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Mabel Imbassahy

Shirley Donizete Prado Andrea Estevam de Amorim

(Organizadoras)

Myriam Lanna Augusta Alvaralhão

Josepha Soares Wilson Soares

Rio de Janeiro, 2006

CRDE UnATI UERJ

ISBN 85-8797-14-4

Sabores & LembrançasSabores & Lembranças

narrativas sobre alimentação, saúde e cultura

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CRDE UnATI UERJ

Série Livros EletrônicosTextos & Memórias

Sabores & LembrançasNarrativas sobre alimentação, saúde e cultura.

Rio de Janeiro2006

Sabores & Lembranças 3

UnATIUERJ

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Mabel ImbassahySocióloga, Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz, Coordenadora da Oficina de Produção de Textos da Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Shirley Donizete PradoNutricionista, Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Doutora em Saúde Coletiva pelo

Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professora Adjunta do Departamento de Nutrição Social e Vice Diretora do

Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Andrea Estevam de AmorimSocióloga, Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública

da Fundação Oswaldo Cruz, Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Coordenadora

Assistente da Oficina de Produção de Textos da Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Myriam LannaMyrian é mineira, de família numerosa, nascida em uma fazenda e, hoje,

reside no Rio Comprido, bairro carioca, somente com uma irmã. Adolescente, se propôs a seguir a vida religiosa, o que fez por 27 anos. Depois, deu aulas de português e francês e, desde então, se dedica a

escrever com cuidado extremo, exigindo de si mesma fidelidade à língua portuguesa, da qual é admiradora e discípula.

Augusta AlvaralhãoAugusta é carioca do Estácio. Nasceu no Morro de São Carlos, quando os subúrbios do Rio guardavam semelhanças significativas com a vida rural;

seus sítios, engenhos, morros, onde a filha do garçom convivia com coelhos, galinhas, pintinhos e colhia verduras fresquinhas da horta; acompanhava os

pregões, as feiras e o desenvolvimento do comércio urbano, que foi se seguindo. Enfrentado limitações importantes, estudou e se formou em

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Contabilidade. Demonstra antiga vocação para escrever, sendo autora de um livro e, assim como Myrian, de textos livres em coletâneas publicadas. Páginas e páginas parecem pouco para que ela possa nos conduzir pelas

cozinhas, quintais, hortas, pomares, na lida doméstica quotidiana, quase o tempo todo ao lado da mãe, da irmã, da mucama, da vizinha, da avó, das

mulheres.

Wilson e Josepha SoaresFormam um belo casal; a felicidade transparece em cada gesto, em cada

olhar, nos largos sorrisos, nas dificuldades que enfrentam juntos. Nascidos ambos na cidade do Rio de Janeiro, encontram-se hoje aposentados – ela da vida de secretária e ele de servidor púbico – e dedicados à reconstrução da

história do bairro do Méier por meio de imagens e textos. Trazem-nos referenciais da cidade: mencionam, com freqüência, lojas tradicionais do Centro do Rio e suas preocupações com a saúde e com os perigos que

cercam a alimentação moderna

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Copyright © 2003 UnATI-UERJTodos os direitos desta edição reservados à Universidade Aberta da Terceira Idade.É permitida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, para uso interno ou pessoal, desde que sejam consignados a fonte de publicação original e o autor.

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CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ / UnATI / CRDE

Coordenação de publicação eletrônica: Shirley Donizete PradoCoordenação de produção: Conceição Ramos de AbreuRevisão: Maria Claudia Narciso

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I32 Imbassahy, Mabel.Sabores & Lembranças: narrativas sobre alimentação, saúde e cultura / Mabel Imbassahy, Shirley Donizete Prado, Andréa Estevam de Amoriam, Augusta Alvaralhão, Wilson [Soares], Josepha Soares.- Rio de Janeiro: UnATI / UERJ, 2006.(Série Livros Eletrônicos. Textos & Memórias) 172p.

ISBN 85-8797-14-4

1.Idoso. 2. Alimentos 3. Cultura 4. Acontecimentos que mudam a vida 5. Narrativas pessoais

CDU 616-053.9

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Sumário

Prefácio....................................................................9Narrativas: alimentação, identidade e as transformações do mundo moderno........................9Introdução..............................................................13Myriam Lanna.............................................16O capado................................................................17O pescado..............................................................21Mesa de jantar.......................................................24Sacrossanto altar...................................................24O arroz...................................................................26O feijão...................................................................30A carne...................................................................33O angu à mineira....................................................34Torresmo................................................................38Verduras.................................................................39Ovos fresquinhos, à vontade!.................................40Guisado..................................................................41Canja......................................................................45O macarrão – macarronada domingueira...............46Sobremesas...........................................................48O café.....................................................................50As frutas da fazenda..............................................54Café da manhã e lanche.........................................61Banquetes na fazenda............................................64A escola..................................................................68A canjiquinha..........................................................72O leite.....................................................................73A carne seca no varal.............................................74O colégio interno....................................................75Viver melhor...........................................................77Finito......................................................................79Augusta Alvaralhão.................................80Crianças.................................................................81Sabores & Lembranças 7

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Farinha de rosca.....................................................96Sopa de camarão...................................................97Pão, rabanada. Natal!.............................................98Hoje: o Natal, a filha, a escola e...........................101o doce de abóbora...............................................101Doces, docinhos... Lembram-me aniversários!.....105Engravidei!!..........................................................108Primeira comunhão três vezes?...........................110Ventre-virado e quebranto...................................112Vó! Traz pipocas?.................................................115Fim.......................................................................117Josepha Soares.........................................118Neste lar vive uma família feliz!...........................119Fim.......................................................................154Wilson Soares............................................155Eu e Zefinha.........................................................156Fim.......................................................................172

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PrefácioPrefácio

Narrativas: alimentação, identidadeNarrativas: alimentação, identidade e as transformações do mundoe as transformações do mundo

modernomoderno

Shirley Donizete Prado

que saudade de falar aquela língua que é como o ar que eu respiro e de comer aquela comida que, além de me nutrir, traz à tona gostos e

cheiros que estão enfurnados dentro do meu ser!

Roberto DaMatta1

Este livro tem alguns significados muito especiais.

Em primeiro lugar, por ter sido gerado através da experiência ímpar que é trabalhar, conviver com Mabel Imbassahy. Ao longo de alguns anos, aprendi com esta mulher sábia sobre os tortuosos caminhos a serem trilhados para que se possa compreender a complexidade das razões e emoções que envolvem a velhice. Gostaria de poder ter muitos outros anos mais em sua companhia cotidiana.

Mabel sempre recusou os rótulos; sempre questionou, com aguda profundidade, os trabalhos dirigidos a chamada “terceira idade”, colocando em foco a existência e a realização das pessoas que participam desses programas. Seu trabalho pioneiro na Oficina de Produção de Textos desenvolvida na UnATI-UERJ voltou-se, inicialmente, para pacientes em 1 DAMATTA, Roberto. Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 17.

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processo de alta após tratamento de doenças complexas como a depressão, por exemplo. Orientando para a geração de pequenos trechos escritos individualmente e discutidos em grupo, Mabel tratava da gramática, da qualidade da redação, das dores e das alegrias passadas e futuras das pessoas ali presentes. Daí, foi publicado no ano de 2001, o livro da Série Textos & Memórias que recebeu o delicado título Mil Novecentos e Antigamente... Uma vitória editorial para a UnATI! Uma realização de vida para os autores! Um presente para o leitor, que pode se defrontar com imagens singelas e ao mesmo tempo vigorosas do cotidiano de seres muitíssimo humanos que se dispuseram a colocar-se frente a fadas e monstros, ora com toda a sua força, ora apenas com o possível.

A idéia de dar prosseguimento a esse projeto de forma mais focada surgiu em um de nossos cafés à tarde. Alimentação e memórias. O belo tema cativou mais uma vez um pequeno e, em parte, renovado grupo, que passou a se reunir regularmente às quartas feiras. Pouco a pouco, as lembranças da vida rural no interior de Minas Gerais ou dos subúrbios do Rio foram tomando corpo. Páginas e mais páginas foram se colocando diante de nós. Muito mais que quantidade de papel e palavras, a recomposição de pedaços quase que perdidos de história e de tensões relativas a alimentos, saúde e vida. Os alimentos e a alimentação como parte essencial de suas identidades.

Por esses caminhos nasceu Sabores & Lembranças como segundo volume da Série Textos & Memórias. Contamos aqui com a participação entusiasta de Andrea já na fase de seleção, organização e revisão dos textos concluídos.

Um segundo e não menos importante motivo me leva a ter este livro como muito especial. As experiências vividas durante todo o processo de produção dos textos com Myriam, Augusta, Josepha e Wilson e ao longo das saborosas discussões sempre presentes nos cafés com Mabel resultaram em algumas reflexões que considero indispensável registrar. Trata-se de transformações que vem acontecendo em nossa história e que aparecem, por meio de formas inespecíficas e mesmo contraditórias, nas narrativas sobre comidas, alimentos e práticas alimentares desses dedicados autores.

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Aspectos econômicos, urbanização, gênero, mudanças em padrões de comportamento e desenvolvimento científico estão aí, manifestados ou ocultos, correspondendo a fios de uma complexa trama, sempre presentes, como uma paisagem de fundo ou como uma moldura, sem a qual o enredo principal – a cena dramática das transformações ocorridas nos padrões alimentares ao longo deste século – torna-se frágil e desprovido de contexto social.

Seguindo os caminhos de Benjamim2, encontramos uma trama central abordada através de alguns caminhos mais específicos e próprios da alimentação. A obtenção dos alimentos: da produção doméstica voltada, predominantemente, para família na primeira metade do Século XX às compras no supermercado de hoje. O preparo dos alimentos: as transformações tecnológicas no interior da cozinha. O consumo de alimentos: as transformações nos padrões de comportamento da família tradicional e numerosa ao redor da mesa à alimentação individualizada numa outra estrutura familiar, nuclear, em franco processo de reordenamento, onde muitas vezes, comer só e fora de casa é a referência. As transformações nos critérios para definição dos cardápios: da alimentação (o matar a fome, a comida que tem sustança e o prazer em saborear, à vontade, o alimento disponível) à nutrição (a alimentação saudável, equilibrada e tecnicamente normatizada, a prescrição dietoterápica, a vida ideal vista como aquela onde não há lugar para nem as gorduras nem para os açúcares, a fantasia da magreza num corpo real obeso).

A evidência de transformações fundamentais nas formas de lidar com os alimentos, antes plenas de vínculos afetivos e hoje - e cada vez mais - congeladas em algum freezer de supermercado. Alimentos que antes eram plenos de sabor e de prazer e que hoje - e cada vez mais - tornam-se prescrições, como medicamentos. Saudades das costelinhas de porco que hoje são gorduras saturadas e colesterol. Lembranças das deliciosas frutas roubadas do quintal da vizinha zangada que hoje são valorizadas pelos profissionais de saúde por suas fibras, vitaminas e minerais. Cultura e 2 BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, v. 1, pp 197-221.

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ciência. Um mundo de tensões a serem exploradas. Sem dúvida, ver-me frente a essas questões e ao desejo de lhes dar respostas foi um dos grandes prêmios que ganhei por ter tido o privilégio de participar dessa Oficina de Produção de Textos ao lado de Mabel, Myriam, Augusta, Josepha e Wilson.

Finalmente, este livro tem um especial significado por ser produzido em formato eletrônico. Representa uma importante iniciativa no sentido de propiciar o encontro entre pessoas idosas e tecnologia avançada de informação. A valorização de perspectivas de cunho fortemente democrático está aqui presente por meio do acesso livre a todo o seu conteúdo. Este é um dos caminhos definidos para o Centro de Referência e Documentação sobre Envelhecimento: o investimento na ampliação cada vez maior da inclusão digital para os idosos e para toda a população.

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IntroduçãoIntrodução

Mabel ImbassahyAndrea Estevam de Amorim

O tema "alimentação e memória" foi apresentado ao grupo de alunos convidados a participar da "Oficina de Produção de Textos". Houve inicialmente falta de motivação, demonstrada de forma mais evidente pela aluna Myriam Lanna, que apesar de sua vocação em produzir textos, já evidenciada anteriormente, achou o assunto sem graça, assim se manifestando: "falar de comida!?...". O envolvimento, porém, logo se fez presente, não só pela parte de Myriam como dos demais participantes: Augusta Alvaralhão, Josepha Soares, Wilson Soares, ao perceberem que havia diante deles a oportunidade de reconstruir valiosos fatos de suas vidas em que a alimentação figuraria como fio condutor, quase sempre ganhando novos significados, principalmente quando a visão retrospectiva fornecia os opostos: o ontem e o hoje. A lembrança é uma forma de encontro.

Com surpresa, observamos o grupo, ao escavar suas lembranças, trazer de volta fatos já recolhidos ao esquecimento, ligados aos hábitos alimentares; da sua infância aos dias de hoje. Dando ênfase as mudanças ocorridas, tempo a tempo em suas vidas. Nessas insondáveis buscas trouxeram informações que consideravam importante registrar. O que escreviam estava sempre intimamente ligado às suas vidas: havia cores, cheiros, sabores, emoções, desejos, negações, culpas.

Ao contarem e recontarem momentos de escassez de alimentos e outros de abundância, dentro de contextos diversos, delinearam, com sutileza, aquilo que nos passa desapercebido. Ontem comiam bacalhau com freqüência, hoje dependem de ocasiões festivas, raras. Tornou-se luxo o que antes era casual. Esse e outros fatos são evocados estabelecendo conexões entre eles, e comparações conflituosas por vezes.

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Temas recorrentes – como o relacionamento com os animais, a não mercantilização dos alimentos, a saúde como bem a ser preservado e sua conquista acarretando mudanças de hábitos – estão presentes nas narrações. Como as lembranças do preparo do café e da coleta dos grãos às canecas, mantêm ainda hoje o calor e ânimo propiciados pela bebida que vem ter nas casas brasileiras a sua presença obrigatória. Oferecer um café para alguém conserva até hoje o gesto de afabilidade. As narrativas referentes ao preparo dos alimentos registram procedimentos singulares e comuns percorridos pelos autores.

A matança dos animais, fato naquela época corriqueiro: ver a mão generosa da mãe ou da mucama torcer o pescoço de uma ave e colher o sangue; morto, o animal era colocado em água fervendo para facilitar a retirada de suas vestes de penas. Aquilo lhes era mais sadio do que comprar hoje, em supermercados, aves congeladas envoltas em papel com registros de tempo de validade e outras informações exigidas. "Não dá trabalho como dantes, mas o gosto não se compara".

Nossos narradores vivenciam o envelhecimento de formas distintas apesar de terem influencias afins, todos nasceram em casa, tinham o vizinho como uma figura presente no dia a dia, reconheciam os vendedores ambulantes, por vezes pelo seu nome, que percorriam suas ruas. Discorrem suas histórias nos conduzindo a tempos remotos. O século XX sem dúvida marca diferenças visíveis em qualquer relato de vida, basta constatarmos que foi o século de extraordinárias invenções: do primeiro automóvel a primeira aeronave a lua.

Este compêndio é uma pequena amostra da amplitude de vivências definidas como sendo dos idosos. Foram eles participantes de um momento já findo e pleno de acontecimentos memoráveis, e do começo de outro momento por vezes inquietante em suas monumentais conquistas e avanços acelerados. Essas pessoas registraram modificações de uma época que não havia restrição médica no uso, preparo e consumo dos alimentos.

Será que alguém, há mais de meio século, atrás,procurava uma orientação para alimentar-se sadiamente?- Alimentar-se bem, sem prejudicar a saúde? Qual nada!...

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Pelo menos não vem à mente a menor referência a isso...(Myriam Lanna)

Vemos aí que a saúde passa a ser um bem associado às prescrições ditadas pelos médicos e nutricionistas, e até pela mídia. Aqui temos um painel, ainda que despretensioso, de narrativas que mostram a passagem de um tempo onde os hábitos alimentares eram outros, e bem distintos.

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Myriam LannaMyriam Lanna

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O capadoO capado

Colesterol? Qual Nada...Nutrição – Esse nome era conhecido “in illo, tempore” lá em casa.

Será que alguém há mais de meio século, atrás, procurava uma orientação para alimentar-se sadiamente? Alimentar-se bem, sem prejudicar a saúde? Qual nada!... Pelo menos não vem à mente a menor referência a isso, e na prática, eu, criança ainda, era atraída pôr aquele cheirinho delicioso que me abria o apetite, eu, criança inapetente, tão enjoada para comer.

Costelinha de porco! Costelinha frita! Enquanto o prato não ia para a mesa, a gente, pequenada, passava pela cozinha, – quando papai não estava, é lógico, e, sorrateiramente, zás: era uma, eram duas, eram três; se deixassem, aquilo era um nunca acabar. Que coisa! Tão gostosa! Néctar dos deuses! O prazer, de que a gente gozava, chupando aqueles ossinhos até ficarem brancos, brancos – nem me falem. Depois, Nero, o nosso cão de guarda que ficava de vigília, junto de nós, mastigava, barulhentamente os ossos, já lisos e quase transparentes que nós lhe jogávamos.

Morávamos, como se diria hoje, na zona rural. Uma fazenda onde tudo se plantava, onde se cultivava tudo, onde se criavam vários tipos de animais domésticos: bois, carneiros, cabritos, coelhos, porcos, e grande número de aves: galinhas, patos e marrecos. Tudo para o consumo interno, quero dizer, dos moradores e dos colonos: a vida se impunha em sua plenitude e era valorizada, ainda que as pessoas não tivessem consciência disso. Era dia de se matar capado; nem sei quantas vezes por mês isso era feito – penso que todas às vezes necessárias. “Capado”, como o nome já diz – acho que todo mundo sabe do que se trata – é porco, suíno castrado para a engorda. E ficava tão volumoso o coitado que mal podia se arrastar no chiqueiro; só fazia dormir. Eu me lembro tão bem: o pobrezito, de patas dianteiras e traseiras amarradas, era agarrado por mãos criminosas que lhe

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enfiavam um punhal do lado do coração. Ele custava a morrer, agarrava-se à vida, gritava que fazia dó e nós, a petizada, corríamos para longe tampávamos os ouvidos e achávamos os adultos cruéis demais. Contudo, depois de morto o bichinho, gostávamos de ver o esquartejamento.

Mamãe, aquela mulher corajosa, que sempre estava a postos, genuinamente mineira – lenço na cabeça, avental branco, comprido, comprido, começava cedo o trabalho que durava quase o dia todo. E isso não era feito dentro da cozinha para não atrapalhar o andamento do almoço. Havia uma cobertura do lado de fora da casa, anexa à cozinha com forno e fornalha de tijolos, funcionando à lenha, naturalmente, porque a energia elétrica por volta dos anos 20 do século passado, quero dizer de 1900, só era usada mesmo para a iluminação, por sinal bastante precária, pelo menos, na nossa fazenda – privilégio para poucas. O próprio motor de gabinete dentário montado lá em casa era de pedal, movido pelo pé daquele desumano que afastava os colonos: iam uma primeira vez, quando o dente estava doendo muito, mas não voltavam à segunda.

Rodeávamos mamãe que, pacientemente, ia cortando aquela banha em pedaços fininhos, colocando-a num enorme tacho de cobre reluzente, temperando-a com bastante sal e alho socado. Depois de quase cheio o tacho, era levado a fornalha que já estava acesa. Uma vez no fogo, a banha frigia por algum tempo – parecia um mar de ondas borbulhantes que espalhavam um cheiro enjoativo por toda a redondeza; mãos experientes de alguma mulher da fazenda mexiam de vez em quando aquilo tudo com uma longa colher de pau. E um outro tacho de água fervendo que servira para escaldar o bichão por várias vezes, a fim de depená-lo, diríamos hoje. O torresmo do toucinho tinha que ir com aquela pele, já fininha – papai gostava e mamãe fazia-lhe à vontade.

– Puxe a achas para fora, Maria Antônia, o fogo está alto demais, pode queimar a banha. Dizia Dona Luiza.

Pronto. Crianças, longe! Perigo à vista – o líquido viscoso era revirado em panelões de pedra sabão (artesanato de mineiros), dividido com os colonos e, o restante, destinado a conservar as enormes postas de carne, temperadas e feitas anteriormente: pernis, costelas, lombo, cabeça... Nada

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se perdia; com os torresmos da banha era feito o sabão para o consumo da pequena comunidade.

E o toucinho? Aquela camada, alta, branca, bonita? Sim. Lembro-me, até hoje: era cortado em faixas, com pele e tudo, salgado com sal grosso, aquele sal puro – não como o sal de hoje, dito “light” (na palavra inglesa todo mundo confia; será?) – e, para espanto de muitos, dependurado sobre o comprido fogão da cozinha a fim de se converter, diariamente, em torresmos saborosos que aguçavam o apetite dos adultos.

E a saúde?... Qual nada! Disse um glutão outro dia, na casa do mano, que costuma fazer churrasco nos fins de semana para os vizinhos e amigos:

– Meu pai está com 92 anos; durante toda sua vida fumou e, cigarro de palha; gosta da carninha bem engordurada. Vende saúde, meu velho.

E um motorista, levando-me certa vez, ao hospital Pedro Ernesto:– Olhe só!apontou para um grupo de médicos, todos de branquinho– Lá vão para a churrascaria. O prato de hoje é feijoada. Aquela bem

incrementada. Para a gente, receitam legumes cozidos. Assim, até eu.Não resta dúvida de que, um dos alimentos básicos naquela época,

pelo menos nas zonas rurais de Minas Gerais era a carne. Mamãe procurava variar, mandando que se fizesse em um dia frango ensopado – os pequenos brigavam pela oveira e pelo sangue da galinha – coelho assado, bolinhos de miolo de porco, bucho frito ou refogado, panqueca recheada de carne moída, lingüiça frita. Ah! Ia esquecendo-me da lingüiça. Acho que nós menores gostávamos muito de lingüiça frita. Ignorando o trabalho que mamãe tinha para fazê-la: tripas finas, esvaziadas sempre debaixo da bica de água corrente que havia na coberta, tripas viradas e desviradas uma por uma, postas de molho em água avinagrada. Enquanto isso, a carne e o toucinho eram passados pelo moinho tocado à mão – as crianças se revezavam nesse mister – tempero forte, cheirando longe, minha mãezinha, assentada num banco desconfortável, – nada de luvas ou máscara – ia enchendo as tripas com aquela mistura condimentada.

– Vai, menina, ali no paiol, apanhar algumas palhas de milho; não quero muito duras, está bem?.

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– E você filha, suba ao pomar e me traga alguns espinhos de laranjeira, os mais fortes que encontrar.

Cortava as palhas em tiras fininhas e amarrava as tripas para que o recheio não saísse. Com os espinhos, furavam-se as tripas, a fim de que o ar intruso fosse posto para fora e não ficasse nenhum vazio nas lingüiças. Eu gostava de furar para mamãe; achava interessante aquele barulhinho: troc, troc, troc, depois de cada furadela. E aquele cano fino, transparente, ia ficando escuro – era a carne.

Faz-se isso ainda? Claro que não. A indústria invadiu os grandes centros. Pessoas, mesmo as que residem no interior, preferem comprar aqueles rolos horríveis, ensebados, mal cheirosos, infectados de remédios para não se corromperem depressa.

As tripas mais tenras, que não resistiam ao enchimento, eram cheias, sim, mas de vento – sopradas através de um cabo da folha do mamoeiro. (A natureza é pródiga, ela fornece-nos tudo de que precisamos).

Que gostosas para os consumidores lá de casa que não eram poucos. Os portugueses, chamados de tripeiros, porque eram bons comedores de tripas, passaram esse costume para nós; hoje eu sei de gente do meu prédio que compra tripas ali no tripeiro da esquina e as refoga com molho de tomate e cebola.

E o chouriço? Assim que o punhal assassino era enfiado debaixo da pata dianteira esquerda do capado, vasilha na mão a fim de recolher o sangue e, depressa, vinagre sobre ele para que não se talhasse, de todo. Uma vez temperado, fim; tínhamos um belo de um chouriço. Os colonos adoravam essa iguaria feita de sangue. Para conservá-lo, também, coloca-se sobre o fogão de lenha.

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O pescadoO pescado

O pescado não era muito comum lá em casa, quando eu ainda era criança.

O peixe tem sido alimento do homem desde os tempos primitivos. Grandes civilizações surgiram às margens dos rios – basta apontar o Egito que teve o Rio Nilo como fonte de vida e das zonas marítimas, terras banhadas por esses lindos mares, que oferecem aos homens sem nada lhes cobrar, alimento farto e sadio. Que eles apenas se dêem ao trabalho da pesca e o milagre se faz.

Quem está acostumado a ler a Bíblia depara com cenas que comprovam ser o peixe a alimentação básica nos primórdios da era cristã. Basta citar: “A pesca milagrosa” (Sc.5,1-11) e a multiplicação dos pães e peixes.

Mamãe sabia das coisas. Estou acabando de ler agora que já “O Almanaque Saemmert", de 1843, incluía em suas páginas ótimas receitas, algumas conservadas até nossos dias. Ele ensinava a conservar a carne, salgando-a e defumando-a depois. E, na semana passada, ao assistir no Canal Futura, da NET, uma aula de defumação, dada por um técnico da Faculdade de Agronomia de Viçosa, disse ele que o frango, depois de bem temperado com sal, pimenta-do-reino e pimenta malagueta, noz moscada, deve ser perfurado por dentro para que o tempero penetre bem. Deixar nessa solução durante 24 horas, depois amarrá-lo. E embrulhá-lo no papel celofane.

Com o peixe, o procedimento é semelhante: uma vez limpo, o peixe deve ser espalmado e receber bastante tempero. Depois disso é que se procede a defumação. Achei o método bastante tradicional, semelhante ao que mamãe usava: numa chaminé grossa, com diâmetro quase igual ao de um tambor, feita de manilha ou de tijolo, soca-se serragem de madeira, molhando-a um pouco para que fique bem grudada, colocando um objeto roliço em baixo a fim de ter espaço para acender o fogo. Quando a serragem começa a queimar – fogo brando – solta por cima uma fumaça

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branca. As carnes devem ser dependuradas sobre essa fumaça, à pequena distância do defumador, numa temperatura que a mão humana possa suportar. Deixar durante quatro horas. Depois, tirar o papel e conservá-las ali por mais duas horas. Pronto, é só assar ou refogar. Fazendo isso, deve-se pingar água durante o cozimento, pois, as carnes perdem água e devem ser reidratadas.

Essa dica dada por um catedrático da Faculdade de Viçosa, no fim do século XX – mamãe já praticava esse método nas primeiras décadas do mesmo século, parece até que o técnico aprendeu com ela.

Estive pensando, por que o homem destrói, com seu decantado progresso, com sua complexa técnica, o que recebeu de mão beijada? Agora mesmo, há menos de quinze dias, o vazamento de óleo na linda Baía de Guanabara. Vidas destruídas, não sei quantas. Os pescadores à procura de zonas não atingidas para sua pesca. Mesmo assim – quem tem coragem de comprar peixe, sabendo que ele vai ser prejudicial a sua saúde?... Lá se vai o sustento de uma classe já sofrida. É... Mas eles indenizam. A firma é poderosa – o país de regime capitalista – dólar em primeiro plano.

