Rogério Pena Masi

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1 Rogério Pena Masi A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária UNISAL Americana 2012

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Rogério Pena Masi

A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária

UNISAL

Americana

2012

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Rogério Pena Masi

A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Educação Sociocomunitária, do

Centro Universitário Salesiano

de São Paulo, como parte dos

requisitos para obtenção do

título de Mestre em Educação

Sociocomunitária, sob a

orientação da Prof. Dr.ª Maria

Luísa Amorin Costa Bissoto.

UNISAL

Americana

2012

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Autor: Rogério Pena Masi

Título: A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária

Dissertação apresentada como

exigência parcial para obtenção

do grau de Mestre em Educação

Sociocomunitária.

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 10/08/2012, pela

comissão julgadora:

________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Luísa Bissoto - Orientadora Centro Universitário Salesiano de São Paulo

________________________________________ Prof. Dr. Luís Antonio Groppo Centro Universitário Salesiano de São Paulo

________________________________________ Prof.ª Dr.ª Débora Costa Ramires Universidade Metodista de Piracicaba

UNISAL

Americana

2012

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação é o resultado de um trabalho coletivo. Contou com o

apoio e a colaboração de diversas pessoas. Algumas serão citadas, outras,

injustiçadas pela minha memória, mas não esquecidas pela minha eterna

gratidão, não terão seus nomes nesta lista de agradecimentos.

A minha Orientadora, Maria Luísa Bissoto, pelos ensinamentos,

compreensão, apoio e incentivos constantes, amizade, paciência,

generosidade, iluminação e competente orientação, concedendo-me total

liberdade intelectual na condução de meus estudos e escrita desta pesquisa,

que foram fundamentais para que esta dissertação alcançasse seu objetivo e

para que este pesquisador se transformasse em um novo homem.

Aos Professores do exame de qualificação, Prof. Dr. Luís Antonio

Groppo e Prof.ª Dr.ª Débora Costa Ramires, pela generosa aceitação de meu

convite e pelos preciosos comentários e sugestões, que foram fundamentais

para o aprimoramento da minha pesquisa.

A Mara, o amor das minhas vidas. Agradecer pela dedicação, amor,

respeito, generosidade, apoio incondicional e companheirismo seria

insuficiente, além de um lugar-comum vulgar para o tanto que representa em

minha vida.

A minha amada mãe, exemplo de educadora e incentivadora

incondicional de meu progresso intelectual, que foi o alicerce da minha

educação moral e que contribuiu para que eu me tornasse a pessoa que sou,

em todos os aspectos positivos. Minha eterna gratidão.

A D. Valda, minha amada sogra, que sempre me apoiou

incondicionalmente em todos os momentos, colaborando com a viabilidade da

conclusão desse curso.

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A todos os Professores do Programa de Pós-Graduação, especialmente

o Prof. Dr. Paulo de Tarso Gomes e o Prof. Dr. Luis Antonio Groppo, pelos

ensinamentos generosamente compartilhados, pela iluminação da minha

consciência crítica e pela contribuição fundamental para minha formação

política.

Aos Colegas, especialmente Carolina Defilippi, Vivian Kauling, Sandra

Bittencourt, Eglon Pinto da Fonseca, Suzana Coutinho, entre outros igualmente

importantes, mas que a memória não alcançou seus nomes, pelos momentos

de reflexão e descontração, fundamentais para que o caminho fosse trilhado

integralmente, com alegria e motivação.

Aos funcionários da UNISAL, especialmente a Vaníria Felippe, pelo

apoio em todos os momentos do programa.

A todos os trabalhadores voluntários e “famílias assistidas” pelo Grupo

Espírita Caminheiros, que ajudaram a tornar possível este trabalho e me

ajudam a tornar-me uma pessoa melhor.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para o êxito desta

dissertação.

Finalmente e principalmente, a Deus.

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“Amar sem esperar ser amado e sem aguardar

recompensa alguma. Amar sempre.”

(Francisco Cândido Xavier)

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RESUMO

Além de seu viés teórico, o presente trabalho procura demonstrar as

dificuldades que os educadores que optam pela pedagogia freireana como

norte político de ação, especialmente aqueles que trabalham com pessoas

oprimidas pela ideologia neoliberal, têm para reconhecer a sua parte

opressora, estar dispostos e terem coragem de mudar a si próprios para que

torne-se possível, então, compreenderem as finalidades e as bases

libertadoras de Paulo Freire. Este estudo tem também como objetivo identificar

e analisar as condições e fatores necessários para o desenvolvimento da

autoadvocacia em pessoas selecionadas dentre um grupo de famílias,

moradoras na periferia miserável de Campinas e região, assistidas por meio de

atividades assistencialistas e empoderadoras do Grupo Espírita Caminheiros. A

autoadvocacia no presente estudo é entendida como uma ação crítica,

organizada e consciente de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, em seu

próprio nome, sem a intervenção de terceiros, na luta pela efetivação de seus

direitos e na conquista de novas demandas, visando colaborar para o

rompimento do ciclo de miséria e opressão em que vivem, por meio da

devolução de sua palavra, da sua efetiva participação em todas as esferas da

sociedade, formando a sua autonomia, responsabilidade e independência. Para

tanto, este estudo adota como referencial teórico a pedagogia libertadora de

Paulo Freire.

Palavras-chave: Autoadvocacia. Opressão. Educação Sociocomunitária.

Práxis educativa.

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ABSTRACT

Besides its theoretical approach, this dissertation search to demonstrate the

difficulties that the educators, which works with freirian pedagogy as orientation

of their political action, especially those who deals with oppressed people,

victims of neoliberal ideology, have in recognizing their own oppressive

attitudes, and therefore to be willing, and having courage, to change themselves

own, in order to understand the goals and the bases of the liberating Paulo

Freires´s pedagogy. This study has also the purpose to identify and analyse the

conditions and factors necessary to the development of the self advocacy in

people selected from a group of families living in the miserable outskirts of

Campinas and region, that are assisted through welfare and empowering

activities implemented by the Grupo Espírita Caminheiros. The self advocacy in

this study is understood as one critical action, organized and conscious of a

person or a group of persons, in their own name, without the intervention of a

third parties, in the struggle for the realization of their rights and the conquest of

new demands, seeking to break the cycle of misery and oppression in which

they live, through the rescue of their voice, their effective participation in all

spheres of society, and thus forming their autonomy, responsibility and

independence. Therefore, this study adopts as its theoretical referential the

Paulo Freire´s liberating pedagogy.

Key-words: Self advocacy, Oppression, Education Socio Community,

Educational praxis.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………………………………………………………………….…….01

1 ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E MOVIMENTOS SOCIAIS: teorizações e

reflexões………………………………………………………………….………..07

1.1 Estado e justiça social…………………….…………………………...07

1.2 O papel da sociedade civil……………………………………………...13

1.3 Movimentos sociais como organização social…………………….….20

1.3.1 Breve historização dos movimentos sociais como forma de organização social……………………………………………….28

2 EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA……………………………….……………44

2.1 A educação como história possível de transformação……………...46

2.2 A Educação para a autonomia e a Pedagogia da Libertação……....50

2.3 Formas, tempos e espaços para uma Pedagogia da Libertação…..59

2.4 A Educação para a autonomia: a autoadvocacia como possibilidade

de uma Pedagogia da Libertação………………………………..…….65

2.4.1 A autoadvocacia………………………..…………….…………...66

3 A AUTOADVOCACIA COMO POSSIBILIDADE DE AUTONOMIA NA

EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA…………………………………….……89

3.1 Percurso metodológico…………………………………….…………...89

3.1.1 Procedimentos metodológicos……………………..…………...93 3.1.2 Campo de estudo: famílias assistidas pelo Grupo Espírita

Caminheiros…………………………………………………..…...94 3.1.3 População participante………….…………………..…………...97 3.1.4 Instrumentos de coletas de dados qualitativos.…….………..100 3.1.5 Considerações sobre a ética no estudo…………..…………..101

3.2 A educação para a autoadvocacia junto às famílias assistidas pelo

Grupo Espírita Caminheiros……………………………….………….102

4 CONSIDERAÇÕES DE UM FINAL EM ANDAMENTO………..…….………141

5 REFERÊNCIAS………………………………………………………………..…145

6 ANEXOS………………………………………………………………………..…153

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Introdução

A discussão sobre o que significa ser “cidadão”, bem como os direitos

implicados a essa condição, tem sido recorrente internacionalmente, nas

últimas décadas, acompanhando transformações socioeconômicas como a

globalização, a expansão da perspectiva neoliberal e, com ela, o aumento da

desigualdade entre aqueles mais ricos e aqueles mais pobres, os avanços da

biotecnologia e a crescente tecnificação do modo de vida, que nos põem

questões éticas e relacionadas à justiça social.

Na atualidade, especialmente em nosso país, o ordenamento jurídico,

balizado pela Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em

05 de outubro de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, porque

estabelece a cidadania como princípio e regra, é considerada moderna e

democrática. A maior parte dos direitos e dos deveres dos cidadãos está

disciplinada nesta Carta, de maneira equânime. Entretanto, esses direitos, com

muita frequência, não são respeitados. E não são respeitados justamente por

aquele que deveria ser o “guardião” da carta Magna, o garantidor da realização

dos direitos dos cidadãos: o Estado1.

Isto é agravado pela descrença, da sociedade civil, em relação ao poder

público diante da percepção da ausência do cumprimento da obrigação do

Estado como provedor de bens coletivos básicos e de fomentador de iniciativas

que visam reduzir as desigualdades sociais. Tal descrença desestimula a luta

por responsabilizar o Estado e a participação política como meio de

representação e defesa de interesses desta sociedade, principalmente por

parte daqueles que se sentem injustiçados, ou socialmente excluídos - quando

chegam a se compreender nessa situação - tornando-se, este exercício de

cidadania, mera ficção (FERREIRA, 1999, p. 99).

Coerentemente a essas reflexões, o objetivo central deste trabalho é

analisar as consequências da aplicação da autoadvocacia, como prática da

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Conforme conceituação moderna, atribui-se ao Estado a função ativa de organizar a sociedade, de modo a reduzir as desigualdades naturais e sociais, promovendo a justiça social (RAWLS, 2000).

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educação sociocomunitária, junto aos grupos familiares de baixa renda

“assistidos” pelo Grupo Espírita Caminheiros, na cidade de Campinas.

A Autoadvocacia pretende apresentar-se como uma prática da educação

sociocomunitária, desenvolvendo a consciência crítica no homem, constituindo-

se como uma alternativa ao assistencialismo, que cala e oprime, que rouba do

homem a sua ação e a oportunidade de tornar-se um ser consciente, crítico,

responsável, integrado e participante da sociedade e do processo democrático

do país. Rompendo com a sua invisibilidade e tornando-o advogado de si

mesmo, para que contribua para o seu empoderamento, com a finalidade de

que aja nas suas circunstâncias de modo a transformá-la e, ao fazer isso,

mobilize outros sujeitos a fazer o mesmo, formando grupos que agirão na

defesa de interesses comuns.

Esse objetivo se justifica porque, em nossa sociedade, como já

considerado acima, ainda há poucas ações comunitárias de organização

sociopolítica, pelas quais os cidadãos, de forma autônoma, procurem a

efetivação de direitos de cidadania, já legalmente conquistados. Parte-se do

pressuposto de que essa carência se deve: 1. ao desconhecimento dos direitos

mais elementares de cidadania e à falta de experiência de “coletivismo”, ou

seja, de agir grupal e organizadamente para efetivar melhorias de vida para si e

para a comunidade, 2. à “insuficiência” de consciência mínima quanto ao que

significa uma vida digna, e de que essa, numa sociedade pautada pelo

neoliberalismo, nunca é dada, mas deve ser conquistada e 3. à

desesperança/desmotivação e descrença de que é possível lutar pelos direitos

de cidadania.

Entendemos autonomia, neste trabalho, como uma produção histórica e

social, a liberdade de o indivíduo agir e tomar decisões com consciência e

capacidade crítica, mediante o respeito à vontade pessoal e ao grupo ao qual

pertence, e assumir as responsabilidades delas decorrentes. É esse o conceito

de autonomia de Freire (2002, 2011a, 2011b), que a compreende como um

processo resultante do desenvolvimento do indivíduo relacionado ao fato dele

tornar-se capaz de resolver questões por si mesmo, de tomar decisões de

maneira consciente e pronto para assumir uma maior responsabilidade e arcar

com as consequências de seus atos.

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Parece-nos evidente a importância da autonomia, como assim

compreendida. Essa percepção dessa importância foi e está sendo construída

em nossas experiências como trabalhador e educador social voluntário em

diversas instituições filantrópicas e advogado militante, que mais e mais se

desaliena, e se conscientiza da sua função social, como cidadão e como

elemento indispensável à administração da Justiça. Conforme preceitua o art.

133 da Constituição Federal de 1988, devemos participar ativamente do

processo de transformação da sociedade para que a igualdade possível seja

conquistada por meio do reconhecimento de direitos, consolidando-se o Estado

democrático em nosso país, e que os direitos fundamentais, sociais, humanos

e políticos já reconhecidos legalmente sejam, enfim, respeitados, efetivados,

concretizados. Notadamente para aqueles que se encontram em posição

econômica, financeira, educacional e cultural desvantajosa, por meio da sua

própria ação autônoma, consciente e crítica.

Gonçalves (1994, p. 125) relaciona a urgência da transformação social

pensada coletivamente com a educação:

Participar conscientemente do processo de humanização do homem significa, na dimensão social, criar condições concretas de organização da vida comunitária, em que se efetivem valores como liberdade, justiça, e verdade, e na dimensão pessoal, propiciar a todos os indivíduos oportunidade de enriquecimento pessoal, que lhes permitam uma participação ativa no processo de construção da vida social.

Parte-se da hipótese de que, na ausência mais efetiva de movimentos

de educação popular crítica nas grandes periferias urbanas, a questão da

educação para a autonomia tem se diluído, perpetuando condições de

“nulificação” da população que aí vive. Parte-se, aqui, do conceito de educação

freireana:

Enquanto seres humanos conscientes, podemos descobrir

como somos condicionados pela ideologia dominante.

Podemos distanciar-nos da nossa época. Podemos aprender,

portanto, como nos libertar através da luta política na

sociedade. Podemos lutar para ser livres, precisamente porque

sabemos que não somos livres! É por isso que podemos

pensar na transformação. (FREIRE, 2011c, p. 33).

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A proposta aqui posta, de articular as bases de uma educação para a

autoadvocacia, visa desenvolver a consciência crítica nos indivíduos, em

especial com aqueles que historicamente vem sendo consistentemente

negados acerca de seus direitos, e abrir perspectivas para caminhos que

devem e podem ser percorridos, individual ou coletivamente, favorecendo a

organização e a luta pela transformação da realidade injusta em que vivem,

participando ativamente da construção de uma sociedade que possa ser, de

fato, denominada de justa e solidária.

Concordamos com Freire (2011b), que defende o processo educativo

como um possível meio de humanização dos sujeitos histórico-sociais, no qual

é necessário que os professores, especialmente os progressistas, posicionem-

se politicamente e engajem-se na luta contra o fatalismo presente na sociedade

atual. O neoliberalismo corrompe e distorce as práticas educativas,

notadamente nas instituições públicas, tornando-as alienantes. E, invertendo

suas bases, faz com que priorizem e limitem-se à formação profissional dos

indivíduos, preparando-os para ocupar espaços subalternos nos mais diversos

segmentos da sociedade, perpetuando, alimentando, mantendo o sistema

opressor.

[…] as doutrinas neoliberais procuram limitar a educação à prática tecnológica. Atualmente, não se entende mais educação como formação, mas apenas como treinamento. Creio que devamos continuar criando formas alternativas de trabalho. Se implantada de maneira crítica, a prática educacional pode fazer uma contribuição inestimável à luta política. A prática educacional não é o único caminho à transformação social necessária à conquista dos direitos humanos, contudo acredito que, sem ela, jamais haverá transformação social. A educação consegue dar às pessoas maior clareza para “lerem o mundo”, e essa clareza abre a possibilidade de intervenção política. É essa clareza que lançará um desafio ao fatalismo neoliberal. A linguagem dos neoliberais fala da necessidade do desemprego, da pobreza, da desigualdade. Penso que seja de nosso dever lutar contra essas formas fatalistas e mecânicas de compreender história. Enquanto as pessoas atribuírem a fome ou a pobreza que as destroem ao destino, à fatalidade ou a Deus, pouca chance haverá de promover ações coletivas (FREIRE, 2001b, p. 36).

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Como metodologia, essa é uma investigação de cunho qualitativo,

baseada em observação participante, periodicamente realizada nos finais de

semana, no período de agosto de 2011 até maio de 2012, concomitante ao

trabalho de acompanhamento de uma comunidade localizada na periferia de

Campinas, pelo grupo espírita “Caminheiros”. Como coleta de dados, além da

observação foram realizadas entrevistas com membros dos grupos familiares

citados. Para a condução dessas optamos por questões abertas, nas quais não

havia nenhuma restrição ao aprofundamento dos tópicos postos, por meio de

questões outras, que emergiam durante a realização das entrevistas. Os

referenciais teóricos que apoiaram a pesquisa estão nos pressupostos da

educação popular e na educação crítica, especialmente aquela de Paulo Freire.

Pretende-se, dessa forma, averiguar as possibilidades educacionais de

desenvolvimento do “acordar” da consciência crítica por meio da discussão

(sempre interpretativa) das condições de vida feitas pelos grupos participantes

da pesquisa, e do empoderamento desses quanto à “autodescoberta” de que

podem interferir nas condições de vida consideradas angustiantes, mediante

ações organizadas de busca pelos direitos de cidadania.

E, no âmbito das especificidades dessa proposta, é que se busca

articulá-la ao contexto da Educação Sociocomunitária, pois esse “acordar” da

consciência crítica perpassa diversas esferas da vida do sujeito - históricas,

sociais, econômicas, políticas, psicológicas, dentre outras - exigindo um olhar

que as integre e, concomitantemente, as transcenda, na construção dialética

de novas sínteses de compreensão da realidade vivida.

No primeiro capitulo, discutiremos sobre as ações e movimentos sociais

como organização política, que lutam pela conquista e respeito de direitos,

suas características e objetivos, bem como o papel ambiguo que o Estado

assume em relação a esses.

No segundo capítulo, veremos que, na atualidade, parte da

movimentação dos atores sociais passou a ter como foco, no Brasil, a luta para

que os direitos já reconhecidos pela Constituição da República Federativa do

Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, sejam respeitados, efetivados.

Desta forma, o objetivo principal no segundo capítulo é instigar uma reflexão

sobre como essa luta vem se dando, buscando encontrar caminhos que

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favoreçam seu sucesso. Argumentar-se-á que uma condição necessária para

tanto está na aprendizagem de formas de organizar-se coletivamente, como na

autoadvocacia, e de olhar para a realidade de maneira crítica, ou seja,

compreendendo as desigualdades de modos de vida não como algo natural,

mas como historização do jogo de poder e dominação, socialmente

estabelecido.

No mesmo capítulo trataremos sobre a educação para a autonomia e a

Pedagogia da Libertação de Freire, viés teórico que possibilita pensar a

questão da história como possibilidade e a relevância desse tema para os

oprimidos na luta para a autotransformação e a transformação social.

Discorreremos brevemente sobre a educação para a autoadvocacia como

possibilidade de uma Pedagogia da Libertação.

Finalmente, no terceiro e último capítulo, o tema da educação para a

autoadvocacia será desenvolvido, tendo como base a investigação realizada

durante a ação social do grupo “Caminheiros”. Pretende-se averiguar as

possibilidades de desenvolvimento do “acordar” da consciência crítica por meio

da discussão sobre as interpretações das condições de vida feitas pelos grupos

familiares de baixa renda “assistidos” pelo Grupo Espírita Caminheiros, e do

empoderamento desses quanto à “autodescoberta” de que podem interferir nas

suas condições de vida, colaborando para que assumam maior participação

social e autonomia para falar por si próprios.

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1. Estado, Sociedade Civil e Movimentos Sociais: teorizações e

reflexões

Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros... (FREIRE, 2000, p. 32).

1.1. Estado e justiça social

As desigualdades sociais, em suas múltiplas expressões, perpassam,

historicamente, as sociedades humanas, embora, também de forma histórica,

sempre tenha havido vozes e tentativas por reduzi-las. No âmbito do viver

coletivo, as “cidades”, conforme Aristóteles (1997), são uma forma de

organização natural ao Homem, com a finalidade de satisfazer as suas

necessidades, visando o seu bem estar integral. Pode-se, aqui, discutir os

conceitos que Aristóteles associa à cidade como “estado de bem-estar”: uma

constituição forte, que regre particularidades da vida cotidiana como o

casamento, a expressão artística e cultural, a forma de associação de uns

cidadãos com outros, de criar filhos, dentre outros; uma educação que prepare

as crianças para seguir tal ordenamento legal; legisladores justos, preocupados

com o bem-comum; um estado de virtude generosa, fazendo com que os mais

ricos zelem pelas necessidades básicas dos mais pobres; o controle

populacional, de modo a não tornar as cidades ingovernáveis, dentre outros.

Pode-se também discutir pressupostos subjacentes a esses conceitos, como a

ideia do que significava ser cidadão (homem, adulto, não-escravo, não

estrangeiro, nascido na cidade) e o nível de perda da autonomia individual que

a observação estrita da legislação comporta, considerado por Aristóteles como

“necessário” para o viver bem (REEVE, 1998, p. 70).

Mas o discurso aristotélico - bem como outros, como aqueles de Platão -

a favor de se criar mecanismos para um viver coletivo mais igualitário, já

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significou um avanço na organização social, que possibilitaria outros tantos

avanços subsequentes. E observa-se que outras sociedades, anteriores à pólis

grega, já percorriam esse caminho.

Segundo Dallari (2007) podemos reduzir a três eixos principais as

teorias acerca da época do aparecimento do Estado. O primeiro eixo, a

exemplo de Eduard Meyer (1855-1930) e Wilhelm Koppers (1886-1961),

entende que o Estado sempre existiu, pois desde que o homem vive sobre a

Terra acha-se integrado em uma organização social, em que pese a

denominação “Estado” ter aparecido pela primeira vez em “O Príncipe”, de

Maquiavel, escrito em 1513. Uma segunda ordem de autores, a exemplo de

Lawrence Krader (1919-1998) e Hermann Heller (1891-1933), argumenta que o

Estado foi constituído para atender às necessidades ou às conveniências dos

grupos sociais, de acordo com necessidades e condições concretas de cada

lugar, formando-se em diferentes épocas e em diferentes localidades. A última

posição, defendida por Balladore Pallieri (em A doutrina do Estado,1969), Karl

Schmidt (1888-1995) e pelo brasileiro Ataliba Nogueira (1901-1983), apenas

admite como Estado a sociedade política dotada de certas características muito

bem definidas, tratando-se de um conceito histórico concreto, a ponto de

Pallieri indicar o ano de 1648, com a assinatura da paz de Westfália, como o

ano do nascimento do Estado.

Conforme conceituação moderna, atribui-se ao Estado a função ativa de

organizar a sociedade, de modo a reduzir as desigualdades naturais e sociais,

promovendo a justiça social (RAWLS, 2000). Em definição do jurista Dalmo de

Abreu Dallari (2007, p. 118), o Estado se constitui como “[...] uma ordem

jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em

determinado território”. Além dessa, outras conceituações não menos

importantes quanto as ora colacionadas acima, a exemplo do Estado Social, do

Estado Democrático de Direito, poderiam ser aqui citadas, igualmente trazendo

em seu bojo, via de regra, a proposta de uma entidade civil, denominada

Estado, com a legítima função de redução das desigualdades naturais e

sociais. O que, infelizmente, ao menos no caso nacional, não alcançou ainda

esse seu mais nobre objetivo.

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A relação, muitas vezes problemática, do indivíduo com o Estado

mereceu sempre o interesse de pensadores em todas as épocas da história,

que manifestavam opiniões muitas vezes antagônicas sobre o sentido, a

natureza e a finalidade do Estado.

Wolkmer (2000, p. 65) comentando sobre as diferentes concepções

ideológicas de Estado, esclarece:

O Estado pode ser compreendido ora como um jogo de papéis e funções que se interligam e se complementam na esfera de uma estrutura sistêmica, ora como um aparelho repressivo que tende a defender os interesses das classes dominantes no bloco hegemônico de forças. A primeira concepção se aproxima das teses liberais que encaram o Estado como um órgão acima dos conflitos, responsável pela manutenção da ordem, do bem estar, do consenso e da justiça social. Já a segunda orientação perfila-se na tradição do marxismo ortodoxo que concebe o Estado como superestrutura do modo de produção capitalista.

No liberalismo político de Locke (1632-1704) o Estado, legitimado pelo

consentimento expresso da maioria, porque consciente da necessidade da sua

intervenção, mantém a ordem e o equilíbrio no emaranhado de interesses e

necessidades dos membros constituídos. Para Rousseau (1712-1778) o

homem é essencialmente bom e livre e a sociedade é que o acorrenta e o

desvirtua por meio de seu artificialismo. A colocação da “primeira cerca”,

delimitando uma propriedade individual, marcaria a ruptura com o estado

natural, criando situações de desigualdade e levando ao surgimento do

contrato social e do Estado Civil, formas socialmente desenvolvidas para lidar

com os conflitos sociais.

Os anarquistas, por sua vez, que formaram um dos mais importantes

movimentos ideológicos do século XIX, embora seus principais representantes

nem sempre pensassem de maneira semelhante, colocaram em xeque a ideia

de necessidade do Estado como figura organizadora da sociedade. Mikhail

Bakunin (1814-1876), que acusou Marx de haver traído o movimento proletário

por oportunismo, porque este fazia objeções ao uso da violência nas lutas pelo

poder, pregava a eliminação da religião, da propriedade privada e do Estado,

por serem expressões da primitiva natureza do homem. Acreditava na evolução

do gênero humano, lançando mão, sempre que necessário, da violência,

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usando-se medidas revolucionárias e admitindo, pela necessidade, sacrificar

temporariamente a ordem pública.

Para Bakunin o Estado representava um instrumento utilizado para

organizar e manter a exploração dos pobres pelos ricos. Enquanto que

Kropotkine (1842-1921), em franca oposição a Bakunin, acreditava no

anarquismo empreendido por meio da assistência e cooperação recíproca e

pacífica, que tomará a forma de equidade, justiça e simpatia (teorias

evolucionistas). Também divergiu de Karl Marx por não admitir transigências

com as instituições burguesas. Para Kropotkine o Estado só apareceu quando

as relações de propriedade dividiram a sociedade em classes reciprocamente

hostis, baseando-se equivocadamente na ideia da necessidade da coação para

que o homem tenha uma atitude socialmente correta, impedindo as ações

livres e espontâneas e fazendo com que as classes pobres obedeçam as mais

ricas (DALLARI, 2007; WOLKMER, 2000).

Já o anarquista teórico ultraindividualista e extremado Max Stirner

(1806-1856) entendia que o terrorismo e a insurreição deveriam ser

considerados justos porque visavam à eliminação das injustiças perpetradas

pelo Estado, que é “mau porque limita, reprime e submete o indivíduo,

obrigando-o a se sacrificar pela comunidade” (DALLARI, 2007, p. 35).

Partimos para a ideia de um Estado Constitucional, “como aquele que

limita os poderes do Estado, organiza sua estrutura, distribui competências e

declara e garante direitos fundamentais da pessoa humana” (MAGALHÃES,

1999, p. 31), cujo processo de afirmação fora marcado pelas revoluções

burguesas do século XVIII, na América do Norte, em 1776, e pela Revolução

Francesa, em 1789. Esta última revolução provocou a declaração dos direitos

dos homens e dos cidadãos e inaugura o modelo de Estado liberal

constitucional, que não prosperou, em que pese ter perdurado até a Primeira

Guerra Mundial. Quando, então, surgiram o Estado socialista, que rompe com

o pensamento liberal por meio de uma crítica contundente ao capitalismo, feita

por Marx, e a Constituição social, inaugurada em 1917 no México e em 1919

na Alemanha, com a finalidade de reformular o modelo liberal, admitindo a

intervenção do Estado no domínio econômico e na assistência aos excluídos

(MAGALHÃES, 1999).

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Em decorrência do fracasso de todos os modelos propostos até então,

surge a proposta de um Estado Democrático de Direito, que

[…] baseado numa democracia econômica, social e política, propõe um rompimento democrático das estruturas socioeconômicas, por meio de nova leitura dos textos constitucionais, a partir da reconstrução do conceito de democracia. […] Essa nova perspectiva faz com que tenhamos uma premissa básica para a compreensão dos direitos fundamentais como direitos humanos: a indivisibilidade desses direitos. […] Democracia não é somente votar, mas participar do processo de construção do Estado e da sociedade, por intermédio de canais amplos de comunicação entre os cidadãos e as diversas instituições privadas ou estatais (MAGALHÃES, 1999, p. 35).

O grande dilema das proposições de Estado acima mencionadas é que

em nenhuma delas percebemos o rompimento definitivo com o modelo

econômico fomentador de desigualdades, de modo que os perseguidos e

festejados direitos fundamentais constitucionais consolidaram-se como direitos

de privilégio ou de superioridade. Não se efetivam como direitos humanos.

Aqueles que têm poder e capacidade de acessá-los terão esses direitos

garantidos pelo Estado e, inclusive, contra o Estado, enquanto que os demais

são abandonados e esquecidos. Os indivíduos excluídos não são capazes de

efetivar seus direitos mais elementares, até mesmo direitos universais básicos,

como a vida, porque são considerados pelo Estado como assuntos menos

importantes do que questões relacionadas à ordem econômica e preservação

da dominação. Não há que se falar em um Estado Democrático de Direito sem

que existam mecanismos que garantam o exercício dos direitos já

reconhecidos por todos os indivíduos, tendo em vista que a simples declaração

dos mesmos na Constituição não é suficiente para garantir a sua eficácia.

Conceitos como aqueles de “bem estar integral”, de “justiça social”, ou

do “bem comum”, entendidos como um conjunto de fatores que assegurem o

desenvolvimento total da personalidade humana, conferindo ao homem

autonomia, responsabilidade e criticidade de consciência (FREIRE, 2011) se

mostram ideológica e constantemente associados àquele do Estado como

elemento organizador da vida social de uma coletividade. Por esses conceitos

se traduz que o Estado, por meio do seu poder-dever, deveria regrar o zelar

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21

pelo bem estar de seus cidadãos, intervindo para assegurar que as

desigualdades sociais fossem reduzidas ao máximo.

Na definição de Hely Lopes Meirelles (2007, p. 599), o conceito de “bem

estar social” abrange aqueles de “bem estar integral”, “justiça social” e “bem

comum”:

O bem estar social é o bem comum, o bem do povo em geral,

expresso sob todas as formas de satisfação das necessidades

comunitárias. Nele se incluem as exigências materiais e

espirituais dos indivíduos coletivamente considerado; são as

necessidades vitais da comunidade, dos grupos, das classes

que compõem a sociedade.

O Estado, ao não cumprir essa que, em nosso entender, seria a sua

principal e mais elevada proposta, a de criar e implementar políticas públicas

visando a redução das desigualdades sociais, converte-se em instrumento de

injustiça, torna-se “[...] o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis

que mentira rasteira sai da sua boca: Eu, o Estado, sou o Povo.’” (NIETZSCHE,

2002, p. 72).

Esta falta de capacidade, ou vontade política, do Estado em cumprir a

sua razão de existência intensifica as desigualdades, acentuando e

“eternizando” a miséria e as mazelas sociais na medida em que causa a

privação do básico, do essencial: dos alimentos, da saúde, do lazer, da

educação, da consciência, da liberdade, dos direitos, da justiça.

Este fato gera efeito destrutivo na sociedade civil, conceito de difícil

definição, não por acaso. A propósito, Pinheiro observa (apud AVRITZER,

1994, p. 06):

[…] para compreender os percursos recentes e os presentes

impasses, é essencial que voltemos ao debate sobre a

sociedade civil, um dos conceitos mais citados e, ao mesmo

tempo, mais obscuros na teoria política contemporânea.

Esclarecemos que preferimos neste trabalho enfatizar abordagens de

conceitos de Estado e de sociedade civil de acordo com entendimentos

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22

relacionados à área jurídica, tendo em vista que consideramo-os mais

alinhados com a proposta da autoadvocacia.

1.2. O papel da sociedade civil

A dificuldade na conceituação de sociedade civil decorre do fato de que,

diferentemente de Estado, aquela não tem atrás de si uma longa tradição. O

conceito de sociedade civil, que deriva de Hegel, é usado de modo menos

técnico e rigoroso, com significações oscilantes, exigindo cautela na

comparação (BOBBIO, 1982, p. 26). Tal fato é agravado na medida em que a

“sociedade civil” e o Estado passam por modificações rápidas e constantes

atualmente, decorrentes da globalização moderna.

Para os jusnaturalistas, o Estado foi criado através do consentimento

dos indivíduos, por meio do “contrato social”, um pacto que cria o “soberano”,

tornando seus aderentes súditos (teoria baseada em uma explicação lógica e

não em uma busca histórica). Utilizam a expressão sociedade civil (societas

civilis) como sinônimo de Estado, em oposição ao “estado de natureza”, este

entendido como uma primeira forma de estado social, fase pré-estatal da

humanidade, em que havia a predominância de relações sociais reguladas por

leis naturais (BOBBIO, 1982).

Locke considera Estado e sociedade civil palavras sinônimas, assim

como para Rousseau état civil significa Estado. Referida oposição, entre

sociedade civil e “estado de natureza”, torna-se evidente quando Rousseau

(2005, p. 30) afirma:

A passagem do estado natural ao estado civil produziu no

homem uma mudança considerável, substituindo em sua

conduta a justiça ao instinto, e imprimindo às suas ações a

moralidade que anteriormente lhes faltava. […] o qual

transformou um animal estúpido e limitado num ser inteligente,

num homem.

Para estes autores, além de Hobbes, Ferguson, Smith, Montesquieu e

Hume, entre outros, o termo sociedade civil estava intimamente relacionado ao

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23

conceito de civilidade, enquanto respeito mútuo pela autonomia individual. Para

Kant, a sociedade civil é entendida como sociedade política, ou seja, o Estado,

que é uma sociedade “que garante o meu e o teu através de leis públicas”

(apud BOBBIO, 1982, p. 28). À tradição jusnaturalista, Hegel inova

radicalmente, ao entender a sociedade civil como equivalente do estado de

natureza ou sociedade natural, período pré-estatal da humanidade (BOBBIO,

1982). Abandona as análises predominantemente jurídicas dos jusnaturalistas

e entende a sociedade civil (período pré-estatal) como momento do

desenvolvimento das relações econômicas, que precede e determina o

momento político (período estatal). A recusa das concepções jusnaturalistas

decorre do entendimento de que o homem é um ser social e, portanto, não

existem indivíduos antes e depois do Estado, mas uma sociedade pré-

política/estatal e outra sociedade política/estatal. A posição crítica de Hegel a

respeito do estado de natureza das teorias do Jusnaturalismo é resumida na

seguinte passagem da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (apud RAMOS,

2011):

A expressão direito natural, que chegou a ser ordinária na

doutrina filosófica do direito, contém o equívoco entre o direito

entendido como existente de modo imediato na natureza e

aquele que se determina mediante a natureza da coisa, isto é,

o conceito. O primeiro sentido é aquele que teve curso outrora:

assim que, ao mesmo tempo, foi inventado um estado de

natureza, no qual devia valer o direito natural, e frente a este, a

condição da sociedade e do Estado parecia exigir e levar em si

uma limitação da liberdade e um sacrifício dos direitos naturais.

Porém, em realidade, o direito e todas as suas determinações

fundam-se somente na livre personalidade: sobre

uma determinação de si que é o contrário da determinação

natural. O direito da natureza é, por esta razão, o ser-aí da

força, a prevalência da violência, - e um estado de natureza é

um estado onde reinam a brutalidade e a injustiça do qual nada

mais verdadeiro se pode dizer senão que é preciso dele sair. A

sociedade, ao contrário, é a condição onde o direito se realiza;

o que é preciso limitar e sacrificar é precisamente o arbítrio e a

violência do estado natural.

Bobbio (1982) entende que em Marx e Engels encontra-se a antítese

sociedade civil/Estado (sociedade civil/sociedade política), em que a expressão

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24

societas civilis designa a sociedade pré-estatal e se identifica com o momento

estrutural, tese derivada da sociedade civil de Hegel. O Estado é a instituição

que monopoliza o poder, é usado como instrumento das elites e fomentador

das desigualdades. É o órgão repressivo de dominação política e de

manutenção da exploração econômica, da qual se beneficia a classe burguesa,

destacando que este não age necessária e diretamente de forma coercitiva,

possuindo também a capacidade de regular a sociedade ideologicamente

(BORON, 2001). Enquanto a sociedade civil representa o momento ativo e

positivo do desenvolvimento histórico, sendo o verdadeiro centro de toda

história, o Estado, a ordem política, é o elemento subordinado. Esta teoria está

consolidada no seguinte trecho marxiano:

A forma determinada de relações das forças produtivas

existentes em todos os estágios históricos que se sucederam

até hoje, e que por sua vez as determina, é a sociedade civil

[...]. Já se pode ver aqui que essa sociedade civil é o

verdadeiro centro, o teatro de toda a história [...]. A sociedade

civil compreende todo o conjunto das relações materiais entre

os indivíduos, no interior de um determinado grau de

desenvolvimento das forças produtivas. Ela compreende todo o

conjunto da vida comercial e industrial de um grau de

desenvolvimento e, portanto, transcende o Estado e a nação

[...] (MARX; ENGELS apud BOBBIO, 1982, p. 31)

Para Marx, o Estado deriva da sociedade civil atendendo aos interesses

dos dominantes.

Gramsci, seguindo inicialmente as pegadas de Marx, em que pese ele

próprio declarar que seus conceitos efluem de Hegel, conforme afirmação de

Bobbio (1982, p. 34), asseveração esta contestada por Martins e Groppo

(2010, p. 111) que entende tratar-se de um desvirtuamento da “concepção

dialética que Gramsci tem da relação estrutura-superestrutura”, introduziu uma

profunda inovação em relação a toda a tradição marxista e desenvolveu nova

concepção sobre o conceito de sociedade civil. Para Gramsci o “Estado =

sociedade civil + sociedade política” (apud MARTINS e GROPPO, 2010,

p. 106), sendo a significação gramsciana de sociedade civil e a sociedade

política, conforme interpretação de Martins e Groppo (2010, p. 106):

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25

Pela nova acepção que conferiu ao termo “sociedade civil”, esta era para ele o conjunto de aparelhos, estruturas e processos sociais que buscam dar direção intelectual e moral à sociedade, o que determina a hegemonia cultural e política de uma das classes sobre o conjunto da sociedade; e a sociedade política uma extensão da sedimentação ideológica promovida pela sociedade civil, que se expressa por meio dos aparelhos e atividades coercitivas do Estado, visando adequar as massas à ideologia e à economia dominantes.

