentá-lo: será umcapítulo de interrogações mútuas, algumas talvez irritantes, dequestões abertas, possivelmente de algumas propostas. Tudo,porém, presidido - ao menos de minha parte - pela convicçãode que Jesus Cristo nos constituiu já num sujeito de fé singu­lar e seu Espírito tomou isso visível no caminho e nas tarefasque crescentemente temos feito e fazemos em comum.

A imagem evocada pelo titulo que escolhi é ambígua: são"rostos" distintos porque se trata de diferentes sujeitos? Ousão "máscaras" de um sujeito único e, neste caso, qual é orosto que se oculta atrás dessas máscaras? É a busca de umaresposta que me levou a procurar uma chave hermenêutica

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que permita reconhecer a identidade única, a diversidade reale a convivência dessa identidade em cada uma das manifesta­ções desse sujeito que é "o protestantismo latino-americano".Este é o sentido da exploração teológica dos dois últimos capí­tulos. A analogia trinitária não deve ser buscada, em todo caso,de forma direta ou atributiva - isso seria o pior erro -, masna unidade de intenção, de propósito, na comunhão de amor.O que isto significa em termos das formas e expressões ­doutrinais, institucionais, missionárias, testemunhais, cultuais- dessa unicidade, é uma tarefa que os evangélicos latino­americanos ainda temos pela frente.

Duas observações para terminar esta apresentação e apo­logia pro liber meo. Ao reler o texto comprovo que às vezes otom passa da argumentação e da análise para a retórica e aexortação. Não me desculpo por isso. De que valem argumen­tos e análises se não procuram convencer, se não estão aserviço de uma paixão? Mas não quero ser interpretado comoquem pretende ter respostas definitivas, e sim como alguémque convida a unir-se na reflexão e na paixão por esta promes­sa e esta dor que é o protestantismo latino-americano. Foitambém a serviço desse convite que me permiti uma dose tal­vez exagerada de notas como referências e perguntas abertaspara um diálogo que acredito que nosso protestantismo necessita.

É de bom gosto incluir a esta altura do prefácio os agra­decimentos. Isso resultaria num elenco interminável de cole­gas, amigos, irmãos e irmãs na fé por todo o nosso continentee em outras partes. Não quero deixar no anonimato os trêsinterlocutores e amigos que me acompanharam nestas confe­rências e nos seminários das manhãs, a professora EIsa 1à.meze os professores Antônio Gouvêa Mendonça e Bernardo Cam­pos, cujos comentários, informações e críticas me ajudaram aaprofundar, ampliar e corrigir o texto inicial: sem dúvida, mui­tos traços do esquema inicial dos "rostos" ganharam em preci­são por sua ajuda. E seguramente, a meus três filhos, que mefornecem, amiúde à mesa familiar quando os netos o permi­tem, as informações e referências históricas, sociológicas e bí­blicas que eu não poderia reunir por mim mesmo. Os 48 emque desfrutei da paciência e da impaciência de Noemí, minhaesposa, é algo que está além de todo reconhecimento.

José Míguez BoninoBuenos Aires, março de 1995

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Capítulo 1

O rosto liberal do protestantismolatino-americano

Cristianismo protestante na América Latina? Por que ecomo? Comecemos com algumas opiniões e juízos:

[O protestantismo é] uma forma do capitalismo norte-america­no, elemento conquistador, amigo do capitalista e inimigo dooperário, que se propôs, mediante suas escolas, seus templos eseus esportes, a americanização do povo. 1

O protestantismo latino-americano, portanto, aqui se estabe­lece no bojo de uma invasão estrangeira e traz as marcas dosectarismo e do individualismo que o caracterizavam. Resultou,pois, numa aculturação que nada tem a ver com nossa origeme formação histórica, e num subproduto das conquistas políti­cas, econômicas e culturais dos séculos passados.ê

Creio firmemente que estender a Reforma ao mundo latino­americano de uma maneira inteligente e vigorosa é provocar aslutas de consciência nas quais são forjados e temperados osgrandes caracteres tão necessários para o engrandecimento e asalvação das repúblicas e é levar a ele o sopro vivificador dasliberdades de tal modo conquistadas pelos povos do norte.ê

o controversista católico, o protestante "arrependido" dadécada de 1960 e o entusiasta intelectual evangélico de 1916têm avaliações muito diferentes. Parecem coincidir, porém, noreconhecimento da existência de uma relação histórica e ideo­lógica entre o protestantismo latino-americano, o projeto libe­ral modernizador de setores politicos latino-americanos e ainfluência norte-americana. Qualquer observador isento de pre­conceitos terá de reconhecer nessa relação ao menos uma ve­rossimilhança cronológica. Com algumas especificações queindicarei oportunamente, a segunda metade do século passadoé o lugar histórico onde convergem na América Latina essestrês processos: o projeto liberal, o predorrúnio da presença dosEstados Unidos e a entrada do protestantismo. Que relação osliga, quais são as caracteristicas de cada um desses fatores,

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como avaliar histórica, ideológica e teologicamente esse perío­do: estas são as perguntas que têm sido objeto de apaixonadasdiscussões e que dizem respeito à autoconsciência e à identi­dade do protestantismo latino-americano. Minha contribuiçãoa essa discussão se limita, neste contexto, a colocar três per­guntas: 1) Se existe uma relação, que importãncia históricatem? 2) Onde reside a "afinidade" que teria tornado possívelessa relação? 3) Como respondemos os protestantes a esse"suposto" passado histórico em função de nossa missão aqui eagora?

1. Existe essa relação e que importância tem?

Não vamos nos distrair com a análise do que Jean-PierreBastian qualifica - e descarta- como a "hipótese conspíratíva'",Segundo ela (como o manifesta nossa primeira citação), asmissões protestantes não teriam sido outra coisa do que "aponta de lança", "o acompanhamento ideológico" ou "a legiti­mação religiosa" da penetração econômica, política e culturaldos Estados Unidos na América Latina: em todo caso, uminstrumento consciente e deliberado do projeto neocolonial.Essa é uma teoria que foi esgrimida amiúde por polemistascatôlicos romanos, às vezes em aliança com os nacionalismosde direita, e depois por alguns marxistas, e que perturbou aconsciência de não poucos protestantes "progressistas" na dé­cada de 1960, levando às vezes a repúdios e "confissões" pre­maturos.

Excluindo as coincidências no tempo, muito poucas evi­dências respaldam tal teoria. Seria necessário, inclusive, preci­sar os argumentos de datas, já que o projeto imperialista dosEstados Unidos sô toma corpo na América Latina após a guer­ra de secessão naquele país (1860), quando a presença protes­tante já tinha aqui mais de duas décadas. Em todo caso, éantes à influência e pressão britãnicas desde as guerras deindependência que se deveria atribuir (para o bem ou para omal) a abertura do panorama religioso no continente.

Por outro lado, é muito difícil fazer generalizações. Nãoobstante os elementos comuns que permitem falar de "umahistôria da América Latina", deve-se levar em conta a existên­cia de uma grande diversidade entre as várias nações e regiõesem termos de cronologia, na orientação que tomaram os paísesindependentes, nas formas de sua incorporação ao processo

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neocolonial e nas características e tempos de entrada do pro­testantismo.

Muito diferente - e, em minha opinião, muito melhorfundamentada - é a "hipótese associativa", que o próprio Bas­tian formula nestes termos:

Portanto, a razão de ser das sociedades protestantes na AméricaLatina durante essas décadas tinha menos a ver com o "impe­rialismo norte-americano" do que com as lutas políticas e so­ciais internas ao continente e que se resumia no confronto entreuma cultura política autoritária e essas minorias que buscavamfundar uma modernidade burguesa baseada no indivíduo redi­mido de sua origem de casta e, portanto, igualado numa demo­cracia participativa e representantiva, esperando com isso pôrfim aos privilégios plurísseculares."

Certamente esta tese não impede Bastian de reconhecerque "o surgimento dos protestantismos de maneira sistemáticaa partir da segunda metade do século 19 encontra sua explica­ção na expansão do modelo de produção capitalista, em escalacontínental'", nem que, particularmente por volta de 1916, omovimento missionário adota o lema do "panamericanismo" eque, assim, "se abriu um caminho dificil" pelo qual "o protes­tantismo se misturava com a penetração ideológica norte-ame­ricana no continente"?

O valor desta hipótese reside no fato de reconhecer que aentrada do protestantismo se explica fundamentalmente poruma situação endógena à América Latina (a luta por uma mo­dernização liberal) e que aí o protestantismo se alia com seto­res latino-americanos que impulsionam tal projeto, principal­mente (na tese de Bastian) com as "associações libertárias" dedistintos tipos (lojas maçónicas, associações operárias, gruposde intelectuais, sociedades parapoliticas).

Se aceitamos em princípio essa hipótese (mais tarde fare­mos algumas observações críticas), cabe fazer várias pergun­tas. Em primeiro lugar, quem são os protestantes que assu­mem essa "associação"? Dos estudos que têm sido realizadosultimamente parece depreender-se que se trata, ao menos atéo fim do século 19 - que é o período mais importante para estetema - de alguns missionários vinculados a igrejas mais "libe­rais" (metodistas, presbiterianos e alguns batistas) e a alguns"intelectuais" (alguns dos quais são ex-sacerdotes dissidentes)que ingressaram cedo no protestantismo. O mais curioso é que- como veremos - esses missionários têm uma formação

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espiritual e teológica conservadora e pietista que combina malcom a orientação secularista de seus "sócios" latino-america­nos mais radicalizados. Cabe supor que a "associação" tenhaocorrido com base numa coincidência em afirmar uma socie­dade democrática - para a qual o modelo norte-americanoatraía a todos - e, provavelmente mais ainda, na necessidademissionária de conseguir uma abertura para a liberdade deconsciência e de culto. Os dirigentes latino-americanos, porsua vez, encontravam nessa aliança um apoio para sua lutacontra a oposição clerical às reformas que pretendiam introdu­zir. Não me parece exagerado suspeitar que tenhamos aí maisuma convergência de interesses do que uma semelhança deidéias. Voltaremos a este tema no próximo capítulo. Em todocaso, trata-se das elites de um e de outro lado, enquanto que,no que diz respeito aos novos conversos que entravam no pro­testantismo oriundos de setores margínaís da sociedade (à par­te das repercussões no àmbito da liberdade religiosa), a "asso­ciação" teve muito pouca importância.

Impõe-se, todavia, uma segunda consideração. Não en­contrei estatísticas da população protestante na América Lati­na por volta de 1840, mas as referências e informações dispo­níveis nos fazem pensar em poucas dezenas de milhares, dosquais a maíoria eram estrangeiros ou produto da escassíssimaobra missionária, quase reduzida à colportagem e a "tentati­vas" de missão (Argentina, Brasil) muitas vezes frustradas. Omaior impacto no séc. 19 ocorre na segunda metade do século,com as condições abertas pelos triunfos dos setores liberais.Ainda assim, as estatísticas de 1903 mantêm-se abaixo de 120mil pessoas'', Costuma-se dizer que a presença protestanteteve um peso muito maior do que seu número. Pode ser queassim seja. Porém é curioso que isso só seja dito pelos protes­tantes. Uma consulta aos trabalhos históricos dos autores "se­culares" mais reconhecidos (tanto latino-americanos quantode fala inglesa) mostra uma ausência quase total de referên­das à presença protestante. Mesmo aqueles, como HalperinDonghí ou o norte-americano Burns, que dedicam seções àdiscussão da problemática religiosa da época e à luta pelatolerãncía religiosa, não atribuem ao protestantismo nenhumpapel como "sujeito" desses processos. É lapidar a conclusãode John Iynch: "Não obstante, depois de um século de cresci­mento, o protestantismo era um fenômeno raro e exótico naAmérica Latina. Na luta pelas consciências (minds), a fé cató­lica tinha um rival mais forte [o positivismo)."9 Acaso vamos

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querer atribuir tal vazio apenas a "preconceitos" compartilha­dos por autores tão diversos? Não seria o caso, antes, que,desafiados pela necessidade de "inserir-se na história" e dereivindicar sua legitimidade latino-americana, alguns dos pri­meiros historiadores ou intelectuais protestantes "inflamos"participações ou ações limitadas e circunstanciais de protes­tantes ou o reconhecimento de latino-americanos notáveis [Sar­miento, Alberdi, Juárez, Bel1o, etc.), amiúde em citações seleti­vas e descontextualizadas na totalidade da obra desses auto­res, e as transformamos em chave hermenêutica para enten­der uma história na qual nossa presença naverdade foimarginal?

Ironicamente, essa reivindicação voltaria como condena­ção frente à crise do modelo ao qual se vinculava e, assim,desencadearia sentimentos de mal-estar, culpa e auto-rejeiçãonuma geração posterior.

2. Que projeto liberal?

A historiografia protestante mais recente coincide em si­tuar no Congresso Evangélico do Panamá (1916) um momentodecisivo na autoconsciência do protestantismo latino-america­no. Com duas limitações, concordo com essa interpretação.Em primeiro lugar, trata-se preponderantemente de um con­gresso "missionário"; neste sentido, serve para delinear a con­cepção e estratégia da empresa missionária, que não deve serconfundida com a vida cotidiana, a piedade e a prática dascongregações evangélicas no continente. Em segundo lugar,trata-se de um congresso realizado sob a hegemonia das deno­minações históricas "liberais" (utilizo este termo aqui em suaacepção norte-americana de "progressista" ou "avançado"), in­fluenciadas em diversos graus pela teologia liberal e do evan­gelho social dos Estados Unidos: metodistas, presbiterianos,discípulos de Cristo, Convenção Batista Americana (do nortedos Estados Unidos) e, mais ainda, pelos setores missionários"liberais" dessas denominações. Não estão presentes, ou nãotêm influência decisiva, as missões britànicas ou missões co­mo a Convenção Batista do Sul, a Aliança Cristã e Missionária,a Igreja do Nazareno ou os Irmãos de Plymouth, que já esta­vam presentes na América Latina e desempenhariam um papelmuito importante no período seguinte.

Mesmo assim, o Congresso do Panamá é importante paranosso tema: condensa uma reflexão das missões norte-amerí-

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canas que, desde a Conferência Missionária de Edimburgo de1910 (da qual foram marginalizadas as missões na AméricaLatina), vinha se desenvolvendo e adquirindo forma orgânica.E lança uma série de iniciativas, particularmente o Comitê deCooperação para a América Latina (CCLA) como organismopermanente de coordenação, com os programas de consulta ede publicações, que frutificam em conselhos ou federações re­gionais e diversas formas de cooperação. Por tudo isso convémque nos detenhamos um pouco para situar o Congresso doPanamá de 1916 sobre seu pano de fundo histórico, eclesial eteológico.

1. Estados Unidos e América Latina desde meados do séc.19. O presidente Monroe havia definido em 1823 sua doutrina,resumida na expressão "a América para os americanos", de­pois de diversas vacilações e supostamente como proteção con­tra o risco de que a Europa consolidada da restauração de1814 pretendesse recuperar posições na América Latina. Segu­ramente, entretanto, a doutrina tinha um significado mais am­plo: a reivindicação da América Latina como um espaço desegurança, controle político e hegemonia comercial dos Esta­dos Unidos. A isso se deve, sem dúvida, o fato de haver rejeita­do a iniciativa da Grã-Bretanha de fazer essa declaração pro­tetora em conjunto. As conseqüências não se fizeram sentir deimediato: tanto a concentração na conquista do oeste quantoas crises internas e a preocupação em consolidar o controleterritorial e "a conquista dos mares" (Mahan) ocupavam o pri­meiro plano. Por volta de meados do século, porém, o velholema do "destino manifesto"lO é interpretado como critério darelação com os vizinhos do sul. Negociada a anexação da Fló­rida e das Luisianas, o controle do Caribe (particularmenteCuba e Porto Rico) aparece como a meta imediata. E as estra­tégias para incorporar o 'Iexas, o Novo México e a baixa Califór­nia - já explícitas desde a década de 1820 - vão desde aproposta de compra até a inserção da população e, finalmente,a guerra em 1845.

A penetração econômica é mais lenta, e, até fins do século,a Grã-Bretanha mantém a hegemonia econômica e comercialna maior parte dos paises da América Latina. As mudanças,contudo, iam favorecendo os Estados Unidos. E, ao fmal doperíodo colonial, o modelo mercantilista perdia altura na Amé­rica Latina. Por algum tempo as revoluções de emancipaçãosopraram em seu favor ao branquear e ampliar as relações

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mercantis diversificadas que já existiam, fundamentalmentecom a Grã-Bretanha e a França. As elites crioulas que predo­minaram nas primeiras décadas do século só tentavam trans­ferir em beneficio próprio o monopólio comercial, o patronatoreligioso e a estrutura social coloniais. Durante certo tempoconseguiram fazê-lo sem maiores dificuldades. Em breve, po­rém, tomou-se evidente que o modelo mercantil estava se es­gotando e que era necessário avançar rumo a um modelo pro­dutivo. Isso implicava incorporar uma nova força de trabalhoao sistema econômico, o que significava estimular a imigraçãoe a educação da própria população. Mas tudo isso só podia virde mãos dadas com uma transformação da mentalidade, comnovos hábitos e valores: em suma, com a entrada na "moder­nidade" ilustrada11. E ai topam também com a resistência deum Vaticano católico que assumiu a bandeira da luta contra amodernidade liberal e que, pouco a pouco, recupera o controleda desorganizada igreja latino-americana que ficara à derivaapós as lutas pela independência. A nova elite que vai assu­mindo o poder - em longas e complexas lutas - a partir demeados do séc. 19 representa essa nova visão. Seus sonhosdemocráticos e progressistas e suas necessidades econômicasvão aproximando-a do modelo norte-americano, e, embora ain­da tenha reservas semelhantes às de seus antecessores, vai"gravitando naturalmente" nessa direção, como George Adamsjá o predizia em 1823 12 • A absorção econômica da AméricaCentral ocorre já nas últimas décadas do século; a hegemoniano Brasil e nos paises do norte da América do Sul cresce apartir de fins do século, e o resto, só depois da Grande Guerra(1914-18).

O rosto "conquistador" da política "panamerícana" dos Es­tados Unidos desperta, como sabemos, reações distintas naselites governantes da América Latina. Alguns governos queremconservar relações "européias" como freio de contenção; outrospropõem uma espécie de "panamerícanísmo" bolivariano. Equase todos se manifestam - sinceramente ou não - contrá­rios a intervenções armadas. Por volta da década de 1880 osEstados Unidos começam a redefinir sua política em termos de"panamertcanísmo'' e em 1888 convocam a Washington todosos paises latino-americanos para participar da Primeira Confe­rência Internacional de Estados Americanos. GordonConnell-Smith resume o problema de interpretação nas se­guintes frases lapidares:

'Iem sido um mito cuidadosamente cultivado que o sistema in-

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teramencano. estabelecido de toda forma como resultado daconferência de Washington, se basearta nos ideais de SimónBolivar, e que Bolivar seria o pai do panamericanismo (...) 1àlmito (0.0) não se baseia na realidade; antes, o mito cría suaprópría realidade. 13

Diferente é o "panamerícanísmo" que campeou nos con­gressos continentais do Panamá (1825), de Lima (1847), deSantiago do Chile (1856) e mais uma vez de Lima (1865) ­onde os Estados Unidos estiveram ausentes -, que se enten­deram justamente como tentativas de criar defesas tanto fren­te ao avanço norte-americano quanto ante a ameaça da Euro­pa. A tensão entre essas duas concepções se evidencia na con­feréncia de 1888: a oposição de vários governos (marcadamen­te do governo argentino) frustrou várias propostas norte-ame­ricanas (p. ex., a de uma união alfandegária), e o veto dosEstados Unidos, por sua vez, rejeitou resoluções contrárias ao"direito de conquista" ou à "cláusula Calvo", que teria impedi­do estrangeiros de apelar a outras leis que as que estivessemem vigor no país onde moravam (00') e faziam negócios. A con­duta posterior dos Estados Unidos sob Theodore Roosevelt(1901-1909), William 1àft (1909-1913) e inclusive WoodrowWil­son (1913-1921) não fez senão confírmar os temores latino­americanos. Esta última referência é importante porque o "dis­curso" de Wilson tenta dar uma definição "liberal" do paname­ricanismo.

Neste hemísférío, o futuro será muito diferente do passado (...)Os estados latíno-amertcanos sofreram mais imposições [econô­micas] (...) do que qualquer outro povo do mundo (...) Nada mecausa mais alegria do que pensar que em breve se emanciparãodessas condições e que devemos ser os prímeíros a contríbuírpara tal emancipação (o .•) Devemos mostrar-nos amistosos eentender seu interesse, esteja ele de acordo com o nosso ou não. 14

Mas quando o próprio Wilson destaca que, "como o comércionão conhece fronteiras, (o .. ) a bandeira desta nação deverá iratrás deles [dos comerciantes norte-americanos] para derrubaras portas das nações que não queiram se abrir" e, unindo aação à palavra, exerce pressão sobre a politica interna do Mé­xico, incluindo intervenções armadas, e intervém no Caribe(República Dominicana, Nicarágua e Haiti) , entende-se a con­clusão do historiador norte-americano van Alstyne que fala de"um forte cheiro de farisaísmo na diplomacia norte-americana"15•

2. Estamos assim em 1916. E na América Latina a inter-

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pretação "latino-americana" do Congresso (evangélico) do Pa­namá aparece escrita em português pelo distinto educador bra­sileiro Erasmo Braga e em espanhol pelo professor uruguaioEduardo Monteverde (os documentos oficiais estão só em in­glês) sob o titulo Panamericanismo: aspecto religioso. Ingenui­dade? Cumplicidade deliberada? Convicção genuína? Provavel­mente tudo isso e, ao mesmo tempo, nada disso. Na medida(limitada) em que o protestantismo latino-americano desse pe­riodo está formulado e representado pelo Congresso do Pana­má, fica claro que trata-se de uma aliança explícita com "0

panamericanismo". Mas que panamericanismo? O do discursode Wilson ou o de suas ações? O da Conferência de Washing­ton ou o dos "congressos continentais"? Está claro tambémque os líderes reunidos no Panamá vêem o futuro dos paíseslatino-americanos como um "projeto liberal". Mas que projetoliberal? Ao referir-se aos governos progressistas da segundametade do século 19, Halperin os distingue e divide em liberais(México, Rio da Prata, Uruguai), césaro-progressistas (Vene­zuela, Guatemala, América Central, Equador) e oligárquicos(Colõmbia, Peru, Chile), além do Brasíl-", É claro que a proble­mática neocolonial é entendida e assimilada de maneiras mui­to diversas. O que representa o Congresso do Panamá nessadiversidade?

Não posso me deter aqui num estudo detalhado da histó­ria, dos conteúdos e das conseqüências desse evento. Há umavasta bibliografia na qual se podem encontrar as diversastnterpretações'". É, além disso, creio eu, um fato ambíguo noqual se dão diferenças, divergências e contradições. Não obs­tante, se se toma a opinião das pessoas que evidentementeconduziram o processo preparatório e desempenharam um pa­pel decisivo no desenvolvimento do congresso e na implemen­tação de suas resoluções, é possível achar uma visão bastantehomogênea do protestantismo ilustrado que as inspira.

No que diz respeito ao "panamericanismo", quase não énecessário argumentar em favor da rejeição do "intervencionis­mo" armado. Na verdade, vários missionários já o haviam con­denado explicitamente em relação com a guerra contra o Mé­xico e as intervenções na América Central, e haviam denuncia­do os interesses econômicos ocultos atrás delas. Dez anos de­pois, uma missionária conservadora como Susan Strachan fa­lava, nos conflitos da administração Coolídge com o governomexicano, do esforço "heróico" de Calles, que "merecia as ora­çôes e a simpatia de todo cristão verdadeiro em sua luta gígan-

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tesca". E acrescentava: "Ele se defronta com dois inimigos in­saciáveis, sendo um deles a igreja de Roma e o outro as empre­sas comerciais estrangeiras rivais que causaram os transtor­nos políticos do México durante as duas últimas décadas, "18

'Iudo isso, entretanto, é para eles uma excrescência de umarelação cultural, política e econômica que deve ser aberta, ge­nerosa e fecunda para ambas as "Américas", Uma das seçôesdo informe do Congresso do Panamá'? reconhece que "os ofen­sores foram agentes comerciais agressivos, o tipo de concessio­nários que praticam pilhagens, gerentes e industriais cheios dearrogância e insolência, turistas fanfarrôes, representantes di­plomáticos e consulares malcriados e, ocasionalmente, missio­nários complacentes", Considera, contudo, que a maioria dopovo norte-americano não é assim, E o informe, citando oescritor Garcia Calderôn, convida a olhar, antes, "o espetáculodessa outra América, que desdenha o materialismo violento ea cobiça imoral dos homens prátícos'w. Por isso se insiste nanecessidade de um maior contato mútuo, de uma relação quedestrua os preconceitos e dissipe "os temores de que a novadoutrina [panamericanista] encerre o gérmen do predomínioda águia do norte'v'. Não obstante, não vacila em ver na aber­tura do Canal do Panamá ou na recém-inaugurada Estrada deFerro Panamericana fatos auspiciosos que se destacam comopenhor dessa nova relação e não parecem maculados pelo "ma­terialismo violento" ou pela "cobiça",

Seria possivel multiplicar quase ad inlinitum as citaçõesque demonstram que, a partir dessa "ingenuidade", o trabalhodo CClA e de seus operadores na América Latina, pessoascomo Guy Inman, Stanley Rycroft e outros, coloca-se a serviçode uma relação crescente entre os Estados Unidos e a AméricaLatina, em nivel missionário, educacional, social e econômico,São precisamente a unidade e interconexão desses aspectos oque caracteriza a versão de panamericanismo que eles promo­vem, É evidente que as dimensões religiosa, educacional e so­cial -especialmente de assistência - predominam sobre aeconômica, mas não se desligam dela, Só tentam "purificá-la"denunciando suas corrupções, que atribuem a defeitos moraisde alguns de seus agentes e não a razões estruturais implícitasno sistema ou na ideologia que a promove,

No protestantismo norte-americano nem todos comparti­lham dessa "ingenuidade", Num artigo publicado em 1929,Charles P, Miller, na época presidente da Federação MundialCristã de Estudantes, fala da "invasão americana [dos Estados

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Unidos) do mundo" e a vincula à nova "racionalidade" econô­mica que assume o controle da totalidade da vida da naçãonorte-americana. Duas breves citações resumem sua análise esua preocupação:

Seja qual for o futuro que está à nossa frente. o fato concreto éque a estrutura fundamental (framework] nacional neste mo­mento é a da produção e do comércio. É a máquina da indústriae do comércio norte-americanos que nos dá a coesão nacional.O sistema e a técnica que essa máquina gerou são as forçasmais dinãmicas de nossa vida nacional. Numa medida da qualainda não tomamos consciência. essas forças estão mudandonossa mentalidade como indivíduos e nossos costumes comosociedade (...) Este é. em resumo. o quadro dos Estados Unidosvisto pelas nações que sentem o pleno impacto de sua invasãoeconômíca.ê-

A influência dessas idéias não se fará sentir no protestan­tismo latino-americano até duas ou três décadas mais tarde,mas o impacto do evangelho social. unido às preocupaçõesantiimperialistas introduzidas por socialistas e anarquistas nadiscussão política latino-americana. desperta em alguns líde­res protestantes latino-americanos certos questionamentos daênfase "panamerícanísta" do CCIA. Voltaremos a este ponto naseção 3.

3. As incoerências. Segundo minha interpretação, as in­coerências que se percebem no Panamá - e que se transfor­marão em contradições mais abertas em Montevidéu (1925) eHavana (1929) - provêm de duas fontes. A primeira é teológicae tem a ver com uma dupla influência na formação acadêmicae na orientação espiritual dos dirigentes. É verdade. como dizBastian, que muitos dos líderes missionários fizeram seus es­tudos nas universidades liberais da Nova Inglaterra (Harvard,Yale. Columbia) e ai absorveram elementos das ideologias libe­rais progressistas, que em parte interpretaram teologicamentecom o evangelho social que se insinuava em suas igrejas desdeo começo do século. Por outro lado. porém. o movimento mis­sionário ao que se somam está fortemente marcado pelo "se­gundo despertar", com sua soteríología individualista e subje­tiva: a pessoa de John R MoU, talvez a figura simbólica maisimportante em todo esse movimento, é a ilustração mais cabaldessa posição "conservadoramente progressista". Se a visãoliberal os leva a esboçar um modelo missionário socialmentecomprometido, a soteríología missionária os obriga a aplicar de

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imediato a surdina. A discussão surgida no Panamá em tomoao Informe da Comissão de Mensagem, e que levou a umacorreção do tom teológico ligeiramente liberal e progressista daproposta da Comissão, ilustra essa tensão, à qual aludiremostambém no próximo capítulos',

A segunda razão da incoerência surge da sobreposição dedois modelos democráticos debatidos na época entre os teóri­cos politicos norte-americanos. C. B. MacPherson os caracteri­zou muito bem ao distinguir as duas visões "liberais": "a demo­cracia como proteção" e "a democracia como desenvolvimento".A primeira começa quando se dá por assentada uma sociedadecapitalista regida pelo mercado e, por conseguinte, por umcerto conceito de ser humano e de sociedade: o ser humanocomo "maxímízador de utilidades" é definido como o racional­mente mais eficiente, ou seja, o que obtém o maior ganho coma maior economia de esforço. A sociedade não é senão umasoma de indivíduos com interesses conflituosos, já que cadaum persegue essa "maxímízação'', inevitavelmente, em algumamedida, em detrimento dos outros. A formulação filosófica des­sa visão foi o utilitarismo, expresso por Bentham como "o cál­culo de felicidade", a maior felicidade do maior número. Como,porém, medir a felicidade? Visto que é necessária uma medidaquantitativa, o que aparece imediatamente é o dinheiro: "Odinheiro é o instrumento com o qual se mede a quantidade dedor ou de prazer" (Bentham). Qual poderia ser, pois, a funçãodo estado, das leis e do governo senão a proteção da "equani­midade" (fairness) desse processo social? Para tanto, devemassegurar o funcionamento livre e sem travas do mercado, eeste garantirá, na luta da competitividade, a subsistência, aabundância, a igualdade e a segurança. O governo é o "árbitro"que impede os "golpes baixos". O voto, secreto, universal efreqüente, é o instrumento suficiente que assegura que o esta­do cumpra esse papel (em principio, tanto Jeremy Benthamquanto James Mill pensavam num voto limitado ou qualifica­do, mas depois se convenceram de que os problemas que gera­ria tomavam preferível um voto universal).

Desde meados do século 19, entretanto - e isto é impor­tante para nosso tema -, aparece uma nova visão democráti­ca. A classe operária faz sentir seu peso, tanto pelo espetáculode sua miséria quanto pela força de seu protesto. John StuartMill articula sua crítica da seguinte maneira:

Confesso que não me alegra o ideal de vida sustentado pelas

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pessoas que crêem que o estado normal dos seres humanos sejao da luta para vencer as dificuldades: que os empurrões. cotove­ladas e pisadelas no próximo sejam o destino mais desejávelpara a humanidade ou que não sejam senão meros sintomasdesagradáveis de uma das fases do progresso índustríal.ê"

Por conseguinte. uma nova geração de intelectuais - JohnStuart Mill, John Dewey, McIver - propõe uma concepçãodiferente. O humano é um ser que procura melhorar como sermoral e que não quer apenas acumular, mas desenvolver-se. Asociedade. por sua vez, é um processo em busca de maiorliberdade e igualdade. Por conseguinte. a meta é "o avanço dacomunidade no tocante ao intelecto, à virtude, atividade práti­ca e eficácia" (Stuart Mill). A partir dessa posição, critica omodelo de seu pai (James Mill), mas não rejeita o capitalismo.Como avançar, então. rumo a uma sociedade diferente? A per­gunta toma-se-lhe difícil: propõe qualificações do voto que as­segurem uma melhor distribuição dos recursos, a criação decooperativas, os partidos políticos representativos. John De­wey dá uma contribuição decisiva: o caminho é a educação. Oobjetivo é "desenvolver uma geração melhor". Esta é a linhaque predomina no Panamá em 1916.

4. O projeto educacional missionário. Não é necessanauma grande perspicácia para perceber que é na educação. mui­to mais do que no nível político e social, que o protestantismomissionário liberal encontra uma possibilidade de integrar seusdiversos fios: isso corresponde a uma tradição protestante quepode ser remontada até a Reforma e que desempenhou umpapel fundante no protestantismo norte-americano: a ênfasena educação e na criação de escolas; oferece uma mediaçãoinobjetável para com o social sem obrigar a pronunciar-se so­bre regimes políticos ou definições econômicas; permite recon­ciliar a ênfase "conversíonísta" com a preocupação ética e anoção liberal de um desenvolvimento pessoal - "uma educa­ção que forma caráter" é uma frase que permeia os programaseducacionais protestantes em todo o continente - e ofereceum amplo campo de colaboração com as novas elites ilustra­das da América Latina, obcecadas com a "redenção do povo"mediante a educação. As duas vertentes de aproximação aotema da educação que se esboçam no projeto missionário es­tão magnificamente ilustradas nas discussões registradas novolume 1 do informe do Panamá-", De um lado estão os queencaram a missão educacional como um caminho para a decí-

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são religiosa; do outro. os que esperam a conversão como umdesenvolvimento do crescimento "integral" do aluno em conta­to com a educação de uma escola evangélica. Uns e outros.porém. coincidem - ao menos nessa etapa da história do pro­testantismo no continente - em que aí se cumprem os diver­sos propósitos da "colaboração missionária" para a redençãodo povo e a construção de um novo nuturo para as naçõeslatino-americanas. Jether Pereira Ramalho resumiu muito bem- referindo-se ao Brasil- a inspiração do projeto educacionalprotestante em toda a América Latina:

A proposição central deste trabalho [sua pesquisa) é demonstrarque os princípios e as características da prática educativa intro­duzidas no Brasil. no final do século passado e nas primeirasdécadas do atual, pelos colégios oriundos das denominaçõeshistóricas do protestantismo, provenientes de missões norte­americanas, só podem ser interpretados na medida em que sãorederidos: à versão ideológica que os inspira mais profundamen­te e lhes dá sentido e às condições estruturais da nova socieda­de em que vão atuar.ê"

3. Renunciar à herança liberal?

1. O fracasso do "projeto liberal": Rubem Alves o chamoude "projeto utópico" do protestantismo na América Latina edescreveu seu naufrágio no "protestantismo da reta doutrína'V."Utópico" pode ter aqui o significado positivo de um "princípioprotestante" libertador que - como disse Tillich - foi incapazde abrir um caminho para a cultura ocidental que a levassealém da crise da Grande Guerra. E pode também ser lido nosentido negativo: uma expectativa sem fundamento na realida­de. destinada a espatifar-se contra esta. No primeiro sentido ­assim o leram os apologistas do protestantismo latino-ameri­cano - sugerimos que suas conquistas foram historicamentemuito pouco significativas.

Provavelmente deve-se concluir que. como projeto históri­co concreto para a América Latina desde meados do século 19e por mais de um século. o projeto fracassou. Olhando retros­pectivamente. o que sempre tem a sabedoria dos fatos irrepa­ráveis. é possível perceber que o fracasso era inevitável. Emprimeiro lugar. por causa da ambigüidade de uma posturateológica que não permitiu aos dirigentes missionários. em suamaioria. integrar o projeto em sua autocompreensão teológica

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e por causa de uma insuficiência analítica que não percebeu aincompatibilidade entre o projeto da "democracia do desenvol­vimento humano" e a razão econômica e política que ditava ofuncionamento do "panamericanismo" dos Estados Unidos. Emsegundo lugar, porque não chegou a penetrar mais do que empequenos grupos dos membros de suas próprias igrejas e me­nos ainda nas igrejas das correntes de santidade e fundamen­talistas que entraram em grandes ondas na América Latina jádesde o final do século e de alguma maneira impregnaram todoo protestantismo latino-americano. Em terceiro lugar - e fun­damentalmente - porque o projeto em si era inviável na Amé­rica Latina: as próprias elites que o auspiciaram topavam comimpossibilidades devidas à estrutura social e à sua própriaambivalência e acabaram derrotadas ou absorvidas no modelocapitalista dependente.

'Ialvez os primeiros anúncios da crise se fazem sentir porvolta de 1930 e têm importància para nosso tema. Com efeito,a crise do capitalismo mundial de 1929 teve conseqüênciasdecisivas para a vida social, econômica e política da AméricaLatina. A recessão econômica expulsou milhares de trabalha­dores rurais, que buscaram um espaço nas cidades ou nosnovos centros mineradores e industriais. O desemprego, a ano­mia social e a pobreza das massas despertaram o protestosocial e abriram as portas aos movimentos socialistas. A res­posta política do sistema foi o "populismo": a tentativa de geraruma mudança social mediante uma "aliança" de setores popu­lares e elites culturais e econômicas latino-americanas, dentrodas estruturas do sistema capitalista.

A corrente protestante mais tradicional, ainda sob o im­pulso do movimento missionário, tentou encontrar sua identi­dade e definir sua missão nessa nova situação como - usandoos termos de Bastian - "uma via humanizante que instauravaos valores fundadores numa sociedade dístorcída'?". "A inde­pendência política", escrevia em 1942 o destacado missionáriopresbiteriano W. Stanley Rycroft, "não trouxe liberdade para opovo, no verdadeiro sentido da palavra. Essa liberdade aindaprecisa ser conquistada, e está intimamente ligada à difusãodo cristianismo evangélico."29 Essa visão otimista se repete nosescritos de alguns dos jovens líderes protestantes da AméricaLatina: p. ex., os mexicanos Alberto Rembao e Gonzalo Báez­Camargo, o brasileiro Erasmo Braga, o argentino-norte-ameri­cano Jorge P. Howard e missionários como Samuel Guy Inrnane Juan A. Mackay. Entre a brutalidade de um capitalismo

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desalmado e o materialismo de um comunismo que pregava aluta de classes, esses líderes viram o protestantismo como aguarda avançada dessa democraciaverdadeira, socialmente pro­gressista, modernizante e participativa da qual falamos na se­ção precedente. A ênfase do "evangelho social" na redençãosocial e a dos evangélicos na transformação da pessoa pare­ciam, assim, encontrar sua unidade.

Nessa linha foram criados, nas décadas de 1930 a 1950,"conselhos" ou "federações" de igrejas na maior parte dos pai­ses do continente. Seus propósitos declarados eram a coopera­ção na publicação de literatura, a representação comum anteas autoridades públicas, a defesa da liberdade religiosa e acooperação na evangelização e na educação cristã. Indicamosacima quais eram a teologia e a ideologia dominantes. Umvigoroso programa de publicações difundiu traduções de al­guns dos clássicos antigos e moderno da teologia protestante;fundaram-se seminários interdenominacionais em Cuba, naArgentina e em Porto Rico e renovaram-se os seminários deno­minacionais de outros paises, nutrindo uma geração de lídereslatino-americanos com mentalidade ecumênica e preocupaçãosocial que haveriam de emergir nas décadas de 1950 e 1960. Aprimeira Conferência Evangélica Latino-Americana (I CELA),convocada e orientada a partir do próprio continente, reúne-seem Buenos Aires em 1949.

Entre os líderes desse protestantismo não faltam aquelesque avançam mais um passo com uma critica decidida aomodelo burguês capitalista e uma simpatia explícita pelo so­cialismo democrático. O próprio Mackay critica um informe doConselho Missionário Internacional "que reproduz os desejos einteresses da sociedade burguesa ocidental que vê o cristianis­mo como a alma de sua cultura, mas não como seu juíz">'.Essa atitude critica aparece nos movimentos ecumênicos dejovens que, em 1941, se juntam como União de Ligas JuvenisEvangélicas (UIAJE), cujo primeiro congresso adota como le­ma "Com Cristo, um mundo novo" e conclama a uma lutacontra "o presente sistema capitalista baseado na opressão ena desigualdade económica" e a favor de "um sistema de coo­peração". Opções semelhantes aparecem nos documentos dasdécadas de 1930 e 1940 das assembléias da Igreja Metodistado Chile, do Uruguai e da Argentina. Na década de 1940 apa­recem os "movimentos estudantis cristãos" inspirados pela Fe­deração Mundial Cristã de Estudantes, orientada principal­mente a partir da França nessa mesma linha e que posterior-

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mente, junto com a participação no movimento ecumênico dopós-guerra e a partir de uma teologia mais européia, geraria asnovas lideranças das décadas de 1950 e 1960.

Enquanto isso, outra ala do protestantismo, nascida dosmovimentos de santidade do final do séc. 19 nos Estados Uni­dos, seguiria uma direção diferente. No próximo capítulo ten­taremos analisar esse desenvolvimento e as tensões que delese originaram. Agora, porém, precisamos dar mais um passona configuração da fisionomia do "rosto liberal". 'Iodo o mundocoincide em situar por volta de 1960 um momento critico quePrien chama de "a crise dos estados oligárquicos nacionais",Dussel de "a crise dos estados independentes" e "a crise dalibertação" e Bastian de "a crise do capitalismo dependente:entre a resistência e a submissão". A promessa do projetodesenvolvimentista no qual o protestantismo - e boa parte do"mundo ilustrado" latino-americano - havia depositado suasesperanças se desvanece no fracasso dos planos de ajuda daAliança para o Progresso de Kennedy e dos projetos do Conse­lho Econômico para a América Latina (CEPAL). Fica claro queo "socialismo utópico" que campeia nos documentos da ULAJE- e nos movimentos universitários vinculados à "reforma uni­versitária" - requer uma política mais radical e uma funda­mentação ideológica mais sólida. O rosto faminto das grandesmaiorias mostra-se nos cinturões de miséria que começam aformar-se em tomo das grandes capitais. Faz-se necessáriauma nova forma de analisar a dinàmica das sociedades "peri­féricas". A "teoria [sócio-econômica] da dependência" propõeuma versão própria da análise marxista, mudanças radicaisdas estruturas da relação entre mundo desenvolvido e mundodependente e um projeto socialista adequado às condições do'Ierceíro Mundo.

No ambiente religioso, a consciência dessa crise repercuteprofundamente na América Latina. A renovação teológica eeclesial do Vaticano II é relida na ótica da "transformação dasociedade" na Assembléia Episcopal de Medellín em 1968 e apreocupação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) com "ospaíses em vias de desenvolvimento" converte-se em "transfor­mação estrutural" na Conferência de Genebra de 1966, onde adelegação latino-americana desempenhou um papel importan­te, e na América Latina no movimento "Igreja e Sociedade naAmérica Latina' (ISAL) de 1960. A nova liderança que surgeassume essa perspectiva, apoiada numa visão teológica de ins­piração barthiana, que procura combinar uma teologia bíblica

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de redenção numa ótica histórica com um chamado à militân­cia ativa nos movimentos sociais e políticos de libertação. Noprotestantismo, os nomes de Valdo Galland, Jorge César Mot­ta, Richard Shaull, Emílio Castro, José Míguez Bonino e outrosabrem o caminho que Rubem Alves, Julio de Santa Ana, Gon­zalo Castillo, Jether P. Ramalho, Raúl Macín e outros, de diver­sas maneiras e com matizes diferentes, tentarão desenvolver.Do conjunto dessas linhas - e de desdobramentos análogosno catolicismo - nasce por volta do fmal da década de 1960 achamada "teologia da Iíbertação'?".

2. O que fazer com esse fracasso? A geração de 1960 per­cebe claramente o fracasso do modelo desenvolvimentista e,ante o nó górdío representado pelo entrelaçamento do idealhumanista e do capitalismo dependente, recorre à técnica deAlexandre Magno: desembainha a espada e corta o nó: liberda­de, democracia, desenvolvimento tomam-se termos pejorati­vos; uma interpretação unilateral da "teologia da crise" e umaaplicação igualmente parcial da análise marxista alimentam oque chamarei, mais modestamente, de "estratégia da ruptura".Sem dúvida, fatores psicológicos também intervêm na durezacom que a ruptura se manifesta em alguns setores do protes­tantismo (e também do catolícísmo): a tomada de consciênciade que a busca de justiça a que a realidade humana do conti­nente e a fé cristã os haviam impulsionado fora ideologicamen­te manipulada num sistema de opressão produz uma crisepessoal justamente nas pessoas mais lúcidas e comprometidasdessa geração. O núcleo central dessa crise, porém, é dadopelos elementos objetivos que indicamos. Descartado o "pro­testantismo liberal" e vedado teológica e ideologicamente o "pro­testantismo conservador", ocorre nesse protestantismo umacrise eclesial e teológica que ainda não superamos.