– Será que tudo é resolvido pelo “money”?Como disse anteriormente, o peixe, apesar de ser tão preconizado

pelos nutricionistas atuais, não era o alimento forte lá em casa, sendo eu ainda criança, e menos ainda agora, que percorri pelos caminhos da vida mais de sete décadas e meia. Eu explico: desde que uma de minhas irmãs se engasgou com uma espinha de peixe, mamãe tinha o máximo de cuidado ao servi-lo. As grandes traíras ou piabas, trazidas pelos irmãos que armavam o anzol, durante a noite, no córrego bem junto de nossa casa, repito, aqueles peixes eram endereçados somente para os adultos.

Minhas irmãs mais velhas, às escondidas, subiam córrego acima, com peneiras de arame em punho. Depois de alguma caminhada, as peneiras estavam cheias de lambaris. Esses, a gente comia porque as espinhas eram mastigáveis, depois de torradinhas.

Já o pescado tinha que ser feito no dia, mamãe falava:– Peixe dormido é veneno.Ela não adotava o costume antigo dos portugueses, recebido dos

romanos na época da conquista: salgar o pescado para que não se

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estragasse. É lógico que os lusos tinham que usar tal método, pois eram eternos navegadores, passavam grande parte da vida nos mares onde, nem sempre, a pesca é promissora; mais ainda desconheciam, como a maioria das civilizações daquela época, o sistema da conservação por congelamento – não havia “freezer” ou geladeiras ainda. Até nossos dias, temos resquícios desse costume: basta citar o bacalhau, de que os portugueses gostam tanto. Na minha terra, todo mundo comprava bacalhau na época da quaresma, porque a Igreja católica prescrevia jejum e abstinência de carne, em todas as quartas e sextas-feiras da quaresma, mas permitia o consumo do peixe na quarentena. Mamãe obedecia religiosamente; papai apenas sorria – era cético declarado. Esse costume, contudo já vai longe: O quinto mandamento da Igreja “jejuar e abster-se de carne, como manda a Santa Madre Igreja” foi suavizado, a penitência é só na Sexta-Feira Santa, lembrando a morte de cristo.

Adulta, já morando no Rio de Janeiro, cidade praiana, tentei colocar peixe no meu cardápio, pelo menos uma vez por semana, mas acabei desistindo. Ia às quartas-feiras à uma feira livre aqui em baixo, no Estácio, a fim de comprar peixe fresco. Horrorizada, vi, um dia o feirante abrir o “freezer” de isopor e despejar um produto lá dentro. Uma senhora disse-me que aquilo era detergente e eu pude constatar: quando cheguei a casa com um lindo filé de namorado, fui lavá-lo e ele espumava muito. Uma vez refogado, pois minha dieta proíbe-me frituras, o bichinho dissolveu-se todo, tornando-se uma verdadeira maçaroca. Postas de salmão, trazidas de um supermercado, não cozinharam, nem depois de uma hora de fogo.

Peixe de água doce, como o dourado e o piaúçu, nativos no pantanal, não são trazidos para o comércio, pelo menos eu nunca vi, talvez, porque a pesca, antes predatória naquela região tão abundante em peixes, hoje é controlada pelo IBAMA, é mais um esporte destinado a turistas, principalmente aos estrangeiros, que se extasiam com aquele pedaço de paraíso nosso.

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Mesa de jantarMesa de jantarSacrossanto altarSacrossanto altar

Mesa comprida, no meio da sala de jantar, também comprida, repito, mesa forrada com toalha e guardanapos impecáveis, quase sempre de linho, trocados diariamente – coitadas das serviçais (papai não iria aceitar os guardanapos descartáveis de hoje), pratos colocados no lugar de cada um, copos reluzentes, talheres de prata, com relevo nos cabos (não se conhecia ainda o prático inox) areados antes de cada refeição, moringa de água filtrada (lembro-me do filtro num canto da sala sobre um tripé de metal, um copo de alumínio para as crianças num suporte – Filtro Fiel), água apanhada naquela mina clarinha que jorrava entre as pedras brancas – nada de cloro, bom para eliminar bactérias, mas que agride o organismo da gente. Água gelada? Não me recordo de ter ouvido falar em geladeira, pelo menos na minha infância – segunda e terceira décadas do século XX.

Onde papai aprendera tudo aquilo? Ele não era um homem letrado mas bastante exigente consigo mesmo e conosco. Nós, menores não nos assentávamos à mesa – graças a Deus.

Entre as regras que os franceses apresentavam nos seus manuais de bom tom estava a proibição de se levar à mesa crianças e cães (As amantes de cachorro, como a minha cunhada postiça, estão alheias a toda etiqueta sadia, além de exporem os convivas a doenças próprias dos caninos. Na noite de Natal, Bina, o cãozinho de cama e mesa, trepou numa cadeira e estava devorando, tranqüilamente a coxa de um peru assado de pernas para o ar, antes que nós assentássemos para a ceia).

– Que gracinha!Disse Aparecida, beijando o “maledetto” na boca.– Ave! Deus do Céu! Em que mundo nós estamos?Seria por causa das etiquetas francesas que papai não gostava que

os pequenos almoçassem com os adultos?... A hora da refeição era sagrada

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para ele e, se algum de nós chorasse ou fizesse traquinagem na cozinha, o almoço estava estragado.

As mucamas serviam-nos lá dentro. Mesmo assim, as cadeiras da sala de jantar eram todas ocupadas – filho é que não faltava: doze ao todo. Papai, solenemente à cabeceira, mamãe ao lado direito e os mais velhos nos outros lugares, fora os comensais que apareciam, não raro.

Da cozinha, eu via passar aquelas travessas fumegantes, arranjadas com esmero.

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O arrozO arroz

Os árabes transmitiram para o resto do mundo, o costume de cultivar arroz; (do árabe; “ar-rus”, segundo Aurélio) todavia, eles o usavam mais para fazer doces. O hábito de alimentar-se com arroz, às refeições, foi adotado, primeiramente na África, depois, nas Américas e nestas, o Brasil.

O arroz lá de casa nunca era misturado, como se faz, atualmente, com brócolis, cenoura ou mesmo com lentilha para o dia de ano novo. Minha cunhada, baiana da gema, diz que a lentilha é símbolo de dinheiro e servi-la com arroz, na virada do ano, é sinal de que o “money” não vai faltar durante os trezentos e sessenta e cinco dias que começam.

Como ia dizendo, o arroz que se comia lá em casa era branquinho, soltinho, lisado por cima, quando, na travessa. Mineiro é gente tradicional; adotando um costume, só muda se está mesmo convicto que é para melhor; mineiro não tem pressa das coisas, traz sempre um ditado popular para as ocasiões: “O apressado come cru”, “Macaco velho não põe a mão em cumbuca”, “Devagar se vai ao longe” e assim por diante.

Conhecem a anedota do mineiro e do paulista?Diz-se que um mineiro lá ia pela estrada, feliz da vida, na sua carroça

puxada por um cavalinho magro e trotão. De repente, um ronco e atrás dele, um carro do ano, todo incrementado, dirigido por um paulista esnobe que lhe disse:

– Ô amigo, deste jeito você não vai chegar nunca ao seu destino. Por que não faz como eu? Meu carro tem a potência de oitocentos cavalos-vapor.

E o mineiro, cismado:– Uai! É mesmo?... Vá, amigo, segue o teu caminho que eu fico por

aqui com o meu bichinho. Que Deus te acompanhe.Os dois partiram, estrada afora, o paulista, a 180 Km por hora e o

mineiro, coitado, ao trote de seu cavalinho que já estava cansado.

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Já de tardinha, sol morrendo atrás da serra, o mineiro olhou a margem da estrada, ribanceira abaixo, lá estava o paulista com o seu carrão, metade dentro do córrego.

Perguntou-lhe, em tom de ironia:– Ô amigo, tu tá dando de beber os seus oitocentos cavalos?...Pois bem, o costume de comer arroz branquinho era sagrado, lá em

casa. Para que ele chegasse àquela alvura, necessitava-se de grande e trabalhosa caminhada. Lembro-me do arrozal verde, verde, plantado lá em baixo num terreno encharcado; depois, os pendões mesclavam o verde com um ouro velho, reluzente ao sol. Mais tarde, mãos calosas, mas seguras colhiam-no a foiçadas, estocavam-no num paiol: só então o arroz era batido a marretadas para que os grãos se soltassem. Uma vez armazenado, ele era socado aos poucos, num pilão de madeira e soprado numa peneira de abano – trabalho árduo – eu, menina descuidada para quem tudo é festa, ficava admirando aquela chuva dourada, de cascas que subiam em forma piramidal, na porta do paiol e, às escondidas, nadava naquele mar espinhoso que me irritava a pele fina e rosada daqueles tempos áureos.

– Cate para mim os marinheiros, minha filha.Dizia Berata.Os marinheiros eram tantos que enchiam uma cumbuca e a garotinha

prazerosa jogava para as galinhas: ti, ti, ti, pru... ti, ti, ti, pru... Um exército de galinhas com seus pintinhos, galos imponentes, galinhas de Angola; tô fraco, tô fraco, tô fraco... Aproximavam-se da porta da cozinha e bicavam avidamente o chão atapetado de arroz com casca.

Diz a história que já, em 1766, El Rei Dom José havia autorizado o estabelecimento de uma fábrica de descascar arroz no Rio de Janeiro, mas esse benefício demorou a chegar aos cantões de Minas Gerais. Naturalmente, a carência de estradas e de meios de transportes dificultava, mais impedia mesmo que ele atingisse as fazendas. Na cidade mais próxima da nossa nem a célebre Maria Fumaça passava. Só mesmo o carro de boi com sua toada triste. Os carreteiros faziam questão de que o carro emitisse aquela melodia angustiante: im, im, im, im, im,... Para isto, passavam sebo nos eixos de madeira.

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Como já tive oportunidade de dizer, tudo consumido no nosso pequeno feudo era produzido e beneficiado ali mesmo. Nosso cantão diferenciava das outras fazendas da época que se dedicavam exclusivamente ao plantio do café ou da cana de açúcar, lavouras favorecidas antes com a mão de obra dos escravos, depois dos imigrantes que vinham para a “terra prometida” a fim de procurar trabalho.

O arroz preparado com pouca gordura a fim de “ajudar a diminuir a acidez gástrica” do arroz, lá em casa era feito numa panela de pedra grossa, mas quebrável – trabalho artesanal que ainda se encontra no interior de Minas Gerais.

Por que seria? Hoje, reflito: tais vasilhas conservam o calor por muito tempo e, como todos devem saber, o arroz, depois de refogado e seca a água, deve ser colocado para suar, no fogo brando, a fim de ficar soltinho. Lá em casa, isso era feito na última trempe do fogão de lenha, puxando as achas em fogo para a parte da frente. Os técnicos atuais – tantas especialidades – devem ter pesquisado isso e a indústria fornece-nos hoje, ótimas panelas de inox, com fundo interno de cobre; a gente economizava gás e não se desgasta tanto para areá-las, pois, elas só escurecem se colocarmos o fogo alto, o que não parece ser recomendável. Temos algumas, são caras, mas vale a pena.

O costume mineiro de comer arroz branquinho não sei se é assim tão saudável. Diz o Frei Raul de Lima Sertã – em seu manual de 52 páginas apenas “Reconstruindo a Saúde” – que “o arroz branquinho é arroz morto, não tem energia vital, não alimenta nada” ao passo que o arroz integral é arroz vivo e cheio de energia; e mais abaixo: “o arroz branquinho prende o intestino e o arroz integral combate a prisão de ventre” (pág.21)

Agora, aos setenta e seis anos de idade, tinha vontade de mudar o meu costume – usar arroz integral – eu que me sirvo, diariamente dessa iguaria. Cheguei a tentar, mas não gostei. Pensei comigo mesma:

– Será que nesta idade vai adiantar alguma coisa, vai melhorar minha saúde que não é nada animadora?

– Serei tão renitente como o mineiro da carroça?...É, mas minha mãe já dizia:– Mais vale um gosto do que duas patacas.

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Frei Raul, no seu livrinho, dá até o modo de fazer o arroz integral para que ele fique apetitoso:

Por o arroz numa caçarola e levar ao fogo, mexendo até ficar meio dourado e estalando; depois cozinhar em água fervendo, como se cozinha o arroz branquinho. Em meia hora, mais ou menos, estará pronto; temperar a

gosto e servir. O arroz integral cozido se conserva na geladeira por uma semana.

Quem quiser que aproveita a receita.

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O feijãoO feijão

As tribos nativas da América Central e da América do Sul cultivavam diferentes espécies de feijão: “frijoles”, feijão preto, feijão mulatinho, feijão rajado, feijão branco, feijão vermelho. Feijão manteiga, feijão fradinho e outros. Também os africanos conheciam o uso do feijão; daí o brasileiro tê-lo adotado como alimento básico.

Apesar de ser espalhado por aí que o feijão é indigesto, possui grande teor de proteína – disso somos informados hoje. Mas a sabedoria popular é infusa: lá em casa, a papa das criancinhas era feijão coado com angu do dia e algum tubérculo cozido e amassado como batata, inhame, cará... E a gente crescia robusta – muito trabalho, não resta dúvida.

As papinhas atuais, dizem vir balanceadas: proteínas, sais minerais, vitaminas... Não há disponibilidade para serem preparadas em casa: o mercado de trabalho invadiu os lares, as mães têm que sair cedo, é dispendioso manter uma auxiliar durante vinte e quatro horas.

– E isto seria a mesma coisa?...É claro que não. Eu criança, senti na pele esta carência: mamãe não

tinha tempo para nós. Doze filhos vivos não é para qualquer uma. Ainda estava amamentando quando ficava grávida. Aí a gente ia para os cuidados de uma irmã mais velha ou da mucama que, graças a Deus, era uma verdadeira mãe. Nós disputávamos o canto da cama da Berata:

– Hoje sou eu, você dormiu com ela ontem.E a agregada ficava feliz.Lembro-me de Ilza, uma de minhas saudosas irmãs, falecida há pouco

tempo, com oitenta anos. Mulher corajosa, dinâmica, valente mesmo com marido folgadão, levantava-se pela madrugada preparava a papinha dos pequenos, a merenda da maiorzinha que ia, com ela para o colégio, fazia o café e adiantava o almoço, pois tinha que estar no trabalho às sete horas em ponto. As dez, o esposo ia buscá-la – pelo menos isso – para terminar o almoço, comer qualquer coisa depressa e correr para a repartição porque era funcionária do Arquivo Nacional, na parte da tarde. A casa podia estar

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de pernas para o ar – a secretária, nem sempre, caprichava no trabalho, mas a alimentação era sagrada e fresca – nada de forninho de microondas.

E, ainda, durante uma boa temporada, teve que fazer super alimentação para o marido que ficava tuberculoso e era exigente na mesa. De certa feita, na véspera de Natal, ficava horrorizada com a coragem da mana: ela matou e preparou em casa, uma leitoinha – o esposo, que andava por essas periferias, trouxera a bichinha na mala do carro. Para os domingos, o frango era comprado vivo, num galinheiro na rua do Matoso e Ilza, valente, cortava-lhe o pescoço, depenava-o em água fervendo e a gente tinha frango assado, com gosto de frango mesmo, no dia seguinte.

Voltando à fazenda: papinha fresca, preparada no dia, quase na hora. Não era como os copinhos de hoje, com as “alertadoras” datas: fabricado dia tal, vencimento, tal dia.

Podemos confiar? Não sei, pode até ser; entre nós, o controle de qualidade, a fiscalização – quimeras puras; uma de minhas irmãs quase morreu com iogurte – que estava dentro do vencimento. E, a mídia está aí, denunciando casos e mais casos de intoxicação coletiva nas escolas – ali, a alimentação se diz balanceada, fiscalizada e utilizada somente se estiver dentro do prazo.

No principio da colonização aqui no Brasil, os mantimentos eram levados às cidades ou a outros locais nos lombos de burros ou cavalos, chamados de carga. Papai, também, saía com a tropa para seus eternos negócios: comprar e vender gado, levar os produtos das safras e trazer de volta, as variedades que não havia lá em casa. Daí o feijão tropeiro, colocado em vários caldeirões, feito por mamãe com aquele capricho. Nós, menores, íamos às sobras, mas ela não gostava que comêssemos aquele prato que dizia forte demais.

Pelos caminhos, naturalmente, os tropeiros paravam para o descanso, em alguma sombra – e sempre havia muitas – à beira de alguma mina d’água ou à margem de um regato cristalino para dessedentarem e dar de beber aos animais. Faziam fogo, aqueciam os caldeirões e matavam a fome para continuarem a jornada. No regresso, ficavam elogiando a mamãe pelo saboroso feijão e contando as peripécias da viagem. Era cada mentira cabeluda!...

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– Eu matei uma surucucu dourada, pegando no rabo dele e batendo sua cabeça numa pedra.

Dizia um.– E aquele saci-pererê, pulando numa perna só e botando fogo pela

ventas. Viram o que fiz com ele?Acrescentava outro mentiroso. A gente ficava atenta, ouvindo aquelas

histórias, cada vez que a tropa voltava.O feijão tropeiro é um prato típico da cozinha mineira, com base no

feijão preto. Cozido, esse, retira-se-lhe o caldo e refoga-o em muita gordura, alho e cebola. Depois é misturá-lo com um pouco de farinha de mandioca ou de milho e enriquecê-lo com torresmos e pedaços de lingüiça.

E a feijoada? Deus do Céu! Era antigamente a comida dos escravos, feijão preto misturado com os piores pedaços do porco, rezam as crônicas. Essa comida tão incrementada não caiu de moda nas churrascarias e em alguns restaurantes apregoam-na com prato de certos dias e muita gente, inclusive turistas estrangeiros regalam-se com essa especialidade nossa.

O feijão, lá em casa, também passava fumegando naquela travessa funda (papai não admitia panelas à mesa como nós fazemos hoje. Também, tais vasilhas deviam ser enfumaçadas, pretas mesmo – feijão de lenha. As nossas panelas reluzem de tão clarinhas e conservam o alimento quente, Com o arroz nada de mistura: nem carne seca, nem chouriço, nem paio ao cozinhá-lo.

De vez em quando, era o tutu, com ovo em rodelas ou lingüiça frita por cima que recendia pela casa toda.

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A carneA carne

Proteína animal – Carne à vontade e sempre. Mesmo ignorando o valor protéico da carne – sabemos hoje que existe grande quantidade de proteína nos alimentos de origem animal – a carne nunca faltava na mesa lá de casa, quando eu era criança.

Era carne de todo o jeito: ora cozida, ora assada, ora em ensopadinhos... Os portugueses colonizadores passavam para nós o costume de não dispensar a carne às refeições; devem ter aprendido com os mouros em suas infindáveis expedições e, inconscientemente, papai era fiel à tradição. Quando não restava mais carne de capado, papai saia com meus irmãos mais velhos para uma caçada na mata vizinha e trazia um preá, espécie de roedor parecido com o coelho, quando não, um filhote de capivara que escapava da vigilância materna.

Raramente, a carne bovina fazia parte do cardápio; papai criava gado, mas para que tivéssemos leite à vontade e com o objetivo de negociar com outros fazendeiros e com poucos abatedores das cidades mais próximas.

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O angu à mineiraO angu à mineira

Fazia parte do menu diário. Era à mineira mesmo, sem sal. Ficava no fogo, exatamente, uma hora. Depois desse tempo, a cozinheira rodava o conteúdo da panela com uma colher de pau, a fim de torná-lo liguento. Era despejado, em seguida, numa travessa de louça e, na hora de ir para a mesa, virado ao contrário, para ficar com a nata por baixo e a parte lisa por cima, bonito, bonito.

– Por quê?Pensava eu.O fubá para fazer o angu tinha que ser do dia, como tudo mais – nada

de fubá guardado em latas. Zé Magnólia, nosso irmão pretinho ia buscá-lo diariamente, lá em baixo, no moinho tocado à água, onde nós éramos proibidas de ir. É perigoso, dizia mamãe. O acesso àquele local era através de uma cancela sobre o córrego, cujas águas moviam uma grande roda gradeada de madeira, fazendo o moinho funcionar.

Diz Lieselotte Ornelas, no seu livro, “Alimentação através dos tempos”3 que tal cultura nos foi passada pelos portugueses que a receberam dos árabes, ainda no século XII, quando os iberos exploravam o Mediterrâneo, com suas arrojadas navegações.

Através de uma espécie de bica de madeira dentro do moinho, também de madeira, o fubá saia fininho e caía numa espécie de cuba. Esse benefício era-nos concedido pela mãe natureza, que não pedia nada em troca – a água do riacho não parava nunca de correr – era solidária de verdade.

– A gente come angu hoje, setenta anos depois?...Sim, mineiro é sempre mineiro, em qualquer lugar que esteja, mas a

gente sabe que o fubazinho tão bem embalado vem com grande mistura de agrotóxicos e conservantes. Fará tão bem à saúde, como antigamente? Quem sabe? A gente tem que seguir a orientação de profissionais que

3 ORNELLAS, Liezelotte Hoeschl. A alimentação através dos tempos. Rio de Janeiro: FENAME, 1978.

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estudam o valor nutritivo dos alimentos e dizem que o milho contém vitaminas – bom para nós que já cruzamos o Cabo da Boa Esperança e nos cansamos com o mínimo esforço.

Diz, Gilberto Freyre em sua obra “Casa Grande e Senzala”4 que a religiosidade dos portugueses, dos índios e dos negros fê-los adotar santos protetores para tudo. Assim é que São João Batista foi escolhido como protetor da agricultura em geral e do milho particularmente. No dia do onomástico do santo, celebra-se a festa do milho, época da colheita desta gramínea tão nutritiva.

Na minha terra (aí eu já era quase adolescente e morava na cidade de meus pais, dos meus avós), Rio Casca, no dia 24 de junho, data em que a Igreja Católica comemora o nascimento de São João Batista, uma grande fogueira era erguida no centro do parque da cidade. Nela se assavam o milho verde e a pamonha (de origem tupi PAM’NÃ – Que bom! Coisa boa essa.) uma espécie de bolo de milho verde, enrolada em folha de bananeira. As mulheres serviam graciosamente canjica (cada um levava sua vasilha e sua colher – não adviera a época dos descartáveis), pipoca e pedaços de bolo de milho.

Ali se reuniam o povão e as classes privilegiadas; em todo lugar elas existem. Cantávamos e dançávamos em volta da fogueira – até que era gostoso nosso aquecimento, pois junho era o mês mais frio em minha cidade. Todos agradeciam ao santo padroeiro a colheita farta daquele ano.

Um enorme pau de sebo era plantado num lugar de destaque do parque. Lá em cima, estava fixada uma prenda bem embrulhadinha, tentando quem se achava cá em baixo. Então, os mais afoitos arriscavam-se a subir como macaco, pau acima e, já se sabe, escorregavam-se quase todos. Quando o vencedor alcançava o topo e retirava a prenda, era uma festa só.

Eu não sabia, aliás, nem podia saber; estava, num desses dias de crise – e são tantos – fazendo a minha abençoada água de fubá. Carminha, uma de minhas irmãs aproximou-se e quis saber do que se tratava. Mostrei para ela e fiquei surpresa com a informação que me passou:

4 FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1966.

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– Papai depois que foi baleado, alimentou-se de água de fubá nos dois dias que lhe restaram de vida.

Por que ignorava eu esse fato?Na verdade, eu era muito pequena ainda quando aquela tragédia caiu

sobre nós; em segundo lugar, minha irmã mais velha mandava que fôssemos brincar lá fora a fim de não presenciarmos coisa tão dolorosa. Só nos permitiu beijar o rosto do papai depois que ele veio a falecer, o que eu achei muito estranho: rosto gelado, papai imóvel – nunca havia contatado com a morte, antes; também lá em casa, ninguém jamais teceu comentário sobre esse assunto, tão grande o trauma que marcou mamãe e os filhos todos.

Lembro-me vagamente de uma garrafa incolor, dependurada de cabeça para baixo, com uma borrachinha roliça, saindo do seu gargalo, indo fixar-se no braço do meu querido pai – soro abençoado; graças a Deus, ele já existia nos idos de 1931. Lembro-me também de minha irmã mais velha, pondo a água de fubá, às colheradas, na boca do papai. Aí não devia existir o alimento pré-fabricado que a medicina hoje usa, entubando o nariz do moribundo.

Só agora, a memória veio à tona e eu compreendi porque sou tão devota da água de fubá; mamãe fazia esse alimento para nós quando estávamos com indigestão e não eram poucas às vezes; aqui, vou seguindo sem dificuldades as dicas maternas ainda depois de setenta anos.

Receitinha:Coloca-se, a ferver, um litro de água filtrada com uma colherinha de

café de sal e uma colher de sopa de açúcar. À parte, num recipiente, quatro colheres cheias fubá. A gente vai amolecendo vagarosamente o fubá,

sempre com água filtrada, até que ele se transforme numa pasta dura. Com ambas a mão, vai fazendo bolinhas apertando-as bem. Depois, colocar

essas bolinhas uma a uma, na água que já deve estar fervendo. Em fogo brando, deixar cozinhar durante uma hora.

Esta milagrosa água de fubá que deve ser tomada aos poucos; ela tira o enjôo e sustenta quem está incapacitado de ingerir qualquer alimento.

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Outra receita que não fazemos mais é a da conserva do milho verde feita, muitas vezes, lá em casa. Não se conseguem espigas de milho verde fresquinho, cujos grãos sejam bem tenros. É pena.

Debulha-se as espigas verdes, cujos grãos sejam bem molinhos;cobri-los com uma mistura de água fervendo, vinagre e sal;

cozinhá-los em seguida.

Está pronta a conserva agora, é só esperar que esfrie; depois, guardá-la, até o dia seguinte, num lugar fresco (sim tinha que ser um lugar fresco, pois lá em casa não havia geladeira – 1929 – ainda que o primeiro barco americano de gelo tenha aportado no Brasil por volta 1800. Com a técnica da propaganda que tem aquele povo, o uso do gelo depressa foi introduzido no Brasil. Daí à geladeira não demorou muito tempo, registra o Jornal do Comércio de 23 de agosto de 1834). A conserva do milho verde era servida no almoço do dia seguinte.

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TorresmoTorresmo

O torresmo fazia parte do cardápio diário. Já à mesa com pele, bem tostadinha. Ao mastigá-lo – aquele ruidozinho característico.

Papai não passava sem o torresmo: aguça o apetite, dizia; mamãe temia um acidente conosco, os menores, mas a gente gostava e não deixava de tirar uma casquinha.

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VerdurasVerduras

Nós crianças, tínhamos horror a tais pratos, não adiantava Berata insistir. Ainda bem que comíamos na cozinha – ali nos sentíamos libertas de entraves.