A esta altura Gramsci (apud BOBBIO, 1982, p. 32) entendia que

poderiam ser fixados dois grandes planos superestruturais:

[…] o que pode ser chamado de “sociedade civil”, ou seja, o conjunto de organismos habitualmente ditos privados, e o da sociedade política ou Estado. E eles correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade; e à do domínio direto ou de comando, que se expressa no Estado e no governo jurídico.

A exemplo de Marx, Gramsci entendia que a sociedade civil, e não mais

o Estado como pensava Hegel, representa o momento ativo e positivo

(estrutural para Marx e superestrutural para Gramsci) do desenvolvimento

histórico. Em linha com Hegel, Gramsci compreende a sociedade civil além da

extensão de suas relações econômicas: também as corporações e sua primeira

e rudimentar regulamentação no Estado de polícia.

Martins e Groppo (2010), discordando de Bobbio, entendem que para

Gramsci há uma relação dialética, um “nexo marcado por relações concretas”

entre estrutura e superestrutura, formando um ‘bloco histórico’, que torna

impossível qualquer separação de seus elementos componentes. Afirma que a

leitura equivocada de Gramsci por Bobbio causa distorções profundas

comprometendo sua “coerência com o conjunto da obra gramsciana”.

Para Semeraro (1999, p. 75), Gramsci vai além do conceito moderno de

sociedade civil: a liberdade, a laicidade, o espírito de iniciativa, a consciência

crítica, a subjetividade, a dinâmica e a historicidade das relações sociais.

“Gramsci parte das necessidades concretas das classes subalternas […] onde

os indivíduos chegam a se organizar socialmente e a conquistar espaços

hegemônicos para o seu projeto de sociedade”, provando que uma ‘vontade

coletiva’ é capaz de operar uma relativização do modo capitalista de

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26

dominação e introduzir uma ruptura entre dominadores e a classe subalterna,

que demonstra querer sair de sua condição.

Semeraro (idem, p. 76) entende que para Gramsci:

a sociedade civil é o terreno onde indivíduos “privados” de sua dignidade e pulverizados em suas vidas podem encontrar condições para construir uma subjetividade social, podem chegar a ser sujeitos quando, livre e criativamente organizados, se propõem a desenvolver, juntamente com as potencialidades individuais, suas dimensões públicas e coletivas. O percurso, nesse sentido, vai do ser privado ao ser social. O indivíduo, aqui, sem deixar de ser centro autônomo de decisões, consciência livre e ativa, nunca é entendido como ser isolado e “mônada” auto-suficiente em si mesma, mas é sempre visto dentro de uma trama social concreta, como um sujeito interativo com outros sujeitos igualmente livres, com os quais se defronta e constrói consensualmente a vida em sociedade.

Significa dizer que há espaços, institucionalizados ou não, para o

surgimento constante das relações livres e conscientes de massas populares,

antes amorfas e que agora devem demonstrar seu potencial mobilizador, que

visam construir e exercer a sua cidadania e lutar, coletiva e organizadamente,

contra a hegemonia da classe dominante e dirigente com a finalidade de

conquistar espaço ativo na ordem socioeconômica, cultural e ético-política. A

participação popular ativa deve garantir que as leis e o Estado sejam o

resultado de decisões livres e autônomas e não de imposições heteronômicas

e autoritárias. “O valor mais importante não é que o camponês se torne

agrônomo ou que o pedreiro se torne mestre, mas que o cidadão chegue a ser

governante” (GRAMSCI apud SEMERARO, 1999, p. 78).

Observa-se, pela citação a seguir, que ao longo da história a sociedade

civil tem sido entendida como “[…] uma esfera não-estatal, antiestatal, pós-

estatal e até supra-estatal” (GÓMEZ, 2003, p. 11). Ademais, muitos estudiosos

dos autores retro mencionados têm interpretações diferentes sobre o que estes

entendiam sobre o conceito de sociedade civil. Alguns, a exemplo de Marx,

mudaram suas definições iniciais no decorrer da sua vida. E o que já era

complexo e controvertido torna-se cada vez mais enredado pelo advento e

desenvolvimento de uma sociedade civil global. Ela é caracterizada pela cada

vez maior fragilidade do estado de “bem estar”, pela alienação social e pelo

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27

individualismo, que centra a ideia da “sociedade civil” principalmente nos

direitos e deveres individuais, antes do que numa configuração coletiva.

A desconfiança e desânimo em relação ao poder público, diante da

percepção da ausência do cumprimento das obrigações do Estado como

provedor de bens coletivos básicos, de fomentador de iniciativas que visam

reduzir as desigualdades sociais, entre outras, desestimulam a participação

política como meio de representação e defesa de interesses desta sociedade,

tornando-se, este exercício de cidadania, mera ficção.

Por sua vez, os indivíduos, que em decorrência de sua condição

econômica, posição social e política, poderiam atenuar os efeitos causados

pela inércia do Estado na redução das desigualdades sociais, ao perceberem

que uma população portadora de consciência crítica seria uma ameaça à

manutenção de seus privilégios, agrupam-se, criando estratégias para

manterem aqueles alienados.

Esses indivíduos repelem qualquer forma de manifestação que

represente expressão livre do povo, e criam instituições e práticas

assistencialistas, numa forma de antidiálogo, que impõe aos oprimidos o

mutismo e a passividade, ao mesmo tempo em que retiram a dignidade e

responsabilidade desses para com a construção de sociedades mais

democráticas e igualitárias. E tudo o que ameaça uma ordem social repleta de

injustiças, imposta por uma elite dominadora, é taxada de subversiva e,

portanto, deve ser reprimida (FREIRE, 2011a). O resultado é que temos uma

população tantas vezes ingênua, que se mostra desanimada e apática, que se

autodeprecia, assumindo uma postura de inferioridade, que se sente “sem

direitos” e convertida em espectadora das suas próprias “mazelas”.

São Gregório de Nissa (apud FREIRE, 2011b, p. 42) fala sobre a miséria

decorrente deste assistencialismo “generoso”, oficializado:

Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas

rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o

pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria

porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e

de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras

corajosas: não sacieis a minha sede com lágrimas de meus

irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de

meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante

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28

aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale

consolar um pobre, se tu fazes outros cem?

Importante esclarecer que se considera presentemente “elites

dominadoras” ou “elites opressoras”, por um viés freireano, como classes

contrárias antagônicas das massas populares. As elites são necrofilamente

ansiosas do esmagamento e manutenção da alienação destas massas por

meio de manipulação, mitificação, ocultamento, violência física e emocional e

outros meios (FREIRE, 2011b).

Interessante destacar, ainda, observações sobre as “crenças de auto-

eficácia”, conforme Bandura (2008, p. 101):

Essencialmente, as crenças de auto-eficácia são percepções

que os indivíduos têm sobre suas próprias capacidades. Essas

crenças de competência pessoal proporcionam a base para a

motivação humana, o bem-estar e as realizações pessoais.

Isso porque, a menos que acreditem que suas ações possam

produzir os resultados que desejam, as pessoas terão pouco

incentivo para agir ou perseverar frente a dificuldades.

Pelo conceito de “crença da auto-eficácia”, como acima definido, e que

pode assumir tanto um viés individual como um coletivo, pode-se idealizar

como os diversos grupos sociais, principalmente aqueles que se consideram,

de forma geral, mais “eficazes” - pelo acesso a bens materiais e ao exercício

mais constante do poder - podem exercer poderosas influências

desmobilizadoras, enfraquecedoras e desvitalizadoras em relação a outros

grupos, ao persuadirem-nas negativamente quanto aos seus direitos,

responsabilidades e potencialidades. No entender desse conceito afirma-se

que o “nível de motivação, os estados afetivos, e as ações das pessoas

baseiam-se mais no que elas acreditam do que no que é objetivamente

verdadeiro” (BANDURA, 2008, p. 102).

Há toda uma complexa problemática social causada pela figura de um

Estado socialmente fraco, ou seja, por aquele que tinha como um dos deveres

primordiais, legais e morais sustentar e gerir a trama social, de modo a

assegurar condições de vida satisfatórias, dignas e justas à coletividade, e que

não o faz de maneira eficaz - o que termina por fragilizar a trama social dessa

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coletividade, repercutindo em um estreitamento das perspectivas de vida, mais

de uns, menos de outros, mas afetando à sociedade civil como um todo.

Entende-se, no contexto desse trabalho, que o Estado somente se faz

ou se fará (mais) presente, em termos de organizar a vida social de forma mais

justa e igualitária, se - e quando - todos os grupos sociais, que compõem uma

coletividade, tiverem condições de, autonomamente, discutir, propor e

consolidar as bases sobre as quais essa igualdade será estabelecida.

Interessa-nos, então, mais bem compreender como esse “estreitamento”

político - como participação na organização da polis - de perspectivas de vida,

que tantas vezes se percebe nos grupos sociais marginalizados, pode ser

rompido. Tema que será aprofundado abaixo, pelo viés dos movimentos

sociais.

1.3. Movimentos sociais como organização social

A definição de movimento social não é consensual. Gohn (2002), a

exemplo, aponta quatro grandes paradigmas de movimentos sociais: o

marxista, o norte-americano, o dos novos movimentos sociais e o latino

americano.

De forma geral o paradigma marxista aplicado à análise dos movimentos

sociais é equivocadamente visto como sinônimo de exame do movimento

operário, da revolução em si. Na realidade, trata-se de processo de lutas

históricas das classes e camadas sociais em situação de subordinação, que

visam transformar as condições existentes.

Diversos autores reconhecem a importância do pensamento de Marx na

formação de teorias explicativas sobre os movimentos sociais, além da sua

contribuição na orientação prática desses movimentos. As teorias marxistas

não são apenas explicativas, não estão voltadas tão somente para um

entendimento analítico, mas são também orientadoras para os próprios

movimentos, assemelhando-se a um guia de ação da prática, que se tornará

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práxis política e histórica. Apontando a importância de Marx para a análise dos

movimentos sociais, Scherer-Warren (1987, p. 34) observou:

Marx foi um dos mais importantes criadores de um projeto de

transformação radical da estrutura social, projeto este de

superação das condições de opressão de classe. Para sua

realização, além do amadurecimento de condições estruturais

propícias, exige-se também uma práxis revolucionária das

classes exploradas. A efetivação desta práxis, porém, requer a

formação da consciência de classe e de uma ideologia

autônoma de forma organizada, para as quais sugere o partido

de classe.

O paradigma marxista clássico é dividido em duas grandes correntes. A

primeira delas é decorrente do “jovem Marx”, conhecida como heterodoxa, que

criou uma tradição histórica-humanista, seguida por Rosa Luxemburgo,

Gramsci, Lukács e a Escola de Frankfurt. É a que é utilizada atualmente em

maior número nas análises marxistas contemporâneas sobre os movimentos

sociais.

A segunda corrente, denominada ortodoxa, deriva do Marx “maduro”, de

seus trabalhos elaborados de 1850 em diante, que privilegia os fatores

econômicos, macroestruturais da sociedade. No modelo ortodoxo marxista

destaca-se que o uso da força, a violência e a coerção são admitidos

preferencialmente como táticas de luta, tendo como referências mais comuns a

Revolução Francesa (1789) e a Revolução Russa (1917). Essas ideias, com

exceção dos trabalhos de Lenin e Trotsky, não tiveram boa recepção tanto

entre os teóricos dos movimentos sociais não-marxistas quanto por marxistas,

que criaram na Europa uma corrente de estudos sobre os movimentos sociais

através de uma releitura crítica do marxismo ortodoxo, fundamentada

principalmente pela teoria da alienação desenvolvida por Lukács e pela Escola

de Frankfurt, e a de Gramsci sobre a hegemonia. Esse movimento fora

denominado neomarxista (GOHN, 2002).

A revisão crítica dos trabalhos de Marx pelos chamados neomarxistas

resultou na atenuação do peso das determinações estruturais e na valorização

de pressupostos que conferem maior autonomia de ação aos atores sociais.

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Esta transição recebeu influências do emergente e contemporâneo paradigma

dos Novos Movimentos Sociais (NMS).

Os NMS passaram a ocorrer na Europa a partir dos anos 1960. Em

termos práticos, os NMS têm como característica maior heterogeneidade dos

movimentos sociais do que o paradigma marxista, tendo em vista que têm uma

tendência de rompimento com a tradição que busca a mobilização de uma

classe social que represente os trabalhadores. Johnston, Laraña e Gusfield

(apud GOHN, 2007, p. 126), apresentam oito características básicas dos NMS:

1. O papel estrutural dos participantes não é claramente definido. A

base social dos NMS tende a transcender a estrutura de classe.

2. As características ideológicas dos NMS contrastam com a

concepção marxista de ideologia e com os movimentos da classe

trabalhadora.

3. Os NMS reclamam a emergência de novas dimensões da

identidade.

4. A relação entre o coletivo e o individual é obscurecida.

5. Os NMS envolvem aspectos pessoais da vida humana.

6. Utilizam táticas radicais de mobilização de ruptura e resistência que

diferem das utilizadas pela classe trabalhadora.

7. A crise de credibilidade dos canais convencionais de participação

nas democracias ocidentais causam a organização e a proliferação

dos NMS.

8. A organização dos NMS ocorre de maneira difusa, segmentada e

descentralizada.

Já o paradigma norte-americano não foi homogêneo, mas teve como

características comuns: a teoria da ação social como núcleo articulador das

análises; a meta principal, que correspondia à busca de compreensão dos

comportamentos coletivos, os quais eram considerados pela abordagem

tradicional norte-americana como fruto de tensões sociais; e a ênfase na ação

institucional, contraposta a não-institucional, sendo esta entendida como

aquela não guiada por normas sociais existentes, mas formada por situações

que representavam a quebra da ordem vigente (GOHN, 2007).

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32

Quanto ao paradigma latino-americano, a dependência histórica em

relação ao mercado externo, o passado colonial, a natureza escravocrata e a

servidão indígena, a monocultura e a exploração externa econômica e de

recursos naturais, têm importância fundamental para a compreensão da sua

análise. Destacam-se neste paradigma: a diversidade de movimentos sociais

existentes; o destaque dos movimentos populares e o crescimento dos “novos”

movimentos (de mulheres, ecológicos, de negros); ideologias presentes;

partidos políticos como parceiros; heterogeneidade; Estado como um “inimigo”;

questão agrária gritante; entre outros.

Dentre os autores europeus teóricos dos movimentos sociais populares

destaca-se a influência de Manuel Castells. Proveniente de uma tradição

marxista, que nos anos 1970 liderou um processo de renovação no debate

sobre as questões urbanas, Castells enfatiza o papel das chamadas “novas

contradições urbanas”, com base em análises dos textos de Marx sobre a

realidade social. A propósito, Gohn (2002, p. 190) afirma, enfatizando a

influência de Castells como importante suporte teórico de pesquisas sobre os

movimentos sociais populares em toda a América Latina:

O quadro metodológico de análise dos Movimentos Sociais

Urbanos (MSU) de Castells consistia em entendê-los a partir da

determinação estrutural do problema que encerram (ou

reivindicam). Isto implica captar nos movimentos suas

perspectivas, sua estrutura interna, suas contradições, seus

limites e possibilidades, suas relações com a cidade e com o

Estado. O método de abordagem mais eficaz para o estudo

dos MSU seria, para Castells, a partir de sua observação

concreta, registrar a forma pela qual se desenvolvem e as

ações e organizações que integram. Isto feito, dever-se-ia partir

para uma nova etapa: relacionar o observado anteriormente

com: a) as contradições estruturais do capitalismo; b) a

expressão estrutural do movimento no urbano; e c) o processo

político mais geral do país nos últimos anos.

A metodologia desenvolvida por Castells relaciona os movimentos

sociais com problemas relativos à voracidade do capitalismo e seus

desdobramentos e com o burocratismo da administração, e coloca os

movimentos sociais como fatores de transformação. No Brasil este papel dos

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33

movimentos sociais parece ser controvertido e variável, quanto ao seu

potencial político e transformador.

Para Castells (1999) os movimentos sociais, como movimentos mais

culturais e menos políticos, porque buscavam mudar a vida e não tomar o

poder, notadamente a partir de 1968, tiveram importância relevante na

conformação da sociedade atual, ao reagirem contra o uso arbitrário da

autoridade, ao agirem com energia contra a injustiça social e ao buscarem a

liberdade. Os movimentos sociais correspondem, assim, a ações coletivas

empreendidas com um determinado propósito e seus resultados, quaisquer que

sejam, transformam os valores e instituições da sociedade, tendo em vista que

não existem movimentos “bons” ou “maus”, progressistas ou retrógrados, pois

todos levam à transformação.

Castells (1999) entende que a construção de identidades coletivas pode

desenvolver-se de três formas diferentes, desde que ocorram em contextos

marcados por relações de poder: a identidade legitimadora; a identidade de

resistência; e a identidade de projeto, sendo esta última, por suas próprias

características, a mais relevante para a conquista de transformação da

estrutura social, capaz de reconstruir uma nova sociedade civil e, finalmente,

um novo Estado.

O sociólogo francês Alain Touraine também estabeleceu novas bases

teóricas para os movimentos sociais. Touraine entendia que os movimentos

sociais representavam uma ação conflitante de agentes com interesses

opostos, que lutam pelo controle do rumo do desenvolvimento da sociedade.

Touraine (apud PICOLOTTO, 2007, p. 06) entende que o conceito de

movimento social abrange o princípio de identidade; o princípio de oposição; e

o princípio de totalidade, de maneira que a existência de um movimento social

é caracterizada pela existência simultânea do ator, seu adversário e o objeto do

conflito. Os movimentos sociais teriam o papel de desenvolverem sujeitos livres

e autônomos e servir de mediadores entre o sujeito e o Estado, visando a

construção da democracia e da cidadania.

A ideia de sujeito implícita nesse pensamento, semelhante ao tipo de

processo de construção de identidade coletiva, denominada por Castells de

identidade de projeto, corresponde ao indivíduo que luta para ter seus direitos

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34

reconhecidos, que resiste contra a lógica do sistema imposto pelas classes

dirigentes, que vão se tornando dominantes, e luta pela democracia e pelo

reconhecimento da sua cidadania. Destaca-se que, para Touraine (1994), o

processo de formação do sujeito só é possível por meio do diálogo e do

relacionamento com outros indivíduos do mesmo grupo social, porque jamais

pode ser alcançado individualmente. O indivíduo sem engajamento social corre

o risco de dissolver-se na individualidade, enquanto que sua transformação em

sujeito componente de um movimento social, que luta pela sua liberdade e

responsabilidade, o “desaliena” e torna-o parte de um processo transformador

do sentido da história.

Touraine contrapõe-se à utilização habitual da denominação “movimento

social”, sob a alegação de que a banalização do termo traria prejuízos à correta

definição da ação. Propõe distinguir os movimentos sociais para evitar que

sejam assim chamados qualquer tipo de ação coletiva, de grupos de interesse

ou de instrumentos de pressão política. Desta forma, Touraine diferencia os

movimentos sociais atuais através de uma hierarquização quanto ao seu

alcance, que se compõe basicamente em três tipos: movimentos culturais,

históricos e societais 2 . Esses últimos são portadores de características

conflituosas e ideológicas mais marcantes, o que os transforma no tipo de

movimento mais adequado para resolver os problemas da fragmentação do

sujeito e da crise da modernidade, conferindo-lhe grande poder de

transformação; enquanto que os demais tipos de movimentos são frágeis, a

ponto de Touraine alertar para a possibilidade de transformarem-se em

antimovimentos sociais.

Já Castells (2003, p. 113), de maneira geral, define os movimentos

sociais atuais nos seguintes termos:

A definição de movimento social só é útil se permite pôr em

evidência a existência dum tipo muito particular de ação

coletiva, aquele tipo pelo qual uma categoria social, sempre 2 Touraine (2003) entende que nos conflitos a ordem social é excedida, motivo pelo qual

prefere substituir a expressão “movimentos sociais” por “movimentos culturais”. O sociólogo francês chama de “movimentos históricos” aqueles que designam os “conflitos surgidos em torno da gestão da mudança histórica”, e esclarece que o uso do termo se dá em decorrência da “falta de melhor expressão” (p. 25). Por “movimentos societais”, Touraine entende que correspondem às ações que combinam um conflito social com um projeto cultural e que defendem um modo diferente de uso dos valores morais.

Page 35: Rogério Pena Masi

35

particular, questiona uma forma de dominação social,

simultaneamente particular e geral, invocando contra ela

valores e orientações gerais da sociedade, que ela partilha com

seu adversário, para privar este de legitimidade.

O sociólogo Alberto Melucci (1996) apresenta caminhos distintos dos até

então aqui abordados. Tendo em vista a sua formação e atuação profissional,

relacionada à Psicologia Clínica, Melucci afasta-se das concepções clássicas

de movimentos sociais. Entende que os atores ou sujeitos sociais se constroem

na ação coletiva, não sendo por ela determinados, não a precedendo, e propõe

o estudo de uma classe de fenômenos mais geral, denominando-a de “ações

coletivas” (gênero), extraindo dessas ações princípios de análise,

características e processos constituintes divididos, basicamente, em três

dicotomias – processos pelos quais as coletividades se constituem; se

posicionam ante outras coletividades; e se posicionam ante o sistema social

vigente; para que, então, seja possível estabelecer distinções entre as

diferentes orientações das ações coletivas dividindo-as em classes, entre as

quais os movimentos sociais estão inscritos. Esta análise depende do sistema

de relações em que cada ação ocorre e para o qual se direciona.

Melucci define a teoria da ação coletiva como:

[...] um conjunto de práticas sociais que envolvem

simultaneamente certo número de indivíduos ou grupos que

apresentam características morfológicas similares em

contigüidade de tempo e espaço, implicando um campo de

relacionamentos sociais e a capacidade das pessoas de incluir

o sentido do que estão fazendo (apud GOHN, 2000, p. 154).

Gomes (2011, p. 8) organizou a tabela abaixo conforme a proposta de

Melucci, para melhor visualização, compreensão e “estudo das orientações das

ações coletivas, compondo, como resultado, uma tipificação das ações

coletivas, por meio das quais os grupos sociais constituem suas identidades”:

Tabela 1 – Conjunto de formas de ação social

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36

Fonte: GOMES, 2011, p. 8.

Desta forma, verifica-se que, para Melucci, uma ação coletiva deve ser

considerada um Movimento Social apenas quando o motivo pelo qual o

indivíduo é levado a participar da ação seja a solidariedade, que na sua própria

definição é entendida como a “habilidade de reconhecer a si mesmo e ao outro

como pertencentes à mesma unidade social” (apud GOMES, 2011, p. 5). A

capacidade dos indivíduos compartilharem uma identidade coletiva fortalece os

laços internos da coletividade contra desgastes e rupturas. É necessário

também que a ação coletiva se configure sob a forma de conflito, quanto ao

modo pelo qual uma coletividade posiciona suas ações ante outras

coletividades. Ou seja, para Melucci o conflito se caracteriza pelo confronto,

disputa, combate e antagonismo reconhecido entre grupos que disputam os

mesmos recursos. É o oposto do consenso. Finalmente, para que seja

considerada por Melucci como Movimento Social a ação coletiva deve ser

também orientada à ruptura dos limites do sistema. Ou seja, a ação coletiva

deve ter objetivos e orientações, que exigem mudanças para além do espectro

aceitável de variações, para além do que o sistema pode tolerar, de maneira

que a demanda só poderá ser satisfeita desde que haja uma alteração

estrutural no sistema. A manutenção é o seu oposto. Melucci (1996, p. 27),

visando uma melhor compreensão acerca do assunto, já que bastante

inespecífico, propõe a divisão em quatro sistemas:

O sistema produtivo, composto dos elementos que asseguram a produção de recursos sociais;

O sistema político, de decisões sobre a distribuição desses recursos;

O sistema organizacional, que define regras de trocas e abastecimento desses recursos;

Movimento Social Solidariedade Conflito Ruptura

Competição Solidariedade Conflito Manutenção

Reação Solidariedade Consenso Ruptura

Cooperação Solidariedade Consenso Manutenção

Agregação Conflito Ruptura

Agregação Conflito Manutenção

Agregação Consenso Ruptura

Ritual Agregação Consenso Manutenção

Desvio

(Marginalidade)

Forma de Ação

Coletiva

Processo

constitutivo

Posicionamento ante

coletividades

Posicionamento ante ao

sistema vigente

Resistência

Individual

Mobilidade

Individual

Page 37: Rogério Pena Masi

37

e, por fim, o sistema reprodutivo, o mundo da vida, a reprodução cultural no cotidiano.

A partir do final da década de 1980, Melucci, tendo em vista a dinâmica

social recente, chega a afirmar que prefere substituir a expressão movimento

social por redes de movimento ou áreas de movimento, já que passaram a se

organizar de maneira inter-relacionada. Enquanto que para Melucci as redes

são os canais de intercomunicação entre os atores sociais transformadores,

para Castells as redes são instrumentos de dominação da sociedade atual

(PICOLOTTO, 2007).

Importa ressaltar que Freire (2011c) alertou para a importância dos

movimentos sociais como “ambientes alternativos” para o desenvolvimento e

prática da educação libertadora, revelando a sua predileção em trabalhar com

os movimentos sociais populares no campo e na periferia das cidades a

trabalhar em escolas, embora ressalte que ambas as atividades sejam

igualmente importantes. Cita como exemplo o movimento de libertação das

mulheres, o movimento ecológico, o movimento das donas de casa contra o

custo de vida, indicando que de “todos esses movimentos de base emergirão

como uma tarefa política muito vigorosa […]. Na intimidade desses

movimentos, temos aspectos da educação libertadora que algumas vezes não

percebemos” (FREIRE, 2011c). A educação libertadora, crítica, visa a

autonomia do indivíduo e que ele internalize a confiança (sentido de auto

eficácia) de que poderá fazer parte de um processo de transformação social,

de que é possível alterar os rumos da história. As ações coletivas transformar-

se-ão e tornar-se-ão muito mais eficientes. No próximo capítulo

desenvolveremos esse tema relacionado à educação libertadora freireana.

1.3.1. Breve historização dos movimentos sociais como forma de organização social

A historicidade das ações coletivas de organização social, visando a

transformação das condições de vida, pode ser útil para que possamos

compreender a sua importância. Dentre alguns exemplos de ações coletivas de

Page 38: Rogério Pena Masi

38

contestação do povo em relação ao sistema político-econômico vigente,

destacam-se os movimentos dos camponeses europeus, que após a

disseminação da Peste Negra, na Europa Medieval, em meados do século XIV,

tiveram a sua já precária situação agravada. A retração econômica, o aumento

do trabalho para suprir a falta dos inúmeros mortos e o aumento dos impostos,

cujo pagamento era imputado pelos senhores feudais (classes detentoras de

terras) à classe servil, para a manutenção de seus privilégios, criaram o

ambiente apropriado para a deflagração de várias revoltas camponesas,

relativamente organizadas, na França e na Inglaterra. Essas visavam,

notadamente, diminuir a exploração sob a qual viviam e conquistar alguns

direitos elementares. Na mesma época, nas cidades (burgos) ocorriam ações

coletivas dos artesãos, que explorados pelos comerciantes ricos (burgueses),

desejavam melhores condições de trabalho e de direitos, chegando a se

organizarem em corporações de ofício (GOFF, 2005).

Na Idade Moderna, segundo relata Funck-Brentano (1968), o monge

alemão Martim Lutero deu início à reforma luterana, que consistia em contestar

os dogmas da Igreja Católica e lutava para que o povo tivesse mais autonomia

e participação na vida de fé. Ainda conforme Funck-Brentano (1968), por volta

de 1524 houve uma luta camponesa relevante na Alemanha. Liderados pelo

Frade Thomas Muntzer os camponeses se revoltaram contra a Igreja, em

decorrência da cobrança de dízimos e reivindicavam a reforma agrária, a

abolição dos privilégios feudais e a igualdade absoluta entre os homens. O

movimento foi duramente contido pelos príncipes da Saxônia. Muntzer foi

preso, torturado e decapitado, e milhares de camponeses foram massacrados.

A Revolução Inglesa, que se iniciou em 1640 e terminou em 1688/89,

transformou a estrutura política, social e econômica da Inglaterra, lançando as

bases de importantes transformações mundiais. Antecipando-se em 150 anos

às revoluções Americana e Francesa, foi fundamental para a Revolução

Industrial no século seguinte, que modificou as relações econômicas

globalmente.

Até aproximadamente 1760 a Inglaterra ainda era um país

predominantemente agrícola. Por volta de 1800 a Revolução Industrial se

precipitou. Em períodos anteriores os artesãos se agrupavam e todos

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39

dominavam integralmente todas as etapas do processo de produção daquilo

que produziam e, portanto, conheciam seu valor. Contudo, os progressos

tecnológicos, o vanguardismo das políticas liberais inglesas, a abundância de

mão-de-obra disponível, e o incentivo ao desenvolvimento da economia

burguesa foram acompanhados de profundas transformações sociais, com o

rápido crescimento da população e o aparecimento de novas cidades

industriais.

A industrialização inglesa ocorreu quase um século antes de qualquer

outra. A maneira como as máquinas automatizadas operavam tornaram os

operários em trabalhadores autômatos. Tinham responsabilidade e domínio de

apenas determinada fase do processo produtivo, convertendo-o em alienado

quanto ao valor de seu trabalho. Tal fato, aliado às péssimas condições de

trabalho, fábricas abafadas, sujas e mal iluminadas, baixos salários, mão-de-

obra feminina e infantil, castigos físicos impostos pelos patrões, jornadas

diárias extenuantes (de até 18 horas) e ausência de direitos trabalhistas,

causaram o surgimento das primeiras greves e revoltas operárias que, mais

tarde, deram origem aos movimentos sindicais.

Neste período destaca-se ainda o movimento de insurgentes contra as

alterações nas relações de trabalho ocasionadas pela Revolução Industrial,

que ocorreu principalmente entre 1811 e 1812, e foi denominado de Ludismo.

As máquinas, consideradas as grandes responsáveis pelo desemprego

crescente no país, em que pese tal movimento ter tido importantes reflexos

também na França e Bélgica, entre outros países europeus, foram o objeto da

ira dos trabalhadores mobilizados nesta ação coletiva, que afetou tanto aos

operários quanto os camponeses.

A destruição das máquinas representava prejuízo imediato aos patrões e

a interrupção da exploração dos trabalhadores, porque não havia outro meio de

produção e significava a abertura para uma negociação coletiva. Uma técnica

sindical de negociação dos direitos dos trabalhadores, alternativamente a

greves ordeiras, naquela época não surtiam o efeito almejado. Depois os

operários organizaram-se em associações, que atendiam aos seus interesses,

o que, consequentemente, deu origem aos sindicatos. Hobsbawm (2000) não

classifica esse movimento como ingênuo e inconsequente. Para esse autor os

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40

operários tinham plena consciência de que não eram as máquinas o real

motivo de sua desgraça, e sim o sistema que os utilizava indecentemente. De

acordo com Hobsbawm:

[...] não há realmente nenhuma desculpa para ignorar de

qualquer modo a força destes primeiros movimentos na

Inglaterra; e a menos que percebamos que a base do poder

estava na quebra das máquinas, nas arruaças e na destruição

das propriedades em geral (ou em termos modernos, na

sabotagem e na ação direta), não vemos sentido neles (2000,

p. 18).

Chegamos agora ao último e mais complexo problema: qual a eficácia da destruição de máquinas? É, acho eu justo afirmar que a negociação coletiva através do tumulto foi pelo menos tão eficiente como qualquer outro meio de exercer pressão sindical, e provavelmente mais eficiente do que qualquer outro meio disponível antes da era dos sindicatos nacionais para grupos tais como os tecelões, marinheiros e mineiros. [...] Além do mais, o tumulto e a destruição de máquinas proporcionaram aos trabalhadores vantagens valiosas em todas as ocasiões. O patrão do século XVIII estava constantemente consciente de que uma exigência intolerável produziria, não uma perda de lucros temporários, mas a destruição de equipamento importante [...] (2000, p. 26).

Hobsbawm (2006) afirma, ainda, que as repercussões da Revolução

Industrial não se fizeram sentir de uma maneira óbvia e inconfundível fora da

Inglaterra antes de 1840 aproximadamente; quando seus efeitos sociais

começaram a ganhar atenção e a fluir com a grande corrente de literatura

oficial e não oficial. O proletariado, rebento da revolução industrial, e o

comunismo, que se achava agora ligado aos seus movimentos sociais, abriram

caminho pelo continente. “Sob qualquer aspecto, este foi provavelmente o mais

importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção

da agricultura e das cidades.” (HOBSBAWM, 2006, p. 20).

Destacam-se no Brasil do século XVII e XVIII as intensas, duradouras,

autênticas e importantes ações coletivas populares dos grupos quilombolas. A

mais conhecida foi aquela do quilombo dos Palmares, localizado na atual

região de Alagoas. Na realidade, Palmares era um local que abrigava diversos

quilombos. Os refugiados se organizavam nestas comunidades como uma

forma de manifestação de resistência quanto à opressão da cruel ordem

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41

escravocrata vigente. Durante os séculos XVII e XVIII o Brasil teve centenas de

quilombos espalhados, principalmente pelos atuais estados da Bahia, Alagoas,

Pernambuco, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais. Os quilombolas viviam de

acordo com a cultura africana, plantavam e produziam em comunidade e

lutavam, principalmente, pelo direito à liberdade e por uma vida digna. A

prosperidade e a capacidade de organização e resistência dos quilombos

apresentava séria ameaça à elite dominante da época, notadamente dos

Palmares, que conseguiu derrotar aproximadamente trinta expedições militares

organizadas com a finalidade de destruírem-no.

Em 1776 houve a Revolução Americana, motivada, principalmente, pela

aspiração patriótica de independência. Em que pese o fato de a revolução não

ter chegado a tocar na escravidão, e sua solução para os problemas

relacionados às terras do oeste tenha favorecido os interesses dos grandes

proprietários, não lhe faltaram aspectos revolucionários e caráter social das

lutas, tendo, inclusive, influenciado diretamente as ações coletivas que

conduziram à independência do Brasil, a partir da Conjuração Mineira. As lutas

pelo fim do despotismo feudal e pelo advento de uma era de liberdade e justiça

inspiraram ações coletivas de libertação em diversas partes do mundo até o

princípio do século XIX. Com a vitória sobre a Inglaterra, a Revolução

Americana pôde proclamar-se a causa direta da Revolução Francesa.

A Idade Moderna “termina” em 1789, com a Revolução Francesa, ou a

Grande Revolução, como viria a ser chamada. Hobsbawm (2006, p. 38) afirma

que “Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a

influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram

formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa.” A França, no período

pré-revolucionário, era um país basicamente agrário e semifeudal e

encontrava-se em período de crescimento demográfico (cerca de um a cada

cinco europeus era francês, o que tornou as consequências da sua Revolução

mais evidentes e profundas). Tais fatos, aliados aos seguidos anos de

péssimas colheitas, levando à subprodução agrícola e consequente elevação

dos preços dos alimentos e o aumento da miséria e da fome entre os

camponeses e trabalhadores urbanos, resultou em uma ascendente crise

econômica. A monarquia absolutista, até então no poder, passava por

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42

momento crítico, tendo em vista a inércia de décadas frente à crise econômica,

financeira e social, que se agravava com o passar dos anos, fato este majorado

pelo fortalecimento econômico da burguesia. Nesta época a sociedade

francesa era dividida em clero (primeiro estado), nobreza (segundo estado) e

povo (terceiro estado, constituído por camponeses, trabalhadores urbanos,

pequenos proprietários, comerciantes e a burguesia), sendo que apenas este

último carregava o pesado fardo dos impostos para suportar os gastos

necessários a fim de manter os luxos da nobreza e da corte real e os custos

das guerras.

Este panorama provocou a Revolução Francesa (1789-1799), que

visava, principalmente, derrubar o antigo regime e instaurar um Estado

democrático, que representasse e assegurasse os direitos de todos os

cidadãos. As ações coletivas eram chamadas de “revolucionárias”, tendo em

vista a violência com que eram empreendidas, e a Revolução Francesa foi

marcada como uma das mais violentas, mais profundas, mais surpreendentes,

com amplas repercussões no mundo inteiro e investida de um caráter social

sem precedentes. Tornara-se um marco em todos os países, tanto que

Tocqueville (apud HOBSBAWM, 2006, p. 39) afirmou que a Revolução

Francesa foi “o primeiro grande movimento de idéias da cristandade ocidental

que teve qualquer efeito real sobre o mundo islâmico”. Foi, diferentemente de

todas as revoluções que a precederam e a seguiram, uma revolução social de

massa, com traços marcadamente radicais. As guerras empreendidas contra a

aristocracia feudal, guerras que instauraram uma ditadura do Terror, cujo

símbolo, a guilhotina, se tornou universal, visavam à formação de um regime

social baseado no direito à propriedade e igualdade entre os homens e

impulsionou o nascer, mais tarde, do que seria chamado de socialismo.

No Brasil do século XVIII destacara-se a mobilização das elites não

monárquicas e da classe popular, dentre outros, no movimento que foi

denominado como a Inconfidência Mineira. Motivada pelo inconformismo de

parte da população com os abusivos e pesados impostos e taxas cobrados

pela Coroa Portuguesa, majorados pela instituição da Derrama e dos confiscos

dos bens pessoais dos colonos, que não conseguiam cumprir as exigências

das autoridades portuguesas, e influenciados pelas ideias de liberdade, que

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43

vinham do Iluminismo europeu, tinham como objetivo a proclamação da

independência de uma região de Minas Gerais.

Durante o século XIX houve importantes ações coletivas e lutas sociais

no Brasil envolvendo tanto as zonas rurais quanto as urbanas, tendo em vista

que ainda que a população estivesse concentrada em maior número nas zonas

rurais, a estrutura hegemônica para a monocultura do açúcar, no início,

passando para o café em meados do século XIX, funcionava com a produção

ocorrendo no campo e a comercialização do produto e da mão-de-obra na

cidade, notadamente no sudeste (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo).

Gohn (2001a, p. 18) destaca como motivos gerais para as ações

coletivas ocorridas no Brasil os seguintes: a questão da escravidão, aquelas

relacionadas às cobranças do fisco, de pequenos camponeses contra

Legislação e Atos do Poder Público, pela mudança do regime político e entre

diferentes categorias socioeconômicas (comerciantes brasileiros versus

comerciantes portugueses, por exemplo). Alerta que, em que pese a extensão

territorial nacional e a falta de comunicação entre as províncias da época,

houve relevante adesão da população às reivindicações feitas.

Interessante destacar ainda que Manuel Correia de Andrade (apud

GOHN, 2001a, p. 19) observa que movimentos populares autênticos, liderados

por homens do povo, como a reação indígena, os quilombos negros, revoltas

do período regencial e imperial, em especial aquelas ocorridas no Norte e

Nordeste, foram ignorados e ocultados em nossa história, sendo seus

participantes e líderes rotulados de bárbaros e bandidos.

As grandes lutas camponesas no Brasil coincidem com o fim do império

e a instauração da República. Com a abolição das sesmarias no Brasil, a terra

começa a adquirir valor comercial e os pequenos agricultores e assalariados

passaram a vislumbrar a oportunidade de adquirirem um pedaço de chão.