É essa a única resposta possível ao "fracasso" histórico doprojeto liberal? A partir de setores do pás-modernismo, e ironi­camente por razões opostas às da geração de 1960, esta pareceser a única possibilidade. Acabou-se a época dos "grandes re­latos" que assinalavam a senda da história e inspiravam autopia do progresso; as ideologias morreram e chegamos aofím da história. 'Iarnbém aqui a estratégia de Alexandre é aúnica proposta para resolver o problema da crise da moderni­dade liberal. 'Ialvez seja mais penoso ainda o estado de ânimode cinismo desesperançado que alguns "revolucionários" dadécada de 1960 parecem assumir ante o poder avassalador e

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aparentemente invencível do neoliberalismo e da "nova ordemeconômica internacional".

É necessário reconhecer que a crise do modelo desenvol­vimentista e a instalação do neoliberalismo implicam gravessuspeitas ante toda tentativa de recuperar a "herança huma­nista" que acompanhou e freqüentemente legitimou os proje­tos desenvolvimentistas. Surgem perguntas como: por que oprojeto "liberal" se deixa absorver tão facilmente e se coloca aserviço dos interesses de uns poucos? Vale a pena fazer oesforço de separar os aspectos "humanistas" do projeto refor­mista e tentar reintegrá-los em termos de uma "opção pelospobres"? Não há uma contradição inerente à totalidade ideoló­gica que o liberalismo representa e que impossibilita essarecuperaçãoê-? Será que o liberalismo alguma vez foi "demo­crático"?

Há, entretanto, também outras perguntas igualmente ur­gentes. Em algum momento, Gustavo Gutiérrez caracterizou ateologia da libertação dizendo que "a meta é a liberdade; alibertação é o caminho". Se a liberdade é sempre - historica­mente, ao menos'< - "um alvo móvel" e a libertação - tam­bém hístorícamente - um caminho sem fim, temos direito dedesvincular uma da outra? Ou, antes, é possível desvinculá­las sem desvirtuar a libertação que buscamos? Como crentes,a "liberdade" que Jesus Cristo nos oferece gratuitamente nãoé a raiz e o sentido de nossa participação na históríaê-? Épossível renunciar à "utopia da liberdade" sem destruir a espe­rança e tirar de qualquer busca de libertação sua qualidadehumana?

Pessoalmente, proponho a "estratégia da paciência": o es­forço de "desatar os nós", tentar desenredar os fios e preparar­nos para voltar a tecer, no tear de um momento históricodistinto, uma compreensão social e teológica nova.

Para tanto, creio que é indispensável recuperar alguns dosfios do tecido da modernidade. Creio, em outras palavras, queo chamado "projeto liberal" representa o encontro e a interaçãode fatores diferentes e parcialmente divergentes que geram umatensão não resolvida ao longo da história moderna. Com efeito,não é novidade para ninguém que a "modernidade" herda umacomplexa série de tradições nas quais se misturam de diversasmaneiras os "grandes relatos" bíblicos e das culturas mediter­râneas, que, por sua vez, em certas ocasiões assumem e reín­terpretam vários elementos. A variedade e multiplicidade de

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sentidos dessa herança clássica são ilustradas. p. ex .. na for­ma diversa em que ela é "recuperada" pelo Renascimento ita­liano e pelo da Europa do Norte. Thdo isso se processa no novomolde cientifico, tecnológico e econômico que vai se forjandona Europa nos séculos 16 a 19, até desembocar no capitalismoindustrial burguês. As grandes palavras de sua ideologia co­brem as ambigüidades dessa história. Os grandes lemas damodernidade - a razão. a liberdade, o indivíduo, a democracia- são, de fato, entendidos e vívídos de maneira diversa - e,mais ainda, ambígua - nesse longo processo histórico gestadodesde o fmal da Idade Média. Assim, a razão é a capacidadehumana de discernir e discernir-se a partir de si mesma e semse submeter a uma autoridade externa, e é também a raciona­lidade técnica que Vai resolvendo os problemas, a serviço da"maxímízação'' da produção e da utilidade. A liberdade é odireito inalienável de cada ser humano de dispor de si mesmo,a suma dos direitos definidos secularmente na Carta da Revo­lução Francesa e, em termos teístas, na norte-americana, e é,ao mesmo tempo, o direito "sagrado" à propriedade que só éprotegido no mercado livre da competitividade. O indivíduo é apessoa-sujeito que assume sua singularidade e responsabili­dade sem se perder na coletividade, e é também o indivíduoauto-suficiente que defende sua privacidade como uma forta­leza dentro da qual se protege de todos os demais. A sociedade,por conseguinte, pode ser entendida como o "pacto" defensivodos interesses contrapostos dos indivíduos (como diria Hob­bes) ou como uma estrutura humana insita que conduz àbusca do bem comum; a democracia é o governo "representa­tivo" que assume e substitui a sociedade, e é, ao mesmo tem­po, a organização "partícípatíva" na qual a comunidade organi­za sua convívêncía.

Os "e", "também" e "ao mesmo tempo" do parágrafo ante­rior poderiam ser multiplicados. Mas não constituem nem vi­sões equilibradas nem elementos integrados numa sintese. Sãomotivos em conflito que disputam o controle da superestrutu­ra ideológica das sociedades e, inclusive, convivem conflituosa­mente num autor ou em autores muito próximos, como bemse pode perceber numa comparação cuidadosa, p. ex., entre Ateoria dos sentimentos morais (1759) e A riqueza das nações(1776) de Adam Smíth, ou na já mencionada divergência naconcepção de liberalismo entre James Mill e seu filho JohnStuart Mill. Na crescente maré do triunfo da (suposta) liberda­de econômica, da razão técnica, do individualismo competitivo,

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da democracia puramente eleitoral, naufragaram as utopiashumanistas desde Kant até os socialistas utópicos - e pode­ríamos dizer: até Marx!

Na Améríca Latina, o protestantismo liberal ficou presonessa tragédia de duas maneiras: seu discurso "liberal" foiempregado - na escassa medida de seu peso social - comolegitimador do capitalismo interno e externo mais selvagem e,ao mesmo tempo, reinterpretado em suas próprias fileiras co­mo "ideologia" da ascensão social ou como "teologia da prospe­ridade". Isto é o que percebemos com razão na década de 1960.Acaso isso significa que os protestantes de hoje devemos repu­diar essa herança? Minha resposta é: não. Não, porque é aherança protestante da liberdade, da identidade própria e daresponsabilidade da pessoa na solidariedade da comunidade,da autonomia da razão humana (da razão da vida e do amorativo) na construção da cidade terrena, da racionalidade daesperança numa história da qual Jesus Cristo é Senhor. O quecabe é a re-interpretação dessa história como história em bus­ca de um futuro, justamente como resposta à negação de todofuturo, implícita e explícita na ideologia e na política do "Iim dahistória". Reclamamos a herança do protestantismo utópico daqual fala Rubem Alves, mas a reclamamos reinterpretada e re­vivida em nosso tempo, com os marginalizados de nossas so­ciedades e, a partir deles, como protesto frente ao suposto "fim

da história" e como programa na construção de um novo pro­jeto histórico de nossos povos.

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Capítulo 2

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1. Um protestantismo evangélico

1. Os iniciadores do protestantismo "crioulo". Eles sãomissionários - em sua maioria norte-americanos ou brítâní­cos (entre estes vários escoceses) - que chegam à AméricaLatina a partir da década de 1840. É notável perceber que, nãoobstante sua diversidade confessional - metodistas, presbite­rianos e batistas em sua maioria - e de origem - americanae britãnica -, todos compartilham um mesmo horizonte teoló­gico, que se pode caracterizar com o termo evangélico - utili­zado aqui em sua acepção anglo-saxã! -, que Marsden definemuito bem dizendo que os evangélicos são "pessoas que pro­fessam uma total confiança na Bíblia e se preocupam com amensagem da salvação que Deus oferece aos pecadores pormeio da morte de Jesus Cristo", e acrescentando: "Os evangé­licos estavam convictos de que a aceitação sincera dessa men­sagem do 'evangelho' era a chave para a virtude durante a vidapresente e para a vida eterna no céu e que sua rejeição signi­ficava seguir o caminho largo que termina nas torturas doinferno.'?

'Iodos podemos reconhecer nesse resumo a teologia dopietismo e do Grande Despertar (ou avivamento) do séc. 18 queassociamos aos nomes de Wesley e Whitefield na Grã-Bretanhae de Jonathan Edwards nos Estados Unidos e que permeia amaior parte do protestantismo anglo-saxão e seguramente atotalidade de seu etos missionário. Este é o pano de fundoteológico da missão à América Latina em suas origens na se­gunda metade do séc. 19. Porém essa teologia havia sofrido,desde meados do século, influências significativas que vale apena salientar. Se fixamos - mais ou menos arbitrariamente- o ano de 1870 para fazer um balanço, teriamos de anotar aomenos os seguintes dados:

O segundo despertar, na década de 1850 (que podemosassociar com nomes como os de Iyman Beecher, TImothy Dwight

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e sobretudo Charles Finney), que é continuado com a grandecruzada evangelizadora e missionária de Moody, tem caracte­rísticas próprias:

a) Corresponde ao crescimento da população urbana, pe­netra nos colleges e nas universidades e em setores comerciaisda classe média e tem um prestigio religioso que não havia sidoalcançado pelo "avivamento" rural ou de fronteira.

b) 'Ieologícamente supera - o que já se percebe no próprioJonathan Edwards - o conflito entre a tradição calvinista e aarminiana: na prática, admite-se um certo livre-arbítrio (sejaqual for a forma em que é justificado teologicamente) e umapossibilidade de crescimento na santidade.

c) Ao individualismo já acentuado do primeiro despertaracrescenta-se um alto grau de subjetivismo: alguém chamou aatenção para a diferença entre a hinódia do "primeiro desper­tar", centrada na admiração pelo aspecto inefável da graça (p.ex., "Mil vozes para proclamar", de Charles Wesley, e até Ama­zing grace, de John Newton), e a do segundo, que se detém nadescrição dos maravilhosos sentimentos que essa graça desperta:

No seio de minha alma uma doce quietudese espalha inundando meu ser,uma calma infinita que só poderãoos amados de Deus conhecer.Paz, paz, que doce pazé aquela que o Pai nos dá;peço-lhe que inunde para sempre meu sercom suas ondas de amor celestial [e de pazl."

d) O despertar religioso e a reforma social (revival andreform) são vistos como estreitamente aliados: os evangelistasda década de 1850 assumem, junto com a causa da moraliza­ção da sociedade, a da abolição da escravatura e a do combateà pobreza.

Concluída a guerra civil norte-americana (1865), o paísentra numa era de otimismo que contagia também o evangeli­calismo. Os Estados Unidos aparecem agora como um modelodestinado a inspirar o mundo inteiro: o despertar evangélico,os avanços sociais e a educação se apóiam e sustentam mu­tuamente. Nas palavras de um orador na reunião internacio­nal da Aliança Evangélica Mundial (Nova Iorque, 1873), o ver­dadeiro cristianismo

(...) educa os jovens, alimenta o faminto, cura o enfermo. Rego-

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zíja-se com o crescimento dos elementos da civilização material.Sustenta. porém. que todos esses elementos são subordinados.O método dívino de melhoramento humano começa no coraçãodos homens mediante a verdade evangélica, e dali se expandepara fora até renovar a totalídade.?

Não me parece necessário provar que são essa teologia eessa piedade que alimentam em grande parte a visão dos pri­meiros missionários e que delas se nutrem os primeiros con­versos. Muitos dos testemunhos destes últimos são bastanteestereotipados e seguem uma espécie de "estrutura" que cor­responde ao esquema básico da "teologia soteríológíca evangé­lica". Como mostra, compare-se um "resumo" da mensagemcom o testemunho de uma mulher convertida, e atente-se aomesmo tempo para o caráter polêmico e o conteúdo "evangéli­co" que ambas as citações complementam:

O cristão evangélico crê: que Jesus veio ao mundo para salvaros pecadores. Que Jesus os salva se eles querem ser salvos.'Iodos nós somos pecadores; logo. ele quer salvar a todos. Não háoutro Salvador. Jesus tem todo o poder. A igreja não pode salvaruma alma. porque é necessário que a pessoa renasça.5

"Com sua morte Cristo me abriu as portas do céu. Seu san­gue derramado lavou todos os meus pecados. Jesus pagou tudoo que eu, pecadora, devia à justiça de Deus. É por sua mediaçãoque alcanço o perdão. e não por meio do confessor..."6

Sem dúvida, tanto na mensagem dos missionários quantona consciência das novas congregações aparecem diferençasque se devem à peculiar situação desse "campo missionário".Uma é a prioridade da polêmica anticatólica que ocupa o maiorespaço nas publicações evangélicas da época, tanto repetindoos argumentos clássicos da controvérsia dos séculos 17 e 18quanto denunciando os casos de corrupção. obscurantismo ouautoritarismo da Igreja Católica Romana ou de seus represen­tantes. Por isso se faz necessário munir os novos conversos deconhecimentos e argumentos para esse conflito, de modo quehá uma ênfase muito grande no estudo da Bíblia e das doutri­nas fundamentais do protestantismo. Outra é a peculiar im­portância que se dá à Bíblia, que é exaltada ao mesmo tempocomo "arma" na "luta contra o erro" e como um meio indispen­sável para a evangelização. Em ambos os sentidos, a Escrituraé concebida como tendo um "poder", uma certa eficácia intrín­seca que repreende, convence e converte. Finalmente, a neces­sidade de encontrar o espaço social para sua vida e seu desen-

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volvimento pessoal e comunitário obriga o crente a preocupar­se com as condições políticas que assegurem essa possibilida­de: liberdade religiosa, secularização de serviços como a edu­cação, o matrimõnio ou os cemitérios, não-discriminação notrabalho e na educação e inclusive preocupação com a condi­ção dos mais pobres. Porém deve-se notar que essa "dimensãopública" não é integrada de maneira direta no horizonte de suafé: ela fica como "uma conseqüêncía" derivada ou como umaesfera "independente" em que se deve dar um testemunho dehonradez e responsabilidade. Quando as condições sociais nãomais parecem exigir essa defesa das liberdades, ela facilmentese desprende dessas posições.

2. Mudanças no horizonte teológico evangélico. As idéias eatitudes centrais dessa teologia evangélica modelam a fé e avida das congregações que vão se formando ao longo dessasdécadas e dominam o protestantismo crioulo pelo menos até aGrande Guerra. Pouco a pouco, entretanto, irão se insinuandodiferenças, ainda só larvadas em 1916, cujos efeitos têm mar­cado até hoje o protestantismo latino-americano. Para enten­dê-las temos de voltar ao cenário norte-americano. Ali, o pro­testantismo "evangélico" se confrontava, desde o último terçodo século, com os desafios de uma cultura urbana reclamadapelo secularismo, de uma cíêncía que colocava em xeque "ver­dades" cristãs consideradas fundamentais e do liberalismo teo­lógico - chamado genericamente de "modernismo" - que pa­recia ameaçar a confiabilidade da Escritura e elementos cen­trais da crístología e soteríología evangélica. Como responde oprotestantismo "evangélico" a esses desafios? Examinemos bre­vemente três aspectos: a "piedade" evangélica, a ética social ea "defesa da fé".

a) O que caracteriza a piedade evangélica nas últimas dé­cadas do século 19 é "o movimento de santidade", que Mars­den chamou de "a vida vitoriosa". Combinam-se aqui, comosalientávamos acima, a tradição wesleyana da santificação eperfeição cristã e a tradição calvinista da luta permanente con­tra o pecado. Uma e outra, porém, coincidem em afmnar um"batismo do Espírito Santo" que permite ao crente libertar-sedo poder do pecado e viver uma vida cristã "vitoriosa". "Serrepleto do Espírito", ser "totalmente consagrado" e expressõessemelhantes constituem a linguagem simbólica dessa piedade,tal como a expressa, por exemplo, o conhecido hino de Havergal":

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Que minha vida inteira esteja consagrada a ti, Senhor, que mi­nhas mãos sejam guiadas pelo impulso de teu amor;que meus lábios possam dar testemunho de teu amor e euofereça meus bens somente a ti, Senhor;que meu tempo todo esteja dedicado a teu louvor e minha mentee seu poder sejam consagrados a tua honra;toma, ó Deus, minha vontade e faze-a tua, nada mais;toma, sim, meu coração e nele terás teu trono.

No mundo da tradição wesleyana, a insistência na expe­riência da "segunda bênção" - a plenitude da santificação ­originou divisões frente ao que alguns consideravam um aban­dono da busca de santidade por parte das igrejas metodistas:nascem assim, além do Exército da Salvação (Inglaterra, 1880),a Igreja de Deus (Anderson, ID, 1880), a Aliança Cristã e Mis­sionária (1887), a Igreja do Nazareno (1908) e a Igreja dos Pe­regrinos (Pilgrim Holiness Church, 1897). A importãncia dessedesenvolvimento para nosso tema pode ser percebido na datada entrada (de 1897 a 1914) de todas essas igrejas na AméricaLatina. No mundo evangélico de tradição reformada, o movi­mento de santidade tem o mesmo vigor e ênfase. Derivou,entretanto, numa maior preocupação doutrinal, como indicasua participação na formação do grupo das "Conferências deKeswick" e das Prophecy Conferences, antecedentes imediatosdo fundamentalismo.

b) David Moberg falou da "grande inversão" que aconteceno evangelicalismo norte-americano nas primeiras décadas doséculo 20 no tocante à preocupação social". Com efeito, dafórmula revivel and reiorm se passa à alternativa "evangeliza­ção ou reforma social". A inversão parece ocorrer em duasetapas: a primeira (de 1870 a 1900) significa uma retração daesfera política como meio de reforma social, concentrando-se aação no âmbito privado da caridade; na segunda, como dizMarsden, "toda preocupação social progressista, política ouprivada, toma-se suspeita para os revivalistas evangélicos e érelegada a um lugar mínímo'". Os historiadores costumamsugerir três causas: 1) O triunfo do modelo metodista de san­tidade relega a tradição reformada muito ligada nos EstadosUnidos, desde o início, à "construção do reino de Deus" naAmérica. Por conseguinte, a santidade fica desconectada dahistória para transformar-se numa experiência subjetiva, indi­vidual- ou, quando muito, da pequena "comunidade" -, quereduz o serviço a uma ação caritativa; 2) a experiência caris­mática de viver numa espécie de "nova díspensação", numa

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"era do Espírito Santo", leva a desprender-se da "história dasalvação", a relegar o Antigo 'Iestamento e, por conseguinte, apreocupação reformada com uma lei divina que deve ser ins­taurada também na sociedade: o predomínio crescente do pré­milenarismo e o subseqüente dispensacionalismo introduzidopor Nelson Darby e difundido amplamente no mundo evangé­lico consagram essa separação ao "dar por terminado" o perío­do do "governo humano" e o período da lei e ao ver toda ahistória da salvação somente como etapas necessárias para aera presente, cujo único objeto é a pregação do evangelho; 3) aaparição, a partir da década de 1910, do "evangelho social",que é percebido como uma forma do modernismo ou liberalis­mo teológico e produz uma rejeição nos setores evangélicos,pois estes o vêem como a negação de doutrinas fundamentaisda fé. C. S. Scofield, um dos mais bem-sucedidos promotoresdo díspensacíonalísmo, dirá sem rodeios que a única respostade Cristo à escravidão, à intemperança, à prostituição, à distri­buição desigual das riquezas e à opressão dos fracos é pregara regeneração mediante o Espírito Santo'",

c) O que chamamos de "fundarnentalísrno" é um fenôme­no complexo, e seria ridículo tentar abordá-lo em poucas li­nhas. Não obstante, é imprescindível dedicar-lhe alguma aten­ção aqui, com uma advertência: referimo-nos só ao fundamen­talismo como fenômeno do mundo evangélico no final do séc.19 e no início do séc. 2011. A primeira observação histórica deimportáncía é que será bom distinguir uma primeira etapa quese estende mais ou menos até o começo da Grande Guerra e,posteriormente, uma segunda, muito mais espetacular. Carac­terizamos estas etapas como "a defesa da fé" e "a defesa daAmérica cristã", respectivamente.

1) O fundamentalismo aparece como a reação de uma féque se sente ameaçada pelo avanço do secularismo e de umaciéncia que nega a realidade do sobrenatural. Como respon­der? Basicamente se delineiam duas respostas, que refletemduas concepções filosóficas. Uns distinguem o nível da ciênciado nível da religião: o primeiro é o âmbito dos fatos objetivos; osegundo, o da experiência subjetiva, do sentimento: podería­mos dizer que temos ai a expressão da herança romántica nacultura norte-americana. Outros, por sua vez, conhecem umúnico critério de verdade: o dos fatos e dados concretos darealidade, que qualquer pessoa pode observar diretamente: es­ta é a tradição do "realismo do senso comum" de origem esco­cesa que predominou no pensamento norte-amerícano '".

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Para esta última perspectiva é indispensável ter uma fonteinfalível, específica e irrefutável para afirmar os fatos do mun­do sobrenatural com a mesma força com que o "senso comum"afirma os do natural. Para isso se recorre à Escritura. Porconseguinte, quando as descobertas da ciência parecem entrarem conflito com as afirmações da Escritura, trata-se de umahipótese cientifIca equivocada ou de uma interpretação erradada Escritura. As distintas formas do "concordísmo'' ou da "har­monização" partem desta premissa. Além disso, o único crité­rio que pode ser aplicado à leitura da Bíblia é que os textosdevem ser lidos e interpretados "literalmente" (a menos queeles mesmos indiquem outra coisa). "Literalmente", é claro,significa neste caso de forma positivista, como dados objetivoscomprováveis pela observação e razão (portanto, num sentidomuito diferente daquele que esse termo tem em seu uso me­dieval ou no uso que dele faz Lutero). Inspiração plena e verbal,interpretação literal e inerrãncia são as muralhas indispensá­veis para proteger a verdade da fé. Eis aqui o fundamentalismo.

Uma posição desse teor parece exigir total intransigência:não pode haver espaços indefInidos entre a verdade e o erro.No movimento de avivamento e santidade nem todos estavamdispostos a essa íntransígêncía. Moody, por exemplo, susten­tava: "Mantenhamos a verdade, mas, por todos os modos, man­tenhamo-la com amor e não com um porrete (c1ub) teológico."13Na tradição reformada, entretanto, tais concessões parecemindiferentismo: "É-nos dito constantemente que não ataque­mos, mas que simplesmente ensinemos a verdade. Este é ométodo do covarde e conciliador, não foi o método de Cristo",responde 'Iorrey, um dos colaboradores de Moody. Essas duasposições sempre existiram dentro do fundamentalismo, mas éevidente que a segunda teve maior ascendência e definiu atéhoje o perfil do fundamentalismo.

Na combinação de literalismo e intransigência se insere otema do prê-milenarismo. Como tal, a interpretação pré-míle­narista sempre existiu na discussão escatológica. Ela salientaque vivemos antes do milênio, o qual inaugurará um tempodiferente, que precede o estabelecimento do reino de Deus (comdiversos esquemas na sucessão e natureza dos acontecimen­tos vindouros). A opinião dominante no protestantismo emgeral e no norte-americano em particular havia sido majorita­riamente pós-mílenarísta. Segundo ela, as promessas apoca­lípticas do milênio, o derramamento do Espírito, a luta contrao anticristo (freqüentemente identifIcado com o papa ou os

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chefes de outras religiões) teriam lugar neste tempo e levariama uma era de ouro: o milênio de Apocalipse 20, a última épocada história presente, em que o Espírito seria derramado e oevangelho seria difundido por todo o mundo, e em cujo finalaconteceria o retomo de Cristo e a história chegaria a seu fim.Na disposição otimista e secularizante da segunda metade doséculo 19, a visão pós-mílenarísta se "naturaliza" cada vez mais:o caminho do Reino passa a ser identificado com o progressohumano e os avanços da cultura norte-americana são vistoscomo sinais de um futuro em que a conjunção da religião e doprogresso da civilização criará uma nova era de paz, justiça eprosperidade.

Essa "naturalização" da escatologia, da qual se acusava (eainda se acusa) o evangelho social, não poderia deixar de re­pugnar à fé evangélica. Por um lado, esta a via como umanegação da transcendência (dír-se-ía, em termos da época, do"sobrenatural"). Por outro, transformava a revelação bíblicanuma "fantasia poética" sobre a história que o ser humano vaiforjando, e tal coisa é totalmente inaceitável na concepção deverdade do "realismo do senso comum". O pré-milenarismomostra-se, pois, como uma reação contracultural, que tira dacultura secular toda pretensão escatológica: esta história, estasociedade e estas igrejas, na medida em que algumas delas seadaptam ao mundo, são um campo de batalha onde o verda­deiro evangelho tem de ser pregado e os homens e as mulhe­res, chamados a reunir-se na congregação escatológica queespera o "arrebatamento", o começo do milênio ou "a apariçãodo Senhor".

O escocês Nelson Darby dá a essa visão uma hermenêuti­ca bíblica baseada na interpretação dos livros de Daniel e Apo­calipse, que conhecemos como "díspensacíonalísrno'' e que temuma enorme influência em todo o mundo evangélico. Seu dis­cípulo norte-americano C. S. Scofield publica uma tradução daBíblia cujas notas aplicam sistematicamente essa interpreta­ção à totalidade da Escritura e que teve uma enorme difusão.Enquanto que na Grã-Bretanha Darbyiniciou uma denomina­ção independente - as igrejas dos Irmãos de Plymouth ouIrmãos livres e as que delas surgiram -, nos Estados Unidoso movimento vive no interior das igrejas exístentes'<.

A "defesa da fé" toma-se concreta na defesa das Escritu­ras, com as características que indicamos acima. Em certosentido, todavia, a Bíblia não é só um "meio" de defesa da fé,mas um "objeto de fé" que adquire uma espécie de autonomia.

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Em seu livro Fundamentalism, o inglês James Barr o expressaassim:

Para os fundamentalistas a Bíblia é mais do que a fonte daverdade para sua religião (...) Faz parte da própria religião. narealidade é praticamente o centro da religião (...) Na mentalidadefundamentalísta, a Bíblia funciona como uma espécie de corre­lato de Cristo (...) Cristo é o Senhor e Salvador pessoal (00') aBíblia é uma entidade verbalizada, "ínscríturada" ('00) Na medidaem que Cristo é o Senhor e Salvador divino. a Bíblia é o símboloreligioso supremo, tangível, articulado, que se pode possuir e éacessível ao ser humano na terra. 15

Cristo está, é claro, ontologicamente acima da Escritura,mas epístemologícamente está subordinado a ela. Por isso éessencial ter a Bíblia, honrá-la, dar-lhe o lugar de honra nocoração e na mente, mas também na mesa da copa ou sobre ocriado-mudo, ao lado da cama. De alguma maneira, ela é oícone e o sacramento da fé.

2) 1àlvez não seja tão estranho que esse movimento con­tracultural se transforme, especialmente a partir do início daGrande Guerra. na defesa de uma cultura: a defesa da Américacristã. Afinal de contas, todo universo simbólico de ampla di­fusão desempenha um papel cultural na sociedade. Não inte­ressa agora investigar a gestação desse fenômeno, mas tam­bém não podemos passar por cima dele, porque desempenhaum papel significativo no movimento missionário. Dentro dofundamentalismo evangélico coexistiam diferentes atitudes pa­ra com a cultura e a sociedade. Entretanto, predominavam asque poderíamos chamar de mediadoras, representadas por umareafmnação do que se considera a "tradição evangélica norte­americana" ("the old time religion", que deveria ser defendidacontra os avanços do secularismo, do modernismo e da imora­lidade), representada, por exemplo, pelo tristemente famosoWilliam J. Bryan (do "julgamento do macaco", que conhecemosna versão teatral de "Herdarás o vento") e pela linha maisreformada de uma transformação da cultura sobre a base doensino cristão (p. ex., do professor J. Gresham Machen, dePrínceton).

A Grande Guerra (1914-18) radicalizará as posíções, Qua­se até a entrada dos Estados Unidos no conflito, os setoresevangélicos fundamentalistas se mostraram reticentes em re­lação a essa guerra: o mundo caminha para seu fím, as guer­ras nada podem melhorar. A partir de 1917 opera-se uma mu-

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dança. Revisam-se as interpretações milenaristas e ao binõmioclassicamente representativo do anticristo (o papa e os muçul­manos) se acrescenta agora Bismarck. Participar dessa guerratorna-se um dever cristão:

O Kaiser jogou impudicamente a luva: a Alemanha infiel [berçodo liberalismo teológico] contra o mundo crente - a Kulturcontra o cristianismo -, o evangelho do ódio contra o evangelhodo amor. Assim Satanás se personifica: "Eu e Deus" (...) Jamaisos cruzados levantaram o machado de combate numa guerramais santa contra os sarracenos do que a que hoje nossos sol­dados da cruz travam hoje contra o alemão.!"

Três elementos completam o quadro desse fundamentalis­mo no fmal da guerra: o acréscimo do "comunismo bolchevi­que" à trindade do anticristo, substituindo o Kaiser agora der­rotado; a batalha para desterrar da cultura norte-americanatudo que pudesse ameaçar a pura fé evangélica (dai o julga­mento de Scopes contra o ensino da teoria da evolução nasescolas'? e outras cruzadas semelhantes); e a transferência dafrente de combate para o sul agrário que legitima assim emtermos religiosos seu conflito com o norte industrial.

Estamos, é claro, tomando traços gerais: as coisas sempresão mais matizadas e diversificadas do que estes breves pará­grafos sugerem. Porém o quadro me parece fundamentalmentecorreto como pano de fundo para entender aspectos de nossoprotestantismo latíno-amerícano". Como tudo isso afetou asigrejas? Os historiadores costumam falar de três variantes: a)Nas denominações mais tradicionais - episcopais, presbiteria­nos, metodistas, batistas - formam-se setores internos quelevam a batalha para o seio da denominação, com maior êxitoem umas do que em outras, mas sem conseguir "expulsar"sistematicamente seus adversários nem assumir o controle na­cional da denominação (sem dúvida, as batalhas mais durasocorreram na Convenção Batista do Sul-? e nas duas igrejaspresbiterianas maiores); b) Em algumas denominações, parti­cularmente das igrejas de santidade e dos nascentes movimen­tos pentecostais, sua tradição pietista e evangélica foi comoque moldada novamente pela influência fundamentalísta: e c)alguns dos fundamentalistas mais extremos, particularmenteos dispensacionalistas para os quais a "separação" era umartigo de fé, formaram suas próprias denomínaçôes-v.

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2. Crescimento e diversificação

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1) "Atomização dos protestantismos". Jean-Pierre Bastianchama de "atomízação dos protestantismos" o período que elesitua entre 1949 e 1959. Essa caracterização parece-me inade­quada, porque pressupõe uma identidade protestante préviadefinida pela "opção liberal". O erro provém, creio eu, do fatode julgar a "identidade" com base nas opções dos lideres mis­sionários e locais representados nas conferências, e de nãoprestar suficiente atenção ao desenvolvimento da piedade evan­gélica como substrato real do protestantismo missionário lati­no-americano. làmbêm não é melhor a interpretação de Hans­.Jürgen Prien, que tende a englobar a maioria das missõesnorte-americanas sob a qualificação de pietistas, conservado­ras e fundamentalistas, sem esclarecer o que entende especifi­camente sob esses termos. Só Pablo Deiros se mostra maismatizado e cuidadoso na análise do penodo que chama de"desenvolvimento" e situa entre 1930 e 196()21. 1àmbêm eleadota uma classificação do protestantismo latino-americanoem três grupos principais: libertacionistas, conservadores efundamentalístasê'. Na apresentação>, contudo, torna-se evi­dente que trata-se, antes, de tendéncias presentes no mundoevangélico como um todo e que se acentuam mais caracteris­ticamente em algumas ou outras igrejas do que de uma típolo­gía que permita distinguir entre estas.

Creio que para abordar devidamente o tema é necessáriopartir do período anterior. E aqui minha tese é que até 1916 oprotestantismo missionário latino-americano é basicamente "e­vangélico" segundo o modelo do evangelicalismo norte-ameri­cano do "segundo despertar": individualista, cristológico-sote­riológico numa perspectiva basicamente subjetiva, com ênfasena santificação.

Ele tem um interesse social genuíno, que se expressa nacaridade e na ajuda mútua, mas que carece de perspectivaestrutural e política, exceto no tocante à defesa de sua liberda­de e à luta contra as discriminações; portanto, tende a serpoliticamente democrático e liberal, mas sem sustentar tal op­ção em sua fé e sem fazer dela parte integrante de sua piedade.

A partir do pós-guerra (1918) começam a ocorrer mudan­ças dentro desse padrão fundamental. A análise dessas modi­ficações é crucial para entender o fenômeno que Bastian qua­lifica como "atomízação". Porém tal análise só será possível namedida em que contarmos com uma pesquisa histórica que

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trabalhe seriamente com a história das mentalidades, as his­tórias de vida, a investigação do cotidiano: em suma, que res­gate a vida objetiva e subjetiva das comunidades evangélicas enão só seus aspectos formais e institucionais. Ainda assim,atrevo-me a sugerir algumas pistas e hipóteses:

1) A partir do começo do século, porém mais ainda depoisda Grande Guerra e aceleradamente a partir de 1930, engros­sam o protestantismo evangélico uma série de missões querepresentam o movimento de santidade e as linhas milenaris­tas e fundamentalistas da Grã-Bretanha e dos Estados Uni­dos. Damboriena, sempre obcecado com esse tema, fala de1.707 missionários estrangeiros em 1916 e 6.361 em 195724 •

Depois da II Guerra Mundial ocorre uma nova onda de entradade missionários. Mas também deve-se contabilizar o fato deque as próprias igrejas "mães", "clássicas" (metodistas, presbi­terianos, batistas) são fortemente influenciadas por esses mo­vimentos. 1bdo o protestantismo evangélico absorve em amplamedida as características dessa "nova onda" evangélica: umdualismo e espiritualismo mais acentuados, uma ética de se­paração do mundo acompanhada por rigidez legalista25 .

2) A "mentalidade" de classe vai se definindo no protestan­tismo evangélico em direção aos nascentes estratos médios. Éneste contexto que devemos situar, em minha opinião, a rela­ção mais profunda entre protestantismo e liberalismo burguês.O aporte do protestantismo evangélico (e talvez também do de"transplante") para o desenvolvimento do liberalismo burguêsna América Latina não consiste tanto na influência política oucomercial norte-americana, nem sequer na transferência deuma ideologia como tal, e sim numa série de atitudes e numhorizonte de significação que são gerados a partir de sua pró­pria conversão e que coincidem com as aspirações de ascensãode certos setores da sociedade e com o etos do liberalismo burguês.

Aqui, as categorias sociológicas de Max Weber ou a análiseestrutural de Durkheim são mais úteis para entender essefenómenos do que a teoria política ou os determinismos econô­micos. Em outro trabalho tentei salientar alguns dados paraesse tipo de análise, que não repetirei agora-", Trata-se, emsíntese, de destacar como o chamado à conversão como deci­são pessoal, total e transformadora, que está no próprio centroda evangelização, significa a recriação de uma identidade, aconstituição de um sujeito que se sente capaz de decidir por simesmo, responsável e livre - "você tem de decidir", ''você está

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só diante do Salvador" -, com uma nova consciência de simesmo que o anima a tomar iniciativas. Em relação ao pente­costalismo, Doug Petersen falou neste sentido de uma "esser­tiveness", uma certa "segurança pessoal" como correlato daexperiência de conversão e dos novos papéis que ele assumena comunidade. Se acrescentamos a isso uma série de valoreséticos, temos o quadro de sujeitos eminentemente preparadospara o modelo líberal-modernízador.

3) Na medida em que essa mentalidade de classe se afírmae que, nas décadas subseqüentes, um número cada vez maiorde evangélicos acedem em realidade a modestas classes mé­dias, a vertente política e social do socialismo e do comunismotoma-se-lhes tão inaceitável quanto a anti-religiosa. Emboranão me seja possível prová-lo, atrevo-me a pensar que, até adécada de 1920, a maioria dos evangélicos inclinam-se porpartidos democráticos entre populares e de classe média quelhes assegurem a liberdade religiosa - os radicais na Argenti­na ou no Chile, os colorados no Uruguai, os liberais na Colôm­bia, o PRI no México -, mas que, a partir desses anos, reagemcada vez mais fortemente contra a ideologia "de esquerda". Aadmiração pela democracia norte-americana, o antícomunís­mo do fundamentalismo dos Estados Unidos a partir da déca­da de 1920 e a ideologia de sua classe os levam nessa direção.Ainda não se voltam para a direita por causa da conexão cleri­cal dessa ideologia, mas não demorarão muito a sentir-se atraí­dos por promessas militares de moral, ordem e estabilidade.

4) A tensão que sempre existiu na aliança do protestantis­mo e do liberalismo como "sócios" na luta pela democratizaçãoe contra os setores conservadores e clericais toma-se maispolémica quando os intelectuais mais moderados de fins doséculo 19 são sucedidos pela dura militância anti-religiosa dolivre pensamento e do posítívismo-". No Rio da Prata, por exem­plo, aparecem, originadas especialmente no anarquismo espa­nhol, traduçôes de Feuerbach, Baur e Strauss, obras de Renane outros autores "modernistas", que circulam em bibliotecasde sindicatos e partidários do socialismo e do anarquismo eque são assumidas por certos intelectuais. Clemente Ricci pu­blica em 1906 no periódico evangélico La Reforma uma tradu­ção da refutação do professor italiano Aníbal Fiori do famosolivro de Milesbo (Emilio Bossí), Jesus Cristo nunca existiu,traduzido para o espanhol em 1905, e toma a publicá-la comolivro em 1922. Escrevendo em 1928, Ricardo Rojas demonstra

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em seu livro El Cristo invisible bastante conhecimento de cer­tos aspectos de alta critica, das obras de Renan, Binet Sanglée outros. Não há por que pensar que isso fosse excepcional. Osexemplos poderiam ser multiplicados, tanto em nível culto quan­to popular. O "combate pela fé" se trava fortemente agora tam­bém nesta frente.

5) Esse é o quadro em que se dá a recepção do fundamen­talismo, e talvez especificamente do fundamentalismo pré-mí­lenarista. Embora darbystas (Irmãos Livres) e outras denomi­nações fundamentalistas e pré-milenaristas (Adventistas, Alian­ça Cristã, União Evangélica) estivessem na América Latina des­de ínícíos do século, a polêmica sobre esses temas só pareceativar-se bastante mais tarde. Inclusive, não aparece entre asdoutrinas fundamentais e só indiretamente no tratamento devários temas num manual de Grandes verdades biblices publi­cado pelos Irmãos livres só em 194428 • Não obstante, já naConferência Evangélica de Montevidéu (1925) a tensão se evi­dencia em dois temas. Um deles é a relação com o catolicismoem função do "status teológico" que uns e outros lhe atri­buíam: para alguns, ele é uma igreja com a qual diferimos emalguns temas; para outros, é uma igreja que se desviou doevangelho; para outros ainda, é uma forma de paganismo dis­farçado ou o anticristo. O outro tema, menos explícito, é aatitude para com o liberalismo teológico, que é discutido àsvezes como o conflito de opções prioritárias pela evangelizaçãoou pela ação social, como critica ao "evangelho social" ou naprópria definição de "evangelho". Quando se define o "evange­lho" no Informe de Montevidéu, começa-se na trilogia harnac­kiana: "a paternidade de Deus" é continuada, em termos pro­testantes clássicos, com "a centralidade de Cristo" e é comple­tada "evangelicamente" com "o pecado e a necessidade de ar­rependímenro">.

6) A intensificação do conflito se dá de diferentes maneirasnos diversos países. Mas já em torno do fim da década de 1940ela é muito forte, e não é arbitrário o fato de Bastian a situarem 1949, ano da I CEIA (Conferência Evangélica Latino-Ame­ricana) de Buenos Aires. A representação ainda é muito ampla.Mas, simbolicamente, irrompem na Conferência representan­tes do Conselho Evangélico Internacional de Carl Mdntyre.Unanimemente a Conferência rejeita sua tática "putschísta"para introduzir-se na reunião, porém não há dúvida de quesua denúncia do modernismo liberal e comunista produz seu

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impacto. No Brasil, igrejas e setores de igrejas logo embarcamno movimento, e em todas as partes - ainda que não se com­prometam organicamente - o fundamentalismo separatistacresce em diversas denominações. A história posterior dispen­sa maiores explicações. Pode-se, caso se queira, segui-la muitobem no manual de história de Deírosê", As organizações pro­testantes de ampla participação - concilios, federação de jo­vens, campanhas conjuntas de evangelização - são desatíva­das ou alienadas. Os setores interessados em manter um tes­temunho social ativo se agrupam (amiúde com o "ecumenis­mo" internacional) e criam suas organizações (MEC, ISAL, MI­SUR CELADEC, etc.). Buscam, de diversas formas, uma arti­culação teológica na teologia dialética ou numa "teologia daação de Deus na história". Porém não conseguem obter a par­ticipação de certas igrejas nem o apoio de boa parte dos mem­bros (e às vezes tampouco das lideranças) das próprias igrejasdas quais fazem parte. Em torno de 1960 se percebe essa crisemuito claramente nas discussões da 11 CELA (1961) e, maisainda, nas da III CELA (1969). O rompimento torna-se logomais evidente: ecumênicos ou evangélicos, CLA! ou CONELA,"direita" ou "esquerda", "evangélicos" ou "líbertacíonístas": nãose aceitam "terceírísmos",

7) Um novo fator incrementa a oposição. As mudançasque, a partir da década de 1950, e mais especificamente apartir do Concilio Vaticano 11, parecem aproximar o catolicismode posições evangélicas, levam as igrejas evangélicas a adotar- estimuladas, sem dúvida, pelo movimento ecumênico ­uma atitude de diálogo. A condenação da Igreja Católica Roma­na como "antíevangélíca" é sucedida por uma aceitação damesma como um possível "sócio" na missão evangelizadora,atitude esta que os setores mais conservadores vêem comouma "traição do evangelho".

O que parece importante destacar- e esta é minha teseneste ponto - é que não se trata de igrejas contra igrejas nemde denominações contra denominações. Embora algumas igre­jas, em alguns países, fiquem voltadas para uma direção ououtra e algumas se alinhem claramente no setor "evangélico",a crise atravessa todas as denominações e até as congregaçõeslocais. A ruptura, interna e externa, parece absoluta e defínítí­va. Até em torno de 1990, a tese da "atomízação" de Bastianparece justificada.

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3. Sombras e luzes do "evangélico"

A "atomízação'' e a "críse de identidade" do protestantismolatino-americano, das quais tanto se fala, estão muito ligadasao desenvolvimento desse processo do "mundo evangélico" e àsrespostas e reações que ele despertou dentro do próprio campoprotestante. Vinculando o movimento evangélico que acaba­mos de delinear e o pentecostalismo, Bastian fala de "um pro­testantismo sectário e mílenarísta" que, entre os anos de 1930e 1949, "irrompeu fora e independentemente do protestantis­mo estabelecido de origem liberal". Deixando de lado nestemomento a identificação do pentecostalismo com o processo doprotestantismo evangélico nas décadas precedentes, parece­me errôneo falar de "a partir de fora e independentemente". Oparentesco de origem, de piedade e até de teologia e a interpe­netração das ondas missionárias anteriores e das novas nosobrigam a considerar o fenômeno como "interno ao protestan­tismo evangélico missionário" na América Latina. O que cha­mei de "o rosto evangélico do protestantismo latino-americano"define sua identidade desde o começo e até o presente. E umaidentidade protestante latino-americana que exclua esses tra­ços não é concebível. Mais ainda: me atreveria a dizer que ofuturo do protestantismo latino-americano será evangélico ounão será. E por isso que interessa tanto tomar consciência deprocessos e direções negativos que ocorreram em nossa histó­ria protestante.