A verdura era a última travessa a passar. Horta bem perto da enorme cozinha: extenso manto verde ondulando-se à brisa; couve, taioba, espinafre, agrião, alface. Chicória... Eu ficava olhando a Negra fazer o verde: depois do preparo, poucos minutos no fogo, “fica amarelada, feia mesmo”, dizia. Tinha a sabedoria infusa. Os anjos lhe ensinaram que o cozimento demorado pode tirar parte do valor nutritivo das verduras.

Já estavam todos à mesa e eu via a gordura chiar, a fumaça cobrir a panela como um véu de noiva antiga e, depressa, ela revirar aquele alimento salutar numa travessa e, mais rápido ainda, levar à sala de jantar.

Ainda que fosse servido algum legume ou diferente iguaria, a verdura era indispensável. Meus pais certamente não sabiam que existiam as recomendações de comer cruas certas verduras como a alface, a chicória, o agrião.... Conosco, porém, por volta de 1927-1931, não se comia nenhuma hortaliça sem ir ao fogo; (a horta era adubada com esterco bovino, bem curado, e mamãe temia uma contaminação.) Mas nós, crianças peraltas, condicionadas àquele espaço rural, quando à sós, na horta saboreávamos tomate e alface com sal sem, pelo menos, lavá-los.

Sopa de couve (caldo verde?) agrião, cebola e alho ou couve rasgadinha com fubá – de remota origem egípcia, contribuição dos portugueses, recebida dos mouros, ainda no século XII, havia sempre no jantar.

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Ovos fresquinhos, à vontade!Ovos fresquinhos, à vontade!

Gordura saturada! Que importa. Gostávamos mais do ovo frito, suando banha, gema bem molinha misturada ao arroz. A clara, que dizem ser de mais valia, a gente desdenhava. Vendo meus irmãos comerem, pela manhã, ovos quentes com um pouquinho de sal, meu estômago revirava todo.

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GuisadoGuisado

Várias hortaliças refogadas juntas como chuchu com jiló, berinjela com abóbora vermelha, quiabo com abóbora d’água, alimentos feitos rapidamente e de fácil digestão.

Assim como o caldo verde, os mouros ensinaram aos portugueses essa culinária e, lá em casa, faziam-na sempre.

Quiabo – dizem os pesquisadores, que era grande o cultivo do quiabo na África. Seus habitantes torravam as sementes dos frutos, quando maduros e faziam uma bebida semelhante ao café; quando verde e tenro, constituía um elemento indispensável na culinária africana, principalmente para os que residiam na Costa do Marfim. Os negros – Escravos nossos. Que horror, Deus meu! – acabaram por nos legar o costume de cultivar e comer quiabo, mas não conseguiram passar-nos a cultura de torrar as sementes – Terra fecunda, os cafezais cobriam os campos.

Eu não sabia que gosto os adultos achavam em comer quiabo; hoje sei: é saboroso o fruto cônico, quando verde e tenso, daqueles arbustos que papai mandava plantar, à margem dos canteiros de hortaliças para lhes fornecer um pouco de sombra e serem adubados e regados jutamente com as verduras.

Franguinho refogado junto com quiabo é muito gostoso, mas só o mineiro para fazê-lo: algumas gotinhas de limão ao fritá-lo, em fogo brando, eliminarão a substância viscosa, característica do fruto. Só então é que deve ser refogado ou misturado ao frango. A experiência é mestra cem vezes melhor do que muitos livros de receita.

Várias lendas indígenas contam como surgiu a mandioca e uma delas reza: Criança loira, de olhos claros nasceu entre os índios; deram o nome de Mãdi. Mas crianças loiras não pertenciam à raça, negava as origens; precisavam eliminá-la. Então, resolveram num conselho, enterrá-la viva na oca, deixando os cabelos de fora. Tempos depois, nasceu ali um arbusto. Os indígenas arrancaram-no e, com ele, veio àquela raiz grossa, alimento

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salutar “MADI-OG” que Mãdi, a criança loira, legou aos de sua tribo, apesar de ter sido sacrificada.

Mandioca, aipim, macaxeira no norte e nordeste; mandioca e seus derivados, alimentos básicos dos nossos índios.

Foi logo aceita pelos conquistadores portugueses e era de inteiro agrado dos negros. Chegou até nós, naturalmente, porque seu cultivo é muito fácil e seus tubérculos radiculares de grande valor alimentício.

Prova de que a mandioca e seus derivados constituíam o alimento básico dos habitantes do Brasil nos primeiros tempos de seu descobrimento e nos séculos seguintes é a Cláusula que o governador da Capitania Hereditária da Bahia mandou registrar no seu código de leis. Queria ele que os agricultores plantassem mil covas de mandioca correspondentes a cada escravo que possuíssem.

Entre nós, quando eu era criança, preparava–se a mandioca de vários modos; todavia, a gente gostava mais da mandioca frita, douradinha, cheirosa.

Midipi-ró (pirão em tupi), tribo que apreciava a mandioca e seus derivados e nos ensinavam a fazer o pirão. Fico feliz com esse legado – gente nossa, passando para nós a sua cultura. Nada de desnacionalização, como acontece em nossos dias, com a imposição de costumes estrangeiros que só fazem mal ao organismo. Exemplo disso, é o cachorro quente, tão divulgado entre nós. Em cada esquina um carrinho, com bujão de gás e tudo.

O Jornal Nacional da Rede Globo (25-01-2000) estava citando o aumento dos casos de emergência nos hospitais públicos. Cerca de quarenta a cinqüenta pessoas com intoxicação alimentar recorrem, diariamente, aos hospitais públicos depois de terem ingerido sanduíches que dizem naturais: pão, recheado com maionese, salsicha, presunto, tomates e outros ingredientes, molho que fica em aquecimento o dia todo. Os médicos dizem que o aumento de bactérias é grande em alimentos servidos assim – o aparelho digestivo da pessoa não resiste à tamanha agressão.

Gostoso o pirão lá de casa, com molho de frango ou de carne e com ovos estrelados. E a farinha de mandioca de que era feita, mamãe mesmo

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fabricava. Ficava horas, ralando aquela quantidade de mandioca. Uma gamela de madeira recebia a massa grossa que era misturada em um pouco de água filtrada e, depois, coada em fina peneira de taquara de bambu verde. Na peneira, ficava o que iria ser farinha de mandioca; parte, mamãe torrava; a outra parte era colocada ao sol para secar. Na gamela, a água branca que virava polvilho após a evaporação, dois ou três dias depois.

Então, os biscoitos de polvilho ocupavam outro dia inteiro de minha incansável genitora, que enchia latas e mais latas, para alimentar a sua numerosa prole e proporcionar-lhe uma vida saudável.

Outros tubérculos eram cultivados e servidos lá na roça, como, por exemplo, o inhame, o cará, a batata inglesa, mas refogados em forma de mingau, o que os pequenos recusavam. Gostávamos mesmo era da batata doce frita ou assada na brasa. Sei agora, que preparada desse último jeito ela não perda nada do seu valor nutritivo, mantendo sua concentração de amido.

Ah! Que saudade do palmito trazido pelos agricultores, quando estavam roçando alguma área para o plantio. Quem não conhecesse nem adivinharia do que se tratava: pedaços de troncos de palmeira nativa, mais nada. O gomo macio do caule custava a aparecer; cascas e mais cascas eram retiradas, as primeiras, mais duras e as outras, bem maleáveis. Cortado em pequenos pedaços, aquele núcleo era refogado com alho e cebola.

Prato delicioso, nutritivo, já usado como alimento entre os indígenas, principalmente os do Amazonas. É preciso, contudo, ter cuidado ao colhê-lo: existem palmeiras bravas muito semelhantes ao palmito, que são venenosas; os camponeses conhecem-nas – são bons observadores.

Nunca mais comi palmito fresco. Comprei-o, algumas vezes, em conserva, mas corri o risco de uma intoxicação alimentar. A Mídia está alertando sempre: várias marcas já foram condenadas por conter bactérias. E sabemos como é o controle de qualidade entre nós.

Havia, na horta lá de casa, um plano elevado, feito de bambu trançado, por onde as plantas trepadeiras, em vez de espalharem ramas

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pelo chão, subiam para que seus frutos não se estragassem ao contato com a terra e não fossem comidos por insetos ou larvas.

Quem nos passou o modo de preparar essas hortaliças devia ignorar que suas cascas também devem ser aproveitadas para sopas, purês e em cozidos. Lá em casa cozinha juntinha da horta, poder-se-ia fazer isso, mas não.

Os livros de nutrição estão aí apregoando que os brotos, as folhas e as flores são partes ricas da abóbora, podendo ser refogados ou utilizados em sopas.

Por que a gente raspa a abobrinha e descasca o chuchu ao prepará-los se é ali que reside a maior parte de suas fibras? Já experimentei fazer o chuchu com casca e semente notei que o gostinho é melhor, porque o sabor desse legume não aguça o apetite.

Na nossa horta, as abóboras chamadas de porco, cresciam tanto que a turma não dava conta de consumi-las e mamãe não gostava de fazer doce de abóboras. Então, depois de colhidas, eram cortadas em pedaços, com casca, semente e tudo; postos a cozinhar naquele tachão de cobre constituíam o alimento dos porcos, melhor e mais substancioso do que qualquer ração atual.

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CanjaCanja

Quem não provou, principalmente sendo membro de uma grande e tradicional família mineira?...

O mais interessante era a tradição de ir selecionando as galinhas poedeiras, lá pelos sétimo e oitavo meses de gravidez da forte mulher mineira, que parecia ser responsável pela povoação do mundo. O “Crescei e multiplicai-vos” (Gn.1–28) da Bíblia era apregoado aos quatro ventos e, nos púlpitos, os padres faziam questão de ressaltar continuamente essa passagem. Pobres, sacrificadas esposas!

Um longo resguardo, sete dias sem sair da cama. Depois de um parto doloroso, cheio de mistérios para nós, (Dona Marta, a parteira, dizia trazer o bebê na sua malinha, que a gente queria abrir de todo jeito, antes que ele fosse entregue à mamãe) sete dias, alimentando-se, no almoço e no jantar de canja de galinha gorda e fecunda. E a gente entrava na canja, melhor dizendo, a canja entrava na gente que adorava aquele modismo. Ficávamos esperando, diariamente a facada no pescoço da galinha, de pés e asas pisadas pela nossa Berata, para disputar o sangue e a oveira, que comíamos, quase sempre na mesma hora, cozidos em água e sal.

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O macarrão – macarronadaO macarrão – macarronada domingueiradomingueira

Marco Pólo, nas suas arriscadas viagens ainda no século XIII (1277-1292) trouxera da China para Veneza vários costumes, entre eles, o da alimentação. Dessa cidade da Itália, depressa foram passados para a Península Ibérica tais hábitos; o que pegou mais, todavia, foi o do consumo do macarrão. Os portugueses que vieram nos “colonizar”, segundo pesquisas, eram sóbrios na alimentação, mas outros povos aportaram aqui e, com eles, nós brasileiros fomos adotando os costumes, inclusive o da culinária. Assim, italianos imigrados, para trabalharem nas lavouras de café, ensinaram-nos a comer a bela e saborosa macarronada.

Lá em casa, como na casa de Paola da novela “Terra Nostra”, exibida pela Rede Globo, era mamãe quem fabricava o macarrão para a macarronada que era servida aos domingos.

Cedo, D. Luiza começava a fazer a massa e nós, garotas solidárias, querendo ajudar, muitas vezes, atrapalhávamos. Ovos, farinha de trigo, água, sal, lá estava ela com as mãos na massa, batendo aquele bolo branco numa gamela (vasilha de madeira, em forma de alguidar). Não adiantava nossa impaciência infantil, ansiosa por ver pronto o que iríamos saborear no almoço, a massa tinha que descansar dizia mamãe.

Só mais tarde, com um rolo de madeira é que a industrial improvisada, mas cheia de prática, punha-se, como a "nostra" Paola da novela, a abrir a massa, pedaço por pedaço; aqueles bocados ficavam grandes quase do tamanho da mesa da dispensa, fininhos, transparentes mesmos. E não estava pronta ainda – a bendita e tão esperada massa era posta ao sol, para secar, sobre outra grande mesa, salpicada de farinha de trigo, às vezes do lado de fora da cozinha, a fim de captar os raios solares.

Meia hora depois, a serrinha manual trabalhava (quem dera que fosse como hoje: minha cunhada possui máquina de amassar, de abrir e de cortar a massa e, nem por isso, sai tão gostoso o macarrão) mamãe enrolava cada

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pedaço da massa aberta, cortava em tiras fininhas, desgarrava e separava aquelas tiras, jogando-as para cima. Daí para a mesa, poucos minutos. Eu olhava curiosa minha genitora levantando aquelas tiras brancas (sempre fui assim, acompanhava os adultos nos seus misteres e era capaz de repeti-los à risca, sendo embora, um pingo de gente) colocando-as em água fervendo. Depois com uma escumadeira e um garfo grandes, ir retirando-as aos poucos, arranjando-as numa travessa, entremeando queijo ralado e molho de tomates feito anteriormente.

Como a gente gostava daquilo.– Dio mio!Nunca mais comi macarronada tão saborosa!“O gosto dos alimentos, como muitas outras preferências, não é

natural e sim aprendido. Nós não desejamos uma coisa porque ela é boa... ela é boa porque desejamos” diz B. Spinosa (1632-1677).

– Será?As mãos diligentes de minha mãe operavam milagres. Fico admirando

Paola da novela e fico lembrando de minha mãe. Se alguém lhe houvesse patrocinado uma fábrica de macarrão, certamente, nós não teríamos passado tanta necessidade, depois da morte prematura de meu pai.

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SobremesasSobremesas

Acho que papai devia gostar muito de doce – não mais do que nós, garotos, é lógico – porque mamãe vivia fazendo tachos e mais tachos de goiabada, doce de cidra cristalizada, doce de figo e de laranja da terra em calda... Era um nunca acabar. E a gente adorava raspar o tacho.

A goiabada cremosa ia à mesa na própria caixeta, antes assaltada por nós na dispensa, e o queijo mineiro ralado, numa travessa de louça.

Eu não entendia porque os adultos só comiam doce à sobremesa, quando já se está com a barriguinha cheia. Por mais que papai proibisse, entrávamos às escondidas, na dispensa, subíamos pelas prateleiras, puxávamos a tampa de uma daquelas caixetas e... Que maravilha! A doçura vinha às colheradas, uma atrás da outra. Doce de leite cremoso, todas as segundas-feiras.

Figos – antes que amadurecessem, lá ia minha laboriosa mãezinha apanhá-los para fazer doce em calda – era aquela luta durante vários dias: ferve, escorre a água, ferve, escorre a água até que saísse aquele sumo característico. Para mim, era uma eternidade aqueles dias, ficava ansiosa, queria comer logo a gostosura que demorava tanto a sair. O doce de mamão verde ficava pronto mais depressa. Comeram, vocês, algum dia, os pequenos espelhos, nadando numa calda grossa? Então, não sabem o que é bom. O cheirinho, o gostinho de canela em pedra, do cravo da Índia, especiarias responsáveis pelo descobrimento (ou invasão) do solo pátrio, aguçavam a gula.

Já lhes falei da azáfama quando se matava capado lá em casa, disse-lhes que mamãe não deixava nada perder, nem mesmos os pés do porco – mocotós. Depois de lavadinhos, sapecados os pêlos e raspados, eram postos a cozinhar durante várias horas, sempre naquele tacho, que dava trabalho para ficar reluzente, na fornalha alimentada por lenha. Calor? Não faltava à beira do fogão de uma trempe só, mas mamãe ficava ali firme, vigilante.

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Uma vez cozidos, os ossinhos já todos separados, coava-se aquela mistura. Duas ou mais horas depois, para que o conteúdo esfriasse, a gordura talhada por cima, como uma nata, era retirada pacientemente pela doceira. Só então, aquela substância cor de chumbo era novamente coada numa peneira de taquara e levada ao fogo com uma dose proporcional de açúcar. Mexe pra lá, mexe pra cá, tira-se ponto em água fria, fogo brando para não queimar e... Finalmente. Mas, nós gostávamos da geléia bem branquinha, partida, depois, em pedaços e não daquele creme de cor indefinida, que lembrava pés de porco.

Então, outro exercício forçado se impunha: mãos corajosas, colher de pau enorme, rodavam o doce no tacho já fora do fogo até que ficasse consistente.

– Esperem esfriar, crianças, senão vai dar dor de barriga.Dizia mamãe.A geléia industrializada de hoje, bonita, transparente, vindo embalada

num copo de vidro ou numa caixinha de papelão. – Será que é feita de mocotó mesmo? Só se for de mocotós de anjos, tão fina, tão vidrada ela é.

A gente compra assim mesmo – que importa? É preciso encher os bolsos dos empresários, engordar-lhes as contas bancárias para que eles possam construir ricas mansões e fazer turismo todos os anos pela Europa e pêlos Estados Unidos. “C’est la vie”.

Mineiro é mesmo uma gente tradicional. – Será pelo fato de Minas Gerais ser um estado interiorano? Até pode ser.

Pois bem, no interior de Minas, as mulheres dedicam-se até hoje, a fazer doces deliciosos, como minha mãe. Agora mesmo, a Hélia me trouxe de São Pedro dos Ferros, onde esteve em visita a minha irmã doente, duas compotas de doces em calda, uma de figos outra de goiaba fabricadas por uma amiga nossa. E que doces! Nossa amiga faz até sob encomenda.

Também Maria das Graças, uma amiga, que veio passar a semana de carnaval conosco, foi portadora de saborosas rosquinhas caseiras que uma amiga faz e até abastece os mercados lá de Visconde do Rio Branco. Tradição! Cultura mineira! Nós a reverenciamos!

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O caféO café

Cafezinho após o almoço.

– Venha, menina, moer o café para mim; já estão tirando a mesa, ainda que estejam entretidos na conversa.

Dizia Berata, a afilhada de meus pais, agregada à nossa família desde pequena – negra que a gente adorava, mãezona para nós. Eu, aquele tico de gente, subia num banco e rodava a manivela do moinho, um milhão de vezes, ora com a mão esquerda, ora com a direita.

Num intervalo de quinze minutos, o líquido forte, escuro, fumegante era levado à sala de jantar por uma de minhas irmãs mais velhas.

Como este hábito persistiu, não só em Minas como no Brasil inteiro! Até nos restaurantes de comida a quilo, a garrafa térmica fica na saída, para aqueles que não dispensam o cafezinho, após as refeições.

Desde a Segunda metade do século XVIII, foi introduzido no Brasil, o costume de tomar café, embora as primeiras mudas tivessem vindo antes, de Caiena. Pobres e negros tomavam-no imoderadamente.

Debret, artista francês, registrou em seus desenhos negras ambulantes vendendo café nas ruas do Rio de Janeiro, à semelhança com que se fazia com o leite, antigamente.

Na zona rural, porém, isso não acontecia: o café chegava à mesa, sim, mas só depois de um longo caminho, percorrido por ali mesmo.

Senão, vejamos:Linda a plantação – terreno preparado anteriormente, adubo feito em

casa mesmo com dejetos bovinos, depois de secos e “imunizados”, por assim dizer, pela “diquada” que mamãe fazia: coava a cinza, socava-a bem numa lata de querosene vazia, perfurada por baixo e posta num tripé. Depois, ia colocando por cima a água, que saia cor de chumbo por baixo e era recolhida num recipiente.

Pés de café enfileirados, vigilância constante por causa das pragas e dos passarinhos insaciáveis, quando o café começava a amadurecer. Para

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afastá-los, eram colocados bem alto em vários pontos, de braços abertos, espantalhos de forma humana. O vento sacudia aqueles fantasmas e a passarinhada gulosa retrocedia com medo.

Os espaços entre os pés de café eram arruados. Quando chegava a época da colheita e mãos humanas poderosas, grossas, calejadas, sem luvas mesmo, faziam o café cair em balaios de taquara ou mesmo no chão, puxando os ramos, galhos abaixo, sem recuar diante do incômodo que isto lhes causava.

Diariamente, aquela enorme quantidade de frutos pequenos era espalhada no terreiro para secar e recolhida à noite. Lembro-me, perfeitamente, de como esse terreiro era preparado – nada de asfalto, cimento ou coisa similar.

Os excrementos colhidos no curral eram colocados num poço, por cima deles a tal “diguada” para amolecê-los e matar as bactérias. Passava-se, então, aquela massa mole, retirada com balde, no terreiro destinado à secagem do café.

Vejam o que pode acontecer com crianças: minha irmã, levada da breca, e eu estávamos brincando à beira daquele poço e... num dado momento... zás... Ela, inadvertidamente, empurrou-me e lá fui direto ao fundo. Agricultores que estavam por perto retiraram-me em poucos segundos. Mas eu era uma torta escura dos pés à cabeça – olhos, ouvidos, nariz cheios daquela massaroca. Recordo só de quando estava na bacia e de duas ou três mucamas jogando, sem parar, água sobre minha cabeça. Papai não estava em casa, contudo, mamãe, imediatamente mandou que entupissem o poço, ela que sempre procurava fazer as coisas com anuência do papai. Minhas irmãs, quando brigavam comigo, diziam que eu tinha sido batizada na... ; eu morria de raiva.

Retornemo-nos à preparação trabalhosa e longa do café: serviçais reviravam-no, várias vezes ao dia, com um rodo grande, de cabo longo. Os grãos demoravam a ficar secos. Só então, como o arroz, socavam-no e sopravam até que as cascas e peles desgarrassem todas. E não acabava aí; faltava a torrefação que se fazia num tacho enorme, sobre a fornalha de fogo à lenha. Aquele cheirinho anunciava aos colonos que viessem apanhar as suas cotas; a nossa era guardada em latas grandes, bem fechadas, para

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que o odor não escapasse. Lá em casa, só era moída a porção para a hora do café, coado duas a três vezes por dia. E era no coador de flanela, tripé e tudo. Acho que meu pai iria por obstáculos ao uso dos práticos descartáveis atuais. Uma sobrinha minha, carioca morando no Rio de Janeiro a vida toda, só usa o coador de pano, diz ela que o cafezinho sai muito mais gostoso. – Será?... Comigo, não. Estou partindo para as coisas mais práticas, mais fáceis. A idade me tem imposto muitas limitações. Ficar de pé durante muito tempo é um suplício e para lavar louça tenho que usar luvas, por causa de um mal estranho que me apareceu na cutícula de algumas unhas (e olhem que eu nunca fiz unhas como as mulheres atuais que cortam as cutículas para aumentar o tamanho das unhas) e que nenhum profissional, até hoje, acertou a medicação. Deve ser mal crônico como quase toda a doença de idoso.

Pergunto: – Qual o brasileiro que, andando por aí, não pára a fim de tomar um cafezinho? Os senhores médicos dizem que agride o estômago. É verdade, mas somente tomado em excesso. Ouço sempre a rádio CBN, que é especialista em notícias, informações úteis e várias dicas científicas. Outro dia um médico falava algo de interessante: disse que o café contém nove substâncias estimulantes, principalmente para o cérebro, substâncias até então desconhecidas pela Medicina Tradicional. É por isso que a gente fica tão viva quando toma o gostoso cafezinho, depois das refeições quando a preguiça se anuncia.

Já notaram que o cafezinho aquece o corpo? Nas nossas pescarias, há duas décadas atrás, o frio maltratava-nos à beira das lagoas. Meu cunhado então, preparava a célebre caipirinha – pinga com limão e nos dava para beber. Qual o que? A danada descia queimando esôfago abaixo, mas subia era para a cabeça; corpo e pés continuavam gelados. Então recorríamos à garrafa térmica de café. Aí sim o sangue voltava quente aos pés que nos sustentavam, às mãos que mantinham sobre a água gelada molinetes e varas com iscas.

O Governador do Pará, João da Maia da Gama, enviou uma expedição à Guiana, em 1727, comandada pelo Sargento-Mor Francisco de Mello Palheta, com finalidade diplomática, e a de obter sigilosamente alguns grãos de café.

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Tão bem desempenhou Palheta a sua missão, que acabou conquistando a confiança e a amizade do governador da Guiana, Claude d’Orvilliers, e de sua esposa. Graças a sua habilidade, Palheta conseguiu da madame d’Orvilliers algumas mudas de café, o que contrariava ordens do Governo Francês. Iniciou-se, assim, a plantação de um produto básico da economia brasileira, que viria a dar ao Brasil o título de maior produtor e exportador de café.

Desde de que solicitaram na UnATI para escrever sobre a história da alimentação no Brasil, estou atenta a tudo a que se refere este tema. Fiquei toda contente, quando encontrei esta informação na embalagem do café que usamos. Ela vem confirmar os dados da pesquisa que fiz sobre o café.

Será o Brasil ainda o maior produtor e exportador de café do mundo?

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As frutas da fazendaAs frutas da fazenda

Um pomar bem grande, com muita variedade de frutas nossas, muito nossas, muito brasileiras. Gurias levadas, optávamos pelo fruto proibido: goiaba verde, tenrinha ainda, comida com sal, às escondidas de papai. Achávamos aquilo uma delícia.

Na época da jabuticaba era um “Deus nos Acuda”. Trepávamos no pé escorregadio de tronco grosso, mas de galhos finos e quebradiços, salpicados de frutos pretinhos e agarrados árvore. A colheita era consumida ali mesmo: troc, troc, troc, com semente e tudo. No dia seguinte, o trabalho que dávamos não está no gibi: ao visitarmos o “water-closed”, sofríamos e até chorávamos – não conseguíamos realizar a tarefa tão salutar. Naquele tempo, só mesmo “Óleo de Rícino” ou “Sal de Glauber” a que tínhamos horror. E o pior era ficar em jejum até que o problema fosse resolvido. Então mamãe, filha de boticário e meio inclinada a médico, aplicava em nós "Clister" e era bater e valer.

No outro dia, lá estávamos nós na jabuticabeira, saboreando aqueles frutos docinhos, de casca fina mas de semente grande, que engolíamos de uma só vez. Depois de colhidas, essas frutas não podem ser guardadas por muito tempo: perdem o sabor; naturalmente, por esta razão, elas não são comercializadas. É raríssimo a gente encontrar num hortifruti ou num supermercado jabuticabas para vender.

Os índios tupis apreciavam esses deliciosos frutos e, como nós crianças, comiam-nos também nos próprios pés.

As carambolas não eram muito cobiçadas pelos infantes gulosos lá de casa. Quando amadureciam, acabavam caindo ou eram comidas pelas maritacas pabadeiras que faziam uma enorme algazarra.

Nós, crianças gulosas e impacientes como toda a criança, não queríamos perder tempo, descascando as laranjas que colhíamos nos pés baixinhos lá da roça. Também mamãe não permitia que saíssemos com faca na mão, desde o acidente que cegou uma das vistas de Cyro, meu terceiro irmão: Milton, o mais velho, estava descascando cana com o facão e o outro

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se aproximou demais. Foi uma coisa horrível, não houve como recuperar o olho esquerdo do mano, vazado inteiramente com aquele golpe de criança que não vê o perigo. Desde esse acontecimento, como já disse, criança não pegava em faca lá em casa e mamãe mandou cerrar as pontas das tesouras com que gostávamos de brincar, fazendo roupinhas para bonecas. Temos guardado uma dessas tesouras sem pontas até hoje.