Contudo, a Lei das Terras, de 1850, criou enormes e praticamente

intransponíveis dificuldades para aqueles adquirirem suas terras, servindo mais

aos interesses econômicos e políticos do Estado e dos grandes latifundiários,

que produziam monoculturas para exportação através da utilização da mão-de-

obra escrava e superexplorada. Nesta época, especialmente a partir de 1850

até 1890, houve diversos movimentos conhecidos como messiânicos,

Page 44: Rogério Pena Masi

44

denominação esta que remete impropriamente a ideia de tratarem-se de ações

fanático-religiosas. Contudo, em verdade, foram lutas pela terra, lutas coletivas

populares envolvendo questões de reforma agrária e de resistência às

oligarquias rurais, a exemplo da Revolta dos Muckers no Rio Grande do Sul,

Canudos na Bahia e Contestado no Paraná e Santa Catarina (GOHN, 2001a).

Igualmente importantes são os movimentos chamados de banditismo no

nordeste brasileiro, também chamados de cangaço, que perduraram com

grande intensidade até a década de 1940. Tratava-se de lutas empreendidas

por lavradores, camponeses, sitiantes e posseiros, que foram expulsos de suas

terras, com a finalidade de se vingarem de seus algozes (aqueles que os

expulsaram), matando, inclusive seus familiares. Depois da execução de seu

intento, em decorrência da sua nova condição de criminosos e excluídos

socialmente, unem-se a bandos de cangaceiros. Para Martins (1986, p. 60):

O cangaceiro era principalmente o camponês que fora

expropriado, expulso, esbulhado por um fazendeiro ou

comerciante determinado, mas que em respostas se vinga da

classe, percorrendo vínculos de sangue de seus desafetos

para exterminar parentes.

Destacam-se também, neste mesmo período inicial, as importantes e

inúmeras ações coletivas com viés social denominadas de Associações de

Auxílio Mútuo que, para alguns autores, tratou-se de movimentos que

precederam o sindicalismo ou o anarco-sindicalismo, e, para outros, referiam-

se à associação das classes populares para assegurar condições básicas para

os miseráveis das cidades (LUCA, 1990).

A Revolução Russa de 1917 também foi marcada pela participação

popular e pela violência. Os camponeses eram explorados e viviam em

condições precárias, em decorrência de um governo que preservava os

privilégios feudais da classe aristocrática. A classe operária, ainda tímida e

igualmente oprimida e explorada, não tinha força para exigir seus direitos. As

desigualdades sociais foram agravadas pelos gastos do Governo com a

primeira guerra mundial. Os efeitos do “capitalismo selvagem” e a evolução das

ideias socialistas ampliaram o clima de insatisfação. Os camponeses, até então

irresolutos, começaram a empreender por conta própria ações violentas contra

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45

as grandes propriedades. Eram massas desorganizadas e fortalecidas pelos

soldados “autodesmobilizados”, que voltavam ao campo levando consigo o

lema bolchevique “paz, pão e terra.”

Em relação ao nosso país, Gohn (2001a, p. 61) mapeia e aglutina em

seis etapas as principais lutas e movimentos sociais ocorridos no século XX no

Brasil:

1.ª) Primeira República: até 1930; 2.ª) Revolução de 1930 e

Estado Novo: 1930-45; 3.ª) Populismo: 1945-64; 4.ª) Regime

Militar, 1.ª fase: 1964-74; 5.ª) Regime Militar, 2.ª fase: 1974-84;

6.ª) Nova República e Restauração Democrática: 1984-95.

As primeiras décadas do século XX têm como personagem central o

trabalhador imigrante. O quadro de pobreza reinante no país durante a Primeira

República era agravado por ciclos de epidemias e pelo descaso do Estado e

das elites quanto aos direitos daqueles terem suas necessidades mais

elementares atendidas. Contudo, nesta época, esses trabalhadores, que já

tinham vivências e ideologias de mobilização social (sendo um exemplo o

movimento anarquista), começavam a se mobilizar, cada um conforme a

afinidade de interesses e necessidades. Criaram, assim, diversos sindicatos de

categorias e se organizaram em Federações e Confederações, tornando-se

uma constante os movimentos grevistas em vários setores. Os

anarcosindicalistas combatem o Estado, as Forças Armadas, a Igreja e toda

forma de organização burocratizada e rígida.

Especial referência deve ser feita aos militares de média patente e aos

funcionários públicos, que tendo atingido certo grau de status social, fazem

emergir vários movimentos a partir de ações coletivas, como o Tenentismo e o

Modernismo. Diversas instituições foram fundadas, notadamente

representativas de interesses profissionais, classistas e particulares, e

inúmeras revoltas organizadas e desorganizadas eclodiram neste período

(GOHN, 2001a, p. 61; SANTANA, 1999).

Em São Paulo os sindicatos denunciavam casos de jornadas

extenuantes nas fábricas, utilização de mão de obra infantil e feminina,

exploração econômica, exposição a condições de trabalho insalubres e

perigosas, e lutavam pela regulamentação e ampliação de direitos trabalhistas

Page 46: Rogério Pena Masi

46

elementares. Nesse clima eclodem as greves lideradas principalmente pelos

anarquistas (anarcosindicalistas), que trouxeram da Europa suas experiências

na organização dos movimentos revolucionários. As reivindicações

relacionadas a questões humanas básicas, não trabalhistas, também eram

defendidas pelos trabalhadores, que se mobilizaram por meio de ligas, uniões e

sindicatos, contra a carestia de gêneros alimentícios e o precário

abastecimento da cidade, protestaram contra as condições de moradia, os

preços excessivos dos aluguéis e contra a Lei do Inquilinato, de 1913.

Reclamaram do transporte público, exigindo a ampliação da rede e custos mais

baixos. Ocuparam as ruas e praças públicas, fazendo comícios e passeatas,

invadindo comércios e fábricas em funcionamento (FERREIRA; REIS FILHO;

KHOURI, 2007). Até a década de 1920 as lutas operárias eram lideradas pelos

anarquistas e socialistas.

Em que pese já haver certo nível de organização nas ações coletivas

desta época, a violência era traço marcante tanto do lado dos manifestantes

quanto do Estado e das elites em toda a América Latina. As ações eram

tratadas pelo Estado e pelas elites como casos de polícia, muitas vezes pela

oportunidade política na manutenção da opressão pela falta de regulamentação

mínima dos direitos da classe popular. As ações coletivas eram travadas para

que direitos elementares sobre saúde, transporte, alimentação, trabalho,

moradia etc. fossem reconhecidos. O povo era tratado como “escravos

emergentes”, ainda sem direitos, apesar dos primeiros traços de um governo

populista, que surgia na primeira república, para abrandar a onda de revoltas.

Sobre as desigualdades sociais agravadas pela busca desmedida do

capital através da exploração do homem, Bulla (2003, p. 4) cita oportunamente

Marx e Engels:

Grande parte da obra de Marx e Engels (1982) se constitui

numa tentativa de mostrar ao movimento operário como o

modo de produção capitalista desvirtua a vida e as relações

sociais humanas, sob múltiplas formas, com o intuito de

satisfazer as exigências da reprodução do capital. A

consciência crescente da exploração e o agravamento dos

problemas sociais, ligados à acumulação capitalista, levaram

os trabalhadores a se organizar em movimentos e lutas por

melhores condições de vida e de trabalho.

Page 47: Rogério Pena Masi

47

Na América Latina destaca-se o grande, intensamente nacionalista e

violento movimento popular, anti-latifundiário, anti-imperialista e anti-Estados

Unidos denominado de Revolução Mexicana, que foi desencadeada em 1910

para, em princípio, resolver um problema político: a sucessão do Presidente

Porfírio Diaz. Entretanto, as massas populares em todas as regiões latino-

americanas aproveitaram a movimentação e logo se envolveram em uma luta

para exigir reformas econômicas e políticas. A luta terminou em 1917 com a

promulgação da nova e revolucionária Constituição mexicana, considerada

extremamente progressista e, segundo alguns, a primeira do mundo a

reconhecer as garantias sociais e os direitos coletivos dos trabalhadores,

conquistada graças à grande pressão popular. A Revolução Mexicana foi

considerada “a primeira revolução social do século XX”, sendo comparada à

Revolução Russa e à Revolução Chinesa (WOMACK, John. apud BETHELL,

2008).

Contudo, é interessante destacar a percepção de historiadores

profissionais dos efeitos causados pela Revolução Mexicana, quando

examinados depois de 1940:

[…] o desenvolvimento do México seguiu muito mais as linhas

do antigo regime do que as da alegada Revolução. As

instituições revolucionárias permaneceram formalmente

intactas e a retórica revolucionária continuou a fluir, mas os

benefícios para os camponeses e os trabalhadores foram

menores do que antes, ao passo que os negócios, sobretudo

as empresas norte-americanas, multiplicaram-se, cresceram e

converteram seus lucros num indicador do bem-estar nacional.

(WOMACK, John. apud BETHELL, 2008, p. 106).

Tal opinião leva a crer que a Revolução Mexicana foi mais uma luta pelo

poder, em que se envolveram, além dos operários, camponeses e miseráveis,

também a elite nacional e estrangeira, descontente com a sua situação, que

teria manipulado aqueles para atingir seus objetivos, e menos um movimento

social autêntico. Ademais, apesar de o movimento ter sido taxado de

revolucionário, “na prática, as reformas econômicas e sociais não foram muito

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48

diferentes das realizadas nos mesmos anos, sem guerra civil, no Peru, no Chile

e na Argentina”. (WOMACK, John. apud BETHELL 2008, p. 108).

As lutas sociais no Brasil, após a Revolução de 1930 até a Queda do

Estado Novo, marcam a segunda das etapas propostas por Gohn. O cenário

urbano passa gradativamente a ser objeto de atenção das políticas públicas e o

Estado aumenta a interferência na economia e na sociedade. O caráter das

lutas sociais adquire novos contornos, na medida em que as classes populares

começam a adquirir alguns direitos graças às mobilizações anteriores. As

ações coletivas concentram-se na realização dos parcos direitos já

promulgados e na sua ampliação, apaziguando a impressão de anarquia e

ilegalidade (GOHN, 2001a, p. 82). Destaca-se nesta época a fundação do

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campos/RJ, em 1932, constituído por

pequenos lavradores e cortadores de cana-de-açúcar. Considerado o primeiro

sindicato de trabalhadores rurais do Brasil, tornou-se modelo para outros

sindicatos criados posteriormente.

Nas décadas de 1940 e 1950 o movimento operário voltou a crescer

com relativa liberdade, tendo em vista a promulgação da Constituição Brasileira

de 1946 que, em termos gerais, era considerada uma Constituição liberal, uma

vez que assegurava aos cidadãos liberdade de organização, opinião,

propriedade, entre outras. Contudo, a referida Constituição estava alinhada

muito mais aos interesses dos latifundiários e dos empresários urbanos do que

aos trabalhadores.

Entretanto, em 1946, com uma conjuntura relativamente favorável, ou

menos repressora, a CGTB (Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil),

criada pelos comunistas e trabalhistas, reaparece juntamente com o Partido

Comunista do Brasil, sendo que este foi logo proibido.

Notadamente a partir da década de 1950, tanto no Brasil quanto em toda

a América Latina, houve crescimento extremamente expansivo e caótico das

camadas urbanas, acentuando ainda mais a brutal exclusão das classes

populares dos serviços e ações públicas mais básicas, fato este que continua

ocorrendo e sendo agravado ao longo das décadas seguintes (ARROYO,

2003). Até esta época os artesãos e pequenos produtores rurais

predominavam nos países localizados na América Central, e quando as

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49

indústrias começaram a se instalar na região, acabaram provocando a

migração do povo do campo para as cidades, forçando a execução acelerada e

precária de obras públicas de infraestrutura, construção de grandes edifícios e

parques, aperfeiçoamento do sistema viário e de transporte; trazendo a

“civilização” ao novo personagem social, o migrante, por meio do acesso a

pequenos progressos nas ciências, como os serviços médicos e os

medicamentos, e à educação “universal” (CARDOSO, 2008, p. 258).

O período compreendido entre meados de 1940 e 1964 ficou

denominado como populista ou nacional-desenvolvimentista. Nesta época, com

o processo de redemocratização instaurado no país após 1945, houve

multiplicação dos sindicatos, de partidos políticos e de ações coletivas a partir

da sociedade civil, todos muito ativos na reivindicação de múltiplas questões,

como novas políticas de controle social, notadamente para atender com uma

estrutura básica os grandes contingentes humanos, que se deslocavam do

campo para a cidade em busca do sonho de melhores condições de vida. Mas

que se viam explorados pelas grandes corporações internacionais, que aqui

aportavam, atraídos por benefícios concedidos por líderes governistas e baixos

salários. As reivindicações incluíam reformas de base, Reforma Agrária, direito

de greves de operários, reformas de Base na Educação, casa própria, entre

outros. Pela primeira vez o povo surge com algum poder de pressão no cenário

político nacional (GOHN, 2001a).

Até a década de 1960 a abordagem ortodoxa marxista, baseada na

práxis social revolucionária das classes exploradas, articulava a ação e a

concepção dos movimentos sociais, visando a transformação das estruturas

do Estado para a emancipação política e social e distribuição radical de bens,

através das lutas de classes entre a burguesia e o proletariado, utilizando como

referência a violência e a coerção como táticas de luta. Nesta época o país

continuava em forte processo de expansão industrial. Entre 1950 e 1962 o

fortalecimento dos movimentos sindicais e a migração do camponês para as

cidades gerou uma forte e crescente classe operária, que passou a se

organizar e se mobilizar participando ativamente dos acontecimentos políticos

e sociais do Brasil, conquistando a ampliação de seus direitos, como o décimo-

terceiro salário e férias em dobro.

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50

Contudo, a instalação da ditadura militar nos países latino-americanos

nas décadas de 1960 a 1980 foi marcada pela censura às liberdades

individuais, que se estabeleceu pelo uso da força. As ações coletivas que

buscavam justiça social e que ganhavam vigor no continente foram brutalmente

abafadas por esses governos autoritários.

No Brasil o regime autoritário e repressivo foi instituído em 1964, através

de um golpe de Estado perpetrado pelas Forças Armadas. Sua duração foi de

vinte e um anos. As ações coletivas mais relevantes durante este período

foram as manifestações de 1968 e as campanhas pelas “Diretas Já”

(GROPPO, 2005, p. 87).

Neste período a Igreja Católica, menos como instituição e mais pelos

seus padres, freiras e leigos através de suas práticas pastorais, teve grande

contribuição nas lutas sociais. A Teologia da Libertação, segundo informa

Scherer-Warren (1996), teve como objetivo, engajando-se nas lutas contra as

variadas formas de opressão, desencadear um processo histórico de libertação

dos povos latino-americanos para que o homem pudesse tomar seu lugar como

sujeito de seu destino pessoal e da história, reconstruindo sua dignidade

humana, solapada em sua vivência marginalizada. A Teologia da Libertação foi

criada e desenvolvida a partir do Documento do Conselho Vaticano II, nos anos

1960, que recomendava uma doutrina socialmente orientada.

Outros movimentos organizados internos da Igreja Católica reafirmaram

os princípios básicos de uma Igreja comprometida com os oprimidos3, em que

pesem forças conservadoras resistentes à divulgação da Teologia da

Libertação, porque esta representava um desafio à antiga e sólida aliança até

então existente entre a Igreja Católica, o Estado e as classes dominantes.

Na América Latina, entre 1968 e 1979, mais de 1.500 cristãos foram

aprisionados, exilados, torturados ou assassinados pelo seu comprometimento

com a Teologia da Libertação, ao adotarem uma postura mais enfática ao lado

dos oprimidos (os pobres, as mulheres, as crianças e jovens, os negros e os

3 A encíclica Populorum progressio, do Papa Paulo VI, dirigida especialmente à América Latina

para combater a miséria e a injustiça. A criação do CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano), em 1955, que proporcionou aos bispos da América Latina manifestarem e partilharem novas idéias relacionadas ao tema da opressão. A realização da Segunda e Terceira Conferência do Episcopado Latino-Americano, em 1968 e 1979, respectivamente, consolidando a mesma proposta. (SCHERER-WARREN, 1996, p. 34).

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índios) da América Latina em suas lutas por uma nova ordem econômica e

política, por sua libertação como pessoa humana, pela descoberta da sua

dignidade (SCHERER-WARREN, 1996).

Destacam-se alguns fatos que marcaram o período de meados da

década de 1940 ao início daquela de 1980 no Brasil: grande intervenção do

Estado na economia, início e ampliação de grandes e importantes obras de

iniciativa pública e privada, como rodovias, usinas, siderúrgicas, indústrias;

guerra fria; aprofundamento da exploração da mão-de-obra barata dos

migrantes do campo pelas grandes corporações internacionais que aqui

passaram a fixar seus negócios; fortes movimentos de esquerda e estudantis,

notadamente contra a repressão do regime militar; intensa articulação de forças

políticas no Brasil visando instalar uma nova sociedade no país, operando na

clandestinidade, em ações violentas; e diversas intervenções na sociedade

empreendidas pelo Estado por meio de políticas sociais de cunho clientelístico

(GOHN, 2001a).

O crescimento urbano acelerado e desordenado e a incapacidade (e

inércia e corrupção) do Estado de administrar este novo panorama continua até

os dias atuais. Desde os anos de 1980, em muito sob a vigência de novas

formas do capitalismo, em especial pelo avanço global do neoliberalismo, há

um novo ciclo de recuo da organização social e também o aumento dos

processos de exclusão social em toda a América Latina, multiplicando a

pobreza (que nunca foi solucionada), a violência organizada e desorganizada,

a anomia defensiva e de outras condutas de crise.

Na década de 1990 em diante, o MST (Movimento dos Trabalhadores

sem Terra), as ONGs (Organizações não Governamentais) e o Terceiro Setor

se destacaram ao lado das lutas sindicais como forma de manifestação em prol

da construção de um conjunto de práticas democráticas:

Alguns deles não são exatamente novos, mas é nesse

momento que se tornam mais expressivos, tornando-se

conhecidos para além das fronteiras de seus países de origem.

São movimentos rurais, como o MST (Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem-Terra) no Brasil; urbanos, como os

piqueteiros na Argentina; de caráter étnico, como os

movimentos indígenas na Bolívia, Peru, Equador e México.

(GALVÃO, 2008, p. 8).

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Para Gohn (2003), os movimentos sociais do novo milênio são distintos

dos das décadas de 1970 e 1980, embora, naturalmente, existam pontos de

convergência. Antes a luta era focada em causas e projetos coletivos de vida,

“olhavam para o outro”, lutavam pelo direito de terem direitos. Enquanto que

atualmente, em decorrência de uma conjuntura social e política contraditória,

os movimentos são movidos principalmente por interesses individuais por um

lado, e, por outro, há um Estado que reconhece e “legitima” as ações coletivas

e age como se as respeitasse, mas que, no fundo, as controla de cima para

baixo e define suas estruturas, enfraquecendo sua autonomia e propósitos.

Esse breve retrospecto histórico leva a algumas considerações.

Observa-se que os movimentos das classes populares a favor de melhores

condições de vida estão aninhados num conjunto de circunstâncias complexas,

marcadas, no mais das vezes, por diversas situações-limite, em termos de

sobreviência. E, também, a importante força de lideranças, capazes de

catalisar os anseios dos diversos grupos populares. Nota-se, da mesma forma,

pensando-se em termos de Brasil, poucas mas importantes ações coletivas, a

exemplo daquelas ligadas à Teologia da Libertação. Daquelas impulsionadas

pelo exemplo e modelo freireano, mais recentemente pelas escolas do MST, ou

de ações pontuais no interior de movimentos sociais rurais e urbanos, do

interesse ou dos esforços por uma Educação Popular “de base”, ou seja, de

uma prática educativa para a vida pública, entendida essa como ação política.

Argumenta-se aqui que essa é fundamental para que o processo de

consolidação de uma condição de luta por igualdades sociais, e para o

despertar da consciência política cívica, vigore sempre. Significa caminho não

só para a emersão de lideranças, mas para a reordenação de perspectivas da

organização da vida social. Sem essa, subsistirão, por exemplo, movimentos

como esses, acima mencionados? Como favorecer uma educação para a vida

pública, principalmente em contextos como aqueles contemporâneos urbanos,

caracterizados por uma concepção marcadamente alienada e individualista?

Nos próximos capítulos se discutirá a questão da educação para a

autonomia, e os rumos que essa pode tomar, em termos de uma educação

sociocomunitária, pautada por uma perspectiva freireana.

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2. Educação para a Autonomia

Não há educação sem amor. O amor implica luta contra o

egoísmo. Quem não é capaz de amar os seres inacabados não

pode educar. Não há educação imposta, como não há amor

imposto. Quem não ama não compreende o próximo, não o

respeita. (FREIRE, 2002, p. 15)

Na atualidade, parte da movimentação dos atores sociais passou a ter

como foco, no Brasil, a luta para que os direitos já reconhecidos pela

Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro

de 1988, sejam respeitados, efetivados. Desta forma, temos como objetivo

principal no presente capítulo refletir sobre como essa luta vem se dando,

buscando encontrar caminhos que favoreçam seu sucesso. Argumentar-se-á

que uma condição necessária para tanto está na aprendizagem de formas de

organizar-se coletivamente, como na autoadvocacia, e de olhar para a

realidade de maneira crítica, ou seja, compreendendo as desigualdades de

modos de vida não como naturais, mas como historização do jogo de poder e

dominação, socialmente estabelecido.

Muitos direitos foram conquistados por meio das ações coletivas e lutas

sociais, as quais contribuíram e continuam contribuindo sobremaneira na

transição para a democracia e a sua consolidação no Brasil; na conquista

permanente dos direitos da cidadania, ainda hoje negados ou parcialmente

reconhecidos.

Entretanto, não se pode considerar que a democracia, o Estado

Democrático de Direito, esteja consolidado plenamente no país enquanto o

próprio Estado constranger os cidadãos, que estão sob sua tutela, a buscarem

o Poder Judiciário a fim de exercerem efetivamente seus direitos, já

reconhecidos legalmente, o que tantas vezes acontece quando o Poder Público

não garante aos indivíduos seu direito mínimo à igualdade de oportunidades, à

integridade física, psíquica e moral, seu direito à educação, à saúde e à

habitação, à liberdade de expressão e participação política, enfim, quando o

Estado não garante aos cidadãos o acesso ao estado de bem-estar, que inclui

o respeito à dignidade humana. Menos ainda enquanto este mesmo Estado

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mantiver estruturas políticas que desvalorizam e sucateiam o sistema

educacional e o poder judiciário, dificultando, e muitas vezes inviabilizando, o

reconhecimento, o acesso e o alcance da efetivação de direitos.

Estamos diante de uma situação em que, ao mesmo tempo em que a

coletividade mostrou ser capaz de conquistar direitos através de movimentos e

lutas, ainda há um distanciamento entre o reconhecimento legal desses direitos

e a falta da implantação de políticas sociais e educacionais voltadas para a

construção de uma educação crítica, emancipatória e libertadora do indivíduo;

a que fomentasse, exatamente, uma organização social propulsora de outras

tantas ações coletivas e lutas sociais. Na falta dessa educação, apenas uma

pequena parcela da população tem ciência de alguns de seus direitos, os quais

estão relacionados, via de regra, a questões elementares, como o fornecimento

de medicamentos listados pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e outros de

cunho assistencialista, como é o caso do “Bolsa Família”.

Ou seja, ainda que o Direito já tenha pontos de contato com a justiça,

especialmente a social, o indivíduo que tem necessidade de que seus direitos

se transformem em fatos concretos, o indivíduo que depende da efetivação de

seus direitos para que consiga sobreviver, para em um segundo momento viver

com o mínimo de dignidade, ainda mostra não conhecer seus direitos ou os

caminhos a trilhar para sua efetivação. Outras vezes parece não se considerar

deles merecedor, tal o nível de alienação em que é mantido.

Para que tenhamos êxito em nosso tentame é imprescindível que os

indivíduos conquistem sua autonomia, e por autonomia entendemos, neste

trabalho, como uma produção histórica e social, a liberdade de o indivíduo agir

e tomar decisões com consciência e capacidade crítica, mediante o respeito à

vontade pessoal e ao grupo ao qual pertence, e assumir as responsabilidades

delas decorrentes. É esse o conceito de autonomia de Freire (2002, 2011a,

2011b), já enunciado na introdução, que a compreende como um processo

resultante do desenvolvimento do indivíduo relacionado ao fato dele tornar-se

capaz de resolver questões por si mesmo, de tomar decisões sempre de

maneira consciente e pronto para assumir uma maior responsabilidade e arcar

com as consequências de seus atos.

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2.1. A Educação como história possível de transformação

As mudanças sociais alcançadas em decorrência das lutas e

movimentos empreendidos em todo o mundo, inclusive os relacionados direta

ou indiretamente à educação, confirmam o entendimento de Paulo Freire

quanto ao que esse denomina de “história como possibilidade”. Freire opunha-

se ao futuro como algo inexorável e entendia a história como possibilidade de

transformação, reconhecendo a “importância da decisão como ato que implica

ruptura, a importância da consciência e da subjetividade, da intervenção crítica

dos seres humanos na reconstrução do mundo” (2001a, p. 47).

Essa forma de conceber a Educação se coloca como possibilidade

outra para as teorizações feitas por diversos autores das décadas de 1970 e

1980, dentre eles Louis Althusser (Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado,

1970) e Bourdieu e Passeron (A reprodução, 1974), que apontam para o papel

reprodutor da escola, como instrumento de dominação social. Enquanto

Althusser se inspira nas teses de Marx, aqueles optam pelo referencial

weberiano, argumentando que a “função” da escola é a de reproduzir a

estrutura social através de um trabalho de "inculcação" de

um habitus favorável à manutenção de uma estrutura de classes. A propósito

de Althusser, Dore comenta (2006, p. 1):

Althusser situa a instituição educacional como um dos aparelhos ideológicos do Estado dominantes nas formações sociais capitalistas maduras (idem, ibid., p. 60-61). Como os aparelhos ideológicos do Estado reproduzem as relações de produção, então a escola realiza essa função. Por meio da aprendizagem, é massivamente inculcada a ideologia da classe dominante com o objetivo de reproduzir as relações de exploração que caracterizam a sociedade capitalista, embora esse mecanismo seja camuflado e a escola apresentada como um terreno neutro. Assim, é a ideologia que faz os sujeitos pensarem que o sistema escolar é universal, quando, ao contrário, ele serve para manter os interesses dos grupos dominantes.

Na década de 1970 chega ao Brasil a análise da escola sob o enfoque

da teoria da reprodução produzida por estudiosos norte-americanos. Os

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sociólogos Bowles e Gintis (1976) afirmam que a escola eterniza as formas de

consciência, personalidade e de comportamento, necessárias para a

reprodução das relações capitalistas de produção. Para Carnoy (1977, p. 14) a

educação formal constitui parte da “dominação imperialista”, exercendo

atividades de acordo com os interesses dos colonizadores. As fortes críticas à

escola pública vinham de intelectuais pertencentes a países que tinham

universalizado a escola fundamental e média (Estados Unidos, França e

Inglaterra), enquanto que no Brasil sequer as primeiras séries do ensino

fundamental tinham sido universalizadas.

Freire, teorizando contra uma compreensão mecanicista - e positivista -

da história como “o retorno do mesmo”, que entende o futuro como repetição

predeterminada, inexorável, do passado, defende que a “função reprodutora”

da escola não é acontecimento inevitável. Entende que é imprescindível para a

educação popular, como um processo de superação do senso comum - do

“sempre foi assim”, do “deixa como está”, - em direção a uma compreensão

mais esclarecedora do mundo, que a coletividade deva ter suas experiências,

experiências decisórias e, por meio dessas, (re)inventar o futuro.

Argumenta-se a favor da rejeição da ideia de uma escola reprodutora da

sociedade desigual, da educação bancária, que termina por manter alienados

os oprimidos. Desta forma, a apreensão da história como possibilidade para

todos os indivíduos como sujeitos dela, e o conhecimento e compreensão da

realidade “desocultada” dos fatos passados, que construíram o mundo como é

hoje, significam a construção de uma consciência crítica. Potencialmente capaz

de transformar o marginalizado em um sujeito livre e autônomo, capaz de

interferir conscientemente na história da sociedade em que vive, de forma

ética.

Como processo de conhecimento, formação política, manifestação ética, procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educação é prática indispensável aos seres humanos e deles específica na História como movimento, como luta. A História como possibilidade não prescinde da controvérsia, dos conflitos que, em si mesmos, já engendrariam a necessidade da educação (FREIRE, 2001a, p. 10).

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Groppo (2011, p. 75) atribui o termo alienação ao “jovem Marx” quando

se refere “à incapacidade dos seres humanos (dominados) em compreender os

fundamentos da realidade social, em decifrar as bases materiais e históricas do

presente […] ao tomarem como natural o que é histórico”; sendo este estado

de coisas alimentado pelos “dominadores” e pelo Estado como representante

dos interesses destes. Ou pela “sociedade burguesa”, que, para Marx (1985),

oculta ou altera a realidade por meio de ideologias coercitivas, utilizando-se de

diversos mecanismos com a finalidade de exploração contínua e duradoura dos

oprimidos. Ocorre, então, a negação da historização da opressão, dessa como

construção histórica: humana.

Na negação dessa historização decreta-se a “conformação” social, a

transformação como impossibilidade, como “beco sem saída”, discurso

alienante e castrador tantas vezes repetido pelas vias educacionais. Scocuglia

(2001, p. 48) afirma que em decorrência disso “A participação comunitária, de

classe, individual, de grupos de pais, alunos, professores, estaria impedida ‘por

decreto’”.

E a ideologia que professa a história como reprodução de desigualdades

está tão arraigada, especialmente nos “esfarrapados”, que esses pouca ou

nenhuma opção encontram para confrontar tal ideia. Ideologia, que dessa

forma, passa a ser dominante, a “viver” dentro de nós, efetivando-se em

práticas sociais que naturalizam e tornam ‘hereditários’ os mecanismos de

exclusão. Temos exemplos práticos.

Participamos voluntariamente de uma entidade sem fins lucrativos,

denominada Grupo Espírita Caminheiros, que objetiva a assistência

humanitária e o desenvolvimento social da população que vive em uma

periferia miserável da grande Campinas.

No contexto da investigação realizada, quando da apresentação de uma

proposta de inclusão digital para oito crianças com idade entre 8 e 13 anos de

idade, em 08 de outubro de 2011, percebemos que dois deles não

frequentavam a escola, porque abandonaram-na, sem que tal fato parecesse

ter causado “espanto” ou qualquer censura séria por parte de seus pais ou

responsáveis, ou mesmo temores outros que não a perda do benefício da

bolsa-família ou o a censura do Conselho Tutelar.

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Outros, que representam a maior parte, apesar de comparecerem à

instituição de ensino com certa regularidade, mostram parecer descontentes e

sem motivação para as aulas e se dirigem à escola com o intuito de encontrar

os amigos e praticar esportes, também com o conhecimento e aquiescência

tácita de seus responsáveis. A partir desses indícios, foi criada uma espécie de

“ficha de inscrição” para o programa de inclusão digital, contendo informações

básicas sobre essas crianças, com o consentimento dos pais/responsáveis. Ao

final solicitamos que as crianças escrevessem seu nome, o que seria o

equivalente à assinatura de um documento, para que incorporassem uma

noção de seriedade, responsabilidade, compromisso com o programa. E duas

crianças informaram não saber escrever seu nome completo, mas apenas

“desenhar” seu primeiro nome, revelando, em algum grau, seu analfabetismo.

Tal fato fez com que a proposta inicial de inclusão digital - prevista para

letrados - fosse modificada, envolvendo atividades relacionadas à alfabetização

e ao letramento, com a utilização de computadores.

Consideramos que essas explanações favoreçam a compreensão da

argumentação referente à cristalização da ideologia acerca das concepções

fatalistas da história, em termos das desigualdades sociais, que se mostra tão

impregnada em nossa sociedade. Considerando-se os discursos dos adultos

responsáveis por essas crianças, colhidos no mesmo contexto da pesquisa,

num momento de diálogo direcionado à importância atribuída por eles à escola

para a vida dos filhos/dependentes, observa-se que as respostas se mostram

impregnadas pela ideologia de que a escola é necessária, resposta que aflora

quase que mecanicamente.

Contudo, as explicações desses mesmos adultos quanto ao por quê a

escola é necessária, deixa transparecer outras facetas desse pensamento: o

interesse em que as crianças aprendam o básico possível, para que alcancem

rapidamente a condição de exercer alguma atividade remunerada, a fim de que

possam colaborar para atender as despesas da família.

A ideologia de uma história de cartas definitiva e irremediavelmente

marcadas e sem esperanças fomenta e agrava a visão imediatista, causada e

agravada pela miséria econômica e pela alienação, provocando desprezo pela

educação formal. O estudo é visto como perda de tempo, já que a condição

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econômica em que as famílias se encontram não será alterada pelo grau de

instrução de seus membros.

Concordamos com Freire (2011c, p. 33) quando afirma que “Se essa

dominação interna e externa fosse completa, definitiva, nunca poderíamos

pensar na transformação social. Mas a transformação é possível […]”, porém é

muito difícil e exige o exercício ininterrupto de fé inabalável no ser humano, na

sua capacidade de transformação, uma confiança e um amor tipicamente

freireanos. É preciso aguçar nossa capacidade de estranhamento, tendo em

vista, repetimos, que as desigualdades sociais não são naturais.

Enquanto seres humanos conscientes, podemos descobrir como somos condicionados pela ideologia dominante. Podemos distanciar-nos da nossa época. Podemos aprender, portanto, como nos libertar através da luta política na sociedade. Podemos lutar para ser livres, precisamente porque sabemos que não somos livres! É por isso que podemos pensar na transformação. (FREIRE, 2011c, p. 33).

2.2. A Educação para a autonomia e a Pedagogia da Libertação

A conscientização do oprimido por meio de uma pedagogia da libertação

das classes populares, baseada em uma política de emancipação, traduz-se na

abertura à compreensão dos mecanismos e das estruturas sociais como

formas de dominação e violência.

Não pode haver espaço para projetos políticos que não apostam na

capacidade crítica das classes populares, em uma educação para a autonomia

e para a capacidade de se auto-dirigir, uma educação que forma cidadãos

plenos ou, como defendia Gramsci, uma educação para a “contra-hegemonia

dos subalternos” (SCOCUGLIA, 1999, p. 342).

A educação de qualidade é sempre uma questão política, em que se

prioriza o ato de conhecimento em busca da consciência crítica, crendo que os

indivíduos serão capazes de reinventar o mundo, de colocar-se e agir conforme

uma postura de “sujeitos-objetos” da História, de modo a reconhecer a

natureza política desta luta, de uma “Natureza política que descarta práticas

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60

puramente assistencialistas de quem pensa comprar um ingresso no céu com o

que colhe na terra de sua falsa generosidade.” (FREIRE, 2001a, p. 19). É por

isso que o educador consciente deve estar atento, observando com olhar

crítico e lúcido as práticas educacionais, e é por isso que não há pedagogia

neutra, conforme nos alerta Freire. Toda ação pedagógica é, inexoravelmente,

uma ação política, no sentido de que se trata de transformar - ou de fazer calar

- vidas.

O discurso quanto a uma educação gratuita e de qualidade para todos e

todas é tema recorrente na Educação Brasileira. Nesse sentido, quando Freire

escreve sobre isso, defendendo o lutar para construir uma tal “utopia”, ele se

refere a uma utopia “concreta” ao invés de uma utopia abstrata, uma utopia

enraizada no presente, sempre operando na “tensão entre a denúncia de um

presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser

criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens”

(FREIRE, 1997a, p. 47). E esse sonho, essa utopia, exige que o professor ou

educador supere seus próprios medos, inclusive o medo de inovar, de ser

criativo, libertador, o medo de ir contra o sistema dominante, o medo de não

ser compreendido ou aceito pelos que ainda não estão preparados para a

“desocultação” da ideologia que domina e adormece as consciências, daqueles

que não estão preparados para terem suas consciências libertadas, iluminadas.

Aqueles que sonham com uma educação popular crítica emancipadora

de qualidade, que ajuda a gerar, a criar meios que contribuam para que uma

transformação revolucionária na sociedade ocorra, não podem ter medo de ter

medo, devem encarar seu medo com naturalidade e conviver pacificamente

com ele. Sentir medo é uma manifestação de quem está vivo, tomando o

cuidado para que este sentimento jamais os domine e os paralise, porque “[…]

o medo vem de seu sonho político, e negar o medo é negar o sonho” (FREIRE,

2011c, p. 96). O medo não é uma abstração, é algo muito concreto. Ao

trabalhar contra a ideologia dominante em uma sociedade, o educador está

contestando o poder e, por este motivo, é real a possibilidade de perder o

emprego ou de sofrer outros tipos de represália. Mas se o educador está

seguro de seu sonho político em relação à educação então deverá dominar

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este medo e estabelecer limites para o seu enfrentamento, os limites da sua

criação, descobrir até onde está disposto a se colocar em risco.

É possível conhecer esta fronteira através do chamado “mapa ideológico

da instituição”, como sugerido por Freire (2011c), que consiste em conhecer,

na prática, o espaço em que o educador poderá atuar de forma libertadora.

Brandão (2005, p. 18) afirma que “o bom de se aprender a ler-o-mundo em que

se vive é que, aos poucos, os nossos medos vão desaparecendo. Pois a gente

só tem medo é do que não entende”.

É importante que o educador tenha consciência de que está agindo

contra a ideologia dominante, está nadando contra a corrente, o que significa

correr e assumir riscos.

Coragem essa que foi demonstrada por McLaren (2007) quando,

relatando suas experiências pessoais como educador que utiliza as bases da

pedagogia crítica de Freire na universidade onde leciona - UCLA (Universidade

da Califórnia, em Los Angeles, nos conta sobre as reações adversas por ele

enfrentadas. De acusações de “comunista” àquelas de que vem “tentando fazer

lavagem cerebral na juventude norte-americana”, ao risco de ser demitido a

qualquer instante. Em que pese o fato de não demonstrar qualquer temor,

arrependimento ou sinal de alteração da direção de seu comportamento frente

a seus alunos, ele ressalta o fato de “ter tido sorte” de até o momento a

administração da universidade não ter tomado nenhuma medida visando

silenciá-lo. Ainda que sob a concordância do governo Bush, a partir de 2001,

tenha sido criado um clima de medo ao introduzir medidas legais em nove

estados para suprimir a liberdade acadêmica nas universidades, transformando

professores que seguem as bases da pedagogia freireana em “simpatizantes

do terrorismo”.