1. A influência do fundamentalismo extremo, divisionistee majoritariamente, ainda que não só, pré-milenarista tem tidoefeitos negativosnoprotestantismo evangélicona medida em que:

1.1) nos tem vinculado aos - e tem sido correia de trans­missão dos - piores traços da ideologia e da política dos Esta­dos Unidos, ao ponto de assumir como próprias as campanhasideológicas reacionárias da "nova direita religiosa" dos EstadosUnidos e apoiar os "regimes de segurança" e as políticas re­pressivas que, durante as últimas décadas, acompanharamessa política (os exemplos do Chile, da Guatemala e do apoiomaterial e ideológico aos "contras" na Nicarágua são ilustraçãosuficiente do que dizemos)?':

1.2) no campo ético, tem desenvolvido os aspectos maisvulneráveis da tradição evangélica e pietista: o legalismo e ajustiça própria, a oposição do material e do espiritual, a "sepa­ração do mundo", que na prática induz a uma dupla moral, os

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critérios sociais e políticos introvertidos (basta que um governopermita ou favoreça as igrejas para que seja aceitável: "Nóstemos liberdade para pregar" costuma ser a resposta ante osreclamos pelos direitos humanos);

1.3) na vida eclesiástica, a "doutrina da separação" temlevado ao isolamento e ao divisionismo.

1.4) O mais grave, porém, me parece ser a distorção dou­trinal que legitima e, ao mesmo tempo, reforça essas tendên­cias. Atrevo-me a dizer que esse tipo de fundamentalismo pro­duziu, em vários sentidos, uma caricatura do rosto autentica­mente evangélíco>:

a) A rica e transformadora experiência da fé se transformana aceitação de um esquema teológico estreito e estereotipado,mal chamado de "plano de salvação", como se se tratasse deum computador em que se tem de tocar algumas teclas paraobter os resultados desejados;

b) o reconhecimento da centralidade da Palavra bíblicavivificada pelo poder do Espírito Santo transforma-se numa"bíblíolatría" baseada numa hermenêutica ao mesmo tempoarbitrária e racionalista, além de estéril e repetitiva: em lugardo rico tesouro do qual "o escriba sábio tira coisas novas evelhas", o estudo da Bíblia vira um exercício de permanenterepetição;

c) em lugar da riqueza da comunhão fraterna em JesusCristo dos collegia pietetis luteranos, das "classes" e gruposmetodistas ou das congregações batistas, o pré-milenarismodespoja a comunidade de fé de todo o seu significado, transfor­mando a igreja numa espécie de "sala de espera" do milênio,sem nenhuma significação soteríológíca:

d) o mesmo esquema transforma a história humana nu­ma série de números e sinais a serem decifrados, em vez de umespaço onde o poder de Jesus Cristo avança e nos convida aparticipar de sua luta: a espera alegre da "parúsía do Senhor"vira uma charada de somas e subtrações de anos e datas.

Certamente participei de cultos e reuniões em númerosufícíente e tive uma relação fraterna com um número dema­siado de homens e mulheres dessa persuasão para não saberque essa é uma caricatura quando se a relaciona com sua vidacristã concreta: vi aí a alegria da salvação, a vida transforma­da, o amor fraterno, a solidariedade e o serviço, o testemunhono mundo e até a participação em causas de justiça e paz.

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Jesus Cristo é maior do que nossas imagens dele, e o Espíritoé mais poderoso que nossas expectativas mesquinhas. E elessão capazes de atuar apesar de nossas distorções teológicas.Mas vi também o mal que essas distorções têm causado: aspolêmicas estéreis, as divisões desnecessárias, as oportunida­des de testemunho perdidas e os "antítestemunhos" na vidaprivada e pública de igrejas e crentes. Nenhuma igreja tem omonopólio desses elementos negativos e nenhuma está total­mente isenta deles. Mas é bom identificá-los dentro e fora denossa casa para corrigi-los.

2. Não há como deixar de perguntar-se: se essa tendênciatem tantos aspectos negativos, como é possível que tenha ob­tido e obtenha tão ampla difusão em nossas igrejas?

2.1) Sem dúvida há fatores sociais - já salientados - quetêm contribuído para isso. Por outro lado, Rubem Alves anali­sou com muita perspicácia aspectos psicológicos ligados à se­gurança e ao sentido de poder que operam nesse fundamenta­lismo, que ele analisa com profundidade no "protestantismo dareta doutrina" de sua própria igreja de origem. 1à.mpouco po­demos silenciar o fato de que a soberba, a acusação indiscri­minada e a zombeteira auto-suficiência com que muitos de nóstemos respondido ao fundamentalismo não fizeram mais doque confirmá-lo.

2.2) Há, entretanto, um elemento positivo que me parecemais importante: confrontados a partir de fora pela crítica des­trutiva das correntes positivistas e atéias e a partir de dentropelas linhas teológicas que pareciam esvaziar de conteúdo a féevangélica, muitos evangélicos viram no fundamentalismo aúnica barreira que podiam levantar ante esses inimigos, a úni­ca defesa de uma fé que dava sentido a sua vida. Se por causada crítica atéia e do liberalismo teológico perdiam a Escritura,de cujas páginas haviam recebido a mensagem da salvação, seo fervor de sua piedade se esfriava numa religião tão formal eritualista quanto a que haviam deixado ao se converter, se orelativismo ético os submergia numa anomia, destruindo asnormas que haviam pautado sua vida, e se o relativismo reli­gioso destruía a motivação e a urgência para comunicar amensagem a outros, o perigo era mortal e era necessário bus­car uma resposta. O fundamentalismo se lhes apresentavacomo uma resposta segura, como um baluarte inexpugnável ecomo uma arma poderosa no combate pela verdadeira fé.

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3. Se houvesse uma saída para essa situação, a respostadeveria surgir do próprio seio da piedade evangélica. Ela chegade duas maneiras. Uma, que olharemos mais de perto no pró­ximo capítulo, é o movimento pentecostal. A outra, à qual de­dicaremos algumas poucas linhas para concluir nossa reflexãodeste capítulo, é o que tem sido chamado de movimento "neo­evangélico", um neologismo que não me agrada: eu prefeririafalar simplesmente da renovação evangélica que na AméricaLatina é representada principalmente pela Fraternidade 'Teoló­gica Latino-Americana (FTL), vinculada com os nomes de RenéPadilla, Pedro Savage, Samuel Escobar, Pedro Arana, Emilio A.Nunez e muitos outros, e que tem tido uma gravitação cada vezmaior no mundo evangélico desde suas origens em 1970. Semdúvida ela também tem sido estimulada e nutrida por movi­mentos no exterior, particularmente em grupos evangélicosdos Estados Unidos e na ala evangélica do anglicanismo brità­nico. Mas tem um rosto próprio e uma história particular emnosso continente. Eu me animaria a destacar o que consideroos traços mais significativos:

3.1) Resgata-se e recupera-se uma tradição evangélica,particularmente ligada ao movimento anabatista dos séculos16 e 17 e ao despertar evangélico do séc. 18 na Inglaterra e nosEstados Unidos (de que falamos antes) tanto na tradição refor­mada quanto na wesleyana, mas também às origens de nossopróprio protestantismo missionário na América Latina. Os tra­balhos de Escobar, Arana e Padilla nos mostram, ao mesmotempo, que não se trata da mera reivindicação de uma tradi­ção, e sim de buscar nela elementos que fecundem uma refle­xão teológica e uma prática evangélica para a América Latinade hoje;

3.2) o movimento começa com uma afirmação da centre­lidade das Escrituras, na dupla frente da critica ao literalismotorpe e à interpretação arbitrária do fundamentalismo e de umliberalismo que parecia reduzir a Bíblia a uma coleção de do­cumentos do passado ou a um repositório de verdades religio­sas e éticas gerais e universais. Na reunião de Cochabamba de1970 isso foi expresso da seguinte maneira:

O assentimento à autoridade da Bíblia poderia ser consideradouma das características mais gerais do movimento evangélicona América Latina (...) Cabe, entretanto, admitir que o uso realda Bíblia por parte da generalidade do povo evangélico latino­americano nem sempre coincide com esse assentimento que adistingue. A Bíblia é reverenciada, mas a voz do Senhor que fala

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nela nem sempre é obedecida (000) Necessitamos de uma herme­nêutica que em cada caso faça justiça ao texto bíblico (...) Amensagem bíblica tem indiscutível pertinência para o homemlatino-americano, porém sua proclamação não ocupa entre nóso lugar que lhe corresponde,33

Desde então o trabalho se aprofundou e ampliou, e podemosvê-lo em comentários bíblicos, trabalhos de tradução e exegese

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Capítulo 3

O rosto pentecostal do protestantismolatino-americano

Em sua famosa obra Siete ensayos sobre la realidad pe-ruana, Carlos Mariátegui sentenciava em 1928:

O protestantismo não consegue penetrar na América Latina porobra de seu poder espiritual e religioso, mas de seus serviçossociais (ACM, missões metodistas da serra, etc.). Este e outrossinais indicam que suas possibilidades de expansão normal en­contram-se esgotadas. 1

Naquela época Maríáteguí tinha razão: o protestantismo jácontava com quase meio século na região; as igrejas estavaminstaladas, mas só haviam conseguido, em nível estritamentereligioso, colher membros no que há anos chamei de "o pósolto na superfície da sociedade latino-americana". O que oescritor peruano não podia adivinhar era que, 20 anos antes,numa cidade portuária do Chile e um par de anos depois nacrescente São Paulo, havia começado a gestar-se um protes­tantismo que, nas transformações sociais que começavam aaparecer quase na data em que ele escrevia, derrubaria a bar­reira que fechava para o protestantismo o acesso às massaspopulares.

O mais notável dos missionários vindos para a AméricaLatina, concordando explicitamente com a critica de Maríáte­guí, sustentava que "nenhum movimento cristão pode ter êxitose não comove as massas (...) Estou convencido de que boaparte do esforço missionário e a obra cristã em geral errarampor tentar alcançar exclusivamente os líderes.'? 1àlvez fosseuma confissão, depois de 16 anos em que tentou, precisamen­te, a "evangelização dos intelectuais". Vinte e cinco anos de­pois, já radicado nos Estados Unidos e depois de uma touméelatino-americana, John A. Mackay - pois é dele que se trata- saudaria o crescimento pentecostal como cumprimento da­quela visão de 1939:

Os pentecostais tinham algo a oferecer, algo que fez vibrar pes­soas letargadas pela monotonia e desesperança de sua exístên-

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cía, Milhões responderam ao evangelho. Sua vida foi transfor­mada, seu horizonte foi ampliado; a vida cobrou um significadodinâmico. A realidade de Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo- que antes não passavam de termos sentimentais ligados aoritual e ao folclore - cobraram novo significado, tomaram-semeios pelos quais se comunicavam luz, força e esperança aoespírito humano. Elas se transformaram em pessoas com umpropósito para viver.3

Entrementes, com efeito, o movimento pentecostal estavabem avançado nesse desenvolvimento que já começava a fas­cinar os estudiosos de fenômenos religiosos.

Todas as histórias do pentecostalismo latino-americanocomeçam com o "despertar" associado ao nome do missionárioWillis C. Hoover, da Igreja Metodista, e à cidade de Valparaíso,no Chile, e continuam com Francescon e as Assembléias deDeus no Brasil. Logo o pentecostalismo se multiplica, diversi­fica e expande, e a partir da década de 1950 se apresenta comoo rosto popular do protestantismo na América Latinas: 14.500em 1938, 1 milhão em 1950, 37 milhôes em 1980. E os entu­siastas falam de 65 milhôes de pentecostais no final do milênio.

Não é meu propósito seguir essa história. Menos aindatentar "típífícar" os diversos "pentecostalísmos". Interessa-nostambém aqui refletir sobre sua piedade e teologia. E para fazerisso vamos limitar-nos ao que tem sido chamado de "pentecos­talismo crioulo", colocando entre parênteses as novas corren­tes pentecostais da última década e os movimentos carismáti­cos dentro das igrejas "tradicionais". Não se trata de negar ousubestimar a importância desses movimentos. Quanto ao pri­meiro, creio que sua diferença em relação ao pentecostalismocrioulo é de ordem qualitativa: inscreve-se em outra dinãmicasocial, relacionada com as condições e estratificações sociaisgeradas na aplicação das políticas econômicas e sociais do"neolíberalísmo'': tem outra racionalidade, mais vinculada aouso de meios criados pela "razão técnica" e empregados "apartir de cima" sobre as novas condições, muito diferente da"criação social" popular do pentecostalismo crioulo. Gera, porconseguinte, outro tipo de adesão, mais ligada ao "consumo debens religiosos" do que à incorporação ativa a um sujeito reli­gioso intencional. Creio, portanto, que requer outros métodosde pesquisa e outras pautas teológicas de avaliação. Não é esteo caso dos movimentos carismáticos dentro de igrejas já esta­belecidas. Estes, contudo, também diferem por originar-se so­bre o pano de fundo de uma prática religiosa protestante ou

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católica já estabelecida e, em geral, dentro dos parâmetros damesma e por pertencer, em sua maioria, a setores de classemédía, com suas características psicológicas e sociais próprias.E de se esperar que um trabalho metodológico mais preciso eprofundo permita entender melhor essas realidades do camporeligioso latino-americano atual".

1. O que representa o pentecostalismo dentrodo protestantismo latino-americano?

Diferentemente do que fizemos em casos anteriores, nãome parece adequado começar com as raízes estrangeiras dopentecostalismo. Não se trata de negá-lo; voltaremos a isso nasegunda seção deste capítulo. Começar aí, entretanto, obscu­receria a natureza do fenômeno que tencionamos evocar. Semdúvida teve importância o contato do pastor Hoover com asprimeiras manifestações pentecostais norte-americanas; curio­samente, por meio de uma carta e um livrinho enviados daÍndia à esposa do missionário por uma amiga missionária quehavia descoberto lá o movimento nascido na Califórnia apenasquatro anos antes. Ou a história do italiano valdense LuígíFrancescon, que havia recebido o batismo do Espírito numacongregação batista de fala italiana de Chicago em 1907 e veioà Argentina e ao Brasil em 1910 como resultado de uma visão.Esses "dísparadores", porém, só fazem despertar uma vivênciareligiosa de setores populares latino-americanos. A sementepoderá ter sido produzida em Los Angeles ou Chicago, mas foiplantada em terra latino-americana, alimentou-se das subs­tâncias vitais desta terra e as novas massas populares latino­americanas comprovaram que o sabor de seus frutos corres­pondia às exigências de seu paladar. Francescon, Hoover ouBerg podem ter tido um sotaque estrangeiro, mas "a língua doEspírito" que falavam encontrou eco nos portuários de Valpa­raíso ou nos operários de São Paulo e foi repetida na linguagemde rotos [integrantes da classe baixa] chilenos, de indígenastobas ou aymaras ou de camponeses centro-americanos.

1. O protestantismo latino-americano não reparou no queestava ocorrendo até que as congregações pentecostais come­çaram a multiplicar-se em sua vizinhança. Para o protestantis­mo "evangélico" elas representavam um desafio e uma tenta­ção. Podiam reconhecer nos pentecostais sua própria teologia,

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suas posturas éticas e seu zelo evangelizador. Porém suas ma­nifestações lhes pareciam estranhas e seu crescimento os as­sustava e, ao mesmo tempo, os seduzia. Alguns se entrinchei­ram em sua identidade denominacional e os rejeitam, outrosse entusiasmam e os emulam. Geraram-se conflitos e, em al­guns casos, rupturas. Batistas e Irmãos Livres sofreram maisagudamente essas tensões, mas elas não estão ausentes entremetodistas, presbiterianos ou Discípulos de Cristo.

2. Para o protestantismo "liberal" o tema foi mais difícilainda. A primeira reação foi decididamente negativa. A IgrejaMetodista do Chile o resolveu drasticamente em 12 de setem­bro de 1909: Hoover e seus seguidores foram expulsos da Igre­ja Metodista e os ensinamentos e práticas de seu movimentoforam rejeitados por serem "antlmetodistas, contrários às Es­crituras e irracionais". "Nesse dia", comenta Hollenweger, "osmetodistas asseguraram a lei e a ordem, mas perderam o co­ração das pessoas. Os pentecostais [chilenos] celebram o dia12 de setembro como o aniversário de sua reforma."6 O tempoapararia as arestas. Durante muitos anos, porém, o veredictoseria o mesmo.

Quando a Igreja Metodista qualifica o pentecostalismo co­mo "irracional", ela levanta um problema que não pode ficarsem resposta. Com base em que racionalidade se emite essejuízo? É possível que haja uma racionalidade que permita en­tender o que ocorre? Uma nova geração do "protestantismoliberal" começa a tentar responder essas perguntas. Seu ins­trumental para fazer isso nasce da racionalidade moderna queconformou esse protestantismo: tenta-se buscar a respostanas ciências sociais.

3. A partir dessa perspectiva aparecem uma série de hipó­teses diversas, mas que têm um denominador comum: vêem opentecostalismo como um movimento que se situa na transi­ção da América Latina de uma sociedade tradicional a umamoderna ou, mais especificamente, na transição de uma socie­dade majoritariamente agrária a uma parcialmente industria­lizada, de uma sociedade rural a uma urbana. A inserção dopentecostalismo nesse espaço de mudança é vista a partir devárias perspectivas. Embora este não seja nosso ponto centralde concentração, convém repassar rapidamente algumas dasteses mais caracteristicas:

Embora haja alguns trabalhos anteriores, curiosamente

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três obras protestantes - duas delas suíças e uma brasileirade origem alemã - são as primeiras que tentam uma análiseprofunda do fenômeno pentecostal.

O professor e historiador Walter Hollenweger? o vê comoum fenômeno típico da cultura das classes populares: trata-sede uma religião oral, que se expressa em símbolos - canto,dança - e emoção, pré-conceitual, da qual não se pode espe­rar uma teologia explícita e sistematizada. A perspectiva em­pregada corresponde a uma visão para a qual há uma espéciede "progresso" de etapas mais primitivas, inarticuladas e pri­márias para outras mais evoluídas, caracterizadas pelo discur­so escrito, capazes de abstração e sistematização. Nesta teoriahá uma certa verdade: parece, com efeito, que tanto no niveldo desenvolvimento psíquico individual quanto no nivel dassociedades, os processos de abstração, conceitualização e sis­tematização levam certo tempo para desenvolver-se. Amiúde,entretanto, essas teorias revelam certos preconceitos: que setrata de um avanço de formas "inferiores" para outras "supe­riores"; que as segundas são mais "profundas" ou têm maiorriqueza do que as primeiras; que a "abstração" capta com maiorprecisão as realidades às quais se refere. Surpreende-nos, en­tão, quando culturas "desenvolvidas" regressam a manifesta­ções que acham mais satisfatôrias,mais completas, mais ex­pressívas''.

Os sociólogos Emilio Willems e Christian Lalive d'Epinayestudam o pentecostalismo chileno e brasileiro seguindo umesquema weberiano: o pentecostalismo funciona como umasaida ou uma maneira de responder à crise pessoal e coletivadesencadeada pela passagem de uma cultura rural tradicionala uma cultura urbana, industrial e democrática. Para Wíllems?o pentecostalismo constrôi um caminho de transição rumo auma nova identidade, modos de vida e estrutura social, e porele os fiéis podem entrar positivamente na sociedade moderna,adaptando-se a ela'", Para Lalíve!', por sua vez, o que o pente­costalismo lhes oferece é um "refúgio", que, ao mesmo tempoque lhes permite viver na nova sociedade, os protege, recriandona comunidade eclesial uma espécie de "sociedade tradicional"substituta. Para ambos, a nova identidade que a conversãoproporciona, a liderança aberta que não se legitima profissio­nalmente, e sim pelo carisma pessoal, e a solidariedade cara acara da comunidade pentecostal são os novos fatores que fa­zem do pentecostalismo uma religiosidade adequada à condi­ção de anomia produzida pela mudança.

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làmbém para o sociólogobrasileiro Francisco Cartaxo Rolim12

a transição é fundamental. Faz, porém, duas críticas impor­tantes a seus predecessores. A primeira é que eles se preocu­pam mais com "o que o pentecostalismo faz" do que com "o queo pentecostalismo é", a saber, um movimento religioso e, por­tanto, postado no plano simbólico, de busca de sentido. A se­gunda é que a transição na sociedade não deve ser vista prin­cipalmente como uma passagem do agrário ao urbano, da so­ciedade tradicional à moderna, e sim como uma transição deum sistema económico para outro, especificamente, para ocapitalismo dependente. Por conseguinte, o problema tem aver com um conflito de classe. Seguindo uma linha marxista,Rolim pressupõe que a identidade dos setores sociais só podeser construída em relação com sua posição na estrutura so­cial. Assim, o pentecostalismo faz parte de uma identidadeprópria de uma "classe indefinida" que se situa entre a classemédia e os trabalhadores-", necessariamente portadora de umaconsciência ambígua. Por isso, quando o compara com as co­munidades de base (CEBs), conclui que, ao passo que o pente­costalismo desloca o reclamo de justiça social para o mundoespiritual (porque não tem uma inserção definida de classe nomundo operário), as CEBs criam consciência social porque sãouma classe "em si e para si". Embora esta proposição sejamuito discutível, o enfoque de Rolim tem o valor de ver o pen­tecostalismo não só como parte de uma dinâmica social, mascomo urna estrutura de significado, como um fenômeno espe­cificamente religioso. 'lenta inclusive definir sua teologia - que,naturalmente, chama de "ideologia pentecostal" - e reconhecea medida de continuidade que existe entre essa religiosidade ea religiosidade tradicionallatino-amerícana.

Mais uma vez devemos perguntar-nos se essas são aspressuposições adequadas para entender um fato religioso. Érazoável pensar que a posição na estrutura social influencie ascaracterísticas do fenômeno religioso. Entretanto, acaso o faráao extremo que Rolim supõe? Ainda dentro da mesma perspec­tiva, os trabalhos de Néstor Garcia Canclini permitem avançarmais. Por um lado, se é verdade que os sentidos construídospor um setor social tentam harmonizar sua visão da realidadecom as condições objetivas nas quais vive, também é verdadeque não se trata de visões "congeladas", e sim de processosdinâmicos, nos quais cada setor luta para impor uma perspec­tiva do mundo que tem a ver não só com sua situação estru­tural' mas também com suas tradições - neste caso, com

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suas tradições religiosas - e com outros elementos: "o que ohomem imagina para além de suas condições materíaís">'. En­tão, "é razoável pensar (...) que devamos considerar a possibi­lidade de que haja outras ordens da vida humana (conflituosasou não) que se expressem através de canais religiosos: o medoda morte ou da doença, o sentido de culpa, a busca de umsentido transcendente para a vida"15. Nesta direção começama aparecer estudos que buscam uma perspectiva hermenêuticado sistema simbólico pentecostal utilizando trabalhos de auto­res tão diversos como Ricoeur, Cassirer, Bourdieu ou Luckmann.

4. Não convém esquecer que todos esses ensaios compar­tilham uma posição comum: olham o pentecostalismo a partirde fora. Mesmo um "observador participante" - como se defi­ne Lalive - continua desfrutando dessa "vantagem", que po­deria garantir uma maior objetividade, e sofrendo dessa limita­ção, o difícil acesso aos dados de uma subjetividade que nãocompartilha e que constitui o próprio cerne daquilo que estu­da. Por isso não é de estranhar que os pentecostais olhem deforma dubitativa esses estudos: por um lado, reconhecem-seneles em sua realidade social; por outro, sentem que não selevou em conta o que é mais decisivo e vital para eles.

Uma segunda ou terceira geração de pentecostais, queconhece a fundo as categorias dos trabalhos realizados e nãorejeita algumas de suas hipóteses, começa a elaborar a partirde dentro uma compreensão mais profunda da experiênciapentecostal. Duas obras recentes me parecem particularmentevaliosas nesse sentido: a pesquisa da equipe chilena apoiadapelo SEPADE que foi publicada em dois tomos com o sugestivotitulo En tierra extreiiew e os trabalhos do encontro pentecos­tal latino-americano realizado no Chile em 199017. Antes de mereferir a eles, entretanto, gostaria de propor o tema da "teologiapentecostal normativa", que nos permitirá - na última parte- um diálogo com essas novas tentativas.

2. A teologia do pentecostalismo

1. Existe uma teologia "pentecostel"? Embora quase todosos autores advirtam que é necessário levar em conta as varia­ções teológicas existentes dentro do pentecostalismo, a maioriacoincide em propor um esquema teológico vertebrado em tomode quatro temas:

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A salvação, pela graça de Deus, obtida pela morte vicáriade Jesus Cristo - o sangue redentor - e recebida pela fé. Aquié central a experiência da conversão, pois, se é verdade que agraça é gratuita e para todos, a experiência pessoal dessa gra­ça, muitas vezes mas nem sempre associada a uma conversãodramática e biograficamente identificável, confere realidade pes­soal à salvação-".

O batismo do Espírito Santo, interpretado como uma "se­gunda experiência", testemunhada pelo "dom de línguas" evinculada à santificação, que às vezes é entendida como umprocesso de crescimento e outras como um dom divino conce­dido numa experiência única e definitiva. Embora nem todosos pentecostais atribuam o mesmo peso ao "dom de línguas",para todos o "receber poder" é central para o batismo do Espí­rito ou no Espírito.

A saúde divina como promessa para todos os crentes, quese toma realidade na comunidade da igreja, habitualmentemediante a oração e a imposição de mãos. Deve-se reconhecerque a ênfase na saúde não é igual nos diversos ramos dopentecostalísmo'v.

Uma escatologia apocalíptica, quase sempre pré-milena­rista, cujos subtemas costumam ser: a ressurreição, a segun­da vinda e o Reino milenar, o juízo e o Reino eterno.

Este esquema não implica a negação das outras doutrinasclássicas da fé. Algumas declarações doutrinais incluem a ins­piração das Escrituras (Assembléias de Deus, 1949), qualifica­da em alguns casos como "verbal" (Igreja de Deus de Cleve­land), a doutrina de Deus e da trindade (Igreja de Deus deCleveland e Assembléias de Deus), uma crístología calcedonen­se (ambos os grupos), o batismo (normalmente de crentes) e aigreja. Mas o que Donald Dayton chama de "o padrão quádru­plo" (Cristo é o salvador, o santificador, aquele que cura e o reique vem) parece representar adequadamente a tradição co­mum do pentecostalísmo-",

2. Devemos incluir este resumo no contexto do que desta­camos no capítulo precedente sobre os "avivamentos" ocorri­dos nos Estados Unidos na segunda metade do século 19,porque ai se acende a faísca do despertar pentecostal. Na ver­dade, toda a teologia do avivamento norte-americano se inscre­ve numa "teologia do Espírito" que se move, por assim dizer,em três etapas que em boa medida se sobrepõem: a conversãocomo obra subjetiva do Espírito na salvação, a santiJicação

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como "segunda bênção" - seja repentina ou gradual, plena oucrescente, às vezes chamada de "batismo do Espírito" - e a"plenitude do Espírito" (ou "receber o poder do Espírito"), asso­ciada no pentecostalismo ao dom de línguas e a outras mani­festações extáticas (às vezes consideradas uma "terceira bên­ção" e outras vezes identificadas com a segunda).

Habitualmente se fala do começo do pentecostalismo comas manifestações do ministério do pastor negro William Sey­mour no salão da rua Asuza em Los Angeles em 1906. Em suaobra clássica intitulada The Holiness-Pentecostal Movement inthe United Ststes", V. Synan caracteriza essa teologia como"armíníana, perfeccionista, pré-milenarista e carismática".

Essa interpretação, porém, foi criticada pelas pessoas quevêem uma dupla orígem-", sendo que um de seus componen­tes está mais ligado à tradição reformada e batista. Seguindoessas interpretações, o pastor Douglas Petersen, missionáriodas Assembléias de Deus na Costa Rica, sustenta em sua tesede doutorado que se deve falar de duas correntes que conver­gem no movimento: a tradição wesleyana de santidade e alinha pré-milenarista e dispensacionalista das Conferências deKeswick e das "Propbecy Conferences" em sua inserção dentrodo movimento de Moody, Thrreye outros evangelistas. A "recu­peração" do dom de línguas, cuja longa tradição conhecemos eque já tivera manifestações nos avivamentos da segunda me­tade do séc. 19, vem a transformar-se num elemento distintivodo pentecostalismo desde o ministério de Parham em 'Iopeka.Kansas (do qual se desliga - em parte devido às tendênciasracistas de Parham - o evangelista leigo Seymour), e a tradi­ção do "empowerrnent" relacionado com a evangelização. saú­de e milagres, mais ligada à linha Keswick e igualmente rece­bida em algumas linhas do desenvolvimento pentecostal. Aconvergência das duas linhas não impede que as ênfases se­jamdistintas entre aqueles que estão mais ligados a uma ou outra.

3. O rápido desenvolvimento posterior, tanto na própriaCalifórnia quanto no leste e em igrejas batistas de Chicago.gera logo uma variedade de igrejas. sejam igrejas novas, sejaentre as existentes no movimento de santidade que assumemo pentecostalismo. Essa é a tradição teológica das diversasigrejas pentecostais que entram na América Latina na primeirametade deste século.

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3. Uma teologia pentecosta1latino-americana?

1. Os trabalhos de Sepúlveda e Campos, que mencioneianteríormente, buscam uma expressão teológica que se originena própria experiência pentecostal latíno-amerícana. Assim,Sepúlveda descreve a teologia pentecostal da experiência chile­na inicial (1910-1960) "no contexto da exclusão", cujos eixosseríam: a) uma visão maniqueísta do mundo (Espírito versusmatéria, céu versus terra, igreja versus mundo, crente versusgentio, Deus versus diabo, bem versus mal e alma versus cor­po), como uma radicalização devida "a uma experiência real danegatividade e crueldade do mundo". "Quando um pentecostaldiz: 'Este mundo nada oferece, só oferece perdição', não estáfazendo uma afirmação dogmática, e sim narrando ou tematí­zando sua própria experiência" (miséria, desemprego, doença,alcoolismo, etc.); b) "determinismo e pessimismo antropológi­co" descreveríam respectivamente a experiência do "homemvelho", incapaz de libertar-se por si mesmo de certos "vícíos",e seu sentimento de impotência frente a forças objetivas quenão pode dominar (personificadas em Satanás e nos demô­nios); c) no pentecostalismo chileno, diferentemente do norte­americano, a afirmação do "poder do Espírito Santo" não cor­responde a uma doutrina e uma codificação, mas a um reco­nhecimento da obra do Espírito em "múltiplas manifestações(...) desde as línguas angélicas até a simples alegria, passandopela dança, pelas visões, etc. (...) a certeza da proximidade e dapresença viva de um Deus perdoador e acolhedor (...) É umaforma de reapropriação social e popular do poder de Deusfrente à sua apropriação sacramental pela Igreja Católica e àsua apropriação racionalista pela pregação do protestantismohistórico"; d) igualmente, frente à apropriação da Bíblia pelos"profissionais da religião", "desaparece toda mediação entre ocrente e a Bíblia que não seja a iluminação e inspiração doEspírito Santo; cada crente pode ter sua própria Bíblia, a ler,compreender e pregar; e) finalmente, há "uma 'igreja militante'na qual se entra pela conversão e à qual se subordina seusinteresses pessoais, da qual se participa plenamente e com aqual se assume um compromisso total"23.

2. Essa teologia é suficiente? Provavelmente, ninguém quetenha lidado ainda que rnínímamente com irmãos e congrega­ções pentecostais vai querer disputar a exatidão dessa inter­pretação. Sepúlveda, entretanto, quer levantar a pergunta acer-

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ca de como o pentecostalismo crioulo pode evoluir teologica­mente frente às mudanças que acontecem na sociedade (emseu caso, o do Chile, frente à abertura social de 1964 a 1973 eà ditadura de 1973 a 1985). É que agora o pentecostal já nãose percebe simplesmente como alguém excluído de um mundodominado por Satanás, e sim como um possível participantede mudanças democráticas que melhorem a condição de to­dos, alguém excluído por fatores históricos (a ditadura) quepodem ser identificados. As pessoas com essa percepção come­çam a ler a Bíblia com outros olhos, a ver a militáncia e amissão cristã de outra maneira, a buscar sua "identidade pen­tecostal" em outros termos. Ao mesmo tempo, porém, essamudança implica uma certa "mediação ideológica" na qual mui­tos temem perder sua identidade evangélica e alguns vêemcomo única saída a defesa do status quo e, portanto, se incli­nam a linhas de participação social e política que o assegurem(com o que, de fato, também assumem uma mediação ideoló­gica de outro signo).

Ocorre-me que haveria aqui uma pergunta a ser colocada:em que medida essas opções ideológicas são resultado da ex­periência geral do povo pentecostal - como parece pensarSepúlveda - e em que medida são opções ideológicas de al­guns dirigentes, que não são necessariamente assumidas pelamaioria? As indicações dos resultados da votação no próprioChile em plebiscitos e eleições em circunscrições com umapresença pentecostal significativa parecem sugerir que nemsempre as opções dos dirigentes, que são seguidas no planoreligioso, também o são no plano político. Essa suspeita podeser corroborada em outras experiências "políticas" de líderespentecostais em outros países latino-americanos. Esta obser­vação, todavia, não invalida a afirmação fundamental de Se­púlveda no sentido de uma evolução da consciência pentecos­tal de um plano predominantemente simbólico para um planomais histórico.

Parece necessário salientar que essa passagem a uma par­ticipação social e política mais marcante tem ao menos trêsformas de expressão, que em alguns aspectos são contraditórias.

a) Por um lado, é evidente que surge nas igrejas pentecos­tais uma consciência social que se expressa em "serviço aosmais necessitados", não mais simplesmente em nível pessoal eocasional, mas de forma institucionalizada, e não mais só aosmembros da igreja, mas à comunidade que os rodeia. Os pro-

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gramas de serviço à ínfãncía das Assembléias de Deus na Amé­rica Central, os serviços sociais, médicos e jurídicos oferecidosem muitas igrejas pentecostais e outros projetos semelhantes- que às vezes sofrem alguma resistência por parte de pasto­res ou grupos mais tradicionais - mostram ao mesmo tempoum avanço institucional e um sentido mais reflexivo de res­ponsabilidade social.

b) Em segundo lugar, várias consultas latino-americanasde igrejas pentecostais - por certo não de todas elas - tenta­ram articular convicções éticas relativas à sociedade, uma es­pécie de "projeto de credo social". O "Encontro de PentecostaisLatino-Americanos" realizado em Salvador, Bahia (Brasil) emjaneiro de 1988, constata o seguinte:

As experiências narradas pelos palestrantes e compartilhadaspor todos os grupos nos permitiram reconhecer como um fatonovo, e já com certa força no universo pentecostal, o surgimentode igrejas pentecostais que, superando uma tendência históricaà marginalização do social, vêm se comprometendo com os quesofrem e descobrindo novas formas de participação socíal.ê?

O encontro seguinte tem lugar em Santiago do Chile emdezembro de 1990 sob o tema "Pentecostalismo e libertação" ese propõe a "propiciar um espaço para debater problemas,desafios e contribuições do movimento pentecostal no contextolatíno-amerícano'w. Dois parágrafos me parecem significativospara resumir essa nova consciência:

O movimento pentecostal se situa, majoritariamente, entre ossetores mais empobrecidos de nossos campos e cidades. A partirdessa realidade, que foi também a realidade a partir da qualJesus situou seu ministério (Lc 4.18), o pentecostalismo desafiauma sociedade em pecado e em franco processo de decomposi­ção. Ao mesmo tempo ele é desafiado pela necessidade de justiçae restauração de nossos povos, e aí ressaltam a marginalizaçãoda mulher, dos aborígenes, dos negros, dos jovens. A esses de­safios são dadas respostas esperançosas, mas também muitasvezes escapistas.

Reafirmamos nossa convicção na obra do Espírito Santo, quese manifesta nos diversos dons; nas experiências de fé que pro­duzem impacto na vida pessoal. na vida familiar, na vida comu­nitária e em toda a criação. transformando-as e enchendo-as daplenitude de Deus. Plenitude de Deus que se mostra na multi­forme graça do Senhor, nas ações libertadoras do Espírito querompem estruturas pecaminosas de destruição. miséria e mortevencidas por Jesus Cristo; nos testemunhos poderosos de mu-

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lheres e homens que, na igreja e fora dela, lutam e trabalhampela "vida abundante", promessa de Jesus, com os pobres, ostristes, os que não têm quem os socorra, os oprimidos.

Thmei a liberdade de destacar frases que, entre outras,marcam um significativo aprofundamento da consciência teo­lógica: uma leitura da Bíblia que vai além do literal e chega auma fusão, que o pentecostal já faz na prática, do horizontesocial do texto e do próprio horizonte social; uma visão dasociedade que leva em conta os aspectos estruturais da vidahumana - opressão, discriminação, decomposição social- evê neles um âmbito de ação do Espírito; e, por conseguinte, aconsciência de que, nesse espaço - fora da igreja - há umagenuína vocação evangélica.

c) Ao lado dessas ações de serviço e dessas reflexões emnivel teológico e social se desenvolve, amiúde sem maior con­tato com aquelas, uma "atividade política" de líderes e grupospentecostais que, inclusive, tem chamado a atenção de obser­vadores não-crentes. Os exemplos conhecidos do Peru nas úl­timas eleições, de parlamentares evangélicos no Brasil, de ten­tativas de formar partidos políticos evangélicos na Argentina eoutros menos conhecidos em nivel de eleição de autoridadescomunitárias e municipais ou de funcionários em postos deindubitável sentido político, para não falar da presença evan­gélica na vida e nas lutas políticas da América Central, consti­tuem uma nova realidade que não podemos excluir de nossaanálíse-".

As observações que fiz a partir de contatos pessoais, geral­mente ocasionais e um tanto superficiais, me sugerem que, namaioria dos casos, não há ainda uma vinculação consciente dafé que professam com a atividade política que assumiram, ex­ceto pela afirmação muito geral de "fazer o bem" ou "procurarajudar" e das possibilidades de evangelização (p. ex., levar aBíblia e a oração para o seio da vida política ou favorecer ascondições de trabalho da igreja e, inclusive, defender a liberda­de religiosa). Não que essas motivações não sejam genuínas e,até certo ponto, legitimas. Porém a falta de mediação entreuma estrutura de pensamento ético-social e uma compreensãoanalítico-critica do âmbito político pode facilmente trair a ho­nestidade das pessoas que participam (quando optam por po­sições ideológicas cujas conseqüências sociais não chegam aperceber) ou dar lugar a uma instrumentalização "teocrática"do poder - habitualmente bastante limitado - dessa partici­pação.

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Por outro lado, a falta de experiência das pessoas queassumem essas atividades - em não poucos casos, pastorescuja popularidade local foi construída a partir de sua liderançareligiosa ou atividade beneficente - as toma muito vulneráveisàs tentações do poder ou às "artimanhas" de uma políticacaracterizada pelo clientelismo. Talvez fosse desejável que acrescente consciência social dessas e de outras comunidadesevangélicas que habitualmente estiveram ausentes da ativida­de política se encaminhasse para a participação em "movimen­tos sociais"; associações de bairro, grupos que se ocupam dediversos interesses da comunidade, associações de consumi­dores, movimentos ecológicos, entidades de direitos humanos,associações de apoio a escolas ou hospitais e muitas outrasformas de participação social em nível local ou nacional. Emprimeiro lugar, porque as metas e propósitos estão mais deli­mitados e especificamente definidos, e os crentes podem parti­cipar mais confiadamente; em segundo lugar, porque as rela­ções são mais pessoais e cara a cara, mais semelhantes ao queestão acostumados na comunidade eclesial; e, finalmente, por­que há um nível menor de corrupção e a luta pelo poder émenos violenta. Neste sentido, os participantes podem adquirirexperiência, ao mesmo tempo que dão uma contribuição paraa vida pública. As constituições mais modernas de nossos pai­ses começam a incluir diferentes possibilidades de participaçãoindireta ou semidireta na vida política, nas quais os evangéli­cos podem começar a canalizar sua consciência social. Certa­mente isso não substitui nem reduz a importãncia e a neces­sidade da vida política, em sentido mais estrito, e da participa­ção partidária, mas talvez proporcione um espaço onde as vo­cações políticas específicas possam despertar e se desenvolver.

3. É claro que nem todo o pentecostalismo, nem sequertodo o pentecostalismo crioulo, compartilha dessa nova cons­ciência e se abre espontaneamente a uma participação social epolítica. Ocorre que temos também aqui expressões de dirigen­tes pentecostais. Mas fica em pé a pergunta se as igrejas quese moveram nessa direção e os dirigentes que as expressam"explicitam" um desenvolvimento real da consciência religiosae expressam as aspirações sociais do povo pentecostal ou se,pelo contrário, introduzem um "revulsívo" que provocará umacrise interna ou conspirará contra a continuidade do cresci­mento que o tem caracterizado.

O problema é real, mas não pode ser resolvido com facili-

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dade: estamos, finalmente, frente a um pentecostalismo pu­jante, crescente, porém ameaçado pelos mesmos fatores so­ciais que tomam possível seu desenvolvimento? A perguntanão é puramente retórica quando vemos as opções sociais epolíticas de importantes setores pentecostais no próprio Chile,no Peru, no Brasil ou na Guatemala. Parece que o pentecosta­lismo, ao constituir-se num ator central do campo religioso,enfrenta decisões em que já não poderá perpetuar uma vivên­cia de sua experiência de salvação nas condições de suas ori­gens. Pode ser que muitos pentecostais contem entre os pobrese marginalizados, mas conjuntamente representam um atorsocial e político, o que modifica o contexto de sua experiênciae, conseqüentemente, os conteúdos implícitos nela.

Num excelente artigo, que, por respeito à sua complexida­de e riqueza me eximo de resumir, Bernardo Campos desenvol­ve, com um aparato teórico diferente do de Sepúlveda, umatese semelhante: a exclusão da qual o pentecostal é vítima setransforma em fator positivo porque lhe permite romper com osentido da "sócio-produção oficial" e "criar seu próprio sentido".

Dessa maneira, a ruptura de um sentido opera simultaneamen­te a criação (recomposição) de outro sentido. 'Irata-se de umlabor artesanal, com o qual a comunidade pentecostal produz(reconstrói) o mundo, autoproduzíndo-se.ê?

Até aqui tudo bem. Um pouco mais adiante, porém, Camposcontinua afirmando:

Dessa forma, a comunidade pentecostante articula uma visãodo mundo cunhando-a com os elementos de que dispõe no mo­mento. Não importa se, para o caso, esse elementos já estãoidentificados com os modos de conhecer ou os modos de atuarde formações religiosas católicas ou protestantes, se correspon­dem a ideologias (...) ancestrais de seu mundo social antigo (.. .)ou se são estranhos à sua produção nacional.28

É verdade que nessa reconstrução "não importam" os mo­dos de conhecer e de atuar que já façam parte da bagagemprévia das pessoas que reconstroem? A própria experiênciareligiosa - seja pentecostal, seja qualquer outra - não estácondicionada por essa "bagagem"? Em relação ao movimentopentecostal, vários observadores têm notado aparentes "para­doxos e contradições". André Droogers-", por exemplo, salientaalguns desses paradoxos:

a) A fé pentecostal reabilita os leigos por meio dos dons do

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Espírito Santo. Não obstante, há igrejas com uma forte estra­tificação e determinação do poder.

b) Há ampla possibilidade de expressão emocional numcontexto de uma direção rígida comumdiscurso fundamentalista.

c) Os pentecostais rejeitam este mundo e se apartam dele.Ao mesmo tempo, porém, são vistos como cidadãos e trabalha­dores exemplares.

d) Os crentes evitam a política... Entretanto, alguns auto­res vêem nas igrejas pentecostais um protesto social e nestemomento algumas igrejas intervêm ativamente na política eoutras surgem como a alternativa santa frente ao comunismo.

e) As pessoas aparecem rejeitando a sociedade e esperan­do a vinda de Cristo, mas também comprometidas com o aquie agora.

f) Os movimentos carismáticos impõem que as pessoassejam da mesma igreja, mas as congregações mantêm umaampla autonomia.

g) Por um lado, as mulheres ocupam um papel central navida congregacíonal, e, não obstante, formalmente sua posiçãosubordinada é justificada com a Bíblia na mão.