Lembro-me de como nos fartávamos daquelas laranjas deliciosas e cheias de caldo; sentadas em rodinhas, à volta da cozinheira que as descascava para nós, não tirando a pele. Fazendo uma aberturinha em cima, o que chamávamos de mamurcha. E era caldo que não acabava mais. Hoje em dia, a gente não consegue fazer isso mais, pelo menos com as laranjas-lima que usamos: são duras e muitas vezes ressecadas.

Faço diariamente laranjada para Hélia (sim, para Hélia porque não posso tomar suco de espécie alguma... É uma tristeza: meu estômago não funciona. Há poucos anos atrás, tínhamos no lugar do jantar, uma batida de frutas e legumes crus que era uma beleza e... me sentia bem) e, tenho dificuldade em espremer as laranjas apesar de o espremedor ser elétrico: as cascas são grossas, possuem quase um centímetro de pele e os gomos tem os bagaços duros.

Bóris Casoy, 18/02/2000, no jornal da Record, às 7:15 da noite, estava falando sobre a chilela, bactéria que ataca o laranjal, causando manchas duras e amareladas nas laranjas a que os agrônomos chamam de amarelinhas. Pesquisadores brasileiros da Universidade Rural de Viçosa, MG, descobriram a genética das tais bactérias e encontraram meios de combatê-las sem prejudicar o laranjal com o execrável agrotóxico.

Mexericas (mexer+icar). O povo sabe das coisas: chamou a tangerina de mexerica porque, realmente, ela é intrigante, denuncia a gente. Cheiro forte, sumo acre, fazendo a criançada derramar lágrimas ao descascá-la, nem por isso deixavam de comê-la – não ficava, sequer, uma no pé carregadinho, cujos frutos amadureciam quase todos ao mesmo tempo. A mexeriqueira acusava logo a nossa arte. Mamãe fazia de contas e papai que era mais exigente, como já tive oportunidade de dizer, nem ficava sabendo. Mas, ele investigou de certa feita qual era o comilão que tirara uma fatia na linda melancia, posta na dispensa, para acabar de amadurecer. Essa fruta,

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depois de cortada, estraga-se depressa, ainda mais quando não é conservada na geladeira.

Lá em casa não deixavam que ela acabasse de amadurecer no pé para que não se estragasse, pois conserva sua cor esverdeada por fora, apesar de vermelhinha e suculenta por dentro. Para saber se está madura, corta-se um quadradinho. Testa-o e torna-se a colocá-lo no lugar tampando a melancia.

A melancia é produzida por uma planta da família das curcubitáceas, a que pertencem também o melão, o maxixe, o pepino, abóbora, a bucha e o chuchu. É oriunda da Índia e aclimatada no Brasil, sendo cultivada em todos os estados do país.

Junto da porta da cozinha, ficava uma enorme parreira de uvas pretas, cada cacho que começava a mudar de cor era revestido com um saquinho de pano que mamãe fazia a fim de proteger os deliciosos frutinhos dos pássaros gatunos: canários, pardais, carriças faziam a festa quando descobriam algum cacho maduro sem proteção.

A gente investigava todos os dias para ver se os cachos já estavam no ponto; aí, então, já se sabe, a vez era nossa até que mamãe desse conta.

Só conheci a uva branca no último natal que papai passou conosco, em 1930. Elas chegaram à nossa casa num caixote grande, protegidas por serragem de madeira, assim como as lindas maçãs. A pequenada atenta e inquieta em volta dos caixotes – papai pos-se a retirar as tábuas que os vedavam. Que odor! A casa inteira recendeu. Frutas lindas, vermelhinhas começaram a aparecer, quando se ia afastando a serragem.

No meu mundo infantil, imaginação cheia de fantasias, pensei com meus botões: devem ter vindo do céu; mamãe disse que lá existem coisas boas e belas; os anjos, naturalmente, passam bem o tempo todo comendo essas deliciosas maçãs

Mais tarde, quando morávamos na cidade e meu pai já havia falecido, quase menina-moça, eu vi as maçãs pela segunda vez (naquele recanto só se vendiam frutas nacionais); foi quando um parque de diversões – novidade ansiosamente esperada – se instalou no centro daquele lugarejo: foguetes, bandas de música, luzes, muitas luzes. À noitinha, junto com minha melhor amiga – havíamos ido ver aquele mundo encantado – senti

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novamente o inebriante odor e pude ver empilhadas, em forma de pirâmide, aquelas maçãs reluzentes, convidativas. Falei a Yayá, minha amiga:

– Certamente isto aqui não é o túmulo de algum faraó do Egito, como aprendemos na escola, e sim a morada dos deuses no Olimpo.

Hoje em dia, não sinto mais o cheiro da maçã que me inebriava, meu olfato está comprometido, assim como a minha visão e minha audição.

– Estou tão decadente, assim Deus do Céu, que as frutas, outrora deliciosas já não me sabem bem? Como as ingiro somente por ingerir? É preciso fazer a carcaça ficar de pé. A vida continua e o alimento é vida, bem único, intransferível.

“Naqueles tempos ditosos...Eu ia colher as pitangas.

Trepava a tirar as mangas...”(Meus Oito Anos, Casemiro de Abreu)

Pit-tãg (do tupi – vermelho). Os pés eram baixinhos, copados a ponto de a gente não ver os frutinhos vermelhos, escondidos entre as folhas. Mas nós, marotas já, sondávamos todo o pomar e disputávamos com as abelhas e marimbondos aquelas delícias que os céus mandavam.

Já as mangueiras eram altas, mas a gente subia assim mesmo, apesar das proibições constantes.

Os portugueses fizeram bem em trazer da Índia, três a quatro anos após o descobrimento, as sementes desta fruta tão saborosa, tão nutritiva e tão fácil de adaptar-se.

São muitas as variedades de manga, todavia, a mais saborosa é a manga ubá, justamente a que tínhamos no nosso pomar – dois pés carregadinhos davam para satisfazer a meninada gulosa, que tirava a casca com os dentes e chupava até que a semente ficasse branquinha.

Era só entrar no paiol e lá estavam dependurados cachos e mais cachos, uns já maduros, outros de vez. Ficava olhando os serviçais cortarem os cachos prestes a amadurecer. Com eles, foiçava também as bananeiras e eu me intrigava com aquilo. Dias depois, ao voltar ao local, lá estava a bananeira, esquecida da foice que lhe tirava a vida, brotando novamente;

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os empregados diziam que a próxima safra seria mais abundante e os frutos mais saborosos. “Bananeira que já deu cacho” – sabem o que quer dizer?

Banana prata. Banana nanica – enorme, que ironia! Banana da terra – Berata fritava-a para ser servida com açúcar e canela, à sobremesa. Banana d’água – cozida é muito gostosa e o doce que mamãe fazia com ela era mais gostoso ainda. Banana maçã – casca fininha, sabor delicioso, todavia, fácil de se estragar depois de madura: incha e a casca arrebenta, difícil de ser encontrada em supermercados e nos hortifrutis justamente por esta razão.

Hélia, minha irmã, sabe que eu gosto de banana-maçã, por isto, trouxe lá do interior de Minas, onde esteve agora, três pencas lindas para mim, apesar do peso.

Banana ouro, ouro mesmo, amarelinha, cacho dobrado em frutos, mais cheios que os outros todos. Uma dúzia para cada um dos pequenos lá de casa era pouco. Elas são miudinhas e apetitosas. Todo mundo gosta, todo mundo come: pobres e ricos, idosos e crianças, doentes e sãos. Fácil de descascar, no mundo apressado de hoje, ela pode matar a fome e revigorar o organismo debilitado.

Outro dia na TV, um técnico de atletismo disse que, antes das disputas, faz os seus atletas comerem bananas – dá força, dá vigor, dá resistência.

Que consolo saber que o Brasil é o maior produtor de bananas do mundo! Entre nós, não é como na Europa ou nos países do hemisfério norte, onde se compra banana por unidade, com um selinho em cada uma, como as frutas importadas e raras por aqui. E lá, dão grande valor à banana, ela é servida nos hotéis de cinco estrelas. Deus é brasileiro mesmo!

O abacaxi não atraía muito a pequenada lá de casa, pois colhê-lo não é fácil: é preciso um facão amoladinho para não cortar as mãos nas suas folhas serrilhadas. Além do mais, sua casca é grossa e áspera, é capaz de espetar também; não é qualquer um que pode descascá-lo. Aliás, o povo, quando se refere a uma coisa difícil, desagradável, diz: “Que abacaxi”.

Mamãe falava que o abacaxi fazia mal. – É ácido meninas.

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Mas a gente gostava de coisas ácidas, como já disse. É verdade que minha genitora ignorava o valor nutritivo do abacaxi, descoberto com as pesquisas atuais. Ele é rico em vitaminas, em sais minerais! E 100 gramas de abacaxi contém 93 gramas de água.

Somos tão descuidadas nesse ponto; minha nutricionista prescreveu-me tomar, no mínimo, 2 litros de água por dia e eu, que me esforço tanto para isso, não chego a tomar meio litro, apesar de colocar a garrafinha junto de mim, quando estou trabalhando. Acho o gosto da água ruim e misturo a ela um pouco de água mineral com gás, mas assim mesmo tenho dificuldade em tomá-la. Invejo as pessoas que reviram um copo duplo de uma só vez. Uma de minhas amigas já me perguntou porque eu bebo só três ou quatro golinhos. Eu não havia reparado nisto, tentei ingerir um pouco mais e... Uma forte dor no estômago maltratou-me durante alguns minutos. Louvado seja!

Fico imaginando as gerações futuras sem a água potável natural, que recebemos sem restrições; sim, porque os cientistas estão profetizando a carência da água no globo terrestre nos vindouros séculos. Não sabia eu que, apesar de nosso planeta ser formado de três quartas partes de água e somente uma de terra, apenas um por cento deste precioso líquido é potável. Estão quase implorando que se economize água, que não deixemos as torneiras abertas, que não se lavem carros e calçadas com jatos de mangueiras. Preocupação tola essa minha, não? Sei que os cientistas vão pesquisar e conseguir que a água saborosa seja transformada em potável; como já tive oportunidade de assistir na TV, experiências desse tipo estão sendo realizadas nas Universidades.

Claude Bernard, um grande fisiologista do século XIX, descobriu que bilhões de células do corpo humano vivem em um líquido que mantém para elas um ambiente adequado. Precisamos tomar muita água, ainda mais nós, idosos, que vamos perdendo grande quantidade desse líquido abençoado à medida que os anos se acumulam. E, a maioria das frutas contém uma porcentagem enorme de água, tanto assim que, quando estou com a boca seca, uma laranja, um caqui e até mesmo uma banana me dessedentam.

Berata descascava o abacaxi para nós, cortava-o em fatias redondas e a gente consumia um inteirinho em poucos minutos. Lembro-me ainda do

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gostinho de uma espécie de um suco delicioso que mamãe fazia com as cascas do abacaxi: a “Gasosa”. Mergulhava-se em água filtrada e ai as deixava durante dois ou três dias, para que fermentassem. Depois, apenas coar e colocar açúcar; aí, era servida às refeições. Graças a Deus, papai não tinha o hábito de bebida alcoólica: a caipirinha não era de forma alguma o aperitivo lá de casa; presenciei, quando criança, vizinhos nossos, parente inclusive, consumindo pinga, antes das refeições e até mesmo em outras oportunidades. Então, pensava com os meus botões: isto deve ser uma coisa horrível, pois todos que a tomam raspam fortemente a garganta e fazem uma careta horrorosa.

O araçá é uma fruta azedinha, azedinha... Mas a criançada gostava de ficar debaixo dela e ficava ali, naquela sombra refrescante, enquanto havia fruta no pé.

Já a jambosa – muito vermelha, quase grená por fora, cor de neve e esponjosa por dentro é uma fruta inofensiva, ninguém proibia comê-la e a casquinha fina, semelhante à da pêra, não engasgava a pequenada que se sentia atraída por toda aquela beleza carmim. E o caju, segurava-se pela castanha marrom e era levado à boca, sem lavar, sem nada; era uma questão de segundos. Nunca aproveitamos aquela noz que o caju tem como apêndice, como fazem em alguns estados brasileiros que o cultivam mais por causa da castanha. Dizem que, depois de torrada, tem um agradável sabor, além de ser nutritiva.

Pergunto-me: com este festival de frutas, teríamos nós apetite para ingerir o arroz com feijão, os legumes e verduras que nosso pai determinava?

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Café da manhã e lancheCafé da manhã e lanche

A família não se reunia nem para o café da manhã nem para o lanche quando eu ainda era menina ainda. Papai levantava-se pela madrugada, acordava meus três irmãos mais velhos, que eram ainda menores e lá iam ao rastro das formigas cabeçudas – saúvas terríveis – que voltavam ao formigueiro – verdadeiro arrastão – com o fruto do assalto feito às nossas plantas tão bem cuidadas pelo meu pai.

Mesa posta, sim, com as variedades providenciadas pela esposa diligente do um agricultor que provia. A casa cheia de rebentos era surtida de biscoitos de polvilho, roscas doces, cuscuz, broas de fubá, requeijão feito em casa e a miraculosa manteiga – nunca a manteiga importada da Irlanda, desde o tempo do Império, restrita à mesa dos afortunados, mas aquela que nossa abençoada mãe se dava ao trabalho de bater. Fervido o leite, era colocado em dois grandes caldeirões esmaltados. Na dispensa, ficava coberto apenas com um pano de prato, afim que esfriasse logo e formasse aquela nata grossa, suculenta, generosa. À tarde, era retirada e guardada para se juntar à do dia seguinte. Aí, mamãe se punha a batê-la numa gamela com uma colher de pau. A operação era bem demorada. Bate... Bate... Roda... Roda... Aquela substância branca. Devagarzinho, um soro cor de champanhe começava a se soltar e a nata, antes opaca, ia ficando transparente e se juntando num bolo grande. Batia mais – coitada de mamãe –, mais um pouco, escorria o soro. Pronto! Ali estava a manteiga, agora era só lavá-la e colocar um pouco de sal. Que coisa saborosa, passada na rosca-doce e na broa de fubá. Atualmente – ano 2000 – é a margarina “diet”, quase sem sabor, determinada pela nutricionista, que usamos.

Não sou afortunada como nossos vizinhos – família Peixoto de Castro – que eram donos de uma enorme mansão, verdadeira chácara, que ocupava a rua Santa Amélia inteirinha e mandavam vir, diariamente de suas fazendas, uma bem tratada vaca holandesa que era ordenhada “in loco” a fim de que tomassem o leite fresquinho. Nem jamais experimentei o leite de búfala.

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Na Ilha de Marajó, e agora em alguns estados do nordeste como o Ceará, estão praticando a criação de búfalos, mais resistentes, mais mansos e mais lucrativos do que o gado bovino. Sabe-se que uma búfala chega a procriar até aos trinta anos de idade e produz diariamente, de dez a doze litros de leite. Que generosidade...

Aqui em casa, adotava-se, atualmente, o consumo de leite em pó, mais prático para nós – o idoso tem que ir se adaptando às suas limitações – não podemos descer três lances de escada todos os dias, para comprar os saquinhos, que dizem ser frescos e trazem validade, como fazíamos há duas décadas atrás. A gente até compreende, numa grande metrópole como o Rio de Janeiro, que tudo tem que vir mesmo pré-fabricado, pré-embalado. Não teria sentido, seria mesmo impraticável, o burrinho, com dois latões no lombo, puxado pelo leiteiro gritando: Olhem o leite! Olhem o leite! Como se fazia antigamente ou como se prática ainda em pequenas cidades do interior.

Coisa que eu fui prestar atenção somente agora, em que me sinto tomada pela temática da alimentação, é nas embalagens e nos rótulos. Outro dia ouvi perplexa, um técnico em nutrição dizer que, às vezes demoram até cinco anos pesquisando a maneira mais convincente de elaborar uma embalagem. É por esta razão que vivem trocando de embalagem e comunicam isso com tanta ênfase – A mídia está aí para que?...

Voltamos à longínqua infância: nutritivo realmente o nosso antigo lanche, como disse antes, apesar do trabalho que dava para ser preparado. Atualmente, não há tempo para tanto, é caixinha disso, potinho daquilo e não sei mais o quê, do mercado direto para o estômago da criança, na rua mesmo com o célebre canudinho. Os tempos mudaram e tinham mesmo que mudar. O pior é o divulgado refrigerante que resolve rápido todos os problemas; chega uma visita, em vez de se oferecer um cafezinho no inverno ou suco natural no verão (dá trabalho, sejamos práticos, pra que ficar com a barriga no fogão?) Lá vai o refrigerante geladinho. Quem não gosta?

Não damos oportunidade ao guaraná tão sadio, produto nosso, já preparado há séculos pelos índios, especificamente os mahués, que o

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serviam como refresco e mesmo para saciar-lhes a fome, quando lhes faltavas o que comer.

E o mate, folhas que os guaranis mascavam, atribuindo-lhe virtudes curiosas. Só mesmo entre os gaúchos que o consomem no decantado chimarrão. Nós muito raramente, nos servimos dele.

Os fast food da vida estão aí forçando, impulsionando o consumo dos malfadados hambúrgueres. E os cachorros quentes vendidos nas lanchonetes! Naqueles caldos conservados quentes, o dia inteiro. Proliferam bactérias e bactérias que prejudicam a saúde.

Outro dia, tive enorme tristeza, ao ver na TV um comercial, por sinal muito bem feito: crianças de cinco a seis anos, com mochila nas costas, chorando e agarrando-se aos pais porque iam para a escola pela primeira vez. Então, os pais lhes mostravam os tais sanduíches de presunto da uma certa marca que lhes haviam preparado como merenda; imediatamente, as criancinhas se alegraram e, pegando a mochila, foram contentes para a escola (felizmente esse comercial saiu do ar pelo menos por enquanto).

Sorvetes deliciosos, mas cheios de gordura, e outras coisas mais, atraem, são irresistíveis às vezes, não resta dúvida. Dizem que os americanos gastam mais de 20 milhões de dólares com sorvete – dinheiro que daria para matar a fome de todas as crianças pobres do mundo. Que eles se restrinjam aos seus ricos estados e não fiquem impondo tais costumes para nós – brasileiro valoriza muito o que vem de fora! Essa mania já é antiga. Nos tempos coloniais, nem se fala. Mesmo com o Brasil independente, as iguarias importadas da Europa eram usadas, principalmente, nas altas rodas: vinhos franceses, cervejas alemãs (já popularizadas), queijos do Reino, conservas e doces vários.

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Banquetes na fazendaBanquetes na fazenda

Nas comemorações de aniversário, quando eu era criança, não havia bolo confeitado como hoje, com velhinhas a apagar, nem salgadinhos, muito menos docinhos sofisticados. Papai oferecia aos amigos e parentes fartos banquetes cuja fama corria o mundo.

Neste ponto, meu irmão mais novo – que vai fazer setenta anos – puxou meu pai, apesar de não tê-lo conhecido, pois estava apenas com oito meses quando meu progenitor faleceu; aos domingos, os vizinhos e amigos do Engenho Novo já sabem; vêm chegando de mansinho, como alguém que não quer nada, para o churrasco que se anuncia pelo odor e, o pior, para a cervejada. Bebida alcoólica não entrava lá em casa. Para os banquetes, o tradicional vinho e... em pequenos cálices.

Recordo-me da casa cheia dos que se diziam amigos e daquela azáfama na preparação durante toda a semana que antecedia os festejos. Mamãe não poupava esforços e minhas irmãs mais velhas ajudavam-na o dia inteiro.

Leitoa assada era imprescindível para o almoço festivo: lembro-me da pobre coitada, que gritava tanto para morrer, mergulhada no tempero e esticadinha numa gamela grande desde a véspera. A gente metia o dedo para provar – hum! Ardia como fogo – no outro dia era recheada com farofa e ia ao forno na postura de viva, pata dianteiras para frente, cabeça reta, boca aberta onde, depois de assada, colocava-se ovo cozido, além de azeitonas nas cavidades de onde tinham sido retirados os olhos. Dentro de algumas horas, coradinha, cheirosa, era levada à mesa num bandejão de garçom com rodelas de limão enfeitando-lhe o dorso e farofa ao redor. Parecia que a bichinha estava viva, espojada na farofa, prestes a dar um basta e saltar pela mesa impecável causando pânico aos glutões que já estavam com a boca cheia d’água. Eu torcia para isso. Mas... Que pena... Jamais aconteceu. Contentava–me em esgueirar-me sorrateiramente pelos cantos das paredes até a dispensa onde provava, com o indicador arteiro, cada uma das desejadas sobremesas que se ostentavam convidativas

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naqueles grandes pratos de cristal. Aquilo sim, valia a pena. É verdade que não podia satisfazer de todo minha guloseima infantil. Mas surrupiava um quindim ou um bombocado e depressa ajeitava os outros para que não dessem pela minha façanha.

Assar carne é um costume antigo que conservamos até hoje. É só prestar atenção quando se passa por um botequim ou padaria: frangos rodopiando dentro de um forno elétrico, deixando escorrer parte da gordura que tem sob a pele. E o carioca leva sempre essa gostosura para casa, completando principalmente, o cardápio do Domingo.

Por que tantos banquetes? Papai não era dado à comida como nosso Dom João VI vindo governar seu império aqui no Brasil para escapar da fúria Napoleônica. Rezam as crônicas da época que a Corte oferecia freqüentemente banquetes com mais de cem iguarias para os ditos nobres daquele tempo. O imperador trouxera de Portugal na sua comitiva cozinheiros franceses, mestres afamados. Era um comilão inveterado; segundo contam, levava pedaços de frango desossados nos bolsos para comê-los nos intervalos das refeições suculentas, que não eram poucas. Estava refletindo comigo mesma: se fosse nos nossos dias, garanto que o Imperador não teria tanto gosto assim em deglutir os frangos congelados que chegam até nós sem nenhum sabor, depois de terem recebido os conservantes miraculosos. Tolice minha o que estou dizendo; o rei guloso ordenaria que fizesse uma granja no terreno do próprio palácio ou em outro lugar qualquer para que pudesse gozar das delícias de comer frangos bem fresquinhos.

E agora, atualmente, será como outrora?... A mídia está de olho na verba que é destinada ao regalo do senhor Presidente da República. Apesar de toda a parcimônia das informaçõe,s a imprensa já apurou que mais de cinco mil reais por mês são destinados ao “menu” do mandatário de um país, dito democrata e pobre. Valha-me Deus! Os menos bafejados pela sorte jamais sonharam que tanto dinheiro do povo fosse destinado ao paladar do Presidente de um País quase faminto. Sempre foi assim; os mais afortunados do tempo do Império não se privavam de tudo aquilo que a França, Alemanha, Itália e outros países da Europa podiam oferecer para a

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satisfação dos gostos mais refinados, mesmo no reinado de Dom Pedro, que era um governante comedido e criterioso.

Voltemos aos banquetes lá de casa na década de vinte de 1900.Nós crianças gostávamos daqueles acontecimentos, pois

escapávamos da vigilância dos adultos que estavam absorvidos na trabalheira ao oferecer tais recepções. Caíamos na vida. Muitas vezes nos jantares festivos havia música ao vivo; um show diríamos hoje. Meus irmãos mais velhos estudavam música, tocavam vários instrumentos tradicionais, formavam um verdadeiro conjunto: violão, violino, bandolim, cavaquinho... A valsa Branca ainda me soa nos ouvidos.

“Há tempos que a vi,Eu a conheci

Ela era linda, primorDe amor

Misto de estrela e de Flor... ”

Interessante que eu associo esta música à sobremesa: aqueles pratos apetitosos sendo servidos e os amigos do peito, com um apetite voraz, satisfazendo os dois mais importantes sentidos ao mesmo tempo.

O pior era quando papai interrompia a nossa farra infantil, chamando-nos para que recitássemos ou cantássemos – distraindo os convivas, após o almoço – aquilo que aprendíamos na escola. (Não havia TV naquele tempo. Que pena!).

A década de trinta, do século XX, rastejou na nossa vida como passos de tartaruga, pois a hecatombe desabada sobre a numerosa e organizada família desestruturou tudo. Os alimentos antes tão vistosos nos sabiam amargos: o prazer ao ingeri-los, para fortalecer e dar continuidade à vida, desapareceu por completo, principalmente, para os que já podiam compreender a ausência daquele que fazia questão sempre de uma mesa apetitosa e farta. A imagem da mesa de jantar, sacrossanto altar, ficou apenas nas lembranças cravadas nos cérebros e nos corações por flechadas, sem razão de ser. Mesmo porque, as condições financeiras jamais baixaram a terra, à nossa casa, do lar desfeito.

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Nunca mais um banquete para comemorar o que quer que fosse.No primeiro casamento lá de casa, oito anos depois do falecimento do

papai, mamãe persistia na resolução de não se fazer coisa alguma, de não se convidar ninguém. Acabou aceitando, mau grado, uma pequena recepção no clube da cidade do qual meu cunhado era sócio e as amigas fizeram questão de organizar. Tudo que lembrava papai era coberto com um véu espesso, com um silêncio sepulcral para que os corações não voltassem a sangrar. Nós, crianças, não entendíamos muito daquilo; a vida continuava cor-de-rosa para nós, o poente lindo em todas as tardes e as coroas de boninas enfeitando-nos sempre as angelicais frontes infantis, apesar disso desagradar continuamente à mamãe que as tinha como flores venenosas e destruidoras da vida.

Quanto às azedinhas (pequenos frutos do trevo azedo, que o povo chama de bananinhas, por causa do seu formato), nós as apanhávamos e comíamos às escondidas, em frente à varanda de nossa casa, em Rio Casca. Constituíam as delicias do nosso fim de tarde.

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A escolaA escola

Fui matriculada, turno da manhã, na escola primária, a única que havia em nossa terra. E, pela avaliação de meus poucos graus de conhecimento, colocaram-me logo no terceiro ano primário. Estava alfabetizada, sabia ler, escrever e contar, não me lembro de como e de quando aprendi.

Retrocedendo um pouco: recordo-me de que minhas irmãs freqüentavam a escolinha particular (uma sala apenas) que minha tia fazia questão de manter na pequena cidade de Santo Antônio do Grama, perto da fazenda onde morávamos. De vez em quando, eu as acompanhava; mas em casa, sempre ficava agarrada a elas enquanto faziam seus deveres; pacientes explicavam-me todas as novidades do dia a dia e eu, com muito interesse, ia absorvendo aqueles conhecimentos básicos. Dona Jovelina, minha tia professora, dava aula para os quatro anos escolares ao mesmo tempo. É verdade que os alunos particulares eram em número reduzido e ela tinha tempo para dedicar-se sobre cada um. Tico de gente ainda, eu, quando me sentia desinteressada, deitava-me no chão e ficava olhando num buraquinho do assoalho de tábuas largas para ver se descobria no porão escuro espíritos maus ou os anjos bons que povoavam minha cabecinha infantil.