Desta forma, o educador libertador deve ter clareza política - porque

educação é política -, para que possa ter esta coragem. A coragem de quem

tem um sonho a perseguir e deseja torná-lo realidade, porque são sonhos

concretos e nos quais se tem convicção. Portanto, o professor deve se

descobrir como político e definir a favor e contra o que está educando, e

questionar-se: “Como conciliar minha prática de ensino com minha opção

política?” (FREIRE, 2011c, p. 82). Ou como diz o Gato de Cheshire, em Alice

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no País das Maravilhas: “Se você não sabe para onde está indo, qualquer

estrada vai te levar lá”. E um educador que tenha optado em favor de uma

educação libertadora deve pô-la em prática de forma coerente, de maneira a

saber ao menos aonde quer chegar, embora nem sempre se saiba por qual

estrada... Um bom ponto de partida é não ser autoritário na relação com os

estudantes/aprendentes, mas também não cair num vazio laissez-faire, mas

ser democrático, responsável e diretivo.

Claro que o professor que se pergunta a favor de quem e contra quem está educando também deve estar ensinando a favor e contra alguma coisa. Essa “coisa” é o projeto político, o perfil político da sociedade, o “sonho” político. Depois desse momento, o educador tem que fazer sua opção, aprofundar-se na política e na pedagogia de oposição (FREIRE, 2011c, p. 82).

O educador deve também conhecer e respeitar os medos e as barreiras

construídas pelos marginalizados, chamadas de “imunizações” por Freire, sem

o que inviabilizará quaisquer dos seus esforços. O medo e as barreiras que

podem surgir nos “corações”, nas almas, dos oprimidos acabam por gerar a

não crença em suas capacidades. Geralmente isso se traduz em sentimentos

pessoais e coletivos de baixa autoeficácia que, conforme Bandura (2008, p.

101), são, essencialmente, “percepções que os indivíduos têm sobre suas

próprias capacidades […] proporcionam a base para a motivação humana, o

bem-estar e as realizações pessoais.”

E, em consequência desses sentimentos, muitos indivíduos oprimidos,

ao invés de se irmanarem verdadeiramente com outros em semelhante

situação para juntos, fortalecidos, buscarem a solução de seus problemas,

evitam o contato social com os que já despertaram da letargia causada pela

opressão e também por aqueles que já se desalienaram e passaram a lutar

pela liberdade e autonomia de si próprios e da coletividade. Porque supõem

que serão rejeitados ou ridicularizados, ou porque, desanimados, não

vislumbram perspectivas para qualquer alteração positiva em relação as suas

condições de existência.

Observa-se a cristalização da baixa autoeficácia em populações de

camadas populares, sentimento nomeado por Freire de “autodesvalia”, ou de

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63

inferioridade; características da alienação que amortece o ânimo criador.

Outrossim, o desânimo e a “autodesvalia” são alimentados pela propaganda

ideológica capitalista neoliberal, que discursa no sentido de que qualquer

pessoa pode progredir quanto desejar, pode alcançar o “sucesso financeiro”,

basta trabalhar duro, tendo em vista que vivemos sob a égide política da “livre-

iniciativa” e do capitalismo democrático, que conferiria oportunidades justas e

equânimes a todos. Contudo, se o indivíduo fracassar, a culpa é

exclusivamente sua. E fracassam muitos, sem ao menos se atreverem a tentar,

porque marcados pela crença num estado “necessário” de conformação social.

Entretanto, de acordo com a própria dialética freireana, dentro de cada

“oprimido” vive um opressor, que pode, desde que em condições “apropriadas”,

oprimir aos demais. Observa Andreola (apud STRECK, 1999, p. 73):

[…] a opressão se configura como uma “dualidade existencial” dos oprimidos, que se tornam seres duplos e contraditórios. Eles hospedam em si o opressor, num processo de introjeção da imagem do mesmo, que se traduz em sentimentos opostos: de rejeição, aversão e ódio, mas, ao mesmo tempo, de admiração, adesão e identificação – torna-se como ele, transformando-se, inclusive, em opressores de outros.

Para o oprimido, plenamente contagiado pelas ideias dominantes e

esfarrapado por uma economia de mercado extremamente excludente e

desumanizadora, “ter” é muito mais importante do que “ser”, porque é somente

através do “ter” que ele deixará de ser uma “coisa” para tornar-se alguém: um

opressor.

O sistema, que hipnotiza profundamente os dominados, alterando a

história e ocultando a realidade que fundamenta e sustenta a globalização

capitalista selvagem, que visa à permanência desses indivíduos oprimidos

como seres inferiores, leais, irremediável e perpetuamente submetido aos

dominadores, falsamente generosos, violenta, limita, interdita, proíbe o

oprimido de ser mais. A única forma que o dominado entrevê de ser ouvido e

respeitado é se submetendo e entrando no jogo do mercado capitalista, no qual

o capital ganhou o status de sujeito, e transformando o dominado em zumbis,

pelas mercadorias que supostamente lhe pertencem. Portador de alguma

riqueza, conquista a posição de consumidor e passa a ser respeitado e

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admirado pelos oprimidos. Torna-se um opressor alienado, que continua sendo

conduzido pela ideologia dominante, mas agora satisfeito com a sua nova

condição. Passa a adotar uma postura individualista e egoísta, vampirizado e

encantado pelas mercadorias e pela ânsia desenfreada de seu acúmulo.

Na esfera da sociabilidade, levantam-se utilitarismos como regra de vida mediante a exacerbação do consumo, dos narcisismos, do imediatismo, do egoísmo, do abandono da solidariedade, com a implantação, galopante, de uma ética pragmática individualista. É dessa forma que a sociedade e os indivíduos aceitam dar adeus à generosidade, à solidariedade e à emoção com a entronização do reino do cálculo (a partir do cálculo econômico) e da competitividade (Milton SANTOS apud GROPPO, 2011, p. 96).

Aqueles que se submetem passivamente ao poderio da ideologia

capitalista não lutam contra ela, mas também não exaltam Mamom ou o deus

Moloch4, são considerados e rotulados como “preguiçosos”, o cúmulo do ser

sem valor, numa sociedade em que se trabalha para a exploração e a

acumulação do capital, porque os dominados não demonstram iniciativa para

saírem da miséria. Impressionante que não são apenas os dominadores que

assim os rotulam, mas também outros oprimidos e explorados. Uma vez mais

nos deparamos com a figura do dominado exercendo a opressão em

decorrência da internalização das ideias dominantes, que conduzem seus

pensamentos, atos e hábitos sem que se apercebam. Sobre esses

“preguiçosos” assim se coloca Freire (2011a, p. 62):

[…] é o homem simples esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. Mitos que, voltando-se contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade. Ao mesmo tempo, porém, inclinando-se a um gregarismo que implica, ao lado do medo da solidão, que se alonga como “medo da liberdade”, na justaposição de indivíduos a quem falta um vínculo crítico e amoroso, que a transformaria numa unidade cooperadora, que seria a convivência autêntica.

4 Mamom e Moloch são deuses ou demônios representantes ou relacionados à avareza, à

riqueza e à iniqüidades, conforme interpretações de textos bíblicos.

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É lamentável, porque a conscientização, segundo Freire (2011a), é o ato

no qual o indivíduo reconhece-se a si próprio, distanciando-se do animal, em

que reconhece ao outro e ao mundo, para então passar a poder entender,

pensar, optar e decidir para agir. O educador, na busca incessante da

manutenção da transformação crítica, que potencia uma ação emancipadora,

se reinventa para que a prática educativa, notadamente na educação popular,

seja eficiente. O ensino libertador não pode ser padronizado porque o que é

eficiente, gerando resultados satisfatórios para um grupo, pode fracassar em

outro, aparentemente semelhante. Há uma série de variáveis que interferem

tanto na aquiescência ao convite libertador quanto na sua resistência (ou não)

à transformação. “É a ação criativa, situada, experimental, que cria as

condições para a transformação, testando os meios de transformação” (SHOR,

2011c, p. 51).

E os fracassos não podem contaminar negativamente os

professores/educadores ao ponto de firmarem-se numa pedagogia da

“transferência” de conhecimento. Devem ter paciência e acreditar. Freire

(2011c, p. 50) nos alerta que “A ideologia tradicional é tão poderosa que

precisamos de êxitos para sentir que estamos certos, sobretudo os jovens

professores”. O fracasso deve ser encarado com naturalidade pelo professor

porque ele não pode impor a pedagogia progressista libertadora contra a

vontade de quem não deseja recebê-la.

Há muito tempo os estudantes/aprendentes estão acostumados com

uma ideologia dominante, construtora de uma política pedagógica baseada em

uma “aprendizagem” passiva e rejeitam qualquer mudança que represente o

despertamento crítico do indivíduo através do esforço intelectual. Os

estudantes entorpecidos e habituados a serem objetos-receptáculos e

depósitos passivos de informações, ideias e valores prontos têm dificuldade em

entender e acreditar em um professor/educador que não lhes empurre o

conhecimento goela abaixo, que os respeite verdadeiramente e os trate como

sujeitos dentro do processo. Ademais, os educadores devem ter consciência de

que não podem, sozinhos, transformar a sociedade.

Mas a educação pode transformar as pessoas que, por sua vez,

transformam o mundo. Os educadores devem reconhecer seus limites e

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também os limites da educação libertadora e chegar até esses limites, porque a

transformação social é feita de muitas tarefas, dentre as quais está situada a

tarefa do educador. Freire diz que “a educação não é a alavanca da

transformação social, mas sem ela essa transformação não se dá” (1997b, p.

35).

Escutar, refletir e engajar-se, com responsabilidade, ética e estética,

conhecimento científico e disciplina, raiva, rebeldia, coragem e indignação, com

esperança e paciência impaciente. O professor/educador deve desenvolver

uma educação dedicada a contribuir com a transformação da sociedade,

desvelando a realidade opressora de nossa sociedade, “desocultando” o que

se passa, como e por que, além de situar na história o surgimento de tais

condições. Não pode ter medo de questionar o conhecimento acadêmico e o

senso comum e deve ter claridade política para saber lidar com a perspicácia

política dos dominadores.

É muito importante que o educador parta do conhecimento do aluno no

processo de ensino-aprendizagem, sem descrença, sem menosprezo,

respeitando seus sonhos, suas frustrações, seus medos, desejos e dúvidas. A

aprendizagem é mais eficiente se os novos conhecimentos a serem

construídos forem relacionados com os saberes anteriores dos

alunos/aprendentes. O educador deve dialogar. A educação só é possível

quando o educador educa ao educando e o educando ao educador. O objetivo

do professor é construir a autonomia juntamente com o aluno/aprendente,

horizontalmente. Esta é a finalidade da educação.

Freire pensava que a educação e a pedagogia realizam-se via diálogo,

que prioriza o ato de conhecimento em busca da consciência crítica. O diálogo

no sentido freireano, não é mera técnica. Um diálogo que engana porque a sua

prática nos parece simples, mas não é. Para Buber (1982) o diálogo genuíno,

que não precisa estar revestido de palavras, só se dá quando em condição de

plena reciprocidade, quando o indivíduo experiencia a relação também “do lado

do outro”, sem, contudo, abdicar da especificidade própria. Para Freire, ensinar

é uma forma de transformação dialética tanto do professor/educador quanto do

estudante/aprendente, em que professores atentos podem aprender muito com

os estudantes no silêncio, através de seu comportamento, por sua condição,

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enquanto a fala deve ser tomada “como um desafio a ser desvendado, e nunca

como um canal de transferência de conhecimento” (2011c, p. 74).

Estamos habituados ao “conhecimento” periférico e memorizado e não

ao diálogo ético, diálogo da investigação, da pesquisa, do “desocultamento”.

Diálogos estes que estão intimamente ligados à criticidade, sem o que não há

emancipação e não há verdadeira democracia, verdadeira educação

democrática que, por sua vez, deve ser fundamentada na crença no ser

humano. A crença de que o excluído deve discutir seus problemas e debatê-

los, analisar sua realidade juntamente com outros, formar uma discussão

criadora, trocar idéias, trabalharem-se mutuamente, a fim de chegar aos meios

para o pensar autêntico, aquele que abre perspectivas e novos horizontes de

possibilidades. Que confere autonomia.

Os professores/educadores não podem aceitar que tolham seu dever de

ajudar o aprendente a desvelar o mundo. Não se pode ficar escondido atrás de

um ensino conteudista, enquanto tantas questões necessárias à vida precisam

ser discutidas, debatidas, aventadas. Uma educação libertadora e para a

autonomia significa também lutar incansavelmente para transformar para

melhor a escola pública, promover sua democratização e a qualidade, lutando

contra todas as formas de elitismo e de autoritarismo e contra todos os

tentáculos perversos de exclusão. Para tanto, é imprescindível que o educador

corajoso tenha, além da claridade política já evidenciada, coerência,

competência pedagógica e científica, para que possa confrontar os atuais

desafios que lhe estão postos sem um otimismo ingênuo e/ou um pessimismo

fatalista. Mas encarar com inteligência a história como possibilidade. Desta

forma, para que a pedagogia libertadora e emancipadora seja eficiente, tanto

no âmbito classificado “oficialmente” como formal quanto no não formal, é

fundamental que o educador tenha uma boa formação, pois há “saberes

necessários à prática educativa”, como dizia Freire (2002, p. 51).

Acreditamos que a classificação (equivocada) do sonho de uma

“educação pública popular”, uma “escola pública cidadã”, como quimérico tem,

basicamente, duas origens: a incapacidade do ser humano em amar; e a falta

de competência da maior parte daqueles que desejam educar de forma crítica

e libertadora. O amor, conforme professado por Freire, um amor ativo,

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transformador, dialogal, participante, generoso, humilde, responsável, um amor

que não espera ser amado e não aguarda recompensa alguma, que não

espera nada em troca.

Em relação às competências profissionais é imprescindível que a política

educacional brasileira confira condições ao educador para que ele tenha, além

da adequada formação técnica, a criação de condições para seu

aperfeiçoamento contínuo. Uma formação continuada na qual seja realizada

constantemente uma reflexão crítica sobre a sua prática, e que lhe seja paga

uma remuneração digna, também, conforme afirma Gadotti ao descrever o que

Freire considerava necessário para ser professor (2007, p. 44), em uma quase

transcrição dos escritos deste em a Pedagogia da Autonomia:

[…] rigorosidade metódica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, ética e estética, corporificar as palavras pelo exemplo, assumir riscos, aceitar o novo, rejeitar qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecer e assumir a identidade cultural, ter consciência do inacabamento, reconhecer-se como um ser condicionado, respeitar a autonomia do ser do educando, ter bom senso, ser humilde, tolerante, apreender a realidade, ser alegre e esperançoso, estar convicto de que mudar é possível, ser curioso, ser profissionalmente competente, ser generoso, comprometido, ser capaz de intervir no mundo. Ensinar exige liberdade e autoridade, tomada consciente de decisões, exige saber escutar e reconhecer que a educação é ideológica, exige disponibilidade para o diálogo e, finalmente, exige querer bem aos educandos.

2.3. Formas, tempos e espaços para uma Pedagogia da Libertação

O desenvolvimento da educação libertadora pode se dar em diferentes

espaços e tempos educacionais. Um desses está no interior dos movimentos

sociais, local onde Freire gostava de trabalhar. Os movimentos sociais ou

“marchas”, como a esses se referia Freire, marcha dos que não têm escola,

marcha dos que se recusam a uma obediência servil, marcha pela qualidade

na prestação de serviços públicos à saúde, marcha dos que querem ser e

estão proibidos de ser, marcha pela ecologia, marcha pela decência, marcha

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por uma educação pública popular e crítica, dentre outros, representam

expressões da vida política e cívica do país, porque é preciso “brigar”, no

sentido de empreender a organização pública dos sujeitos, para se consiga

conquistar um mínimo de transformação social. Essas marchas, esses

movimentos não são desmobilizadores da ordem, como a ideologia dominante

pretende que sejam percebidas por aqueles que deles não participam. Freire

diz que “Na intimidade desses movimentos, temos aspectos da educação

libertadora que algumas vezes não percebemos” (2011c, p. 70).

Contudo, não basta apenas cultivar as ideias de Freire para se

considerar “freireano”. “Isso exige, sobretudo, comprometer-se com a

construção de um ’outro mundo possível‘. Sua ’pedagogia sem fronteiras‘ é um

convite para transformar o mundo” (GADOTTI, 2007, p. 45), seja nos

ambientes escolares formais ou não-formais e em qualquer coletividade, que

marcha lutando para ter seus direitos reconhecidos ou para ver seus direitos

respeitados. Tendo em vista que os dominadores têm o poder de usufruir com

facilidade de seus direitos, enquanto que os “esfarrapados” têm dificuldade

para verem respeitados e efetivados seus direitos mais elementares. Os

movimentos sociais representam, na atualidade, uma das mais efetivas

manifestações políticas em decorrência de gozarem de maior autonomia,

dinamismo e mobilidade pela relativa distância do controle oficial, justamente o

que falta nos ambientes escolares formais, por exemplo.

Apreciando um outro lado da questão, deve-se ter em vista que educar

para a liberdade, para a autonomia do indivíduo, significa também entender

que a preocupação central de Freire, ao longo de seus estudos, foi sempre

com o problema epistemológico, visando, mais do que um método pedagógico,

constituir um novo método de conhecimento.

A proposta da “iluminação5”, enquanto processo de conhecimento da

realidade, de como a realidade se forma e se constitui, para que sejam

conhecidos pelos explorados os mecanismos e os agentes da opressão e da

exploração econômica, pode e deve ser realizada nos ambientes coletivos,

formais ou não. Entretanto, “A questão, então, é como desenvolver um tipo de 5 A “iluminação” para Freire se aproxima do Iluminismo no sentido estrito de que busca

desligar-se dos jugos do passado e da verdade pré-fabricada, reivindica a liberdade, a autonomia do indivíduo por meio da razão que busca dissipar as trevas do dogmatismo. Tudo deve ser submetido ao espírito crítico.

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leitura crítica ou compreensão crítica da sociedade, mesmo face à resistência

dos estudantes e da classe dominante” (FREIRE, 2011c, p. 81), tendo em vista

que não nos convertemos a essa ou àquela concepção epistemológica - a

compreensão que todos temos quanto ao que é o real - apenas em decorrência

de algumas conversas ou discursos que ouvimos, tratando-se de um fenômeno

muito mais complexo e que vai ocorrendo pouco a pouco. Principalmente com

a experiência e vivência que o indivíduo vai construindo, essencialmente

quando se engaja em algum movimento social, porque, então, em companhia,

começa a perceber, a apreender os mecanismos e o modus operandi das

ideologias, de como essas têm relação com a educação e que isso tudo tem

algo a ver com a política e a configuração da realidade.

Contudo, Puiggrós (apud STRECK, 1999, p. 103) alerta que, para Freire,

“Os fatos imediatamente apreensíveis não constituem um saber crítico. Esse

saber começa a ser construído quando se apreende o conjunto das

contradições,” uma vez que a reflexão crítica da realidade é, simultaneamente,

dialética e inovadora. Então haverá um processo de “iluminação” que

despertará o indivíduo para a sua transformação. E esse processo se dá tanto

com o educador quanto com o educando, porque os dois, juntos, são os

agentes da educação libertadora, que implica na iluminação da realidade.

Ambos estão em constante transformação, estão se tornando “algo mais”

durante o processo de conhecimento, sendo esta uma das mais importantes

características do rigor criativo na educação dialógica. Freire (2011c, p. 141),

comentando criticamente sobre a observação passiva do objeto, diz: “Se você

não muda, quando está conhecendo o objeto de estudo, você não está sendo

rigoroso.” Segundo Freire, o indivíduo deve tentar interpretar a realidade, deve

conhecer a razão de ser que explica o objeto, e na medida em que ele se

aproxima criticamente do objeto observado e consegue desenvolver a sua

compreensão sobre ele passa a perceber que o objeto não é porque ele está

se tornando, tendo em vista “que o objeto não é algo em si mesmo, mas está

dialeticamente se relacionando com outros que constituem uma totalidade.”

(2011c, p. 141)

A questão do rigor a que nos referimos corresponde à outra dificuldade

encontrada na prática de métodos libertadores, porque desconhecida sua

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estrutura, importância e significado. Notadamente quando comparado com o

programas educacionais padronizados e “bancários”, que negam o exercício da

criatividade entre educadores e educandos, que desencoraja os educandos a

serem críticos, que professa o estudo mecânico e de memorização e comanda

e controla a distância suas atividades; o que não ocorre, ou acontece com

menor intensidade, fora dos ambientes formais. Freire diz que esta dificuldade

decorre do fato de que os educadores, por estarem inseguros, pois

acostumados a obedecer a ordens, a não serem responsáveis pela própria

formação, a se recriarem, a si mesmos e a sua sociedade, quando chamados a

uma ação educativa que se configure como pró-ativa, entendem que não há

rigorismo neste processo libertador, por não haver autoritarismo e rigidez nele

envolvidos. “Não aprenderam como organizar sua própria leitura da realidade e

dos livros, entendendo o que leem criticamente” (FREIRE, 2011c, p. 132). Sem

liberdade não há criatividade, mas a abordagem dialógica é permanentemente

muito séria, exigente e rigorosa. Shor, dialogando com Freire sobre a

dificuldade de o professor romper com as velhas e internalizadas formas

tradicionais de ensino baseadas na transferência autoritária e bancária de

conhecimento, afirma:

As autoridades dificilmente abandonarão seu “rigor” porque ele é um modelo autoritário de educação que se ajusta bem ao controle de cima para baixo. Mesmo, porém, que um desvario lá do alto fizesse com que as autoridades abrissem a porta ao ensino transformador, isso não libertaria os professores e alunos, automaticamente, para que tivessem um ensino dialógico. Só criaria as condições para se inventar essa nova educação (2011c, p.135)

Ademais, consideramos plenamente compreensível e legítima a

preocupação e a angústia de educadores que desejam conferir andamento

dialógico, libertador, crítico e emancipatório em suas práticas educativas. Mas

é preciso considerar que podem não alcançar o êxito desejado, seja em

decorrência do desconhecimento dos conceitos e métodos da educação para a

autonomia, da pedagogia freireana e/ou da maneira como esta deve ser

aplicada, seja por falta de competência e domínio técnico, ou até em

decorrência desse educador pensar equivocadamente que se libertou, ele

próprio, das amarras e dos tentáculos ideológicos. Também pela opressão que

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a política educacional impõe tanto aos educadores quanto aos indivíduos

dominados. Os educadores precisam fazer malabarismos em alta velocidade

para conseguirem “dar” todo o conteúdo que está delimitado inexoravelmente

no programa e na ordem prescrita. São pressionados a adotar determinados

livros didáticos, quando o material já não se encontra apostilado, com

direcionamentos que “engessam” a prática docente, dentro dos parâmetros

desse ou daquele “sistema” de ensino. Não há tempo para revisões e

dedicação maior aos “retardatários”, que são menosprezados. Todo esse

processo é rastreado, monitorado e controlado através de testes e avaliações

externas ao processo cotidiano de ensino-aprendizagem, sem que o professor

tenha tido a oportunidade de participar da sua elaboração. Shor (2011c, p.

147), expõe a sua preocupação quanto ao assunto:

Os professores que se afastam desse procedimento temem ficar mal se seus alunos forem mal em testes padronizados ou nos cursos seguintes. Sua reputação poderia decair. Poderiam ser despedidos. A idéia de analisar uma quantidade pequena de material não tradicional defronta com a preocupação com o currículo que angustia permanentemente o professor.

Ou seja, o educador libertador, que utiliza parte da aula para

considerações e leituras com interpretações críticas, em que a participação

efetiva de todos é incentivada, o educador que se importa e é comprometido

com uma política pedagógica baseada na autonomia do indivíduo, que procura

despertar a consciência ética pode acabar penalizado pelos mecanismos de

avaliação reprodutores e conservadores das provas e exames nacionais.

A responsabilidade daqueles que acreditam na educação libertadora é

muito grande e, portanto, eles devem ser muito exigentes consigo mesmos e

devem estar dispostos a superar obstáculos para que sua prática não seja

corrompida. Primeiro porque, do ponto de vista dos educandos, uma

experiência dialógica que não se baseia na seriedade e na competência,

provoca consequências muito piores do que uma experiência “tradicional”, na

qual o professor simplesmente “transfere conhecimento”, em que a realidade

deve ser apenas descrita e observada, não questionada. Foucault (1996)

alertava para o fato de que um discurso libertador pode se tornar opressor,

porque os indivíduos vão apreendendo ideias e valores que indicam o papel

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(via de regra propedêutico) que ele precisa desempenhar na sociedade,

notadamente através das escolas e da mídia, ditadas como se fossem o

caminho da verdade. E essas ideias e valores podem estar camuflados para

atender aos interesses daqueles que detêm o poder. É um risco que o

educador corre, inclusive aquele que se considera crítico e libertador.

“Quanto mais seriamente você está comprometido com a busca da

transformação, mais rigoroso você deve ser, mais você tem que buscar o

conhecimento […]” (FREIRE, 2011c, p. 118). E essa seriedade, rigorismo,

competência, visão crítica e responsabilidade devem ser aplicados em

qualquer ambiente que se proponha a desenvolver a educação libertadora. E

não é porque o ambiente não seja formal ou “oficial” é que essas condições de

eficácia devam ser flexibilizadas ou negligenciadas; o rigor precisa ser

apreendido e internalizado por aqueles que optam pela “implantação” da

educação para a autonomia.

O educador consciente, aquele que se preocupa e procura uma possível

mudança social em seu país, deve construir, re-criar sua pedagogia crítica

libertadora ciente de que os problemas educacionais não são apenas técnicos

nem apenas pedagógicos, mas também políticos e econômicos. Gutiérrez

(1985, p. 87) afirma, a propósito, e tendo como eixo o binômio dialético

opressão/libertação:

A libertação do subconsciente supõe que se vá mais longe do que a simples superação da dependência econômica, social e política. Mais profundamente, é necessário ver o futuro da humanidade como um processo de emancipação do homem ao longo de toda a história, processo orientado para uma sociedade qualitativamente diferente, na qual o homem se veja livre de toda escravidão e seja artífice de seu próprio destino. […] Mas para que esta libertação seja plena e autêntica, ela deverá ser assumida pelo povo oprimido mesmo, e para isso deverá partir dos valores próprios deste povo. Somente neste contexto é que pode ser conduzida a termo uma verdadeira revolução cultural.

Assim, o esfarrapado, o marginalizado, o oprimido, o dominado terá a

chance de transformar-se. De um objeto desagregado, alienado, inconsciente,

descomprometido com os outros indivíduos em um sentido humano, em sujeito

fraterno, solidário, que assuma um papel consciente e ativo na transformação

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de sua vida, de sua comunidade, da sociedade. Que deixa a sua postura

subalterna e passa a agir com a finalidade de libertar tanto os oprimidos quanto

os opressores, porque a realidade atua sobre ambos, desumanizando-os e

imergindo suas consciências na ideologia da exclusão. Deve ter muita coragem

para lutar. Negar, recusar parte do legado que recebeu e produzir algo novo,

diferente, resgatando o seu direito de “ser mais”.

2.4. A Educação para a autonomia: a autoadvocacia como possibilidade de uma Pedagogia da Libertação

Objetivando a construção de formas possíveis de efetivar uma

pedagogia libertadora, que tenha como cerne a transformação dos sujeitos e

de sua coletividade para o desenvolvimento da autonomia, o que propomos é a

investigação da autoadvocacia como práxis educativa. Trata-se de proposta

cuja base epistemológica é eminentemente freireana, de acordo com os

pressupostos já antecipados nesse capítulo. Com a peculiaridade de que o viés

principal se mostra voltado para a educação que organiza e mobiliza os

sujeitos para o acesso e a efetivação de direitos já legitimados numa sociedade

“cidadã”, tanto no âmbito administrativo quanto judicial, mas “não-legitimados”

como cotidiano vivido.

Na concepção a ser aqui defendida, para que a autoadvocacia ocorra,

em essência, é preciso que o educador e o aprendente se coloquem lado a

lado, como partícipes de uma mesma sociedade que ainda “amadurece” em

termos de justiça social, que protege e castra, numa mesma face. E que, por

meio do diálogo (freireano), compreenda as necessidades, as expectativas, os

medos e limites mútuos, respeitando-se integralmente. É ora o educador quem

detonará o início do processo, por ter mais conhecimento e experiência nos

meandros do poder; ora será o educando, que sente, vive e sofre as

consequências desse. Não sendo ambos a mesma coisa, pois é preciso a

tensão dialética de identidades diferentes para que um processo legítimo de

transformação aconteça, educador e aprendente têm instrumentos culturais e

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75

caminhos diversos para agir no processo de iluminação da realidade e na luta

pela efetivação dos direitos dos cidadãos.

Mas esses educadores não são missionários, não é imprescindível que

sejam técnicos, contudo também não são “meros” educadores, mas devem ser

ou tornarem-se militantes, no sentido político desta palavra. Devem tornar-se

ativistas críticos, assim como todos aqueles que pretendem tornar-se

educadores libertadores. A militância significa re-criação, crescimento

permanente, não apenas profissionalmente, mas implica em uma

transformação ao mesmo tempo social e de si mesmo.

No próximo capítulo o tema da autoadvocacia como possibilidade de

pedagogia libertadora pela conquista da autonomia, será desenvolvido, tendo

como base a investigação realizada durante a ação social do Grupo Espírita

Caminheiros.

2.4.1. A Autoadvocacia

A história demonstra que sempre existiram indivíduos oprimidos. Em

grande parte, pode-se dizer que talvez representem a maior parte da

população, e que, de alguma forma, garante a manutenção do status quo dos

opressores. E para que este estado não se altere, porque contrário aos

interesses desses, estes alijam os oprimidos de seu direito inalienável,

irrevogável e “garantido” constitucionalmente de serem livres, de

estabelecerem escolhas conscientes e de direcionarem a sua própria vida.

Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria. (FREIRE, 2011b, p. 17).

A autoadvocacia se apresenta como um conceito complementar às

teorias que buscam orientar ações sócio-políticas de indivíduos e grupos

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76

desempoderados, oferecendo-lhes a oportunidade de serem advogados de si

mesmos, dai o termo autoadvocacia.

O termo autoadvocacia tem sua origem no campo jurídico e o nome

remete ao exercício de atividade advocatícia, que contém em sua essência a

ideia de representação e defesa dos interesses do outro, ou seja, aquele que

teve um direito seu desrespeitado e não é capaz de buscar a efetivação de

seus direitos em nome próprio, não pode falar por si próprio, e se vê obrigado a

contratar um expert. Esse presumivelmente tem mais conhecimento e

autoridade para representá-lo. Entretanto, não é esse o conceito que mais

propriamente se aplica ao termo autoadvocacia.

A advocacia, em seu conceito tradicional, conforme acima mencionado,

é o oposto da autoadvocacia, na medida em que na primeira, durante a

representação dos interesses do cliente-cidadão, há sempre o risco de o

profissional, ainda que tenha compreendido o móvel da demanda e tenha uma

leitura correta de suas necessidades e do bem da vida perseguido, aja

involuntariamente com paternalismo, projeções e manipulações inerentes à

própria estrutura da relação advogado-cliente. Enquanto que na autoadvocacia

não há a incapacitação do indivíduo ou grupo, mas, pelo contrário, há o seu

empoderamento, um impulso à auto-ajuda e capacitação, para que tenham

poder sobre as suas próprias vidas, assumam o controle dessas, e sejam

responsáveis por suas ações (SEITHEL, 2004).

O pesquisador entende ser oportuno esclarecer que no curso desta

pesquisa encontrou-se preponderância de materiais de pesquisa norte-

americanos sobre a autoadvocacia em relação a qualquer outra nacionalidade;

sendo escassos em quantidade e qualidade, ainda que considerados em

conjunto. Não foi localizado nenhum livro brasileiro ou escrito em português

que tratasse sobre o assunto, mas apenas trabalhos científicos, notadamente

de mestrado. Também notou-se o predomínio absoluto, senão a totalidade, da

preocupação do empoderamento de indivíduos e grupos de pessoas com

algum tipo de deficiência, especialmente intelectual, por meio da

autoadvocacia. O pesquisador não obteve êxito em encontrar a abordagem do

tema autoadvocacia em indivíduos que não apresentassem algum tipo de

deficiência física ou intelectual.

Page 77: Rogério Pena Masi

77

Não sem esforço, o pesquisador conseguiu fazer pontes entre os

materiais pesquisados, especialmente daqueles que tratam acerca da

invisibilidade, exclusão e, de alguma forma, da opressão que são vitimadas as

pessoas deficientes, com o presente estudo. Embora a motivação dos grupos

de autoadvocacia de deficientes seja diversa da ora estudada, já que as

pessoas deficientes são excluídas pela ideologia dominante por não se

enquadrarem no conceito elitista e discutível de “normalidade”, observamos

que os oprimidos das periferias também não são percebidos como

completamente “normais”; em decorrência, notadamente, de sua condição

econômica e de “inferioridade” social.

Outrossim, coerentemente com a teoria e prática educacional de Paulo

Freire, a referência aqui assumida na construção da teoria e prática da

autoadvocacia, verificou-se que o desenvolvimento da maior parte das teorias

da autoadvocacia pesquisadas defende a independência/autonomia dos

sujeitos. Os discursos visam ultrapassar o perigoso terreno da imposição

dissimulada ou inconsciente de profissionais ou dos sujeitos tidos como

“normais” sobre os “anormais”. Ainda assim é importante destacar, já que

considerado muito interessante pelo pesquisador, que percebeu que além das

questões relacionadas à “formação” e capacidade dos educadores e à

ideologia predominante, foi identificado mais um importante fator que, na

opinião do pesquisador, agrava a já difícil aplicação da autoadvocacia a

pessoas com deficiências físicas e intelectuais: os próprios parentes ou

cuidadores agem como reforçadores da invisibilidade e exclusão das pessoas

deficientes, na medida em que, na realidade, diferentemente do discurso,

demonstram que não os consideram capazes de tomar decisões por conta

própria, sem a sua “benéfica” interferência, e assumir as responsabilidades

delas decorrentes.

Segundo Garner e Sandow (1995, p. 1), os primeiros movimentos de

autoadvocacia nasceram na década de 1980, na Grã-Bretanha, na Dinamarca

e no Japão. Nelis (apud SCHALOCK, 2002) assevera que a autoadvocacia

originou-se em 1968 na Suécia, com uma organização de pessoas com

deficiências de desenvolvimento, formada por pessoas deficientes e seus pais.

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78

O seu lema era “Nós falamos por eles.”6, ou seja, os pais falavam por seus

filhos. No ano de 1968, acompanhando toda a movimentação pela liberdade de

direitos individuais da época, essa organização patrocinou uma reunião com a

participação das próprias pessoas deficientes, sendo que essas decidiram que

queriam assumir falar por si mesmas. Elaboraram, então, uma lista de

mudanças que desejavam que fossem implementadas nos serviços que

utilizavam, conforme suas necessidades, entregando-a à organização para que

tomassem as providências possíveis.

Desta reunião surgiram muitas outras, as quais foram realizadas em

todo o mundo, até que uma das pessoas deficientes participantes, externando

um sentimento coletivo, cansadas de ver apenas os profissionais dominarem a

organização e as discussões que se referiam à situação de vida dos

deficientes, disse “Estou cansado de ser chamado de retardado, somos

pessoas em primeiro lugar.” (Id., 2002, p. 222, tradução nossa). Foi assim

fundada, a 08 de janeiro de 1968, em Oregon/Estados Unidos, um movimento

chamado de “People First”, por meio do qual as pessoas deficientes finalmente

pudessem se reunir, se fortalecer, tomar decisões e assumir as suas

responsabilidades. Seriam, enfim, ouvidas e teriam suas demandas atendidas

por meio da luta solidária, sem a interferência das pessoas não deficientes.

A autoadvocacia se fortaleceu a partir do final dos anos 1970, quando foi

disseminada para outras partes do mundo, além dos Estados Unidos, a

exemplo de Canadá, Grã-Bretanha, Austrália e Suécia, e atualmente se

fortalece e cresce cada vez mais, muito graças ao “People First”. Movimento e

organização que continua atualmente presente e ativo em diversos países e

que já organizou conferências internacionais na Inglaterra (1988 e 2001),

Canadá (1993) e Alaska (1998), as quais já contaram com a participação de

mais de trinta países diferentes.

Seithel (2004) afirma que a autoadvocacia, como atividade sócio-

política, nasceu das reformas sociais do século XIX e tinha como objetivo

estabelecer uma sociedade mais justa. Este mesmo autor assevera que

atualmente a autoadvocacia é muito utilizada em trabalhos político-sociais de

ativistas políticos, assistentes sociais, ecologistas, especialistas em educação e

6 Disponível em: http://www.peoplefirstsv.com/people_first_history.htm Acesso em: 31 mai. 2012.

Tradução nossa.

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79

saúde, entre outros profissionais, em favor de indivíduos e grupos

desfavorecidos, notadamente de pessoas com deficiência intelectual ou física.

A autoadvocacia tem o pressuposto da auto defesa de indivíduos e

grupos independentes, que lutam juntos e conscientemente para conquistar a

efetivação de seus direitos e também novas demandas. Esses indivíduos e

grupos colaboram mutuamente para assumir o controle de suas vidas, visando

uma vida mais digna e uma sociedade mais justa. A autoadvocacia, em

parceria com a educação freireana, norteia os indivíduos quanto aos seus

direitos e deveres, busca empoderá-los e ao mesmo tempo torná-los

responsáveis pelos seus atos, procura, por conseqüência, reformular as suas

crenças de auto eficácia (BANDURA, 2008). Também tem o objetivo de

conscientizar os indivíduos sobre a ideologia dominante, que os aliena e

oprime, e a maneira pela qual são direta e indiretamente afetados por ela,

localizando-os neste contexto.

A autoadvocacia tem, ainda, a pretensão de conhecer esses indivíduos

oprimidos e, junto com eles, as suas próprias necessidades, interesses e

expectativas, que muitas vezes se mostram “adormecidas” ou sufocadas. E

ensinar a maneira pela qual poderão seguir para encaminhá-las, se livremente

o desejarem. Espera-se que suas escolhas sejam, assim, conscientes

transformando seus sonhos e esperanças em algo palpável, real e possível. Os

indivíduos apreendem com a autoadvocacia que o apoio, a colaboração

fraterna e a união os fortalece nesse propósito, tornando-os mais fortes e mais

empoderados, a ponto de dispensarem qualquer interferência “externa” e que

pode, mesmo em potencial, lhes ser pernicioso. Risco que todo aquele que

age e escolhe por si, corre.