Em nível puramente empírico, alguns desses "paradoxos"deveriam ser examinados com cuidado. Para mencionar ape­nas dois exemplos: no tocante ao último, referente à situaçãoda mulher na comunidade pentecostal, é interessante levar emconta a tese, ainda inédita, de Elisabeth Brusco, que mostracomo a modificação das condutas "machistas", embora semvariar o símbolo da subordinação feminina, de fato muda aprática da relação e, por conseguinte, a autovalorização e aautoconsciência da mulherê". O outro "paradoxo" exigiria umdesenvolvimento mais amplo: trata-se da relação entre a parti­cipação do leigo na comunidade pentecostal e a forte estrutu­ração hierárquica que dá um poder quase total aos dirigentes.Este tema nos levaria a uma discussão do conceito de poder,na qual não podemos entrar neste momento. Mas seria inte­ressante levar em conta duas observações que Bourdieu colocaem tensão mútua ao estudar o tema do poder. Por umlado. afirma:

A concentração de capital político nas mãos de um pequenonúmero de pessoas é algo muito dificil de evitar, e, portanto, oque ocorre com maior probabilidade é que os indivíduos maiscompletamente comuns fiquem desprovidos dos instrumentos

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materiais e culturais necessários para participar ativamente dapolítica...

Por outro lado, reconhece:

A coincidência estrutural dos interesses específicos dos delega­dos e dos interesses dos mandantes constitui a base do milagrede um ministério sincero e eficaz. As pessoas que servem bemaos interesses dos mandantes são as que servem bem a seuspróprios interesses ao servir aos outros.

Embora Bourdieu se refira aqui ao poder político, suasobservações são, como ele mesmo diz, pertinentes - mutatismutandis - também no aspecto relígíosov. Neste sentido, jáLalive chamava a atenção para o fato de que, embora o poderministerial fosse exercido de maneira autoritária e tradicionalno mundo pentecostal, o acesso dependia do "carisma", dapossibilidade de que o dirigente fosse capaz de promover einterpretar a experiência religiosa comum.

4. Questões abertas para uma reflexão teológica. O proble­ma colocado pelos "paradoxos" é, na realidade, mais profundoe tem a ver com a relação entre a lógica linear da racionalidade"ilustrada" à qual estamos habituados e a racionalidade dosimbólico, que inclui uma "multívocídade" que, às vezes, seaproxima muito mais da "racionalidade da vida" como é expe­rimentada pelo povo. Pretender reduzir a segunda à primeiraacarreta o grave risco de esterilizar a experiência.

Na conversa que se estabeleceu no curso das conferênciasque deram origem a este livro, Bernardo Campos colocou oproblema em termos que ajudam a reflexão. Ele definiu a "pen­tecostalidade" como uma "categoria religiosa" que aparece, aomenos, em toda a história do cristianismo, como uma "expe­riência espiritual" imediata e transformadora (uma "experiên­cia extática"), cujo primeiro Iogos - sua primeira articulaçãointelectual - é "o testemunho", uma atividade narrativa quese expressa no culto e que "encontra uma primeira racionali­zação na pregação pública, no discurso apologético ou na ora­ção (experiência contemplativa)". A partir daí há uma transiçãopara a formulação ética ou a confissão dogmática e a articula­ção tcolõgícav. O pentecostalismo, numa situação histórica esocial particular, neste caso a das sociedades latino-america­nas, vive essa experiência e a expressa na vida e no culto. Oprocesso de "teorização" mal e mal começou. Daí que hajacerta "esquizofrenia" entre sua experiência e a teologia que"herdou". A transição para uma articulação própria leva tem-

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po. Não obstante esses esclarecimentos, ainda considero váli­das a observação acerca do problema da transição a que Se­púlveda alude e nossa objeção à solução de Bernardo Campos.De fato, um setor importante do pentecostalismo se vê obriga­do a "reconceítualízar'' os simbolos que "ressígníficou". E essa"reconceítualízação" teológica, ainda que seja sempre perigosaporque pode enfraquecer a dinãmica do símbolo, não é indife­rente, mas realimenta o significado do simbolo. Em outraspalavras, o símbolo pode ser "tnultivoco", mas se é simples­mente absurdo ou contraditório em relação a seu novo "signi­ficado", mais cedo ou mais tarde acaba sendo descartado. Nes­te sentido, persiste a necessidade de que o movimento pente­costal examine sua teologia explícita em termos da teologiaimplicite em sua experiência fundante.

Não se trata de uma critica ao pentecostalismo. Na reali­dade, as observações que fiz aplicam-se em maior ou menormedida a todo o protestantismo evangélico latino-americano, etalvez não só a ele. E menos ainda podem ser interpretadascomo um convite a tomar seu perfil menos nítido ou a "mode­rar" a intensidade de sua experiência. Exatamente porque opentecostalismo é, quantítatívamente, a manifestação mais sig­nificativa e, qualitativamente, a expressão mais vigorosa doprotestantismo latino-americano, seu futuro é decisivo não sópara o protestantismo em seu conjunto, mas também paratodo o campo religioso e sua projeção social. Neste sentido,muitos perceberam que a roupagem teológica que o pentecos­talismo latino-americano herdou é demasiado estreita para abri­gar sua experiência ou para permitir-lhe a expressão livre deseu vigor. Trata-se, pois, de que a partir dessa mesma expe­riência ele se liberte das distorções e encontre uma linguagemteológica que lhe sírva para explorar a riqueza da experiênciado Espírito e para superar, assim, as contradições que amiúdese percebem entre sua experiência religiosa, seu vigor eclesíal,sua consciência de solidariedade e sua pertença popular, porum lado, e a linguagem e o marco teológicos em que as preten­de enquadrar e expressar, por outro.

Dois aspectos dessa necessidade de revisão me parecemcentrais, pois creio que neles a conceitualização dentro da qualo símbolo foi assumido contradiz de tal maneira a experiênciae a prática reais da grande maioria do movimento pentecostalatual, que ameaça provocar uma crise de fé em novas geraçõespentecostais. Refiro-me ao fundamentalismo bíblico e ao apo­calipsismo pré-milenarista.

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a) "A escravidão da letra e a liberdade do Espírito". Subli­nhamos repetidamente a centralidade da Escritura na vivênciapentecostal (na realidade, em toda a vida evangélica latino­americana). Ela é seu sinal de identificação, quando caminhapara sua igreja com a Bíblia debaixo do braço; é sua "arma dedefesa", quando outros zombam de sua fé ou a desqualífícam:e de "conquista", quando dá seu testemunho e o ratifica: "é oque Deus diz em sua palavra"; é a resposta a seus dilemas,quando abre a Bíblia "sem olhar" e "lhe salta aos olhos" o textoque responde à sua necessidade ou problema imediato; ela lhedá uma "linguagem" para louvar o Senhor, para orar, para darseu testemunho.

O que acontece, contudo, quando se trata de expressarconceitualmente "o que é" e "como se entende" essa Escritura?'Iodos os documentos doutrinários pentecostais que conheçoafirmam indubitavelmente o princípio somente a Escritura:não poucos acrescentam uma palavra sobre sua "inspiraçãoverbal", sua "infalibilidade" ou sua qualidade de "palavra ins­pirada e infalível de Deus". O ensino a esse respeito na maioriados seminários das igrejas pentecostais adota uma interpreta­ção fundamentalista do sentido literal dos textos e, em muitoscasos, segue a hermenêutica dispensacionalista da Bíblia deScofíeld. Normalmente, quando um pentecostal explica por quea Bíblia é palavra de Deus aduz essas razões... ainda que mui­tas vezes a explicação culmine com uma referência a "como eleou ela encontrou na Bíblia a mensagem de vida e salvação","como Deus lhe falou".

Quando se colocam lado a lado a conceitualidade funda­mentalista com a qual se expressa doutrinalmente o sígnífíca­do da Escritura e a vivência da mesma e a interpretação e ouso dos textos na pregação ou exortação, percebemos umaincongruência: são duas aproximações ao "livro" totalmentediferentes: uma busca nele "verdades" irrefutáveis; a outra,uma inspiração, um poder, uma orientação para viver e atuar,uma resposta a sua angústia ou uma expressão de sua alegria.Uma tenta acertar indubitavelmente a "letra" e interpretá-la apartir do positivismo do "senso comum"; a outra discerne nelao que "lhe diz o Espírito" e a interpreta no âmbito do "milagre".São duas maneiras de viver a Bíblia: para o fundamentalismo,ela é um testemunho objetivo, em alguma medida externo, que"está aí". O pentecostal, no dizer de Campos, "sente-se partedo texto, 'renarra' a Bíblia, sente uma 'congenialidade com otexto'" que lhe permite atualizá-lo, revívê-lo em sua situação,

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prolongá-lo. Na tradição teológica ela tem sido chamada de"interpretação espiritual", tendo assumido diversas formas eocupado um lugar importante na vida da igreja.

1àlvez seja possível dizer que essas duas maneiras de vivera Bíblia podem conviver - e de fato o fazem - e até sercompatibilizadas. Creio que as coisas são mais complexas, por­que, por um lado, a concepção de Escritura e a tradição cultu­ral atuantes no fundamentalismo contêm implicitamente vi­sões teológicas e ideológicas que limitam o horizonte conceitualdo pentecostalismo. E o fato de que a liberdade da interpreta­ção "espiritual" deste se realiza apesar da conceitualidade fun­damentalista impede que a Escritura funcione adequadamentecomo "controle" da liberdade de interpretação.

Em vez de constituir uma "mediação" que permita umacomunicação fluida e uma inter-relação sadia entre o texto e aexperiência, a conceitualidade fundamentalista "interrompe"essa relação em ambas as direções: nem a dinãmica da expe­riência pessoal e social do pentecostalismo consegue informaradequadamente a leitura do texto nem este fazer uma críticadinãmica e construtiva daquela. É claro que a obra do Espíritomuitas vezes supera essas contradições. Mas quão mais ricapoderiam ser a experiência, a prática e a leitura sem o lastrode um esquema hermenêutico que muito pouco tem a ver coma identidade real da experiência e da fé do crente!

Na medida em que essa crítica seja justificada, o teólogopentecostal é chamado a repensar, a partir de sua comunida­de, as categorias de uma hermenêutica que corresponda àmaneira como sua comunidade "vive a Escritura" e, ao mesmotempo, ao necessário respeito pela distãncia que o texto man­tém até mesmo dentro da unidade entre texto e experiência etexto e prática. Provavelmente, sem desprezar os aportes queos estudos bíblicos e a história da interpretação deram a essareflexão, o que eu chamaria de as três dimensões fundamen­tais da experiência da Bíblia no pentecostalismo proporciona­riam o "insumo" básico dessa reflexão: em primeiro lugar, aBíblia como relato que é escutado, repetido e memorizado noculto, no estudo, na leitura diária - em contraposição à Bíbliacomo repositório de textos de prova. Em segundo lugar, a Bí­blia como o instrumento mediante o qual o Espírito nos guiaem meio às alternativas e decisões de toda ordem. Finalmente,a Bíblia como "linguagem" expressiva das vivências da fé: otemor, a alegria, o louvor, a confissão, a súplica.

b) "Nossa salvação está agora mais perto do que quando

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no princípio cremos" (Rm 13.11). Sepúlveda nos explica o quetem significado a esperança do "regresso próximo" do Senhorna experiência dos "excluídos". Mas também nos indica que ospentecostais não podem mais ver a si mesmos simplesmentecomo excluídos. Na verdade, eles estão agora em ambos oslados da beira do crescente mar da exclusão; entre os que,precariamente, conseguiram um espaço em terra firme e ten­tam assegurar aí sua morada e junto com muitos mais, e maísconscientes de sua condição comum, com os quais lutam in­frutiferamente para emergir das águas. Em ambos os casos, anecessidade de encontrar "um lugar no mundo" se lhes tornaimperiosa e tentam avançar para satisfazê-la. Alguns se afer­ram a um "evangelho da prosperidade" que lhes promete segu­rança, progresso material e tranqüilidade como conseqüênciaquase automática da fé. Outros procuram ajudar a si mesmose a outros mediante diversas formas de solidariedade social.Alguns aspiram incorporar-se à construção da cidade terrenamediante a participação social e política. Em nenhum dessescasos a conceitualidade apocalíptica pré-mílenarísta, em cer­tos casos dispensacionalísta, que receberam corresponde à suavivência e sua prática histórica. Parece-me que, como conse­qüência disso, o discurso apocalíptico - o quarto pilar dateologia clássica: "o Senhor volta" - vai se transformando nu­ma afirmação um tanto oca ou tende a ficar relegado.

Essa perda seria lamentável: a dimensão apocalíptica é,com efeito, parte constitutiva da fé evangélica, inseparável damensagem do Novo 'Iestamento e necessária para dar sentidoe marcar o caráter de uma participação responsável na histó­ria. Para isso, porém, tem de ser purificada de alguns dostraços adquiridos na interpretação mílenarista e escapista queassumiu no fundamentalismo anglo-saxão desde finais do sé­culo passados' e retornar a seu sentido bíblico: a afirmação dopoder de Deus no não-poder dos sacrificados da terra; o cha­mado à "resistência" (à hypomone) aos poderes escravizantesdeste mundo e o anúncio do triunfo final do rei crucificado; ojuízo das potestades e a aniquilação do poder da injustiça, dacrueldade, da opressão, da destruição e da morte, não comomero "escape" da alma individual para outro mundo, e simcomo a chegada do reino de Deus enquanto destino da históriae do mundo; e, por conseguinte, a comunidade do Messiasressuscitado como o espaço onde o Espírito Santo constrói um"sinal" do mundo novo e os crentes como as testemunhasdessa nova realidade que aguardamos.

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Essa "reconceítualízação'' da linguagem e dos símbolosbíblicos acerca do "fim" e da relação do fim com a história e aigreja não pode ser simplesmente o resultado de uma revisãoteológica: tem de ser o acompanhamento teológico e bíblico daprópria experiência de fé, de luta e de sofrimento, embora, aomesmo tempo, de poder e de esperança dos crentesê-.

Faço essas observações estando agudamente conscientede sua precariedade. Gostaria que fossem vistas apenas comoperguntas abertas. Não posso pretender, a partir de minhaprópria experiência e formação, formular uma resposta quetem de ser dada a partir da própria vida, experiência e reflexãodo pentecostal. 'Irata-se simplesmente, portanto, de perguntasa meus irmãos pentecostais, em função da fé evangélica quecompartilhamos.

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Capítulo 4

Um "rosto étnico" do protestantismolatino-americano?

No prólogo de sua notável e pioneira obra sobre o protes­tantismo brasileiro, Emile Léonard esclarece que "deixamos deconsiderar as igrejas de colônias estrangeiras, cujos proble­mas, não apresentando nada de especificamente brasileiro, nãoserão aqui discutidos"1. É curioso que um autor capaz comoLéonard - cujo propósito é estudar os "problemas institucio­nais e práticos (...) levantados pela implantação e desenvolvi­mento de crenças e de igrejas" e do "corpo social' no qual seencarnam essas crenças, fazendo das igrejas realidades, reali­dades humanas, com todas as peculiaridades" - não encontrenada de especificamente brasileiro na implantação e no desen­volvimento das numerosas comunidades protestantes (princi­palmente alemãs, mas também japonesas, letãs, holandesas)que foram chegando desde muito cedo ao Brasil.

De fato, sua própria chegada, assim como a de boa partedo "protestantismo de imigração", não é nem casual nem ca­rente de significado. Como dizíamos acerca das igrejas de mis­são, seguindo a Bastian neste ponto, temos de repetir quetampouco essas imigrações chegam como um fenômeno "exó­geno", por mero impulso próprio, mas sim em resposta a certaspolíticas ímígratórías gerais, quando não a convites expressos,das mesmas elites modemizadoras que abrem as portas àsmissões. Esse mesmo fato define em boa parte, inicialmente,os locais de assentamento, as condições materiais e o statusque se lhes outorga, as dificuldades com que se deparam e, porconseguinte, as respostas ideológicas, institucionais e teológi­cas que elas vão desenvolvendo. Nesse sentido, não obstantesuas grandes diferenças, há um denominador comum no mo­mento e nas condições históricas em que as igrejas "de mis­são" e "de imigração" entram na América Latina, no lugar queocupam na consciência e no propósito dos dirigentes latino­americanos e nas condições sociais, culturais e religiosas queprecisam enfrentar. Que umas e outras respondam, em algunssentidos, de formas muito diversas a essas condições é precí-

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samente um dos temas que merecem estudo, porque podedizer-nos alguma coisa a respeito do caráter de umas e outras-.

1. Como aproximar-nos do tema?

1. Um problema de vocabulário que é mais do que voca­bulário. Elas foram designadas de diversas maneiras: Daniel P.Monti (referindo-se ao Rio da Prata, 1967) e Bastian falam de"igrejas de residentes" (subentendendo-se estrangeiros residen­tes), porém é mais corrente falar de "igrejas de imigração". Esteé o termo usado por Damboríeria, Deiros e Prien(Einwanderungsprotestantismus). A pesquisa sobre essas igre­jas na Argentina, levada a cabo por uma equipe do Centro deEstudos Cristãos, dirigido por Christian Lalive d'Epínay, apa­rece sob o titulo Las iglesias deI trasplant&. As designações "deresidentes", "de imigração" e "de transplante" dizem algo acer­ca dessas comunidades religiosas. As duas primeiras desta­cam a forma de sua entrada e a terceira sugere o modo desta.Entretanto, essas três designações são insuficientes e podemtomar-se equívocas. Com efeito, no primeiro caso parece suge­rir-se que o que caracterizaria essas igrejas é sua origem exó­gena: elas vêm "de fora". Mas isso acontece com todas as igre­jas que entram na América Latina, inclusive com a Igreja Ca­tólica Romana. E isso não é um mero truísmo: "vêm de fora"significa que entram a partir do contexto de uma cultura, deuma língua, de configurações institucionais, de usos e costu­mes plasmados em outra parte e em outro tempo. A imagemdo "transplante", segundo indica Villalpando em seu prólogo,foi tomada de um escrito meu em que cito a conclusão a quechega Robert Ricard num estudo da implantação da IgrejaCatólica no México: "O que se estabeleceu no México", diz Ri­card, "não foi uma Igreja mexicana, e sim uma Igreja espanho­la transplantada para o México."4 Mutatis mutandis, indicariaVíllalpando, isso ocorreu com as igrejas de imigração na Ar­gentina. A analogia, contudo, não é totalmente exata: a IgrejaCatólica é trasladada para a América e imposta a uma popula­ção autóctone; as igrejas de imigração são trasladadas com apopulação original na qual nasceram.

Na realidade, forçando um pouco as coisas, poderíamosdizer que a própria natureza da fé cristã, por sua inevitávelreferência histórica, é ser "transportada" por testemunhas deum lugar - da Palestina, digamos - e "introduzida" em outro.

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Ela não pode nascer "espontaneamente" de uma cultura ou deuma religiosidade preexistente. O que de fato difere são osmodos da imigração. Porém os imigrantes que constituem es­sas igrejas protestantes diferem também sensivelmente em nos­so caso: alguns são "colônias" de camponeses (galeses na Ar­gentina ou menonitas no Paraguai), outros são implantes co­merciais (donos ou administradores de fazenda nas provínciasde Buenos Aires ou na Patagônia ou empregados das empresasbritânicas no Chile ou na Argentina), outros são traballladores"de cor" importados para obras públicas (as estradas de ferroou plantaçôes na América Central ou no Brasil). E também asformas do transplante variam: em alguns casos, trata-se diretae estruturalmente da criação de uma "filial" oficial, uma exten­são de igrejas nacionais no país de origem; em outros, trata-sede uma imigração de grupos populacionais de uma mesmaorigem nacional e religiosa que se reúnem e organizam em suanova localização no país de imigração. E outra é, ainda, asituação dos últimos anos, de ímígrações de países orientais ­Coréia, Japão, 1àiwan - vínculadas a denominaçôes de mis­são em seus próprios países de origem, onde também são mi­norias. Poderíamos aprofundar-nos nessas diferenciaçôes. Masa pergunta é: há algo em comum que seja mais significativo eprofundo que sua origem exógena?

2. Igrejas étnicas? Creio que esta é a pergunta que se quisresponder ao utilizar essa expressão. Aqui não se estaria maísfalando simplesmente da origem ou do modo de entrada, e simda própria natureza de uma Igreja; não de um acidente histó­rico, mas de uma característica constitutiva. Como veremos,esta designação amplia e complica o tema. Mas também abreuma temática teológica mais profunda e significativa do que amera menção da origem e do modo de entrada.

Ela complica o tema, em primeiro lugar, porque amplia opanorama. Se, em termos muito elementares, a característicadistintiva dessas igrejas é sua "homogeneidade étnica", entãoentram nesse quadro as igrejas indígenas, como a Igreja Unidatoba na Argentina ou as igrejas indígenas moravas misquitasna Nicarágua ou igrejas quase exclusivamente negras no Pa­namá, para citar apenas alguns casos.

Mas ela complica o tema, principalmente, porque introduza complexa e discutida categoria "étnico". Os estudos antropo­lógicos debateram e continuam debatendo sobre uma definiçãoou identificação adequada do que constitui uma "etnia" e sobre

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o que é "etnícídade". Em 1964, num resumo citado com fre­qüência, R. Narroll destaca quatro indicadores geralmente em­pregados pelos antropólogos para definir uma etnia: 1) umacomunidade que em grande medida se perpetua biologicamen­te a si mesma; 2) compartilha valores culturais fundamentaisrealizados com unidade manifesta em formas culturais; 3) in­tegra um campo de comunicação e interação; e 4) conta commembros que se identificam e são identificados por outros eque constituem uma categoria distinguível de outras catego­rias da mesma ordem",

No século passado, uma antropologia voltada em grandemedida para o estudo de culturas chamadas "primitivas" colo­cava a maior ênfase em elementos objetivos, como a reprodu­ção biológica e os usos culturais. Posteriormente, a crescenteconsciência, nas ciências sociais, dos valores subjetivos e, poroutro lado, a mobilidade de migrações que criam constante­mente novas minorias étnicas fizeram com que se salientassea importãncia da comunicação e interação e das redes sociaisque são criadas por adscrição própria (as pessoas que se iden­tificam conscientemente com uma comunidade ou um grupo)e adscrição por outros (as pessoas que são identificadas pelasdemais como pertencentes a esse grupo). Por outra parte, tam­bém se tem destacado a importãncia dos processos de trans­formação que acontecem no interior de uma etnia. Não é maispossível sustentar uma visão estática, como se as culturasétnicas se reproduzissem sem mudanças ao longo do tempo edo espaço. Finalmente, é importante levar em conta a plurali­dade de adscrições que ocorrem numa sociedade moderna:uma pessoa pode identificar-se como "alemã" em termos étni­cos, como "de classe média" em termos sociais, como "agnós­tica" em termos religiosos e como "socialista" em termos ideo­lógicos ou políticos. Ou seja, as dimensões em que se assumea identidade étnica podem variar. E, por sua vez, as redes decomunicação e as organizações que se estabelecem sobre abase da identidade êtnica podem definir seus limites de formasdiversas: por exemplo, admitindo ou rejeitando outras pessoascom base em opções ideológicas, políticas ou religiosas ou nouso da mesma língua".

Tudo isso deveria levar-nos a sermos muito cuidadosos aofalar de "igrejas étnicas" como se defrníssemos uma unidadehomogênea e estática, totalmente identificável em termos deuma origem nacional, um idioma e uma série de usos culturaisuniformes e imutáveis. A importãncia e a significação que a

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dimensão religiosa tem na definição da identidade étnica va­riam consideravelmente de um grupo para outro e dentro deum mesmo grupo, e de um momento para outro". Na próximaseção vamos tentar ilustrar algumas dessas variações ao dis­cutir características de "igrejas étnicas", sobretudo em igrejasoriginadas da imigração no Cone Sul da América do Sul".

2. Protestantismo de missãoe protestantismo étnico

A distãncia e a falta de comunicação entre igrejas de mis­são e igrejas étnicas, pelo menos há até quase 50 anos, são umfato inegável. Podemos, mais ainda, falar de desconfiança e"deslegítímação" mútua. Nenhuma Igreja de imigração - na­quela época elas já estavam presentes por cerca de meio séculona Argentina, no Uruguai e no Brasil (para referir-nos só a estaparte do Cone Sul) - participou do Congresso do Panamárealizado em 1916. Em Montevidéu (1925) já houve um repre­sentante da Igreja Valdense, um do Comité Protestant Française um da Igreja Presbiteriana da Escócia - todos de origemreformada -, além de um da Igreja Luterana Unida, que a essaaltura já havia assumido uma linha de missão. Por outro lado,porém, não houve nenhuma representação de igrejas de imi­gração no Congresso Evangélico realizado em Havana em 1929.Só a Primeira Conferência Evangélica Latino-Americana (Bue­nos Aires, 1949) registrou unia presença da Igreja Valdense, daIgreja Protestante de Fala Francesa, das Igrejas Menonitas doParaguai e (como observador) do Sinodo Evangélico Alemão doRio da Prata. A Confederação de Igrejas Evangélicas do Rio daPrata, criada em 1939, já contava com quatro igrejas "étnicas"e outras três se uniram a ela no período de 1940-19499 .

1. Desconhecimento e rejeição. Os estereótipos mútuospodem ser marcados com facilidade. Aos olhos das igrejas demissão, as étnicas apareciam como catolizantes, igrejas de es­tado, formalistas e "mundanas". Freqüentemente encontram­se referências que as identificam com o protestantismo e angli­canismo europeus que determinaram a decisão da ConferênciaMissionária de Edimburgo em 1910 de excluir a América Lati­na por ser "um continente cristão". A ordem litúrgica, o uso deuma língua estrangeira e a renúncia a fazer "proselitismo"eram incompreensíveis e escandalosos para a mentalidade mís-

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sionária e evangelizadora dos "evangélicos". E o consumo debebidas alcoólicas ou tabaco, a dança e outras atividades so­ciais de algumas dessas igrejas chocavam a ética puritana damaioria das igrejas de missão.

As igrejas de imigração, por sua vez, traziam desde suaorigem uma forte desconfiança para com as "igrejas livres",que em muitos casos se apresentavam, nos países de origem,como proselitistas em detrimento da "igreja do povo" (Vo1kskir­che). Sua piedade parecia desordenada, fanática ou "entusias­ta", própria de "seitas" que, ainda no conhecido vade-mécumalemão de Kurt Hutten (3. ed., 1954), apareciam como "Seher,Grübler, Enthusiasten" (visionários, fantasiosos, fanáticos) 10.

E sua pregação inflamada e repetitiva lhes parecia superficial,carente de sólida base confessional ou doutrinária.

É claro que sempre houve exceções em nível pessoal, par­ticularmente entre alguns missionários estrangeiros nas igre­jas de missão aos quaís as relações ecumênicas haviam colo­cado em contato com as igrejas européias e entre líderes nacío­naís com uma formação e experiência mais ampla. làmbémhouve exceções em nível institucional, particularmente entre aIgreja Valdense e a Metodista, que colaboraram na formaçãoteológica (com breves intervalos) desde a década de ISSO (in­cluindo os Discipulos de Cristo a partir de 1917).

Desde o final da década de 1930, porém, começam a es­treitar-se relações fraternas e de colaboração entre as igrejasde imigração e as de missão identificadas com o que chama­mos de "rosto liberal" do protestantismo latino-americano, nomarco da já mencionada Confederação de Igrejas Evangélicasdo Rio da Prata (1939), que posteriormente teve continuidadena Federação de Igrejas Evangélicas da Argentina (FAlE) e naFederação de Igrejas Evangélicas do Uruguai (FUIE), da Comis­são de Literatura do Comitê de Cooperação para a AméricaLatina (CCIA, 1925) e da formação teológica nas associaçõesde instituições de educação teológica (a ASIT na região sul eoutras no Brasil, no Caribe e na região norte) que se organizama partir de 1960. As suspeitas, contudo, não desapareceram:quando, na década de 1950, se coloca a questão do possívelingresso da Igreja Reformada Argentina (de origem reformadaholandesa) à associação ecumênica que, na época, auspiciavaa Faculdade Evangélica de 'Ieología de Buenos Aires, apare­cem, embora já houvesse "associados" calvinistas (a Junta deMissões da Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos ea própria Igreja Valdense), inconvenientes - que às vezes pa-

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recem referir-se a uma questão teológica, como um supostofundamentalismo calvinista; outras vezes, a uma questão demodalidades éticas; e outras têm mais a ver com uma descon­fiança instintiva para com uma igreja "étnica" européia - eessa incorporação tem de esperar até que se organize o Insti­tuto Evangélico Superior de Estudos 'Ieológícos (ISEDET), queconta com uma presença mais ampla de igrejas "de ímígração"!':

Os leitores que olham esse panorama a partir de outrasregiões - o Caribe, os países do Pacífico, a América Central, oMéxico - encontrarão paralelos e diferenças, tanto em termosde tempo quanto de modalidade, mas atrevo-me a crer que aexperiência da região do Rio da Prata, à qual me limitei namaior parte, não é qualitativamente diferente da experiênciadas outras regiões. Além disso, é preciso destacar que, a partirda Conferência Evangélica de 1949, tem continuado uma rela­ção em nível Iatíno-americano - cuja forma institucional foi aUnidade Evangélica Latino-Americana (UNEIAM) e depois oConselho Latino-Americano de Igrejas (ClAI) - que teve umdesenvolvimento muito amplo e na qual houve uma participa­ção, na condição de protagonistas, de igrejas de missão e igre­jas étnicas em igual medida. Elas também participaram ativa­mente de movimentos como Igreja e Sociedade na AméricaLatina (ISAL), a Federação de Estudantes Cristãos, os Movi­mentos Estudantis Cristãos (MECs) e de outras organizaçõesecumênicas da década de 1960 em diante. Cabe salientar, nãoobstante, que essas organizações evangélicas latino-america­nas - e, em boa parte, as organizações correspondentes emnível local - têm só parcialmente merecido a participação e orespaldo das correntes que chamamos de "evangélica" e "pen­tecostal", entre as quais, com efeito, surgiram estruturas deunidade alternativas, como a Confraternidade 'Ieológíca Latino­Americana (CONELA) ou as convocatórias do Congresso Lati­no-Americano de Evangelização (ClADE I, CLADE II e ClADEIII), com as quais só recentemente foram estabelecidas rela­ções, como assinalamos num capítulo anterior.

2. Por onde passam as fronteiras? Essas observações bas­tante anedóticas colocam, não obstante, uma pergunta maisprofunda e necessária para que se superem realmente os mal­entendidos e se estabeleçam relações fecundas e duradouras:por onde passam as verdadeiras fronteiras? O que é que real­mente separa as diversas correntes do protestantismo latino­americano? 'Irata-se de uma pergunta que não pode ser res-

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pondida unilateralmente a partir de uma dessas correntes,nem superficialmente em função da boa vontade e de umaatitude de abertura, ainda que estas sejam imprescindíveis.Felizmente, creio que estamos em ótimas condições para abor­dar o tema. Creio, inclusive, que já iniciamos esse caminho noámbito da prática ecumênica, na formação do ministério, notestemunho e esforço comum em questões de natureza social,na defesa dos direitos humanos, no trabalho de difusão dasEscrituras. Creio, porém, que devemos a nós e ao Senhor aomenos duas tarefas: uma é a de incorporar efetivamente nessarelação as correntes evangélicas e pentecostais do protestan­tismo de missão, o que não pode significar "absorver" os de­mais nas estruturas e relações ecumênicas que já temos, e simas revisar, modificar ou superar e recriar juntos essas estrutu­ras e relações de maneira que assumam efetivamente as legiti­mas e sérias perguntas que nos são dirigidas a partir dessascorrentes. A outra tarefa consiste em considerar a fundo otema de "missão e evangelização" e "identidade étnica", quesão possivelmente os nós centrais, ou talvez o nó teológico eeclesial central dessa relação. Entrementes, e como uma hu­milde contribuição a essa tarefa, gostaria de explorar algunstrechos dessa fronteira e verificar se ela é uma linha simples­mente imaginária ou artificialmente traçada ou se de fato exis­te e por onde passa.

a) Uma primeira linha demarcatória seria a que, utilizan­do o vocabulário corrente nas igrejas protestantes européias,passa entre as "igrejas livres" e as "igrejas tenitoriets" ou "na­cionais" ou "do povo" (Volkskirchen), de algum modo vincula­das organicamente ao estado ou pelo menos à nação. A clássi­ca obra de Ernst Troeltsch intitulada Die Soziallehren der chris­tlichen Kirchen und Gruppen ["As doutrinas sociais das igrejase grupos cristãos"], de 191212 , consagrou os termos "igreja" e"seita" como categorias sociológicas características, justamen­te, das igrejas - que se concebem como coincidentes com umpovo, das quais se faz parte por nascimento e que, por conse­guinte, praticam majoritariamente o batismo de infantes, quese integram com a cultura nacional, tém relação orgânica como estado e não praticam o proselitismo fora de suas fronteiras- e das seitas - que são formações voluntárias, nas quais seentra por decisão pessoal, que praticam majoritariamente o"batismo de conversos", são contraculturais, não têm vincula­ção com o estado e praticam o proselítísmov'. Infelizmente, ovocabulário de Troeltsch e Max Weber assumiu significados

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que os autores não lhe quiseram dar, transformando uma ca­racterização sociológica numa luta por legitimação doutrinal eaté legal. 'Irata-se, na verdade, de duas formas de ser igreja quetêm permeado a história, ao menos desde o século 4, e cujafundamentação teológica e concepção missionária e pastoralcom certeza continuarão presentes, não necessariamente en­tre igrejas particulares, e sim no seio das próprias igrejas. Nãoobstante, creio que - ao menos na situação latino-americana- temos de relativizar as diferenças entre um e outro modelo.

Por um lado, a própria concepção do relacionamento entreigreja e povo/nação/etnia é diferente em diferentes igrejas "ét­nicas". O anglicanismo, por exemplo, parece conceber-se comoa dimensão religiosa da nação e considerar que em cada naçãoa igreja nacional deve organizar-se autonomamente. Por isso,inicialmente se propôs a formação de uma igreja de modeloanglicano na nova nação independente dos Estados Unidos daAmérica do Norte, não como uma extensão da Igreja Anglicanada Inglaterra, mas como uma igreja autônoma. 1àl coisa eraimpossível no panorama religioso dos Estados Unidos e a IgrejaEpiscopal foi, na realidade, uma das "igrejas livres" no camporeligioso plural existente no país». Na América Latina, o angli­canismo enfrentou um dilema: ou reconhecia a Igreja CatólicaRomana como "a igreja" da nação latino-americana - o que fezem muitos casos - e, portanto, reduzia sua ação aqui aoministério dirigido aos "expatriados ingleses" e seus descen­dentes como uma espécie de "capelania" da nação inglesa noexterior ou à evangelização das "nações indígenas autóctones"que não tivessem sido alcançadas pela Igreja Católica - o quetambém foi feito por sociedades missionárias da Igreja da In­glaterra - ou se transformava numa "igreja livre", em uma dasigrejas que competiam no campo religioso latino-americano.Esta parece ser a opção da Igreja Episcopal, como a defineKater num estudo da região centro-americana:

Uma vez mais, estão em jogo a identidade anglicana e os mode­los eclesiais que têm definido o anglicanismo. O anglicanismolatino-amelicano pode desempenhar um papel ativo no processode reflexão, para que juntos, e em diálogo com crístãos de outrastradições, os anglicanos busquemos outros modelos de igrejaque se encaixem mais adequadamente na realidade deste conti­nente, e de outros. 15

Algumas das igrejas étnicas entram ou se consolidam naAmérica Latina em momentos em que suas nações de origemalcançam a unidade nacional. Este é o caso da Alemanha, que

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se unifica sob Bismarck em 1871. E, em grau distinto, é tam­bém o caso da migração dinamarquesa para a Argentina, cujomaior contingente chega depois de 1875, quando "os novosares nacionalistas começaram a soprar a partir do sul da Jut­lãndia depois da guerra de 1864"16. É lógico que a identificaçãode igreja e nacionalidade se manifeste com maior força em taissituações, ainda que, como veremos, de forma um tanto distin­ta em cada um desses casos!". 1ànto no Brasil quanto no Uru­guai e na Argentina, essa vinculação entre nacionalidade eigreja marcou profundamente a vida das igrejas de origem ale­mã, criando profundas tensões e até divisões18.

Mencionamos, em terceiro lugar, igrejas que, embora etni­camente homogêneas e semelhantes às anteriores em algunsdos traços derivados dessa situação, vivem uma relação dife­rente com a nacionalidade. Este é o caso da Igreja Valdense,porque remonta a uma igreja minoritária - e por muito tempoperseguida - em seu país de origem, para a qual a tradiçãoreligiosa, a língua patoá e, em todo caso, a identificação com os"vales valdenses" do Piemonte eram mais fortes que a vincula­ção com a identidade nacional, ainda que, ideologicamente,coincidisse com a corrente liberal e anticlerical do garibaldismoque conseguiu a unidade19. Esse é também o caso da imigra­ção holandesa, que se identifica majoritariamente com as igre­jas reformadas da Holanda que, desde o cisma de 1834 queconsolidou, em 1869, a Christelijke Gereforrneerde Kerken inNederland, ficaram desvinculadas da Igreja Reformada da Ho­landa, mais estreitamente vinculada ao estado.

Deve-se, além disso, observar que, embora as igrejas "ét­nicas" fossem, em muitos casos, "igrejas do estado" em seuspaíses de origem, viram-se, em alguns casos, libertadas paratransformar-se de fato em "igrejas livres" ou obrigadas a fazê­10 na nova situação. Por exemplo, a imigração alemã ao Brasilchega a partir de 1823/1824, bastante antes da unificação daAlemanha. A respeito dessas migrações precoces, Walter Alt­mann faz uma observação interessante: "Entre os aspectosque lhes [sc. esses imigrantes alemães] foram mais agradáveisestava, sem dúvida, a possibilidade de organizarem autonoma­mente suas comunidades religiosas. Criaram-se comunidadeslivres da tutela de organismos eclesiásticos atrelados, comoigrejas de Estado, aos governos territoriais alemães."20 Por ou­tro lado, estavam obrigadas pela necessidade de pagar seuspastores e manter fmanceiramente suas congregações quandoo apoio recebido do país de origem não era suficiente ou era

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interrompido. E, mais importante ainda, porque de fato se en­contravam com "igrejas nacionais", com uma Volkskirche - aIgreja Católica Romana - que gozava de forma exclusiva dasrelações com a sociedade que haviam modelado seu status esuas formas de atuação nos paises de origem e agora tinhamde operar, não como "as igrejas do povo", e sim como as igrejasde um espaço social, cultural e religioso parcial e delimitado, eamiúde discriminado ou ameaçados'.

'lendo dito e considerado tudo isso, creio que cabe reco­nhecer que há uma diferença no modo como umas e outrasigrejas - as de missão e as de imigração - se situam nasociedade. Em minha opinião, a diferença reside em que asprimeiras prolongam e reproduzem na América Latina, comsuas condições religiosas diferentes, mas, do ponto de vistaantropológico e, em parte, politico, análogas, a experiéncia nor­te-americana do século 19, que o teólogo metodistaAlbert Outler-­caracterizou como uma "imensa e complexa irrupção do Espí­rito que resgatou a causa cristã e definiu o protestantismo[norte-americano] de grande parte do século passado". "Irans­formou o reavívamentísmo", continua dizendo ele, "de um fatoepisódico numa instituição permanente. Relegou os sacramen­tos e a educação cristã a um lugar marginal e seu próprio etosteológico se identificou com a palavra 'evangélico'." Finalmente,Outler resume essa nova formação religiosa:

O traço mais destacado desse Segundo Despertar é seu fervoremocional, concentrado sempre nestes dois pontos, e quase sóneles: 1) a salvação: libertação do pecado e da culpa (do infernoe da condenação) e 2) uma moralidade pessoal "auto-íníbídora".[Este é] o triunfo efetivo no Novo Mundo do "protestantismoradical" tão severamente reprimido na Europa pelas igrejas deestado luteranas, refonnadas e anglicanas dominantes. Essatradição protestante era majoritariamente "montanísta" em suaeclesíología (igreja "baíxa", igreja "livre"): anti-sacerdotal, anti­sacramental, antiintelectualista. Ela fazia uma distinção pejora­tiva entre teologia especulativa e fé existencial. Suspeitava deum clero erudito. Considerava a conversão, e não a iniciação, oclímax: da experiência cristã. Insistia na religião pessoal como aúnica essência verdadeira do cristianismo.

Como salientamos, nem todas as igrejas de missão corres­pondem a esse esquema, nem as de imigração são todas outotalmente alheias a ele. Parece-me, porém, que há uma certaverdade nesse quadro, que nos ajudaria a entender-nos me­lhor uns aos outros dentro de toda a família evangélica-protes­tante da América Latina.

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b) Essas últimas considerações excedem o campo socioló­gico e político e nos conduzem a uma segunda linha de demar­cação que valeria a pena explorar: a que se refere à teologia deum e de outro tipo de igrejas. Em princípio, poderia ser fácilcontrapor "igrejas da Reforma" com uma doutrina luterana oucalvinista clássica e igrejas de missão que se desenvolvem apartir das igrejas dissidentes do mundo anglo-saxão. SamuelEscobar fez essa distinção, traçando - à semelhança de Outler- a linhagem eclesial e teológica do protestantismo evangélicolatino-americano a partir da "Reforma radical" do século 16:igrejas "voluntárias", livres da tutela do estado, criticas da cul­tura imperante e, muitas vezes, socialmente vinculadas aossetores pobres ou margínalízadoss'. Em relação aos EstadosUnidos, Richard Niebuhr ofereceu uma interpretação seme­lhante em sua clássica obra The Social Sources ofDenomina­tionalism ["As fontes sociais do denomínacíonalísrno'Ps.

Trata-se, sem dúvida, de uma diferença a se levar emconta. Se tomarmos, por exemplo, o trabalho de Lalive d'Epí­nay sobre dez25 igrejas de imigração na Argentina, acharemosalgumas indicações significativas: todas elas consideram "a or­dem no culto e na vida espiritual" entre as trés orientações"que essa denominação enfatiza particularmente"; sete delas acolocam em primeiro lugar, uma coloca em primeiro lugar aeucaristia, uma a justificação pela fé e uma a conversão e onovo nascimento. Por certo, o resultado teria sido distinto emigrejas evangélicas ou pentecostais. O próprio Lalive destacauma diferença marcante no "tipo de piedade":

É interessante assinalar que os dois itens que defmem umaespiritualidade "ardente" (hot) (.. -l nunca foram mencionados,ao passo que dez denominações insistem (...) na ordem, numavida cultual "fria" icool, se se nos permite utilizar estes conceitosda linguagem pietista, e também da linguagem do jazz). Assina­la-se aqui um consenso quanto ao estilo da vida religiosa, etambém quanto a um certo racionalismo da fé (a saúde seria umconceito mais do campo médico do que da vida relígíosal.ê"

Outra observação interessante, também salientada por La-live, é que oito das dez igrejas escolhem, no tocante à autori­dade da Bíblia, uma alternativa que a reconhece como "inspi­rada em seu fundo e em suas idéias, mas seus redatores, sereshumanos, podem ter introduzido erros (conceitos superadosl'<".Esta resposta provavelmente seria também comum à corrente"liberal", mas não à evangélica e à pentecostal.

Esse levantamento é significativo, mas exige algumas reti-

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ficações: 1) é uma pesquisa quantitativa usando a técnica do"leque de respostas": ou seja, a formulação das respostas pos­síveis é determinada pelo pesquisador; 2) trata-se de um levan­tamento feito entre os dirigentes das igrejas, em sua maioriapastores; tenho a impressão, depois de anos de experiénciacom ambos os tipos de igreja, que uma pesquisa qualitativa,que incluísse distintos niveis de membros, poderia alterar sig­nificativamente as respostas, provavelmente com mais respos­tas "evangélicas" nas igrejas de imigração; 3) mais importanteé que as alternativas colocadas na seção "doutrínal" da pesqui­sa me parecem mais direcionadas a marcar os pontos ondepossivelmente estejam as discrepãncias mais visíveis: "glosso­lalia" e profecia, saúde, atuação comprometida na sociedade(marcada pela condição de membro em clubes, sindicatos oupartidos políticos) do que a explorar as teologias realmentevigentes na piedade e no ensino dessas igrejas.