Papai mandava nos levar e apanhar no “dodge” que meu irmão ostentava em dirigir com a capota descida. Carro alemão, diziam que tinha os pneus grandes e finos que dava saltos como um potro antes de ser domado nas picadas de terra batida, cheias de altos e baixos.

Há uma grande ligação entre freqüentar o grupo escolar e a história de minha alimentação. Quando chegava a casa meu prato estava feito, guardado na estufa do fogão de lenha que a esta altura, não era mais aquele compridão de tijolo e muitas trempes e sim de ferro chapa com apenas quatro bocas. O almoço tinha que estar pronto mais cedo, por causa da minha irmã menor que freqüentava o turno da tarde. Eu, que já tinha grande dificuldade para alimentar-me, não comia mesmo, pois, apesar de o

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trivial estar temperadinho, a comida ficava ressecada. Se fosse como nos dias de hoje, em que as escolas públicas fornecem alimento às crianças, com cardápio balanceado – assim apregoam – talvez eu tivesse me alimentado melhor.

Um parêntese: como já disse, estou ligadona na temática “alimentação”, sua história principalmente no Brasil, seu valor, sua eficácia. Ontem, 16.05.2000, entristeci-me novamente com a desoladora informação do Jornal Nacional: as toneladas de alimentos encaminhadas às escolas públicas “miraculosamente” examinadas por um técnico em nutrição, denotaram carência das vitaminas e proteínas anunciadas nos invólucros. Que pena! As crianças não vão crescer sadias e dispostas a batalhar pela vida se continuarem a se alimentar desse jeito – e vão continuar assim porque o controle de qualidade entre nós é uma quimera. Felizmente, a mídia tem que arranjar notícia para os jornais diários e “escarafunchando” tudo por aí.

Basta uma denúncia anônima e... “O medo faz o gato pular” diz o ditado popular.

As frutas são abundantes lá na roça, na cidade eram raras: poucos moradores tinham um pé de fruta em seu quintal. Eu namorava as goiabas da vizinha, Dona Lolota, cujos galhos debruçavam-se carregadinhos sobre o nosso terreno, bem do lado oculto de nossa casa, longe da vista dos adultos; mas...

– Só quando Dona Lolota der.Dizia mamãe. É claro que eu não agüentava: de vez em quando, com

um pequeno salto, surrupiava uma para matar meu desejo, mas, depois, quase me matavam.

Dona Lolota via tudo: parecia Deus, aquele que a gente estava aprendendo a conhecer nas aulas de catequese, ministrada por uma segunda Dona Lolota. E ela perguntava:

– Onde está Deus?– Deus está no céu, na terra, em todo lugar.Respondia à turma.– Deus vê todas as coisas?E a criançada em coro:

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– Sim, Deus vê todas as coisas: o presente, o passado, o futuro e até os nossos pensamentos.

E eu borboleteava no colorido das asas de minha imaginação: duvido de que Deus também não tenha vontade de comer uma daquelas goiabas cheirosas. Mas Dona Lolota – “a deusa da minha rua” – era bem capaz de impedi-lo. Se não pudesse impedir, ela constrangeria, na certa. Do cantinho da janela, apenas com uma parte do rosto à vista, ela foi a testemunha de várias peraltices minhas.

Senão vejamos: mamãe continuava a fazer aquelas roscas doces saborosas com que abastecia, outrora, a dispensa da fazenda e os colonos todos; mas, agora, em menor quantidade, para nós e para colocá-la à venda no bar do Juquinha. De certa feita, mandou que eu levasse à Dona Hipólita, um prato daquelas delícias, ainda quentinhas como sempre; eu descia o pequeno morro a galope e pior ainda, os tamancos estavam na moda. De repente... Tibum... Lá se foram prato para um lado, rosca doce para outro e eu... Estendida na areia. Não fiz por menos, apanhei as roscas, soprei-as uma por uma e tornei a colocá-las no prato. Cobrindo-as com o guardanapo, entreguei-as toda faceira à Dona Hipólita as roscas doces polvilhadas sem açúcar e areia ao mesmo tempo, certa de que minha façanha jamais iria ser descoberta. Mas qual, o anjo cujo rosto era só olho, via tudo e delatou.

De outra feita foi pior ainda, ela contou à Dona Hipólita que eu lambera o açúcar das roscas todas que mamãe mandara levar a uma amiga. E não mentiu porque na verdade não pude resistir o cheirinho daquele manjar, a menos de dois palmos do meu nariz, aquele açúcar meio derretido, brilhando como um cristal, com gosto de quero mais.

É, mas nós estávamos falando sobre frutas e interrompi. Pois bem, Dona Zizinha, nossa incomparável professora levava sempre a turma para o quintal da casa dela, a fim de ensaiar alguma festinha cívica ou mesmo continuar suas aulas – ali eram práticas: nada de papel e lápis na mão. Ela tinha prazer de estar com seus alunos. O povinho do interior, que sabe ou adivinha as coisas, dizia que ela desejava muito ser mãe, mas não lhe fora satisfeito esse desejo, por isto aquela dedicação, aquele amor por nós.

O pomar da casa de nossa professora era grande mas o Senhor Juquinha Farmacêutico, seu esposo, era implicante, não permitia que

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tocássemos sequer numa fruta. Dona Zizinha, contudo mandava que um aluno mais esperto subisse nas árvores e apanhasse algumas já maduras, mas só as maduras, dizia ela. Lembro-me da fruta de conde que eu conheci ali. Ela, de justiça ímpar, dividia igualmente para todos e a gente se regalava.

Não, não podíamos desvendar os mistérios daquele bosque encantado, para nós, morada de fadas bondosas como a nossa professora e de sacis carrancudos como seu marido, que agarravam as crianças desobedientes. O chão era úmido, tão diferente do chão lá do nosso bosque; muitas folhas secas atapetavam-no, pois raramente se andava sobre ele.

Eu, que na minha primeira infância, alimentava-me quase exclusivamente de frutas. Eu, que então tinha que me satisfazer apenas com a visão fantástica do pomar tão desejado de nossa querida professora. Pertinho, nós nos reuníamos assentados em uns bancos de pedra que formavam um grande círculo, à sombra de árvores frondosas. Mamoeiros carregados; mamão no ponto de ser colhido; e aqueles de corda – o tal de mamão macho – bem ao alcance de nossas mãos, eram frutos proibidos. Meu organismo infantil apelava pelo mamão que agora sei, faz tão bem ao intestino e ao coração. Um pouquinho adiante, os maracujás eram abundantes, mas só para deleitar a vista daquelas crianças agitadas; e justamente essa fruta é tão recomendada para o sistema nervoso. Que judiação!

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A canjiquinhaA canjiquinha

Escrevi, neste trabalho, sobre o milho, como era a plantação lá em casa, quando, toco de gente, eu ainda morava na roça. O milho entrava na nossa alimentação sob várias formas: no tradicional angu à mineira, na farinha de biju, no mingau de milho verde, canjica cozida... Aludi à comemoração do Santo protetor da colheita do milho – São João, com fogueira e balões quando, menina moça, eu morava em Rio Casca.

No tempo de vacas magras, na minha pré-adolescência, mamãe não teve outra alternativa senão introduzir a canjiquinha no cardápio diário; era muito mais barato que o arroz e feijão, base da alimentação em Minas. Aquela sopa grossa, misturada com lombo de porco ou costelinha, constituía o nosso jantar.

A canjiquinha, comida de pobre – chamada pelo povo de "pela égua" porque demorava muito a esfriar – da qual a gente não gostava. Ignorávamos seu valor nutritivo, analisado por Maria Stela Libânio em um programa da GNT-NET: programa de 20.03.2000, "Minas Sabor e Saber". Disse que o primeiro livro que a mulher mineira recebia era o de receita que ensinava vários modos de fazer a canjiquinha, inclusive, misturando-se a ela uma verdura qualquer, bem picadinha depois de refogada. A mulher mineira sempre foi sábia, como minha saudosa mãe que procurava uma alimentação saudável para nós, mesmo sendo muito carentes depois da morte de papai. Graças a Deus crescemos fortes e sadios, preparados para as lutas da vida.

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O leiteO leite

É óbvio que o leite não podia faltar em todos os lares da minha pequena cidade, pelos idos de 1935. E a gente o comprava na porta, aquele leite grosso, opaco mesmo, que depois de fervido, fornecia nata grossa, com a qual fazíamos manteiga.

Meu tio possuía um sítio nas imediações da cidade e seu filho, meu primo, trazia para vender diariamente o leite em latões, mas não eram aqueles de torneirinha em baixo. Retirava-se o líquido branco por cima; a medida de um litro possuía um cabo comprido que ia até o fundo do latão.

O povo comentava que o leiteiro era malandro: misturava água ao leite a fim de ficar com os trocados. Mais ainda: contava o absurdo de várias pessoas terem encontrado peixinhos nadando no leite que compravam. Se meu tio viesse a saber disso, o pau ia comer, não resta dúvida. Mesmo assim, os latões no dorso do burrinho de carga continuavam a rodar pela cidade e o leite era consumido com peixe e tudo. Só mais tarde é que apareceram na minha terra aqueles latões de torneirinha em baixo. Não cheguei a ver lá as embalagens de vidro retornáveis como foi costume aqui no Rio, durante muito tempo. Agora não é mais assim: a técnica desenvolveu vários meios de embalar leite; o mais usado entre nós é o saquinho plástico descartável que a gente pode conservar na geladeira, durante alguns dias sem que o leite se estrague. Prático para mim é o leite em pó; não azeda, não dá trabalho para preparar e alimenta do mesmo modo.

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A carne seca no varalA carne seca no varal

Foi no tempo em que um dos meus irmãos tinha açougue na cidade e a carne era de vaca. Dizia-se vaca porque, como sabemos, sua carne é mais tenra e mais saborosa; muitas das vezes, porém, era novilho ou mesmo um boi cansado que ia para o matadouro. Lá, a vaca era sacrificada uma vez por semana, a fim de alimentar o animal homem.

Lá se vai mais de meio século, naquela época não era como hoje: técnica superdesenvolvida, refrigeração em tudo e para tudo, produtos químicos usados para conservar... Então, a carne que sobrava, meu irmão tinha o cuidado de abri-la, espalmá-la, salgá-la de um lado e de outro com aquele sal grosso, puro e dependurá-la no varal lá de casa para que se secasse ao sol. À tarde, era recolhida e estocada. Esta operação trabalhosa repetia-se até que a carne ficasse no ponto. Assim era vendida na semana seguinte e a gente, lá em casa comia à vontade: misturada ao feijão, refogadinha aos pedaços e até crua, por incrível que pareça, pois já estava para lá de curtida.

Velho costume português passado para nós – seus colonos querendo ou não – como já tive oportunidade de escrever quando enfoquei o costume mineiro de comer carne todos os dias. Meu cunhado está com 85 anos e, até hoje, só almoça se na mesa houver uma costelinha bem gordurosa ou um bife de lombo de porco. Mas, como já ia dizendo, os portugueses tinham mesmo que defumar ou secar a carne, pois eram eternos navegantes e o “mar nem sempre está para peixe”.

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O colégio internoO colégio interno

Faca do lado direito, garfo à esquerda do prato, jamais os cotovelos à mesa (sempre os pulsos, às vezes o antebraço), guardanapo no colo, nunca enfiado na gola da blusa, boca fechada ao mastigar; o garfo é que vai à boca – o contrário são os animais que fazem; pegar o osso do frango com a mão: falta grave, a gente perdia ponto; falar com a boca cheia – era contra a etiqueta; aliás, de praxe, quase sempre o silêncio no refeitório, a não ser quando a vigilante permitia que se falasse com aquele célebre “Benedicamus, Dominum” ao que, as 160 alunas respondiam: “Deo Gratias”. Então era uma algazarra só.

O serviço à francesa sempre: primeiro prato, segundo prato e, por último, a sobremesa. As alunas detestavam aquele sistema importado – a maioria era filha de fazendeiro e muitas estavam acostumadas à liberdade total às refeições, mas tinham que obedecer – a vigilante era toda atenção.

Iguarias poucas; a gente no primeiro prato por exemplo, comia uma salada ou legume cozido com carne. Então vinha a servente, retirava os pratos e uma segunda moça uniformizada passava servindo o tradicional arroz com feijão, mais algum refogadinho.

Nos dias em que não se anunciava “Benedicamus”, a mestra ia dando instruções em voz alta e inteligível:

– Mastiguem bem, dez, doze ou mais vezes antes de engolir; a mastigação desperta a saliva e prepara o estômago para a digestão. Quanto mais mastigamos, mais nutridos ficamos, caso contrário, a gente engorda e não fica bem alimentado.

Vez por outra, uma aluna lia algo de interessante, uma história, um conto ou mesmo alguns capítulos de um livro que tinha seqüência na outra refeição.

Seria a alimentação balanceada? Não creio. Acho que a cadeira de nutricionista não existia naquela época, mas a gente notava que os cuidados com a alimentação eram muitos e, o melhor, quase tudo fresco, pois o colégio tinha uma grande horta cuidada pelo Sr. Manuel, um

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português amante da terra e dedicado à horticultura desde a mais tenra idade.

Muitas domésticas passavam o dia inteiro na cozinha, avental branco e lenço na cabeça, preparando a próxima refeição – sempre havia uma próxima.

Em regra geral, a sobremesa era um pedaço de goiabada, marmelada ou pessegada que nós, alunas, encontrávamos já servido; quando não doce, uma fruta nacional: banana, laranja, manga ou tangerina que tinha que ser descascada e comida com faca e garfo – jamais podíamos saborear aqueles gomos deliciosos que fazem dar água na boca, jamais cuspir as sementes no prato e, sim, apanhá-las com a colher, tendo o cuidado de tampar a boca com a mão esquerda. No jantar, ainda era servido um terceiro prato, a sopa, que vinha em primeiro lugar; no lanche e pela manhã, o tradicional café com leite e pão francês com manteiga.

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Viver melhorViver melhor

Hoje, como podem constatar, aprendi, há alguns anos, com pessoas carismáticas aqui da UnATI, que a gente deve fazer tudo para ter uma qualidade de vida melhor. A alimentação é um dos elementos que proporciona resistência, metabolismo real, a produção de energia necessária para a Vida e Vida Melhor. Mas – Ai de mim... – com o estômago faltando um pedaço, sem o duodeno, sem a vesícula biliar, preciso muita atenção e criatividade para descobrir determinada alimentação que digira facilmente, que não me faça mal. Sabemos que a vesícula biliar encaminha a bílis, esta substância viscosa, fabricada pelo fígado, para o duodeno, a fim de colaborar na digestão; no entanto, em mim, ela vai para o estômago ou para o intestino delgado, dizem os médicos; daí o mal estar que sinto sempre. Os nutricionistas prescrevem-me a dieta mas, cabe à gente mesma ir testando o que cai bem.

Ontem, dia 02.10.00 submeti-me ao “gostoso” exame de endoscopia digestiva e a doutora falou-me:

– Seu estômago está bastante congestionado. Veja a quantidade de bílis que extraí dele. Naturalmente isto o irrita. Além disso, ele ficou pequeno com a cirurgia e só pode digerir uma quantidade mínima de alimento; de cada vez coma pouco e mais vezes; nada de alimentos fritos e sobrecarregados de temperos.

Por isso, quando saio de casa, levo para aonde eu vou, uma sacola com algumas coisinhas para comer: frutas, biscoitos, pãezinhos, suspiros e água, sempre água, apesar de não poder tomar um copo inteiro de cada vez, como já escrevi à anteriormente – três, quatro goles e pronto. Agora estou usando alguns medicamentos que ressecam o organismo, minha língua fica colada ao céu da boca; só um pouco de água permite-me articular palavras.

Meu médico diz-me sempre:– No mínimo dois litros de água por dia.E eu:

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– Sim, senhor.Mas não chego a esvaziar a garrafinha de um quarto de litro, que

coloco perto de mim, quando estou trabalhando.Minhas colegas da UnATI estranham porque nunca compareço aos

almoços de confraternização organizados pelas turmas. Quem dera poder fazê-lo sem que meu sistema digestivo fosse molestado! Ainda bem que minha cuidadosa irmãzinha presta muita atenção naquilo que como, pelo menos com mais facilidade; e está sempre comprando e preparando para mim. A couve-flor, por exemplo, que vim a conhecer somente aqui no Rio, é uma dessas variedades: cozidinha, mesmo com água e sal, vai bem. Fico almoçando e admirando essas milhares de florzinhas, minúsculas mesmo, apertando-se num abraço fraternal na extremidade do caule. Como a natureza é bela e generosa para conosco! E a gente deixa passar esses momentos de prazer, de felicidade... E fica concentrada nos negativos da vida que, não resta dúvida, absorvem o nosso cérebro...

Aquelas folhas verdes, verdes, compridas, que protegem principalmente os buquês das beiradas, são comestíveis também; mas, infelizmente já constatei que a mim são nocivas. – Dizem os estudiosos que elas e os talos constituem parte rica dessa hortaliça e podem ser aproveitadas.

Não devemos cozinhar a couve-flor durante muito tempo para que ela não perca muito de seu valor nutritivo; bastam poucos minutos; os talos é que resistem mais, todavia fendados antes, ficam logo no ponto; mais rápido ainda se a cozinhamos no vapor. Nós temos em casa uma vasilha dessas, é de aço inoxidável e abre-se à semelhança de um leque, quando a quantidade de legumes é maior. A panela, onde vai ser colocada a vasilha com os ingredientes para cozinhar, não precisa conter muita água o bastante para produzir vapor. Tampada, o cozimento é mais rápido e a perda de nutrientes é pequena, nenhuma, principalmente aquelas que combatem a prisão de ventre.

É verdade que esse procedimento demanda um pouco mais de trabalho, contudo, para nós idosos, para mim com eterno problema no aparelho digestivo, é um achado: não preciso tomar os benditos anti-ácidos químicos e não gasto o meu rico dinheirinho, que me vem tão

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generosamente de uma aposentadoria, graças a Deus, depois de trinta e seis anos de suada contribuição.

No nosso cardápio de pobres e de idosas pouco saudáveis, a vagem é constante. Não há uma semana que a gente não coma esse feijão verde, de que gosto tanto – a mana já percebeu.

Até pouco tempo, comprávamos somente a vagem macarrão: essa espécie é fininha, tem as sementes bem pequenas que não demoram a cozinhar, mas ouvimos, pela TV que a hortaliça mais carregada de agrotóxico é justamente a vagem macarrão. Então, passamos a adquirir a vagem manteiga. A mana demora horas a catar as sementes quando está preparando o almoço. Diz que as sementes não cozinham e não pegam tempero.

Como a couve-flor, a vagem contém vitaminas e minerais. As fibras dessas hortaliças ajudam também ao bom funcionamento do intestino.

– Faça do alimento o seu medicamento.Diz um médica.Meu arroz é cozidinho, meu feijão é coado e raramente comemos

peixe, como já tive oportunidade de escrever, mas quando o fazemos é sempre refogado.

Nada de salada crua, apesar de muito recomendada pela nutricionista.

Usamos sempre, para temperar os alimentos, um sal especial: sal light. Diz-se que ele vem com uma dosagem obrigatória de iodo que evita o bócio que é a hipertrofia da glândula tireóide. O Ministério da Saúde, agora depois de constatar a enorme porcentagem de anemia, principalmente entre idosos e crianças, informam que se adicionasse ferro ao sal, em determinada proporção (Rede Globo de Televisão – Jornal Nacional de 04.05.00). Também o óleo de cozinha, por determinação do Governo, falam que deve ser enriquecido com uma boa dosagem de vitamina E.

Estarão fazendo isso os nossos “patriotas” industriais... Se pelo menos houvesse um sério controle de qualidade como em outros países, mas...

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FinitoFinito..

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Augusta Alvaralhão

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CriançasCrianças

Tentei recordar-me do passado, o mais antigamente possível e chequei à conclusão de que, a partir dos meus quatro anos, ou seja, 1930, já as lembranças vinham fluindo a ponto de poder começar a fazer alguns relatos.

Meu pai veio de Portugal e minha mãe da Espanha, rumo ao Brasil, aproximadamente, no mesmo ano. Conheceram-se, amaram-se e casaram-se. Foram morar junto com os pais dela, no Bairro Estácio de Sá, ou melhor dizendo, no Morro de São Carlos, num pequeno barracão adaptado para eles. Eu fui a primeira filha, dos três que tiveram. Nasci em 1926.

Baseando-me agora no que ouvia dizer, todos os filhos foram alimentados com leite de cabra que eles criavam.

Lembro-me, perfeitamente, de quando tive sarampo. Vejo-me ainda pequenina deitada num bercinho improvisado, chorando sem saber porque e recusando o leite que tentavam forçar-me a tomar. E a aquele pano vermelho na janelinha? Só muitos anos após, vim a saber que se tratava de uma simpatia. Quanto à coqueluche, até hoje não consegui entender o absurdo que me apavorava, quando dentro de um recipiente colocavam piche e o acendiam; imediatamente começava a sair fumaça, que eu tinha que aspirar.

A casa era pequena, mas possuía um grande terreno que eles, sabiamente, aproveitavam para criar galinhas, coelhos, cabras e porcos.

Quando meu pai estava desempregado, dedicava-se também ao cultivo de uma pequena horta, apenas para uso da casa. Nela colhia-se salsa, manjericão, pimenta malagueta, hortelã, quase tudo para temperos, além de couve, alface, pimentão, tomate, etc.

Recordo-me de que, certa vez, deu tanto tomate que minha mãe aproveitou e fez muito doce; nada sofisticado, apenas com calda de açúcar refinado. Para nós, foi uma festa pois doces em casa só no dia de São Cosme e São Damião.

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Ovos, nós comíamos sempre fresquinhos. Minha mãe, à proporção que as galinhas os “punham”, escrevia neles as datas. Havia sempre um galo para cada grupo de galinha pois apenas os ovos galados serviam para chocar.

As galinhas eram alimentadas com milho, couve cortada fina misturada com farelo e água. Cresciam gordas e saudáveis. Punham ovos durante certo tempo, algumas diariamente, outras em dias alternados. Eram sempre observadas para que não pegassem pixilinga (piolho de galinhas). Quando paravam de por ovos, começavam a cacarejar, abrindo as asas... Mamãe dizia que elas estavam engravidando. Nós colocávamos num caixote forrado com palha e capim seco, aproximadamente dezoito a vinte ovos escolhidos, levando em conta raça e data; e sobre eles a galinha. Esse caixote ficava num canto reservado. Todos os dias ração e água. A galinha quase não saía do ninho, ninguém podia aproximar-se, pois ficava agressiva. Isso durava vinte e três dias, tempo da gestação. Pedíamos a Deus que não houvesse temporal, pois acredito que, de acordo com a crença popular, isso poderia interferir fazendo com que alguns ovos gorassem.

Chegava, enfim, o dia do parto. Alguns pintinhos iam quebrando a casca do ovo e saindo; entretanto, outros não conseguiam e nós ajudávamos, com muito cuidado para não feri-los, retirando pedacinhos da casca a fim de libertá-los. Minha mãe tinha que afastar a galinha; do contrário, ela partia para cima de nós na ânsia de proteger seus filhotes. Dos dezoito ou vinte ovos, que havíamos colocado para chocar, geralmente nasciam uns quinze. Daí em diante a galinha andava cacarejando de felicidade com seus filhinhos ao redor. Para que eles dormissem, ela abria as asas... Crescia... Crescia... E todos se acomodavam bem resguardados. Eu era criança e tinha muita curiosidade e admiração por aquele processo de vida. Acompanhava, dia a dia, o crescimento dos pintinhos. Chegava, através do corpo, das penas, da postura, a distinguir quando seria frango ou franga. Hoje, ao recordar-me com saudade daquele tempo, creio que sentia um pouco de inveja daquelas asas protetoras.

Duas vezes por mês, sempre aos domingos ou feriados, meu pai fazia aquele almoço... Matava a galinha mais gorda. Aproveitava tudo, até as

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tripas. Ele a abria com uma tesoura, lavava-a e esfregava limão, colocando-a com asas, pescoço, pés e parte da gordura na canja, que era completada com cenoura picadinha, arroz e manjericão. O sangue era utilizado para molho pardo. Completando o almoço, galinha ensopada com batatas, salada de alface e tomate colhidos fresquinhos da nossa pequena horta. Algumas vezes, compravam uma garrafa de cerveja da marca ABC (preta e doce) e uma garrafa de vinho tinto que minha mãe não dispensava; para nós, refresco do dito.

Nada se perdia, pois até a gordura era aproveitada para ungüento.Hora das refeições: ninguém podia atrasar-se. Toalha simples,

bordada por nós, bonitinha, colocada sobre a mesa velha. As cadeiras também possuíam capas combinando com ela. Muitas vezes, só havia feijão, arroz e algum legume e verduras. Éramos obrigados a comer tudo o que colocássemos no prato; não podíamos deixar.

– Peguem apenas o que irão comer. Não deixem que os olhos sejam maiores do que a barriga.

Ainda sobre galinhas, lembro-me de que as mulheres, ao darem à luz, ficavam três dias ou mais comendo apenas canja. O resguardo assim o exigia, diziam. Eram também orientadas a comer canjica e beber cerveja preta pois desta forma teriam bastante leite para seus nenéns.

Hoje: ano 2000. Eu com 74 anos, encontro-me comendo galinha congelada, totalmente sem pele, sem gordura, pois como dizem os entendidos:

– É um veneno.Carne vermelha (boi e vaca). Nesta primeira etapa de minha vida,

nada tenho a relatar. Era alimento de luxo em nossa casa. Não posso deixar de lembrar da açorda que minha mãe fazia. Dizia-nos que era uma comida espanhola. Era feita da seguinte maneira.

Bacalhau de molho, na véspera. Dia seguinte, tirar as espinhas, deixando-o em pedaços pequenos. Fazer refogado com azeite, alho, cebola,

pimentão, azeitona preta, salsa e colorau. Deixá-lo cozinhando com um pouquinho de água. Quando o molho estiver grossinho, junte o bacalhau.

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Colocar pão dormido cortado em cubos. Abafar, tendo cuidado para não secar totalmente.

Uma delícia!Naquele tempo, certamente, o bacalhau era barato; do contrário,

como explicar seu freqüente uso pela família de um garçom pobre?O ensopadinho de vagem, cortada bem fininha, com bacalhau

desfiado e um molho feito com capricho, sem faltar o azeite português, era também muito gostoso.

E o bolinho de bacalhau? Minha mãe fazia questão de dizer que o dela era diferente porque não o passava na máquina de moer.

Deixava-o de molho trocando a água duas vezes e, no dia seguinte, dava-lhe uma “fervura”. Estando ele ainda quentinho ia desfiando com as

mãos, retirando todas a espinhas. Depois, juntava a batata cozida e espremida, ovos de acordo com a quantidade e um molho feito

separadamente com bastante azeite, cebola, alho, tomates sem peles, azeitonas pretas, muita salsinha e farinha de trigo. Ligava tudo com as

mãos, colocando mais farinha de trigo, se necessário, até que ficasse no ponto para ser enrolado. Fritava-os com banha e azeite colocando sobre um

papel absorvente.