Resta evidente que a questão da interferência externa é muito

importante e merece destaque, tendo em vista que ela tem potencial de causar

a ruína da prática da autoadvocacia. Importante destacar que a organização

intitulada “People First” foi fundada e atualmente é gerida exclusivamente por

pessoas com deficiência de desenvolvimento que executam tarefas que o

público em geral acredita não ser possível, pelo perfil de seus membros. A

“People First” afirma ter muito a oferecer por meio de seus membros e

evidencia em seu lema o quão inoportunas são quaisquer tipos de

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interferências externas: “Autoadvogados treinando autoadvogados.” (tradução

nossa). Essa organização é uma das mais fortes representantes da prática do

empoderamento por meio da autoadvocacia de pessoas com dificuldade de

aprendizado ou deficiência de desenvolvimento, como eles próprios preferem

ser chamados, e que conta com representantes formais em 43 países, que

abarcam aproximadamente 17.000 membros. Sua filosofia de empoderamento

pela autoadvocacia é bastante forte7:

Pessoas com deficiências de desenvolvimento são as únicas pessoas capazes de empoderar outras pessoas com deficiências de desenvolvimento. Somente as pessoas que fazem parte de uma determinada cultura, podem "empoderar" pessoas desta mesma cultura; para torná-los fortes, eles têm que tomar decisões e trabalhar em seu movimento, eles mesmos. Este é o caminho do movimento da autoadvocacia. Profissionais e pessoas sem deficiência de desenvolvimento não podem controlar o movimento People First. Isto é o que a autoadvocacia é, pessoas ajudando a seus colegas a aprender a falar por si mesmos, aprender sobre seus direitos e responsabilidades, aprender a tomar decisões e resolver problemas, e ser um membro que contribui com a sua comunidade. (Tradução e destaque nossos).

Estas organizações, “People First”, “Speaking for Ourselves”, United

Together” e “Advocates in Action”, desejam falar por elas mesmas, sem a

interferência de indivíduos fora do grupo ou com interferência mínima desses.

Trata-se de um despertamento de consciências em que indivíduos, unidos

pelas mesmas demandas, lutam de forma autônoma por seus interesses

comuns e especiais, em direção ao pleno exercício de seus direitos e

cidadania. O aprendizado do ser proativo transcorre quando indivíduos,

inseridos na mesma problemática, colaboram para que outros indivíduos se

expressem e tomem decisões conscientes. Os grupos fornecem-lhes a

oportunidade de desenvolverem seu senso de identidade, facilitando o

aprendizado e o compartilhamento de ideias e também a aprender a conhecer

e compreender seus direitos e responsabilidades, para que possam exercer a

cidadania em sua plenitude ou chegando ao mais alto nível possível de

independência.

7

People First Spokane Valley. Disponível em: http://www.peoplefirstsv.com/people_first_history.htm Acesso em: 31 mai. 2012.

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81

Browning, Rhoades e Crosson (1980) asseveram que na década de

1960, nos Estados Unidos da América, houve uma intensa e extensa ação de

consumidores, que teve forte impacto nas questões sociais. Os protestos

desses se juntaram aos daqueles que lutavam por amplas reformas sociais,

para que grupos de indivíduos desempoderados e discriminados, que incluíam

mulheres, minorias raciais e pobres, conquistassem sua cidadania por meio da

conscientização de seus direitos, e, no conjunto, repercutiram positivamente.

Este movimento, segundo os mesmos autores citados, que contava com

o slogan “Power to the People”, contou com a participação ativa de indivíduos

pertencentes aos grupos discriminados, e teve como reflexos muitas reformas

marcantes e duradouras.

Para que todas as ações organizadas prosperem e alcancem seu

objetivo de conscientização, visibilidade, participação e empoderamento por

meio da autoadvocacia, é necessários que existam lideranças. Sabe-se que é

necessário que haja organização em todos os ambientes em que se

desenvolvam habilidades e trabalhos coletivamente e, por consequência

natural, surjam ou sejam nomeadas lideranças. A diferença da autoadvocacia é

que indivíduos externos, não pertencentes ao grupo porque não têm as

mesmas características, ainda que possam se identificar com eles, devem

interferir minimamente e apenas no início da formação coletiva organizada da

autoadvocacia. Intervenções no decorrer do desenvolvimento da prática da

autoadvocacia devem ser pontuais e atender a necessidades reconhecidas

pelos membros do grupo, que deve tomar a iniciativa de buscar ajuda.

O referencial freireano tem importância fundamental para entendermos

isso, porque, em primeiro lugar, se refere à liderança como algo a ser

conquistado na comunhão com o povo, sendo que jamais deve ser imposta, e

que esta liderança “se instaura e se autentica na sua práxis com a do povo,

nunca no desencontro ou no dirigismo”; criando juntos, a liderança e o povo, as

pautas para sua ação (2011b, p. 73). Tomando-se o cuidado para que o líder

reduza ao mínimo sua intervenção direta nas decisões do grupo, para que os

integrantes desse descubram, por si, seus desejos, sonhos e aspirações.

Na autoadvocacia, à liderança cabe, inicialmente, mobilizar as

informações solicitadas pelos indivíduos, de acordo com a necessidade de

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demanda descoberta pelo próprio grupo. Como se percebe, a intervenção deve

ser mínima e interrompida no momento em que o grupo decidir que pode

“caminhar com suas próprias pernas”, tomando suas próprias decisões sem

nenhuma interferência externa. A liderança - ou o educador, numa perspectiva

freireana -, deve saber conduzir o grupo até este ponto e tomar muito cuidado

para que, inconscientemente, não mantenha o grupo dependente de si.

Bordenave (1995, p. 39) afirma que o líder deve fazer com que suas qualidades

pessoais atuem a favor da participação dos membros do grupo.

Browning (1997) escreve um capítulo sobre orientações direcionadas a

pessoas não deficientes que desejam desenvolver grupos de autoadvocacia

para pessoas deficientes, tendo em vista que considera que muitas dessas

pessoas não têm a formação devida e, portanto, habilidades técnicas

desejáveis para liderar o grupo. Além dos principais problemas e questões

enfrentadas pelo grupo, o autor sugere que os não deficientes não interfiram

nas reuniões do grupo, mas dela participem apenas para ajudar aos membros

com dificuldade de aprendizado a compreenderem os assuntos que estão

sendo discutidos; jamais dizendo ao grupo o que fazer. O mesmo autor recorre

a Rhoades (apud BROWNING, 1997, tradução nossa) para discutir três

princípios ideológicos considerados fundamentais para a sobrevivência dos

grupos de autoadvocacia:

Estes princípios indicam que os membros do grupo devem: esforçar-se no sentido de estabelecer uma existência autônoma para garantir o reconhecimento da seriedade e independência da organização; mobilizar-se no sentido de desenvolver um relacionamento cooperativo de trabalho com outras organizações de autoadvocacia e do sistema de prestação de serviços; e lutar para serem reconhecidos como especialistas em suas próprias incapacidades.

É bastante interessante a missão da “People First”, ora sediada em

Oklahoma, Estados Unidos da América, cujo slogan atual também não se pode

omitir, dadas as suas possibilidades de generalização para as populações

oprimidas, que se irmanam no pouco direito que tem à voz: “Nada sobre nós,

sem nós.” O pesquisador considera que as diretrizes dessa missão, abaixo

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transcritas, resume o propósito da autoadvocacia em qualquer ambiente e perfil

de indivíduos8:

Promover a igualdade;

Ajudar uns aos outros para falar por nós mesmos; Educar nossas comunidades; Realizar reuniões para educar a nós mesmos; Fomentar a autoadvocacia em Oklahoma; e Criar suporte público à “People First”.

Os membros do “People First” de Oklahoma acreditam:

Nós criamos um futuro melhor para todos quando nós exercitamos nossos direitos.

As pessoas devem viver da forma mais independente

possível. As pessoas devem deixar que suas vozes sejam

ouvidas. As pessoas têm o direito de saber, para escolher, e para

fazer o que desejam. Todas as pessoas necessitam de serviços iguais. As pessoas devem ser capazes de lutar pelos seus

direitos, sem medo de serem feridas ou abusadas. As pessoas devem ser capazes de obter atendimento

médico quando necessário. As pessoas devem ter oportunidades iguais para acessar

suas comunidades e todos os seus serviços.

Nós podemos fazer muitas coisas se apenas nos forem dadas oportunidade.

O pesquisador entende que essas afirmações podem tornar-se também

a missão dos oprimidos, objeto do presente estudo. Naturalmente que o

caminho a ser seguido é diferente, mas os objetivos são os mesmos. Chamou

a atenção também que o processo de autoadvocacia, de auto-valorização e

empoderamento, inicia-se pela maneira pela qual as pessoas com deficiência

desejam ser chamadas, guardando uma coerência impressionante. Não

querem ser chamadas de deficientes, mas “pessoas com deficiência”, ou seja,

o princípio orientador, a ênfase é colocada na pessoa e não na deficiência que,

de certa forma, é um rótulo que tem conotação negativa e, portanto,

desvaloriza a pessoa. Uma excelente ideia para utilizarmos daqui em diante

quando nos referirmos aos alienados, pobres, oprimidos e dominados, a fim de

que possamos também guardar coerência com nossa proposta de

8 Oklahoma People First, Inc. Disponível em: http://www.oklahomapeoplefirst.org/mission.html

Acesso em 31 mai. 2012. Tradução nossa.

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empoderamento pela autoadvocacia e respeito por esses sujeitos. Também

passaremos, a partir deste ponto, a enfatizar a pessoa e não sua condição

passageira: pessoa alienada, pessoa pobre, pessoa oprimida e pessoa

dominada, porque também são pessoas, em primeiro lugar!

Uma das maiores organizações norte americanas e mundiais de defesa

da autoadvocacia para o empoderamento de pessoas com deficiência, é a “Self

Advocates Becoming Empowered”, também conhecida pela sigla SABE. Tem

atuação enérgica em todo o território dos Estados Unidos, e defende o

fechamento de todas as instituições públicas e privadas que não conferem às

pessoas o direito de terem o controle de suas próprias vidas. Defende também

que as pessoas com deficiência possam votar e escolher representantes que

lutem com eles por suas demandas. Entre outras formas de garantia de

representação estão: denunciar crimes de ódio, maus tratos, punições e

castigos para autoridades competentes e para a sociedade em geral, que o

Estado forneça toda a estrutura necessária para que as pessoas deficientes

vivam com dignidade em suas próprias casas e não em hospitais ou

instituições e a implementação de programas estatais que viabilizem o acesso

das pessoas deficientes ao mercado de trabalho. Toda a luta se dá no âmbito

político, com ações junto aos órgãos de poder dos Estados. A SABE tem como

missão9:

É nossa missão garantir que as pessoas com deficiência sejam tratadas com igualdade e que a elas sejam dadas as mesmas oportunidades de decisões, escolhas, direitos, responsabilidades e as chances de falar para empoderarem-se; oportunidades para fazer novos amigos e para aprender com seus próprios erros.

Atualmente a tendência nos Estados Unidos é a de que as diversas

organizações de autoadvocacia se unam com a finalidade de se fortalecerem

para atuarem em âmbito nacional, conquistando visibilidade, empoderamento e

direitos mais relevantes e abrangentes. Para tanto, organizam reuniões e

encontros em diversas regiões norte-americanas, onde ocorrem debates que

visam o aperfeiçoamento das próprias organizações e da autoadvocacia, para

9 Disponível em: http://www.sabeusa.org/user_storage/File/sabeusa/Position%20Statements/30

_%20Aversives.pdf Acesso em: 31 mai. 2012. Tradução nossa.

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que seus membros tenham suas expectativas atendidas com mais qualidade

(NELIS, apud SCHALOCK, 2002).

Coerentemente a essas reflexões, temos, portanto, por objetivo estudar

as possibilidade de desenvolvimento da consciência crítica nos indivíduos por

meio de articulação das bases de uma educação para a autoadvocacia, em

especial junto àquelas pessoas e grupos que, historicamente, têm visto seus

direitos serem consistentemente negados. A autoadvocacia busca abrir

perspectivas para caminhos que devem e podem ser percorridos, individual ou

coletivamente, favorecendo a organização e a luta pela transformação da

realidade injusta em que os indivíduos oprimidos vivem, participando

ativamente da construção de uma sociedade que possa ser, de fato,

denominada de justa e solidária.

Ademais, nosso compromisso sócio-político de promoção da

autoadvocacia intenciona apresentá-la como uma prática da educação

sociocomunitária. Seguindo a concepção de que a educação sociocomunitária

é aquela que transcorre nos diferentes espaços de convivência - e, assim, de

luta - dos sujeitos, promovendo a escuta e o diálogo entre os diversos sentidos

de mundo existentes nesses espaços (BISSOTO, 2011). Como fomentar a

autoadvocacia nesses espaços? Que sentidos/espaços reforçam a

estigmatização dos oprimidos? Quais as reações e pensares de resistência que

podem ser percebidas, ainda que embrionariamente? Como colocar em conflito

esses sentidos, de modo a ampliar a consciência dos sujeitos? Como pensar

essas questões no âmbito da pedagogia freireana?

Nos raros momentos em que o neoliberalismo volta sua atenção para a

“educação” (ou treinamento?) é porque necessita de mão-de-obra barata e

subalterna, suprida por indivíduos bem treinados tecnicamente, e alienados

ideologicamente. São indivíduos transformados em seres autômatos, nos quais

a manifestação da criatividade, da autonomia, da liberdade e da consciência é

proibida. Transformam os indivíduos em coisas.

A teoria freireana e a concepção de educação sociocomunitária acima

mencionada pretendem, ambas, na pesquisa aqui apresentada, por “luz

naquela obscuridade que a dominação exige” (FREIRE, 2011c, p. 34), com a

finalidade precípua de procurar uma possível mudança social no Brasil.

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Iluminar as consciências, orientar os indivíduos oprimidos para a luta pela

efetivação de seus direitos e para a conquista de outros, que alberguem as

suas necessidades, significa compreender a ideologia dominante e seus

instrumentos de aniquilamento das autonomias, tornando possível acreditar e

movimentar-se livre, consciente e coletivamente no sentido de inverter os

papéis sociais. Instruir e instrumentalizar as pessoas oprimidas para uma

participação efetiva, motivada e competente na vida política da sociedade.

[…] as doutrinas neoliberais procuram limitar a educação à prática tecnológica. Atualmente, não se entende mais educação como formação, mas apenas como treinamento. Creio que devamos continuar criando formas alternativas de trabalho. Se implantada de maneira crítica, a prática educacional pode fazer uma contribuição inestimável à luta política. A prática educacional não é o único caminho à transformação social necessária à conquista dos direitos humanos, contudo acredito que, sem ela, jamais haverá transformação social. A educação consegue dar às pessoas maior clareza para “lerem o mundo”, e essa clareza abre a possibilidade de intervenção política. É essa clareza que lançará um desafio ao fatalismo neoliberal. A linguagem dos neoliberais fala da necessidade do desemprego, da pobreza, da desigualdade. Penso que seja de nosso dever lutar contra essas formas fatalistas e mecânicas de compreender história. Enquanto as pessoas atribuírem à fome ou a pobreza que as destroem ao destino, à fatalidade ou a Deus, pouca chance haverá de promover ações coletivas (FREIRE, 2001b, p. 36).

Se o Estado neoliberal, alienador, opressor e explorador, precisa de

algum mecanismo para sobreviver e perpetuar a sua injustiça, na população

alienada encontra a sua fonte inesgotável e renovável de suprimentos. A

educação alienante enfraquece as possibilidades de união, mobilização e de

participação capazes de construir uma história diferente.

E não estamos falando aqui da pseudo-participação ou participação

concedida, mas da participação efetiva e consciente, que verdadeiramente

constrói e interfere nos rumos da história que o neoliberalismo pretende

perpetuar.

O chamado “planejamento participativo”, quando implantado por alguns organismos oficiais, frequentemente não é mais que um tipo de participação concedida, e às vezes faz parte da ideologia necessária para o exercício do projeto de direção-

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dominação da classe dominante. Com efeito, a ideologia dominante objetiva manter a participação do indivíduo restrita aos grupos baseados em relações sociais primárias, como o local de trabalho, a vizinhança, as paróquias, as cooperativas, as associações profissionais, etc., de modo a criar uma “ilusão de participação” política e social. (BORDENAVE, 1995, p. 29).

O artigo 3.º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,

também conhecida como Carta Magna, e Constituição Cidadã, elenca o que

considera ser os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Encontramos nos parágrafos, 78 incisos e nas alíneas do artigo 5.º da

Carta Magna, em que estão disciplinados os direitos e deveres individuais e

coletivos, a mais abrangente e precisa definição de direitos e garantias

individuais da história do Brasil. Houve nítido e importante progresso.

Evidenciamos o contraste entre o reconhecimento da universalidade e eficácia

imediata dos direitos humanos e do direito à vida, e o Código Penal de

1940,que enfatizava a defesa do patrimônio.

Verifica-se, portanto, que no Brasil a lei máxima garante a todos os

brasileiros, indistintamente, o direito à igualdade e equidade social, respeitando

a diversidade e valorizando os pressupostos da cidadania. Contudo, ao mesmo

tempo em que reconhece esses direitos fundamentais não cria e implementa

mecanismos que visem garantir a sua efetivação. O Estado faz pior: cria e

implementa mecanismos de alienação e ocultamento desses mesmos direitos;

fomentando o aviltamento e a violação dos direitos à igualdade, à equidade, à

cidadania (inciso II do art. 1.º da Constituição Federal) e à dignidade da pessoa

humana (inciso III do art. 1.º da Constituição Federal). As reformas neoliberais

são despidas de políticas sociais e estão tornando o Brasil em um país

“democrático” sem cidadania, se é que isso seja possível.

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A propósito, Dallari (1998, p. 14) comenta sobre a importância do pleno

exercício da cidadania:

A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social.

Lamentavelmente, ainda vigora e predomina no Brasil, quando muito, a

visão simplista de que cidadania significa apenas direitos e deveres. As

pessoas e grupos desempoderados e oprimidos têm o direito de serem como

são e ainda assim serem respeitados e ouvidos. Têm o direito de decidir e

participar ativamente dos rumos da sua própria vida, da sua comunidade e da

sociedade, sem serem constrangidos. Têm o direito de se comportarem e se

vestirem conforme a sua realidade, sem serem ridicularizados. Rompendo a

invisibilidade e o assujeitamento, por meio da autoadvocacia, o indivíduo e a

coletividade oprimida desenvolve o sentimento de pertencimento, do

reconhecimento de seus direitos, do reconhecimento do direito legítimo que

têm de terem direito, de sua capacidade de lutar para conquistar seus espaços

na sociedade de forma pró-ativa, livre e consciente, exercendo a cidadania em

sua plenitude. Assim, essas pessoas e grupos vão desenvolvendo e

fortalecendo mais e mais o seu sentido de autoconfiança, não se permitindo

mais serem intimidados, lutando contra a opressão, resistindo e combatendo

conscientemente e com conhecimento de causa as desigualdades sociais

geradas pela ideologia dominante.

Dimenstein (1999, p.11), em uma crítica à cidadania brasileira de papel,

porque afirma que ela não existe na prática, e ressaltando a importância de

conhecermos nossos direitos para que possamos participar integral e

permanentemente da sociedade, comenta:

Está aí à importância de saber direito o que é cidadania. É uma palavra usada todos os dias e tem vários sentidos. Mas hoje significa, em essência, o direito de viver decentemente. Cidadania é o direito de ter uma idéia e poder expressá-la. É poder votar em quem quiser sem constrangimento. É processar um médico que cometa um erro. É devolver um produto estragado e receber o dinheiro de volta. É o direito de ser

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negro sem ser discriminado, de praticar uma religião sem ser perseguido.

Norberto Bobbio (1986) advertia para o fato de que a apatia política dos

cidadãos compromete o futuro da democracia, e recorre às teses de Stuart Mill

para reforçar a sua opinião, no sentido de que é necessário construir-se uma

educação que forma cidadãos ativos, participantes e críticos; ainda que este

não seja o perfil desejado pelos governantes, que preferem cidadãos passivos,

sinônimo de súditos dóceis ou indiferentes. Benevides (1998, p. 19) ressalta a

importância do pleno exercício da cidadania ativa:

[...] a cidadania ativa através da participação popular aqui considerada um principio democrático, e não um receituário político, que pode ser aplicado como medida ou propaganda de um governo, sem continuidade institucional. Não “um favor” e, muito menos, uma imagem retórica. É a realização concreta da soberania popular como possibilidade de criação, transformação e controle sobre o poder, ou os poderes.

Finalmente, Freire (2002, p. 39) comenta sobre a preponderância da

técnica sobre o sócio-político e seus derivados efeitos nefastos:

É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates "ideológicos” que a nada levam. O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana.

Parece-nos evidente, percepção esta construída em nossas

experiências como trabalhador e educador social voluntário em diversas

instituições filantrópicas e advogado militante, que mais e mais se desaliena e

se conscientiza da sua função social, como cidadão e como elemento

indispensável à administração da Justiça, conforme preceitua o art. 133 da

Constituição Federal, que devemos participar ativamente do processo de

transformação da sociedade para que a igualdade possível seja conquistada

por meio do reconhecimento de direitos. Consolidando-se o Estado

democrático em nosso país, e que os direitos fundamentais, sociais, humanos

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90

e políticos já reconhecidos legalmente sejam, enfim, respeitados, efetivados,

concretizados, notadamente para aquelas pessoas e grupos que se encontram

em posição econômica, financeira, educacional e cultural desvantajosa, por

meio da sua própria ação autônoma, consciente e crítica.

A autoadvocacia se candidata a ser mais uma ferramenta de

rompimento dessa condição de marginalidade, de opressão e de desigualdade

calculada, porque procura conscientizar as pessoas e grupos dominados de

que suas necessidades, reconhecidas como tais a partir deles próprios, podem

e devem ser atendidas pelo Estado. E que dessa conscientização brotem

novas perspectivas. Ademais, a autoadvocacia se propõe a, sem interferir na

liberdade de escolha, encontrar com as pessoas e grupos os caminhos pelos

quais suas demandas podem e devem ser atendidas. Seus direitos devem ser

plenamente efetivados. Desta forma, a luta pela cidadania abrange não apenas

a conquistas de igualdade de direitos para todos os indivíduos e da efetivação

desses direitos, mas abarca também a conquista de uma vida digna, em sua

mais ampla acepção, para todos os cidadãos.

Quanto à ideologia dominante que permeia os direitos

constitucionalmente reconhecidos, dificultando ou inviabilizando a sua

efetivação, Farias (1999, p. 91) assevera:

Um dos problemas do nosso sistema jurídico atual é o da não-efetividade de muitos princípios contidos na Constituição de 1988, principalmente aqueles que se referem à justiça social, aos direitos sociais, à cidadania e à solidariedade. No Brasil, “a razão pública” e os princípios constitucionais fundamentais têm desempenhado uma função simbólica, predominando uma retórica política dissimulada e simulada.

O Estado, por meio de suas políticas públicas, reforça o cenário de

segregação social em que as pessoas oprimidas são vitimadas, na medida em

que esse enorme contingente humano não tem acesso à educação de boa

qualidade, que lhes permitiria concorrer a uma vaga em uma universidade

pública, não tem acesso à saúde, ao lazer, à informação de boa qualidade, aos

esportes, a atividades sociais e, por consequência, ao trabalho digno. Quando

teria por obrigação implementar uma cultura política nova que valorizasse e

executasse ações destinadas ao empoderamento desses indivíduos e grupos,

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91

garantindo-lhes o pleno exercício da cidadania como preparação do exercício

da autoadvocacia, que podemos conceituar como:

[…] um processo de vivência que imprima sentido e significado a um grupo ou movimento social, tornando-o protagonista de sua história, desenvolvendo uma consciência crítica desalienadora, agregando força sociopolítica a esse grupo ou ação coletiva, e gerando novos valores e uma cultura política nova (GOHN, 2002, p. 29).

A violação contínua dos direitos das pessoas e grupos oprimidos pelo

Estado e pelos detentores do poderio econômico e do poder reclama medidas

urgentes. É necessário que sejam desenvolvidas ações com a finalidade de

conscientizar, iluminar e libertar as pessoas e grupos dominados para que

combatam essas violações com os instrumentos adequados e que resistam à

situação de exclusão social e de invisibilidade, e é neste contexto que a

autoadvocacia se apresenta como um aliado, como uma ferramenta a mais nas

mãos das pessoas e grupos oprimidos para a sua intervenção social. Trata-se,

aliada à Educação Sociocomunitária, de um ativismo, que educa para

promover os indivíduos, de modo que esses se apropriem de instrumentos

socioculturais para a plena realização de uma participação na vida comum

motivada e competente, numa simbiose entre interesses pessoais e sociais.

Mais. A autoadvocacia não se apresenta como um instrumento limitado

de luta, que busca apenas a instrumentalização normativa dos indivíduos e

grupos, do conhecimento de leis e regras, mas busca também contribuir na

formação de indivíduos, que participem conscientemente da vida coletiva e na

construção de cidadãos autônomos e participativos. A autoadvocacia colabora

com a educação para que esses indivíduos e grupos conheçam criticamente a

realidade social em que vivem, que acreditem na possibilidade de mudança e

se solidarizem para que juntos e, portanto, mais fortes lutem para a construção

dessas mudanças. As famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros,

campo desse estudo, buscam conosco essa ruptura da invisibilidade social por

meio da autoadvocacia.

Apesar de a participação ser uma necessidade básica, o homem não nasce sabendo participar. A participação é uma habilidade que se aprende e se aperfeiçoa. Isto é, as diversas

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92

forças e operações que constituem a dinâmica da participação devem ser compreendidas e dominadas pelas pessoas. (BORDENAVE, 1995, p. 46)

Entretanto, consideramos que um dos grandes desafios é que esses

indivíduos e grupos em processo de desalienação e de libertação, quando

empoderados, ao invés de tornarem-se novos opressores, consigam de fato se

libertarem e generosa e solidariamente compartilhem suas experiências, seus

conhecimentos e suas perspectivas; para que possam conscientizar, desalienar

e libertar outros indivíduos e formar grupos para que juntos e mais fortalecidos

lutem pela efetivação de seus direitos.

Por meio da organização e união entre pessoas, que se identificam com

seus problemas e condições, amparando-se em comunhão, é que se

conquistará visibilidade e voz na sociedade opressora; movimentando os

recursos adequados para que se façam respeitados. A autoadvocacia se

encaixa perfeitamente nesse contexto, apresentando-se como uma

possibilidade, que tem como objetivo subverter esse quadro histórico de

exclusão social, política e econômica.

O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” ao opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta critica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações da desumanização […] É que, quase sempre, num primeiro momento deste descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores (FREIRE, 2011b, p. 17).

Outra grande dificuldade encontrada durante a pesquisa foi a questão

relacionada ao educador da autoadvocacia, notadamente daqueles não

familiarizados com a pedagogia freireana, e, principalmente, daqueles que

ainda não se “desalienaram” e não têm consciência deste fato. Aliás, a maior

parte daqueles que participaram como educadores em minha pesquisa não

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93

conheciam as ideias de Paulo Freire, mais, nunca haviam tido uma experiência

como educadores. Ademais, acreditamos que, via de regra, não estamos

preparados para nos libertarmos da educação bancária porque, além de

cômoda e simples de ser aplicada, está enraizada dentro de nós, tendo em

vista que a maior parte de nós dela também foi vítima. Crescemos nesta cultura

e com ela concordávamos passiva e alienadamente. A quebra dessa inércia e

comodismo, cristalizados em discursos vazios, que propagam a “liberdade e a

cidadania de todos”, sem contudo transformá-los em ações, é de uma

dificuldade de grande monta.

Freire (2011a, 2011b, 2011c) e Garner, amparando-se em Freire (1995),

alertam para a enorme dificuldade e desconforto dos educadores quanto à

prática da autoadvocacia, esta entendida como um dos meios da educação

para a autonomia. Contudo, Garner não tem o mesmo amor, o otimismo e a fé

de Freire, e é nesse ponto que se distanciam. Garner (1995) expressa sua

preocupação e sugere que há limitações na aplicação da autoadvocacia nos

casos em que os indivíduos são indóceis. Entendemos que Freire (2011b, p.

18) foi muito feliz na leitura da realidade quando, ao abordar a questão

relacionada à resistência do opressor de aplicar uma educação para a

autonomia e liberdade, asseverou que, primeiramente, existe muita dificuldade

e sofrimento em o opressor descobrir-se como tal, libertar-se e solidarizar-se

amorosamente com os homens concretos, oprimidos, injustiçados e roubados.

O “medo de liberdade também se instala nos opressores […] é o medo de

perder a “liberdade” de oprimir”, porque teriam a impressão de que perderiam

também parte de seu prazer, o prazer efêmero e ilusório de oprimir e de gozar

do poder e do império econômico, que estão ao seu serviço graças às massas

oprimidas. São o egoísmo e o orgulho exacerbados em ação. No próximo item

do presente capítulo verificaremos como os educadores se comportaram na

prática da autoadvocacia libertadora.

Finalmente, não podemos deixar de ressaltar que a autoadvocacia tem

utilidade para toda e qualquer pessoa e grupo, indistintamente, inclusive para

os dominadores, que nunca o são integralmente, sendo que em algum

momento são também oprimidos e, portanto, precisam também ser libertados.

Entretanto, em decorrência da linha dessa pesquisa, optamos por ressaltar a

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aplicação e suas consequências às pessoas e grupos oprimidos e

desempoderados.

Lança-se, agora, um desafio ao leitor não afeiçoado às lides jurídicas.

Citaremos dois direitos que todos temos em potencial, ou seja, desde que,

naturalmente, enquadrados nas condições previstas nas normas

correspondentes. Ao final, reflitam se as conheciam e se, porventura, já tiveram

ou têm direito ao seu gozo e não sabiam.

1. Conforme disposição contida no Decreto n.º 53.352, de 26 de agosto

de 2008, do Estado de São Paulo, o cidadão que tiver seu veículo furtado ou

roubado tem o direito à restituição proporcional do imposto pago, à razão de

1/12 (um doze avos) por mês de privação dos direitos de propriedade.

Em que pese constar na própria norma, em seu § 2.º do art. 2.º, que “A

restituição será processada pela Secretaria da Fazenda, independentemente

de solicitação.”, o que ocorre, na realidade, ao menos nos casos por nós

conhecidos, é que o cidadão alcançado pela violência da natureza ora tipificada

e ciente de seus direitos, se vê obrigado a dirigir-se pessoalmente a um dos

postos de atendimento ao contribuinte da Secretaria da Fazenda, munido de

um rol exaustivo de documentos e atender a mais um sem número de

exigências burocráticas, para que possa, enfim, ter o seu direito satisfeito.

2. O art. 190 da Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973, dispõe que

“Os emolumentos devidos pelos atos relacionados com a primeira aquisição

imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da

Habitação, serão reduzidos em 50% (cinqüenta por cento).” Ou seja, as

pessoas que adquirirem seu primeiro imóvel e, para tanto, utilizarem recursos

do Sistema Financeiro de Habitação (financiamento imobiliário), terão direito a

um desconto de 50% sobre o valor dos emolumentos cobrados pelos Cartórios

para a elaboração da escritura e registro do imóvel.

Contudo, tanto os Cartórios quanto as instituições financeiras

intermediárias dos financiamentos habitacionais, não avisam aos adquirentes

de imóveis sobre o citado direito. Alegam que não é sua obrigação cientificá-

los, evidenciando o descaso com o outro, o egoísmo, o individualismo e o

distorcido conceito de exercício de cidadania, que norteiam a maior parte dos

integrantes da sociedade. Desta forma, pouquíssimas pessoas que têm direito

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95

porque se enquadram nas condições exigidas pela norma gozam do desconto,

simplesmente porque não o conhecem. É lamentável que uma norma, que já

conta com quase quarenta anos de existência e vigor, ainda seja tão pouco

conhecida e propositadamente não divulgada, especialmente em uma época

de “boom” imobiliário.

No caso de imóveis adquiridos com os benefícios do Programa Minha

Casa, Minha Vida, os descontos aplicados sobre os emolumentos cartorários

correspondentes podem alcançar o percentual de 75% (setenta e cinco por

cento), conforme disposição contida no art. 43 da Lei n.º 11.977 de 7 de julho

de 2009.

Para quem está na luta para adquirir o primeiro imóvel e lança mão,

porque precisa e não porque quer, de financiamento imobiliário, que, diga-se,

cobra juros compostos (outro abuso cometido em larga escala e que se

relaciona com outro direito não exercido pelo cidadão), um desconto que pode

superar o valor de R$ 600,00 é muito bem vindo, notadamente porque nesta

fase há inúmeras outras despesas. Tratam-se, ambas, de leis federais e,

portanto, têm abrangência em todo o território nacional.

Esclarecemos que escolhemos dois direitos que deveriam ser

reconhecidos de plano, sem a intervenção do Poder Judiciário, porque não

paira sobre eles a sombra da incerteza, que reclamem a interpretação de

nossos julgadores.

Ressaltamos que o inciso II do art. 3.º da Lei n.º 12.527, de 18 de

novembro de 2011, determina que tanto a União, quanto os Estados, o Distrito

Federal e os Municípios têm o dever de divulgar as informações de interesse

público, independentemente de solicitação.

Além dos direitos citados acima, não podemos nos esquecer de que

nossos direitos e garantias fundamentais, reconhecidos constitucionalmente,

também não são respeitados. Estes também, via de regra, nos são

desconhecidos ou já esquecidos, porque, de tão acostumados com o

aviltamento e banalização da violência, desrespeito, imoralidade, falta de ética

de toda ordem, nos esquecemos de que temos incontáveis direitos

reconhecidos e não exercidos e nos acostumamos com uma estrutura social

deturpada. O que podemos dizer das pessoas e grupos desempoderados e

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alienados, que sofrem e são duramente penalizados, porque não conhecem

seus direitos mais elementares?

Certa feita uma senhora me procurou na condição de advogado. Cerca

de quarenta anos, abatida, com sinais de cansaço, visão comprometida mesmo

com a utilização de lentes corretivas, envelhecida precocemente e bastante

desanimada. Esta foi a minha primeira impressão. Era portadora de Diabetes

Mellitus há seis anos e, por falta de medicação adequada recebia auxílio

doença do INSS em importância líquida, que não alcançava um salário mínimo

e, portanto, insuficiente para adquirir os medicamentos, surgiram outras

doenças associadas e consequentes: Retinoplastia, Neuropatia, Transtorno

Ativo Bipolar e complicações neurológicas, elas afetavam severamente sua

visão, seu coração, seus sistemas circulatório, digestivo, urinário, neurológico,

seus rins, sua pele e seus ossos e articulações, sofria de constipação severa e

dispepsia importante, de difícil controle, entre outras.

Atendida em um hospital municipal, o médico que cuidava de seu caso

com mais frequência elaborou um laudo expondo a crítica situação da paciente

e solicitando com muita urgência, sob pena de óbito, determinada medicação,

que não era encontrada nos postos de saúde do município de Campinas. A

paciente levou o laudo e um calhamaço de resultados de exames para a

Secretaria Municipal de Saúde, a fim de solicitar que lhe fossem fornecidos os

remédios prescritos, conforme sugestão do próprio médico. Depois de atender

a uma série de procedimentos burocráticos, teve negado seu pedido. Neste

momento veio a minha procura, porque minha mãe, sua conhecida, lhe sugeriu,

por mais de uma vez: “Procure meu filho, que é advogado. Talvez ele possa lhe

ajudar de alguma forma…”. Quando eu a atendi, percebi que me procurava

mais por pressão de seu marido e de minha mãe do que por vontade própria,

porque não acreditava que algo pudesse ser feito. Desistira de lutar pela sua

vida. Ainda assim, parecia depositar em mim suas parcas esperanças.

Pedi-lhe que me trouxesse todos os documentos e exames e dei-lhe a

conhecer que seu direito ao recebimento dos medicamentos encontrava-se

amplamente amparado pela Constituição Federal, Constituição Estadual de

São Paulo e em leis infraconstitucionais, estando entre os direitos

fundamentais do cidadão, como o direito à vida, previsto pelo art. 5.º, caput, da

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97

Constituição Federal, bem como no direito à saúde, previsto nos seus artigos

6.º e 196, o qual representa consequência constitucional indissociável do

direito à vida.

Providenciados e entregues todos os documentos com muita agilidade,

porque sua vida estava se esvaindo perceptivelmente dia a dia, conforme me

relatara, ingressamos com Mandado de Segurança com pedido liminar, o qual

foi atendido integralmente, sem que a cidadã desembolsasse um centavo

sequer porque requerida a gratuidade da justiça em decorrência de sua

condição financeira. Sua vida foi salva, graças ao conhecimento e pleno

exercício de seu direito de cidadania. O processo ainda corre em grau recursal,

em Brasília, porque a municipalidade insiste em ver o fornecimento dos

medicamentos interrompido, lutando pelo perecimento do ser humano.

Finalmente, quando noticiamos os direitos que muitos de nós temos e

não sabemos, e porque os desconhecermos não os exercemos, houve

intervenção de nossa parte? De certo modo, sim, pois, de alguma forma,

agimos educacionalmente, no sentido de levar o outro a descortinar alguma

perspectiva diferenciada de vida. Pois bem, na autoadvocacia esse papel

educativo precisa ser constituído com mais sutileza, pois, ao mesmo tempo em

que o educador necessita prestar informações e esclarecimentos às pessoas e

grupos de oprimidos, precisa fazer isso com base nas necessidades e

expectativas deles próprios, sentidas e apreendidas com eles, a partir da

escuta e discussão. E com o mínimo de ingerência possível. Assim se procurou

proceder com a tentativa de formular uma educação para a autoadvocacia

relatada nessa pesquisa, como será exposto no tópico seguinte.

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98

3. A Autoadvocacia como possibilidade de autonomia na Educação Sociocomunitária

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não, porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico. (FREIRE, 2011b, p. 45)

3.1. Percurso Metodológico

Existem diversos métodos e critérios ou abordagens pelos quais busca-

se atingir os fins propostos numa pesquisa, mas nenhum deles pode ser

considerado o melhor ou o pior de forma genérica. Conforme Yin (2001) o

método ou o caminho investigativo deve ser escolhido pela afinidade que tem

com o objetivo e as condições nas quais uma pesquisa está sendo realizada.

Ademais, não se verifica a obrigatoriedade de se eleger apenas um método,

havendo a possibilidade de a pesquisa ou investigação lançar mão de mais de

um método, de forma combinada.

O objetivo central deste trabalho é analisar as consequências da

aplicação da autoadvocacia, como prática da educação sociocomunitária, junto

aos grupos familiares de baixa renda “assistidos” pelo Grupo Espírita

Caminheiros, na cidade de Campinas. A Autoadvocacia pretende apresentar-se

como uma prática da educação sociocomunitária, desenvolvendo a consciência

crítica no homem, constituindo-se como uma alternativa ao assistencialismo;

rompendo com a sua invisibilidade e tornando-o advogado de si mesmo e de

sua coletividade. Para que, assim, contribua para o seu empoderamento, com

a finalidade de que aja nas suas circunstâncias de modo a transformá-las e, ao

fazer isso, mobilize outros sujeitos a fazer o mesmo, formando grupos que

agirão na defesa de interesses comuns.

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Tendo em vista que este tema é relativamente recente no contexto da

educação sociocomunitária, pretendemos responder à seguinte pergunta

central de pesquisa: A aplicação da autoadvocacia nos grupos de famílias

assistidas pode contribuir para com o desenvolvimento da autonomia e, assim,

para seu empoderamento e desalienação? E para que passem a se unir e lutar

por seus direitos?

Para investigar as possibilidades de respostas a tal questão adotamos

uma metodologia qualitativa, porque consideramo-la mais adequada para, além

de buscar a compreensão dos fatos, procurar (re)construir os significados

desses fatos para os sujeitos (MARTINS; BICUDO, 1989).