Não é minha intenção desconhecer as diferenças que essapesquisa destaca nem as observações válidas, como aquela deEscobar mencionada acima. Gostaria, isto sim, de colocá-lasnum contexto histórico e religioso mais amplo. Em nível histó­rico, deve-se observar que, se o protestantismo clássico recebi­do pelas igrejas de missão é remodelado em sua história anglo­saxã, o de imigração proveniente da Europa central passa porvárias mediações, às vezes diversas, às vezes coincidentes. Co­locando a questão em termos gráficos: Lutero e Calvino che­gam da Europa depois de atravessar os filtros da ortodoxiaprotestante, do racionalismo, dos movimentos pietistas, quasecontemporaneamente com as revisões liberais. Os pastores deigrejas de origem alemã, suíça, francesa ou escocesa que res­pondem a Lalive em 1970 a respeito da autoridade da Escritu­ra certamente leram, em suas faculdades de 'Ieología e seminá­rios, Schlatter ou Vinet, Harnack ou Herrmann e Barth. Per­gunto-me, por outro lado, se um estudo cuidadoso não mos­traria que a maior parte dos pastores das primeiras migraçõesrepresentariam teologicamente antes a ortodoxia ou o pietismoou alguma mescla de ambos em diversas proporções. Sabemosdo peso que o despertar do século 19 teve na Escócia e no Paísde Gales. E sabemos também que a influéncia desses movi­mentos não faltou no risveglio (despertar) valdense quase nomomento em que os valdenses zarpavam para o Uruguai e aArgentínaw, Na Argentina, tanto a Igreja Evangélica LuteranaArgentina (lEIA) quanto a Igreja Evangélica Congregacíonal,que se desliga do Sínodo (Alemão) do Rio da Prata, têm um

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forte componente pietista e rígorísta. A prtmeira se vincula aoSínodo de Míssúrí dos Estados Unidos, criado sob a direção deWilhelm Walther, cuja adesão ao pietismo é conhecida, e asegunda corresponde em parte a uma imigração de gruposalemães que viveram durante muito tempo uma existência pró­pría e isolada na Rússia - costuma-se chamá-los de teuto­russos ou "alemães do Volga" - também com forte influênciapietista (além disso, os líderes da cisão se relacionam com aIgreja Congregacional dos Estados Unidos). Nesses dois casos,parece haver paralelos interessantes no Brasil. Por outro lado,em seu estudo sobre as igrejas alemãs do Brasil, Hans-JürgenPríen comprovou a dificuldade de identificar as linhas teológi­cas predominantes nos prtmeiros pastores. No único caso emque obtém informações precisas na prímeíra metade do século19, no do pastor Sauerbronn, a teologia é o que na Alemanhase chamava de "neología", vinculada às linhas teológicas deSchleiermacher, Nitzsch, Neander. Sauerbronn rejeita a idéiada inspiração verbal e define "a revelação cristã", ao estilo"schleíermacheríano'', como arraigada na experíêncía-",

Essas referências histórtcas tomadas ao acaso não visamprovar que há diversidade teológica entre as igrejas de imigra­ção, que nelas freqüentemente competem posições teológicasanálogas às que encontramos nas igrejas de missão e muitasvezes aparentadas com elas. Minha intenção é, antes, ressaltarque essas diferenças teológicas não afetam grandemente o com­portamento "étnico" em relação com o meio: ortodoxos ou pie­tistas, biblicistas ou liberais, "mundanos" ou "ascéticos", pro­venientes de igrejas de estado ou livres, até há muito poucosanos todos tendem a compreender sua missão e o émbito desua responsabilidade exclusiva ou quase exclusivamente emtermos da comunidade étnica. 'Ianto é assim que mesmo igre­jas de forte influência "evangélica", como a Congregacíonal e aIgreja Evangélica Luterana Argentina que se caracterizam a simesmas como igrejas "míssíonárías", definem essa missão co­mo a de reativar a fé dos protestantes nominais, o que Lalivechama de "missão ínterna'<v. E a Igreja Evangélica Pentecostal(ucraniana) só se abre ao uso do idioma e à evangelização nomeio crtoulo em fins da década de 1970.

Não obstante tudo isso, também no que diz respeito àteologia, embora devamos relativizar a diferença entre igrejasde missão e igrejas de imigração, não a devemos ignorar. Atre­ver-me-ia a caractertzá-la como uma tendência das prtmeirasa uma orientação pneumatológica e das segundas a uma orien-

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tação cristolôgice em suas teologias. Digo "tendência" porquenem umas nem outras excluem ou relegam a crístología ou apneumatología. A tendência se percebe, antes, nas referênciasa uma piedade mais subjetiva nas primeiras e mais ligada aossímbolos e às formas objetivas nas segundas; a uma concep­ção mais cara a cara de igreja num caso e a uma mais institu­cional no outro; a uma interpretação mais livre, circunstanciale exortativa da Escritura frente a outra mais exegética e docen­te. Seria muito difícil precisar mais essas diferenças. Seria,inclusive, necessário um estudo mais cuidadoso e documenta­do para justificá-las. Creio, porém, que não me equivoco aoperceber que há uma certa "dissonância" que uns e outrosexperimentam no contato com comunidades da outra linha euma sensação de "familiaridade" em comunidades de seu pró­prio setor, que não resultam apenas de diferenças de culturaou de língua, e sím de "tonalidade" teológica, percebida nãotanto intelectualmente, mas antes na forma de se sentir esituar em sua vida religiosa.

c) As referências desses últimos parágrafos ficam condi­cionadas porque algumas das igrejas étnicas assumem, emdistintos momentos, uma tarefa missionária que excede asfronteiras da comunidade étnica. Esse é o caso de pelo menosduas igrejas cujas circunstâncias são diferentes. A Igreja Evan­gélica Luterana Unida (IELU) tem uma dupla origem: na pri­meira (1909-1920), os missionários trabalham com imigrantesluteranos de vários idiomas: sueco, inglês, alemão. A partir de1920, porêm, com a chegada do missionário norte-americanoMuller, a IELU surge como igreja de evangelização na popula­ção de fala espanhola, criando uma série de congregações deconversos na Grande Buenos Aires e em alguns lugares dointerior. Ao mesmo tempo, em outras regiões do país, formam­se congregações de língua alemã e, em tomo da guerra e dopós-guerra (1939-1945), constitui-se uma série de igrejas deimigrantes - em alguns casos, refugiados - de origem esto­niana, letã, húngara.

Diferente é o caso da Igreja Reformada Argentina (IRA),que, sob a influência de alguns missionários holandeses e,sobretudo, norte-americanos, toma uma decisão explicita deestender seu campo de crescimento à população crioula, orga­niza seus recursos e pessoal para esse fim e, em poucos anos(1960-1968) triplica suas congregações e seus locais de culto.Em outras palavras, como o expressa Lalive, a IRA decide "re­nunciar a ser uma igreja determinada por sua origem étnica

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para transformar-se numa igreja evangelistica dírígídaa todasas nações'v". Em ambos os casos, teríamos rupturas com omodelo de "conservação" ou "missão interna", mas rupturasque, de alguma maneira, são provocadas a partir de fora davida da própria igreja por missionários ou sociedades missio­nárias que tomam a iniciativa de realizar uma tarefa evangeli­zadora entre a população local, às vezes à margem da comuni­dade étnica local e inclusive com tensões nela--.

Outra é a situação de igrejas que seguiram um processoprogressivo de "naturalização". Trata-se, neste caso, de uma19reja que vai sendo integrada ao panorama religioso nacionalpor fatores sociológicos e históricos - as sucessivas gerações,II ascensão social e a subseqüente incorporação em diversossetores da vida nacional, os casamentos mistos. Como índicepara a aculturação Lalive tomou o uso da língua e, para anacionalização, a formação de um pastorado Iocalv'. 'leria sidointeressante incluir um terceiro indicador: a quantidade e aproporção de membros da igreja que entram nela a partir "de.ora do campo religioso étnico" que a igreja representa: emoutras palavras, a quantidade de "conversos". No levantamen­1.0 de 1970 só duas igrejas - a IRA e a IELA - incluem espe­cífícamente a evangelização do povo argentino na definição desua missão. Ainda assim, é claro que a atual maioria das ou­tras - a Anglicana, a IERP, a IELU, a Igreja Valdense, a IgrejaPresbiteriana - têm um número minoritário mas significativode membros de origem nacional não pertencentes ao grupoétnico, de ministros da mesma origem e, em muitos casos, decongregações quase totalmente ou totalmente nacionais. Acasoessa mudança ocorreu espontaneamente, por um processo denaturalização da igreja? Deve-se a mudanças na concepção teo­lógica derivadas da relação ecumênica em nível nacional ou emnível ecumênico internacional? 'Iem a ver com a formação nacionalde seus pastores em seminários unidos, ou com as transfor­mações sociais: participar de uma sociedade crescentementepluralista, ver-se obrigados por circunstãncias econômicas amigrar a outra região onde não podem participar de sua igrejaétníca>, ou com o fato de assumir, devido à crescente integraçãona sociedade nacional, problemáticas sociais e até politicas sobreas quais se vêem obrigados a "refletir" teológica e eclesialmen­te? É provável que vários desses fatores estejam atuantes emdiversas proporções em cada caso'"; Prefirodeixaraqui em abertoessas perguntas e colocar um último tema que me parece cen­tralpara toda esta discussão: a relação entre etnicidade e missão.

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3. Nação, etnia e missão

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1. .~ todos os gentios". Já "a primeira história da igreja"coloca o tema de "etnia" e "missão". Para Lucas, com efeito, háuma clara seqüência: cumprindo as promessas de Deus, JesusCristo "começou a fazer e ensinar" o que diz respeito ao reinode Deus. 'lendo completado sua obra, o Senhor ressuscitadocontinua, no poder do Espirito Santo, estendendo sua obra ecruzando todas as fronteiras - Jerusalêm, Judêia, Samaria­atê "os confins da terra". Promessa (Antigo 'Iestamento), cum­primento (evangelho), missão marcam o caminho do propósitode Deus. A estrutura do livro dos Atos dos Apóstolos estádeterminada por essa rota. Quando interrompe sua história,Lucas deixa o "apóstolo dos gentios" olhando para esses "con­fms da terra" (At 28.28) que o próprio Paulo assumirá: a Espa­nha, o nec plus ultra ocidental do mundo (Rm 15.24,28).

Já a trajetória profêtica presente em Gênesis inclui "todasas familias da terra" no propósito de Deus (Gn 12.1-3) ao cons­tituir em Abraão seu povo eleito. E essa relação salvífica com"os gentios" ou "os povos" (ta ethne) recebe uma expressãoclássica em Is 2.2-2236• Essa "bênção" que se estende de Israelaos "povos" só se transforma em "missão" como anúncio econvite no judaísmo por volta do ano 300 a.C.: os "prosélitos"são como um prenúncio dessa missão que Lucas transformano próprio sentido da existência da igreja.

Cabe ao apóstolo Paulo a tarefa de fundamentar teologica­mente esse salto qualitativo na história da salvação, que é "amissão aos gentios". O tema tem sido estudado repetidamentee, embora haja aspectos ainda debatidos, uma coisa é clara:em Jesus Cristo, a justiça redentora de Deus irrompe no uni­verso inteiro, derruba o muro que separa judeus e gentios econvoca todas as "nações". Uma nova era, a definitiva, come­çou. Sabemos dos conflitos que Paulo teve de enfrentar emrelação ao significado e às conseqüências concretas dessa novasituação. Trata-se, particularmente, de saber como entender acondição de "povo eleito". Romanos 9 a 11 é a expressão maiselaborada e precisa que o apóstolo oferece sobre o dilema dacondição e do futuro do povo de Israel: a justificação por graçapor meio da fé é a chave'? e o desenvolvimento da "história dasalvação" é o marco teológico dentro do qual ele articula suainterpretação: há um tempo de graça para que "a plenitude dosgentios" se incorpore à promessa e em seu cumprimento Israelé introduzido novamente nessa história. Mas nem uns nem

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outros entram por mérito próprio, e sim unicamente pela graçade Deus.

Não obstante o papel decisivo que o apóstolo Paulo tem noque diz respeito à missão entre os gentios e a vocação particu­lar ao qual ele se sente convocado pelo Senhor ressuscitado,sabemos que o ministério aos não-judeus ou a gentios-prosé­litos foi muito mais amplo. A igreja de Roma, à qual Paulo sedirige, já tem gentios-prosélitos e possivelmente gentios con­vertidos. A comunidade samaritana à qual (e a partir da qual)provavelmente são escritos o quarto evangelho e as epístolasjoaninas, a igreja de Antioquia e as comunidades de que temosconhecimento no Egito e na Siria atestam um amplo desenvol­vimento independente da missão paulina. Seja qual for suarelação direta ou indireta com Paulo, a Epístola aos Colossen­ses desenvolve uma concepção complementar à "história dasalvação" de Atos e Romanos: a unidade de judeus e gentiosestá enraizada na própria criação, na dimensão cósmica dapessoa do Filho (Cl 1.12-23). Em Efésios, ela é o cumprimentoda vontade original de "reunir todas as coisas em Cristo" (Ef1.9-14).

2. Quem são ta ethne e como caracterizá-los? Os estudoslingüísticos nos tornaram muito cautelosos ao tentar identifi­car o sentido das palavras e seu uso. É bom lembrar-nos dissoquando lidamos com termos como "gentios", "nações", "povos".Já os vocábulos hebraicos originais e suas traduções para ogrego e o latim representam interpretações diversas. E quandohoje em dia falamos de "nações", de "etnias" e de "povos", ascoisas se complicam mais ainda. Em termos muito gerais, atre­ver-nos-íamos a dizer que, no uso vétero-testamentário, o ter­mo goyim, que se costuma traduzir por "nações", representa:a) a diversidade dos distintos povos, caracterizados por seulugar de origem (sua "terra"), sua consangüinidade ('famílías'')ou sua "língua", reconhecidos, especialmente na tradição pro­fética, como criação do Senhor Javé e submetidos à sua sobe­rania, ainda que não o conheçam e honrem a outros deuses, eb) em contraposição ao povo ('am) de Israel, o povo do pacto,como o conjunto dessas nações na medida em que não conhe­cem nem honram o único Deus verdadeiro. No primeiro senti­do, Israel pode ser contado entre os demais povos; no segundo,é agudamente distinguido deles. No Novo 'Iestamento, emborao primeiro sentido não tenha desaparecido, predomina o se­gundo quando se utiliza a expressão "as nações" ou "os gen-

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tios". E por isso a igreja nascente se esforça para entender deque maneira os gentios podem, como Israel, ser "povo de Deus".

Que são, pois, as "nações" enquanto diversidade de "po­vos", no primeiro sentido que mencionamos? O Novo 'Iesta­mento não se ocupa muito do tema; talvez só reconheça aexistência dessa diversidade e, no Apocalipse, a presença dos"povos, nações, tribos e línguas" no drama do juizo e da reden­ção, que culmina na nova Jerusalêm que recebe, cumprindo aprofecia de Isaías (60.11), "a honra e a glória das nações" (Ap21.26).

Com base no reconhecimento da soberania universal deDeus e da extensão universal da redenção em Jesus Cristo,parece fácil abandonar essa variedade de famílías, tribos, po­vos, línguas e nações e reduzi-las a uma humanidade comum.O pensamento grego clássico emprestou a essa noção umaandaimaria filosófica, uma "razão" universal que todos os sereshumanos temos em comum e frente à qual as singularidadessão acidentais e sem importància. E a tradição liberal amalga­mou as duas correntes e definiu "direitos humanos": igualda­de, liberdade e fraternidade de todos sem distinções.

Seria ao mesmo tempo ingrato e sumamente perigoso me­nosprezar essa herança universalista. Ela é uma conquistahumana à qual não podemos renunciar; menos ainda hoje,quando a história política, econômica, científica e técnica nosmisturou numa só grande urbe cosmopolita. Mas seria igual­mente tolo não perceber como essa diversidade jamais deixoude reclamar seus direitos, de afirmar suas identidades, de fazersentir sua presença. 'Iem-no feito de forma perversa, procla­mando-se "nações" eleitas, não poucas vezes reclamando legi­timidade religiosa e missões divinas, avassalando outras na­ções e manifestando-se violentamente quando se a desconhe­ce. E o tem feito construtivamente, desenvolvendo suas cultu­ras, organizando-se para o bem comum, criando, a partir de sie sem renunciar à sua peculiaridade, relações de cooperação,organizações internacionais e projetos comuns.

Será possível passar do mero reconhecimento dessa diver­sidade para uma compreensão teológica dela? O caminho maistrilhado no mundo protestante tem sido o de uma teologia das"ordens da críação'<". A nação aparece, assim, como uma rea­lidade ordenada por Deus e, embora corrompida pelo pecado,de validade permanente. Parece que esse conceito predominouna forma em que as "igrejas de imigração" têm interpretado

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sua "etnicidade". Em alguns casos, a ênfase recaiu mais na"etnicidade" como cultura, como "modo de ser" (alemães, dina­marqueses, escoceses ou galeses), inclusive como "cultura evan­gélica" (alemã, dinamarquesa, etc.). Mesmo aí, porém, a vincu­lação à "mãe pátria" ocupa um lugar fundamental. E, freqüen­temente, os residentes se sentem como representantes de suanação de origem e a serviço dos interesses dela. Esse perigo deidentificação de "etnicidade", "cultura étnica" e "nação" (de ori­gem) torna-se sumamente grave em situações conflituosas co­mo aquela criada pelo nacional-socialismo alemão. Mas a equa­ção da idéia bíblica de "os povos" como sinõnimo da formapolítica do "estado-nação" moderno introduz, em todo caso,um perigoso elemento de confusão e o risco de sacralizar osinteresses políticos, econõmicos ou ideológicos de uma deter­minada nação num determinado momento.

Se rejeitamos a identificação de diversidade étnica com anacionalidade como uma "ordem da criação", como reconhecerteologicamente essa diversidade?

3. Espaço, história e missão. O pastor e teólogo luteranobrasileiro Vítor Westhelle colocou a problemática teológica darelação tempo-espaço em seu artigo "Re(ll)gião, o Senhor dahistória e o espaço ílusórío'v". Quando nos lembramos doshorrores perpetrados pelas "ideologias do espaço" - geopolíti­ca, expansionismo, Blut und Boden - não podemos deixar desentir um calafrio ao ver reivindicada a legitimidade do "espa­ço", aparentemente contra a do "tempo" e da história. Entre­tanto, ao superar essa primeira sensação e prosseguir cuida­dosamente com a leitura, a importância e a urgência do temase nos impõem. O espaço representa, nas palavras de Westhelle,

o território de um povo, a terra que pisamos, a cultura à qualpertencemos, o meio ambiente com o qual ínteragímos, a casaem que moramos, as ruas familiares que cruzamos, as redespessoais às quais estamos ligados ou das quais dependemos (...)cadavez mais intrinsecamente ligados à nossa autocompreensão,"?

Acaso estamos condenados a optar entre "espaço" e "his-tória"? O autor nos propõe uma revisão tanto da visão de uma"história ideal" desvinculada do espaço quanto de um "espaçoilusório" que é simplesmente o locus de um conflito de pode­res. E, em lugar dele, nos fala - alinhado com algumas obser­vações de Foucault - de um "espaço tangencial", representa­do pelo "deserto" na experiência de Israel ou por "Gólgota" na

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de Jesus, "quando o círculo do poder é interceptado por umespaço tangencial que revela os limites do espaço próprio e orosto da alteridade como epífanta'<.

Não é possível seguir detalhadamente o trabalho de Wes­thelle, que me permito recomendar. Parece-me, contudo, queuma visão trinitária do tema poderia ser um marco teológicoadequado para situar a problemática que ele nos coloca e queé central para o tema de nossa reflexão sobre as "igrejas étnicas".

A criação, com efeito, é a afirmação do espaço, de umespaço ordenado, povoado de espécies, lugar de diálogo comDeus, de comunhão humana e de produção de vida. Nem opecado, nem a violéncia, nem a corrupção humana anulamdefinitivamente a santidade desse espaço: Javé o reconstrói erestaura para "as famílias" de povos (Gn 10). A encarnação doFilho, longe de ser a dissolução do espaço pela presença dotempo eterno, é sua confirmação: num lugar, em meio a umpovo, uma cultura, uma condição política e social e uma lin­guagem, o Filho de Deus "arma sua tenda", "nascido de mu­lher, nascido sob a lei" (GI 4.4).

O ministério terreno do Filho tem os limites e as limita­ções desse espaço. Porém o Espírito abre esse espaço rumo ao"outro". A maravilhosa narrativa de Me 7.24-30 acerca da curada mulher síro-fenícía dramatiza a crise dos espaços fechados:Jesus se atém a seu limite. E o Espírito o repreende na voz de"um outro total": em terra estranha, de outra raça, mulher econtaminada por uma filha endemoninhada. E Jesus, que naseqüência dessas passagens ganhou todas as discussões, per­de justamente esta: "Disseste a palavra justa".

A universalidade da hístóría da salvação não é a dissolu­ção dos espaços específicos, étnicos e diferenciados. Não é umanegação da etnicidade como criação de Deus, como espaço deencarnação do evangelho de Jesus Cristo. É, isso sim, a nega­ção do espaço fechado sobre si mesmo. O que o apóstolo Paulorejeita é "a etnicidade como méríto'<'. A universalidade da gra­ça não é a eliminação de raça, sexo ou condição social, e simsua libertação para o exercício do amor-e.

Uma doutrina autõnoma da criação transforma a etnící­dade num espaço fechado, imutável, que se justifica a si mes­mo e que só pode conceber a relação com o outro como domí­nio. Essa é a etnicidade teológica do apartheid, dos "teuto­cristãos", do "destino manifesto", da "cultura ocidental e cris­tã", da "missão confiada à raça branca". No outro extremo,

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uma doutrina autônoma da redenção reduz o ser humano aum pecador sem nome, nem terra, nem povo, nem cultura,nem família - e, na versão subjetivista e individualista quetanto nos tem afetado, sem corpo nem comunidade!

Com razão Westhelle reclama contra ambas as tergiversa­ções' representando, em nível teológico, uma critica legítima àmodernidade liberal. E, ao mesmo tempo, protege esse reclamodas tendências dissolventes de uma certa pós-modernidade aosalientar que "por esse reconhecimento da 'alteridade' meupróprio espaço recebe um significado religioso, porque em seulimite o outro toma-se epííãníco'w.

Será que perdemos, nessa reflexão teológica, o sentidoconcreto de nosso tema: a presença do "rosto étnico" junto aosdemais do protestantismo latino-americano? Creio que não. Eme atreveria a concluir com três afirmações que, mais do quepropostas, já são experiência em nossas relações entre igrejasde origem étnica e de origem missionária: 1) o protestantismolatino-americano necessita que as igrejas étnicas mantenhame recriem constantemente a memória de sua terra, de sualíngua, de sua "mentalidade", de suas tradições teológicas; 2) oprotestantismo latino-americano necessita que essa memóriaseja oferecida e recebida, não como um "pacote fechado", mascomo uma participação ativa que gera constantemente, emuns e outros, a identidade evangélica nesse espaço particularlatino-americano no qual nos encontramos juntos, e 3) o pro­testantismo latino-americano - de origem étnica e de origemmissionária - necessita abrir-se, a partir dessa identidade, aoespaço e à história da sociedade latino-americana, onde o Es­pírito de Deus está sempre presente e ativo. E por entre tudoisso, o protestantismo latino-americano não pode se esquecerque toda identidade é sempre criação que Deus ama e preservae "velha criatura" que tem de morrer e ressuscitar "à imagemdo Ressuscitado".

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Capítulo 5

Em busca de coerência teológica: a trindadecomo critério hermenêutico de uma teologia

protestante latino-americana

'Ientamos, nos capítulos antertores, seguir o desenvolvi­mento teológico do protestantismo latino-amertcano, o desen­volvimento desses "rostos" simultâneos, às vezes tão super­postos, às vezes mal conformados, às vezes em confronto. Apergunta é: para que fazemos este exercício? Embora nossotrabalho não tenha sido estrttamente histórtco, constato queestas palavras de Rubem Alves correspondem plenamente àminha intenção:

O historiador (...) é alguém que recupera memórias perdidas eas distribui. como se fossem um sacramento. por aqueles queperderam a memória. Na verdade, que melhor sacramento co­munitário existe que as memórias de um passado comum, mar­cadas pela experiência da dor. do sacrificio e da esperança?Recolher para distribuir. Ele não é apenas um arqueólogo dememórias. É um plantador de vísões e de esperanças.'

1. O futuro do protestantismo

1. A exploração dessas visões com respeito ao futuro doprotestantismo latino-amertcano se desdobra em várias per­guntas: será que o novo interesse pela religião que se percebeem nossas terras - e não só nelas - é uma fase passageiranum processo histórtco que se encaminha inexoravelmente, amédio e longo prazo, para "um mundo sem religião"? Em todocaso, o protestantismo continuará crescendo ou tem ele umteto ou limite que, mais cedo ou mais tarde. deterá seu avan­ço? As formas mais dinâmicas do protestantismo - funda­mentalmente o pentecostalismo - estão fatalmente condena­das aos mecanismos de rotínização e burocratização descrttospor Max Weber, que o levam a imitar as "igrejas tradicionais"?Qual é. em todo caso, o futuro dessas "igrejas tradicionais"?

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As tentativas de responder essas perguntas já constituemuma crescente bibliografia. Há de tudo nela. Já em 1968 Lalivefalava desse "teto". Outros sociólogos, como David Stoll e DavidMartin - com avaliações distintas - prevêem uma continua­ção do crescimento. Alguns entusiastas falam de 80 milhões deevangélicos na América Latina no final do século. Em algunscírculos da Igreja Católica Romana se olha esse processo comalarme, às vezes utilizado como incentivo para a própria tarefaevangelizadora, outras vezes como denúncia de uma "invasão"que se precisa tentar conter por todos os meios. Pessoalmente,pedidos de origens diversas me tentaram a imaginar, sem qual­quer pretensão de clarividência, possíveis cenários e a proporalgumas aproximações (que poderão ser vistas especialmenteem quatro artigos recentess.)

Muitas das tentativas de responder essa pergunta proce­deram com base num esquema sociológico que pressupõe co­mo cenário histórico a passagem da sociedade tradicional paraa modernidade. Esta seria, em tal caso, o futuro de toda ahumanidade. Aceitando-se esse modelo, a sociologia da religiãoelaborada por Max Weber doravante nos permite projetar ocampo religioso, com diversos cálculos dependentes da celeri­dade, lentidão ou descompensações que possam ocorrer na­quela passagem. Em resumo, o final da história está amanhe­cendo progressivamente sobre a humanidade: uma ordem mun­dial homogênea, caracterizada pela economia do livre mercado,pela abundância para todos, pela era tecnológica e pela demo­cracia representativa. É interessante registrar que o profetamaior desse "paraíso", o japonês-norte-americano Francis Fu­kuyama, observou, num artigo recente, que não foi em todasas partes que se gestou o "novo mundo" no ventre da democra­cia e - embora não lhe agrade inteiramente - admite quebem pode haver lugares onde o "fim da história" ande de mãosdadas com regimes autoritários.

As exceções ao mundo de Fukuyama são, seguramente,mais amplas e profundas do que ele está disposto a admitir.Num trabalho ao mesmo tempo erudito e atrevido, O império eos novos bérberoe', um historiador e especialista em 'IerceíroMundo, o francês Jean Christophe Rufín, pinta um cenáriomuito diferente: um "império", o mundo desenvolvido, rico,tecnológico, democrático e ilustrado, que se dobra sobre simesmo e levanta barreiras frente aos "novos bárbaros" do 'Ier­ceiro Mundo e, ao mesmo tempo, constrói guetos e fortificaçõespara manter controlados os "bárbaros" dentro de suas pró-

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prías fronteiras; e um 'Ierceíro Mundo heterogêneo, caracteri­zado por "estados-tampões" ao longo das fronteiras Norte-Sulque separam os mundos, por "feitorias" onde o mundo do Nor­te tem interesses e "representantes" e terrae incognitee, mun­dos abandonados a si mesmos na maior parte do 'Ierceíro Mun­do (e as "terras ignotas" no seio do próprio Primeiro Mundo).Alguns dos sinais de crise emitidos recentemente pelos proje­tos econômicos latino-americanos, precisamente nos "estados­tampões" e "feitorias" - escrevo no início de 1995 - prestamcerta verossimilhança ao cenário de Rufin. É mais provável,entretanto, que a realidade venha a ser uma mescla, em diver­sas proporções, das duas visões: em todo caso, um panoramaconfuso, cambiante e conflituoso. Que lugar poderão ter a re­ligião em geral e o protestantismo em particular numa AméricaLatina em que estados-tampões, feitorias e terras ignotas seseparem e superponham ao mesmo tempo?

2. É moeda corrente supor que, à medida que as socieda­des tradicionais se incorporem à "modernidade" - e possivel­mente depois à pós-modernidade (supondo que esta venha aser outra coisa do que uma "modernidade" à qual se tenhaamputado a alma) -, a religião tende a enfraquecer-se e desa­parecer. A experiência das últimas décadas parece questionaresse axioma. Já Luckmann, em A religião invisíveJ4, havia co­locado perguntas a respeito do "desaparecimento da religião" edestacado que a busca de um "horizonte de significado" dealguma maneira transcendente continua ocorrendo, ainda quede formas distintas - com uma pluralidade de horizontes ­na sociedade moderna. Num interessante artigo sobre "Reli­giões populares e modernidade no Brasíl'", o professor brasi­leiro de ciências sociais Ali Pedro Oro destaca ao menos trêsformas em que o religioso se toma "necessário" em sociedadescomo a brasileira, com setores modernos e setores marginali­zados: como provedora de sentido em setores médios e atéaltos - um sentido que a modernidade exige, mas é incapaz deproporcionar; como "reencantamento do mundo" que permitesacralizar ou "ressacralízar" a vida", mesmo num ambienteurbano; e como religião de êxtase que toma possível projetar­se "para fora" do mundo ordinário e aceder a outro estado deconsciência que liberta a pessoa da prisão de uma cotídíanída­de insuportável. Embora estas duas últimas funções tenhamsua maior atração em setores marginais, não deixam de sersentidas como necessidade nos setores médios e altos. A partir

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de uma localização geográfica e cultural muito diferente, o so­ciólogo B. W. Hargrove dedica dois capítulos de sua sociologiada religião aos novos movimentos religiosos que surgem, se­gundo sua interpretação, como conseqüência da "crise de con­fiança na cultura ocidental moderna", uma crise para a qualtanto as pessoas que se sentem "alienadas" quanto as quecaem numa situação de "anomía'' buscam e produzem umaresposta",

Dentro dessas possibilidades, as igrejas evangélicas - se­ja que mantenham o ritmo de seu crescimento, ou o dimi­nuam, ou cheguem a um ponto de "saturação" - terão, semdúvida, um lugar nesse panorama complexo e confuso masenormemente dinãmico. No campo religioso latino-americano,a presença evangélica já não é e seguramente não será maisum fenômeno periférico, acidental ou "folclórico". Seu cresci­mento levou alguns a esperar, querer ou temer que elas ve­nham a substituir a Igreja Católica Romana, ou seja, a ocuparo lugar e cumprir a função que esta desempenhou e desempe­nha na sociedade e na cultura latino-americanas. Abstraindodo fato de que não creio que isso seja histórica e sociologica­mente realizável, tal proposta me pareceria uma tentação peri­gosíssima. Nosso secular debate com o catolicismo deixaria deser evangélico se se transformasse em competição pelo poder,pelo domínio das almas, pela hegemonia do campo religioso.Ttete-se. pelo contrário, de uma discussão sobre como, de acor­do com o evangelho, a igreja deve estar presente no mundo. Oque os evangélicos rejeitamos não é que se tenha estabelecidoou se procure estabelecer uma "cristandade católica romana",e sim que se estabeleça uma "crístandade'".

3. A responsabilidade do protestantismo, seja qual for seulugar na vida religiosa latino-americana, é o testemunho fiel doevangelho, que se mede pela fidelidade na propagação do evan­gelho, pela fidelidade em que se o vive e pela fidelidade com quese o celebra, ou seja, em sua evangelização, seu comportamen­to e seu culto. Disso nos ocuparemos, em parte, no últimocapítulo. Agora, entretanto, gostaria de demorar-me na buscade fidelidade na compreensão do evangelho, ou seja, na teolo­gia. É possível que a teologia não seja o mais importante nemo primeiro que deve ocupar-nos, mas certamente é indispensável.A igreja não pode existir sem se interrogar constantemente a simesma, à luz da Escritura, acerca da fidelidade de seu teste­munho, da coerência entre sua mensagem, sua vida e seu culto.

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Há algumas décadas, René Padilla destacava que as igre­jas evangélicas latino-americanas eram igrejas "sem teologia".Se a análise que esboçamos é ao menos parcialmente adequa­da, a debilidade teológica do protestantismo latino-americanonão consiste tanto na ausência de teologia, nem em seus des­vios - que existem, como vimos -, mas, antes, em seus "re­ducíonísmos", A herança evangélíca dos "despertares" anglo­americanos, cujo fervor e impulso não devemos menosprezarnem perder, produziu uma dupla redução, cristológica e sote­riológica. E, embora as chamadas "igrejas de imigração" te­nham retido, em sua definição doutrinal, as formulações clás­sicas da Reforma, na prática não funcionaram - por diversasrazões - como corretivo desse reducionismo. Este, por suavez, combinou-se com o caráter individualista, subjetivista eaistórico da visão religiosa da modernidade, desembocando emalgumas das graves deformações de que sofrem nossas igrejas.Assim, a teologia se resume à crístología, esta à soteriologia e,por fim, a salvação fica caracterizada como uma experiênciaindividual e subjetiva. É verdade que, lentamente, temos ten­tado superar esses estreitamentos. E o tentamos, mais umavez, quase exclusivamente em "chave crístológíca", mas semchegar a colocar a cristologia no marco total da revelação. Porisso estou propondo hoje uma perspectiva trinitária que aomesmo tempo amplie, enriqueça e aprofunde a própria com­preensão cristológica, soteriológica e pneumatológica que estána raiz de nossa tradição evangélica latino-americana. O quese segue é, pois, apenas uma espécie de "ruminações" ou "pis­tas" teológicas.

2. O que significa a trindadecomo critério hermenêutica?

Ao propor a doutrina trinitária como critério hermenêutí­co no desenvolvimento de uma teologia, parece-me necessáriodestacar três riscos: o primeiro é esquecer que a doutrina datrindade - não, por certo, a realidade do Deus trino - é umaformulação teológica da igreja que procura integrar a totalida­de da experiência da revelação, não como se pretendesse "a­barcar" essa totalidade ou "esgotar" seu significado, mas simcomo uma "lembrança" permanente de que cada vez que fala­mos de Deus, de sua palavra, de sua ação, estamos falandodessa riqueza inescrutável e inesgotável que chamamos Pai,Filho e Espírito Santo. A doutrina, porém, não é nem menos

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nem mais do que isso: uma tentativa da igreja; por isso, oobjeto de nossa fé não é a doutrina da trindade, e sim o Deustrino. A doutrina tem o caráter de um princípio diacrítico, quenos permite distinguir, discernir, corrigir.

Em segundo lugar, não devemos nos deixar obcecar pelo"número mágico" três e transformar a doutrina da trindadenuma espécie de adivinhação numérica - para ver quantos"três" conseguimos encontrar na natureza, na ciência ou nocosmo; os exemplos dessa "pítagorízação" da trindade são le­gião na história da doutrina. Mais perigoso ainda é ver natrindade uma espécie de "divisão de trabalho" em Deus, umarepartição de funções que nós, depois, podemos manipularpara servir-nos do "funcionário divino" que mais nos convenhana ocasião. Assim temos proclamado eras do Pai, do Filho oudo Espírito ou temos justificado nossos reducionismos confes­sionais proclamando que nossas teologias são "do primeiroartigo", "crístocêntrícas" ou "espirituais".

Finalmente, quando falamos do "mistério" da trindade, ébom definirmos em que sentido nosso Deus é mistério: ele o é porsua liberdade, porque nunca poderemos sondar "a mente deDeus", porque permanece sempre essa "alterídade", essa trans­cendência divina ante a qual, em última análise, só nos cabecair de joelhos, calar num silêncio de amor e reverência e adorar:

Santo, santo, santo,meu coração te adora;meu coração sabe dizer-te:Santo és tu, Senhor!

Porém Deus não é o mistério obscuro e inomeável de al­guns misticos; não é o "abismo" que não admite qualificações.O Deus da Escritura, o Deus do evangelho é o "mistério reve­lado" (Ef 3.1-13); é o Deus que disse seu nome e entrou numpacto (Êx 3); é o Deus que quis qualificar sua ação, chaman­do-a amor, justiça, fidelidade.

Raros serão os evangélicos latino-americanos que neguema trindade. Creio, porém, que não é injusto dizer que essaafirmação ficou como uma doutrina genérica, que não informaprofundamente a teologia e, o que é pior, a piedade e a vida denossas igrejas. Para que ela constitua verdadeiramente umcritério hermenêutico, é preciso explorar com maior profundi­dade o que é que afirmamos na doutrina da trindade. A igrejafez isso, especialmente nos primeiros séculos. No século 16,Calvino e depois teólogos anglicanos souberam aproveitar essa

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tradição. Alguns teólogos católicos latino-americanos (Juan LuisSegundo, José Comblin, Leonardo Boff Ronaldo Munoz, entreoutros'') têm chamado recentemente a atenção para sua ím­portãncia. O protestantismo latino-americano tem de reclamare cultivar essa tradição trínítáría, sem nos amedrontar porquea terminologia às vezes parece abstrusa e vetusta. Três dasafirmações clássicas me parecem particularmente fecundas pa­ra nosso tema.

1. Em primeiro lugar, devemos lembrar-nos que a doutri­na da trindade é a expressão do que a Escritura nos revelaacerca da história de Deus com seu povo. Com efeito, nessahistória Deus se manifestou como Javé, o Senhor soberanoque esteve antes do "princípio de todas as coisas" (Gn 1.1),cuja palavra origina tudo o que é e tudo o que vem a ser. Nessahistória Deus manifesta sua liberdade de decidir e escolher (naverdade, escolhe o povo mais fraco e insignificante da terra efaz um pacto com ele [Dt 7.7-8; 26.5ss.]) e de "ficar" fielmentecom a humanidade até chegar a "armar sua tenda" e habitarcom ela. Nessa história a comunidade de Pentecostes recebe apresença desse Deus como efusão na vida da própria assem­bléia e de seus membros. O Deus da trindade não é eterno naintemporalidade de um princípio ideal ou de uma constanteindeterminada. Ele é o Deus que faz história: crer no Deustrino é entrar nessa história10.

Juan Luis Segundo expressou isso muito graficamente aodizer que Deus é sempre aquele que "está antes que nós",aquele que "está conosco" e aquele que "está em nós". O "an­tes" é a expressão da transcendência e liberdade de Deus emtoda a sua obra: quando descobrimos a presença de Deus nanatureza, na história, na igreja, no pão e vinho da comunhãoou na relação pessoal da oração, não estamos "tomando possede Deus", não estamos lhe prescrevendo que apareça; ele pre­cede e transcende todas as suas manifestações. Não há tem­plo, nem sacramento, nem oração, nem igreja, nem doutrina,nem experiência que o contenha (l Rs 8.27; Is 66.1-2; 55.8). E,como nos adverte pela boca de Jeremias (7.1-14), ele podedestruir todo templo - ou experiência, ou igreja, ou sacramen­to - que se transforme em ídolo!'. À liberdade soberana doDeus que está sempre "antes" corresponde a liberdade proféti­ca do juízo purificador. "Com" significa que, não obstante, Deusse faz realmente carne neste mundo, que não se recusa atomar-se vulnerável, tomar nome humano em nossa história,

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tornar-se nosso vizinho: fazer-se palavras humanas, gestos,lei, povo, presença visível, audível. À encarnação de Deus nahistória correspondem a palavra concreta de um livro - aBíblia - e a congregação concreta de um povo - a igreja ­onde Deus verdadeiramente está, de maneira plena e real. O"em" expressa a própria vida de Deus em nossa vida, a energiaque nos permite ser ("nele vivemos, e nos movemos, e existi­mos"; At 17.28) e que garante essa vida para sempre; a forçado Espírito que repleta a totalidade de nossas capacidades edons e nos permite consagrá-los a seu serviço, a alegria desentir sua presença e de celebrá-la com emoção e a viva voz. Àmorada desse Deus "em" nós correspondem a experiência, aoração, a pregação, o culto, não como meros fenómenos psico­lógicos ou simbólicos, mas como "sarça ardente" de sua presença.

2. O mesmo Juan Luis Segundo foi o primeiro a insistir,entre nós, em recuperar uma tradição dos pais gregos - par­ticularmente dos chamados "capadócios" - para a qual a trin­dade significava primordial e fundamentalmente "a comunhãodas pessoas" da trindade12 . Recentemente Leonardo Boff de­senvolveu com cuidado essa linha teológica em seu livro Atrindade, a sociedade e a libertação. Reduzindo-o a uma lin­guagem menos técnica, isso significa afmnar que Deus, emseu próprio ser, não é o Eu absoluto dos filósofos, nem o mo­narca unipessoal que projeta nos céus a imagem de um impe­rador absoluto, nem a solidão inacessível do "Uno" em egrégioisolamento; antes, Deus é em si mesmo uma permanente con­versação, uma comunhão de amor, uma identidade de propó­sito e uma unidade de ação: Pai, Filho e Espírito Santo. Umescritor do século 6 parece ter sido aquele que utilizou umtermo grego para sublinhar essa afirmação: pertchoresis (mo­rar um no outro, "in-habitar" e/ou compenetrar-se um comoutro). As referências bíblicas que sustentam essa maneira deexpressar-se são mais do que abundantes, particularmente noEvangelho de João (17.21-23; 10.30,38; 14.11) e nas fórmulasternárias que encontramos em Paulo (Rm 8.10; 1 Co 2.11; 2 Co13.14; 1.21-22). Por isso, com a mesma energia a igreja diráque as pessoas são irredutíveis uma à outra - "outro é o Pai,outro é o Filho, outro é o Espírito Santo" - e que "o Pai estátotalmente no Filho e totalmente no Espírito Santo" e assimsucessivamente em relação ao Filho e ao Espírito. Não se tratade um enigma a resolver: a diferenciação e a unidade não seopõem porque "Deus é amor".

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o que aqui se nos revela é a natureza da realidade última:a vida de Deus é comunhão. não se afirma a identidade re­traindo-se sobre si, mas abrindo-se ao outro: a unidade não ésingularidade. e sim comunicação plena. À semelhança dessanatureza fomos crtados>: na participação nessa constante "con­versação" divina encontramos o sentido de nossa existência. avida abundante; sobre esse modelo devemos estruturar nossasrelações humanas. Nem a autoridade onímoda de um sobre osdemais, nem a uniformidade indiferenciada da massa. nem aauto-suficiência do self-made mano e sim a perichoresis doamor é nossa origem e nosso destino como pessoas, comoigreja. como sociedade.

3. A tradição teológica ocidental. talvez mais pragmática.tentou afirmar a mesma verdade em relação com a ação doDeus trino ao cunhar, a partir de Agostinho, a fórmula opustrinitatis ad extra indivisum (ou opera trinitatis ad extra indi­visa sunt ["a(s) obra(s) da trindade voltada(s) para fora éísão)índívísalsl'f}'". Ou seja. o que o Deus trino faz no mundo - nacriação. na reconciliação. na redenção - é sempre. ao mesmotempo e de maneira concertada. obra do Pai. do Filho e doEspírito. Mesmo que talvez se explique que. teologicamente,nos acostumamos a "apropriar" a cada uma das pessoas res­pectivamente essas três formas de ação de Deus. é necessárioque evitemos transformar essa apropriação numa separação.OUo Weber nos adverte, com razão:

Só quando também não perdemos de vista a unidade de Deusem sua obra, podemos evitar uma "teologia do primeiro artigo"isolada, um "cristocentrismo" isolado ou um "espiritualismo"isolado na teologia. Pode-se até dizer que aqui a doutrina datrindade alcança sua relação mais imediata com a piedade; emtodo caso, não é dificil se dar conta de que, com a ruptura ou oretrocesso da doutrina da trindade na consciência da comuni­dade, a própria piedade toma-se unilateral e, nessa medida,perde em vitalidade e ríqueza.P

Conhecemos muito bem, em nossa experiência latino-ame­ricana. o que tem sido uma "piedade da providencia" passivaou conservadora no catolicismo popular. uma "piedade cristo­monísta" que se esquece do reino de Deus e se desinteressa domundo em nossa comunidade evangélica e uma "espiritualiza­ção" que se perde na perseguição descontrolada de experiên­cias cada vez mais espetaculares e esotéricas em alguns gru­pos pentecostais. A doutrina trinitária nos lembra que o Deus

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que vem ao nosso encontro na criação e na história, no perdãodos pecados e na busca de santificação é o mesmo Deus Pai,Filho e Espírito Santo ao qual devemos responder sempre se­gundo a plenitude e "plurídímensíonalídade" de sua obra.