Era tão cheiroso que a vizinha perguntava curiosa:– Dona Manoela, tem bolinho, né? Não esqueça de mim.Procuro compreender, mas como? Por que as famílias pobres de hoje

só fazem bolinho de bacalhau no Natal e Ano Novo? Preguiça? Creio que não, pois o que os impede certamente é o seu preço elevado.

Lembrei-me agora do nosso café da manhã. Dificilmente comíamos pão, entretanto não faltava angu (fubá cozido com água e sal) bem grosso, cortado em pedaços, batata doce ou aipim cozidos, queijo de leite de cabra feito por minha mãe e café (puro sem leite). Analisando agora, observo que até parece que estou escrevendo sobre hábitos do povo mineiro, não encontrando nenhuma ligação com minhas origens. Certamente as necessidades nos fazem buscar soluções.

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– Olha aí, Dona Maria! Traz a bolsa ou a bacia!Assim avisava num alto-falante o vendedor de laranjas que subia o

morro com o seu caminhão. O eco espalhava-se pelos becos. Quase todos corriam pois era a única oportunidade de comprarem laranja barata. Mais tarde, sentados nos portões que davam para o “beco”, comiam à vontade, conversando, brincando, sorrindo como se estivessem fazendo um piquenique.

Certa vez, ficou decidido que no fim do ano comeríamos cabra assada no forno da padaria. Levamos um susto, pois éramos muito apegados aos nossos animais, principalmente às cabritinhas: Morena, Branquinha, Malhada e Dengosa. Nós havíamos escolhido estes nomes e as chamávamos carinhosamente. Meu pai tentou convencer-nos a aceitar, explicando-nos que as criava para que não nos faltasse leite, mas podíamos, vez ou outra, variar o “cardápio”. Choramos muito, pois apesar de crianças, já conhecíamos bem o temperamento do nosso pai. Fim do ano, realmente comemos carne de cabra, mas tivemos um consolo: a que foi parar à mesa, pertencia ao vizinho. Meu pai a comprara.

Os porcos eram animais difíceis de cuidar, mas valia a pena a sua criação. No restaurante onde meu pai trabalhava, guardavam restos de comida; lavagem como diziam. Havia o suficiente para os suínos ficarem bem alimentados e cresciam gordos e saudáveis. No Ano Novo, matavam um leitãozinho e, após temperá-lo bem, mandavam-no assar na padaria. Comemorávamos a data com ele inteiro sobre a mesa, juntamente com batatas coradas, arroz com passas e cenoura picadinha, farofa feita com os miúdos, salada e vinho. Não faltavam também rabanadas, aletria e os indispensáveis bolinhos de bacalhau.

Aproximadamente, duas vezes por ano, meu pai matava um porco (o mais pesado e gordo). Nunca fez isto na nossa presença. Grande parte da carne ele a vendia para vizinhos e alguns negociantes do bairro. A gordura era cortada em pedaços, colocada numa panela de ferro sobre o fogão de lenha e minha mãe, pacientemente, ia derretendo os pedaços brancos, separando para nós os torresmos deliciosos. A banha, depois de fria, era colocada em latas de 10 quilos e dentro, pedaços de carne para serem conservados e por nós usados durante o ano. Dificilmente era feita alguma

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fritura, não se usava óleo de espécie alguma para substituir a banha: acho mesmo que não existia óleo naquele tempo; porém, muito vagamente, me vem à lembrança de uma certa lata de gordura de coco.

Para encerrar alguns relatos sobre criação de animais em nossa casa, não posso me esquecer dos coelhos. Eram todos branquinhos e grandes. Reproduziam-se rapidamente. Viviam numa espécie de gaiola (grande) cercada de arame. Comiam capim que íamos buscar no campo.

A carne do coelho era preparada com certa técnica. Ficava muito saborosa...

Lembro-me da alegria que sentíamos todo 27 de Setembro, dia de São Cosme e São Damião. As pessoas tinham o hábito de distribuir saquinhos com bolos, cocadas, balas, suspiros e até brinquedos em homenagem a esses Santos agradecendo, certamente, alguma graça alcançada. Chegávamos a encher três a quatro bacias médias. Os doces não perecíveis eram separados e guardados para serem consumidos durante o ano e os demais logo acabavam. Nosso pai dava uma trégua, livrando-nos da hora certa das refeições. Na minha opinião, esse deveria ser considerado o “Dia das Crianças".

O tempo passou e esse costume ainda prevalece; infelizmente com menos intensidade. Hoje, as coisas são problemáticas; a violência impera, as crianças não podem e não devem sair sozinhas. Mesmo assim, a gente ainda encontra algumas felizes da vida, enchendo sacolas de guloseimas.

Brincar de roda... Apareceu a Margarida, olé, olé, olá; A carrocinha pegou três cachorros de uma vez; O cravo brigou com a rosa; Samba lê lê tá doente e muitas outras cantigas... Pular corda. Esconder, um, dois, três...; 31 de janeiro, galinha choca no poleiro, posso ir?

Infância sem brinquedos caros, mas que nos dava a oportunidade de improvisar, criar, como por exemplo: fazer um fogãozinho com uma lata pequena (vazia), para brincar de comidinha!

Seu Agenor, homem envelhecido, cansado, com um cesto à cabeça, forrado de folhas de bananeiras, anunciava, percorrendo as vielas do morro.

– Olha o peixeiro! Quem vai querer? Tá fresquinho...– Moço, espera um instantinho, mamãe já vem!

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Dizíamos nós. Gostávamos tanto de peixe que não queríamos perder aquela oportunidade. Na nossa porta ele limpava-os, cortando em postas.

Naquele refogado gostoso, que só mamãe sabia fazer, era colocado o peixe, inclusive a cabeça. Depois de cozido, retirado para uma travessa e no molho, mexendo bem para não embolar, entrava a farinha de mandioca, completando assim um delicioso pirão. O cheiro do refogado e do azeite português, com muita salsinha nos tentava. Aguardávamos ansiosos para saboreá-los. A corvina, a anchova e robalo eram os peixes preferidos para fazer essa iguaria. Costumavam comprar, também, peixe-galo para fritar. Ele quase não possuía espinhas e sua carne macia, muito apetitosa nos atraia.

Devo esclarecer que havia obediência às datas. Durante a Semana Santa, que minha mãe respeitava religiosamente de acordo com sua crença, na terça, quarta e quinta-feira não era permitido comer carne de espécie alguma, assim como lavar, passar, arrumar a casa. Meu pai não participava desse ritual, mas eu e meus irmãos tínhamos que acompanhar a minha mãe, embora sem nada entender. Ficávamos contando os dias na expectativa do Sábado de Aleluia. Era costume fazer grandes bonecos com roupas velhas, caracterizadas (quanto mais feios, melhor) usando, com malícia, nomes de negociantes, vizinhos indesejáveis, colocando cartazes sobre eles e pendurando-os nos postes. Sábado, bem cedinho, saíamos à procura dos fantoches, anotando o que estava escrito. Muitos se aproveitavam para, clandestinamente, colocar suas insatisfações contra os donos dos armazéns, das quitandas ou de outra pessoa, avisando:

– Cuidado, tua mulher tá saindo muito. Advinha com quem?– Seu João! Não cansou de ser ladrão?Os bonecos eram feitos às escondidas; ninguém sabia quem os havia

confeccionado.Às 9 horas da manhã as igrejas começavam a tocar os sinos – quando

arrebentava a Aleluia – e, então, os Judas eram retirados dos postes, começando aí a malhação. Com pedaços de paus nas mãos, iam batendo, gritando com raiva:

– Malha o Judas! Malha o Judas!até que os destruíssem totalmente.

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Domingo de Páscoa, comemoração da Ressurreição de Cristo. As pessoas ficavam alegres, felizes, festejando essa data. Nós íamos à missa e tínhamos um almoço especial. Não me recordo de ter recebido presentes, como ovos de Páscoa e chocolates; acredito até que naquele tempo esse hábito ainda não era cultivado.

Aproveitando as narrativas anteriores, me veio imediatamente à lembrança, nossa ansiedade para que chegasse o dia de irmos assistir A Vida de Cristo, no cinema Colombo, no Largo do Estácio, por ser perto e mais barato. Na Semana Santa exibiam o mesmo filme de todos os anos, repetindo o nascimento do Menino Jesus, os Três Reis Magos, Jesus carregando a Cruz e crucificado; depois a Ressurreição miraculosa, o aparecimento às santas mulheres que foram ao sepulcro e finalmente a ascensão aos Céus. Nós assistíamos deslumbrados com os olhos fixos na tela não querendo perder nem um pedacinho. Ficávamos no cinema a tarde inteira, pois além da vida de Cristo, exibiam outros filmes: desenhos, fita em série, propagandas, etc. Levávamos merenda: pão com goiabada e alguns trocadinhos para comprar pipocas e balas. Beber alguma coisa? Só água corrente da pia do banheiro. Coca-Cola, Guaraná.... Creio que ainda não existiam.

Tínhamos que voltar para casa antes de escurecer, pois não havia luz elétrica e usávamos lamparina e lampião de querosene. Chegávamos com fome pensando, com ansiedade, na comida da vovó Dolores (mãe de nossa mãe); embora de nacionalidade espanhola, fazia feijão preto muito gostoso. Pedaços de carne seca bem gorda, de toucinho paulista (aquele gordo, branco, intercalado com carne de porco) e paio, juntava-se ao incrementado feijão, juntamente com um refogado com banha, cebola, alho e louro. Quando o feijão já estava quase cozido, colocava uns 3 a 4 jilós.

Algumas vezes vovó me chamava, por ser eu a mais velha, para aprender a cozinhar. Quando papai não estava por perto ela dizia feliz:

– Comam, comam a vontade.Quando sobrava feijão, ela imaginava fazer alguma coisa para

aproveitar tudo, nada podia estragar-se. Passava o feijão numa peneira – não tínhamos liqüidificador (será que já existia?). A partir daí, começava a

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deliciosa sopa da vovó, com carne de músculo, paio, legumes, predominando a batata, tudo em pedaços. Por último, bastante agrião.

Gente, até hoje, lembro-me muito bem do paladar e principalmente do cheiro da comida da minha querida vovó e madrinha.

Nostalgia... É o que estou sentido neste momento ao recordar-me da tristeza que foi para nós abandonar o Morro e os nossos animais, para morar em Irajá, subúrbio da Leopoldina. Passamos a conviver com nossos avós paternos. Começo aqui a narrar fatos da segunda etapa de minha vida.

Chegamos a Irajá. Enfim um casarão – cercado de muitas árvores frutíferas, de horta e córrego com agrião, tendo nos fundos um pequeno morro com plantação de batata doce, aipim e abacaxi – nos esperava.

Tudo mudou, inclusive os hábitos alimentares. A banha de porco foi substituída por gordura de coco. A carne de coelho, de cabra, de porco, por carne de vaca (boi), comprada eventualmente, no açougue. Galinhas e ovos, num aviário ou em algum vizinho. Não possuímos nenhuma criação de animais. Que saudade daquela canja gorda, daquele leitãozinho sobre a mesa!

Todos os dias, bem cedo, acordávamos com o barulho da buzina estridente da “vaca leiteira”, um caminhão velho com latão (vasilha de zinco estanhada, própria para transportar leite) e conduzido pelo senhor Manuel, português, pessoa alegre, muito falante.

– Chegou o leite minha gente!Não me façam esperar.Querem, por acaso,ver seu leite estragar?

Nossa alimentação era praticamente baseada em muito legume e verdura, não faltando o feijão preto. Minha mãe dizia que sem ele a comida não dava rendimento. Gostávamos muito quando ela fazia maxixe ensopado com carne e vagem também. Contudo, na maioria das vezes, ia sem carne mesmo. E a salada de jiló? Amargava muito, mas nós raspávamos o prato. Falavam que jiló abria o apetite. Mamãe, brincando, argumentava:

– Nossa Senhora! Abrir mais ainda? Assim não há quem agüente!

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Não posso esquecer-me da grande quantidade de milho plantado, também, no morro da casa. Com ele, minha mãe, sabiamente, inventava pratos que nós não dispensávamos. Um deles era o pudim.

Feito com milho ralado, coado, misturado ao leite, maizena, ovos e açúcar. Levado ao fogo, mexia-se para não embolar, até que engrossasse. Após isto, era colocado numa forma untada com açúcar queimado. Depois

de frio, desenformado.

Uma delícia! Ah! A pamonha tão conhecida. Pena que minha mãe não a fazia. E nem valia a pena, dizia ela, pois uma vizinha mineira era especialista no seu preparo, precisava vendê-la para ajudar no orçamento da casa e era barato.

– Papai, cadê a rapadura?Assim nós o recebíamos quando chegava do trabalho. Normalmente

trazia uma pedra daquela delícia. Partia em pedaços pequenos e dividia entre nós. Ele nos explicava que a rapadura era muito nutritiva, por ser feita do caldo cana.

Quando eu ia para a escola, levava rapadura para merendar. Sim, eu já estudava, realizando o que tanto eu desejara (apesar de ter oito anos). Já não precisava fingir que estava lendo. Saía bem cedinho, compenetrada com meu único uniforme e sacola de pano feita por mamãe. Andava a pé mais de vinte minutos. Nunca cheguei atrasada. Gostava tanto de estudar, de ler, que num ano pulei da 1ª para a 3ª série. As professoras emprestavam-me livros e revistas; não davam conta da minha ansiedade.

Nossa Senhora! Que temporal! Tudo escuro. Mamãe chamando-nos:– Vamos crianças, rápido, apanhem tudo que puderem.Referia-se às frutas que caíam no chão. Para nós, que não

entendíamos o porquê daquilo tudo, chegava a ser divertido, uma aventura quando, com as roupas molhadas, descalços, escorregávamos, caindo e dando risadas.

– Por favor, falem baixo. Não deixem que seus avós escutem.Mamãe não era feliz. Nossos avós paternos, muito severos a

insensíveis, não gostavam dela nem de nós. Proibiam-nos de tudo. A partir

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daí até o seguinte temporal, comeríamos frutas à vontade; não podíamos, contudo, deixar vestígios. Algumas frutas, ainda verdes, eram enroladas em jornal para amadurecerem. É claro que nem todas caíram naquele dia, apenas as frutas da estação. Nós gostávamos de todas, isto sem termos conhecimento do valor nutritivo que possuem e do quanto são importantes para a saúde.

Papai já nos havia falado a respeito da festa junina, que seria realizada num pequeno sítio não muito distante de nossa casa. Um amigo convidara-o, insistindo para que nos levasse. Certa noite, ao chegar do trabalho, disse-nos:

– Sabem de uma coisa? A tal festa será dia 24 junho.– Mas já está muito perto. Eles precisam ir vestidos de caipiras?Falou mamãe.

– Claro mulher! Do contrário, não acharão graça...A partir daí, mamãe começou a juntar retalhos de chita e, usando a

imaginação, fez para nós (eu e minha irmã) as caipiras mais bonitas e originais, não esquecendo, é claro, dos chapéus de palha, das trancinhas e das caras pintadas. Para meu irmão, calça comprida, com remendos coloridos, blusa quadriculada e um lenço no pescoço. Ele sentiu-se muito importante, quando lhe pintaram um bigodinho. Ficou tão engraçado!

Todos os anos havia várias festas beneficentes, inclusive esta a que estou me referindo, cujos recursos eram entregues à igreja Paroquial para serem destinados aos menos favorecidos pela sorte.

Todos cantavam com empolgação:

São João, São João!Acende a fogueira

do meu coração!

E muitas outras lindas canções.Uma grande fogueira no centro do terreno, aquecia o ambiente frio

do mês de junho, porém as batatas-doces eram assadas em outra, que servia para a brincadeira de pular a fogueira aliás, muito perigosa.

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A dança da quadrilha, da qual nós não participamos por não termos ensaiado, foi linda. Os pares dançavam e cantavam com empolgação, felizes, sorrindo para o público que os aplaudia, demonstrando gratidão por aqueles momentos inesquecíveis. Para qualquer lugar que olhássemos, vinha a impressão de que um grande arco-íris nos envolvia.

Divertidos eram os leilões:– Atenção! Dizia um senhor, segurando um frango assado. Vejam que

beleza, tá tostadinho. Quem vai dar o primeiro lance? Ah! O senhor aí escondidinho... Quem dá mais? Quem da mais, repetia. Vou bater o martelo; dou-lhe uma... dou-lhe duas ... dou-lhe três. Pronto o frango é daquela senhora de peito grande.

Risada geral. Tudo era motivo para brincadeira.Assim leiloavam garrafas de vinho, de pinga, leitõezinhos, brinquedos

e coisas variadas.– Moço, fica com uma rifa?As rifas, nessas festas não podem faltar, fazem parte do sonho, da

esperança. Minha irmã escolheu o numero treze e acertou. Ganhou uma boneca de celulóide. Sua alegria foi tão grande que não largou mais.

As barracas enfeitadas, coloridas, em muito contribuíam para o êxito da festa. Como resistir àquela canjica macia, com caldinho e bastante coco? De um modo geral, cada um especializava-se em quitutes diferentes. Os bolos de aipim e de fubá, ambos com coco, eram os mais procurados; mesmo assim davam oportunidade de consumo para o milho cozido, os pés-de-moleque, pamonhas e muitos outros tipos de guloseimas.

Interessante, é que havia barracas vendendo caldo-verde, caldo de mocotó e caldo de feijão. As pessoas tomavam aqueles pratos bem quentinhos para afugentarem o frio.

Balõezinhos que as crianças podiam manusear e fogos de artifício sem perigo, como as estrelinhas, o chicotinho, etc. Eram distribuídos, aumentando assim, a euforia da garotada.

À meia noite realizava-se o casamento. Era muito divertido... O noivo – com calça pescando siri, alguns dentes pintados, chapéu de palha desfiado, bigode e cavanhaque, também pintados – puxava a noiva toda de branco, caracterizada à caipira, fazendo cara de boba. Iam para um altar

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improvisado. As damas, nas mesmas circunstâncias, seguiam na frente e o padre, correndo, para alcançá-los.

– O senhor aceita a senhorita Filó para esposa? ... Aceita ou não? ... Parece surdo!

Dizia ele.As crianças empolgadas gritavam:– Aceita, aceita, aceita...– Craro, seu padre. Tô lôco prá casá...– E você, linda noiva (que Deus me perdoe!)? Vai aceitar o elegante

rapaz?Muitas risadas.– Vô sim, padre. Tô necessitada. Segurem ele minha gente! Não

deixem ele fugir!Olhos fixos, voltados para o ato, as crianças vibravam, algumas

acreditando ser verdadeiro.Foi uma noite maravilhosa: meus irmãos e eu nunca nos divertimos

tanto. Lembrando, porém, um ditado popular: Tudo que é bom dura pouco. Ouvimos nosso pai dizendo:

– Bem, crianças... por hoje, chega. Temos que ir. Uma grande caminhada nos espera.

Saímos cansados e felizes.Já estávamos andando há bastante tempo, por ruas escuras e

desertas, quando papai, na tentativa de encurtar o trajeto, resolveu atravessar certo quintal que lhe pareceu inofensivo. De súbito, olhou para trás e avistou um boi que se aproximava de nós, ameaçador.

– Corram todos!– Deus do Céu! A Percy está com caipira vermelha.Dizia mamãe apavorada.Existia uma crença, e nós sabíamos disso, de que o boi não gostava

da cor vermelha. O animal avançava! Nós corríamos! E meu pai, sacudindo um guarda-chuva, gritava:

– Chô! Chô! Chô!Meu irmão, ao fugir, não enxergou uma cerca de arame farpado e

bateu com o rosto ferindo-se. Foi, na verdade, um grande susto.

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Chegamos, finalmente, em casa, cansados, mas felizes, apesar dos ferimentos leves do meu irmão. Valeu a pena! Como valeu!

Continuamos em Irajá, naquele enorme casarão que nos pareceria tão pequeno...

– Felicidade! Felicidade! Você é realmente imprevisível!Que alegria ao receber, de braços abertos, nossos queridos avós. Julio

e Dolores.Comunicaram-nos que voltariam para a terra deles, a Espanha. Já

estavam, inclusive, com toda documentação necessária. Sabedores das dificuldades de relacionamento com a família de nosso pai, entenderam (e estavam certos) que o melhor para nós seria retornar para a casa do morro, onde já havíamos vivido com eles. Crianças que éramos, só pensávamos na liberdade que nos esperava. Pulamos de alegria.

– Vamos, sim, papai! Vamos mamãe. Por favor!Mal sabíamos que jamais voltaríamos a vê-los. Assim que chegaram à

tão querida terra, iniciou-se a violenta Guerra Civil Espanhola. Como conseqüência, ficamos, de imediato, sem qualquer notícia deles. Expectativa, ansiedade, medo, saudade, foram os sentimentos que nos acompanharam durante anos, embora a esperança estivesse sempre dentro nós. Fomos crescendo conscientes do ocorrido e não deixávamos de participar das orações, pedindo a Deus que os protegesse.

Não me recordo de quantos anos se passaram, até o recebimento da carta de um primo, comunicando que nossa avó havia falecido durante a guerra e que vovô estava mal. Mesmo assim, ele conseguiu escrever-nos duas cartas. Onde estarão elas? Com quem? Ah! Como eu gostaria de tê-las em minhas mãos!

Enfim de volta. Outra vida, maiores dificuldades. Imediatamente senti o cheirinho da sopa da vovó, tão intenso e gostoso... Procurei minha cabritinha Morena e, claro, não poderia encontrá-la; já não existiam nossos animaizinhos.

Estávamos com fome e mamãe logo resolveu o problema. Tirou de uma sacola, alguns pães dormidos, (duros mesmo) e perguntou-nos:

– Que tal uma açorda?– Eu quero também.

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– Só têm uma coisa: não há bacalhau.– Faz assim mesmo mãe...Ela preparou um refogado caprichado e colocou o pão partido em

quadradinhos, deixando-o amolecer naquele molho. Para melhorar, incrementou-o adicionando pimenta do reino em pó e manjericão. Estava tão cheiroso que até parecia que o bacalhau encontrava-se presente. Fez um arroz branco (diziam que era à moda mineira) e uma boa salada com alface, agrião, cebola crua e tomate. Com que satisfação saboreamos aquele manjar, feito com muito carinho e amor.

Meu Deus, quantas e quantas vezes, para alimentar minhas filhas, tive que fazer pão duro ensopado!

As crianças tinham o hábito de percorre a vizinhança, perguntando:– Moça, tem pão duro?Em nossa casa, toda sobra de pão era guardada numa sacola de

pano, apropriada para protegê-lo de impurezas, ficando assim em condições de ser usado quando necessário. Eventualmente, atendíamos a alguns pedidos, pois era gratificante poder ajudar alguém, mesmo que fosse com um pedaço de pão duro.

Percebo a grande diferença entre o antigamente e o agora. Será que comprávamos mais pão? Acredito que não. Talvez a razão estivesse na distância que tínhamos a percorrer até chegar à padaria. Sendo ela um tanto afastada, comprávamos sempre pão a mais para evitar a caminhada pela manhã.

Atualmente, já não resido no morro. Próximo à minha casa existem várias padarias que, para atraírem o público, fazem pão a cada meia hora. É o progresso... Confesso que preferia ouvir:

– Moça tem pão duro?Do que:– Moça me arranja um real?Acredito porém, que, infelizmente, em muitas localidades menos

favorecidas, o costume de pedir pão duro ainda persista; aliás, não é um costume e sim a pobreza.

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Essa coisa de pão duro foi tão marcante que, até hoje, eu, minha família e conhecidos, ao recebermos uma visita inesperada, brincamos dizendo:

– Hoje não tem pão duro...Estive pensando e lembrei-me de coisas boas que podemos fazer com

o pão, além, é claro, da já mencionada açorda. Vou dar um exemplo feito por mim e minha gente, deixando claro que a imaginação humana não tem limites e a criatividade está presente, principalmente, entre os mais necessitados, quando lutam pela sobrevivência.

Aproveitando o pão. Quantas coisas podemos fazer!

Pudim de pão Tirar a casca de alguns pedaços de pão duro, colocá-los de molho

na água, espremê-los bem e passá-los numa peneira (já tentei bater no liquidificados, mas não deu certo). Juntar dois ovos inteiros, uma colher de sopa de manteiga, uma pitada de sal, um pouquinho de canela em pó (se gostar), algumas passas sem caroços e leite, aos poucos, até formar uma

massa consistente. Açúcar a gosto. Não precisa bater, basta misturar bem. Fazer uma calda de açúcar queimado (cuidado para não escurecer muito),

espalhar num tabuleiro ou forma e despejar a massa. Levar ao forno médio, durante uns trinta minutos. De vez em quando, espetar um palito para

verificar se a massa está secando. Retirar do forno, esperar esfriar e desenformar.

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Farinha de roscaFarinha de rosca

Desde criança, aprendi a prepará-la em casa. Meus pais tinham restrições quanto à higiene do pão que as padarias aproveitavam para esse fim.

Ralar, num ralador de alumínio, o pão duro (não precisa descascar). Peneirá-lo, e se achar que a farinha ficou muito branca, basta colocá-la, aos poucos, numa frigideira seca e levar ao fogo baixo, mexendo até que fique

torrada no ponto desejado. Atenção: tirar imediatamente a farinha da frigideira para não ficar queimada.

Parece complicado, mas devo esclarecer que estes simples conhecimentos eu fui desenvolvendo através do tempo. Aproveito para esticar receitas e prosseguir com uma em que o pão não está presente.

Certa vez, fiz uma “violência”; é verdade, comprei um quilo de camarão, dos grandes, para usá-los: parte ensopado com chuchu e parte para rechear um pequeno peixe. Ao separar as cabeças para limpar os camarões, tive pena de jogá-las fora. Estavam tão fresquinhas... Pensei, pensei e resolvi “inventar” uma receita modesta, mas gostosa.

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Sopa de camarãoSopa de camarão

Todos gostavam. E, sempre que compramos camarões, a turma pede:

– Não esquece a sopa...

Lavei bem as cabeças e coloquei-as para cozinhar. Depois de algum tempo, após tê-las socado um pouco, passei tudo na peneira e joguei sobre

um refogado com azeite, cebola, alho, tomate (sem pele), colocando imediatamente pão duro cortado em pedaços pequenos. Sal a gosto. Deixei

ferver até amolecerem os pães e apaguei o fogo. Só então coloquei um molho inteiro de salsinha.

Enfim, a criatividade aliada à economia funcionou: com um quilo de camarão, fiz três receitas diferentes e aproveitei o pão duro. Creio que antes o aproveitamento era comum às pessoas; hoje é a época do tudo pronto para ser descartado.

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Pão, rabanada. Natal!Pão, rabanada. Natal!

Continuar a escrever sobre pão... Teria uma infinidade de coisas. Das receitas, a tradicional “rabanada” me faz recordar, com saudades, do Natal na minha infância e adolescência.

Só comecei a ouvir falar de Papai Noel quando, esperta como eu era, já não dava para acreditar. Inconscientemente, me vingava, divertindo-me, quando insistia com meus irmãos e outras crianças sobre a existência dele.