A pesquisa qualitativa visa compreender, em sentido largo, o significado

que certos fatos e interações, com outros e com a sociedade, têm para

indivíduos pertencentes a um determinado grupo, por meio de informações

produzidas a partir de observações coletadas diretamente do/com o objeto de

pesquisa. Denzin e Lincoln (1994) e Chizzotti (2003) observam que apesar de

certa resistência decorrente dos questionamentos quanto à cientificidade e a

objetividade dos métodos qualitativos, suas técnicas passaram a ser

reconhecidas como fontes fidedignas de geração de conhecimento,

especialmente depois da II Guerra Mundial, quando a pesquisa qualitativa se

consolidou como um modelo de pesquisa. Godoy (1995, p. 21), ao comentar

sobre o assunto, afirma que atualmente

[…] a pesquisa qualitativa ocupa um reconhecido lugar entre as várias possibilidades de se estudar os fenômenos que envolvem os seres humanos em suas intricadas relações sociais, estabelecidas em diversos ambientes.

Chizzotti (2000, p. 81) destaca, como aspectos característicos da

pesquisa qualitativa:

a) a delimitação e formulação do problema como processo indutivo que

se vai definindo na exploração e observação reiterada e participante do objeto

pesquisado e dos contextos ecológico e social do ambiente, ao invés de ficar

reduzido a uma hipótese previamente aventada ou a variáveis avaliadas por

um modelo teórico preconcebido;

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100

b) o pesquisador, como parte fundamental da pesquisa qualitativa, deve

despojar-se de preconceitos e predisposições e assumir uma postura aberta

diante de todas as manifestações que observa sem, contudo, deixar de

participar e partilhar da cultura, da prática, das percepções e experiências dos

sujeitos da pesquisa;

c) os pesquisados, que são reconhecidos como sujeitos que elaboram

conhecimentos e produzem práticas adequadas para intervir nos problemas

que identificam. “Supõe-se que “os atores sociais não são imbecis”, na

expressão forte de Garfinkel, mas autores de um conhecimento que deve ser

elevado pela reflexão coletiva ao conhecimento crítico;

d) os dados, que se dão em contexto fluente de relações, não são

entendidos como “dados”, mas como fenômenos que se manifestam em uma

complexidade de oposições, revelações e ocultamentos, e não são coisas

isoladas, acontecimentos fixos, captados em um instante de observação. “É

preciso ultrapassar sua aparência imediata para descobrir sua essência”. O

fato de que algumas pesquisas qualitativas não descartarem, notadamente na

etapa exploratória, a coleta de dados quantitativos, não as desnaturam como

tais;

e) as técnicas utilizadas na pesquisa qualitativa, tais como a observação

participante, história ou relatos de vida, análise de conteúdo, entrevista não-

diretiva, entre outras, não se constituem em um modelo único, exclusivo e fixo,

mas devem incentivar a “acuidade inventiva do pesquisador, sua habilidade

artesanal e sua perspicácia para elaborar a metodologia adequada ao campo

de pesquisa, aos problemas que ele enfrenta com as pessoas que participam

da investigação.”

Godoy (1995, p. 21) destaca a oportunidade da pesquisa qualitativa:

Segundo a perspectiva da pesquisa qualitativa, um fenômeno pode ser melhor compreendido no contexto em que ocorre e do qual é parte, devendo ser analisado numa perspectiva integrada. O pesquisador vai a campo buscar captar o fenômeno em estudo a partir da perspectiva das pessoas nele envolvidas, considerando todos os pontos de vista relevantes. Vários tipos de dados são coletados e analisados para que se entenda a dinâmica do fenômeno.

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101

O estudo qualitativo pode ser conduzido através de diferentes caminhos.

Destacamos três possibilidades diferentes de se realizar pesquisa sob a

abordagem qualitativa, tendo em vista a sua larga utilização na atualidade: a

pesquisa documental, o estudo de caso e a etnografia.

Quanto à pesquisa documental, segundo Godoy (1995, p. 21), em que

pese parecer estranho a possibilidade da utilização do estudo de documentos

no âmbito de uma pesquisa qualitativa, estes, entendidos de forma ampla, são

considerados importantes enquanto ricas fontes de dados, tanto quanto a

pessoas presentes quanto ausentes, também abrangendo exames de fatos já

ocorridos em tempos remotos. Trazem contribuições relevantes para a

pesquisa, conquistadas por meio de exames e reexames, confirmações de

interpretações ou novos olhares, desde que haja critério científico na escolha

dos documentos e temáticas a serem examinados.

Quanto às vantagens das pesquisas que se utilizam da abordagem

qualitativa Oliveira (1999) destaca a flexibilidade no uso dos instrumentais de

coleta de dados. A pesquisa qualitativa, considerada como constante exercício

de investigação, não dispõe de estrutura rígida. O que permite aos

pesquisadores ampliarem seus horizontes de imaginação e criatividade,

buscando e explorando novos enfoques.

Oliveira (1999, p. 117) relaciona, ainda, como vantagens dessa

abordagem, a facilidade de:

poder descrever a complexidade de uma determinada hipótese ou problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos experimentados por grupos sociais, apresentar contribuições no processo de mudança, criação ou formação de opiniões de determinado grupo e permitir, em maior grau de profundidade, a interpretação das particularidades dos comportamentos ou atitudes dos indivíduos.

Enquanto processo de coleta de dados qualitativos, destacamos o

estudo de caso que, segundo Yin (2001), tem sido escolhido preferencialmente

a outros processos quando os pesquisadores procuram responder às questões

“como” e “por quê” certos fenômenos ocorrem, quando a possibilidade de

controle sobre os eventos estudados é limitada e quando o foco de interesse é

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102

sobre fenômenos atuais, que só poderão ser analisados dentro de algum

contexto de vida real.

Já a pesquisa etnográfica, antes associada fortemente com a

antropologia, atualmente é amplamente explorada em outras áreas de

conhecimento. Fetterman (1989, p. 11, tradução nossa) descreve a etnografia

como “a arte e a ciência de descrever uma cultura ou grupo”. Quanto à

rationale do método etnográfico, Fino (2006, p. 5) expõe:

Segundo Michael Genzuk (op. cit.) etnografia é um método de olhar de muito perto, que se baseia em experiência pessoal e em participação, que envolve três formas de recolher dados: entrevistas, observação e documentos, os quais, por sua vez, produzem três tipos de dados: citações, descrições e excertos de documentos, que resultam num único produto: a descrição narrativa. Esta inclui gráficos, diagramas e artefactos, que ajudam a contar “a história”.

Considera-se que o investigador, na pesquisa etnográfica, deve imergir

pessoalmente na vida dos sujeitos e grupos, partilhando de suas atividades e

experiências, na tentativa de romper o distanciamento existente entre o

pesquisador e o grupo pesquisado, presente nos trabalhos mais tradicionais.

Nesse sentido, André (2007, p. 109) alerta para a preocupação e necessidade

crescentes de o pesquisador agir com ética e valor em relação aos sujeitos ou

grupos investigados e aos leitores da pesquisa:

[…] enfatiza-se a necessidade de justificativa clara e objetiva das opções e das interpretações do investigador e defendem-se formas de colaboração e parceria entre pesquisador e

pesquisado, rompendo estruturas e relações de poder.

3.1.1. Procedimentos Metodológicos

O fato de o pesquisador participar ativamente das atividades do Grupo

Espírita Caminheiros e ser membro de sua diretoria, possibilitou o franco

acesso aos documentos e aos grupos familiares pesquisados.

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103

Antes de iniciarmos o trabalho de investigação propriamente dito, que foi

motivado pelas atividades assistencialistas já em desenvolvimento pelo Grupo

Caminheiros, o pesquisador conversou individualmente com os membros do

grupo de famílias assistidas, explicando-lhes os objetivos da pesquisa. Nessa

ocasião foi solicitado que preenchessem e assinassem o “Termo de

Esclarecimento e Consentimento Livre” (anexo 1), o qual fora objeto de leitura

direta pelos alfabetizados e indireta pelos não alfabetizados. Não houve recusa

ou resistência por parte de ninguém. Esclarece-se que algumas etapas formais

da pesquisa qualitativa, como a aproximação dos grupos familiares

pesquisados e levantamento de dados para maior conhecimento dos

participantes, já estavam prontas, tendo em vista que prestamos assistência às

famílias há anos. Houve, contudo, aprofundamento no que se refere ao

levantamento de dados de maneira focada e tecnicamente planejada, a

aproximação das pessoas com visão investigativa não intervencionista, com a

adoção do método freireano de apreensão e aprendizado horizontal; com a

finalidade de descobrir com as famílias seus anseios, desejos, medos e

sonhos... E estudo e reflexão dos dados levantados, mais próximo tanto quanto

possível da realidade enunciada por dessas pessoas - e interpretada por esse

pesquisador -, com o propósito de nortear as ações relacionadas à aplicação

da autoadvocacia.

3.1.2. Campo de Estudo: famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros

O Grupo Espírita Caminheiros está sediado em um imóvel alugado,

localizado em um bairro residencial de classe média na cidade de Campinas,

Estado de São Paulo. Dentre as suas atividades, desde aproximadamente o

ano de 1990, antes mesmo da sua constituição formal e legal como uma

associação sem fins lucrativos, o Grupo Espírita Caminheiros entrega cestas

básicas a moradores da periferia pobre de Campinas e região. Atualmente

entrega cestas básicas a 23 famílias, envolvendo diretamente

aproximadamente sessenta pessoas em situação de miserabilidade, residentes

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104

nas periferias de Campinas, Sumaré e Monte Mor. Os membros das famílias

têm idades variadas: de zero a setenta anos, e a maior parte dos adultos veio

de outras cidades e estados. Não há quem tenha ensino médio, ainda que

incompleto e, com exceção de uma garota muito vivaz, nenhum deles alcançou

sequer o ensino fundamental II. A maior parte é semi-analfabeta. Há duas

mulheres adultas e uma criança de doze anos que são completamente

analfabetas.

Não são adotados critérios oficiais para a classificação das famílias em

miseráveis ou não miseráveis, mas são realizadas visitas aos locais em que as

famílias estão fixadas e entrevistas com seus membros, com a finalidade de

verificar a sua real situação social e financeira. As impressões daqueles que

tiveram o primeiro contato direto com as famílias, que são, via de regra,

trabalhadores voluntários que participam ativamente dos trabalhos, são

relatadas aos demais membros do grupo, para que depois de exames e

considerações decidam se aquela família passará a receber cestas básicas ou

não. A entrega das cestas visa desde o seu início ao exercício da prática da

caridade ensinada por Jesus, já que se trata de uma entidade Cristã.

Em Campinas e região existem outras entidades sem fins lucrativos que

mantêm atividades análogas, as quais, via de regra, assim como era feito no

Grupo Espírita Caminheiros até a intervenção dessa pesquisa, têm caráter

predominantemente assistencialista.

Há alguns anos a mera entrega das cestas básicas às famílias

incomodava o pesquisador. Pensava que o Grupo tinha a obrigação de

oferecer a estas pessoas algo mais. Quando iniciado o Programa de Mestrado

e especialmente a atual pesquisa, houve a ideia, já dentro do princípio de

“fazer um algo mais”, de criar atividades para as famílias nos dias em que elas

iam até o Grupo para retirar suas cestas básicas. O pesquisador decidiu

conversar com as famílias para conhecer quais atividades lhes despertavam

interesse e o que lhes poderia ser útil. Entretanto, ninguém foi capaz de

responder a essas indagações, sem que houvesse algum nível de intervenção

mais diretiva, por parte do investigador. Enquanto apenas o pesquisador falava

os sujeitos estavam atentos, mas quando foram indagados e convidados a

participarem, olhavam para o lado e para o chão, evitando o contato visual com

Page 105: Rogério Pena Masi

105

o pesquisador e demonstravam desconforto na medida em que passaram a se

agitar nas cadeiras. Distraíram-se.

Em que pese, então, a intenção inicial ser a de não interferir ou interferir

minimamente nas respostas, para que se pudesse conhecer suas expectativas

e criar atividades que as atendessem, houve a necessidade de relacionar

algumas atividades, com base na pressuposição do investigador a partir dos

dados documentais já conhecidos e da percepção desse quanto ao contexto

dessas famílias. Elaborou-se, dessa forma, uma lista de atividades que

poderiam ser interessantes e úteis para os membros das famílias, conforme

sexo e idade. Foi um elemento disparador, e solicitou-se que as famílias

escolhessem algumas das atividades listadas.

Finalmente, foram criadas atividades relacionadas à elétrica residencial

para os homens adultos, informática para as crianças alfabetizadas e jovens,

manicure, pedicure e cozinha para as mulheres adultas, além de 30 minutos

para palestras com todos. Essas teriam como base, independentemente do

tema central, a educação freireana e a autoadvocacia. Na sequência, o

pesquisador solicitou uma reunião com todos os trabalhadores voluntários e

frequentadores do Grupo e expôs a ideia da criação das atividades e a sua

motivação. Houve concordância e adesão apenas parcial, mas conseguimos

levar a ideia adiante.

A consciência crítica nos desafiou e também a alguns dos trabalhadores

voluntários, embora a maior parte tenha se incomodado com as novas

propostas e dimensões do trabalho, a ponto de provocar grande evasão dos

membros do Grupo, o que comprometeu seriamente as atividades

anteriormente planejadas com as famílias.

Além de o pesquisador respeitar as famílias pesquisadas, também

respeita a decisão daqueles trabalhadores voluntários que optaram por não

aderir aos novos rumos das atividades. Tanto os trabalhadores voluntários

quanto os membros das famílias pesquisadas são sujeitos de direito e têm

plenas condições e capacidade de exercitar suas escolhas e tomar suas

decisões. Trata-se de uma mudança relativamente traumática, que causa a

ruptura de conceitos e ideologias em todos nós.

Page 106: Rogério Pena Masi

106

No entender freireano o opressor também precisa se libertar. E nos

opressores, assim como nos oprimidos, o medo da liberdade também se

instala. “Nos opressores, é o medo de perder a ‘liberdade’ de oprimir” (FREIRE,

2011b, p. 18).

3.1.3. População Participante

As pessoas envolvidas no estudo são as que compõem as famílias

assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros, especialmente os adultos, em

decorrência do perfil da pesquisa. Da pesquisa participaram diretamente vinte

“assistidos”, selecionados por apresentarem, na visão do pesquisador, perfil

mais adequado para a prática da autoadvocacia e da educação

sociocomunitária, porque vivem em situação de risco familiar em decorrência

de histórico atual de vícios, violência doméstica e maternidade precoce, e em

condições econômicas e de habitação das mais precárias, com exceção de

uma das pesquisadas que habitava com sua família uma residência popular de

alvenaria.

O conjunto de sujeitos diretos da pesquisa estava composto por três

homens e oito mulheres adultas, com idade entre dezoito e sessenta e cinco

anos, além de nove crianças e jovens com idade de zero a dezessete anos.

Não houve qualquer distinção quanto ao gênero, idade, opção sexual, cor de

pele, religião, origem, entre outros. Em que pese certa diversidade no perfil dos

membros da pesquisa, é possível relacionarmos algumas características

comuns:

a) Com exceção de uma mulher, todos os demais estão

desempregados (sem emprego formal);

b) Os que exercem alguma atividade remunerada trabalham em

subempregos (informais) ou “bicos”;

c) Recebem ajuda de terceiros (governo ou entidades assistenciais);

d) Residem com filhos próprios e dos companheiros ou companheiras e

com pelo menos mais algum membro da família;

Page 107: Rogério Pena Masi

107

e) Nenhum deles alcançou o ensino médio;

f) Não há nenhum negro;

g) Nenhum casal formalizou legalmente o matrimônio;

h) Todos residem na periferia pobre de Campinas ou de cidades

vizinhas;

i) Alguns adultos, homens e mulheres, já tiveram passagem pela

polícia; e

j) Todas as crianças em idade escolar estão matriculadas em escolas

públicas do bairro onde residem.

Os sujeitos da pesquisa não habitam o mesmo bairro, mas têm em

comum o fato de residirem em casebres feitas de madeira montados por eles

próprios em área invadida, com exceção de uma mulher, a única que trabalha

com vínculo formal, que habita com sua família uma casa de alvenaria

adquirida por meio de um programa público de casa popular.

Os sujeitos da pesquisa, com exceção da que reside em casa de

alvenaria, têm sua residência fixada em bairros que não oferecem infra-

estrutura básica. Nos locais verifica-se a existência de muitos casebres que se

espremem, uns bem construídos, simétricos e sem vãos livres, e mantidos com

zelo: pintados, lixados e limpos, em meio a outros que se apresentam como

verdadeiros caixotes, contendo vãos que permitem a visibilidade de todo o seu

interior por quem transita na rua, muito mal construídos, com madeiras de má

qualidade mantidas em seu estado natural. Alguns poucos são construídos de

alvenaria, outros de madeira, e ambos se misturam no ambiente. O chão do

interior dos casebres é de terra batida, mas os parcos móveis são mantidos

asseados, assim como as vestes de seus habitantes. Há uma pequena

“cozinha” e um pequeno banheiro nos casebres. As crianças apresentam-se

limpas, bem vestidas e tem boa aparência, em que pese serem, via de regra,

mirradas e aparentemente sofrerem de algum grau de desnutrição. A exceção

fica por conta de uma das famílias pesquisadas, cujo interior de seu casebre é

lamentável: sujo, móveis, roupas e outras coisas empilhadas, vestimentas com

aparência “ensebada”, assim como seus habitantes. Nesta última residência

não há banheiro e “cozinha”.

Page 108: Rogério Pena Masi

108

Não há energia elétrica legalmente instalada nas casas e nas ruas,

sendo que as pessoas fazem ligações clandestinas, chamadas de “gatos”, para

terem energia elétrica em seus casebres, o que sujeita toda a coletividade a

risco iminente de curto circuito e incêndios. Não há saneamento básico

prestado pela concessionária de serviços públicos. As pessoas constroem

fossas em seus banheiros, as ruas não são asfaltadas e permitem acesso

parcial muito precário de veículos. Não há posto de saúde, escola pública e

coleta de lixo. Quando precisam de atendimento médico, se deslocam por

quilômetros até o posto de saúde ou hospital mais próximo. As crianças são

matriculadas em escolas públicas de bairros vizinhos e o lixo é jogado

diretamente nas ruas, sem nenhum acondicionamento, o que representa risco

à saúde de toda a população do bairro e lhe dá aparência degradante de lixão.

O policiamento e os agentes de saúde não chegam até o local. Prevalece o

poder paralelo dos traficantes de drogas que agem livremente no local. O

transporte público não chega até o local. “[…] aspectos típicos de uma área

discriminada.” (FREIRE, 1981, p. 18) Ou seja, o Poder Público, direta e

indiretamente, simplesmente não reconhece que os referidos bairros são

habitados. As pessoas que neles habitam não existem para o Estado.

Uma das mulheres que participou da pesquisa reside em uma casa de

alvenaria, adquirida por meio de um programa público de casas populares. O

bairro, populoso, conta com algumas ruas asfaltadas outras não, uma creche e

serviço público precário de coleta de lixo. Não há escola e posto de saúde. As

crianças são matriculadas em escolas públicas do bairro vizinho e quando é

necessário atendimento médico, as pessoas são obrigadas a se deslocarem

por quilômetros. A casa da pesquisada está localizada em uma rua asfaltada e

apresenta um bom acabamento interior. O exterior é precário. Por dentro a

casa é relativamente limpa mas mal iluminada.

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109

3.1.4. Instrumentos de coleta de dados qualitativos

O pesquisador utilizou-se de diversos instrumentos na coleta de dados.

Dentre eles destacam-se a observação participante, pois os dados foram

coletados e construídos em contato direto com as pessoas pesquisadas, tanto

na sede do Grupo, como também em suas moradias. Isso possibilitou a

imersão nas circunstacialidades dos sujeitos, que também se tornaram - ainda

que momentaneamente - àquelas do pesquisador. E a entrevista não-diretiva,

uma vez que o pesquisador colheu percepções e perspectivas dos sujeitos, por

meio de discursos livres dos entrevistados. Para Chizzotti:

A observação direta ou participante é obtida por meio do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado, para recolher as ações dos atores em seu contexto natural, a partir de sua perspectiva e seus pontos de vista. […] A entrevista não-diretiva, ou abordagem clínica, é uma forma de colher informações baseadas no discurso livre do entrevistado. (CHIZZOTTI, 2000, p. 90)

Os dados mais “formais” foram coletados desde o início da pesquisa, em

agosto de 2011, o que foi viabilizado e facilitado porque desde 2005 o

pesquisador pertence aos quadros de frequentadores e trabalhadores

voluntários do Grupo Espírita Caminheiros. As falas e depoimentos dos sujeitos

foram registrados, de forma escrita pelo pesquisador, logo depois de

ocorrerem. Não foram gravados em virtude da nítida inibição e desconforto que

tal atitude provocava nos participantes; fato este percebido por meio de seus

gestos e alteração nítida e repentina de comportamento nas primeiras

conversas investigativas que o pesquisador teve com os mesmos, ao

questioná-los sobre a sua anuência para a utilização do recurso da gravação.

Desta forma, além do respeito à decisão dos entrevistados, ainda que esta

tenha se dado de forma implícita, o pesquisador considerou que não seria

positivo arriscar a possibilidade da ocorrência de potenciais desfigurações nos

depoimentos, respostas e/ou nas situações vivenciadas, provocadas pelo uso

do gravador.

Page 110: Rogério Pena Masi

110

Isso, contudo, exigiu que o pesquisador escolhesse determinados

momentos para mais propriamente sistematizar a coleta e o registro das falas e

tomadas de depoimentos, que ocorreram tanto na sede do Grupo quanto no

domicílio dos participantes. Cuidados foram tomados para que o contato

pesquisador-participantes fosse de compartilhamento das situações de forma

integrada, estabelecendo-se vinculações de confiabilidade.

O pesquisador transcreveu cuidadosamente as falas e impressões de

forma a garantir a sua fidedignidade, de maneira que o leitor possa conhecer o

que de fato os participantes disseram, respeitando-se as inevitáveis distorções

provocadas pelo viés interpretativo do pesquisador. Desde o início da pesquisa

os dados colhidos foram arquivados em documentos virtuais, no formato Word

do Microsoft Windows, no computador do pesquisador, e foram identificados

por local e data das entrevistas e conversas. Todos os dados foram colhidos

diretamente pelo próprio pesquisador.

3.1.5. Considerações sobre a Ética no Estudo

A “suspensão” consciente de pré-julgamentos foi uma preocupação

constante, tanto na transcrição dos depoimentos quanto na interpretação dos

fatos observados pelo pesquisador. Especialmente pelo hábito, de certa forma

cristalizado nos trabalhadores voluntários do Grupo, ai incluído o pesquisador,

de oferecer para as famílias pesquisadas meras atividades assistencialistas. O

que parece conduzir a um habitus mental de olhar essa população como

“adormecida”. À medida, contudo, em que o pesquisador se aprofundava nos

estudos das disciplinas cursadas e em sua pesquisa, além do precioso

aprendizado tomado junto aos professores do Programa de Mestrado e com

sua orientadora, passava a se desalienar e corrigir a rota das atividades

desenvolvidas com as famílias pesquisadas. Compartilhava suas descobertas e

aprendizados com os demais trabalhadores voluntários do Grupo para

transformar as atividades em uma educação no modelo freireano. E o que

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111

antes era apenas assistencialismo barato, embora empreendido com

sinceridade e boas intenções, começou a transformar-se.

3.2. A educação para a autoadvocacia junto às famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros

A intervenção aqui relatada provocou importantes alterações nos rumos

dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Espírita Caminheiros. É importante

lembrar que a pesquisa foi motivada por questões de foro íntimo do

pesquisador, quanto ao modo como o atendimento às famílias estava sendo

interpretado e conduzido, de modo totalmente assistencialista. As cestas

básicas, já referidas, eram entregues às famílias assistidas todo segundo

sábado de cada mês. As famílias começavam a chegar a partir das 8h,

pegavam um número sequencial e sentavam-se em cadeiras localizadas no

fundo da casa – sede do Grupo -, em um salão, e aguardavam até às 9h / 9h

30min, quando lhes eram servidos pães com manteiga e leite com

achocolatado. Alguns trabalhadores voluntários trocavam algumas palavras

com as pessoas atendidas e logo em seguida eram chamadas a retirarem as

cestas básicas por meio da numeração de que eram portadoras, na ordem de

chegada.

Depois que o pesquisador conversou e procurou conscientizar o Grupo

acerca da necessidade de educar as famílias, visando o seu despertamento

para uma consciência crítica, responsabilidade e autonomia por meio de

conceitos freireanos e da prática da autoadvocacia, foi possível aprovar

mudanças na sistemática assistencialista. O novo projeto de atendimento não

ficou sem resistências, manifestas por aqueles que tiveram a coragem de

assumir, ainda que indiretamente, que da maneira como “historicamente” o

Grupo procedia estava bom para todos. Enquanto alguns trabalhadores

voluntários não opinaram naquele momento, mas demonstraram nítido

desconforto estampado em seus rostos, olhos e movimentos corporais, outros

se manifestaram timidamente no seguinte sentido:

Page 112: Rogério Pena Masi

112

Isso não vai dar certo porque eles não vão querer vir mais uma vez por mês sem ganhar nada com isso (mais alimento). Não é possível dividirmos as cestas básicas em duas. Como vamos dividir o saco de arroz, feijão e macarrão? E os itens que são oferecidos unitariamente? Não vai dar. Bom, eu também acho que não vai dar certo. Mas quem vai dar as atividades? Onde as atividades serão realizadas, se a casa é pequena? O espaço não é adequado.

Por outro lado, houve trabalhadores voluntários que disseram,

igualmente acanhados, concordar com a proposta porque se identificavam com

a sua fundamentação, e foi graças a esses que a proposta foi colocada em

prática.

Neste momento o pesquisador procurou desenvolver uma escuta

sensível da reação dos trabalhadores voluntários, ouvindo respeitosamente o

que tinham a dizer. Embora diga respeito aos alunos, o ensino de Freire (2002,

p. 43) sobre a escuta pode ser plenamente aplicado no caso ora relatado:

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a ferir com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele. Mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.

Ademais, Freire alertava para o fato de que os opressores também têm

medo da liberdade e sofrem com isso. “Descobrir-se na posição de opressor,

mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos”

(FREIRE, 2011b, p. 19), daí a resistência presenciada pelo pesquisador.

O pesquisador se reuniu com as famílias para consultá-las e mais uma

vez tentou colher suas opiniões, sobre quais os rumos que o trabalho deveria

tomar para mais bem servi-las. Uma vez mais, embora estimuladas por

diversas maneiras, a participação das famílias foi muito aquém do esperado.

Page 113: Rogério Pena Masi

113

Alguns se limitaram a opinar apenas depois que algumas sugestões lhes foram

apresentadas, outros nem assim. O pesquisador procurou conscientizar os

sujeitos da pesquisa de que a sua participação era muito importante para o

Grupo também, porque todos temos algo a ensinar, foi quando um dos homens

disse, demonstrando concordância e satisfação por seus trejeitos e cabeça

elevada:

Quando você tá ai falando nóis aprende com você, mais vocêis aprende com a gente também. A gente tem coisas pra ensina pra vocêis também. Não é?

Foi quando alguns “assistidos” manifestaram-se ironicamente,

zombando do participante e rindo. Imediatamente, o pesquisador concordou

com o manifestante e ratificou a importância da participação de todos porque o

Grupo deseja muito aprender com eles e que todos sempre temos, sim, algo a

ensinar e aprender. O pesquisador citou algumas habilidades conhecidas,

como um dos frequentadores, que faz trabalhos esporádicos como pintor de

paredes, outro como eletricista, e algumas mulheres que sabem como limpar

madeira, ou cozinhar, esclarecendo que ele próprio não sabia fazer aquelas

coisas com a mesma destreza e que, portanto, gostaria de aprender com eles.

O pesquisador incentivou os sujeitos a participarem das atividades também

como “instrutores”, valorizando-os em uma tentativa de “aproximá-los” dos

trabalhadores voluntários quanto as suas capacidades. Foi quando este

mesmo “pintor” se manifestou timidamente, demonstrando desconforto pela

sua expressão corporal, voz baixa e olhar “perdido”:

Eu posso ajudar.

O que foi imediatamente aceito pelo pesquisador, que valorizou a sua

colaboração e esclareceu, ainda, que ele poderia ensinar as pessoas de seu

bairro a pintarem as suas casas, assim como as demais pessoas poderiam

compartilhar seus talentos na comunidade em que vivem, impulsionando a

fraternidade e o progresso do local. Não houve mais nenhuma manifestação

depois disso, mas o pesquisador percebeu que, ao menos aparentemente, as

pessoas mudaram a sua postura e passaram a demonstrar mais interesse

Page 114: Rogério Pena Masi

114

depois do fato ora relatado, notadamente pela maneira como se sentavam e

andavam: mais eretas. Para o oprimido, participar, ter voz é muito difícil porque

não está acostumado a ser ouvido e muito menos respeitado. Para que

participar se não será ouvido, se sua opinião não será considerada? Os

sujeitos não podem expressar o seu querer por meio de palavras pessoais,

criadoras, “[…] perderam a sua identidade, isoladas, imersas na multidão

anônima e submissas a um destino que lhes é imposto e que não são capazes

de superar, com a decisão de um projeto.” (FREIRE, 2011b, p. 10).

Pensou-se, então, em visitar algumas das famílias para que o

pesquisador pudesse conversar com elas num ambiente mais “seguro”, para

verificar se a participação se faria mais efetiva, o que não ocorreu. Com base

nos parcos elementos extraídos da participação de alguns e do depoimento de

todos os que foram ouvidos, bem como dos documentos referentes às famílias,

existentes na entidade - dados cadastrais - elaborou-se o programa e as

atividades a serem desenvolvidas. Depois desta definição, o pesquisador e

alguns trabalhadores voluntários se reuniram com as famílias e discutiram com

elas sobre as alterações que seriam empreendidas quanto aos horários,

dinâmica de atendimentos, além das opções de atividades. Embora tenha

havido pouca participação ativa, houve clima de contentamento e a “aceitação”

foi unânime. Em que pese serem novamente estimulados, ninguém desejou

sugerir alterações nos horários, formato e atividades.

Essa força condicionante chamada por Freire de “cultura do silêncio” é

muito difícil de ser rompida, porque ainda que as condições de opressão não

estejam presentes, o poder da estrutura dominadora permanece não como

reminiscência, mas como algo concreto para as pessoas oprimidas, o que

interfere no que-fazer novo que a nova estrutura demanda destes. “Nenhuma

“ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por

quê?”” e participassem (FREIRE, 2011b, p. 43). Historicamente, as classes

dominantes impõem o silêncio como regra aos dominados, que são proibidos

de dizer a sua palavra. Desta forma, na “cultura do silêncio” a única voz é a da

classe dominante.

Esta “cultura do silêncio”, gerada nas condições objetivas de uma realidade opressora, não somente condiciona a forma de

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115

estar sendo dos camponeses enquanto se acha vigente a infra- estrutura que a cria, mas continua condicionando-os, por largo tempo, ainda quando sua infra-estrutura tenha sido modificada. (FREIRE, 1981, p. 27)

A seguir, o pesquisador passou a convidar as pessoas, individualmente,

para mais uma conversa. Sentamo-nos em uma sala reservada, na sede do

Grupo, e uma vez mais falou-se sobre as alterações e atividades,

esclarecendo, em linguagem acessível, sobre a intenção e propósito de propor

esse novo formato de trabalho. Nesta mesma oportunidade o pesquisador

explicou sobre a pesquisa acadêmica que estava realizando, e convidou todos

a participarem, porém, com mais ênfase, aos vinte participantes que, pelas

razões anteriormente mencionadas, compuseram os sujeitos desse estudo. A

esses foi solicitado que assinassem o Termo de Esclarecimento e

Consentimento Livre, conforme modelo demonstrado como Anexo 1, o qual foi

assinado por todos os convidados a tanto.

Aproveitou-se para tentar estimular a participação de todas as pessoas

que compareciam à sede do Grupo mais uma vez, ressaltando a importância

dessa participação e a disposição dos voluntários e do pesquisador em

considerar a seriedade do trabalho proposto. Não houve maiores dúvidas, com

exceção das crianças e adolescentes, que desejavam saber se haveria jogos

eletrônicos nas aulas de informática. Finalmente, solicitamos às pessoas que

optassem por apenas uma das atividades oferecidas, já que todas

aconteceriam no mesmo período, e convidamo-las a preencher a Ficha de

Inscrição, conforme modelo demonstrado como Anexo 2.

O momento em que solicitamos o preenchimento da Ficha de Inscrição,

cuja intenção foi a de organizar as atividades conforme o número de alunos e

empreender um caráter de seriedade, responsabilidade, integração e respeito

aos trabalhos, foi aquele em que nos conscientizamos do analfabetismo

absoluto de um jovem de 12 anos que, aparentemente, não é uma pessoa

portadora de deficiência ou limitação intelectual. Impressionou-nos o fato de

que muitos desconhecem o local de nascimento (cidade e estado) e a data

desse, inclusive as crianças. Aqueles que portavam seu documento de

identidade tiveram que consultá-lo.

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116

A partir de setembro de 2011, quando a nova proposta foi feita, a

programação passou a ser a seguinte: as cestas básicas passaram a ser

entregues em duas partes, metade no segundo sábado e a outra metade no

quarto sábado de cada mês, para que as pessoas fossem incentivadas a virem

até o Grupo para desenvolver as atividades planejadas, já que considerávamos

pouco o seu contato conosco e o desenvolvimento das atividades apenas uma

vez ao mês. Houve acréscimo na quantidade de leite entregue para as famílias

para reforçar as cestas básicas.

Depois de algumas discussões, o Grupo decidiu custear a ida e volta

das famílias no quarto sábado de cada mês, já que todos informaram, quando

indagados, que não teriam condições financeiras de pagar pelo transporte

público para frequentarem o Grupo um dia a mais por mês, especialmente

porque a maior parte dependia de quatro a seis ônibus para se deslocar da sua

residência até a sede do Grupo.

O horário de chegada passou a ser até às 8h30min, com tolerância de

30min. Pontualmente às 9h inicia-se a palestra, geralmente tendo como tema

central os ensinamentos de Jesus, sempre com ênfase na responsabilidade de

nossos atos, abordando questões atuais com visão crítica, o futuro como

possibilidade, a desmistificação e o desmentir de dogmas, como “destinos”,

punições, pecados e milagres e incentivando as pessoas a buscarem seus

direitos. As palestras são elaboradas cuidadosamente, para que tenham forte

conteúdo da educação freireana, da autoadvocacia e da participação coletiva

nas lutas por demandas da comunidade. O pesquisador, que é quem programa

os temas e os enfoques, e mais dois trabalhadores voluntários, se revezam na

condução das palestras.

Com o fim da palestra, às 9h30min, o pão com manteiga e o leite com

achocolatado passam a ser servidos para as famílias, conscientizando-as de

que os copos descartáveis e os papéis devem ser depositados nas diversas

lixeiras existentes no local. Aproveitamos para abordar temas básicos sobre

higiene, limpeza e consciência ecológica, já que algumas famílias têm sua

habitação fixada em meio a ambientes sujos e insalubres, onde as pessoas

depositam seus detritos diretamente na rua, sem acondicionamento, porque o

serviço de coleta não chega até o local. Alguns dos trabalhadores voluntários,

Page 117: Rogério Pena Masi

117

atendendo a uma proposta conscientizadora enérgica da parte do pesquisador,

passaram a tomar o café da manhã junto às famílias, no salão. Nos

“misturamos” a eles e conversamos francamente. Antes, quase todos tomavam

seu leite e comiam seu pão na cozinha, onde as famílias não tinham acesso.

É necessário que os trabalhadores voluntários, notadamente quando

assumem a missão ou pretensão de educar, reconheçam a sua verdadeira

condição e, se reconhecerem-se como opressores, movimentem-se

rapidamente para a sua própria libertação, a qual só será alcançada por meio

do contato respeitoso e do diálogo com as pessoas oprimidas, porque apenas

estas poderão libertá-los. A relação dos trabalhadores voluntários com os

sujeitos da pesquisa, pessoas oprimidas, deve ser horizontal, dialógica e

amorosa, como ensinava Freire. Para tanto, um dos primeiros esforços que os

opressores devem fazer é libertarem-se da ideologia mítica opressora da

“absolutização da ignorância” decretada às pessoas dominadas, a fim de que a

palavra das famílias seja devolvida. Os opressores, aqui representados pelo

pesquisador e pelos demais trabalhadores voluntários do Grupo, devem saber

ouvir e respeitar a realidade e as opiniões das famílias, seus sentimentos e

desejos, seus sonhos e frustrações, sua história e sua falta de perspectiva,

sem que as considerem coisas incapazes e para que compreendam porque

não são coisas incapazes, mas apenas pessoas oprimidas pelo Estado

neoliberal. Para tanto, o pesquisador e os demais trabalhadores voluntários do

Grupo precisam se aproximar amorosa e respeitosamente dessas famílias.

No ato desta decretação, quem o faz, reconhecendo os outros como absolutamente ignorantes, se reconhece e à classe a que pertence como os que sabem ou nasceram para saber. Ao assim reconhecer-se tem nos outros o seu oposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua passa a ser a palavra “verdadeira”, que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre os oprimidos, roubados de sua palavra. (FREIRE, 2011b, p. 75)

As atividades que passaram a ser oferecidas foram:

a) Noções de elétrica para os homens adultos, atividade esta

desenvolvida no salão dos fundos, onde todos se reúnem quando chegam. Um

engenheiro e um professor do SENAI, já aposentado, se revezam nesta

atividade. Ambos são trabalhadores voluntários. A intenção é a de que os

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118

participantes possam realizar pequenos reparos residenciais, para aumentar as

chances de conquistar um emprego formal e serem capazes de realizar

pequenos trabalhos avulsos.

b) Informática para os jovens e crianças maiores de oito anos, realizada

em um dos quartos da casa, onde existem quatro computadores em perfeito

funcionamento. Um voluntário, com formação em engenharia, conduz as aulas,

visando à inclusão digital dos alunos.

c) Manicure e pedicure, oferecida por uma voluntária, para as mulheres

adultas, com a finalidade de possibilitar que consigam desempenhar uma

atividade remunerada alternativa, enquanto estiverem desempregadas.

d) Culinária, sendo ensinadas receitas que têm como propósito o

aproveitamento completo dos alimentos, inclusive sobras e cascas. Noções de

higiene, organização, manipulação de alimentos, nutrição, entre outros, visando

à aplicação dos conceitos em casa e também na residência onde prestam

serviços. As aulas são conduzidas por duas voluntárias na cozinha da sede do

Grupo e é a atividade que conta com maior número de participantes.

e) Tricô e crochê para as senhoras que não desejam se envolver nas

demais atividades.

f) Educação infantil. Um grupo de cinco voluntários, incluindo uma

pedagoga com experiência de mais de vinte anos de trabalho com ensino

infantil em escolas públicas de periferia, têm propósito de entreter as crianças

de até 7 anos, que são bastante numerosas, para que seus pais possam

participar das atividades e, principalmente, educá-las com base nos conceitos

freireanos. São a esperança maior de um futuro melhor para as famílias.