3. Rumo a uma cristologia trinitária

É minha convicção que essas afirmações trinitárias nosoferecem uma estrutura de pensamento teológico que poderesgatar-nos dos reducionismos que afligem o protestantismolatino-americano. Desenvolver essa convicção nos levaria a apli­car esse critério aos distintos loci theologici. Seria particular­mente significativo fazê-lo em relação à eclesíología, à doutrinada santificação ou à escatologia. É evidente que essa tarefaescapa, neste momento, a nossas possibilidades, porque signi­ficaria abordar a totalidade dos temas doutrinais. Mas, já queinsisti no estreitamento "crístológíco" como um aspecto centralde nossa debilidade teológica, permitam-me concluir este capí­tulo destacando alguns dos aspectos nos quais o critério trini­tário poderia corrigir e enriquecer a crístología característicadas igrejas evangélicas latino-americanas.

1. A fé em Jesus Cristo no mundo das religiões. Um dosproblemas que a teologia evangélica tem de enfrentar em nossaépoca é como responder à crescente e complexa pluralidadereligiosa de nossos povos.Tradtcíonalmente. definíamo-nos co­mo "a verdade do evangelho" frente aos "erros do romanísmo"(esta era nossa linguagem). Juan Mackay teve a perspicáciateológica de desprender-se dos argumentos apologéticos se­cundários - purgatório, veneração dos santos, maríología - ecolocar o debate em termos crístológícos: o contraste entre o"Cristo da morte" trazido da Espanha (ou da África, segundosua análise) a nossas terras com a conquista e o "Cristo vivo"do evangelho, o Cristo ressuscitado, vivente, próxímo'", Entre­tanto, a discussão se colocava dentro de uma referência crís­tológíca mutuamente aceita. Este não é mais o caso: os novosmovimentos religiosos, a presença ativa de outras grandes re­ligiões, o renascimento - ou melhor, a manifestação e a vindi­cação pública - das religiões indígenas ou afro-americanasnegadas e ocultadas, tudo isso nos coloca uma problemática nova.

Como entender essa nova realidade? O crescimento pen­tecostal introduziu o problema dentro de nossa própría vidaevangélica, porque não podemos ignorar o fato de que a píeda-

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de popular pentecostal e carismática incorpora muitos elemen­tos e manifestações tipicas da piedade popular. A esse respeitojá há estudos de autores pentecostais, como os da equipe chi­lena auspiciada pelo SEPADE, já citados (especialmente vol, lI,caps. 4 e 5) e o interessante artigo de Bernardo Campos sobre"O influxo das 'huakas' ou a espiritualidade pentecostal noPeru" (trabalho preparado para a Associação Ecumênica de'Ieólogos do 'Ierceíro Mundo [ASElT] e não publicado até omomento), que reconhecem e afirmam a legitimidade desseselementos. Será suficiente, frente a isso, que os protestantesnos empenhemos em repetir, como já o temos feito por mais deum século, o grito de combate da ínquísíção: tudo isso nãopassa de superstição, paganismo, bruxaria ou artimanhas deSatanás?

Sabemos que a igreja enfrentou de diversas maneiras, apartir do século 2, a pergunta: como Jesus Cristo se relacionacom o mundo das religiões? Encontramos, inclusive, sinaisdesse tema já no Novo 'Iestamento, O movimento missionáriodos séculos 18 a 20 manifestou a mesma diversidade de enfo­ques. Alguns tentaram típíflcar as várias linhas como: Cristocontra as religiões, Cristo nas religiões, Cristo por sobre asreligiões (como seu "cumprimento") e Cristo com as religiões(na linha de uma crístología do Iogos)!7.

Os protestantes temos reagido com razão contra toda for­ma de "sincretismo". Com razão, mas nem sempre com discer­nimento. Nos termos de um agudo dito de Jesus, temos visto"o argueiro no olho do próximo" (o sincretismo, a idolatria e amagia que denunciávamos no catolicismo), mas não temospercebido "a trave em nosso olho" (p. ex., a incorporação deelementos da cultura e da ideologia anglo-saxã em nossa pró­pria religiosidade). De alguma maneira temos nos autodesígna­do como os únicos possuidores e juízes de uma tradição dou­trinal pura e absoluta, e a partir dai temos condenado a mesclada religiosidade popular católica.

1àl posição é, de qualquer ponto de vista, inaceitável. Porum lado, já salientamos que nossa própria "religiosidade popu­lar" não é imune à assimilação de elementos da cultura e dareligiosidade dominantes na sociedade. Por outro, só por pre­conceito ou miopia se pode negar que a tradição bíblica ­tanto em Israel quanto na igreja - atesta a assimilação eincorporação de termos, categorias, formas litúrgicas e tradi­ções das culturas e religiões circundantes. Conscientes dessesfatos, alguns dos mais lúcidos teólogos e teólogas de uma nova

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geração se puseram a trabalhar sobre o tema, mostrando oscondicionamentos e limitações de nossas próprias experiências- e, portanto, concepções - de Deus e da fé, e destacando anecessidade de prestar atenção, com humildade e respeito, aoutras experiências e concepções. O diálogo no qual se desco­brem diferenças e coincidências, no qual se reconhecem in­fluências e contribuições mútuas seria a nova forma de abor­dar esse tema. Parece-me que se trata de uma atitude sadia ecorreta. A pergunta fundamental que devemos fazer-nos, en­tretanto, parece-me ser se todas essas influências e contribui­ções que nos vêm da cultura e de outras experiências religiosasforam, ao serem assumidas em nossa própria experiência defé, "reínterpretadas e ressignificadas" a partir da revelação doDeus do pacto ou se, pelo contrário, foram "batízadas" semnascer de novo. Se, efetivamente, devemos tomar distânciatanto de uma atitude de "purismo" quanto de uma aceitaçãoacritica, como pensar teológica e pastoralmente esse dilema?Creio que um enfoque crístológíco trinitário pode servir-nos deguia nessa tarefa.

O que significaria encarar esse tema no marco de umacristologia trinitária? Em primeiro lugar, não desligar o JesusCristo neotestamentário da Palavra "que era desde o princípio""com Deus e era Deus". Digo expressamente palavra, e não"Logos", porque não se trata de um princípio racional eternoque informaria toda a realidade, e sim da Palavra criadora quecriou e recria constantemente o mundo, do Espírito de poder evida que dinamiza o mundo natural e humano: a dabar e oruach de Javé que se fez carne não têm estado ausentes tantodo mundo natural quanto da história dos povos, como o diz demaneira tão bela e vigorosa o profeta Amós: "Não fui eu que fizsubir os filisteus de Caftor e os siros de Quir?" (9.7); ou Isaías:"(Ciro) é meu pastor (...) o ungido" (44.28; 45.1); ou o salmista:"se tiras teu Espírito (de toda a criação), morrem e voltam a seupó; envias teu Espírito, eles são criados e renovas a face daterra" (104.29-30). Reconhecer na história, nas culturas, naslutas e nas religiões dos povos a presença dessa Palavra edesse Espírito não é ceder ao paganismo, e sim confessar aque­le sem o qual "nada do que foi feito se fez" (Jo 1.3). Com razãodizia um cristão da Ásia: "Nosso Deus não é um deus inválidoque chegou à Ásia às costas de um missionário."

Porém não é menos certo que uma teologia cristã nãopode desligar a Palavra e o Espírito de Deus da "carne" do filhode Maria, de seu ensinamento, de sua mensagem, de sua vida

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e de sua morte, de sua ressurreição e seu senhorio. Aí estão asmarcas da autêntica Palavra e do Espírito do Deus do pacto.Pelo critêrio da presença de Deus nele se mede toda supostapresença desse Deus na história humana; aí se afirma o genui­no e se rejeita o idolátrico em toda religião e em toda culturahumana - inclusive em nossa religião e em nossa culturalNão está equivocada EIsa 1àmez quando interpreta a luta pelaidentidade de Quetzacoatl como Deus de vida ou de morte nacultura maia e asteca à luz do combate profêtico da Escriturapelo verdadeiro Deus!". E, em minha opinião, Leonardo Boffnão está desencaminhado quando propõe "a gratuidade dagraça de Deus" e "o compromisso com a misericórdia e a justí­ça" como marcas de uma verdadeira apropriação cristã de qual­quer tradição cultural.

Mas há tambêm uma "pista trinitária" frente à perguntaacerca do como dessa "transsígnífícação" das tradições religio­sas e culturais. Com efeito, a possibilidade de uma transforma­ção genuína só existe quando o Espírito de Deus trabalha nahistória e na cultura dos povos para atestar o sígnífícado deJesus Cristo em sua vida. Esse processo ficou rompido emnossa América pela violenta imposição da religião espanhola. Osincretismo latino-americano não é resultado de uma excessi­va tolerãncia ou acomodação - como às vezes temos dito osprotestantes - e sim da tentativa brutal de "apagar" a hístôríadesses povos e substitui-la por outra, supostamente cristã. Eleé produto de uma resistência, quando a conquista anulou aspossibilidades de uma evangelização genuína. É claro que oevangelho nunca "volta vazio". Mas esses séculos sem verda­deiro encontro e diálogo pesam gravemente. 1àlvez se nos dêhoje aos evangélicos (como se está dando em alguns lugares apartir da Igreja Católica) uma oportunidade de recuperar algodesse encontro. É justamente aqui que valorizo a experiênciaque está ocorrendo no que chamamos de "pentecostalísmo criou­lo". Aí se opera uma evangelização "a partir de baixo", a partirda vivência e da realidade dos setores populares. 'leremos dedizer uma palavra mais sobre o discernimento dessa obra doEspírito. Mas uma teologia trinitária tentará ver e ouvir o queo Espírito do Senhor - o Jesus Cristo presente - opera na fédesses setores populares para atualizar a unidade da Palavraeterna da criação, da carne histórica de Jesus Cristo e daexperiência de fé do pOV019 •

2. A trindade e a responsabilidade social dos cristãos. Es-

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sa perspectiva crístológíca trinitária vem igualmente guiar-nosnaquela que talvez seja a questão mais instigante e debatidano mundo evangélico: nossa responsabilidade ante a proble­mática de nossas sociedades. Creio que não é exagerado dizerque a crtstología e a soteríología quase exclusivas na tradiçãoevangélica latino-americana se enquadram no marco de umainterpretação sacerdotal. Com efeito, Jesus Cristo vem "lim­par-nos" da mancha do pecado mediante seu sacrificio expia­tório (veja-se praticamente toda a hínología centrada no temado "sangue" que "lava", "do preço" pago em nosso benefício).Quem duvida disso? Mas, à parte dos problemas teológicos queessa exclusividade implica (dos quais o mais grave é a cisãoque muita pregação "evangelizadora" corrente introduz entre oFilho e o Pai), trata-se de uma leitura "redutora" e unilateral daEscritura. Há uma tradição profética que Jesus assume e re­clama para si que não pode ser reduzida legitimamente a "pre­dição" ou "tipologie". Vale aqui recordar a sóbria admoestaçãode Bonhoeffer de não se passar com demasiada rapidez doAntigo 'Iestamento ao Novo.

Essa tradição profética, situada no marco da teologia bí­blica do pacto, tem a ver com a redenção como libertação daescravidão aos poderes opressores da história - e não só dasculpas pessoais ou coletivas - e para um pacto que exige aprática da justiça, misericórdia e fidelidade, um pacto de sha­10m histórica e não só de resgate escatológico. A partir daquelainterpretação sacerdotal "redutora", toda a vida da Palavra en­carnada - o ensino, o ministério, os atos de poder de Jesus ­fica reduzida a uma espécie de "prefácio" à sua morte e ressur­reição: uma conclusão na qual, curiosamente - ou não ­coincidem os fundamentalistas dispensacionalistas e o super­liberal existencialista Rudolf Bultmann-vl

O "evangelho social" tentou restaurar a perspectiva profé­tica insistindo nos "princípios sociais" de Jesus. Mas tanto suainterpretação "liberal" desses princípios quando sua incapaci­dade de vinculá-los a uma visão teológica mais plena frustra­ram em parte essa tentativa. No movimento carismático, ainsistência em Jesus Cristo como "Senhor" e, por conseguinte,na fé como "díscípulado" abria as portas para um desenvolvi­mento crístológíco mais pleno. Não obstante, parece-me queele não conseguiu defmir os conteúdos sociais mais profundosdo discipulado para o qual convoca. Hoje, por outro lado, nodesenvolvimento dos trabalhos históricos, o "ceticismo" comreferência à possibilidade de acesso ao "Jesus histórico" está

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dando lugar a trabalhos de contextualização social e históricaque, sem negar as dificuldades de falar de tpisissime verba ouipissime acta de Jesus, mostram-nos o movimento gerado porJesus dentro da tradição profética nas condições conflituosasdo século 121• Na América Latina, esses trabalhos confírmamurna hermenêutica dos evangelhos centrada na mensagem doReino e na inserção de Jesus na "tradição dos pobres" emconflito com as tradições da condução religiosa e política dossetores dominantes do judaísmo e do poder imperial-é.

Não se trata agora, de maneira nenhuma, de substituirum unilateralismo sacerdotal por um profético, e sim de afir­mar claramente a unidade de ambas as interpretações. O Ser­vo sofredor que carrega o fardo de nosso pecado e nos libertada culpa para iniciar urna vida nova é também o profeta quepurifica o templo de mercadores e nos convoca para um pactode justiça e shalom. EIsa 'Iarnez, trabalhando sobre a tradiçãopaulina, resumiu, com muita razão, a mensagem da justifica­ção pela fé corno "livres de toda condenação" para poder amare servir em verdade e justíça>.

Se entendemos nossa crístología em termos trinitários,ternos de levar seriamente em conta urna atuação da Palavra edo Espírito do trino Deus que atua no mundo corno convite e,ao mesmo tempo, corno juízo na busca de shalom e justiçaantes que nós cheguemos e à parte de toda ação dos crentes edas igrejas. Esse mesmo Jesus Cristo, que nos convoca a par­ticipar de sua obra na sociedade e na história, define os con­teúdos de paz e justiça em seu ensino e em sua ação históricae, no poder do Espírito Santo, nos capacita para discernir osmodos e as características de nossa participação corno crentese corno igrejas no presente histórico em que nos cabe atuar. Aconsciência de sua transcendência nos impede de fixar numaproposta social, econômica ou política o horizonte último dessaação; seu "esvaziamento" numa vida condicionada social e cul­turalmente nos protege de uma "assepsia" histórica com a qualfreqüentemente disfarçamos corno neutralidade piedosa o que nãopassa de traição ao evangelho e, ao mesmo tempo, a nosso povo.

3. A trindade e o "Cristo no Espírito". Ricardo Rojas profe­tizava em 1928:

o mundo necessita novamente da vinda do Messias; e se há 20séculos veio à terra, como homem de carne, o Cristo dos ritos etemplos, hoje esperamos o Cristo social, que virá no Espírito,como ele o anunciou, para a elevação das almas e a paz dos povos.ê"

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Acaso seu vaticínio estará se cumprindo no crescimentodo cristianismo pentecostal de nosso tempo? De fato, a tradi­ção evangélica latino-americana é fortemente pneumatológíca.'Ianto em sua expressão nos "avivamentos" quanto no "movi­mento de santidade" do século 19 e no pentecostalismo doséculo 20, a adscrição à "obra do Espírito" tem sido a dinâmicafundante e fundamental. Não obstante, nenhum desses movi­mentos desenvolveu uma verdadeira teologia do Espírito, e me­nos ainda uma teologia do Espírito Santo num contexto trini­tário. Na realidade, tal teologia tem estado ausente na tradiçãoteológica dominante no Ocidente. O catolicismo não teve umateologia pneumatológtca, talvez, como o dizia não faz muito umeminente teólogo católico, "porque a igreja substituiu o Espírito".

O protestantismo clássico deu ao Espírito Santo um papelpassivo de legitimação da Escritura, uma espécie de "selo" sub­jetivo de aprovação, que nada contribuia para a interpretaçãode seu conteúdo. E o protestantismo pietista e evangélico lheatribuiu um papel na "subjetivação" da fé como experiéncia. Omovimento pentecostal destacou as manifestações extraordi­nárias do Espírito, mas sem as vincular à totalidade da "obrado Espírito" e menos ainda a seu contexto trinitário. Atrever­me-ia a sugerir, no contexto da hermenêutica que venho pro­pondo, que uma crístología trinitária deveria considerar, naAmérica Latina, a relação Cristo / Espírito em relação com aomenos dois temas: a liberdade e o poder do Espírito, e o discer­nimento do Espírito Santo.

Com efeito, na linguagem bíblica o Espírito é o poder, aforça de Deus (por certo, em nossa perspectiva, do Deus trino)atuando no mundo e na história para cumprir o propósitodivino. Essa palavra e esse poder armaram sua tenda entrenós em Jesus o Cristo. Parece-me que a tendência de algunshistoriadores contemporãneos da teologia a ver no Novo 'Iesta­mento uma oposição de "crístologías do lagos" e "crístologíasdo Espírito" não leva suficientemente a sério a relação entre"palavra" e "espírito" na tradição bíblica e está demasiado in­fluenciada pelo peso que assumiram posteriormente as inter­pretações helenizantes de "palavra" como "logos". Não é este omomento de aprofundar um estudo do uso teológico dos con­ceitos de "palavra" e "espírito" no Antigo e no Novo 'Iestamen­tos. Limito-me a sugerir que, embora haja diversos matizes etradições bíblicas em ambos os casos, tanto uma noção quantoa outra incluem um elemento fundamental de ação, força erealização, e outro de propósito, vontade e revelação. Pela Pa-

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lavra e pelo Espírito, Deus manifesta sua vontade - ou seja,se manifesta a si mesmo - e a realiza dinamicamente nomundo e na história.

Se não estou equivocado, a experiência do Espírito Santoé, no pentecostal, a experiência do "poder do Espírito Santo".Na expressão das origens do pentecostalismo nos Estados Uni­dos, o verbo empower, to be empowered aparece constante­mente. E, embora o português não tenha esse verbo, os termos"receber o Espírito", ou "ficar cheio do poder do Espírito", ou"agir no poder do Espírito", ou "o Espírito de poder" têm amesma conotação. Trata-se do poder para testemunhar, paracurar, para expressar-se em línguas, para ser "inteiramentesantificados". Atrever-me-ia a falar aqui, em termos do capítu­lo 8 de Romanos, da experiência do Espírito como antecipaçãoda redenção final: é "conhecimento cara a cara", é eliminação"de toda fraqueza e de toda doença", é louvor e gozo pleno nummilagre e numa situação extática em que desaparecem nossafinitude e nosso pecado. Entretanto, essa perspectiva escatoló­gica fica aqui, como em quase toda a tradição evangélica lati­no-americana, restrita à obra do Espírito no ãmbito da reden­ção e, mais estreitamente ainda, da redenção individual ou,quando muito, da igreja. Quanto à antecipação da plenitude daobra do Espírito na redenção da totalidade da criação - daqual também fala Romanos 8 - nada escutamos. Nossa teolo­gia evangélica latino-americana não parece saber nada do Es­pírito que renova a face da terra, do Espírito que unge Ciro, doEspírito que faz falar a jumenta de Balaão (Nm 22) ou que ungeMeliquisedeque, sacerdote e rei pagão (Gn 14.17ss.}25. Em ou­tras palavras: sabemos do poder do Espírito, mas não da liber­dade do Espírito para atuar ubi et quando visum est deo ["ondee quando aprouver a Deus"]. Nesse vazio fica sufocada a voca­ção profética da igreja no mundo.

O tema da liberdade e do poder do Espírito, porém, recla­ma o do discernimento do Espírito. O "poder" -é, com efeito,um "bem religioso" muito cobiçado. Quem o possui - como"rnaná", "carisma" ou legitimação da "ordem sagrada" - gozade um espaço de liderança, de prestígio, de influência. Masacaso esse bem é sempre o Espírito Santo? Esta é uma proble­mática muito concreta e muito conflituosa na vida de nossasigrejas.

O discernimento do Espírito é, nos termos do Novo 'Iesta­mento, um dom do próprio Espírito, não uma fórmula que seaplique mecanicamente. Mas não se trata de um círculo vicio-

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so porque há certos critérios ligados ao caráter e ao propósitodo Deus trino manifestados na história da revelação. O Espíri­to Santo é o Espírito do Deus criador que dá vida, a protege eredime, do Deus do pacto que permanece fiel e exige justiça emisericórdia. Quando o poder e a liberdade do Espírito sãoinvocados e reclamados para ações e condutas que conspiramcontra a vida, a justiça e a misericórdia, temos razões paraduvidar de que seja o Espírito Santo.

O Novo 'Iestamento estabelece uma dupla relação entreJesus Cristo e o Espírito. Por um lado, Jesus Cristo vem e atua"no poder do Espírito", ou seja, no propósito e no poder de Javéassim como se manifestaram na criação e no pacto. Por outrolado, Jesus Cristo outorga o Espírito. Não pode haver contra­dição, mas deve haver complementação de ambas as afirma­ções. O Espírito que Jesus Cristo concede não é outro do queaquele no qual ele mesmo atua e que é reconhecido pela con­tinuidade desse propósito e dessa obra, agora interpretados edefinidos na própria ação do Filho. Por isso se justifica, aindaque não haja por que aferrar-se literalmente à fórmula, a ex­pressão do credo ocidental: o Espírito "procede do Pai e doFilho {fllioque)". O apóstolo Paulo, por sua vez, toma muitoconcretos esses critérios: não é o "caráter espetacular" dasmanifestações, e sim os "frutos" do Espírito (GI 5.22-23) quelegitimam a reivindicação de ter recebido os "dons do Espírito",como ilustra muito bem a ampla discussão do tema em 1Corintios 12-14. É verdade que em 1 Corintios 12 Paulo propõea afirmação "Cristo é Senhor" como prova de se ter o Espírito.Mas também exige que quem está no Espírito do Senhor ande"segundo o Espírito" (Rm 8.1; GI 5.16,25; CI 2.6), ou, nas pa­lavras de 1 João 2.6: "Aquele que diz que permanece nele, essedeve também andar assim como ele andou." E recordemos que"andar" no Senhor ou no Espírito significa, segundo Paulo ouJoão, "andar no amor". Quando se utiliza o poder divino comoinstrumento para auto-engrandecer-se e dominar ou explorarpor ganho econômico, a fidelidade ao evangelho nos obriga aduvidar da legitimidade desses dons.

Esta tentativa pretende apenas mostrar algumas das pos­sibilidades de desenvolver uma perspectiva hermenêutica tri­nitária na interpretação e integração da temática teológica,como correção e sustentação de nossa resposta às exigênciasda vida e missão das igrejas evangélicas latino-americanas emnosso tempo.

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Capítulo 6

Em busca da unidade:a missão como princípio material

de uma teologia protestantelatino-americana

Em que consiste a identidade protestante? Ou mais preci­samente: há um critério teológico de referência para identificaruma teologia protestante? 'lemos suposto que os clássicos "so­mente" - sola tide, sola scriptura, solus Christus - identifi­cassem o protestantismo. Mais tecnicamente, fala-se de um"princípio formal" (a autoridade exclusiva da Escritura) e deum "princípio material" (a doutrina da justificação pela fé) co­mo os eixos sobre os quais se constrói uma teologia protestan­te. Na realidade, trata-se de resumos cunhados com propósitostestemunhais ou polêmicos, com um valor mais simbólico doque estritamente teológico. Ao primeiro, ligado ao advérbio "so­mente", é preciso sempre acrescentar que, de fato, nem a fé,nem a Escritura, nem Cristo nunca estão sós, e sim numcontexto teológico mais amplo que permite definir seu verda­deiro conteúdo. O diálogo teológico dos últimos 40 ou 50 anosnos ensinou a relativizar essas formulações. Os dois princípios- formal e material - resultam de uma longa história, cujaorigem nos reformadores é um tanto remota e imprecisa1. Porcerto há nesses princípios um conteúdo significativo que énecessário resgatar. Paul Tillich contribuiu para a discussãodo "próprio" protestante com sua formulação do "princípio pro­testante", que interpreta a justificação pela fé como um princí­pio antiidolátrico que "contém o protesto humano e divino con­tra toda pretensão de absolutizar qualquer realidade relativa,inclusive de uma igreja protestante'<. Rubem Alves, por suavez, retoma o princípio protestante de Tillich e vê nas origensdo protestantismo latino-americano a atuação de um "princí­pio utópico" desinstalador em relação à absolutização católica,mas um princípio que o próprio protestantismo abandonou aoabsolutízar-se "no protestantismo da reta doutrina e numaatitude cada vez mais conservadora'".

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Comojá destacamos, tanto a autoridade da Escritura quan­to a doutrina da salvação pela graça somente e da justificaçãopela fé foram consistente e vigorosamente afirmadas no protes­tantismo latino-americano. Parece-me claro, porém, que elasfuncionaram de maneira diferente do que na ortodoxia protes­tante: eram armas teológicas utilizadas na "batalha pelas al­mas". E esse combate não era simplesmente anticatólico: era- e continua sendo -, antes, o testemunho de uma experiên­cia religiosa nova, transformadora, vital, da qual se convida ohomem latino-americano a participar.

Essa afirmação, que não requer comprovação no tocanteao "rosto evangélico" e ao "pentecostal" do protestantismo mis­sionário latino-americano, parece-me ser válida também parao próprio "rosto liberal", embora não o seja, ao menos na mes­ma medida, para as chamadas "igrejas de imigração", por ra­zões que indicamos no capítulo 4. Não só porque a mesmapiedade informa a vida das igrejas "liberais", "evangélicas" e"pentecostaís", mas porque até mesmo os líderes liberais con­cebem a presença protestante na América Latina como essen­cialmente missionária e, se se empenham em tarefas educacio­nais, sociais e até mesmo políticas, justificam-nas como partedessa missão evangelizadora. Seria muito simples - e umtanto enfadonho - documentar essa afirmação com citaçõesdos congressos do Panamá, de Montevidéu e de Havana, dastrês CElA e de destacados "liberais" latino-americanos dosúltimos 50 anos como Gonzalo Báez-Camargo, Alberto Rem­bao, Erasmo Braga, Sergio Arce, Jorge P. Howard ou Sante U.Barbieri.

A participação das chamadas "igrejas históricas" (incluin­do neste caso as de imigração) da América Latina no movimen­to ecumênico oferece uma interessante contraprova: na inte­gração do Conselho Missionário Internacional, da Conferênciade Vida e Obra e da de Fé e Constituição no Conselho Mundialde Igrejas (integração institucional que ainda não conseguiutransformar-se em plena unificação de propósito e funciona­mento), os participantes latino-americanos alistaram-se quaseexclusivamente no primeiro ou na segunda, ou em ambos. Fée Constituição nunca conseguiu firmar pé nas igrejas latino­americanas. Atrevo-me a dizer que a razão é precisamenteesta: a unidade como missão - evangelizadora e social - fazsentido na autocompreensão do protestantismo latino-ameri­cano; a unidade como projeto predominantemente doutrinalou eclesiástico não evoca resposta. De fato, os organismos "e-

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cumênícos" que as igrejas latino-americanas gestaram no con­tinente - particularmente a UNELAM e o CLA!. e inclusive oCaNEIA- mantêm a mesma orientação: têm privilegiado qua­se exclusivamente a dimensão evangelizadora e, em diversasmedidas, social da colaboração e da unidade, mas têm negado,esquivado ou ao menos não incorporado significativamente aconsideração da unidade doutrinal e orgânica.

Por isso. se se tenta descobrir um "princípio material", ouseja, aquela orientação teológica que, por expressar melhor avivência e a dinãmica da comunidade religiosa, dê consistênciae coerência à compreensão do evangelho e se constitua emponto de referência para a construção teológica dessa comuni­dade, temos de falar da "missão como 'princípio material' deuma teologia protestante latino-americana". Só que, no casodo protestantismo latino-americano, esse princípio não se apre­senta como uma formulação teológica explicita, e sim, antes,como um etos que impregna o discurso, o culto, a própria vidada comunidade evangélica, uma autocompreensão que se ma­nifesta em suas atitudes, seus conflitos e suas príorídades-,

1. A ambigüidade da defíníção missionária

Admitir que "missão-evangelização" é o princípio que defi­ne o protestantismo latino-americano nos envolve de imediatona ambigüidade histórica e teológica desse movimento. Qual éa relação entre missão e colonialismo? Como se expressamessa relação e as reações a ela na "teologia da missão"? a quesignificaria uma teologia da missão proposta a partir de umaperspectiva trinitária?

1. Missão e colonialismo. A evangelização que alcança aArnerica Latrna a partir do secuío 19 se inscreve. com efeito. natotalidade da empresa missionária do protestantismo europeu- em nosso caso, particularmente do anglo-saxão - nos sé­culos 18 e 19. E hoje em diajá é um lugar comum recordar queessa missão avança na crista da expansão colonial e neocolo­nial e carrega as marcas dessa relação. A enorme literaturaexistente sobre esse tema me dispensa de estender-me sobreeste ponto.

No capítulo 1 rejeitei uma interpretação simplista da rela­ção entre protestantismo e imperialismo. Sustento que, no ca­so da América Latina. há uma tensão que se evidencia, por

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exemplo. na permanente discussão sobre o significado do pa­namericanismo. Mas é necessário colocar-se uma perguntamais de fundo: até que ponto a própria autocompreensão quedirigiu e mobilizou a enorme empresa missionária européia enorte-americana dos séculos 18 e 19, tal como se reflete emsuas atitudes, seu culto, sua teologia, carrega as marcas doespírito colonialista? Algumas poucas observações bastarão pa­ra explicar de que estamos falando.

O que poderiamos chamar "o caso metodista" é um bomexemplo. 'Iodos conhecem a preocupação de John Wesley como problema da pobreza - inclusive suas tentativas de entenderas causas econõmicas da mesma -, sua oposição à escravidãoe sua critica à política colõnia de seu país, particularmente naÍndia e na África. Curiosamente, por volta do fim do século(1800) a Igreja Metodista inglesa havia silenciado esses temase expulso de seu seio as correntes trabalhistas. O estudiosonorte-americano Bernard Sernmel" defendeu uma tese interes­sante. que ele resume nos termos "liberalismo. ordem e mis­são": na revolução industrial que estava em gestação no perio­do do nascimento e crescimento do metodismo. este conseguiuincorporar no processo de mudança social que gera uma novaclasse - que hoje chamamos de média - grupos importantesdos setores marginais que, assim, assumiram a cosmovisão eo etos burgueses. Na realidade, deve-se observar que o próprioWesley já percebeu - com um assombro não isento de alarme- os primórdios desse processo. A expansão colonial que acom­panhou o desenvolvimento industrial permitiu que os dirigen­tes metodistas canalizassem o fervor do despertar para a em­presa missionária. No teólogo mais influente do metodismodesse periodo, Richard Watson, a relação tornou-se conscientee expressa: com o advento do Império Britãnico, os cristãospodiam cumprir sua missão de compaixão para com os pagãossubmersos "nas trevas e na corrupção da grosseira idolatria".Estes, com efeito, "merecem nossa atenção, tanto como pagãosque se encontram nas trevas quanto como súditos britânicos".Deus prepara o "grande ataque contra o paganismo"; por issodesperta o zelo missionário num país com uma marinha pode­rosa e colõnias de ultramar: "Essa coincidência entre nossosdeveres e nossas oportunidades. nossos desejos e nossos meios(...) não é acidental." A mão de Deus move os navios para quelevem "não só nossas mercadorias, mas também nossos mis­sionários; não só nossos bales [fardos). mas também nossasblessings [bênçãos)."6 O interessante aqui não é o providencia-

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lismo ingênuo, e sim a passagem para a consciência burguesa- empresária, triunfalista, conquistadora - que assume, si­multânea e coincidentemente, a empresa religiosa e a econô­mico-política no mesmo "etos conquistador". Esse fenômenometodista não é um caso isolado. Cinqüenta anos mais tarde,quando os Estados Unidos haviam orientado sua visão de "des­tino manifesto" na direção do neocolonialismo, o presbiterianoJosiah Strong se expressava, em Princeton, em termos seme­lhantes acerca da "missão" dos Estados Unidos, em suas obrasOur Countxy (1886) e Tbe New Age: or the Coming Kingdom(1893).

Enrique Dussel fez observações filosóficas interessantessobre o "eu conquisto" - em lugar do cogito cartesiano ­como núcleo constitutivo da consciência burguesa. Um estudodo vocabulário "militar" do discurso missionário - campa­nhas, conquista, combate, ofensiva, soldados da cruz, "hostesda fé" e muitas outras expressões - parece apontar para esse"eu conquisto" religioso como núcleo da consciência missioná­ria. A hínología missionária da época une curiosamente o mo­tivo da compaixão com os da suposta abjeção, ígnoráncía edesamparo dos "objetos" da missão e da conquista dos "con­fms da terra" para Jesus Cristo, o Rei:

De geladas cordilheiras / de praias de coral,de etiópicas ribeiras / do mar meridional,nos chamam afligidas / a dar-lhes liberdadenações submergidas / em densa obscuridade.Nós, iluminados / de celestial saber,tantos desgraçados / veremos perecer?Às nações demos / de Deus a salvação;o nome proclamemos / que operou a redenção.

A perspectiva das lutas anticoloniais de libertação de nos­so século nos toma dificil conciliar essas manifestações com a"boa consciência" dos que as expressaram. Justamente essaunidade, entretanto, atesta até que ponto a "ideologia" colonia­lista foi intemalizada. James S. Dennis, professor de míssíolo­gía em Princeton, colega de Strong, escreve em 1897 um alen­tado volume sobre "Missões cristãs e progresso social", funda­mentando "empiricamente" sua tese:

O cristianismo, em virtude de sua própria energia benfeitoracomo poder transformador e superador na sociedade, já escre­veu uma nova apologia [grifo do autor] das missões. Não senecessita de um argumento requintado para demonstrar isso.Os simples fatos que o resultado do esforço missionário revela

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em todos os campos o estabelecem de maneira fidedigna (...) Ocrístíanísmo (...) é imorredouro e as missões cristãs represen­tam, no momento presente, a única promessa e o único poderde ressurreição espirttual no moribundo mundo do paganismo.7

Muito poucas pessoas se atreveriam hoje a repetir tal tesee menos ainda nesses termos, embora alguns profetas do "neo­liberalismo" e da "nova direita religiosa" pareçam haver encon­trado uma versão renovada dela. Poderiam, todavia, surgir duasperguntas: a primeira, se a missão e evangelização pós-colonial- ou até anticolonial- que mudou a designação das juntas edo pessoal de missão - juntas de ministérios globais, obreirosfraternais, compartilhar de recursos - encontrou uma articu­lação teológica coerente com a transformação desejada. A se­gunda, talvez mais importante, é se as características imperia­listas que marcaram o etos e a linguagem das missões que nosformaram não ficaram impressas em nossa própria evangeliza­ção crioula.

2. Em busca de uma nova teologia da missão. Não é meupropósito repassar agora o desenvolvimento da teologia da mis­são do último século, mas gostaria de fazer algumas observa­ções antes de retomar ao campo evangélico latino-americanos.

"À parte de algumas exceções" - diz Wilhelm Andersenreferindo-se ao labor missionário protestante do século 18 eespecialmente do século 19 - "o pietismo tem sido, até esteséculo, o solo no qual cresceu a atividade missionária."9 Comefeito, é nesse solo que se geram na Grã-Bretanha, na Alema­nha, na França, na Suíça, nos países escandinavos, nos Esta­dos Unidos, as "sociedades missionárias", às vezes relaciona­das com as igrejas e outras vezes formadas por indivíduos,mas normalmente pouco ligadas à ortodoxia doutrinal de suasconfissões. 'Ianto é assim que, desde o início do presente século(de 1910 em diante), as conferências missionárias de Edimbur­go colocam a integração de "missão" e "igreja" como um deseus objetivos. Dentro dessa busca começam a articular-se"teologias da missão" inseridas na globalidade de uma pers­pectiva teológica. Duas me parecem ter sido as tentativas do­minantes e mais frutíferas: uma míssíología eclesíológíca e umamíssíología da soberania de Jesus Cristo e do reino de Deus.

Dito de forma muito geral, na primeira se procura enten­der a missão como central para a própria definição de igreja.Interpretando a Conferência de Madras de 1938, Karl Hartens­tein caracteriza muito bem essa perspectiva:

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"Missão" significa também "igreja" e "igreja" significa também"missão" (0.0) Não falamos mais de (000) missões e igrejas; falamosda Igreja, da comunidade de Deus no mundo, de sua tarefafundamental, da qual as igrejas antigas e as jovens, as queenviam e as que estão surgindo participam em termos absolu­tamente íguaís. Está-se construindo o santuário de Deus entreos povos, e mãos negras e brancas, morenas e amarelas partici­pam da tarefa o 10

Nem todos interpretam essa identificação de missão e igre­ja da mesma maneíra.vleólogos anglicanos trabalham em Ma­dras com o conceito de igreja como extensão da encarnação, "ocorpo que Deus criou mediante Jesus Cristo" o Os delegados daEuropa continental, em termos mais protestantes, falam do"perdão dos pecados em Cristo e nova vida de discipulado"como "o dom decisivo [de Deus] para o mundo" mediante oministério da igreja. 'Iodos, porém, concordam que toda defini­ção da igreja deve ser míssíológíca e toda definição da missão,eclesiológica. Na Conferéncia de missão de Wíllíngen (1952),um trabalho do teólogo holandês J. C. Hoekendijk causa agita­ção teológica ao criticar duramente essa visão eclesiocêntricada missão:

A concepção eclesiocêntrica, que desde Jerusalém (1928) pareceter sido o único dogma quase indiscutido da teoria da missão,nos aferrou tão estreitamente, nos enredou numa trama tãodensa, que mal podemos dar-nos conta da medida em que nos­so pensamento se "eclesífícou". Não escaparemos nunca desseabraço asfixiante a menos que aprendamos a perguntar-nos denovo o que significa repetir uma que outra vez nosso amadotexto missionário: "Esse evangelho do Reino deve ser pregadoem todo o mundo" e a tentar encontrar nossa solução para oproblema da igreja nesse marco de Reíno-Evangelho-Jestemu­nho (apostoladol-Mundo.!'

Na linha da proposta de Hoekendijk, em que a igreja e suamissão ficam inseridas na relação Cristo-mundo, desenvolve­se toda uma tarefa teológica, que se percebe, com distintastonalidades, em quase toda a míssíología dos últimos 40 anos.A ênfase no senhorio de Jesus Cristo e no reino de Deus e suapresença ativa na história humana caracteriza uma linha evi­dente nas formulações ecumênicas do CMI. E na Conferênciade Lausanne e na corrente "evangelícal" que ela expressa, aênfase recai na mediação da igreja como aquela que, no poderdo Espírito, anuncia esse Reino no mundo e convida a aceitara soberania redentora de Jesus Crtsto'".

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As observações de Hoekendijk apontam para um perigoque a obra missionária e evangelizadora freqüentemente nãosoube evitar: uma espécie de "monopólio eclesiástico" de JesusCristo e do Espírito Santo e, por conseguinte, um "triunfalismoeclesiástico" que, longe de corrigir os reflexos coloniais ou neo­coloniais da missão, os sustenta e alimenta. Cabe perguntar­se, entretanto, se a teologia missionária do senhorio de JesusCristo e da primazia do reino de Deus é, por si mesma, corre­ção suficiente para esses reflexos. Não se presta ela demasia­damente a um novo imperialismo cristão, que, no fím das con­tas, acaba sendo também eclesiástico? Na América Latina, es­se risco de uma teologia "imperial" do reino de Deus é, emparte, contrabalançado pela "opção pelos pobres" como critériode interpretação do reinado de Jesus Cristo e da missão doReino. Richard Shaull trabalhou nessa direção na década de60, sendo seguido por latino-americanos como Gonzalo Castil­lo ou Rubem Alves (em seus primeiros trabalhos). A interpre­tação eclesíológíca de Jon Sobríno e a míssíológíca de EmilioCastro são excelentes exemplos dessa hermenêutica: o Cristoque identifica sua missão com o reino de Deus é o Cristo que,por sua vez, se identifica com os pobres - é a tese de Sobrino.O Cristo que reina é o "Cristo servo", esclarece Castro13. Pare­ce-me, contudo, que ambas as linhas seriam fortalecidas seprocurássemos levar a sério uma proposta quase esquecida deWillingen em 1952:

(...) teologicamente precisamos aprofundar-nos mais ainda; pre­cisamos remontar o impulso originário da fé ao Deus trino: sódesse ponto de vista podemos ver sinoticamente a empresa mis­sionária em sua relação com o reino de Deus e em sua relaçãocom o mundo. 14

2. Por que uma missiologia trinitária?

A pergunta é inteiramente legítima. Ela seria colocada,sobretudo, por uma tradição protestante para a qual a doutri­na trinitária sempre foi mais uma espécie de resumo da histó­ria da salvação (uma trindade "econômica") do que uma afir­mação acerca do próprio ser de Deus (uma trindade "imanen­te"). O missiólogo nessa tradição possivelmente veria em nossainsistência nessa tema uma espécie de especulação que podeacabar desviando a atenção. E interessante observar que ochamamento de Willingen citado acima ficou quase sem reper-

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cussão na missiologia protestante e nos desdobramentos daComissão de Missão e Evangelização do CM!.

Creio que se trata de uma "má economia". Enquanto aigreja e o Reino permanecerem como horizonte último da mis­são/evangelização, esta será um ato de obediência e/ou umaexpressão da fé. Certamente essas motivações são bíblicas eevangélicas. Obediência e testemunho são dimensões da vidacristã que não podem ser ignoradas nem relegadas. Creio, po­rém, que essas mesmas motivações são fortalecidas e aprofun­dadas quando o horizonte último é "a própria vida de Deus" e,portanto, a missão não é só obediência e testemunho, mastambém contemplação, oração, louvor, participação - comodiriam os irmãos ortodoxos - no que Deus mesmo "é" e, porconseguinte, no que ele "faz".

Creio que é essa relação que o autor da Epístola aos Efé­síos estabelece - mais ainda se a lemos em conjunção com ohino cristológico de Cl 1.10-27 - quando situa o fato missio­nário fundamental, a inclusão dos gentios junto com os ju­deus, derrubando o "muro de separação" (Ef2.14-19), na pers­pectiva do "mistério" oculto "desde antes da criação do mun­do": a recapitulação do universo inteiro em Cristo (1.1-14 e3.1-13). O próprio Deus incorpora o crente no ámbito dessemistério, que não é outro do que o do amor de Deus que habitapela fé no crente, e o introduz na "total plenitude de Deus"(3.14-19).

1. Em termos da elaboração teológica posterior, o que Pau­lo faz nessas passagens é unir a "trindade econômíca" (o queDeus faz) e a "imanente" (o que Deus é). A chave para interpre­tar as repetidas (e às vezes complexas e redundantes) formula­ções trinitárias que encontramos nos primeiros séculos é vê­las como o esforço de estabelecer firmemente essa unidade, deproteger-se contra toda formulação que pudesse negá-la e dearticulá-la com a maior clareza possível, afirmando ao mesmotempo os grandes "feitos de Deus" e a "plenitude de Deus" emtodos e cada um deles. Excesso de "purismo teológico"? Demaneira nenhuma! Pelo contrário, é uma afirmação funda­mental da fé. É a revelação de Deus testemunhada pela Escri­tura um "retrato autêntico" de Deus ou uma "imagem" paraconsumo religioso? Está Deus real e totalmente "comprometi­do" nas ações que a história da salvação nos relata ou essahistória é apenas um de vários e diversos cenários nos quaisDeus atua, reservando-se uma entidade "privada" diferente?