Aguardávamos ansiosos a chegada do Natal, pensando em quantas coisas gostosas iríamos saborear e, também, em receber os presentes que nos haviam prometido.

– Se passares de ano, ganharás uma pasta nova.Dizia meu pai.– E talvez roupas e sapatos.Concluía mamãe.Certa vez, passei de ano com louvor, ganhado mais uma medalha.

Eles ficaram orgulhosos e com dificuldade, deram-me uma capa para chuva. Naquela época usava-se muito. Ela era bege, com botões grandes, capuz e cinto largo amarrado para frente. Daí por diante, vivi de expectativas. Queria usar minha capa, mais não chovia... Acordava, ainda escuro e dizia:

– Mãe, o tempo tá feio, né? Acho que vai chover...Logo o sol começava a raiar. Um dia ao voltar da escola, caiu um

temporal e eu molhada, só sabia dizer:– Que pena. E agora? Quando usarei minha capa?Não esqueço a bela ceia de Natal, com tantas iguarias, que meu pai

nos oferecia. Refletindo hoje, me pergunto, como um garçom com mulher e três filhos conseguia, honestamente, aquele milagre?

Lembro-me que morávamos ainda num barraco no morro de São Carlos (naquele tempo, era barracão mesmo, feito de estuque, revestido de latas, coberto com zinco, sem saneamento básico, sem água potável, sem energia elétrica); não tínhamos ainda nos mudado para Irajá.

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Antes de descrever nosso “banquete”, quero deixar claro que admiro profundamente a filosofia de vida de meus pais. Para eles não importava o luxo, a grandeza e não era permitida a ambição. Honestidade acima de tudo. É bem verdade que para nós, ficava difícil entender e aceitar a severidade excessiva de nosso pai, nos obrigando a comer tudo, o que muitas vezes o fazíamos revoltados.

– Feliz Natal!Dizíamos uns aos outros. Éramos meu pai, minha mãe, tio Antônio

(irmão da minha mãe), meu irmão, minha irmã e eu.Não ficávamos sem presentes, graças à muito querida Sra. Darcy

Vargas, esposa do presidente Getúlio Vargas. Ela presidia uma obra social grandiosa. Com antecedência distribuíam cartões no Palácio do Catete, através da Legião Brasileira de Assistência, para que, antes do Natal recebêssemos brinquedos “bons”, como bonecas, carros, velocípedes, bolas e até bicicletas. Roupas e alimentos não faltavam. Aproveito par mencionar a “Casa do Pequeno Jornaleiro” a quem ela tanto se dedicou. Extraordinária Mulher!

Voltando a nossa festa: uma mesa grande e velha. Sobre ela minha mãe colocava um pano de mesa bordado por nós durante o ano para esse dia. As cadeiras também recebiam capas. No centro, um grande tabuleiro com bacalhoada à portuguesa, arroz feito com a água do bacalhau, rabanadas no leite e ovos, rabanada no vinho, os indispensáveis bolinhos de bacalhau, aletria, arroz doce, castanhas cozidas e assadas no fogão de carvão, nozes, avelãs, passas, figos. Nada de frutas cristalizadas – eram muito caras. Não tinham o hábito de colocar frutas sobre a mesa, como hoje o fazemos. Um costume que conservo até hoje – e dele não abro mão: é um simples molho que papai fazia.

Amassava bastante alho (não possuíamos espremedor), colocava numa vasilha, juntava bastante azeite “português”, vinagre de vinho,

salsinha bem picadinha e sal. Misturava bem.

À proporção que colocávamos a bacalhoada nos pratos, íamos cobrindo com o molho. Gente, só em lembrar me dá “água na boca”.

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O vinho tinto, de boa qualidade, também não faltava. Puro para os adultos e misturado com pouquinho de água para as crianças.

Interessante é o que sempre digo e é verdade: nós éramos pobres! Porém, com certa revolta com a crise absurda por que passamos atualmente, dá-me vontade de gritar:

– Pobre sou hoje, que dificilmente posso comprar um bom bacalhau; e azeite puro “português”, nem pensar.

Certo ano minha mãe nos surpreendeu ao dizer:– Sabem de uma coisa? Estou me sentindo como se estivesse

renegando minhas raízes; ajudem-me, por favor, a reagir, aceitando de bom grado minha sugestão. Que tal esse ano comemorarmos o Natal com uma bacalhoada à espanhola?

– Claro! Mas é gostosa?Ela então explicou-nos que era parecida com a portuguesa. A

diferença estava no molho feito com azeite, cebola, pimentão, alho, salsinha, azeitonas pretas e colorau. Esse molho era feito à parte e jogado quente, na hora de servir, sobre a bacalhoada, que continha batatas, cebolas inteiras, couve tronchuda, ovos e bacalhau em postas, tudo previamente cozido.

Havia semelhança; ficava igualmente uma delícia.No dia seguinte, não precisava fazer nada, pois as sobras eram

aproveitadas com criatividade. Desfiava-se o bacalhau bem fininho, cortava-se a batata em rodelas, a cebola e a couve bem picadinhas e juntava-se uma maionese feita por meu pai.

Ele misturava duas gemas cozidas com duas gemas cruas. Batia-as bem, colocando azeite devagar. Quando estava ligado, “engrossado”, ia

pingando gotas de limão, batendo sempre. Sal a gosto. Acredito que nesse tempo ainda não existia liqüidificador. Para completar, fazia farofa com

passas e maçãs picadas.

O Natal é tradicionalmente comemorado a partir da meia noite do dia 24 de dezembro. Meu pai fazia questão de seguir essa tradição.

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Hoje: o Natal, a filha, a escola eHoje: o Natal, a filha, a escola eo doce de abóbora.o doce de abóbora.

O Natal foi maravilhoso! Todos felizes. Entretanto, eu, como boa observadora, ainda mais em se tratando da família, senti que havia alguma coisa preocupando minha filha Rose Mary, que muito sutilmente, disfarçava. O que seria? Precisava falar-lhe; quem sabe, ajudá-la! Meu coração estava apertado, ansioso... Por isso decidi encontrar-me com ela na Escola Irmã Zélia, no Largo Vaz Lobo, onde ela lecionava.

Estava aguardando-a, quando tocou a campainha, avisando que chegaria a hora do recreio. Alegria geral! A maioria das crianças iria fazer a única refeição. Ainda que pareça incrível, apesar de tantos anos passados, lembro-me perfeitamente do que foi servido para a merenda: tutu de feijão, couve à mineira, ovos cozidos e uma laranja para a sobremesa.

– Mãe, almoça comigo. Tá gostosa.Aceitei e percebi que era exatamente igual à dos alunos. De repente,

comecei a observar um menino miudinho, isolado, comendo avidamente. Gente! Além da refeição, foi “devorando” um ovo cozido atrás do outro. Comecei a ficar preocupada e chamei minha filha:

– Mary, pelo amor de Deus, esse menino vai passar mal, já contei seis ovos. Não será melhor avisar a merendeira?

– Não vai não mãe. Igual a ele existem vários, e a maior motivação para virem à Escola é a fome! Há uma ordem: enquanto houver merenda, ela não pode ser negada.

O passado correu para mim, buscando um lugarzinho na minha lembrança e conseguiu encontrar-me na querida Escola Rio Grande do Norte. Lá estava eu, representante dos alunos, percorrendo todas as salas de aula para saber quem queria “Comprar Merenda”. Naquele tempo o Governo não fornecia merenda escolar. Quem pudesse pagava ou então a trazia de casa, como eu, que muitas vezes levei “sanduíche” de pão com feijão.

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Qual a razão de tantas lembranças e saudades da minha escola? Fecho os olhos e vejo-a todinha, detalhe por detalhe. O gabinete da Diretora, Dona Célia, onde eu era encarregada de distribuir materiais, listas de chamadas... Tínhamos mesas e cadeiras individuais e um grande quadro negro. O gabinete dentário muito me atraía; chegava a mentir dizendo que estava com dor de dentes, só para sentar-me naquela cadeira confortável.

Tinha enorme admiração por todos os professores, mas Dona Carmem era especial e logo compreenderão:

– Descrevam o que fizeram no fim de semana.Dizia.Ah! Eu adorava, pois confesso que descrevia o que queria que tivesse

acontecido. Meu trabalho quase sempre ia para o mural. Também, pudera, divertindo-me num lindo jardim florido, com vestido novo, correndo, brincando com outras crianças, bonitas e felizes... Arriscar descrever minha realidade? Nem pensar...

Biblioteca, também foste minha mestra, meu refúgio. Contigo aprendi a defender-me das bruxas malvadas, a acreditar nas fadas madrinhas... Transformava-me numa linda princesa, brincando com a Branca de Neve e os Setes Anões. Viajava através dos livros. Sonhava... Sonhava...

Atividades Culturais, Patriotismo eram cultivados de forma tranqüila, sem pressões.

Foi criado o Centro de Brasilidade e através dele aprendi a votar. Um dia dezenove de novembro (dia da Bandeira), foi dada a partida para esse trabalho. Colocaram no centro do pátio uma urna. Teríamos que escolher: Presidente, Vice-presidente, Secretário, Vice-secretário e um aluno para cada estado. Tudo foi feito com a máxima lisura e nós nos sentíamos importantes com as responsabilidades que nos esperavam. Fiquei muito feliz ao saber que fora eleita por unanimidade, presidente do Centro de Brasilidade. Daí por diante, nos grandes festejos, lá estava eu, com o braço direito esticado para frente e o esquerdo sobre o coração, falando bem alto para que todos repetissem:

Juro amar a Bandeira.

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Minha grande Pátriaque desejo sempre livre, forte e generosa...

Hoje, tenho tantas dúvidas e dificuldades para entender as mudanças que vêm acontecendo através dos anos! Apesar do interesse das autoridades “competentes” para que não falte a merenda nas escolas, ainda há muito que fazer, até que possamos evitar o constrangimento de assistir um menino, miudinho, magrinho, comendo avidamente, na escola, tantos ovos cozidos, para saciar sua fome.

Realmente, o menino comedor de ovos, foi para mim surpreendente, curioso!

Pensei então em amenizar aquela situação, convidando minha filha para irmos saborear um doce de abóbora com coco, que eu fizera e ela gostava; mesmo porque eu ainda não havia esclarecido a preocupação que sentira, com ela, no encontro no dia de Natal.

– Mãe, você é demais, observa tudo... e olha que eu procurei esconder...

Felizmente, não foi nada grave, sendo rapidamente contornado.– Hum... Tá uma delícia este doce de abóbora (nós o comemos com

queijo de Minas), já tentei fazê-lo, mas é muito cansativo.Disse a Mary.Vou explicar-te a história desse doce: a primeira vez que o fiz,

ensinaram-me a cozinhar a abóbora e espremê-la, retirando toda a água, passando-a inclusive num pano fininho. Pois bem, por minha conta decidi simplificar, tornando-o mais fácil e gostoso.

Cortar a abóbora em pedaços, descascar e colocar numa panela, juntamente com açúcar (mais ou menos na mesma quantidade e se não

desejar muito doce, colocar menos açúcar). Não leva água, pois ela cozinha no próprio açúcar que se transforma numa calda. Fogo baixo. Assim que

amolecer, começar, numa escumadeira, com um garfo, a amassar dentro da própria panela, que deverá ser retirada do fogo, durante esse processo, do

contrário, ao pipocar, poderemos nos queimar. Depois de bem desmanchada, colocar o coco ralado, com canela em pau e cravinho. Mexer

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sem parar durante algum tempo. Se desejar para compota, deixar com um pouco de caldo. Porém para docinhos de festas, deixar mais tempo, até

aparecer o fundo da panela. Também aí a atenção tem que ser redobrada, pois se endurecer demais não dá para enrolá-los. O açúcar cristalizado é melhor para isto. Em todo preparo do doce, deve-se usar colher de pau.

Finalizando, lembro-me de um fato engraçado. No aniversário de todos os meus netos sempre preparei os docinhos. Certa vez, na hora do doce de abóbora, percebi que havia errado no ponto, mesmo assim, arrisquei e os enrolei. Quando desci para o Salão de Festas, me diverti muito, pois não é que os meninos estavam jogando bola de gude com meus docinhos de abóbora?

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Doces, docinhos... Lembram-meDoces, docinhos... Lembram-me aniversários!aniversários!

Pensei... Pensei... Procurei no baú dos meus pensamentos, algo que me fizesse lembrar se, algum dia, eu tivera uma festinha, um bolinho mesmo sem confeitar ou ouvido alguém dirigir-se a mim para bater palmas e cantar “Parabéns pra você”... Entretanto, tenho sempre presente a voz de meus pais, na tentativa de amenizar a decepção que eu certamente demonstrava, dizendo-me:

– No fim do ano ganharás um vestido novo.Sabem de uma coisa? Parecia tão pouco, mas me sentia feliz,

percebendo que eles não haviam esquecido.Talvez esta frustração me fizesse desejar, ansiosa, que chegasse o

dia 20 de maio, data do aniversário da Fany; ela fazia questão de uma festa bem badalada. Já a Aninha, irmã mais velha, gostava apenas de ajudar. Éramos tão amigas, que por decisão nossa, resolvemos ser primas, e somos até hoje.

Tia Guilhermina – mãe delas – fazia pastéis, pizzas, canapés e cachorro quente. Naquele tempo não se usava salgadinhos. Um grande bolo confeitado não faltava, além do bolo de milho, pudim de leite condensado, manjar, bolo de chocolate, doces em calda... Para acompanhar tantas iguarias, era servido chocolate, bem quentinho.

– Deus do céu, já são cinco horas? Gente, não posso me demorar...Elas preparavam-me um prato, com um pouco de cada coisa e iam

comigo para a cozinha para que eu tomasse meu chocolate. Fazia-o escondido das outras crianças, pois ficava com vergonha de dizer que não podia esperar a hora dos parabéns. Meu pai ao deixar-me sair, dizia, categórico:

– Às sete horas, quero-te em casa.Eu tinha medo, pois da Rua São Januário, onde elas moravam, até o

Morro São Carlos, era necessário tomar um bonde para o Largo do Estácio e

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andar a pé uns vinte minutos para chegar à minha casa. Ainda hoje, no aniversário delas, mesmo que não haja o “tal chocolate”, dizem brincando:

– Já para a cozinha, esqueceu?Nós nos divertimos com essas lembranças.Já que estou falando sobre minha prima Fany, tenho algo pitoresco

para contar-lhes, mas como toda boa história, só saberão como acabou, é claro, no fim.

Fomos realmente muito amigas. Estudávamos, saíamos para passear na Quinta da Boa Vista, íamos à praia de Paquetá quase todos os domingos... Certa vez, estávamos deitadas na areia, recebendo bastante sol para nos bronzear, quando dois rapazes se aproximaram e disseram:

– Seria a sereia ou a sereia seria!Rimos tanto... Claro que todas estas saídas eram às escondidas do

meu pai.Eu freqüentava a casa delas com toda liberdade. Fany emprestava-

me seus vestidos e acessórios, mais infelizmente, seus sapatos me ficavam grandes. Assim, não havia outro jeito: vestido bom e bonito e sapatos usados.

Várias vezes saí para encontrar com um namorado toda produzida. Um dia, ele, ao avistar-me, disse:

– Você está linda. Esse vestido fica-lhe tão bem!– Ah! Eu não gosto dele. Só coloquei, porque na hora de sair com

outro meu irmão respingou-me café.Eu me protegia, pois não sabia se voltaria a usar o vestido que lhe

agradara.Mesmo sendo muito amigas, minha prima ainda não fora na minha

casa, apesar da insistência dela. Com vergonha de morar no morro, numa casa humilde, eu protelava o convite, dando desculpas, aproveitando-me da imagem severa que lhe passava do meu pai. Um dia ela disse-me:

– Sabe de uma coisa? Sábado vou à tua casa e dormirei lá; desta vez não abro mão.

Ela foi e meus pais a receberam com carinho.– Por que não veio almoçar conosco?– Fica para outra vez, obrigada.

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À tarde, colocaram toalha sobre a mesa – a toalha bordada dos dias de festa – e fomos todos lanchar, inclusive meus irmãos.

– Comprei pão quentinho e a “mortadela” de que tanto gostam. Disse papai. Tem também um chocolate no capricho, bem grossinho.

Eu, sem graça, pensava:– Com pão?Felizmente a Fany adorou pão com mortadela e até hoje uso.Começou a escurecer. Havia um quarto pequeno com uma cama para

mim e minha irmã e outra menor para meu irmão, que nesse dia ficou na casa de um colega. A casa só possuía uma sala que servia de quarto para meus pais. Mamãe ajeitou da melhor forma possível e nos deitamos. Estava uma noite linda, com luar maravilhoso e, graças a Deus, não foi necessário acender a “lamparina”. Não havia luz elétrica, usava-se lampião a querosene na sala e, para os demais locais, a lamparina.

De repente, Fany acordou-me:– Augusta! Augusta! Olha só: estou vendo vaga-lumes.Abracei-a, procurando tranqüiliza-la, pois eu já os conhecia. Era a

claridade do luar atravessando alguns pequenos buracos do “telhado” coberto de latas.

– Fany, você está sonhando, não tenha medo querida, vire de lado e cubra o rosto, que eles irão embora.

Quando a claridade desapareceu, foram-se também os vaga-lumes.Hoje, minha prima Ana está com 84 anos e Fany com 80, com relativa

saúde e muito lúcidas. De vez em quando, no meio de netos e sobrinhos, como eu também, nos divertimos muito ao contar-lhes: à noite dos vaga-lumes.

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Engravidei!!Engravidei!!

Meu grande sonho ia realizar-se! Após três meses de casada, engravidei. Apesar das dificuldades, consegui, durante a gestação ser feliz; “curtindo” cada dia, cada hora, cada minuto, a emoção de ter no ventre um filho querido, desejado e amado.

Comecei a fazer o enxoval, todo à mão, ponto “ajour”, bordado com linha “Ilha de Madeira”. Levei quase três meses para terminar a primeira camisola. Era comprida, toda intercalada de renda. E, ao mesmo tempo, ia fazendo lençóis com aplicações, cueiros de flanela com bichinhos, camisinhas de pagão, casaquinhos, sapatinhos, mantas de croché, quarenta fraldas, aproximadamente, de tecido apropriado que comprava na Fábrica Bangu. É gente... Não havia descartável! Hoje é fácil.

Aconselhavam-me a comer canjica e tomar cerveja preta para ter bastante leite. Eu, na medida do possível, seguia “à risca”. Certa vez, estava acariciando minha barriga, pensando curiosa:

– Como será você? Por acaso terás olhos verdes como o pai? Será moreninha, cabeluda, menino ou menina?

De uma coisa eu não esquecia: era pedir a Deus que me desse uma criança perfeita, saudável... Num desses momentos, levei um susto maravilhoso. O neném mexeu-se pela primeira vez, como se quisesse dizer-me:

– Mãe, estou aqui. Aguarde um pouquinho, logo estaremos juntos.Era comum usarem a cor azul para menino e rosa para menina. Não

sei a origem desse costume; resolvi fazer tudo branco.O pré-natal, o fiz num postinho de saúde, anexo à Igreja Nossa

Senhora de Salete, no Catumbi. Aliás nela me casei. Já estava completando nove meses de gravidez, quando no dia 21 de janeiro às 7:30 h, assustei-me com o que estava ocorrendo. Na verdade eu era complemente leiga, nunca tivera a orientação adequada. Tia Áurea, com quem residia, preocupando-se disse:

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– A bolsa estourou. Leve-a, imediatamente para a Policlínica Geral do Rio de Janeiro.

Cheguei lá em trabalho de parto. Sofri muito, pois somente às 22:45 h, minha filha Rose Mary, acordou para o mundo, pesando 3.400 kg e 50 cm de comprimento. Era moreninha, olhos castanhos, tão cabeluda que, quando a trouxeram para mamar fizeram vários cachinhos. Graças a Deus, era perfeitinha. Poderia haver alegria melhor?

No dia seguinte, estranhei ao entregarem-me o almoço. Feijão, arroz, repolho ensopado e carne assada. Dirigi-me à servente e disse-lhe:

– Deve estar havendo engano, eu tive neném ontem à noite.Ela rindo com certa compreensão, respondeu-me:– Ah! Você esperava uma bela canja, né?Lembrei-me da minha infância e até adolescente, do que diziam das

galinhas gordas, do resguardo... Sem entender, almocei o que me foi oferecido, que aliás estava gostoso e não me fez mal algum.

Fiquei dois dias no hospital e tive de sair escondida, sabem porque? Quando eu estava fazendo o pré-natal, informaram-me que na Policlínica era de graça. Se assim não fosse, não teria ido para lá, pois meu marido estava desempregado e não tínhamos recursos. Algumas pacientes avisaram-me. Fiquei muito nervosa, principalmente, quando uma freira chegou, dizendo-me que eu teria que pagar certa quantia, antes de sair.

– Olha, não fica nervosa. Procure controlar-se, do contrário seu leite pode secar.

Meu Deus, isso não! Eu queria amamentar minha filha... No Domingo, durante a visita (o médico já havia dado alta), enrolei o neném num cueiro, pequei uma pequena bolsa, e, junto com meu marido nos encaminhamos para o elevador e saímos “de mansinho”, assustados.

Rose Mary quase nasceu no dia de São Sebastião, por isso até hoje brinco com ela, dizendo-lhe:

– Por pouco você se chamaria Sebastiana!– Pelo amor de Deus mãe, ainda bem que esperei um pouco.

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Primeira comunhão três vezes?Primeira comunhão três vezes?

É isso mesmo... Tive a ousadia de cometer esse “pecado”, como diria meu confessor. Engraçado, é que, em nenhum momento me arrependi; pelo contrário, foi tão gratificante que, até hoje, passados sessenta e cinco anos, recordo-me de tudo nos mínimos detalhes e sinto, sem falsa modéstia, orgulho por ter seguido minhas intuições.

O Morro de São Carlos, onde nasci e me criei, não era apenas fonte de inspiração para poetas e compositores. Pobreza havia por todo lado, mas isso não impedia que recebêssemos boa orientação religiosa. Na Rua Laurindo Ribeiro, próxima ao Lago da Bica, encontra-se, até hoje, a Igreja de Santo Antônio de Pádua que foi criada em 1904 por um grupo de dissidentes de um bloco carnavalesco. Nela batizaram-me, estudei catecismo e fiz a “Primeira Comunhão”. Criança, não entendia bem e me perguntava:

– Por que o padre ficava de costa para nós, e não entendíamos o que dizia?

Os padres e catequistas, muito rigorosos, não admitiam que faltássemos à missa e ao catecismo. Era exigido silêncio absoluto dentro da igreja. Tínhamos medo até de espirrar. Aprendíamos a rezar o Pai Nosso, Ave Maria, Salve Rainha... Além de cânticos muito bonitos, como por exemplo, um dos que perduram até hoje:

Queremos Deus, homens ingratos, ao Pai Supremo Redentor...

Para a Primeira Comunhão, marcaram a data com antecedência a fim de que preparássemos os enxovais. A sorte é que no Beco morava a Lurdes, uma humilde costureira, caprichosa e amiga nossa. Ela fez tudo, inclusive a grinalda.

Grande dia: a Igreja por dentro coberta de flores, por fora, toda enfeitada com bandeirinhas coloridas e mesas improvisadas com papel crepom, cobrindo-as. Havia bolos de diversos tipos, sanduíches, pastéis,

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refrescos... As mães e responsáveis, orgulhosamente, encarregavam-se desse trabalho.

Antes mesmo de começar a festa, meus pais levaram-me ao fotógrafo no Largo do Estácio. Adorei... Como não havia condução, tivemos que ir a pé e assim tive a oportunidade de mostrar-me, sentido-me como uma rainha... Durante os festejos, com muito cuidado, resguardava toda minha roupa, pois já me passava pela cabeça, fazer outra “Primeira Comunhão” na Escola Rio Grande do Norte – atual Escola Canadá – onde eu estudava. Lá havia aula de catecismo administrada por Dona Marina, uma senhora compreensiva, carinhosa, sempre atenta para qualquer dúvida. A aula de catecismo era alegre, clara e a professora muito tolerante: podíamos até “espirrar”...

A missa da minha Segunda “Primeira Comunhão” foi celebrada num bonito altar erguido no centro do pátio da Escola. Estavam presentes autoridades, mestres, familiares. Convidaram-me para hastear a Bandeira, como sempre o fazia.

Recebi Jesus pela segunda vez, através da hóstia sagrada... Foi lindo! Senti algo sublime... Por que teria sido diferente desta vez?

Iguarias, refrescos, lembrancinhas e o Diploma completavam nossa alegria. Entretanto, uma coisa sempre me incomodou: Dona Marina nunca soube que aquela era Segunda vez que eu fazia a “Primeira Comunhão”.

Mas, eu não tinha jeito mesmo: não é que ao sermos convidados para a Primeira Comunhão da escola Maria Rayth, na Rua Haddock Lobo, senti que poderia, uma vez mais repetir aqueles lindos momentos?

Os alunos da 5ª série da Escola Rio Grande do Norte estudavam música lá, por causa do piano – inclusive eu. Indaguei que poderia fazer a Primeira Comunhão, mesmo sem ter estudado catecismo com eles. É claro, entretanto, tem que confessar aqui. Desta vez não falei com minha mãe, ela certamente não deixaria. Apanhei a roupa às escondidas – sempre pedindo perdão a Deus – e a levei para a casa de uma colega, que morava perto da minha escola. Chegando o dia, aprontei-me com a ajuda da mãe dela, que nada sabia. Toda arrumada, bonitinha, cheguei ansiosa ao topo da escada. Tropecei e rolei até a entrada. Todos correram assustados e eu, de

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assustada não tinha nada. Estava, sim, preocupada com minha roupa, que, aliás, nada sofreu.

– E agora, vamos chamar os alunos da Primeira Comunhão.Lá estava eu!– Aplausos por favor! Lembrem-se que esta data é muito importante

para eles, irão receber o Senhor (hóstia) pela primeira vez!– Perdão meu Deu, perdão.Rezava eu baixinho, mas em nenhum momento arrependida por estar

recebendo a minha Terceira “Primeira Comunhão”.

Ventre-virado e quebranto.Ventre-virado e quebranto.

Saí da Avenida 28 de Setembro, onde morava com tia Áurea, para uma casinha humilde, nos fundos de um armazém, em Olaria, subúrbio da Leopoldina. Tive medo; eu era muito inexperiente e minha filha Rose Mary tinha apenas cinco meses. Meu marido viajava fazendo fretes para outros estados, ausentando-se por vários dias, seguidos. A casa era composta de quarto, sala, cozinha e banheiro. Não havia gás e eu cozinhava em fogão a querosene. Sempre que precisava sair para compras, enrolava minha filha numa manta e a levava comigo. Não a deixava só, em hipótese alguma.

Ela passou a trocar o dia pela noite. De certa forma me aliviava, dando-me tempo de lavar, passar, arrumar... Mas à noite? Deus do Céu! Era uma tortura. Eu não conseguia dormir, pois ela só queria colo e mamar. Algumas vezes tentei deixar que chorasse, mas ela chegava a “dobrar o choro” como diziam.