A intenção maior das atividades é a de aproximar as famílias dos

trabalhadores voluntários, para que possam trabalhar os conceitos de

autonomia, despertar a consciência crítica, desenvolver de forma positiva as

suas crenças de auto-eficácia, conscientizá-los sobre o futuro como

possibilidade e a sua correspondente responsabilidade e desenvolver a

capacidade da prática da autoadvocacia, como possibilidade da educação

sociocomunitária, que possa contribuir para a promoção da transformação

social das famílias e comunidades em que vivem.

Page 119: Rogério Pena Masi

119

Essa nova proposta foi iniciada no dia dez, do mês de setembro de

2011, como já mencionado. Nessa ocasião, como já havia feito algumas vezes,

o pesquisador foi até o salão e sentou-se ao lado de pequenos grupos, que se

formavam naturalmente, conforme as afinidades que já haviam se estabelecido

pela convivência naquele ambiente. Conversavam sobre trivialidades. O

pesquisador passou a conduzir a conversa, sutilmente, a assuntos com viés

social e se aprofundou sensivelmente nos pensares e sentires dessas famílias.

Notou-se que as famílias, em regra, são alienadas quanto aos seus

direitos. Desconhecem-nos e o discurso foi muito semelhante quando

questionadas sobre o motivo pelo qual não tomavam uma atitude e não se

engajavam, a exemplo, em associações de bairro, ou se reuniam

organizadamente para lutar por asfalto, creches, escolas, postos de saúde,

ligação de energia elétrica, saneamento básico etc., no bairro e na comunidade

para melhorar a situação em que vivem:

Tá tudo bem. Fazer o que? Não adianta reclamar. Reclamar pra quem? Ninguém tá nem ai com os problemas da gente. E adianta…? Tá bom. A gente dá um jeito.

A leitura do pesquisador é a de que essas falas demonstram desamparo,

desânimo, alienação profunda e percepções negativas quanto as suas crenças

pessoais de auto-eficácia. A ponto de, ainda que “conscientizadas” ou, antes,

informadas de seus direitos, continuarem acreditando que não merecem ou

que não é possível alcançar a sua efetivação. O pouco que o Estado lhes dá -

a atenção precária nos postos de saúde, a não coleta do lixo, a fragilidade do

ensino... - já parece estar “de bom tamanho”. Agem e vivem conforme regras

próprias da comunidade onde vivem. A maior parte não parece ter a

consciência da importância dos estudos para seus filhos, porque o “destino”

deles também já está fixado na miséria e exclusão social, que, obviamente,

eles não percebem como tal. Desejam que os filhos comecem a trabalhar o

mais rapidamente possível, para colaborar na subsistência da casa.

Verificou-se que as pessoas pesquisadas têm noção totalmente

desvirtuada e incompleta do que seja justiça, tanto pela ausência do Estado

Page 120: Rogério Pena Masi

120

nos locais onde moram quanto pela atividade e domínio de criminosos, que

estabelecem as suas próprias leis por meio de um poder paralelo. Nestes casos,

a aplicação da autoadvocacia se torna muito complexa e aparentemente impossível,

porque o poder paralelo rompe a coesão social e os traços de liberdade da comunidade

agredida, para a qual a sobrevivência passa a depender da capacidade de adaptação às

regras dos oprimidos-opressores. O instinto de sobrevivência e o egoísmo passam a

prevalecer, a lei do silêncio e a coisificação dominam o ambiente, sem nenhuma

resistência dos sujeitos oprimidos. Ao exigirem a presença da polícia no local a fim de

que seja instituído o poder legal, o denunciante e seus familiares serão executados.

As relações familiares, principalmente relacionadas ao casal, são

estruturadas diferentemente das convencionadas pela sociedade. Há mais de

um caso em que a mulher deixa o marido para ficar com o irmão e todos

continuam convivendo no mesmo meio, sem maiores conflitos. As crianças, via

de regra, são bem cuidadas fisicamente. Tanto nas visitas as suas residências

como na frequência ao Grupo, o pesquisador notou asseio e cuidados

nutricionais, por parte dos cuidadores, mas em ambos os ambientes as

crianças são tratadas com estupidez e violência, física e verbal. Os diálogos

equilibrados são raros.

O pesquisador constatou que, via de regra, a mulher é quem toma a

frente da maior parte dos assuntos em casa. No Grupo, os poucos

companheiros que acompanham as mulheres vão mais para ajudar no

transporte dos mantimentos e menos para participarem.

Outras falas ouvidas aqui e ali consolidam a ideia do quanto a

penetração do discurso assistencialista está corporificada nessa população. O

pesquisador ouviu de uma das frequentadoras que, aborrecida, se lamentava

de que passou a ser registrada pelo “patrão” e por isso perdeu a Bolsa Família.

Apesar de muito pobres, vestem-se muito bem (a sua maneira). As

mulheres comparecem sempre com cabelos cortados e penteados, adultos e

crianças sempre limpos e demonstram vaidade. Alguns usam piercing e

tatuagem. Alguns trazem no rosto as marcas da vida, talvez agravadas pelo

uso de drogas e álcool, traço comum entre eles.

No dia primeiro de outubro de 2011, na companhia de um dos

colaboradores mais ativos do Grupo Espírita Caminheiros, chamado Manoel, o

Page 121: Rogério Pena Masi

121

pesquisador foi visitar algumas famílias. As visitas são feitas periodicamente e

as famílias não são avisadas. Não se trata de fiscalização, mas de uma

tentativa de aproximação menos “burocrática” daquela vivenciada na sede do

Grupo, além de verificar eventual grave necessidade não reclamada. Nesse

caso, as famílias visitadas compunham aquela dos sujeitos que aceitaram

participar da pesquisa. No bairro Aparecidinha, em Campinas, foram visitadas

três famílias. “Afundaram-se” bairro adentro até terminar o asfalto. Percorreram

mais uns 500 metros em rua precária de terra. O tempo estava muito bom,

ainda assim havia muitos buracos, que dificultavam a passagem do veículo.

A primeira família visitada vive em um pequeno barraco feito de madeira.

O pesquisador estima que a habitação toda não tenha mais do que 15m2.

Foram atendidos pela mulher, que aparentava desânimo e informou estar

doente, necessitando passar por procedimento cirúrgico. Estava vestida com

discrição e limpeza. Tinha um piercing na sobrancelha. Era sábado, passava

das 10h e o companheiro estava dormindo. Não há divisória, não há banheiro e

não há água encanada. A energia elétrica chega através de “gatos” (ligação

clandestina). A situação é de extrema precariedade. Móveis empilhados, local

abafado, sem circulação de ar, sujo e degradante. As condições gerais de

higiene são lamentáveis, inclusive quanto ao fogão, que acomodado

desalinhadamente ao lado da porta de entrada, apresenta uma crosta escura

de sujeira em toda a sua extensão, principalmente na parte de cima.

Observamos a existência de verduras em contato direto com o móvel

enferrujado. Não há geladeira. Há uma televisão e um vídeo game para a

criança, que é bastante magra, aparentando desnutrição. O entorno da

habitação é um esgoto a céu aberto. A família utiliza o mato em frente à

residência para suas necessidades fisiológicas, sem que aparentem

constrangimento em decorrência disso. Demonstram muita naturalidade, aliás.

O pesquisador conversou com a mulher sobre solicitar à Prefeitura

materiais de construção para a edificação de uma pequena casa de alvenaria,

ao que respondeu que o bairro todo fora habitado por meio de invasão, ainda

não regularizada. Foi esclarecido que, ainda que o bairro esteja habitado

irregularmente, seus moradores devem buscar, junto ao Poder Público,

estrutura para a comunidade que ali vive, especialmente de serviços

Page 122: Rogério Pena Masi

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essenciais, e também nas concessionárias de serviços públicos a instalação de

energia elétrica, água e esgoto. Além de se inscreverem em programas de

moradia popular. Finalmente, o pesquisador procurou conscientizá-la sobre a

higiene dos alimentos e a necessidade de solicitar a ajuda da comunidade para

a construção de um banheiro em sua habitação. A mulher apenas concordava

e não participava ou opinava, limitando-se a dizer que nenhuma das propostas

apresentadas era possível. O pesquisador se colocou à disposição para ajudá-

la.

Enquanto o pesquisador dialogava com a referida mulher, também

tentava discutir sobre possíveis questões que podiam incomodá-la, como a

ausência do banheiro, e buscava provocar a emersão de uma visão critica do

ambiente em que vivia, conscientizando-a sobre seus direitos e lhe oferecendo

alternativas para a sua efetivação. A consequência por ele esperada disso tudo

é que ela vislumbrasse um futuro melhor, tivesse perspectivas de um futuro

como possibilidade, a medida em que interviesse no presente. Mas não é isso

que esta mulher tem presenciado durante toda a sua vida, não é isso que seu

pai/família vivenciou e lhe transmitiu. Ela vem de um ciclo fechado e

“eternizado” de miséria e seu destino está “traçado” neste sentido, e ela

internaliza que não há o que fazer sobre isso. É muito maior do que ela própria

e essa ideologia lhe esmaga e rouba sua ação, sua voz e sua vida.

O pesquisador e o Manoel deixaram o carro na primeira casa visitada

para prosseguirem a pé, já que as duas outras casas eram próximas dali e a

via não apresentava condições de trânsito com o veículo. A segunda casa que

visitaram era vizinha. Lado a lado. Parte de alvenaria e parte de madeira. Estão

construindo um “puxadinho”, que será mais um cômodo. Mesmo o chão sendo

de terra, a casa é limpa, maior e muito organizada. Ao contrário da habitação

anterior, esta estava pintada e havia um portãozinho baixo, feito de madeira,

separando a rua do interior. A “dona da casa” estava varrendo seu “jardim”

(chão de terra), demonstrando muita satisfação e energia. Recebeu-os

aparentando alegria. Contou-lhes sobre a reforma e informou que o marido

estava trabalhando. Conversaram um pouco mais e foram para a outra casa. O

Manoel informou que esta família pegava cestas básicas até aproximadamente

3 meses atrás e que eles mesmos informaram ao Grupo que deixariam de levar

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123

os mantimentos porque estavam em condições melhores e que “era para dar

para outra família mais necessitada”.

A terceira casa que visitaram é de alvenaria. Nitidamente mal construída,

rebocos para fora e sem acabamento. Ali moram dois casais jovens e seus

filhos. Todos frequentam o Grupo e retiram uma cesta básica por casal. Não

havia campainha, então decidiram bater palmas. Foram atendidos pelos casais,

que demonstraram muita satisfação com a visita. Convidaram-lhes para entrar

para tomar um cafezinho, que tinha acabado de ser “tirado”. Por dentro a casa

é muito organizada e muito limpa. Poucos e simples os móveis que guarnecem

a residência. Apesar de muito simples, tinha seus encantos. De forma humilde,

as crianças estavam bem vestidas e limpas, assim como os jovens pais. Não

havia ninguém ali sem camisa, embora estivesse calor e a casa fosse pouco

arejada. O café estava pronto e os visitantes foram muito bem recebidos na

sala, conjugada com a pequena cozinha, e convidados a voltar. O pesquisador

e o Manoel conversaram informalmente com os casais e procuraram

conscientizá-los e incentivá-los a buscar melhorar as condições do bairro em

que vivem por meio de ações coletivas, a exemplo do que fizeram com a

mulher na primeira casa visitada. Colocaram-se à disposição para tanto, sem

que houvesse qualquer manifestação imediata.

É importante ressaltar uma vez mais, neste momento, que com a

autoadvocacia e com a educação sociocomunitária o pesquisador não pretende

solucionar todos os problemas das famílias pesquisadas, conforme Paulo

Freire alertava a sua maneira. Mas tentar iluminar a consciência dos sujeitos

pesquisados para que desenvolvam uma visão crítica da realidade e da

ideologia que os domina, alterando seus comportamentos por meio do

empoderamento e da consequente busca por um futuro diferente e melhor,

preferentemente agindo coletivamente. Gomes (2009, p. 7), sobre o assunto

considera:

É preciso, portanto, compreender que ao se propor o estudo da Educação Sociocomunitária, a proposta não é feita como hipótese de resolução de todos os problemas sociais e educativos, mas como problematização das possibilidades de emancipação de comunidades e pessoas em constituir articulações políticas, expressas em ações educativas, que provoquem transformações sociais intencionadas.

Page 124: Rogério Pena Masi

124

Na sequência, o pesquisador e o Manoel foram visitar mais duas

famílias, em Monte Mor. Duas casas de madeira, grandes e bem construídas,

em um bom terreno às margens da rodovia. Em uma das casas reside uma

senhora, seu filho e um neto. Casa bem arrumada e asseada. Muito simples.

Passava das 11h e o filho, que conta com mais de 30 anos e tem um filho de

12 anos, estava dormindo no sofá. Usuário de drogas, perambula à noite e

dorme durante o dia. Aparenta pouca saúde, muito magro e sem nenhuma

energia, até para se locomover e falar, mesmo estando “limpo”. Parece estar

em “slow motion”. Seu filho é analfabeto e não frequenta e escola. O pai não

demonstra preocupação. Conversaram com o pai, tentando conscientizá-lo da

importância da educação e frequência escolar para seu filho, o que foi

desdenhado sob a alegação de que “ele não quer ir, o que que eu posso

fazer…”.

Na outra casa, vizinha, moram duas mulheres e os filhos. Um deles de 3

anos ainda é amamentado, o que impede a mãe de trabalhar, segundo ela.

Manoel ofereceu-lhe um trabalho formal de doméstica, em sua residência, que

foi prontamente recusado, sob a mesma alegação: “Não posso porque ele

(apontando para seu filho) ainda mama no peito”. Manoel alegou, de forma

cuidadosa, que a criança já estava bastante grande e que a amamentação

poderia ser substituída por leite industrializado, sem nenhum prejuízo. A mulher

não respondeu, apenas contraiu os lábios e olhou para o lado, demonstrando

contrariedade.

Contudo, ambas as moradoras, muito simpáticas, receberam os

visitantes muito bem e lhes ofereceram café. Casa muito bem organizada e

limpa. Café muito bom e cozinha “brilhando”, em meio ao chão de terra. A que

recusou o emprego deixou de comparecer a uma consulta médica porque é

analfabeta e não soube ler a data do retorno, e foi quando soubemos dessa

sua situação. Nesse momento o pesquisador perguntou se tinha vontade de

aprender a ler e que poderia tentar ajudar, ao que respondeu que “Agora não,

né? Depois de uma certa idade a gente não aprende mais, né?”. O pesquisador

discordou e informou que há muitas pessoas idosas que se alfabetizam e que

Page 125: Rogério Pena Masi

125

basta ter força de vontade, especialmente porque conta com pouco mais de

trinta anos e, portanto, está gozando de plena capacidade intelectual.

As pessoas da casa são muito simples e com “alto astral”. Felizes. Uma

delas, mais jovem, está solteira e a outra tem um companheiro, que vive em

outra casa. As visitas ocorrem diariamente. Vivem bem assim. Antes de irem

embora, o pesquisador convidou mais uma vez a mulher analfabeta a se

alfabetizar, desfilando suas vantagens, o que foi recusado mediante a mesma

justificativa: “não tenho mais cabeça pra essas coisas não”. Conversaram com

as famílias, semeando a ideia da autoadvocacia e a melhora em suas crenças

de auto-eficácia.

Em seguida, o pesquisador e Manoel dirigiram-se até Hortolândia, a fim

de visitar uma família composta pela mulher, seu companheiro e três filhos.

Chegando ao local, a casa estava vazia. Obtiveram a notícia com vizinhos de

que o Conselho Tutelar levou as crianças para o abrigo porque o companheiro

(padrasto), embriagado, tentou abusar da menina maior. A mãe, que é também

alcoólatra e usuária de drogas, estava embriagada e fora de casa. Tentaram

localizar a mãe e o abrigo para o qual as crianças haviam sido levadas, mas

não obtiveram êxito. Tentaram contato com o plantão do Conselho Tutelar, mas

ninguém atendia ao celular informado por um Policial Militar. A mãe, segundo

informações de sua irmã que fora contatada, invadiu uma casa “ai pra cima” e

lá está vivendo.

Dirigiram-se, então, para a casa de um jovem casal também na periferia

de Hortolândia. Casal e dois filhos. Casa de alvenaria, bairro sem asfalto. Casa

alugada e relativamente bem arrumada e limpa. Foram muito bem recebidos e

conversaram durante longo tempo. O rapaz demonstra muita disposição e força

de vontade para melhorar de vida. Faz pequenos bicos e agora conseguiu um

emprego formal. Está em período de experiência e disse se esforçar para ser

efetivado, mas diz que não consegue “parar” em emprego nenhum. Corta

cabelo, faz pequenos reparos e a esposa é manicure e pedicure amadora.

Atende em casa, sem estrutura mínima. Tanto na sede do Grupo quanto na

casa visitada observamos que as crianças são tratadas com respeito e

cuidado. Uma exceção. Conversaram com eles sobre os conceitos propostos

no presente trabalho.

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126

No dia 08 de outubro de 2011, antes da entrega das cestas básicas,

uma vez mais o pesquisador conversou individualmente com as pessoas que

compõem as famílias “assistidas” pelo Grupo. Explicou que seriam alterados,

de fato, como já combinado e anunciado, a maneira e dias da entrega das

cestas básicas e que o Grupo passaria a oferecer atividades para cada um

deles, de acordo com o gênero e faixa etária. A receptividade foi muito boa a

ponto de o pesquisador ficar surpreso, porque:

1. As pessoas passariam a se deslocar de suas residências duas vezes ao

mês e não uma só vez, e levariam a mesma quantidade de alimentos que

estava sendo entregue anteriormente. A grande preocupação de todos era o

custo do transporte coletivo, porque a maior parte deles vêm de muito longe e

necessita utilizar de dois a quatro ônibus diferentes para chegar ao local das

entregas e atividades. Uma vez que tal fato já era previsto, o pesquisador havia

proposto ao Grupo que adquirisse passes para entregar às famílias a fim de

viabilizar a vinda de todos nos dois dias.

2. A maior parte dos indivíduos, aqui incluídos os trabalhadores voluntários

do Grupo, tem uma percepção de que as pessoas que nasceram e vivem na

extrema pobreza são acomodadas, “preguiçosas”, talvez por desânimo e por

acreditarem que nada que fizerem adiantará para tirar-lhes daquela situação.

Perderam as esperanças em tudo (crenças de auto-eficácia). Em decorrência

dessa percepção, no mais das vezes equivocada, acreditam que os oprimidos

não se interessariam pelas atividades porque implicaria na ideia de terem que

participar para poder pegar as cestas básicas. Ideia não verdadeira,

notadamente porque o Grupo fez questão de enfatizar que o recebimento das

cestas não estava condicionado à participação nas atividades, ou seja, as

famílias continuariam recebendo as cestas básicas, participando ou não.

Apenas três pessoas não desejaram participar das atividades: uma delas

(mulher de meia idade) alegou que cuidava da neta e, portanto, não poderia se

envolver; outro rapaz (homem de aproximadamente 35 anos) alegou que era

pintor e não desejava aprender mais nada porque considerava que o

prejudicaria, porque pensava que deveria focar em sua especialidade; e outra

moça que não justificou seu desinteresse. Esta última moça sempre foi

“arredia”, séria, chegava e logo se sentava no fundo do salão com seu filho

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127

pequeno no colo e não conversava com ninguém. Deixou de pegar as cestas

em maio, sob a alegação de que ela e o companheiro haviam terminado de

construir sua casa e, portanto, agora poderiam utilizar seus parcos recursos

financeiros para comprar alimentos.

O pesquisador abordou respeitosamente os “desinteressados”, expondo

algumas vantagens no envolvimento e integração dos mesmos nas atividades,

o que não alterou a opinião de nenhum deles. Em que pese a surpresa do

pesquisador e dos demais trabalhadores voluntários do Grupo com o resultado

alcançado e com a empolgação de todos os que se mostraram interessados, o

pesquisador preferiu aguardar alguns meses para verificar se o interesse

permaneceria.

No momento do preenchimento da Ficha de Inscrição (Anexo 2),

aproximadamente 50% dos “alunos” tiveram dificuldade para se lembrar da

data de nascimento completa, como já observado. Três adultos não souberam

informar sequer o ano de nascimento. O pesquisador desistiu de pedir o RG

porque os adultos não tinham a menor ideia de seu número e não o portavam.

Duas mulheres adultas não assinaram a ficha porque se declararam

completamente analfabetas, e a maior parte escreveu seu nome com

dificuldade.

O pesquisador passou a realizar a inscrição dos jovens que desejavam

participar das atividades relacionadas à informática. Foram chamados para

conversar. Demonstraram muita ansiedade com a informática, mas o

pesquisador percebeu que relacionaram esta atividade com jogos eletrônicos,

talvez por desconhecimento quanto ao que pode ser feito e aprendido em um

computador. Quando o pesquisador solicitou aos jovens interessados para

assinarem as fichas, a maior parte demonstrou muita dificuldade em assiná-la,

mesmo os maiores de 10 anos. Um deles declarou não saber escrever seu

nome e outro informou que sabia escrever apenas o primeiro nome.

O pesquisador questionou sobre a escola e disseram que não se

importavam, uns que quase não iam à aula e outros que não a frequentavam

mais. Indagados sobre os pais, alguns responderam que quase não protestam

e outros que os mesmos não se importam com o fato.

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Quando o pesquisador teve a idéia da inclusão digital a sua intenção

também era a de enfatizar o reforço escolar para os jovens e crianças, mas

depois deste último contato com os jovens decidiu focar o trabalho no básico,

no reforço da alfabetização e no desenvolvimento da leitura e escrita, utilizando

o computador como meio para que a atenção deles seja despertada,

envolvendo o reforço com atividades lúdicas e jogos, sempre tendo como base

a educação freireana. Freire (2002, p. 18) assevera que um dos maiores e mais

importantes desafios que os educadores, que se propõem a praticar uma

educação crítica, têm é o de propiciar condições para que os educandos, em

suas relações com os outros, possam assumir-se.

Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto.

E o assumir-se como sujeito da própria assunção possibilita que o

sujeito possa ser autônomo.

Nos dias 22 de outubro, 12 e 26 de novembro de 2011 as atividades

foram desenvolvidas com muito êxito. As famílias estavam bastante envolvidas

e o pesquisador estava aperfeiçoando todas as atividades. A adesão das

famílias foi total nesta época. Contudo, o pesquisador percebeu que as

atividades estavam ganhando contornos “profissionalizantes” cada vez mais

intensos e, por esse motivo, passou a se preocupar com os trabalhadores

voluntários. Voltou a enfatizar o propósito das atividades, que está muito além,

e que é muito mais importante, do que o aperfeiçoamento “profissional”

daquelas pessoas. Nitidamente, as atividades tornaram-se “mecanizadas”, com

forte viés profissionalizante, ao modo neoliberal. Os trabalhadores voluntários

“relaxaram”, se “esqueceram” do motivo maior das atividades e aparentavam

desânimo. Para Freire (2002, p. 16) o ensino dos conteúdos e a promoção da

ingenuidade à criticidade não podem dar-se alheias a uma rigorosa formação

moral do educando.

É por isso que transformar a experiência em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador.

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Começávamos a colher ótimos resultados: algumas mulheres relataram

já ter feito e vendido salgados, cuja receita e modo de preparo haviam

aprendido no Grupo; outras relataram que já estavam ensaiando os primeiros

passos como manicure e pedicure em seus bairros, conquistando algum

retorno financeiro com as atividades; os jovens estavam menos interessados

em jogos e passaram a demonstrar alguma curiosidade com outras utilidades

dos computadores; os homens estavam envolvidos e interessados no “curso”

de elétrica, tendo havido mais uma adesão; as crianças começavam a se

acalmar, viabilizando o início de atividades pedagógicas; os horários estavam

sendo respeitados, sendo que as famílias chegavam cada vez mais cedo; os

pais estavam mais pacientes e dóceis com seus filhos; e o pesquisador estava

conquistando mais e mais olhares atentos quando abordava assuntos

relacionados a conceitos de união, luta por direitos, construção da cidadania,

fraternidade, desocultamento da ideologia neoliberal e a sua relação atual e

histórica com as famílias, noções de pertencimento e reforço dos aspectos

positivos das crenças de auto-eficácia.

De nada adianta o discurso exaltar a autonomia dos sujeitos, a

criticidade, o futuro como possibilidade, se a prática das atividades for

antidialógica, vertical e bancária.

O desânimo e o desvirtuamento da prática dos trabalhadores preocupou

sobremaneira o pesquisador, porque eram flagrantes. O pesquisador procurou,

então, conversar com cada um deles a fim de conhecer o motivo do desalento.

Descobriu-se que alguns daqueles que aparentemente haviam “abraçado” o

projeto o fizeram mais porque acreditavam que não teria êxito ou por amizade

ao pesquisador, do que por consciência de sua necessidade e amor aos

excluídos. E esse é um dos pontos que distinguia Paulo Freire dos demais: ele

nutria um amor e uma fé nos oprimidos que poucos seres humanos são

capazes de alcançar. E isso faz muita diferença quando se tenta aplicar a sua

teoria. Freire (2002, p. 27) afirmava que o educador, o trabalhador voluntário,

consciente politicamente de seu papel na proposta relacionada às atividades,

deve esforçar-se para desenvolver nele próprio a indispensável amorosidade

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130

às famílias assistidas, sob pena de fracassar em sua tarefa como educador

numa perspectiva progressista.

O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitado como gente no desprezo a que é relegada a prática pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercê-la mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito até abandoná-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela, aviltá-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos.

No mês de dezembro houve o primeiro e grave problema. Nos anos

anteriores, na mesma data da entrega das cestas básicas, em dezembro, era

oferecida uma festa de Natal para as famílias, com cachorro quente,

refrigerante, presentes para as crianças e com a presença do Papai Noel. As

cestas básicas entregues às famílias em dezembro tinham o dobro do tamanho

normal porque em janeiro não havia entrega das cestas, uma vez que os

trabalhadores voluntários “tiravam férias”. Com exceção de um grupo de

pessoas envolvidas em atividades doutrinárias, sob a coordenação do

pesquisador, que não parava em tempo algum, as demais atividades do Grupo

eram interrompidas em meados de dezembro e retornavam apenas em

fevereiro. O Grupo decidiu, não sem os protestos fundamentados do

pesquisador, que em dezembro de 2011 as cestas básicas duplas seriam

entregues em um único dia, no mesmo sábado em que seria oferecida a

festinha de Natal para as famílias e que por este motivo não haveria atividades

em dezembro e janeiro. As famílias deveriam retornar apenas no segundo

sábado de fevereiro.

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O pesquisador solicitou uma reunião com o Grupo, na qual expôs a

necessidade da continuidade das atividades em dezembro e janeiro,

notadamente pelo propósito movido em direção às famílias, muito além das

atividades em si. Considerou que seria prejudicial às famílias a interrupção das

atividades, especialmente porque estavam envolvidas, animadas, começavam

a colher resultados e o Grupo iniciava a conquistar a sua confiança para que

fosse possível finalmente alcançá-las com a troca de experiências e de ideias.

Disse que a fome, a necessidade, a alienação e a opressão não tiram férias e

que, portanto, o Grupo não tinha o direito desse “luxo” porque tinha assumido

um compromisso político e responsável com as famílias. Os protestos do

pesquisador foram sumariamente rechaçados, sem justificativa inteligível.

Não. Não tem condições. O “Centro” sempre parou em janeiro. Sempre entregamos as cestas duplas em dezembro, as famílias já estão acostumadas e já contam com isso. Eu viajo em janeiro. Não. Sempre funcionou assim. As famílias não vão querer.

No dia 11 de fevereiro houve o retorno das atividades. Nitidamente o

clima era outro. As famílias se atrasaram muito e aquele olhar de desinteresse

e indiferença voltou a se instalar em suas faces. Da parte dos trabalhadores

voluntários houve problemas sérios. Muitos simplesmente abandonaram as

atividades sem ao menos comunicar a alguém, como se pelo fato de serem

voluntários não houvessem assumido um compromisso e, portanto, não

deveriam agir com responsabilidade. Nesta data, faltaram o responsável pelo

“curso” de elétrica, a responsável pelas atividades relacionadas à manicure e

pedicure e a “instrutora” de tricô e crochê. Não havia, assim, a possibilidade de

o Grupo realizar tais atividades nesta data porque outros trabalhadores de

apoio também faltaram, de modo que a defasagem de recursos humanos

repentinamente ocorrida, era grave e incontornável.

Estranhamente, ao menos para o pesquisador, diante dos fatos ora

relatados, os trabalhadores voluntários não tiveram qualquer reação. O

pesquisador estava indignado com o prejuízo que haveria para as famílias em

decorrência das ausências dos trabalhadores voluntários e da sua impotência

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diante da situação e procurava alternativas, mas os demais trabalhadores

voluntários demonstravam apatia. Não disseram nada e não demonstraram

preocupação ou contentamento com a situação. Não se manifestavam, não “se

mexiam”, apenas aguardavam.

Aproveitando que as famílias já haviam chegado à sede do Grupo para

as atividades e retirada das cestas e que a precária situação já havia sido

identificada e avaliada, o pesquisador, depois da palestra, informou que

naquele dia não haveria as atividades citadas acima, cujos responsáveis

estavam ausentes, tendo em vista que alguns problemas haviam acometido

alguns trabalhadores voluntários, prejudicando os trabalhos a eles relacionados

e que estavam programados para esse dia.

Pedimos desculpas às pessoas prejudicadas, explicando o ocorrido e

nos comprometendo a tomar providências para que não houvesse reincidência.

Não houve nenhuma reação aparente por parte dos sujeitos da pesquisa,

demonstrando que ainda cultivam a “cultura do silêncio”. Aparentando

indiferença, silêncio que o pesquisador interpretou como ingenuidade: se lhes

foi exposto que assim seria, assim seria e pronto. De que adiantaria

manifestarem-se? Não perceberam que no Grupo a sua palavra fora devolvida,

não perceberam que neste local todas as pessoas têm voz e que essa voz é

ouvida, compartilhada e levada em consideração em igualdade de importância

como de todas as outras pessoas, e que suas palavras podem construir seu

futuro e interferir e modificar o mundo, começando por aquele espaço. Mas

estão, ainda, habituadas ao silêncio e ao desprezo, porque foram coisificadas e

não têm direito a dizer a sua palavra, porque essa lhes fora roubada. Estão

proibidos de dizer a sua palavra. É o equivalente à concepção “bancária” de

Freire (2002, p. 34):

[…] b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; […] f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição; […]

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h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; […] j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos.

Porém, uma outra consideração, é a de que tenham percebido que o seu

direito a voz não tenha sido tão igualitariamente acolhido pelo Grupo como um

todo. Pois nem todos os trabalhadores voluntários assumiam, de fato, uma

posição “libertadora”.

As crianças voltaram muito agitadas, impossibilitando qualquer atividade

pedagógica com elas, notadamente porque dos cinco trabalhadores envolvidos

na atividade, apenas um compareceu. Apenas a informática e a culinária

funcionaram com êxito. Algumas mulheres, que participariam da manicure e

pedicure, tricô e crochê aceitaram participar das atividades na cozinha. Em

decorrência dos contratempos o pesquisador teve a impressão de que as

abordagens freireanas e de autoadvocacia não surtiram efeitos, ao menos

aparentemente. Tudo estava muito desorganizado e as famílias perceberam.

Talvez tenham interpretado como se fosse desdém da parte do Grupo em

relação a elas. Ou seja, a impressão que teve o pesquisador é a de que, para

as famílias, o discurso era bonito e começava a despertar seus interesses, sua

participação, sua palavra, historicamente adormecidos, mas, na prática,

perceberam que nada havia mudado: o Grupo também desejava oprimi-los.

No dia 25 de fevereiro de 2011 ocorreram novos contratempos. O

responsável pelo curso de elétrica faltou novamente, assim como a de tricô e

crochê. Novamente, apenas uma pessoa responsável pelas atividades com as

crianças compareceu, o que gerou muitos problemas porque as crianças

ficaram soltas, agitadas, atrapalhando seus pais de participarem das poucas

atividades em andamento. Ainda assim, a informática, a cozinha e a manicure

continuaram rendendo frutos. As pessoas pareciam felizes, com exceção

daqueles afetados pelas ausências, que ficaram amuados ou perambulando

pela sede, “sem rumo”. Talvez estivessem se sentindo os mais excluídos dos

excluídos, os mais desprezados dos desprezados. É extremamente lamentável

que o Grupo, que se propunha a um trabalho para atingir determinado

resultado, tenha alcançado exatamente o inverso: consolidar a sensação de

abandono e da baixa auto-eficácia nas pessoas oprimidas.

Page 134: Rogério Pena Masi

134

Mas algumas mulheres relataram que continuavam a fazer salgados

para vender no próprio bairro e outras começaram a “fazer” as unhas das

vizinhas, ambas obtendo bons resultados e algum retorno financeiro, segundo

comentaram com o pesquisador as trabalhadoras voluntárias da cozinha e da

manicure. O fato de já terem ganhado um “dinheirinho” com habilidades

aprendidas nas atividades no Grupo fortaleceu a união desses grupos e

melhorou muito a auto-estima e ânimo geral, porque houve de fato um

resultado concreto. Entretanto, uma vez mais o pesquisador percebeu que os

trabalhadores voluntários não estavam agindo conforme o “combinado”. Eles

se portavam como instrutores, com das exceção da cozinha, onde trabalham

duas voluntárias muito amorosas e carinhosas e extremamente aderentes com

nossa proposta. De fato, o pesquisador não consegue distinguir se essas

voluntárias agem conforme suas sugestões por terem entendido a proposta e

sua pertinência ou, sem compreendê-la, ou sequer se importarem em entendê-

la, agem de acordo com a fala do pesquisador porque o admiram e nele

confiam, agindo como os próprios oprimidos neste particular.

No dia dez de março de 2012 o responsável pelo curso de elétrica faltou

novamente. Como desta vez o Grupo estava relativamente preparado,

conseguiu suprir a citada ausência com uma atividade extra, preparada por

outro trabalhador voluntário, que é engenheiro. Desta forma, ainda que de certa

forma improvisadas, as atividades para os homens adultos foram realizadas

com êxito. O tricô foi abandonado. As mulheres que participavam deste curso

migraram livremente, depois de convidadas, para a culinária e para a manicure,

atividades essas que seguem muito bem, e apenas uma delas, uma senhora

de aproximadamente sessenta e cinco anos, decidiu-se por não participar de

nenhuma atividade. As sugestões do pesquisador quanto a conversas voltadas

para a autonomia, o desocultamento da ideologia opressora que nos governa e

autoadvocacia voltaram a ser cumpridas e já trazem resultados, ainda que

modestos. Novamente, apenas uma pessoa responsável pelas atividades com

as crianças compareceu. As crianças e jovens que estão frequentando o curso

de informática estão demonstrando bastante interesse.

Já há relatos de mais algumas pessoas que estão aproveitando o

aprendizado nos cursos e outras duas que relataram que estão conseguindo se

Page 135: Rogério Pena Masi

135

manter longe de vícios em virtude do que estão aprendendo. Uma delas

recuperou os três filhos que haviam sido levadas pelo Conselho Tutelar e

estavam em um abrigo e deixou seus vícios de bebidas alcoólicas e drogas

ilícitas para cuidar deles e conseguir emprego. O pesquisador observou que

até o último dia de pesquisa realmente esta mãe não apresentou o ar

aparvalhado de outrora, porque não se encontrava mais sob o efeito frequente

de drogas e álcool. Agora esta pessoa entrevia uma nova perspectiva de vida

para ela e para seus filhos. Estava aprendendo que podia interferir hoje em seu

meio para construir um futuro melhor. Tudo isso, acredita-se, foi conquistado

com o auxílio do trabalho desenvolvido pelo Grupo.

Uma das trabalhadoras voluntárias relatou que uma das mulheres

assistidas lhe confidenciou que já foi detida e está longe do vício de drogas

desde que começou a frequentar as atividades do Grupo, e que neste mês já

ganhou R$ 30,00 fazendo unhas e que admirava a dedicação que o Grupo

consagrava a eles. O pesquisador sugeriu que ela aproveitasse esse vínculo

para aprofundar os conceitos freireanos em seus bate papos, já que a mulher

vive em uma realidade muito difícil. Mora em um casebre de madeira sem

estruturas básicas, localizado na periferia miserável de Campinas, o marido foi

assassinado e o pai mora com ela e com seus filhos, mas não colabora com

nada porque não trabalha e “não gosta de trabalhar”. Disse que durante a vida

toda foi assim. Ela tem filhos pequenos e não trabalha porque cuida deles.

Nesta data o pesquisador conseguiu ter uma conversa bastante

produtiva com todos no salão dos fundos da sede do Grupo. O pesquisador

falou sobre Deus e Jesus, seus ensinamentos, e aproveitou o tema evangélico,

que os agrada sobremaneira, para reforçar e aprofundar o assunto de que não

existe destino traçado, que o futuro está aberto e que todos devem tomar

atitudes individuais e coletivas para mudar para melhor a realidade em que

vivem, individual e coletivamente; que somos responsáveis por nossos atos e

que temos direitos como todos os demais, os quais devem ser plenamente

respeitados pelos outros e pelo Estado.

Para que o objetivo das atividades seja alcançado, ao menos

parcialmente, é imprescindível que tanto as famílias assistidas quanto os

trabalhadores voluntários acreditem e compreendam a história como

Page 136: Rogério Pena Masi

136

possibilidade e não determinismo, conforme ensina Freire (1997a, p. 47), e

esse é um dos trabalhos mais árduos que o pesquisador tem enfrentado.

Na verdade, toda vez que o futuro seja considerado como um pré-dado, ora porque seja a pura repetição mecânica do presente, só adverbialmente mudado, ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para a utopia, portanto para o sonho, para a opção, para a decisão, para a espera na luta, somente como existe esperança. Não há lugar para a educação. Só para o adestramento.

As famílias demonstraram bastante interesse durante os trinta minutos

da palestra. No final, um homem foi ao encontro do pesquisador para

agradecer as palavras de ânimo e um senhor, chorando, disse que vai encarar

“o pouco que lhe resta de vida” de outra forma depois do que ouviu:

Filho, sabe, eu fiz muita besteira na minha vida e hoje todo mundo me abandonou. Eu vivo sozinho em um cômodo que eu aluguei. É pequeno e velho. Ninguém mais quer saber de mim. Eu quero que vocês façam uma visita pra mim pra vocês verem o que eu tô falando, a realidade que eu vivo. Não tô reclamando não. Não tô reclamando. Mas lá é apertado, é pequeno. Depois que eu comecei a frequentar aqui eu mudei. As coisas que vocês falam aqui são muito bonitas e me animou a mudar. Eu preciso me arrepender antes de eu morrer. Eu preciso fazer alguma coisa. Eu preciso de ajuda, pelo amor de Deus.