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Fica, atrás dessa revelação ou para além dela - ad usumChristianorum - um mistério de Deus que talvez seja acessí­vel por outros meios: gnósticos, místicos ou mágicos? Leonar­do Boff expressa muito bem a resposta:

Ora, Deus se revela assim como é. Se para nós Ele aparece comoTrindade é porque Ele é em si mesmo 1iindade; não apenas paranós mas também nele mesmo, Deus é Pai, Filho e Espírito San­to. Se Deus apareceu como mistério fontal e princípio sem prin­cípio (...), portanto, como Pai, é porque Deus é Pai. Se Ele se nosrevelou como Palavra esclarecedora e Verdade, portanto, comoFilho ou Lagos eterno, é porque Deus é verdade. Se Ele se noscomunicou como Amor e Força que busca a realização do desíg­nio último de Deus, portanto, como Espírito Santo, é porqueDeus é Espírito Santo. A realidade trínítáría faz com que a ma­nifestação divina na história seja trinitária e a manifestaçãorealmente trinitária de Deus nos faz compreender que Deus é defato 1iindade de Pessoas, Pai, Filho, Espírito Santo.l"

2. Ao falar da pericboresis. destacávamos a unidade quenasce da comunicação "íntratrínítáría": a eterna conversação,o vínculo de amor que Deus é em si mesmo. Agora temos desublinhar a outra "direção" desse diálogo: seu caráter extrover­tido; ele não se esgota em si mesmo: "desborda'', por assimdizer, em relação com a realidade criada: o mundo, o ser hu­mano, a história. Essa relação entre as três pessoas comorealidade imanente em Deus e como presença e ação na tota­lidade da criação é o que a teologia clássica chamou de as"missões" na trindade. Missão tem aqui o significado etimoló­gico de envio. O Novo 'Testamento é muito explícito a esse res­peito: o Filho é "enviado" pelo Pai (Jo 3.16; 5.23,36,38); o Espí­rito Santo é enviado pelo Pai mediante o Filho (Lc 24.49; Jo14.16,26; 15,26; 16.7; G14.6). Esse envio não é um ato aciden­tal ou limitado a um momento. Embora ele tenha uma "data"em que se toma manifesto de uma vez para sempre (efapax)­Natal e Pentecostes -, esses momentos revelatórios decisivosencontram sua origem numa "missão" eterna que correspondeà própria realidade trinítária. Por isso se pode falar do "Cordei­ro imolado desde a criação do mundo" (Ap 13.8) ou do Espíritoque Deus "envia" para sustentar sua criação e a própria ativi­dade do homem nela (SI 104.29-30; o verbo usado aqui é sha­Iech, o mesmo do qual derivamos "enviado" ou "apóstolo").

3. Nesse "diálogo missionário" nós somos incluídos. As"vísítas" de Deus, desde a criação atê a redenção e a criação da

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igreja, incorporam sempre o ser humano como ator ou co-atorda missão divina. Nesse sentido há um legítimo syn-ergismoque não desmerece a absoluta prioridade da ação divina por­que essa mesma ação possibilita, exige e incorpora em suaprópria dinâmica o "sócio" que Deus escolhe. No relato dacriação, essa missão se chama trabalho, labor. Por isso, o rit­mo semanal da ação divina incorpora um ritmo semanal navida humana; a continua sustentação e a continua criação deDeus se instrumentam numa ação humana que elas envolveme excedem. mas não esvaziam nem alienam. Na história dasalvação, essa missão se chama "pacto", aliança. Por isso, ajustiça. a misericórdia, a paz (shalom) de Deus se corporificamna boa lei, no bom governo, na comunidade fiel: a "palavra" ouo "espírito" que Deus envia incorpora aqueles que, por sua vez.Deus inclui em seu "envio".

Na plenitude do tempo, o "enviado", Jesus Cristo. assume"os que creram ... e os que hão de crer" na mesma missão.Como o diz graficamente a versão latina na oração de Jesus:"Sicut tu me missiste in mundo et ego missi eos in mundo" (Jo17.18). Quando Paulo fala de "ser conformado" à imagem deCristo, ou de "reproduzir" as marcas de Cristo. ou, de maneiramais atrevida. de "cumprir" em seu corpo a continuidade daobra redentora. não está falando de uma imitação externa emenos ainda de uma ação autônoma do crente, e sim de umaparticipação que permite dizer. pela fé. "Cristo vive em mim".O "testemunho" do evangelho que a igreja foi chamada a pro­clamar é sempre "no poder do Espírito". No Espírito que o Paie o Filho enviam, a própria trindade dá testemunho da veraci­dade do evangelho. A missão evangelizadora não é um atoexterno cumprido pela igreja. e sim "o rosto visível" da missãodo Deus trino.

A "missão" do Espírito não tem a ver tão-só com a palavrada redenção, mas também com a totalidade da obra do Deustrino; por conseguinte, com o trabalho, com a justiça, com apaz. enfim. com a história do mundo e da humanidade. Aspessoas. crentes ou não. que são incorporadas nessa obra. são"enviadas". tanto quanto o puderam ser Ciro (rei persa), Mel­quisedeque (sacerdote do Deus do céu) ou o soldado que Cor­nélio enviou para buscar Pedro ("vai com eles I...) porque eu osenviei" - At 10.20).

'Irabalho, governo e sociedade humana, testemunho e ser­viço do evangelho. construção da história são igualmente par­ticipação na totalidade dessa missão do Deus trino que é "o

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mesmo", Pai, Filho e Espírito Santo, em tudo que faz. Mas aigreja tampouco se equivocou ao sublinhar, junto com a uni­dade dessa obra, a distinção das dimensões da mesma: "o Painão é o Filho nem o Espírito, o Filho não é o Pai nem o Espírito,o Espírito não é o Pai nem o Filho". Fórmulas como esta nãosão mero jogo verbal. O que se tem chamado de "propriedades"ou "apropriações" refere-se especificamente a essa distinçãonecessária. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo quando cria epreserva o mundo, quando convida para a fé em Jesus Cristoe constrói sua igreja, quando fecunda e dirige a história. Masele o é de maneira distinta e, por conseguinte, incorpora osseres humanos em sua obra - os "comissione" - de maneiradistinta. Honrar a unidade dessa obra e corresponder à diver­sidade dessas distinções é a tarefa do pensamento e, ao mesmotempo, da prática da igreja.

Há distinções precisas e necessárias na forma em que aunidade inseparável da obra do Deus trino e de nossa partici­pação nela na tarefa cultural, social, política, económica, ecle­sial e evangelizadora é, ao mesmo tempo, reconhecida e respei­tada e a particularidade de cada uma dessas tarefas é igual­mente levada em conta. Distinções referentes ao sujeito pró­prio dessas ações - sociedade organizada, igreja, pessoas in­dividualmente - à modalidade de participação nas distintasidentidades que temos como membros de uma sociedade, defamílias e da comunidade de fé e ao modo de execução dessaparticipação: o uso do poder, as esferas da lei e do evangelho,a autonomia própria, querida e ordenada por Deus, de cadauma dessas esferas. Uma teologia e uma ética teológica cuida­dosa, assim como uma pastoral que respeite a liberdade cristã,devem trabalhar dando atenção a esses temas. E nesse marcodevemos situar também uma reflexão sobre essa "evangeliza­ção" que está no coração de nossa compreensão protestantelatino-americana do evangelho.

3. Missão e evangelização

Simplificando, poderíamos, talvez, dizer que o protestan­tismo latino-americano teve a tendência de confundir evange­lização e missão; ou seja, de reduzir a totalidade da missão deDeus à "tarefa evangelizadora" concebida de modo estreito co­mo o anúncio do chamado "plano de salvação" e o convite àconversão. Embora possamos dizer, com gratidão, que essa

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obra tena sido abençoada e nrrilhões de pessoas tiverana unaverdadeiro encontro com o Senhor e entraram numa nova vi­da, também devemos dizer, com pesar, que nos ternos recusa­do a participar da plenitude da obra do Deus trino. A partir doreconhecímento dessa deficiência, gostaria de perguntar-meagora onde estão nossos problemas centrais em relação com aevangelização e como a compreensão da evangelização no con­texto da míssão total de Deus pode guiar-nos na resposta aesses problemas. Certamente a mesma reflexão deveria serfeita acerca de nosso culto e nossa piedade, e acerca de nosso"caminhar", nossa conduta. Não obstante, concentramo-nosagora na evangelização, precisamente por causa da ímportãn­cia singular que ela tem tido e tem para a comunídade evangé­lica latíno-amerícana,

1. Profetas e evangelistas. Quando Billy Graham, questio­nado a respeito da "neutralidade" social de sua pregação, res­pondeu: "Não sou una profeta do Antigo 'Iestamento, e sina unaevangelista do Novo 'Iestamento'', fez, creio eu, uma distinçãolegítima, mas em termos gravemente distorcidos. O Novo 'Ies­tamento reconhece uma vocação e una dona particular de "e­vangelista": a evangelização como proclamação do evangelho econvite para a fé tem sua identidade própria. Mas desprenderessa tarefa da mensagem profética do Antigo e do Novo 'Iesta­mentos introduz na obra de Deus e em Deus mesmo umadícotomía que depois se reproduz na igreja e na vida do crente-",

É dificil negar que essa dícotomía tenha tido conseqüên­cias sérias em nossas igrejas evangélicas. Ela não só distin­guiu, mas separou a evangelização do serviço, a conversão dabusca da justiça, a adoração de Deus da vida do mundo, aparticipação na comunidade de fé da responsabilidade na so­ciedade. Inclusive as contrapós, criando "facções" antagônicasdentro das igrejas e entre elas. 'Iemos suposto que possamos"priorizar" por nossa conta aspectos da obra de Deus e, maísainda, escolher "o deus" que queremos honrar: que os liberaisse ocupem do Criador, os evangélicos do Salvador e os pente­costais do Espírito! 'Iemos crido que uma comunidade cristãpoderia fazer uma coisa sem a outra e que poderíamos isolar aevangelização e o serviço como compartímentos estanques quese admínístram com conteúdos, propósitos e critérios indepen­dentes. 'Iemos, inclusive, criado instãncias institucionais autô­nomas e concorrentes para assumír essas tarefas em nívellocal, denomínacíonal e supradenomínacíonal, com "cliente-

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las" diferenciadas e em conflito. Nessa especialização, a men­sagem do evangelho se transformou freqüentemente num es­quema doutrinário formal, reduzido a uma interpretação par­ticular da doutrina da expiação, na qual o Pai, o Filho e Espí­rito Santo parecem personagens que "desempenham" papéis enão o Deus vivo das Escrituras. E o serviço à sociedade setransforma numa atividade feita "a partir de fora" e evangelica­mente asséptica ou numa forma de coação a serviço do cresci­mento da igreja. Esta pode ser uma caricatura; se o é, infeliz­mente é a caricatura de um rosto que temos visto demasiadasvezes.

Se a missão é participação na plenitude da "missão deDeus", toda evangelização deve ser -junto com a proclamaçãoda reconciliação operada na vida, morte e ressurreição de Je­sus Cristo - testemunho da criação boa de Deus e chamadopara cultivá-la e cuidar dela, anúncio da justiça de Deus econclamação a praticá-la e servir a ela. Uma mensagem que,em meio à repressão e à tortura, fala do Crucificado como seele não tivesse nada a ver com os pobres crucificados da histó­ria ou que, na crescente destruição e marginalização de gran­des setores da população, apresenta Jesus Cristo como se elenada tivesse dito sobre esse tema, como se o Espírito Santonão fosse aquele que desceu sobre Amós, Oséias e Tiago, comose os que sofrem e morrem não fossem "imagem e semelhança"do Criador, não merece ser chamada de evangélica. Mas umaevangelização que dissesse tudo o que há a dizer a respeitodisso sem um chamado ao arrependimento, à fé e ao discipu­lado, tampouco é participação na missão do Deus trino. Umaevangelização verdadeiramente trinitária - assim como umaadoração e uma ação que o sejam - é o convite a participarem fé da própria vida do Deus trino e, por isso. da totalidadedo que Deus fez, faz e fará para cumprir seu propósito de ser"tudo em todos".

2. Evangelização e crescimento da igreja. Está a evangeli­zação a serviço do crescimento da igreja ou da transformaçãodo mundo? Uma polêmica interessante desencadeou-se na Igre­ja Católica Romana, após o Concílio Vaticano Il, em torno dessetema. Ela tinha a ver com o antigo tema da conservação ourecuperação da cristandade. Enquanto alguns sustentavamque a criação ou manutenção de uma "sociedade cristã" cujoscostumes, estruturas, leis e valores se fundamentassem na féeram indispensáveis para que as grandes massas chegassem à

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fé e perseverassem nela, outros davam as boas-vindas a umasecularização que tirou da igreja os apoios externos, deixan­do-a entregue à própria vitalidade e força de sua mensagem eque, portanto, deu lugar à formação de cristãos conscientes,comprometidos, maduros que, embora sejam minoria, são fer­mento na socíedade'? Na Europa, o livro do cardeal Jean Da­niélou intitulado A oração, problema POliÜC018 , que sustentavaa primeira posição, foi motivo de uma polêmica na qual inter­vieram alguns destacados teólogos dominicanos como Jean­Pierre Jossua e Claude Geffré'", Em nosso meio, são bem co­nhecidas a critica aguda que Juan Luis Segundo moveu contraa "pastoral de cristandade", bem como sua tese de uma mino­ria de cristãos "adultos" cuja missão não é "converter as maio­rias", mas dar testemunho do propósito de salvação e plenífí­cação de Deus para toda a humanídade-". Na encíclica Evan­gelii Nunüandi, de 1976, Paulo VI tentou reconciliar e integraros temas da conversão pessoal e da evangelização da cultura.Não é meu propósito deter-me nesse debate, no qual estão emjogo complexos temas teológicos como os do universalismo, dapiedade popular, da relação entre fé e amor. Interessa-me, an­tes, que nos perguntemos se se coloca um problema seme­lhante em nosso protestantismo e como.

Não há dúvida de que a prática evangelizadora tradicionaldo protestantismo latino-americano apontou para a conversãodo indivíduo e que, embora tenha sido levada a cabo em cam­panhas de evangelização e reuniões de pregação em templos,salões ou ao ar livre, nas quais fatores coletivos desempenha­ram um papel importante, ela se alimentou principalmente derelações face a face de amizade, família, vizinhança. A "síngu­larízação" da experiência foi uma de suas características maismarcantes. Cada pessoa devia ter "um encontro pessoal com oSenhor", muitas vezes claramente datado, que podia ser teste­munho em privado e em público. Esperava-se, inclusive, queas crianças que nasciam e cresciam numa família evangélicachegassem a um momento de "decisão pessoal", o que fez comque, em igrejas que praticavam o batismo de infantes, muitosmembros escolhessem o "batismo de crentes" (expressão queconsidero errônea, mas que era a que se utilizava). Neste ponto,a crítica de uma "religiosidade massiva", "herdada", "tradicional"católica estava quase sempre presente na pregação evangélica.

Provavelmente uma enquete sobre o tema nos diria que amaioria dos evangélicos pensa assim ainda hoje. Não obstante,as práticas de evangelização massiva hoje em voga introduzem

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elementos que dão às coisas um sentido diferente. Quando aênfase é colocada no "crescimento da igreja" - entendido emseu sentido numérico - a conversão pessoal se transformanum meio: o que está em jogo é o número, não a pessoa dosconvertidos. A pergunta dominante é, então: como se conse­guem mais conversos? Surgem aqui os métodos de crescimen­to: por exemplo, a teoria das "unidades homogêneas", que sig­nifica realmente como se ganha melhor uma etnia, um setorda população, uma classe social. 1àlvez sem o querer ou sem opensar, já estamos falando do "sustentáculo cultural" da evan­gelização. Outro exemplo: quando o possível acesso de evangé­licos a funções de governo - parlamento, prefeituras, mínísté­rios - é bem-vindo tendo como base que eles poderão facilitara evangelização - introduzir a Bíblia nas escolas ou a oraçãono parlamento ou conceder facilidades - é evidente que sepensa em utilizar as estruturas da sociedade para "fazer cris­tãos", e esta é a premissa fundante da concepção de cristandade.

A partir da perspectiva teológica que viemos sublinhando- e que creio que, neste caso, estaria corroborada por umaanálise sociológica - deveríamos descartar a disjuntiva: evan­gelização do individuo ou da sociedade. Em primeiro lugar,porque separa a obra do Deus Criador daquela do Deus Reden­tor: o Deus que se dirige a cada pessoa é o mesmo que estabe­leceu as relações que constituem a pessoa e que envia o Espí­rito que opera tanto nessas relações - no lugar em que elanasceu, nas relações que a socializaram, no meio em que atua,nos valores que internalizou - quanto no espírito do indiví­duo. 'Ianto nessas relações quanto na identidade pessoal queas sintetiza de maneira própria e intransferível, o Espírito com­bate o poder destrutivo do pecado e recria constantemente aforça construtiva do amor. 'Ianto em seu foro íntimo quanto emsuas relações sociais, o evangelho chama o ser humano aoarrependimento e à conversão. Em ambas as dimensões davida, o Espírito compromete os crentes na obra transformado­ra de Deus. Ao mesmo tempo, porém, trata-se de duas formasdistintas de presença divina e de ação humana, nenhuma dasquais pode ser vista simplesmente como um instrumento daoutra. Em outros termos, uma evangelização verdadeira deveapontar tanto para esse núcleo pessoal que toma um ser hu­mano sujeito responsável de sua própria existência quantopara a urdidura das relações interpessoais e estruturais que orodeiam, o condicionam e constituem seu âmbito de existência

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aparecer como "neutra", fria e "burguesamente respeitável".Seguramente há mais verdade evangélica num grito espontã­neo de Aleluia! do que em muitos esmerados argumentos apo­logéticos. Por certo há, além disso, um uso legítimo de uma"razão instrumental" que nos indica métodos e meios eficazese compatíveis com o propósito evangelizador. Minha preocupa­ção surge quando essa razão instrumental se toma autônomae substitui a "razão evangélica" que nasce da própria vida divi­na e da "pedagogia de Deus" em sua missão.

Provavelmente esse é um ponto adequado para concluireste capítulo. Entramos aqui num âmbito de pastoral que me­rece uma consideração mais cuidadosa, ampla e experta doque aquela que eu posso dar-lhe. Minha preocupação é queessa consideração mantenha uma relação constante com ocentro de nossa fé e que o fervor evangélico de nosso protes­tantismo latino-americano se afirme, purifique e expresse apartir da plenitude da fé evangélica no Deus uno e trino: Pai,Filho e Espírito Santo.

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Notas

Capítulo 1:

o rosto hõeral do protestantismo latino-americano

1 Regís PlANCHET, La intervención protestante en México y Sudamérica,Revista Católica, El Paso, 1928, p. 180; v. também, do mesmo autor, Lapropaganda del Protestantismo en México, Revista Católica, El Paso, 1922;cf. Camilo CRlVELLI, Los protestantes y la América Latina, Isola de Liri:Macioce y Písaní, 1931, p. 104-107.

2 Waldo CESAR et al., Protestantismo e imperialismo na América Latina,Petrópolis: Vozes, 1968, p. 12.

3 Erasmo BRAGA, Panamericanismo: aspecto religioso, Nueva York: Socie­dad para la Educación Misionera en los Estados Unidos y el Canadá,1917, p. 199s.

4 Jean-Pierre BASTIAN, Historia del protestantismo en América Latina, Mé­xico: Casa Unida de Publicaciones, 1990, p. 178ss. As diversas vertentesde argumentação se repetem cada vez que há circunstáncias que "amea­çam" modificar o campo religioso. A este respeito é interessante umapesquisa de Alejandro FRIGERIO intitulada La ínvasíón de las sedas: eldebate sobre nuevos movímíentos religiosos en los medios de comunica­ción en Argentina, Sociedad y Rehgton, n. lO/lI, p. 24-51, 1993.

5 Jean-Pierre BASTIAN, op. cit., p. 187.6 Id., ibid., p. 22.7 Ibíd., p. 160.8 A cifra indicada para 1903 é de Joseph I. PARKER (Ed.), Interpretative

Statistical Survey ofthe World Mission ottheCbrtstien Church, New York/London: Intemational Míssíonary Council, 1938, deduzindo a cifra cor­respondente ao Caribe não-hispânico.

9 John IYNCH, The Catholic Church, in: Leslie BETHELL (Ed.), Latin Ame­rica: Economy and Society, Cambridge: Cambridge Uníverstty, 1989, p.331-336, especialmente o resumo à p. 332 citado no texto.

10 O tema do "destino manifesto" tem uma longa história na cultura e napolítica dos Estados Unidos, não alheia a concepções messiânicas e ainfluências teológicas. Duas obras que resumem bem e interpretam essahistória são: Albert K. WEINBERG, Manifest Destiny: A Study ofNationa­list Expansionism in Amerícan Hístory, Baltimore: John Hopkíns, 1935, eFrederíck MERK, Manifest Destiny and Mission in American History: AReinterpretation, New York, 1963.

11 Voltaremos ao tema da busca, por parte dos dirigentes latino-americanosliberais, de uma imigração que contribuísse para o novo modelo, no capí­tulo 4: Um rosto étnico do protestantismo latino-americano?

12 Cito ap. Cordon CONNELL-SMm-I, Los Estados Unidos y la América Lati­na, México: Fondo de Cultura Económíca, 1974, p. 84-85.

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13 1d., íbíd., p. 134.14 Cit. ap. ibid., p. 160.15 R. W. van ALSTINE, The Rising American Empire, Oxford, 1960, p. 160.16 Veja Tulio Halperin DONGHI, Historie contemporánea de América Latina,

Buenos Aires: Alianza, 1986, p. 189-250.17 Há uma ampla bibliografia nos livros de história de Hans-Jürgen Príen,

.Jean-Píerre Bastian e Pablo A. Deiros.18 Citado no artigo de Juan Stam intitulado La misión latinoamericana y el

imperialismo norteamerícano, 1àller de 'Ieologie, México. v. 9, p. 52, 1981.'Iodo o artigo é sumamente interessante dado o momento histórico, o augedo fundamentalismo nos Estados Unidos e sua marca política nacionalis­ta, bem como o caráter da própria Missão Latino-Americana naquela época.

19 Informe n. 2, cit. ap. BRAGA-MONIEVERDE, ibid., p. 41.20 Ibid., p. 19.21 Ibíd, p. 18.22 Francis P. MILLER, Americanism and Christisnity, New York: Student

Dívísíon, National Council ofYoung Men's Christian Assocíatíons, 1929. Areflexão desse discurso do Prof. Miller está dirigida principalmente à rela­ção com a Europa e aos esforços da Federação Cristã Mundial de Estu­dantes (WSCF/FUACE) para redefmir a base teológica e as linhas de umareconstrução social com base na responsabilidade pessoal e na democra­cia participativa. Percebe-se muito bem a síntese das idéias do evangelhosocial, da democracia participativa e das novas preocupações teológicasque começam a aparecer na Europa.

23 Embora não tenhamos muitos estudos biográficos adequados sobre al­guns dos primeiros missionários, os poucos trabalhos existentes parecemcoincidir nesse perfil: cf., só como mostras, Irven PAUL, A Yankee Reior­mer in Chile: The Life and Works of David Trunbull, Califórnia: WilliamCarey Library, 1973; G. Stuart McINTOSH, The Life and Times ofJohnRitchie. 1878-1952, Lima: NUC Research Monographs, 1988; John H.SINCLAIR, John A. Mackay: un escocés con alma latina, México: CasaUnida de Publicaciones, 1990.

24 Principles oiPolitical Economy, livro IV, capo VI, seção 2. in: Warks, v. 3,p.754-755.

25 Christian Work in Latin America, New York: The Míssíonary EducationMovement, 1917, V. 1.

26 Jether Pereira RAMALHO, Prática educativa e sociedade, Rio de Janeiro:Zahar, 1975, p. 10. Esta obra é um estudo cuidadoso das corresponden­tes escolas brasileiras no contexto histórico do Brasil e das linhas ideoló­gicas que tiveram influência nesse projeto educativo.

27 Rubem ADIES, Función ideológica y posibilidades utópicas del protestan­tismo latinoamericano, De la Iglesia y la Socieded, Montevideo: TierraNueva, 1971, p. 4ss. V. também, do mesmo autor, Protestantismo e re­pressão, São Paulo: Ática, 1979.

28 Jean-Pierre BASTlAN, op. cit., p. 189.29 W. Stanley RYCROFT, Sobre este fundamento, Buenos Aires: La Aurora;

México: Casa Unida de Publicaciones, 1944. p. 212. Quase na mesmadata, Jorge P. HOWARD publica seu livro Lalibertad religiosa en AméricaLatina, Buenos Aires: La Aurora, 1945, um levantamento destinado a

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Notas 137

mostrar - ante uma campanha antimissionária da Igreja Católica -,com testemunhos de líderes intelectuais e políticos latino-americanos, acontribuição do protestantismo para a vida democrática da América Lati­na. E as mesmas editoras - La Aurora e Casa Unida de Publicaciones ­ligadas ao CCLA, publicam também por esses mesmos anos (1949 e 1951)a tradução para o espanhol do livro de Federico Hoffet, Imperialismoprotestante, afogueada apologia do papel progressista do protestantismo,em nível mundial, na construção de democracias avançadas, progressis­tas e bem-sucedidas, em comparação com o atraso dos países onde do­minava o catolicismo romano.

30 V. John A. MACKAY: "The function of Chrístíaníty in relation to such acultural effort [modem bourgeoís society] ís not that of provídíng a soul toperpetuate it but a reactive to produce a crísis" ["Afunção do cristianismoem relação a tal esforço cultural (a moderna sociedade burguesa) não é ade oferecer uma alma para perpetuá-lo, mas um reativo para produziruma crise"]. The Theology of the Laymen's Foreígn Míssíon Report, Inter­national Review ofMissions, v. 22, p. 180, 1933.

31 Não me deterei aqui em definir as características ou analisar o desenvol­vimento e a situação atual da teologia da libertação. Os dois últimoscapítulos deste livro pretendem dar por assentados elementos centraisdessa teologia a partir de uma perspectiva teológica protestante. 'Ialvez,porém, não seja ocioso destacar que creio que a inspiração, a metodologiabásica e as intuições centrais da teologia da libertação têm plena vigênciapara o pensamento e a prática da fé em nosso contexto histórico e eclesial.

32 O sociólogo e ensaísta peruano Aníbal QUIJANO colocou o tema da "criseda modernidade" que ocorre quando suas "promessas prímígênias delibertação da sociedade e de cada um de seus membros das desigualdadessociais e das hierarquias fundadas sobre elas" parecem ser negadas econtraditas pela própria história da modernidade. Em seu texto Moderni­ded, identidad y utopia en América Latina. Lima: Conejo, s. d. (Coleção 4Suyus), Quijano critica a forma em que a "modernidade" se estabeleceuna América Latina, mas propõe "as bases de outra modernidade" que searraigue nas próprias tradições culturais latino-americanas e nas expe­riências históricas e atuais. V. também o recente e sugestivo ensaio deEnrique DUSSEL intitulado Sistema-mundo, dominação e exclusão: apon­tamentos sobre a história do fenômeno religioso no processo de gIobaliza­ção da América Latina, in: Eduardo HOORNAERr (Ed.), História da Igrejana América Latina e no Csribe, 1945-1995, Petrópolis/São Paulo: Vozes/CEHILA, 1995, p. 39-79.

33 1àlvez o "ao menos" dessa frase chame a atenção. É que aqui se colocaum tema escatológico da maior importância: a esperança num reino deDeus e numa vida eterna - oferecidos pelo Deus trínítárío, o Deus cria­dor, o Deus do amor dinãrnico - é compatível com a imagem de um "céu"estático e uma vida "eterna" sem novidade, sem crescimento, sem diálogocriador? Se seremos "como ele é", se Deus será "tudo em todos", seriaquase herético conceber uma eternidade hierática, "congelada" e unifor­me. Ora, é precisamente esse "céu" onde todo crescimento é meramentequantitativo que se nos oferece como "meta da história" em algumasversões neoliberais.

34 Esse é o tema que EIsa 1àmez desenvolveu magnificamente em sua inter­pretação da justificação pela fé como libertação de toda condenação, uni-

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versal em seu propósito, que possibilita a aparição de um sujeito humanolivre para servir em amor aos demais. EIsa 1AMEZ, Contra toda condena:la justificación por la fe desde los excluídos, San José, Costa Rica: DEI,1991 fedo em port.: Contra toda condenação: ajustificação pela fé, partin­do dos excluídos, São Paulo: Paulus, 1995].

Capítulo 2:

o rosto evangélico do protestantismo latino-americano

1 Não é fácil orientar-se na selva de significados, matizes, acepções, conota­ções, denotações e sobreposições no uso do vocábulo "evangélico", no queos lingüistas chamariam de sua "políssemía''. Em inglês, os dicionáriosresolvem facilmente uma primeira acepção: "evangelícal" é definido como"relativo aos evangelhos ou ao evangelho". Mas numa segunda ou terceiraacepção aparecem os problemas. O norte-americano Webster New Colle­giate Dictionary fala de uma diferenciação com "protestant" e se internaem precisões teológicas ao defini-lo como um setor do protestantismo que,originalmente dentro do anglicanismo e posteriormente em igrejas livres,afirma "que a essência do evangelho consiste principalmente em suasdoutrinas da condição pecaminosa do homem e sua necessidade de sal­vação, da revelação da graça de Deus em Cristo, da necessidade de umarenovação espiritual e da participação na experiência de redenção me­diante a fé". Embora mais cauteloso, o brítâníco Oxford 5tudents' Dictio­nary tampouco pode evitar o tema: "aqueles protestantes que sublinhama ímportãncía de uma fé pessoal" e de arrepender-se pela morte de JesusCristo (?; "rnaking amends for the death of Jesus Chríst"). Porém o termo,assim como a definição, está longe de ser preciso. E as recentes distinções(particularmente nos Estados Unidos) entre "evangélicos", "evangélicosconservadores" e "neo-evangélícos" não tornam as coisas mais claras. NaAlemanha, particularmente na Prússia, várias igrejas territoriais com in­fluências pietistas adotaram o termo "evangelísche". E, para confundirmais o quadro, na América Latina o termo "evangélico" é utilizado indis­tintamente para todas as igrejas originadas direta ou indiretamente daReforma e, em muitos casos, ê praticamente sinônimo de protestante.Neste trabalho, preferi deixar intacta a equívocídade do uso latino-ameri­cano, esperando que os contextos permitam ao leitor determinar o sentido.

2 George M. MARSDEN, Fundamentalism and American Culture: The Sha­píng of Twentíeth-Century Evangelicalism: 1870-1925, New York: OxfordUníversíty, 1980, p. 3.

3 Tradução de V. Mendoza do hino "Far away in the depth of my soultoníght", de W. D. Cornell; melodia "Wonderful peace". Aparece em hiná­rios metodistas, batistas e de várias denominações evangélicas de princí­pios do século em toda a América Latina.

4 Joseph ANGUS, Duty of the Church in Relation to Míssíon, in: PhilipSCHAFF, S. Irenaeus PRIME (Eds)., History, Essays, Orations and OtherDocuments of the 5Mh General Conference of the Evange1ical Allianceheld in New lVrk, October 2-12, 1873, New York, 1874, p. 583, cito ap.George M. MARSDEN, op. cít., p. 12.

5 Editorial, E1 Estandarte Evangelico, 15 fev. 1894, p. 2.

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Notas 139

6 20 dez. 1894, p. 3. Um interessante trabalho sobre a leitura dos "testemu­nhos" e sua importância, que ao mesmo tempo salienta a necessidade deseu maior estudo, foi apresentado no encontro realizado no México porocasião dos dez anos de falecimento de Gonzalo Báez Camargo, por CarlosGarma Navarro: Conversos, creyentes y cambio cultural. É evidente quetestemunhos, "histórias de vida", etc. constituem elementos indispensá­veis para recuperar a experiência religiosa do povo cristão (em nosso caso,do povo evangélico latino-americano). Ao mesmo tempo é necessário levarem conta as caracteristicas particulares desse tipo de materiais e as pre­cauções metodológicas (basicamente as diversas formas do que os soció­logos chamam de "triangulação") que devem ser tomadas ao se avaliaresses materiais. Veja, entre outros, as observações metodológicas em Tho­mas ROBBINS, Cults, Converts and Charisma: The Sociology of New Re­ligious Movements, London: SAGE, 1988, e o artigo muito interessante deR Stephen WARNER, Oenology: The Making of New Wine (um estudo decampo numa igreja presbiteriana na Califórnia), in: Anthony ORUN, JoeFAGIN, Gideon SJOBERG, A Case for the Case Study, California: Uníver­síty of California, 1991, p. 175-195. Em Bapüst Battles New Brunswíck:Rutgers Uníversíty 1990, Nancy AMMERMAN oferece um interessanteexcurso metodológico em seus Apêndices A e B, p. 287-340.

7 É interessante observar que Francis R Havergal (1836-1879), de confissãoanglicana, tem em 1850 uma experiência de conversão, que descrevenestes termos: "I committed my soul to the Saviour and earth and heavenwere brighter from that moment") (Entreguei minha alma ao Senhor edesde esse momento céu e terra ficaram mais luminosos). Condição demembro da Igreja Anglicana, teologia "míldly Calvíníst" (tibiamente calvi­nista) - diz um biógrafo - e experiência "evangélica" ("creio" - dizia ele- "numa salvação gratuita e plena"). A síntese que domina esse movi­mento não poderia ser ilustrada de maneira melhor.

8 The Great Reversal: Evangelism versus Social Concern, Philadelphia: Lip­pincott, 1972. Cf. Donald DAYTON, Discovering an Evange1ical Heritage,New York: Harper and Row, 1976, e Richard PIERARD, The Unequel Yoke,Philadelphia: Lippincott, 1970.

9 George M. MARSDEN, op. cít., p. 86.10 Resumo de id., ibid., p. 255, nota 30, de C. 1. Scofie1d's Question Box,

compilado por EUa A. POBLE, Record ofChristian Work, Chicago: MoodyBible Institute, s. d.

11 O tema do "fundamentalísrno" readquiriu atualidade hoje como fenômenoreligioso ou religioso-político que surge em diversas religiões (p. ex., nojudaísmo e no islamismo), bem como em movimentos políticos caracteri­zados pelo autoritarismo ou pela intransigência. Neste sentido são inte­ressantes a pesquisa dirigida e editada por Martin MARIY e R ScottAPPLEBY, Fundamentalisms Observed, Chicago: University of Chicago,1991, e a avaliação dos mesmos editores em sua obra The Glory and thePower: The Fundamentalist Challenge to the Modem World, Boston: Bea­con, 1992. Já faz uns 30 anos que um singular escritor norte-americano,Eríc Hoffer, tentou encontrar em traços de caráter, experiências sociais de"frustração" e uma determinada "mentalidade" características comuns adiversos movimentos de massas - religiosos, sociais ou políticos - queele definia como formas de fanatismo: a personalidade que chamava "thetrue believer". Embora não se refira especificamente ao fundamentalismo,

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140 Rostos do protestantismo latino-americano

trata-se evidentemente de uma tentativa de achar as "estruturas psicoló­gicas" que correspondem ao que hoje em dia designamos com esse nome:Eric HOFFER, The 'Itue Believer. New York: Harper and Row, 1966. Mui­tas tentativas na mesma direção se seguiram depois. O trabalho de Martye Appleby que indicamos acima (The Gloiy end the Power) inclui observa­ções a esse respeito. Não obstante. embora exista entre todos esses movi­mentos uma série de elementos psicológicos e atitudes políticas análogas,não creio que seja conveniente trabalhar o tema em termos tão gerais.Trata-se de movimentos que surgem dentro de um contexto históricodefinido e que devem ser considerados primeiramente à luz desse contextoe não como meros "casos" de um fenômeno generalizado.

12 Sobre a importãncia da escola filosófica escocesa do sentido comum e osurgimento do fundamentalismo na América do Norte veja Martin MARIY.R Scott APPLEBY. The Gloty end the Power. p. 59-60. e George M. MARS­DEN. Fundamentalism and American Culture, p. 14-16. 110-116.

13 What was Christ's Attitude Thward Error: A Symposíum, Record ofChris­tian Work. p. 600. 602, novo 1899; cito ap. Stanley N. GUNDRY. Love themIn: The Proclamation Theology of D. L. Moody, Chicago. 1976. p. 217-218.

14 Martin MARIY. R Scott APPLEBY. The GImyand the Power, p. 48-52.resumem uma interpretação interessante das características da escatolo­gia pré-milenarista e pós-milenarista. Há uma boa discussão teológica dotema em James BARR. Fundamentalism. London: SCM. 1977. passim.

15 James BARR. op. cit .. p. 36.16 Cito ap. George M. MARSDEN. Fundamentalism and American Culture,

p. 151; citação de Henry WKITERSON em The Kíng's Busíness, V. 9. p.1026-1027. dez. 1918. de um editorial de The Louisvillle Courier JournaI.

17 Sobre o tema da criação e da evolução das espécies. que curiosamenteapareceu novamente em discussões sobre a educação nas campanhaseleitorais em vários estados dos Estados Unidos em fins de 1994. vejaMartin MARIY. R Scott APPLEBY, The Glory and the Power. p. 53-56.

18 O fenômeno fundamentalista, tal como se deu particularmente no mundoanglo-saxão. foi interpretado de diversas maneiras: como uma reaçãocontracultural, como uma forma de "natívísmo", como uma manifestaçãodo pré-milenarismo e inclusive (o autor alemão Riesenbrandt) como "pa­triarcalismo radical". Um tanto inesperadamente. na discussão dos "con­teúdos básicos" da educação básica do novo plano proposto na Argentina.levantou-se uma forte oposição religiosa (majoritariamente católica) à in­clusão do tema da evolução e do próprio nome de Darwín, e o Ministérioda Educação parece ter-se visto obrigado a modificar sua proposta. pro­vocando a renúncia de vários dos educadores que trabalharam na prepa­ração do projeto.

19 Com respeito aos conflitos na Convenção Batista do Sul é fascinante ocuidadoso e equilibrado estudo de Nancy AMMERMAN. Baptist Bettles. aque nos referimos anteriormente (nota 6).

20 C. W. DOLlAR. A History ofFundamentalism in America. Greenville: BobJones Uníversíty, 1973; Introdução. p. 7; capo V, p. 14; capo XXI. p. 32.Este livro é interessante por ser uma história do fundamentalismo apartir de dentro do fundamentalismo.

21 Pablo A. DEIROS. Historia deI cristianismo en América Latina. BuenosAires: Fratemidad 'Ieológíca Latinoamericana. 1992. Veja do mesmo autor.

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Notas 141

Protestant Fundamentalism in Latin Ameríca, in: Martin MARIY, R ScottAPPLEBY (Eds.), Fundamentalism Observed, v. I, p. 142-196.

22 Pablo A. DEIROS, Historte del cristianismo, p. S02.23 Id., íbíd., p. S03-S06.24 Prudencío DAMBORIENA, S.J., El protestantismo en América Latina, Frí­

burgo: FERES, 1962, tomo I, p. 32. Damboriena explica esse aumentoprincipalmente em termos da recolocação de missões, missionários e re­cursos deslocados por causa da perda de campos missionários na Ásia,como na China, Indochina, etc. (p. 27-45). As outras cifras que ele dá parao mesmo período sugerem que uma causa exógena não consegue expli­car, p. ex., o aumento de obreiros locais de 2.176 para 14.299 ou o demembros comungantes de 170.S27 para 4.230.413.

25 Por exemplo, é interessante observar que em IS94 se podia discutir livre­mente, no El Estandarte Evangélico, o uso de vinho nas mesas metodis­tas, sem que uns e outros fizessem disso um artigo de fé, enquanto que,em tomo de 1930, o voto de abstinência e a fita branca que o atestavaeram quase um requisito para ser membro da Igreja Metodista latino­americana.

26 Cf. Historia y misión, in: Protestantismo y liberalismo, San José de CostaRica: DEI, 1983, p. 15-36.

27 Sobre essa transição veja Leopoldo ZEA, /Las ideas en Iberoaméríca en elsíglo XIX, La Plata: Universidad Nacional de La Plata, Departamento deFilosofia, 1956, p. 43ss. Quanto ao significado ideológico dessa transiçãoé interessante uma citação de Zea que, mutatis mutandis, talvez tambémtenha sentido para os evangélicos: "abandona-se a discussão pela liber­dade e se estabelece a ordem que permitirá o progresso material de cadapaís e, com ele, a liberdade como conseqüência" (p. 43).

28 Originalmente artigos no El Sendero del Creyente, v. XXXV, que em 1945foram publicados num livro com o mesmo título.

29 Christian Work in Latin America, Montevideo: CCIA, 1926, tomo I, p. 350.30 Pablo A. DEIROS, Historie dei cristianismo, p. 771s., SOl-808.31 O desenvolvimento dessa linha em setores fundamentalistas norte-ame­

ricanos foi amplamente estudado. A melhor referência que conheço é oestudo de Erlíng JORS1AD, The New Christian Riglit: 1981-1988, Lewís­ton/Queenston: Edwin Mellen, 1987, com excelentes notas bibliográficas.

32 Um trabalho recente de George M. MARSDEN, Understanding Funda­mentalism and Evangelicalism, Grand Rapids: Eerdmans, 1991, é muitoesclarecedor para situar a relação entre o evangelicalismo e os recentesdesdobramentos do fundamentalismo.

33 Declaración Evangélica de Cochabamba, Fraternidad de 'Ieólogos Latinoa-mericanos, Pensamiento Cristiano, n. 69, p. 19, mar. 1971.

34 Let the Earth Hear His Voice, Minneapolis: World Wide Publications, 1975,p.25s.35 Buenos Aires: Certeza, 1975.36 Ibid., p. 35.37 Let the Earth Hear His Voice, p. 310.38 Veja os números do ano de 1990 do Boletin 'Ieolôgico publicado pela FTL

e as palestras e discussões da reunião de Quito no n. 42-43 de setembrode 1991.

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142 Rostos do protestantismo latino-americano

39 O informe CLADE III: Tercer Congreso Latinoamericano de Evangeliza­ciôn. Buenos Aires: FTL, 1993, 867 p., inclui a totalidade dos trabalhospreparatórios, as palestras, os debates e os documentos finais do CLADEIII e é o melhor material para avaliar o processo que a FTL inspirou e aamplitude de participação que obteve.

Capítulo 3:

o rosto pentecostal do protestantismo latino-americano

1 Carlos MARlitrEGUI, Siete ensayos sobre la realidad peruana. Lima: Amau­ta, 1975, p. 172-173.

2 John A. MACKAY, How my Mind Has Changed in the Last Thírty Years,The Christian Centwy. p. 875, jul. 1939.

3 Latín America and Revolution-II: The New Mood in the Churches, TheChristian Centwy, p. 1.439, 24 novo 1965.

4 O Prof. Mendonça me chamou a atenção para um relato contido na obrade Emile LÉONARD, O protestantismo brasileiro, São Paulo: ASTE, S. d.(publicação original de 1951-1952), sobre uma manifestação de caráterpentecostal em 1840, no ministério de um missionário presbiteriano e ex­sacerdote católico, José Manoel de Conceição, que depois continuaria esseministério por si mesmo (p. 56ss.). Léonard foi talvez o primeiro a percebero que Bernardo Campos chama de "a pentecostalidade" - e que Léonarddefine como "o iluminismo" - no protestantismo brasileiro. Cf. seu libroL'lllutninisme dans un protestantisme de constitution récente (Brésil),Paris: Presses Universitaires de France, 1952.

5 Há várias tentativas de tipificar os pentecostalismos na América Latina oude elaborar o que Petersen chamou de "taxonomías do pentecostalismolatino-americano". O Prof. Antonio Gouvea Mendonça distingue entre o"pentecostalísrno clássico" e o "neopentecostalísmo" e, dentro deste, entreum "pentecostalísmo autónomo" e o "pentecostalísrno de cura". O bispoManuel Gaxiola-GAXIOLA, da Igreja Mexicana Pentecostal Unida, fala dedistintos "agrupamentos" de igrejas pentecostais: autóctones, denomina­ções fundadas por igrejas estrangeiras e um tipo especial de igrejas que seassemelham ás igrejas messiânico-proféticas independentes da África (La­tin American Pentecostalism: A Mosaic wíthín a Mosaic, Pneume, V. 13, n.2, p. 107, 1991). As primeiras, em sua opinião, teriam nascido com escas­sa ou nenhuma influéncia estrangeira e suas práticas se derivariam dire­tamente das tradições do povo em que surgem. Carmelo ADlAREZ, de suaparte, distingue também entre um "pentecostalísmo crioulo" com certoarraígamento histórico na América Latina e igrejas implantadas mais re­centemente por missões estrangeiras, que ele associa à "igreja eletrónica"e a evangelistas como Jimmy Swaggart (Latin American Pentecostals:Ecumenical and Evangelicals, Catholic Ecumenical Review, n. 23, n. 1-2,p. 93ss., out. 1986). No último capítulo, faremos algumas observações arespeito disso. 1àmbém deve-se levar em conta o forte colorido ideológicode muitos desses movimentos, vinculados direta ou indiretamente à "novadireita religiosa" nos Estados Unidos. Veja a respeito disto os trabalhos deErling JORSlAD, The Politics of Moralism: The New Christian Right inAmerican Life, Minneapolis: Augsburg, 1981, e sobretudo sua ampla pes-

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Notas 143

quísa e análise em The New Christian Right: 1981-1988, Lewiston/Queens­ton, Edwin Mellen, 1987 (Studies in Amerícan Relígíon, 23). Em sua teseainda não publicada, Douglas Petersen questiona as taxonomias basea­das na "origem" -local ou em missões estrangeiras -, pois o que impor­ta não é a origem histórica, e sim a medida de efetiva "índígenízação"alcançada. Parece evidente que ainda carecemos de critérios que nospermitam uma tipificação mais adequada. Por outro lado, o caráter suma­mente dinámico de todo o processo toma díficíl definir tais critérios.