Entretanto, tendo em vista a grande evasão dos trabalhadores

voluntários do Grupo, sem que retornassem e sem que houvesse reposição,

cujo motivo o pesquisador desconhece, e em decorrência da consequente

perda da qualidade das atividades, o Grupo decidiu reduzir a entrega das

cestas e as atividades a uma vez por mês, ao menos provisoriamente, até que

consiga se estruturar novamente.

No dia 14 de abril de 2012 tudo continuou igual. Até esta data o

pesquisador não conseguiu mobilizar ninguém para que as atividades

retornassem conforme projetadas, e nenhum trabalhador voluntário parecia se

importar com o fato. O pesquisador não teve conhecimento de nenhum

trabalhador voluntário que tenha tomado alguma atitude no sentido de ajudar a

solucionar o problema. Pareciam indiferentes. A impressão que se teve foi a de

Page 137: Rogério Pena Masi

137

que os trabalhadores voluntários estavam aliviados com o suposto “fracasso”

das atividades porque assim os encontros com as famílias voltariam a ocorrer

apenas uma vez por mês. As dificuldades continuaram as mesmas:

trabalhadores voluntários em número insuficiente, atividades não sendo

realizadas, pouca colaboração para que este estado de coisas se altere

positivamente…

O dia doze de maio de 2012 foi o pior de todos. O voluntário que se

comprometeu a assumir as atividades com os homens adultos faltou em

decorrência de doença da esposa. O educador da informática também não

compareceu em virtude de compromissos profissionais em São Paulo. Uma

pessoa só para cuidar das crianças: impossível. A educadora da atividade de

manicure e pedicure mais uma vez não compareceu e não avisou que não

viria. O trabalhador encarregado da palestra não pode comparecer porque

precisou levar seu filho ao pronto socorro.

Resultado: o pesquisador aproveitou a oportunidade e realizou uma

pequena palestra de improviso com viés muito forte sobre a autoadvocacia,

conforme descrito abaixo, estimulando a participação de todos. Não atingiu o

êxito esperado, entretanto, porque muitos demonstravam desânimo com o

fracasso das atividades, o que reforçou ainda mais a sensação de pouca valia

que já têm de si mesmos, porque talvez tenham tido a impressão de que, na

realidade, o Grupo também não se importava com eles, percepção essa

decorrente da colisão entre a sua ação e os belos discursos feitos no início do

projeto e que os havia animado. Embora as faces taciturnas e o modo de se

sentarem, “desleixados”, evidenciassem desinteresse, nenhuma palavra foi

pronunciada.

Nessa palestra, como em outras que tratavam do tema da

autoadvocacia, o pesquisador alfabetizou “juridicamente” o público de sujeitos,

de que eles têm direito a asfalto nas ruas do bairro onde residem, moradia

digna, segurança, posto de saúde, escola, entre outras coisa, enfatizando a

necessidade de coletivismo, de que devem se unir porque juntos conseguirão

efetivar seus direitos, com muita luta, além de conquistarem novos direitos. O

pesquisador solicitou que aqueles interessados em saber mais sobre o tema o

procurassem, depois da preleção, para que se unissem e começassem a se

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138

informar e organizar para lutar pelos direitos que eles têm. Contudo, ninguém

procurou o pesquisador.

O pesquisador percebe que as famílias não têm perspectivas positivas

em relação ao seu próprio futuro e também ao futuro de seus filhos, ainda que

lamentem tal fato quanto a estes. Não acreditam que pode haver alteração em

suas vidas porque seu futuro já está certo, determinado e é imutável,

independentemente de qualquer esforço intervencionista por parte deles. Todo

e qualquer empenho que empreenderem neste sentido será inútil, porque

presenciaram e aprenderam com seus pais, avós e bisavós que assim sempre

foi e assim será. Por que trabalhar, estudar, lutar, se unir, se não há esperança

em um futuro melhor? Não há perspectiva para os oprimidos alienados, a

exemplo dos sujeitos de nossa pesquisa. É necessário que as famílias

acreditem no futuro como possibilidade e passem a criar expectativas quanto a

um futuro melhor, intervindo em seu ambiente para que transforme

positivamente suas vidas, de seus familiares, se sua comunidade, de sua

cidade e do mundo.

Em suma, há o “motor” para que ela aprenda a auto-determinar-se, parte fundamental do constituir-se autônomo. Quando um indivíduo se auto-determina “age a partir da escolha, antes do que de obrigações ou coerções, e essas escolhas são baseadas na própria consciência de suas necessidades orgânicas e de uma interpretação flexível dos eventos externos” (DECI, RYAN, 1985, p. 38). Escolha que se constitui, não como “opção pessoal” somente, mas como um produto das práticas sociais, que emergem do compartilhamento de significados e expectativas frente ao vivido. A auto-determinação se desenvolve conforme crianças e adolescentes vão se inserindo - e sendo inseridos - na teia de relações sociais, que sustentam o viver humano. Características como idade, oportunidades para regular o próprio comportamento, para governar-se em situações cotidianas, a experiência na resolução de problemas do dia-a-dia, as especificidades físicas e cognitivas, o nível de auto-estima conquistado em consequência das decisões tomadas, a confiança atribuída aos sujeitos...são componentes essenciais nesse desenvolvimento. Que se constitui intrinsecamente no âmago de todo processo educacional: o movimento que marca nossa transformação como seres dependentes de cuidados e da tutela de outros para a auto-governo. (BISSOTO, 2012, p. 7).

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139

Pois bem, voltamos às questões: A aplicação da autoadvocacia nos

grupos de famílias assistidas pode contribuir para com o desenvolvimento da

autonomia e, assim, para seu empoderamento e desalienação? E para que

passem a se unir e lutar por seus direitos?

A primeira impressão do pesquisador, pela experiência de muitos anos

trabalhando com pessoas oprimidas, coisificadas e alienadas da periferia pobre

de Campinas e região, era (e, em certa medida, ainda se mantém) a de que se

eles não recebessem benefícios de “mão beijada”, não interessava. É a política

do menor esforço. É costume preferir ganhar a batalhar para terem uma vida

mais digna, com mais conforto… Freire (2002, p. 31) assevera que a “miséria é

uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem

ou da vontade punitiva de Deus […]”.

É interessante destacar que assim como há graus de alienação também

há níveis diferentes de “resistência” ao desocultamento e iluminação. Durante o

tempo em que o pesquisador trabalha em atividades voluntárias relacionadas a

entregas de cestas básicas a pessoas economicamente miseráveis, viu muitas

pessoas virem e irem e outras virem e ficarem. As pessoas que pegam cestas

básicas há anos são mais resistentes a mudanças, extremamente passivas,

aparentam ser mais revoltadas com tudo e todos, enquanto que outras

pessoas, cujos comportamentos são, em regra, nitidamente diferentes

especialmente porque se portam com mais calma e civilidade, em que pesem

residirem nos mesmos bairros, pegam as cestas básicas durante um período e

logo que melhoram de vida deixam voluntariamente de retirar suas cestas para

deixar para outras famílias mais necessitadas. Essas pessoas, que têm esse

nível de consciência aparentam, ao menos aos olhos do pesquisador, serem

menos alienadas e, portanto, demonstram ter perspectivas, ainda que

limitadas, e por este motivo buscam ativamente alternativas positivas para sua

situação.

O pesquisador acredita que as pessoas desse segundo grupo estariam

mais preparadas para a autoadvocacia. Entretanto, justamente por retirarem as

cestas básicas por períodos relativamente curtos, o pesquisador deixou de

selecioná-las como sujeitos de sua pesquisa, pelo alto risco de prejudicá-la, em

termos de “flutuação” dos sujeitos. Contudo, há que se ressaltar que duas

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140

famílias, lideradas por mulheres, “dinâmicas” em comparação aos demais

assistidos, deixaram de retirar as cestas básicas no início de 2012. Uma

porque havia terminado a reforma em sua casa e agora poderia adquirir

alimentos com seus próprios recursos, já que o casal trabalha, outra porque o

marido havia conseguido emprego. Era digno de admiração o esforço de

empoderamento que esta última mulher realizava em seu marido, que

frequentava o Grupo quase que “arrastado” por sua companheira. O

pesquisador era interpelado por esta com frequência, que lhe dizia, com certo

entusiasmo e “lucidez”, apontando para o marido:

Eu falo pra ele procurar emprego porque ele é inteligente e tem capacidade para arrumar uma coisa boa…só fica arrumando bicos que não prestam. Ele tá indo atrás e se Deus quiser vai arrumar um bom emprego e quando arrumar a gente vai deixar de pegar as cestas para que outras pessoas que precisam mais possam pegar.

E o marido sempre de cabeça inclinada para baixo, quieto, com a filha

pequena no colo, sorria e não dizia uma só palavra.

Também alguns membros dessas duas famílias, especialmente as

mulheres, já citadas, que era “quem as liderava”, tinham postura diferente.

Participavam das atividades, conversavam com desenvoltura, os filhos,

tratados com civilidade e sem violência, demonstravam lucidez, postura ativa e

lidavam com os brinquedos de maneira zelosa, além de depositarem o lixo nos

locais adequados, em que pese residirem nas mesmas regiões insalubres e

renegadas pelo Estado. As crianças eram mais dóceis no trato e menos

agitadas. As mulheres demonstravam preocupação com a educação de seus

filhos e com uma boa colocação profissional para seus companheiros. Estes,

por sua vez, demonstravam passividade e alienação.

Outro fato de destaque é que uma dessas mulheres chamou o

pesquisador “de lado” para contar que sabia de pessoas ali (entre as famílias

assistidas pelo Grupo) que pegavam cestas básicas em outros lugares também

e as vendiam. Estavam indignadas e disseram não achar justo, aparentando,

aos olhos do pesquisador, estarem em um nível de alienação menos severo

que os demais.

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141

Destaca-se, por outro lado, uma assistida que contou ao pesquisador

toda animada, no mês de abril, que havia conseguido emprego na área da

limpeza na Unicamp, e que se tudo desse certo e passasse pelo período de

experiência deixaria de pegar as cestas básicas. Estava mais bem arrumada,

mais animada, havia cortado os cabelos. Assim que chegou à sede do Grupo

no mês seguinte para retirar sua cesta, o pesquisador se recordou do fato e foi

perguntar como estava o trabalho, ao que respondeu com a maior naturalidade

que não havia dado certo. Trabalhou apenas 12 dias e não se adaptou.

…ah, tinha uma mulher lá que não gostava de mim e ficava pegando no meu pé pra mim sair mais tarde e perdê o ônibus (fretado). Quando faltava cinco minutos pra mim i embora ela mandava eu limpá o banheiro que eu já tinha limpado.

O pesquisador interessou-se por seu caso, até porque poderia verificar

se poderia ajudá-la a intervir visando tentar reconquistar o emprego, dada a

aparente e suposta injustiça que lhe acometera, mas ao questioná-la para

conhecer um pouco mais sobre as circunstâncias, suas respostas foram

evasivas, revoltadas e sem relação direta com o fato em si. Sequer soube

informar que função a dita “perseguidora” desempenhava na empresa ou se

era realmente sua superiora.

Trata-se de uma das poucas assistidas que se recusou a participar das

atividades. Parece preferir ficar “sem fazer nada”, enquanto espera, a aprender

alguma habilidade nova. Não tem o menor interesse. Vive com o pai, que

nunca trabalhou na vida. Vivem na miséria e na mendicância porque não têm

perspectivas, crêem num futuro determinado e imutável. Esta família pega

cestas básicas há muitos anos.

Semelhante a este caso há vários outros, sendo que os traços em

comum são a dificuldade em se integrar social e profissionalmente, passividade

extrema, revolta, miséria, alcoolismo e aparente indiferença com a própria vida

e com a vida dos outros.

Ressalte-se que o pesquisador limitou os relatos ao período da

pesquisa, em que pese ter presenciado diversos casos no mesmo sentido

referentes a datas anteriores.

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142

Depois da palestra, o Grupo serviu os lanches em comemoração ao dia

das mães e distribuiu as cestas para as famílias. Não houve nenhuma

atividade. Infelizmente, a pior parte foi que as pessoas não demonstraram

aborrecimento com a falta das atividades. A sensação é a de que houve perda

do que já havia sido conquistado, porque as famílias passaram a considerar

que era mais fácil ir ao Grupo uma vez ao mês, pegar toda a cesta básica sem

“ter” que participar de atividade nenhuma, como era antes. De fato, esta é a

alternativa mais cômoda tanto para eles quanto para o Grupo, mas é

exatamente o que se deseja mudar! Contudo, a impressão que o pesquisador

teve, uma vez mais, é a de que os trabalhadores voluntários não se importaram

também.

No dia 26 de maio de 2012 o pesquisador e o Manoel foram retirar e

entregar um guarda-roupas muito bom, em perfeito funcionamento, que aquele

havia ganhado de um amigo. Decidiram que ao invés de colocarem-no à venda

no bazar do Grupo, doariam-no a uma das famílias assistidas. Quando o

pesquisador recebeu a doação do móvel comentou com o Manoel que uma das

famílias havia comentado, há alguns dias, que estava precisando de um

guarda-roupas...

Combinamos de retirar o móvel em um sábado pela manhã e já levar à

família indicada. Chegando ao local, periferia pobre de Campinas, o

pesquisador verificou que a família morava em uma casa de alvenaria, popular,

modesta, mas bem acabada por dentro. No quarto maior já havia um guarda-

roupas grande, bonito, envernizado e aparentemente muito bom e conservado.

Questionada sobre a necessidade de um novo guarda-roupas, e a mulher,

dona da casa, afirmou, abrindo as portas do móvel e confirmando a urgência

de outro, em melhores condições:

Esse tá escorado, podre e as gaveta de baixo tão solta. Se abri elas cai.

Sem a intenção de “vigiar” ou “investigar” o assunto, mas verificando que

o guarda-roupas aparentava bom estado geral, inclusive com o funcionamento

de suas portas grandes preservado, tendo em vista que a própria mulher, ao

tentar demonstrar que estava aos “frangalhos”, acabou evidenciando o

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143

contrário, o pesquisador questionou-a novamente acerca da necessidade de

um novo guarda-roupas. Ao que ela respondeu com energia, demonstrando

aborrecimento com o questionamento. Pois bem, como o Grupo tem como

regra de conduta partir do pressuposto da boa fé das pessoas, o pesquisador

decidiu não mais questionar e tampouco duvidar da mulher e doar o móvel para

a família, com protestos do Manoel, que desejava levá-lo a outra família, mais

necessitada. Manoel tem um temperamento mais enérgico e a paciência e

tolerância não são seus pontos fortes. O pesquisador ponderou que deveriam

ter visitado a família com antecedência, ao invés de chegar já com o móvel.

O pesquisador interessou-se por esta mulher, ainda que não seja sujeito

direto de sua pesquisa, e, portanto, aproveitou o ensejo para “bater um papo”

com ela. Manoel havia citado que ela havia conseguido um bom emprego

formal recentemente, em uma grande instituição educacional. O pesquisador

indagou-a sobre tal emprego, ao que respondeu que estava aguardando a

perícia do INSS, porque informou estar com dor intensa no ombro e, portanto,

impossibilitada de trabalhar. Trabalhava na limpeza, serviço pesado.

Pois bem, o pesquisador e o Manoel voltaram para a área externa da

casa, em direção do veículo, a fim de descarregar o móvel. Quando

começaram o trabalho, a mulher, que vinha logo atrás, começou a ajudar pelas

peças mais pesadas. Logo que perceberam, o pesquisador e o Manoel pediram

que parasse, tendo em vista que estava lesionada, conforme acabara de

informar, e o esforço poderia agravar-lhe o estado físico. Afirmando “não ter

problema”, a mulher continuou a ajudá-los e assim agiu até o descarregamento

completo. Ajudou a pegar as peças mais pesadas, pesadas até para um

homem adulto, sem demonstrar desconforto. Perguntada sobre a montagem do

móvel, esclareceu que um seu sobrinho faria sem dificuldades.

Uma vez que descarregamos o móvel, o pesquisador “puxou” conversa

sobre o bairro e sua estrutura, ao que a mulher respondeu que era bom e que

dispunha de tudo, mas que o único problema é que a creche atendia apenas

meio período. O pesquisador esclareceu a ela que era direito de todas as mães

que trabalham deixar seus filhos em período integral e perguntou se ela

desejava saber o endereço do Ministério Público, para denunciar a situação e

solicitar providências. A mulher não respondeu e também não fez qualquer

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144

gesto de aprovação ou desaprovação. O pesquisador insistiu mais duas vezes,

mas a mulher, demonstrando desinteresse, desconversou.

A mulher começou a dizer que teria que levar a sua mãe, que estava

muito doente, ao hospital, que se localizava bem distante dali.

De fato, quando no interior da residência, o pesquisador avistou, em um

dos quartos, uma senhora deitada na cama, com ar abatido, e uma cadeira de

rodas ao seu lado. Foi quando o pesquisador perguntou sobre a existência de

posto de saúde no bairro, ao que respondeu negativamente, esclarecendo que

o mais próximo dali situava-se no bairro São José. O pesquisador conhece a

região e também a localização do posto de saúde citado, porque já estivera lá

em outra ocasião. Trata-se de um posto de saúde com precárias estruturas,

que atende a um sem número de bairros populosos da periferia do entorno e

dista aproximadamente seis quilômetros da casa da mulher. De sua residência

ao posto de saúde não há acesso “por dentro” dos bairros, havendo a

necessidade de transitar pela rodovia Santos Dumont.

O pesquisador questionou se existia naquele local alguma associação

de bairro ou congênere, ao que respondeu positivamente. Indagou, então, se

ela participava das reuniões e deliberações da associação, ao que respondeu

negativamente, alegando que só tinha “petista vagabundo que não faz nada

pelo bairro” e falou, confusamente, algumas coisas mais sobre política que não

fizeram sentido algum para o pesquisador. Aparentemente, buscava justificar a

sua falta de envolvimento mediante alegações próprias. O pesquisador indagou

a mulher se ela tinha interesse em reunir vizinhos para lutar pela implantação

de um posto de saúde naquele local, informando sobre suas vantagens,

quando ela disse que “parece” que a associação estava atrás disso há tempos,

mas que ainda não havia conseguido nada. O pesquisador alegou que como a

associação era “ineficiente”, poderiam se unir e lutar através de outros meios.

Ela desconversou mais uma vez e afirmou precisar entrar para cuidar da mãe.

Entre o dia doze de maio, que fora o pior dia, conforme relatado, e o dia

nove de junho de 2012, data da entrega das cestas básicas para as famílias no

mês de junho e último dia de pesquisa de campo, o pesquisador convocou

duas reuniões visando resgatar o espírito de educador freireano nos

trabalhadores voluntários. Lembrou-lhes da opressão, domínio, ocultamento da

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145

realidade, exploração e sofrimento que as famílias atendidas pelo Grupo

passam. E da “obrigação” do grupo, enquanto cristãos, supostos desalienados

e iluminados, além da necessidade de se reconhecerem, em certa medida,

também como opressores dessas pessoas, de lutar ao lado das famílias,

colaborando ativamente pela sua desalienação, desocultando a realidade a sua

frente, orientando-os quanto aos caminhos que podem seguir para sua

emancipação, caminhando com eles rumo à construção de uma consciência

crítica e responsável, para que alcancem a efetivação de seus direitos,

incentivando-os à formação de coletividades para que suas demandas sejam

fortalecidas etc.

O pesquisador empreendeu um discurso de protesto contra a

passividade, que parecia contagiar a todos, má vontade, desamor e

solidariedade com as famílias e convocou os trabalhadores voluntários ao

despertamento e trabalho duro, demonstrando que estão se comportando,

inclusive o pesquisador, como dominadores e opressores.

Aparentemente, a intervenção junto aos trabalhadores voluntários surtiu

efeito porque no dia nove de junho o clima era outro, estava totalmente

diferente. Todos os trabalhadores estavam demonstrando disposição e

aparente consciência de seu compromisso com as famílias. Neste dia todas as

atividades funcionaram perfeitamente, conforme planejado. As famílias

sentiram a nova disposição e corresponderam: participaram ativamente das

atividades. Ouviram atentamente a fala do pesquisador em sua palestra do dia,

mas ainda sem participar. Pela primeira vez as crianças foram entretidas

construtivamente, se comportaram muito bem e permitiram que seus pais

participassem das atividades na maior parte do tempo. Alguns trabalhadores

que haviam abandonado as atividades, convidados pelo pesquisador, voltaram

e reforçaram o contingente de voluntários neste dia, fato que teve influência

direta no êxito dos trabalhos.

O pesquisador ficou muito feliz e animado com os próximos encontros e

a possibilidade de aprofundamento da intervenção (positiva e necessária) do

Grupo no processo educativo das famílias atendidas. A propósito da

intervenção positiva:

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146

Outra palavra incômoda é intervenção. Intervenção é, de algum modo, uma ruptura. Uma intervenção educativa é uma ruptura com um modo de ser da sociedade, mas também pode ser uma ruptura como o modo de educar da sociedade. Em algum sentido, a intervenção é negativa, deve, ao menos, negar o estado das coisas tal como estão. Parece-me que nem toda Educação Sócio-comunitária é um processo que se caracteriza por intervenção, nesse sentido restrito. Porém, em toda proposta educativa há um momento criador, há o momento de se discutir e fazer, ou refazer, a proposta e esse é, ao menos em sentido lato, o momento da intervenção (GOMES, 2009, p. 6).

Aproveitando o dia, que estava bem mais organizado e, por

consequência, tomou o tempo do pesquisador em menor intensidade do que

nos encontros anteriores, este foi conversar com M., uma das “assistidas” e

sujeito da pesquisa, que habita o cubículo de madeira sem divisórias internas e

sem banheiro, anteriormente referido. Há algum tempo o pesquisador desejava

conversar calma e particularmente com ela para tentar despertar algum

interesse em buscar melhorias em sua vida. Questionada, informou que

começou a construir um “puxado” que seria o banheiro de sua casa, mas parou

porque não tem dinheiro 10 . O companheiro vive de trabalhos informais

esporádicos e ela não trabalha. Questionada se não havia algum parente ou

conhecido que poderia ajudar financeiramente, respondeu que sua família “é

de fora”, “tudo pobre igual eu” e que são “tudo da roça”. O pesquisador deu a

ideia de ela escrever uma carta, solicitando os materiais que faltavam para o

Grupo; porque a proposta dos encontros é a de ajudá-los a viver com mais

dignidade e, portanto, era como se fosse uma obrigação moral do Grupo

colaborar de alguma maneira para que conseguisse terminar seu banheiro. M.,

desconfiada, de cabeça baixa, mas não tendo nada a perder, aceitou. Não

demonstrou contentamento porque, acredita o pesquisador, não acreditava na

proposta. Já se habituara a promessas e desprezos dessas.

O pesquisador convidou a M. a dirigir-se em sua companhia para um

ambiente, que não estava sendo ocupado pelas atividades, convidou-a a

sentar-se junto a uma pequena mesa e entregou-lhe papel e caneta para que

pudesse escrever a carta. Foi quando ela pediu ao pesquisador para ditar o

10

Mais tarde o pesquisador verificou que na realidade M. havia conseguido alguns pedaços de madeira e limpado um canto de seu casebre. Havia mais intenção do que “reforma” propriamente dita.

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que deveria escrever, ao que esse redarguiu que escrevesse um pedido de

materiais a sua maneira, porque a forma não importava, relacionando-os

quanto ao gênero, tipo, cor e quantidade. Nada. M. continuava parada, com a

caneta em punho, olhando fixamente para o papel. Pediu para que o

pesquisador escrevesse para ela porque “não sabia escrever direito”.

Depois de mais algumas tentativas frustradas para que M. elaborasse a

carta sem ajuda, o pesquisador se viu obrigado a ditar o início da carta e parou,

disse que seguisse relacionando os materiais, mas M. parou também.

Questionada, respondeu que “eu não sei o que escrever” e “minha letra é feia,

né?”. Sem outra alternativa, o pesquisador tomou uma caneta e um papel,

posicionou-se ao lado de Marisa e pediu para que ela dissesse a ele como faria

o pedido verbalmente, porque então escreveria no papel e ela poderia copiar a

sua própria versão. Nada. Ficou parada, agora olhando para o vazio, sem

ação, mesmo depois de mais algumas tentativas do pesquisador.

Percebendo que não adiantaria insistir, o pesquisador começou a

escrever o pedido de forma bastante simples, estimulando a sua participação.

Demonstrando muita dificuldade, mesmo para copiar, escreveu a carta com o

máximo de participação possível, que se limitou a indicar os materiais de que

precisava, conforme se verifica no Anexo 3. Ao final, o pesquisador infomou-a

de que poderia ajudá-la a solicitar junto à Prefeitura de Campinas assistência

técnica gratuita para o projeto e a construção de seu banheiro e até para

eventuais melhorias em sua casa, conforme garante a Lei Federal n.º 11.888,

de 24 de dezembro de 2008, o que aproximaria sua realidade do Poder Público

ensejando oportunidade de solicitarmos outros tipos de auxílio, ao que recusou

sumariamente.

O pesquisador perguntou à M. se ela desejava que ele a ajudasse a

encaminhar a carta até a Diretoria do Grupo, para deliberação sobre a ajuda

solicitada, ao que aceitou. O pesquisador pediu a sua permissão para divulgar

a carta ao Grupo e em sua pesquisa, já que estava ciente desta porque haviam

conversado sobre o assunto em outra ocasião, ao que aquiesceu e concordou

em preparar a autorização por escrito, o que foi feito com muita dificuldade, o

que pode ser verificado no Anexo 4.

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O pesquisador conversou com alguns membros do Grupo e encaminhou

a solicitação da M. para a Diretoria. O pesquisador está apressando a

deliberação sobre o assunto, porque para a família da M. há muita urgência em

que seja construído um banheiro em sua casa. Trata-se de uma questão

relacionada à dignidade mínima do ser humano.

Interessante destacar mais um fato que ocorrera com M. neste mesmo

dia e que evidencia a sua dificuldade de “ter voz”. Estava muito frio no dia nove

de junho. Quando M. chegou à sede do Grupo, vestia uma “blusinha” de alça.

O pesquisador, ao recepcioná-la, impressionou-se com as suas vestes e

perguntou se não estava sentindo frio, informando que ele próprio estava

agasalhado e ainda assim sentia-se gelado. Ao que M. respondeu “não”,

sorrindo e balançando a cabeça negativamente. O pesquisador distraiu-se com

outros membros das famílias assistidas e com a organização geral, quando

percebeu que M. estava encolhida em um canto, fora do salão. Braços

cruzados e lábios arroxeados denunciavam, sem qualquer dúvida, que M.

passava muito frio. Aproximou-se e perguntou novamente se estava com frio,

comentando que o sol havia se escondido naquele dia e que a temperatura

havia caído muito de um dia para outro. Novamente a resposta foi negativa,

acompanhada de um sorriso enrijecido e acanhado. O pesquisador insistiu,

respeitosamente. M. negou novamente. O silêncio secular imposto pela

ideologia dominadora ainda se impõe, inclemente.

O pesquisador, compreendendo a dificuldade de se expressar, convidou-

a a acompanhá-lo até o bazar do Grupo, que funciona na garagem da sede,

para que escolhesse um agasalho. M. se negou: “Num precisa não, eu num tô

com frio não.” Sem outra alternativa, o pesquisador desceu até o bazar,

sozinho, escolheu um bom agasalho feminino e entregou à M., que com um

largo sorriso agradeceu, vestindo-o imediatamente. Depois disso M. parecia

mais alegre, confortável e a vontade no ambiente. Ao final das atividades e

com as cestas básicas entregues, era o momento de as famílias voltarem para

suas casas. M., então, procurou o pesquisador para devolver-lhe o agasalho,

agradecendo. Este lhe disse que se tratara de um presente do Grupo e insistiu

para que ela aceitasse. Demonstrando acanhamento, M. aceitou.

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Ao lado, posto à margem, sem direitos cívicos, estava o homem comum, irremediavelmente afastado de qualquer experiência de autogoverno. De dialogação. Constantemente submetido. "Protegido". Capaz, na verdade, de algazarra, que é a "voz" dos que se tornam "mudos" na constituição e crescimento de suas comunidades, quando ensaiam qualquer reação. Nunca, porém, capaz de voz autêntica. De opção. Voz que o povo inexperimentado dela, vai ganhando quando novas condições faseológicas vão surgindo e propiciando a ele os primeiros ensaios de dialogação. (FREIRE, 2011a, p. 48)

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4. Considerações de um final em andamento…

Ao dialogar para juntos caminharem rumo ao desenvolvimento de

consciência crítica, autonomia e liberdade, o pesquisador descobriu-se

alienado. Sentiu-se como um “deles”. Chegou a pensar que seria lícito a ele,

em tese, assumir uma postura de “liderança” entre os demais porque passou a

reconhecer-se um igual. Mas também reconheceu sua porção opressora e

inconscientemente simpatizante com a ideologia dominante, porque se

enquadra como um sujeito socialmente pouco ativo na luta para a mudança

social, o que significa que a sua postura, próxima à inércia, denuncia uma

aceitação da situação opressora como ela funciona ideologicamente na

atualidade. Tanto porque também alienado e desanimado, acreditava que não

poderia colaborar com a mudança da sociedade para uma sociedade mais

justa e equânime, e também porque, de certa forma (a expressão “de certa

forma” demonstra a dificuldade do pesquisador em se reconhecer como um

opressor), a situação lhe era favorável.

Tornou-se, neste cenário, muito difícil conciliar os papéis de ator e de

pesquisador. O equilíbrio entre a ação e a investigação é muito difícil porque

grande é a atração por aquela em detrimento do rigor que qualquer tipo de

pesquisa séria requer.

Ainda assim, nas pesquisas que o pesquisador fez acreditou que

conseguiu manter importante nível de “suspensão” de pré-julgamentos, de

reflexão e considerando as bases teóricas escolhidas, em todas as fases do

processo de elaboração do presente trabalho. O que não foi alcançado sem

dificuldade, dada a familiaridade do pesquisador com o grupo pesquisado.

Desta forma, o pesquisador lançou mão daquele esforço sistemático de análise

de situações familiares como se fossem estranhas. Acredita que conseguiu

atingir os objetivos porque a pesquisa foi realizada com a observância dos

requisitos científicos norteadores de sua validade e confiabilidade.

Ainda, a teoria freireana é por demais complexa e de difícil aplicação. Se

o raciocínio alcança as idéias de Paulo Freire, a falta do amor “responsável”

que o pesquisador e os demais trabalhadores voluntários do Grupo sentiam

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pelos excluídos faz com que a aplicação de sua teoria por estes sofresse

prejuízo. O pesquisador reconhece tal fato. Talvez seja a sua porção opressora

e, portanto, impaciente, que esteja à espreita, atenuada pela conscientização

recente da sua real condição e dos mecanismos ideológicos do neoliberalismo.

A conclusão a que o pesquisador chegou é que aprendeu muito mais do

que pode colaborar. Mas foi uma grata surpresa. Neste final, sentiu-se muito

mais preparado para prosseguir com os projetos com as famílias, agora

vislumbrando objetivos mais claros e com preparação mais adequada. Planeja

compartilhar todo o conhecimento adquirido e desenvolvido com aqueles que

ombreiam com ele na coordenação do trabalho social e ampliar o número de

indivíduos atendidos no Grupo. A “preparação” dos trabalhadores voluntários é

uma das maiores preocupações do pesquisador, tendo em vista que este

aprendeu e entendeu que não basta ter boa vontade, é preciso ter consciência

do funcionamento da ideologia dominante, uma boa dose de auto

conhecimento para reconhecer em si mesmo, se for o caso, a sua porção

opressora, para que trabalhe com a finalidade de neutralizá-la tanto quanto

possível. Além do imprescindível conhecimento de um mínimo de teoria

freireana para servir de norte do que e como fazer para ajudar as pessoas

oprimidas.

Por outro lado, o presente trabalho reforçou e aperfeiçoou a visão que o

pesquisador já tinha sobre a função social e educadora do advogado.

Profissionalmente, sente-se mais preparado e com uma visão mais abrangente

e realista dos acontecimentos e das interações com aqueles que buscam, ou

necessitam, do Poder Judiciário para fazer valer seus direitos

constitucionalmente já assegurados. O pesquisador acredita que será mais

uma voz tanto técnica quanto humana, crítica e destemida a ser ouvida por

nossos julgadores.

Quanto a sua atividade docente - já que a maior parte dos alunos da

faculdade onde o pesquisador leciona estão vinculados aos programas de

bolsa de estudo do Governo Federal, formando o melhor público que o

pesquisador desejaria ter, cabe uma reflexão. A sua prática, antes feita de

muito boa vontade e com amor, mas sem a técnica pedagógica

adequadamente desenvolvida, hoje é feita com conhecimentos dos postulados

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freireanos. E isso está fazendo uma brutal diferença, tanto para o pesquisador

quanto para seus alunos. Juntamente à parte técnica o pesquisador tem

trabalhado com eles também os conceitos de autoadvocacia. E frutos já

surgiram. Talvez se tratem de pessoas com perfil mais adequado (ou

preparado) à prática da autoadvocacia. Já lutaram muito para chegarem onde

estão e muitos residem nos mesmos locais em que as famílias assistidas pelo

Grupo. São mais conscientes e aparentemente a sua alienação é menos

densa. São mais ativos.

Lamentavelmente, até aqui, o pesquisador acredita que a autoadvocacia

não se mostrou muito eficiente para o grupo de famílias pesquisado. O tempo

foi curto, o contato com as pessoas e as atividades não tiveram a frequência

adequada e os educadores (trabalhadores voluntários do Grupo) não estavam

preparados para auxiliá-lo convenientemente. O pesquisador acredita que o

grau de alienação das famílias é severo a ponto de exigir medidas que

antecedam a introdução da autoadvocacia. O pesquisador constatou a falta

quase que absoluta de perspectivas positivas de vida, por parte dos

pesquisados. Os interesses parecem ser limitados ao gozo imediato de

qualquer benefício alcançado sem esforço. Percebe-se, também, um forte

individualismo: “o problema é seu e só seu e eu não tenho nada com isso”.

Outro aspecto que deve ser esclarecido é que por mais que o pesquisador

tentasse não interferir no hábito das pessoas, percebe-se que elas alteram

seus comportamentos quando ele e os demais trabalhadores voluntários estão

próximos ou percebem que estão sendo notadas.

Desta forma, o presente estudo coloca a urgência de se prepararem os

trabalhadores, voluntários ou não, envolvidos em atividades de caráter social

para que não se limitem, consciente ou inconscientemente, ao

assistencialismo, mas tenham como objetivo colaborar com a transformação

dos oprimidos para que se tornem conscientes do mecanismo alienador

empreendido pelo Estado, e estimulem a união dos dominados com a

finalidade de devolver-lhes a palavra para que possam, pessoalmente, lutar

pela efetivação de seus direitos e pela conquista de outros, para que possam,

enfim, transformar a sua realidade de oprimidos por meio do seu

empoderamento e do estímulo ao encabeçamento de lideranças em ações

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153

coletivas em sua comunidade e além. Os trabalhadores deverão ter a

consciência de que devem contribuir no desenvolvimento de uma autonomia,

que lhes foi roubada, e a consequente responsabilidade dela decorrente.

Trata-se de um processo de longo–termo, como afirma Bissoto (2012, p.

11) em seu ensaio, no qual, ao substituirmos o termo “sujeitos intelectualmente

deficientes” por oprimidos teremos a justa medida do necessário à sua

transformação:

O desenvolvimento do sujeito intelectualmente deficiente enquanto autônomo é um processo de ensino-aprendizagem de longo-termo, que necessita ser sustentado num esforço real, em especial em seus processos proximais. E que só será efetivo se continuamente “vivido” e alimentado pelo conjunto dos sistemas nos quais o deficiente está inserido. Não se põe somente como tarefa da família ou da escola, mas de toda coletividade. É a partir das interações sociocomunitárias, que emergirão contextos de vida mais ou menos autônomos. E que, recursivamente, nos transformarão, enquanto sociedade.

Construir a autonomia e o exercício da autoadvocacia nas pessoas

oprimidas, enquanto uma possibilidade de ação para a educação

sociocomunitária, é construir novas relações pessoais (e, assim, sociais) e

iluminar e desenvolver a consciência de novos possíveis papéis no mundo e

sobre a realidade na qual estão imersos. Desta forma, é na prática do cotidiano

vivido que essas pessoas vão romper o ciclo histórico de invisibilidade e

opressão e, finalmente, exercerão seus direitos em todas as esferas sociais.

Trata-se de mais um caminho perfeitamente possível, dentre tantos outros a

serem descobertos e explorados, cujo objetivo em comum é tornar o mundo

mais justo, mais igualitário, mais acolhedor e melhor para todos, caminho esse

a ser trilhado com o amor, com a competência e com a paciência histórica de

Freire.

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154

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162

ANEXOS

LISTA DE ANEXOS ANEXO 1 – Termo de Esclarecimento e Consentimento Livre ANEXO 2 – Ficha de Inscrição ANEXO 3 – Carta da Marisa ANEXO 4 – Autorização da utilização da carta da Marisa neste trabalho

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ANEXO 1

TERMO DE ESCLARECIMENTO E CONSENTIMENTO LIVRE

Nome do participante:

A pesquisa intitulada "A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária" pretende, com

base nos dados obtidos, verificar os resultados da aplicação da autoadvocacia no grupo

de famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros.

Sua participação será voluntária e sua recusa em participar do projeto não acarretará

qualquer consequência futura na relação com o Grupo Espírita Caminheiros.

Seu nome não será divulgado e não terá despesas ou benefícios financeiros por esta

participação e as perguntas e as dúvidas que venha a ter, poderão ser respondidas pelos

responsáveis pela pesquisa.

Para eventuais esclarecimentos, entre em contato com Rogério Pena Masi, fone: 19-

9178-0117 – e-mail: [email protected]; ou com Maria Luísa Bissoto, e-mail:

[email protected].

Eu confirmo que Rogério Pena Masi explicou-me os objetivos desta pesquisa, bem

como a forma de participação. Eu li e compreendi este termo de consentimento,

portanto, eu concordo em dar meu consentimento para participar como voluntário desta

pesquisa.

Local e data:

Assinatura do participante:_________________________________________

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ANEXO 2

Rua Erasmo Braga, n.º 560 – Campinas – SP.

CNPJ n.º 00.802.327/0001-87

FICHA DE INSCRIÇÃO Projeto Autonomia

Identificação do Aluno:

Nome:...........................................................................................................

Sexo F ( ) M ( )

Curso:...........................................................................................................

Data de nascimento ....../....../...... Número do RG .........................................

Natural de: ....................................................................................................

Endereço:

Rua...............................................................Número..........

Complemento.......................................

Bairro:...............................Cidade:.....................................CEP:......................

Tel. Residencial: ......................... Cel.: ..........................

Recado: ……………………………….. Contato: ............................

E-mail:..............................................................

Data ....../....../......

______________________________________

Assinatura do Aluno

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ANEXO 3

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ANEXO 4