6 Walter HOLLENWEGER, Spiritus: Estudios sobre Pentecostalismo, v. 1, n.1, 1985.

7 São muitas as publicações do professor Hollenweger, partindo de suamonumental tese em oito volumes, Handbuch der Plingstbewegung, Genf:Õkumeníscher Rat der Kirchen, 1965, mimeografada. As referências queutilizamos aquí encontram-se em id., El pentecostalismo: história y doe­trina, Buenos Aires: La Aurora, 1976.

8 Em publicações mais recentes, o Prof. Hollenweger revisou e ampliou suasteses iniciais. Veja, por exemplo, íd., Veinte anos después, Spiritus: Estu­dios sobre Pentecostalismo, v. 2, n. 1, 1986. Reproduzido por Juan SE­PÚUlEDA (Ed.J, Antologia sobre pentecostalismo, Santiago de Chile, 1989.

9 Emilio WILLEMS, Followers of the New Faith, Nashville: Vanderbilt Uni­versity, 1967. Do mesmo autor, Relígíous Mass Movements and SocialChange in Brazil, in: E. N. BAKlANOFF (Ed.), New Perspectives on Brezil,1966.

10 Recentemente, o sociólogo brítáníco David MARTIN retomou, com algu­mas variantes, a mesma tese em seu livro 1bngues ofFire, 2. ed., Oxford:Basil Blackwell, 1991, que, curiosamente, foi celebrado no mundo anglo­saxão como um "descobrimento", mas cuja informação, conhecimento daAmérica Latina e metodologia nos parece que deixam muito a desejar.

11 Chrístían Lalive d'EPINAY, El refugio de las masas, Santiago de Chile:Editorial deI Pacífico, 1968 fedo em port.: O refúgio das massas: estudosociológico do protestantismo chileno, Rio de Janeiro: Paz e 'Ierra, 1970).Do mesmo autor há vários artigos (citados na bibliografia do livro mencio­nado) e Religion, dynamique social et dépéndence, Paris: Mouton, 1975.

12 Pentecostais no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1985.13 Id., ibid., p. 15.14 Las culturas populares en e1capitalismo, México: Nueva Imagen, 1983, p. 22.15 Daniel P. MÍGUEZ, Estilos de vida e identidades, manuscrito, 1993.16 Amerindia, Santiago de Chile, tomo I, 1988; tomo lI, 1991.17 Carmelo AUTAREZ (Ed.J, Pentecostalismo y liberación, San José de Costa

Rica: DEI, 1992.18 Como curiosa exceção a essa "universalidade da graça" deve-se mencio­

nar a "Igreja de Deus", do Brasil, presbiteriana em sua origem, que aderefirmemente à doutrina da dupla predestinação e, por conseguinte, não faztentativas de proselitismo ou de "converter as pessoas", mas simplesmen­te recebe a quem se aproxima e "atesta" sua eleição. Não obstante, é umaigreja que tem crescido extraordinariamente e continua crescendo.

19 A ênfase quase exclusiva na "cura divina" caracteriza alguns movimentospentecostais mais recentes e o "neopentecostalísmo" ao qual fazemos alu­são na nota 5. Neste sentido parecem-me de grande interesse algumas

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144 Rostos do protestantismo latino-americano

observações do Prof. Mendonça sobre a preponderância do tema dos "es­píritos" nesse neopentecostalismo de cura divina. Ele considera que essatendência, introduzida por missionários da "Igreja Quadrangular" em tor­no de 1950, produz um "desequilíbrio no pentecostalismo clássico", namedida em que assume o imaginário social popular de um mundo regidopor espíritos bons e maus e propõe uma forma de "manejar" o mundo dosespíritos, restrita aos que detenham o poder "mágico". Dessa maneira sedeslocam os conteúdos evangélicos: o pecado é possessão demoníaca. alibertação se realiza por exorcismo, freqüentemente o manejo dos espíritosutiliza "instrumentos", como chaves abençoadas, tocar um objeto. A igrejanão é aqui principalmente a congregação de crentes comprometidos. Es­tamos - pergunta-se Mendonça - frente a uma nova religião? Poder-se­ia ver também aqui, pensando no pano de fundo afro-americano, umamanifestação sincrética.

20 Raíces teológicas delpentecostalismo, Buenos Aires: Nueva Creación, 1991,p.9s.

21 Grand Rapids: Eerdmans, 1971, p. 217.22 Robert M. ANDERSON, The Vision of the Disinherited: The Making of

American Pentecostalísm, New York: Oxford Uníversíty, 1979, capítulosobre The Message of Pentecostalism.

23 Pentecostal Theology in the Context of the Struggle for Lífe, in: D. KIRK­PJITRICK (Ed.l, Faith Bom in the 5truggle for Life, Grand Rapids: Eerd­mans, 1988, p. 299ss.

24 Documento de síntese, Encontro de Pentecostais Latino-Americanos, Sal­vador, Bahia, Brasil, 6 a 9 de janeiro de 1988, mimeografado, p. 5.

25 Esta e as demais citações desse encontro são tomadas de seu Documentofinal, publicado ap. Carmelo AllTAREZ, op. cít., p. 252-254.

26 Ainda há poucas investigações confiáveis e abrangentes dessa atividade etrabalhos sobre seu significado social e teológico. Os poucos trabalhosque chegaram a nossas mãos se referem aos "evangélicos" em geral. Porexemplo, David S1DLL, Is Latin America 'Iiirning Protestant?: The Politicsof Evangelical Growth, Berkeley: University of California, 1990; Rethin­kingProtestantism in LatinAmerica, Philadelphia: 'Iemple Uníversity, 1993;René PADILLA, De la marginación al compromiso: los evangélicos y lapolítica en América Latina, Buenos Aires: Fraternidad 'Ieológíca Latinoa­mericana, 1990; Fortunato MALLIMACI, Protestantismo y política parti­daria actual en Argentina: del campo religioso al campo político, la luchapor la legitimidad, Buenos Aires, 1994 (mimeografado); Paul FRESTON,1eocratas fisiológicos: nova direita e progressistas: protestantes e políticana Nova República, Rio de Janeiro: CEDI, 1989.

27 Lo testimonial: un caso de teologia oral y narrativa, in: Carmelo AllTAREZ,op. cit., p. 128.

28 Id., íbíd., p. 129, grifes meus.29 In: Algo más que opio, San José de Costa Rica: DEI, 1991, p. 26.30 Elizabeth BRUSCO, The Household Besis ofEvangelical Religion and the

Reformation of Machismo in Colombie, Míchígan: Uníversíty MicrofilmInternational, 1986. A bacharel Móníca TI\RDUCCI apresentou na Univer­sidade de Buenos Aires um trabalho sobre o mesmo tema sob o título"Servir al marido como al Senor": las mujeres pentecostales.

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Notas 145

31 Pierre BOURDIEU, Language and Symbolic Power, Cambridge: Cambríd­ge Polity, 1991, p. 173 e 215.

32 Cf. artigo citado na nota 27. p. 126.33 Sobre a importância do "milenarismo" como elemento central do funda­

mentalismo entabulou-se uma interessante discussão entre Emest SAN­DEEN (The Roots ofFundamentalism: Brítísh and Amerícan Míllenaría­nism 1800-1930, Chicago: Uníversíty of Chicago, 1970) e George MARS­DEN [Defíníng Fundamentalism, Christian Scholars Review, n. 1, p. 141-151.1971); veja a resposta de Sandeen no número seguinte da mesma publi­cação. Enquanto que Sandeen considera que o milenarismo é "a raiz" dofundamentalismo, Marsden o vê como "uma das raízes" de um movimen­to cuja característica defmidora é a rejeição da modernidade.

34 Uma discussão significativa da relevância atual do "evangelho apocalípti­co" de Paulo e, ao mesmo tempo, uma critica aguda das deformações eadulterações que tem sofrido encontram-se no livro de J. Chrístían BE­KER, Paul's Apocaliptic Gospel: The Coming Tríumph of God, Phíladel­phia: Fortress, 1989.

Capítulo 4:

Um "rosto étnico" do protestantismo latino-americano?

1 Emíle-G. LÉONARD, O protestantismo brasileiro: estudo de eclesíología ede história social, São Paulo: ASTE, 1964. p. 17 (grifos meus).

2 Não cremos que seja necessárto tentar resumir os dados históricos daentrada das igrejas de imigração na América Latina. As obras de Príen,Bastían, Deiros e outros às quais nos referimos dão os dados básicos eincluem as referências bibliográficas necessártas para empreender umestudo mais detalhado dos aspectos históricos.

3 Waldo L. VILLALPANDO (Ed.), Las igJesias del trasplante: protestantismode ínmígracíón en la Argentina, Buenos Aires: CEC, 1970.

4 Robert RICARD, La. conquête spirituelle du Mexique, Paris. 1933; cito ap.J. MÍGUEZ, Las perspectivas deI cristianismo en América Latina, Cuader­nos de Embelse, FUMEC, 1964. p. 1-13.

5 R NARROLL, Ethnic Unit Classífícatíon, Current Anthropology, V. 5, n. 4,resumido por Fredrík BARTI-I en Los grupos étnicos y sus fronteras, Mé­xico: Fondo de Cultura Econórníca, 1976, p. l l ,

6 Encontramos apresentações que resumem de forma clara e simples essadiscussão no livro editado por Fredrík Barth indicado na nota anterior (p.9-49) e na compilação editada por Roberto RINGUELET, Procesos de con­tacto interétnico, Buenos Aires: Búsqueda, 1987, p. 13-48. Ambos in­cluem uma bibliografia abundante.

7 Waldo VILLALPANDO, op. cít., p. 9, cita expressões de Roger Bastide (Bré­silo terre de contrastes. Paris: Hachette, 1957, p. 241) sobre a importânciada religião na preservação cultural: "De um modo geral, a religião é ocentro mais importante da resistência. Podem-se mudar a língua, o modode viver e as concepções sobre o amor. A religião integra a última trinchei­ra ao redor da qual se cristalizam os valores que não querem morrer. Osagrado é, nas batalhas das civilizações, o último baluarte que recusarender-se." Em alguns dos "despertares étnicos" que - para surpresa de

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146 Rostos do protestantismo latino-americano

muitos - vêm cobrando força em diversas partes do mundo, esta afirma­ção de Bastide parece confirmar-se. Creio, porém, que, como generaliza­ção, ela deve ser tomada com cautela; é verdade que, entre esses "renas­cimentos étnicos", há alguns nos quais o elemento religioso desempenhaum papel importante (mesmo que só ideologicamente), mas outros fatorescomo a língua, a filiação política ou ideológica e os interesses econômicoscomuns ocupam um lugar ao menos da mesma ímportãncía na auto­afirmação e nas lutas étnicas.

8 Na impossibilidade, por razões tanto de espaço quanto de conhecimento,de considerar o tema a partir de fontes primárias e à altura da grandediversidade de igrejas que podem ser consideradas étnicas na AméricaLatina, decidi fazer só algumas observações com base em trabalhos depesquisa realizados sobre algumas igrejas no Cone Sul, particularmentena Argentina, no Uruguai e no Brasil. Com respeito ao Brasil, utilizeiprincipalmente, junto com os trabalhos histórtcos de Mendonça, citadosanteriormente, os livros de Martin N. DREHER, Igreja e gerrnanidade:estudo critico da história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana noBrasil, São Leopoldo: Sinodal; Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre: EST SãoLourenço de Brindes, 1984; André DROOGERS, Religiosidade popularluterana: relatório sobre uma pesquisa no Espírito Santo em julho de1982, São Leopoldo: Sinodal, 1984; e Hans-Jürgen PRIEN, EvangelischeKirchwerdung in Bresilten, Gütersloh: Gerd Mohn, 1989. Na Argentina. amencionada pesquisa Las igJesias del trasplante e a tese de Maria M.BERG. Dinamarca bejo la cruz del sur: los asentarnientos daneses delcentro-sur de la províncía de Buenos Aires. 1850-1930, Universidade deBuenosAíres, 1994. Outras indicações aparecem nas respectivas referências.

9 Dados documentados respectivamente nos informes dos congressos doPanamá. de Montevidéu e de Havana citados em capítulos precedentes.Com respeito à Confederação Evangélica do Rio da Prata. veja HoracioGUALDIERI. FAlE: Apuntes para una historia de las relaciones eclesialesen el Rio de la Plata, Buenos Aires. s. d. (mimeografado), e Eugenio E.MOHR, Confederación de Iglesias Evangélicas del Rio de la Pieis, teseapresentada no ISEDET, Buenos Aires. 1993.

10 Kurt HUTIEN, Seher, Grúbler, Enthusiasten: Sekten und relígíõse Son­dergemeinschaften der Gegenwart, Stuttgart: Quell. Nas edições iniciais eaté 1954 ao menos, igrejas como a metodista. nazarena. etc. aparecemsob a designação de "comunidades perfeccíonístas". Na 8 a edição. de 1962.desaparecem os metodistas. mas os nazarenos continuam.

II Faço essa observação com base em referências indiretas e de comentáriosde pessoas envolvidas nessas conversações. mas não conheço documen­tação específica sobre elas.

12 Ernst mOELTSCH. Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Grup­peno in: íd., Gesammelte Schrtiten, 3. ed., Tübingen: J. C. B. Mohr, 1923.v. I, p. 358-377.

13 Além da obra de Troeltsch citada na nota anteríor, veja Max WEBER. Díeprotestantischen Sekten, in: id., Gesammelte Auisêtze zur Religionssozio­logic. v. I, p. 207-236. As distinções de 'Iroeltsch e Weber foram refinadasposteriormente. incluindo categorias mais precisas e delimitadas, comoigreja universal. ecclesie. seita estabelecida e seita. Veja a esse respeito J.Milton YINGER, Religiôn, persona, sociedsd, Madrid: Razôn y Fe, 1968. p.192-208.

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Notas 147

14 Numa reflexão sobre o anglicanismo na "Região Central da América", osecretário de educação da Igreja Episcopal no Panamã, John L. Kater,descreve essa concepção anglicana, citando a clássica formulação de Hoo­ker: "cada igreja foi originalmente organizada para servir a um povo ou auna nação particular (...) A imposição da monarquia papal (...) foi umdesenvolvimento tardio, que despojou as igrejas de sua habilidade paraservir adequadamente sua própria nação." E então Kater mostra comoessa concepção não pôde funcionar nos Estados Unidos, para concluircom uma teoria dos "distintas ramos" da igreja e, portanto, da pluralida­de. In: Ashton J. BROOKS (Ed.), Eclesiologie: presencia anglicana en laRegíón Central de América, San José, Costa Rica: DEI, 1990.

15 Id., íbíd., p. 33.16 Maria M. BERG, op. cít., p. 277.17 Embora não seja o caso da imigração protestante (valdense) da Itálía, é

interessante observar que a colônia italiana na Argentina sentiu forte­mente a pressão de consolidar a unidade italiana para uma "identidadenacional italiana" em lugar das identidades regionais de origem que ha­viam predominado anteriormente. Cf. Eduardo J. MÍGUEZ, 'Iensíones deidentidad: reflexíones sobre la experiencia italiana ínmígrante en la Argen­tina, in: F. J. DEVOTO, E. J. MÍGUEZ (Eds.) , Asociacionismo, trabajo eidentidad étnica: los italianos en América Latina en una perspectiva com­parada, Buenos Aires: CEMlA-CSER-IEHS, 1992, p. 333-358.

18 Não vamos nos deter no complexo problema da identidade étnica "germã­níca" da nação "alemã", que, como indicamos mais adiante, manifesta-seem algumas das cisões posteriores, nem na debatida questão da adesãoou oposição à "germanídade" impulsionada pelo nacional-socialismo. Otema é discutido em relação ao Brasil nas obras de Dreher e Prien jácitadas. No tocante à Argentina e ao Uruguai, é sumamente ilustrativo oartigo de Alejandro WRZIN (parte de uma investigação que o autor estácontinuando), Pastor Wilhelm Nelke, un impulsor de la germanidad en elRio de la Plata, Cuademos de 7eología, Buenos Aires, ISEDET, v. 12, n. 2,p. 29-57, 1992.

19 Em sua Storia dei Valdesi, 10000: Cíaudíana, 1980, v. 3, p. 196-202, ValdoVINAY faz esta interessante observação: "Em seu foro íntimo os evangelis­tas se regozijaram com a independência nacional (...) Mas sua espírítualí­dade do despertar {risvegJiata] separava com rigor a esfera espiritual dapolítica e eles não conseguiam ver um vínculo vital efetivo entre o evange­lho pregado e a libertação política e social de seu povo." Cf. tambémGiorgio roURN, Los Valdenses, Montevideo: Iglesia Valdense, 1983, v.Ill/2, p. 274ss.

20 Walter ALlMANN, Lutero e libertação: releitura de Lutero em perspectivalatino-americana, São Leopoldo: Sinodal, São Paulo: Ática, 1994, p. 121s.(grifos meus).

21 Vale a pena registrar aqui que, embora tenham sido recebidas e até con­vidadas, as comunidades estrangeiras foram amiúde discriminadas so­cialmente, rejeitadas pelas elites tradicionais e sofreram, em muitos mo­mentos, nas mutações políticas dos distintos países, graves discrimina­ções em temas como a construção de seus templos, o matrimônio e osepultamento de seus membros e a educação religiosa de seus filhos, etiveram sérios conflitos com o estado, que, ocasionalmente, só foram su-

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148 Rostos do protestantismo latino-americano

perados mediante a intervenção dos representantes diplomáticos dos paí­ses de origem.

22 Albert C. OUTLER, Evangelism in the llésleyan Spirit, Nashville: Tídíngs,1971, p. 60-61 (grifas meus).

23 Samuel ESCOBAR, La fe evangélica y las teologias de la hberectôn. ElPaso: Casa Bautista de Publícacíones, 1987, p. 45s.

24 H. Richard NlEBUHR, The Social Sources of Denomineiionelism, NewYork: Merídían Books, 1957 (edição original de 1929). Níebuhr vê, ao longode toda a história, o surgimento das "igrejas dos deserdados" como umprotesto contra a "acomodação" das igrejas aos interesses das classesdominantes e sua incapacidade para manter o testemunho ético e profé­tico da fé cristã. Quanto à Reforma e aos movimentos radicais do século16, veja p. 34-53, e uma tese geral sobre a origem social do denomínacío­nalismo às p. 21-25.

25 O estudo documentado no livro se limita a dez igrejas; em seus resumosfinais Christian lALIVE acrescenta a Igreja Evangélica de Fala Francesado Rio da Prata, cujos dados ele conhece mas não inclui (veja op. cít., p.164, nota 6). Descontei esse dado e me ative aos indicados no livro; daí adiferença entre meus dados e as cifras dele.

26 Id., íbíd., p. 165.27 Ibid., p. 164.28 Esse despertar, que acontece nas igrejas valdenses depois da unidade

(1848), representa diversas influências "evangélicas" - pietismo reforma­do, batistas, "darbístas", metodistas e o anglicanismo evangélico - bemdocumentadas nas histórias que mencionamos; Valdo VINAY, op. cít., v.3, p. 73-165; Gíorgío TOURN, op. cít., v. ll/2, p. 274ss. No momento emque concluía este trabalho, chegou-me às mãos a obra, recentementepublicada, de Roger GEYMONlIT, EI templo y la escuela: los valdenses enel Uruguay, Montevideo: Cal y Canto, OBSUR, Fundacíón Giovanni Ag­nelli, 1994. Embora o autor não analise a orientação teológica dos primei­ros pastores, chama a atenção para um aspecto que corresponde a nossotema: o contraste entre o que Geymonat chama de "o píetísmo dos pasto­res vindos da Itália em fins do século 19 e inícios do século 20, imbuídosde um decidido espírito de evangelização" e a atitude majoritãria do que"poderíamos qualificar de 'militância religiosa passíva'" da maioria doscolonos (p. 120-121).

29 Hans-Jürgen PRIEN, Evangelische Kirchwerdung, p. 91-93.30 Christian lALIVE, op. cit., p. 174.31 Id., ibid., p. 171.32 Um caso muito interessante é o da Igreja Presbiteriana Escocesa, que até

há poucos anos teríamos caracterizado como eminentemente "étnica",sem perceber que sua história inicial teve uma intenção evangelizadora emissionãria que depois se extinguiu. Mesmo sem contar a obra missioná­ria iniciada por presbiterianos de origem norte-americana (cf. Daniel P.MONTI, Presencia deI protestantismo en el Río de la Plata durante el sigloXIX, Buenos Aires: La Aurora, 1969), a congregação rural residente esco­cesa de Chascomús e seu pastor Robertson iniciaram um trabalho deevangelização que depois foi descontinuado. Essa significativa história foirecuperada e analisada numa interessante tese do pastor Girvan ChristíeMcKAY, Growth and Decrease of Presbyterian Missiotiery Outreach in

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Notas 149

Argentina, Buenos Aires: ISEDET, 1974. Em anos recentes essa vocaçãoparece ter sido reencontrada, porém não sem tensões e conflitos.

33 Chrístían IALIVE, op. cít., p. 166-170.34 Numa palestra feita no ISEDET (Buenos Aires, 1983), Walter Altmann

destacou como a crise econômica que obrigou muitos luteranos brasilei­ros a emigrar para a periferia das cidades ou para a fronteira com oParaguai gerou uma integração religiosa ou a formação de comunidadeseclesiais abertas.

35 A discussão sobre aculturação, adaptação, assimilação, pluralidade cul­tural é totalmente pertinente a nosso tema, mas escapa a nossas possibi­lidades. Haveria que falar aqui, em relação com o tema que nos ocupa, aomenos de dois aspectos. Um é o modelo de recepção e tratamento daimigração que distintos países adotaram: em alguns, houve uma "políticadura" de pressão social, cultural e política para assimilar a população quese recebia - que abandonassem seu idioma, seus usos particulares, aendogamia -, o que poderiamos chamar de a ideologia do "crisol deraças"; em outros, uma "política branda" de educação bilíngüe, estímuloa manifestações culturais diversas e até aceitação de dupla nacionalidade(o que nem sempre significa maior apreço pelas etnias imigrantes, maspode ser também uma forma de discriminação). A maioria dos paíseslatino-americanos, buscando construir uma identidade própria, aderiu,com distintos graus de intensidade e execução, à primeira. Mas veja-setambém, em relação à política imigratória argentina, o interessante artigode Dolores JULIANO, EI discreto encanto de la adscripción étnica volun­tarta, in: R RINGUELET (Ed.), op. cít., p. 83-109. 1àmbém são interessan­tes os trabalhos de Roy A. Preíswerk: alguns de seus textos foram recolhi­dos no livro editado por seu sucessor, Gilbert RIST, A contre-courents,l'enjeu des réleiions interculturelles, Lausanne: Edítíons d'en Bas, 1984;veja especialmente o artigo do próprio Rist, Pour une épístemologíe inter­culturelle, e o de Matthias PREISWERK, Identíté culturelIe et développe­ment. Isto conduz a um segundo tema, a saber, como se gera uma "iden­tidade"? Em vários países latíno-amerícanos - tomo a Argentina comoexemplo - tem havido um conflito entre duas formas de entender aconformação de uma "identidade nacional": uma, que eu chamaria de"mítica", que postula uma certa "essência" ou "ser nacional", vinculadaao solo, ao sangue ou à ideologia - que pode ser religiosa - e que érepresentada por símbolos: a bandeira, o hino, algum personagem, etc.Curiosamente, tambêm algumas igrejas de imigração entenderam suaidentidade neste sentido e lutaram para mantê-la. Outra linha - que,como se verá, considero mais frutífera - é a que as ciências sociaismodernas nos propõem: a identidade de um povo não é uma entidadeestática e supra-histórica, e sim uma autopercepção, uma "elaboração dapertença social" que é gerada na consciência de um povo na interação decondições objetivas e da criação intersubjetiva. 1àl elaboração é possívelem relação com um "outro" externo (quer dizer, na pluralidade dos povos)e com "outros" internos (quer dizer, na pluralidade dentro de um povo, emnosso caso, a pluralidade religiosa). Por isso, a identidade ê criada a partirdas identidades: não há um único modo de ser, como, por exemplo,argentino (ou "rnetodista", se vamos ao caso). E ê a interação dessesdistintos modos que permite criar símbolos sufícíentemente amplos paraincluir essa diversidade. Alguns trabalhos recentes colocaram esse temade forma sumamente interessante e frutífera; entre outros: COHEN, The

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150 Rostos do protestantismo latino-americano

Symbolic Construction ofCommunity, 'Iavístock, 1985; KERrZER, RitualPolitics and Power, New Haven: Yale Uníversíty, 1989; Craíg CALHOUN(Ed.) , Social Theory and the Politics of Identity, Oxford: Blackwell, 1994;Anthony GlDDENS, Modemity and Self-Identity, Cambridge: Polity, 1991;Jorge lARRAÍN, Ideology and Cultural Identity, Cambrídge: Polity, 1994.

36 Numerosas passagens proféticas apresentam basicamente a mesma men­sagem. A esse respeito, há um bom resumo no artigo sobre "os gentios"(ethnon) na seção do M, escrita por BERTI-IAM, in: Gerhard KITTEL (Ed.),Tbeologicel Dictionexy of the New 1estament, Grand Rapids: Eerdmans,1964, v. n. p. 364-369.

37 Krister STENDHAL argumentou - com razão, em minha opinião - quenão se deve ver a discussão da relação entre judeus e gentios como "umcaso" no qual Paulo "aplica" a doutrina da justificação pela fé, e sim, pelocontrário, como o problema crucial em tomo do qual o apóstolo defineessa doutrina: Paul Among Jews and Genttles, Philadelphia: Fortress,1964, p. 2, 36-37.

38 É claro que não se trata aquí de resumir ou analisar esse complexo temateológico. 1àlvez a discussão favorável mais cuidadosa se encontre na obrade Helmut TI-llELlCKE, Theologische Ethik, Tübíngen: J. C. B. Mohr (paulSiebeck), 1955, especialmente v. n. Dietrich BONHOEFFER reinterpretouo conceito de forma mais dinâmica em sua doutrina dos "mandatos":Ethik (editada postumamente), München: Kaiser, 1949, seção 11 (há tra­dução para o português publicada em sucessivas edições pela EditoraSinodal). Emil BRUNNER também trabalha a partir da perspectiva dasordens da criação em sua ética: Das Gebot und âie Ordnungen, 1932Itrad, para o inglés: The Dtvitie Imperative, Philadelphia: Westminster,1947), v. Ill, criticada duramente por Karl BARTI-I em Nem (1934) porconsiderá-la uma perigosa concessão à teologia natural e às pretensõesde um estado racista! Num sentido perigosamente próximo desta últimainterpretação: Paul ALTI-lAUS, Die deutsche Stunde der Kirche, Gõttín­gen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1933.

39 Re(li)gion, the Lord of History and the lllusory Space, in: Lutheran \furldFederation Studies: Region and Religion, Geneva: IWF, 1994.

40 ld., íbíd., p. 82.

41 lbid., p. 94.42 Cf. Ernst KÃSEMANN, Gottesgerechtigkeit beí Paulus, in: Joumal for

Theology and the Cburch, Harper, 1965, v. 1, p. 108-109.43 Nils A. DAHL, Studies in Paul, Minneapolis: Augsburg, 1977, p. 109.44 Vitor WESTI-lELLE, op. cít., p. 95 (grifos meus). Fica-me um tema para o

qual o autor não retoma e que me parece importante: é a abertura doespaço próprio pelo reconhecimento da alteridade que se toma epífánícao suficiente, sem a relação dessa "epifania" existencial com uma aberturapara o "futuro de Deus"? Mais simplesmente: pode haver uma teologiabíblica sem esse "metarrelato" que tanto desgosta o pós-modernismo,mas que parece inerente à escatologia bíblica? Não correm, nessa visão, otempo humano e o propósito divino o risco de ficar reduzidos a momentose espaços descontínuos? Possivelmente temos aqui uma conversação lu­terano-reformada que convém continuar mantendo.

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Notas

Capítulo 5:

151

Em busca de uma coerência teológica:a trindade como critério hermenêuticade uma teologia protestante latino-americana

1 RubemADlES, Dogmatismo e tolerância, São Paulo: Paulinas, 1982, p. 170.2 EI futuro del protestantismo, Boletín 'Ieolôgico, n. 42-43, p. 155-157, set.

1991: Kirchlicher Pluralismus und wechselnde Koalitionen, Jahrbuch Mis­sion 1992, p. 19-31; Campo religioso latinoamericano y desafios ecuméni­cos, Tópicos '90, Santiago de Chile, Centro Diego de Medellín, n. 7, p.11-22, jan. 1995, e Ecumenismo y unidad de la íglesía, palestra apresen­tada na III Assembléia do ClAI, Concepción, Chile, 1995.

3 Jean-Christophe RUFIN, L'empire et les nouveaux barbares, Mesnil surl'Estrée: Jean-Claude Lattes, 1991.

4 Thomas LUCKMANN, La religión invisible: el problema de la religión en lasocíedad moderna, Salamanca: Sígueme, 1973.

5 Sociedad y Rcligiôn, Buenos Aires, n. 10/11, p. 52-61, jun. 1993.6 Cf. o recente texto de Leonardo BOFF, 'Ieologis: e ecologia, São Paulo:

Paulinas, 1994.7 B. W. HARGROVE, The Sociology of Religion, Chicago: Harlan Davison,

1989, caps. 14 e 15.8 A tendência de setores da Igreja Católica Romana, neste momento apa­

rentemente dominantes em sua condução central e no CELAM, a reto­mar, numa versão atualizada, um novo projeto de cristandade, implica,em minha opinião, uma grave divergência com a concepção evangélica demissão e evangelização, com sérias conseqüências em nível teológico, ecu­mênico e pastoral. 'Ienteí articular esse problema na apresentação feita àAssembléia do ClAI mencionada na nota 2 e, mais extensamente, numartigo escrito por ocasião do Quinto Centenãrio: Evangelio y cristiandad:apuntes para una reflexíón sobre 500 anos de evangelización católica enAmérica Latina, in: Quinientos afios de evangelización en América Latina,Buenos Aires: IDEAS-REDLA, 1992, p. 93-111, e em Cuademos de 'Ieolo­gia, v. 13, n. 1, p. 27-46, 1993.

9 Juan Luis SEGUNDO, Nuestra idea de Dtos, Buenos Aires: Carlos Lohlé,1970 [ed. em port.: Nossa idéia de Deus, São Paulo: Loyola, 1977]: Ronal­do MUNOZ, El Dios de los cris tianos, Santiago de Chile: Paulinas, 1987[ed. em port.: O Deus dos cristãos, Petrópolis: Vozes, 1986]: José COM­BUN, El Espiritu Santo y la liberación, Madrid: Paulinas, 1987 [ed. emport.: O Espírito Santo e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1987]: LeonardoBOFF, A 1hndade, a sociedade e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986.

10 Essa é a perspectiva teológica em que Ronaldo Muüoz (cf. nota 9) desen­volve o tema trinitãrio.

11 Esse tema, central na ênfase calvinista na soberania de Deus, resgatadoe atualizado radicalmente no Rõmerbrief (Comentãrio da Epístola aosRomanos, edição de 1921) de Barth, constitui o eixo das conferênciaspronunciadas em Buenos Aires, na Cátedra Camahan, por Juan A. MAC­KAY em 1953 e publicadas sob o título Realidad e idolatria en el cristianis­mo, Buenos Aires: La Aurora, 1970.

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152 Rostos do protestantismo latino-americano

12 Éjusto salientar que foi E. Peterson o primeiro (1935) a chamar a atençãopara as interpretações teológicas que, ao reduzir a doutrina da trindade adistinções modais dentro de uma concepção unitária, não só não faziamjustiça à revelação, mas refletiam e legitimavam um modelo de dominaçãoimperial. Veja E. PETERSON, Monotheismus als politisches Problem, re­produzido em Theologische 1taktate, München, 1951; A. SCHINDLER,Monotheismus ais theologisches Problem: Erich Peterson und díe Kritíkder politischen Theologíe, Gütersloh, 1978, e Jürgen MOLTMANN, 'Itini­dad y Reino de Dios, Salamanca: Sígueme, 1983, p. 208-212.

13 Convém aqui recordar Martin BUBER, que, em sua breve e já clássicaobra lli y tú (Diaiogisches Leben, 1947) propunha essa interpretação dia­logal como base de uma antropologia a partir de uma perspectiva teológi­ca judaica. lli y tú, Buenos Aires: Galatea Nueva Visión, 1956.

14 AGOSTINHO, De 1Hnitate, 1.4.7; Mígne, PL, 42/804.15 Otto WEBER, Grundlagen der Dogmatik, Neukirchen: Neukirchener, 1955,

vol. I, p. 435.16 Juan A. MACKAY, El otro Cristo espeiiol: un estudio de la hístorta espiri­

tual de Espana e Hispanoamérica, México / Buenos Aires / Guatemala:CUPSA / La Aurora / Semilla, 1988. A primeira edição em espanhol,tradução de Gonzalo Báez-Camargo, é de 1952.

17 Recordar-se-ào particularmente o debate no Conselho Missionário Inter­nacional e as clássicas obras William E. HOCKING (Ed.), Re-ThinkingMission: A Layman's Enquíry after One Hundred Years, New York: Harperand Brothers, 1932, e a resposta critica de Hendrik KRAEMER The Chris­tian Message in a Non-Chrtstisn World, London: Edinburgh House, 1938,que resumem dois pontos de vista antagônicos. Um bom resumo da pro­blemática e uma bibliografia inicial encontram-se no livro de Paul F.KNITIER No Other Name?, Maryknoll, New York: Orbis, 1985. O mesmoKnitter prepara una obra com vários autores com o título The UniquenessofJesus, que será publicada em 1994/95 pela 'Iemple Uníversíty Press, deFiladélfia. Sobre a questão do "sincretismo" - verdadeiro e falso - pare­ce-me interessante o capítulo 7 de Leonardo BOFF, Igreja, carisma epoder, Petrópolis: Vozes, 1981.

18 EIsa 1AMEZ, Quetzacoatl y la lucha de los díoses, Pasos, San José, CostaRica: DEI, n. 35, p. 9-22, 1991.

19 'Iodo esse conjunto de temas reclama um estudo, uma reflexão e umadiscussão detida e aberta, que já teve início. É claro que fica fora dasperspectivas deste trabalho entrar nesse tema. Permítír-me-ía, contudo,salientar apenas a necessidade de deslindar ao menos dois temas: (1) arelação entre o caráter transcendente da "experiência de Deus" que con­fessamos e os condicionamentos de toda ordem (históricos, ideológicos,psicológicos, culturais) da "materialidade" dessa experiência e das mani­festações doutrinais, litúrgicas ou éticas que toma essa confissão; (2) orisco de confundir, na discussão da evangelização cristã da Amêrica Lati­na, o problema do "poder" com o da "verdade": denunciar o crime econtra-senso de uma evangelização baseada no poder não significa re­nunciar à comunicação da "verdade" do evangelho, reconhecendo todasas ambigüidades inerentes a qualquer formulação e comunicação huma­nas dessa verdade.

20 Uma rápida olhada na pregação evangelizadora dos púlpitos e campanhasevangélicas revela a escassa presença de textos dos evangelhos e, partícu-

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Notas 153

larrnente, da vida e dos ensinamentos do Senhor Jesus durante sua vidaterrena. A menção dos evangelhos costuma limitar-se a textos da semanada paixão ou à interpretação isolada de alguns ditos de Jesus. Creio quevaleria a pena fazer um estudo mais cuidadoso desse aspecto da teologiaevangélica latino-americana "em ação".

21 Os trabalhos sobre as condições sociais do penado do nascimento docristianismo, iniciados no final do século passado pela escola de Chicago(Shailer Mathews, Shirley Jackson Case e outros), foram retomados, comas necessárias correções, por autores como Scroggs, Meeks, Theíssen,Horsley e outros. Particularrnente os trabalhos de Horsley e Crossan mos­tram claramente a raiz do "movimento de Jesus" na tradição profética.Em espanhol temos agora a fundamental obra de J. D. CROSSAN, Jesús,vida de un campesino judio (Barcelona, 1994) [ed. em port.: O Jesushistórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, Rio de Janeiro:Imago, 1994], que resume, atualiza e, ao mesmo tempo, aprofunda osestudos sobre o tema.

22 Entre a ampla literatura a esse respeito destaco os trabalhos de JonSOBRINO, Cttstologie desde América Latina (1976) fedo em port.: Cristo­logia a partir da América Latina, Petrópolis: Vozes, 1983], Jesús en Amé­rica Latina (1982) fedo em port.: Jesus na América Latina, São Paulo:Loyola, 1985] e Resurrección de la verdadera Igiest« (1981) fedo em port.:A ressurreição da verdadeira igreja, São Paulo: Loyola, 1982]; Raúl VIDA­LES, Desde la tradición de los pobres (1978): Juan L. SEGUNDO, Elhombre de hoy ante Jesús de Nazaret (1982, V. Il/l, p. 69-284) fedo emport.: O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, São Paulo: Paulinas,1985]: e a tese inédita de René KRÜGER, Díos y el Mamón: estudiosemântico y hermenéutico del proyecto económico y social en Lucas,ISEDET, 1987.

23 EIsa lAMEZ, Contra toda condena: la justífícacíón por la fe desde losexcluídos, San José, Costa Rica: DEI, 1991 [ed. em port.: Contra todacondenação: a justificação pela fé, partindo dos excluídos, São Paulo:Paulus, 1995).

24 Ricardo ROJAS, El Cristo invtsible. Buenos Aires: Líbrería "La Facultad",1928, p. 343.

25 A opinião mais corrente é que o "Altíssimo" do qual Melquisedeque apa­rece como sacerdote é a divindade cananéia honrada em Jerusalém antesde sua conquista por Davi e sua aceitação do javísmo. Em todo caso, oque importa aqui é a suposição do autor: o próprio Deus de Israel semanifesta em Melquisedeque abençoando Abraão.

Capítulo 6:

Em busca da unidade: a missão como princípio materialde uma teologia protestante latino-americana

1 Quanto à história dessa formulação, veja o detalhado trabalho histórico­critico de A. RITSCHL, Über die beiden Principien des Protestantismus, in:id., Gesammelte Aufsãtze, Freíburg: J. C. B Mohr, 1893, v. I, p. 234-257.

2 Paul TILLICH, Tbe Protestant Era, Chicago: Uníversíty of Chicago, 1957,p. 163 e passím.

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154 Rostos do protestantismo latino-americano

3 Rubem ADJES, Protestantismo e repressão, São Paulo: Átíca, 1979. p.40-41 e passírn.

4 Atrever-me-ia a dizer que, se queremos caracterizar o princípio materialda justificação pela fé como o eixo da Reforma. valeria em alguma medidatambém esta observação. Com efeito. creio que há uma grande distânciaentre o uso que a ortodoxia luterana fez do lema articulus stantis etcadentis ecclesiee e a intenção da expressão de Lutero nos Artigos deEsmalcalda, em que essa formulação busca apoio ("De hoc articulo [ajustificação pela fé] cedere aut aliquid contra illum Iergire aut permitterenemo piorum potest, etiamsi coelum et terra ac omnia conuant'). O erroconsiste, em minha opinião. em isolar esse critério doutrinal de sua fun­ção na própria teologia crístológíca de Lutero; em função do ''was Cbrts­tum treibt", da autocomunicação de Jesus Cristo na "viva vox" da procla­mação. a justífícação pela fé tem seu lugar e significado.

5 The Methodist Revolution, New York: Basic Books, 1973.6 Ibíd.. p. 162-163.7 Christian Mission and Social Progress: A Socíologícal Study of Foreígn

Míssíons, New York: Fleming H. Revell, 1897. p. x.8 Felizmente temos hoje um amplo e documentado guia para estudar esse

desenvolvimento na obra de David J. BOSCH, 1tansforming Missioti: Pa­radígm Shifts in the Theology of Míssíon, New York: Orbís, 1991. A ediçãoem português está sendo preparada pela Editora Sinodal.

9 WilhelmANDERSEN. 7bwards a Ttieology otMission. London: SCM. 1955.p.15.

10 Karl HARrENSTEIN. Das Wunder der Kirche unter den V61kern der Erde,Berlin: Martin Schlunk, 1939, p. 194s.

11 J. C. HOEKENDIJK, Evangelische Miesionszcttschrtit, 1952, p. 9; trad. emInternational Review ofMissions, p. 324-336, 1952.

12 Let the Earth Hear His Voice: Intemational Congress on World Evangeli­zatíon, Lausanne, Swítzerland, Mínneapolís, Minn.: World Wíde, 1975,particularmente The Lausanne Covenant, p. 3-9. § 1. 6 e 14 e as apresen­tações na seção m.

13 Veja especialmente Jon SOBRINO. Resurrección de la verdadera tglesia:los pobres. lugar teológico de la teología, Santander: Sal 'Ierrae, 1981.especialmente caps. 1-5 fedo em port.: Ressurreição da verdadeira igreja,São Paulo: Loyola, 1982); Emilio CASTRO. Freedom in Mission: An Ecu­menical Enquíry, Geneva WCC. 1985. especialmente caps. 4 e 5.

14 Wilhelm ANDERSEN. op. cít .. p. 10.15 A Titiidede, a sociedade e a libertação. Petrópolis: Vozes. 1986. p. 124.16 'Iodos sabemos que, felizmente. a genuína integridade da fé evangélica de

Billy Graham o levou a superar na prática o reducionismo dessa interpre­tação. Mas também é certo que não foi suficiente para informar os con­teúdos de sua visão acerca do que é "a mensagem" do evangelista.

17 O tema tem preocupado também pastoralmente. A famosa frase de Kier­kegaard, "quando todos são cristãos, ninguém é cristão". resume a pro­blemática de uma "cristandade" formal que cobre e anula a falta de umcompromisso de fé pessoal e ativo. É interessante observar que Karl Barthna Igreja Reformada e o padre Hurtado - este sem questionar radical­mente a base doutrinal do batismo de infantes - na Igreja Católica no

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Notas 155

Chile propuseram a suspensão da prática do batismo de infantes comourna disciplina necessária para recuperar a autenticidade de uma Igrejadesnaturada por um cristianismo apenas nominal. Veja Karl BARIH, Diekirchliche Lehre von der 1àufe, Zollíkon-Zurích: EvangelischerVerlag, 1947.

18 La priére, problême politique, Paris: Fayard, 1965.

19 A polêmica apareceu em castelhano na publicação Cristianismo de masaso minorias, Salamanca: Sígueme, 1968.

20 Veja especialmente suas obras: 'ieologi« abierta para ellaico adulto: v. 2:Esa comunidad llarnada Iglesía, Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1968 fedo emport.: teologia aberta para o leigo adulto: v. 2: Essa comunidade chamadaigreja, São Paulo: Loyola, 1976]; Masas y minorias en la dialéctica de laItberecion, Buenos Aires: La Aurora, 1973 fedo em port.: Massas e mino­rias na dialética divina da libertação. São Paulo: Loyola, 1975]: e Acciónpastorallatinoamericana: sus motivos ocultos, Buenos Aires: Búsqueda,1972 fedo em port.: Ação pastoral latino-americana: seus motivos ocultos,São Paulo: Loyola, 1978].

21 O vocabulário paulino sublinha essa dupla dimensão de diversas manei­ras. Remeto aqui a um breve comentário de alguns aspectos desse voca­bulário em meu livreto Integración humana y unidad cristiene, Rio Pie­dras Puerto Rico' La Reforma, 1969, p. 42-46, e a algumas interessantespãginas de L. CERFAUX, Le chrétien dans la théologie paulinienne. Paris:Cerf, 1962, p. 243-245.