Um dia, minha senhoria, ao ver-me passar, disse-me:– Como você deixa essa criança chorar tanto? Ela está com

“quebranto” e “mau olhado”, precisa mandar rezá-la.Fiquei sem saber o que dizer, uma vez que eu e minha família, nunca

nos interessamos por essas coisas. Para não desgostá-la, perguntei o que deveria fazer. Amanhã, disse-me ela, virá um rezador para minha neta;

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pedirei a ele que cuide da sua menina. Esteja aqui as sete, bem cedo; caso precise comprar alguma coisa, pode deixar que o farei. Agradeci e, meio atônita, segui meu caminho.

Dia seguinte, lá estava eu, tímida, tentando esconder minha ignorância a respeito. Precisava de um bom relacionamento com aquela senhora e sua gente, pois a cada dia, as ausências de meu marido eram maiores e minha solidão, sem tamanho. Um senhor distinto, educado me foi apresentando como sendo o rezador. Era completamente diferente do que eu imaginava. Sobre uma pequena mesa, estavam velas, copos com água, arruda... Estou tentando descrever, mas confesso que não me recordo exatamente de tudo e talvez a causa tenha sido minha incredibilidade e ansiedade para que aquilo terminasse. Estavam presentes o rezador (chamava-se Eduardo), eu, a senhoria Dona Rosa e minha filha. Ele dirigiu-se a nós e disse-nos:

– Este ato é apenas uma reza para espantar o mau. Não pensem que é macumba ou milagre! Sua filha está com “ventre-virado” e “quebranto” (segundo a superstição popular, mau olhado).

Virou a menina de cabeça para baixo, mediu as perninhas dela, salpicou água de arruda, acendeu uma vela de sete dias, e, baixinho, ficou rezando durante algum tempo.

– Este trabalho tem que ser repetido durante três dias. Disse-nos.– E agora? Pensava eu. – Quanto será que vai cobrar?Dona Rosa parecendo adivinhar meu pensamento, esclareceu.– Este homem é uma pessoa muito caridosa, atende a todos que

recorrem a ele e não aceita nenhuma remuneração. Diz que a felicidade, que por acaso possa das às pessoas, é para ele a recompensa de Deus.

Bem, por favor, acreditem: a partir do terceiro dia, minha filha passou a dormir todas a noites, tranqüilamente! Eu nem conseguia acreditar... Foi bom demais meu Deus! Até hoje, para mim é um mistério...

A casa era pequena mas possuía um bom pedaço de terra. Meu pai vinha visitar-me de quinze e quinze dias e começou a incentivar-me a plantar, principalmente chuchu, bertalha e tomate que, como dizia ele, nasciam e desenvolviam-se rapidamente. O ideal seria termos um “caramanchão” (construção ligeira de ripas) mas, com essa impossibilidade,

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começamos a deixar o chuchu e a bertalha, desenvolverem-se em cima do muro, separados é claro .

Plantamos tomates bem afastados. Eram frágeis. Papai dizia-me:– Para que nasçam de boa qualidade, o fator principal é a semente,

que devia vir de tomates sadios. Elas devem ser colocadas para secar e, só então, jogadas sobre a terra revolvida.

Eu acompanhava dia a dia seu crescimento e, a cada tomate que aparecia, vibrava feliz! É muito gratificante e saudável comer o que plantamos, que assistimos crescer e frutificar, apenas com nossos cuidados, sem agrotóxicos, sem intermediários. Ah! Se pudesse ser sempre assim!

Comecei a fazer chuchu com camarão, com bacalhau, na salada, ensopado, passado no ovo e farinha de trigo e frito, bolinho de chuchu, ensopado com carne... Bertalha com óleo e alho, na sopa, apenas cozida em água e sal... Tomate na salada, nos molhos e até doce em calda (como havia aprendido com minha mãe.)

Papai levava de tudo para casa e eu distribuía com vizinhos. Além disso, havia meu pequeno jardim do qual me orgulhava. Antúrios, orelha de burro, costela de Adão – esses, eu os colocava em vasos. Tinha apenas duas roseiras, uma vermelha e outra amarela. Não faltavam flores: as margaridas amarelas e brancas estavam sempre presentes, assim como onze horas, cravo, crista de galo... Na entrada, havia um pé de manacá, exalando sempre seu perfume agradável.

A casinha humilde, pequenina, distante, me trouxe muitos momentos de alegria, de descobrimentos, gratidão e aceitação.

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Vó! Traz pipocas?Vó! Traz pipocas?

Este pedido alertou-me para escrever sobre o milho, que esteve sempre presente em minha vida. Foi em Irajá que papai resolveu plantá-lo. A terra encontrava-se improdutiva e, para tanto, tornou-se necessário ará-la. Sem ferramentas adequadas, apenas com uma pá e uma picareta, ia revolvendo e adubando-a. Eu deveria estar com cinco anos e gostava de acompanhá-lo nessa tarefa. Com uma pazinha de pedreiro, ia imitando, certa de que meu trabalho muito o ajudava. Acredito que foi a partir daí que passei a interessar-me por tudo que a terra nos oferece.

Papai procurou semear grãos selecionados. Molhava a terra quando ficava algum tempo sem chover e eu o acompanhava, muito compenetrada, com meu regadorzinho. A gente precisava estar sempre vigiando e tratando por causa das pragas. Agrotóxicos não eram usados, acredito que sequer existiam.

Certamente São João Batista, protetor da colheita do milho, olhava por nós. Papai percorria todo o milharal, eufórico e eu o acompanhava...

Mamãe estava certa quando usava o cabelo do milho (barba de milho), fazendo chás para ajudar a eliminar pedra nos rins, tonificar a pele e cicatrizar espinhas.

Papai gostava muito da espiga de milho verde assada no fogareiro de carvão, porém, eu e meus irmãos preferíamos a pamonha: enroladinha na palha de espiga. E também o cuscuz de fubá, cozido no vapor. O difícil era abrir mão do pudim.

Mamãe ralava o milho – não tinha liquidificador – coava, adoçava e juntava duas gemas batidas. Levava ao fogo, misturando bem, sem parar, até engrossar. Untava com manteiga uma forma redonda com “buraco no

meio” e jogava ali o pudim. Deixava esfriar. Algumas vezes colocava a forma dentro de uma bacia com água fria e ia renovando a água. É bom

lembrar que não possuíamos geladeira. Quando ele já estava bem consistente, virava-o para uma travessa, fazia uma calda de açúcar

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queimado e jogava sobre aquela gostosura. Algumas vezes dava para confeitar com ameixas pretas.

Hoje, temos milhos industrializados, em latas, porém naquele tempo, mamãe debulhava e juntava o milho a diversos molhos.

Meus pais faziam “papa”, espécie de sopa, que diziam ser de origem portuguesa.

Colocavam numa panela com água, pedaços de lombo e costela de porco, paios, tudo devidamente escaldado e levado ao fogo até estar

cozido. Cortavam nabos em pedaços, juntando ao caldo, por pouco tempo, quando então adicionavam a nabiça (folha dos nabos em desenvolvimento)

e o fubá dissolvido num pouco d’água para não embolar. Era necessário mexer sem parar. Ao colocarmos no prato, pingávamos azeite português.

Era tão gostoso que, normalmente, repetíamos. O fubá mais fino é conhecido no nordeste como fubá mimoso.

Do fubá, faz-se também uma deliciosa farinha de biju.

Basta molhar um pouquinho o fubá e peneirar numa taxa grande sobre uma fornalha de fogo brando. Dentro de minutos ficará torrado e é

um suplemento delicioso.

Em nossa casa o fubá era usado quase que diariamente; nos bolos simples, mingaus, angu à baiana, bolinhos, para fritar peixes, bolos com coco...

Ah! Não posso esquecer que o milho é o principal alimento para aves, feito de qualquer forma.

E o milho cozido? Nas festas juninas, no carnaval em algumas ruas muito movimentadas, encontramos pequenas barracas especializadas nesse comércio. Vocês já o comeram? Não? Vale a pena experimentar.

Caminhando pelo trilho de antigos trensBrilha dourada a espiga de milho

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Saudades do meu bem

No casarão, crianças alegresBrincam e comem paçoca

No fogão de lenha já distraída, eu lhes preparo a pipoca.

FimFim

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Josepha SoaresJosepha Soares

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Neste lar vive uma família feliz!Neste lar vive uma família feliz!

De repente, a missão mais bonita que uma mulher pode ter na vida torna-se realidade: a maternidade.

O pequeno ser, delicado e carente de tudo, é colocado em seus braços. Grande responsabilidade! Através do choro demonstra suas necessidades e outra grande missão feminina tem início: o aleitamento materno. Para a mãe, ter leite é uma riqueza!

Começa, assim, a alimentação do bebê que, aconchegado ao peito da mamãe, às vezes inexperiente, não sabe a importância do alimento que jorra de seu seio e que vai proteger o pequeno ser de enfermidades.

O dom do aleitamento cabe às fêmeas. Antigamente, as vizinhas e as comadres aconselhavam as mães, quando de suas visitas ao bebê ao levarem sapatinhos e talco Jonhson, a comer muita canjica e beber cerveja Malzibier para ter muito leite. Enquanto isso, a parturiente ficava de “resguardo”, tomando canja de galinha, se o bebê fosse do sexo masculino seriam quarenta dias e se feminino trinta dias.

Passados mais alguns meses o bebê tem necessidade de outros tipos de alimentos. A primeira sopinha, as mamães nunca esquecem. Geralmente, o pimpolho se recusa a aceitar, transformando a mãe, muitas vezes, num rio de lágrimas e frustração pela recusa do alimento feito com carinho, onde batata, cenoura, abóbora e músculo estavam presentes. O pediatra é consultado e tranqüiliza a inexperiência materna. A criança, aos poucos, vai aceitando novos alimentos.

Aconteceu comigo, com você e com todos: aceitar e rejeitar alguns alimentos. Entretanto, comer é uma das boas coisas da vida...

São necessários para nossa saúde alimentos variados. Em cada refeição devemos ter um alimento de cada grupo, pois nenhum alimento isolado supre as necessidades do organismo.

Minha mãe fazia uma sopa consistente, chamada “sopa de entulho”, levava: osso de tutano (hoje chamado de ossobuco), batata, feijão manteiga, cenoura, abóbora, couve e padre nosso (massa). Na época eu

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fazia “charminho” para comer; hoje tenho saudades de ambas: sopa e mamãe.

Não tínhamos fogão à gás e a comida era feita num fogão a carvão que meu pai comprara na Loja Dako; tinha até forno. Na época, o carvoeiro chegava à nossa casa com um imenso saco de linhagem na cabeça; difícil era descobrir a cor do nosso “herói”, pois uma tremenda maquiagem de pó de carvão o encobria. Para acender o dito fogão, era empregada força até o carvão transformar-se em brasas; um abanador confeccionado em palha, comprado na quitanda de D. Castorina, era acionado, muitas vezes. Vencida pelo cansaço minha mãe pedia:

– Zefinha, abana um pouquinho.Mas eu logo cansava e passava-lhe novamente o “troféu”. Meu pai vivia comprando outros tipos de fogões. Aliás era muito

dedicado à família, ia à cidade e comprava roupas de cama na Casa Mathias e utensílios no “O Dragão”, “O Rei dos Barateiros”, “Queijo de Cuia”, na loja “O Grilo”, no centro da cidade. Certa vez comprou um fogão aquecido a querosene, achando maravilhoso. Alguns dias depois a tampinha do depósito do combustível pulou longe e densa fumaça tomou conta da cozinha e das panelas. Até achei graça na explosão, enquanto minha mãe avaliava o trabalho que teria para os alumínios brilharem novamente, ante a frustração de meu pai.

Num belo dia ele chegou muito contente declarando: – Fui na Companhia do Gás e me inscrevi. Vamos ter gás em nossa

casa.Adeus ao abanador, ao carvão e ao querosene. Na época não havia

gás de botijão. Chegava à nossa casa esplendorosa o fogão Cosmopolita, branco como a paz que nos traria, de quatro bocas, que se tivessem dentes sorriria para aquela família feliz de cinco bocas.

Minha mãe ficou muito orgulhosa a partir da nova aquisição e passou a caprichar mais ainda no preparo da comida que nos reunia em volta da mesa. O feijão preto, o fradinho, o manteiga, a ervilha, a lentilha, o grão de bico chegavam à nossa mesa com variações. A célebre feijoada, um dos pratos mais populares do Brasil, com carne seca, lombo, paio, toucinho, costela acompanhado de farofa e couve à mineira. Oh, delícia!

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Uma salada de feijão fradinho também era bem recebida em nossa casa e o guisado de feijão manteiga com bacalhau que minha mãe fazia era saboroso; a lentilha até hoje é muito consumida na passagem de ano para garantir fartura durante o ano inteiro; o grão de bico também aguça o paladar.

Minha mãe e outras donas de casa da época compravam no açougue banha de porco e a derretiam. A parte que tinha vestígio de couro do porco era transformada em torresmos. Mais tarde entrou em nossa casa a Gordura de Coco Carioca, acondicionada em latas com estampas de coqueiros. A famosa Banha Rosa. O azeite português não faltava em nossa mesa, regando a bacalhoada tradicional na Ceia de Natal, acompanhada pelo vinho português “Gatão”, dá pra notar qual a minha descendência. Mamãe também fazia bolinhos de bacalhau, com batata, salsa e azeitonas.

Certa vez, quando os estava fritando, cheguei-me e perguntei:– Posso polvilhar açúcar?Distraída, talvez preocupada com os próximos afazeres, respondeu

afirmativamente. Não pestanejei: enchi-os de açúcar e canela. Já pensou... Bolinho de bacalhau com açúcar e canela? Confundi com os bolinhos de fubá que ela fazia. Minha mãe quase teve um troço, mas transformou minha arte em piada familiar: daquelas que todas as mães gostam de contar sobre os filhos ao longo dos anos e os filhos adoram...

O mais importante é que meu traseiro ficou a salvo de umas palmadas. Aliás, ela nunca me bateu, nem meu pai.

Já que comecei, tenho que completar, de vez em quando era entoado um coro:

– Mamãe faz bolinhos de fubá?Embora não estando muito interessada, lá ia mamãe para a cozinha e

misturava o fubá, farinha de trigo, ovo, leite, açúcar e fermento e fritava às colheradas; então, eram colocados açúcar e canela por cima. Doces frituras, apropriadas para reter os pequenos dentro de casa nos dias chuvosos. Era aconchegante o lanche da família em volta da mesa, onde um bule de café quente, geralmente das marcas “Cruzeiro Extra” e “Globo” – que havia sido coado por coador de flanela suspenso por um “apetrecho” de madeira – deixava exalar aquele cheirinho gostoso. O bule era de ágata azul com

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margaridas estampadas em relevo. As canecas eram semelhantes, variando somente as cores, para cada um identificar a sua. Estávamos, assim, consumindo o fubá, alimento muito usado e que se presta a muitos pratos. Mamãe também fazia em dias frios as papas, semelhantes a uma sopa, porém mais para a consistência de angu, regadas a azeite. Mingau de fubá com canela em cima também era usado em nossa casa. Até hoje sou fã dos pratos feitos com os derivados do milho que têm sido a salvação da lavoura em lares carentes.

Salve o nosso milho! Não foi à toa que Monteiro Lobato deu vida através de suas histórias ao Visconde de Sabugosa: simpática espiga de milho. O cabelo do milho também é muito usado nos distúrbios das nossas vias urinárias. Mas vamos lá, nosso caso é culinária. Estou escutando um alto-falante:

– Olha a pamonha. Quem quer pamonha?E o carro vai circulando pelas ruas, despertando o apetite. E a

carrocinha de pipocas? Quem resiste? Doce ou salgada é deliciosa. Outra delícia que minha mãe fazia era o bolinho de aipim. Em nossa mesa também estava presente a farinha de mandioca que chamávamos farinha de mesa, principal ingrediente da deliciosa farofa.

Os portugueses introduziram temperos na cozinha brasileira. Lembro de como minha mãe ficava frustrada quando salgava demais um alimento. Na época, o sal, que geralmente era o Ita e o Águia, vinha embalado em saquinhos de pano fininho. Certa vez ela comentou com uma vizinha:

– Não sei mais o que fazer para a Zefinha, está tão magrinha e sem apetite.

A vizinha, com experiência no raquitismo filial, receitou:– Vitamina com cenoura, laranja e tomate.Na época não havia liqüidificador e logo depois, vi minha mãe ralando

cenoura e tomate no ralador de alumínio e espremer laranja num espremedor de vidro. Pegou um dos saquinhos de sal, previamente lavado, colocou nele os ingredientes e toca de espremer até sair aquele líquido que mal encheu um copo, fruto de seu sacrifício, colocou açúcar e chamou:

– Zefinha, vem tomar vitamina pra você ficar forte.

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Eu olhei com desdém, mas não houve jeito de despojar-me daquele invento; seus olhos estavam atentos até a última gota. Nos dias seguintes, lá chegava a hora da vitamina, oh! martírio. Para ela também não só havia o trabalho na elaboração como a súplica que tinha que fazer para eu aceitar. Minha mãe merecia uma estátua. Ela também fazia lencinhos com os saquinhos de sal.

Mas do que eu gostava mesmo era de furtar açúcar do açucareiro. Era um doce delito. Atualmente o açúcar tem fama de vilão. Oriundo da cana de açúcar, enriqueceu muitos senhores de engenho: Engenho Novo, Engenho da Rainha, Engenho de Dentro, levando o progresso e criando bairros. Nas casas grandes, o açúcar era sinal de opulência. As mães negras, além de amas de leite, transformavam a doçura branca nos mais variados quitutes, numa mistura de receitas portuguesas, africanas e mouras. Assim, foram possíveis a goiabada, doce de banana, de abóbora, a cocada, além de bolos das mais variadas misturas. Os nomes bizarros dos doces vêm de época remota: bolinhos do amor, beijos de freira, papos de anjo, barrigas de freiras, baba de moça, espera marido, etc. Até hoje estes nomes são mantidos. A rapadura, a cachaça e o pé de moleque eram consumidos pelos escravos para completar a refeição pobre.

Certa vez nossa vizinha, Dona Glória, chamou-nos no portão de nossa casa e disse:

– Fiz um bolo!Enquanto nos dava fatias para teste, todos batíamos palmas pelo

grande feito. Dona Glória falou:– Dona Isabel, compra uma forma americana.Forma de alumínio com buraco no meio. Dias depois o bolo entrou em

nossa vida, não precisávamos mais mandar assá-lo na padaria.

* * *

Resolvi escrever sobre o pão neste dia: 13 de junho. Não poderia escolher melhor data, pois é dedicada a Santo Antônio, protetor dos pobres. No meu bairro há inúmeras padarias, cada qual apresentando as mais diversas iguarias, entretanto, para mim, não há alimento mais gostoso do

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que um pão quentinho, seja doce ou salgado. As padarias e seu precioso produto até me inspiraram a fazer versos. Quando criança as padarias ficavam longe de nossa casa. Meu irmão ia a mais próxima manuseando um arame e um arco deslizando pelas ruas até chegar ao estabelecimento. A bisnaga, como era chamada, era vendida a peso; sempre vinha o contrapeso, um pedaço de pão que completava a compra – na volta, ele consumia o contrapeso; trazia também as revistinhas da época: Gibi Mensal, Mirim e Tico Tico. Em nossa casa, o pão era venerado pois, além de alimento, ele significa o corpo de Cristo. Em nossa sala de jantar havia a tradicional Ceia de Cristo, onde o pão e o vinho estavam estampados. Mamãe nos ensinava que, quando não quiséssemos o pão, antes de nos desfazermos dele, teríamos que beijá-lo. Até hoje não posso ver pão ser desperdiçado. Havia um ditado que dizia:

Onde não há pão todos brigam e ninguém tem razão.

Quando uma pessoa era de má índole, costumava-se dizer:

E pensar que o padeiro levanta-se de madrugadapara fazer pão para essa gente...

Quando as pessoas queriam comprar imóveis, geralmente procuravam saber se havia padaria nas proximidades e também as padarias anunciavam quando alguma casa estava à venda. Havia uma música carnavalesca que ressaltava a mulher do padeiro. Mais tarde o padeiro veio oferecer seus préstimos em nossa casa, pela manhã colocava o pão em nossa porta enrolado num papel que tinha o nome de “papel de pão” e que servia para fazerem os deveres escolares, pois não havia essa fartura de blocos como acontece hoje. À tarde, o padeiro trazia o pão numa cesta de vime onde o pão doce com açúcar cristalizado por cima era uma tentação. Eu gostava muito de pão com açúcar e manteiga; manteiga mesmo, não havia a margarina. Minha mãe colocava as sobras do pão numa sacola de pano com bordados em ponto de haste.

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Na parede, em cima de nosso fogão, mamãe colocava um pano bordado e num deles havia a inscrição: “Neste lar vive uma família feliz”. Era verdade. Éramos cinco corações entrelaçados, tocando a vida pra frente, com dificuldades, mas com muito amor. O pão nosso de cada dia não nos faltava, nem o aconchego de família. O quadro do Sagrado Coração de Jesus, sempre presente em nossa casa, até hoje; não importa que digam que é démodé, Ele está entre nós.

Voltemos à data de hoje: as igrejas costumam distribuir pães bentos ao final das missas, em louvor a Santo Antônio. Nesse, dia esses pães são doados pelas padarias das proximidades. Um Santo Antônio, numa redoma, trazido de Portugal, sempre nos acompanha.

* * *

Uma lembrança muito presente em minha memória era das prateleiras da cozinha feitas por meu pai, mamãe fazia recortes em bicos em papéis de embrulho coloridos. Nessas prateleiras eram colocadas as latas de mantimentos; eram de lata mesmo e estampavam o nome dos produtos estocados: feijão, arroz, açúcar, café. Papai fazia bancos com caixotes, lhes dava forma e os pintava. O meu banco era o mais alto, pois eu era a menor da família; ele até me chamava de “pequena”.

Nossas compras de armazém eram feitas nos Armazéns São Domingos Ltda. e enquanto meu pai encomendava os gêneros, eu aproveitava sua distração para furtar lascas de bacalhau e comia com todo aquele sal. Também gostava de manusear o arroz e o feijão que ficavam expostos em sacos nas portas dos empórios e os fregueses compravam a quantidade que precisavam; eram medidos numas canecas cônicas e pesados em balanças que já tinham os pesos de diversos tamanhos. Ao mesmo tempo em que o caixeiro pesava o produto envolto em saco de papel pardo o fechava num remelexo de habilidade, tal a prática que tinha em servir.

A caixa registradora era grande e emitia um som estridente, obedecendo a uma manivela acionada, geralmente, pelo dono do empório.

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O troco era feito de cabeça, como se dizia, nem se sonhava com máquina eletrônica e muito menos com calculadora.

Geralmente, nas casas havia despensas, onde eram colocadas as mantas de carne seca, o lombo, o toucinho, o bacalhau, as réstias de cebolas e outros mantimentos. Em nossa casa havia o guarda-comida, armário com prateleiras, cuja porta era de tela bem fininha que arejava o móvel e não deixava que os insetos o invadissem. Nele guardávamos as sobras do almoço, não tínhamos geladeira e nem pensávamos nisso. Quem as tinha, era através de importação, aumentando seu custo e a distância para nossas posses.

* * *

Meus tios moravam na Rua São Francisco Xavier, 358 e aos domingos eu e minha irmã íamos visitá-los. Aliás, nasci na casa deles, na Rua Luiz Pinto, atualmente terrenos do Metrô, no centro da cidade. Vim ao mundo pelas mãos de uma parteira, que trabalhava na casa deles há muitos anos; seu nome era Glória. Realmente, foi uma glória eu vir ao mundo e ter a oportunidade de conhecer a magnitude que Deus me oferece a cada momento de minha vida.

Voltemos à Rua São Francisco Xavier, era uma casa grande, com varanda em volta, tinha até porão. Inesquecíveis os prendedores de janelas em ferro e em forma de bonecos. Ficava admirada porque eles tinham “banheiro completo”, como era chamado o banheiro social; nesse banheiro, eu admirava o sabonete-bola pendurado na direção do lavatório. Meus olhos curiosos e ingênuos corriam a casa toda, cujos móveis eram antigos, entretanto o lugar mais almejado era a sala de jantar com mesa redonda e cadeiras de palhinha. A mesa era coberta por diversas toalhas para conservar o verniz; o material plástico não chegara até nós. Em cima da última toalha, geralmente bordada ou de xadrez, era servido o café, com uma infinidade de porcelanas e talheres e o ponto alto era a lata de biscoitos Aymoré; aquela que tinha estampada um índio – não era o “Uga-uga”i. A minha gula é que era imensa; entretanto, minha mãe a havia refreado antes de sair de casa:

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– Zefinha, não vai comer muito biscoito na casa de seus tios. Come pão antes. Biscoito é coisa cara.

Na ocasião eles eram comercializados em latas; não havia a varejo nem em pacotes como temos atualmente: essa variedade incalculável das mais diversas marcas. Ganhar uma lata de biscoitos era sinal de opulência ou doença quando alguém a levava ao visitar um enfermo. Não esqueço de como eu gostava de adoecer para ganhar bolachinhas de água e sal compradas na padaria; eu as molhava no chá até ficarem infladas e explodirem na boca deliciando meu paladar.

Na casa dos meus tios havia geladeira de colocar gelo e um telefone, de cor preta, da Companhia Telephônica Brasileira (CTB). Eu ficava fascinada ao chegar em casa; junto com meu irmão Agostinho, brincávamos de telefone com duas caixas de fósforos, dois palitos de fósforos e um carretel de linha que furtivamente apanháramos na cesta de costura de nossa mãe; esticávamos o fio e um se instalava na frente da casa e outro nos fundos e naquele “alô”, que saia dos meus lábios eu mentalizava o telefone preto que tanto me seduzira durante a visita.

A casa deles ficava perto da Hípica e era lá que eu encontrava minhas primas; com a mais nova, Miriam, passeávamos pelo quarteirão, quando ainda não existia o Estádio Municipal do Maracanã. Quando se falou em sua construção, parecia um sonho. Entretanto, no dia 16 de junho de 1950, o sonho tornou-se realidade. Quando eu já estava no ginásio, tive a honra de assistir à sua inauguração. Foi muito lindo e mais ainda a revoada de pombos em toda sua extensão. Assim, o templo do esporte completou cinqüenta anos nos quinhentos anos do Brasil, no ano 2000.

Depois de uma visita à casa de meus tios, retornávamos no bonde Piedade nº 77, apelidado de dois machados. A casa simples e acolhedora nos aguardava. Muitas vezes trazíamos embrulhos de roupas – Graças a Deus, as primas, para nossa alegria, tinham feito o favor de crescer e nós éramos suas herdeiras. Desfilávamos, então, pomposas, com vestidos bordados em casa de abelha, ponto paris e agasalhos feitos de tricô. Não havia banlon, moleton, acrílico, etc.

i Nome de novela da Rede Globo

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Minha mãe cerzia as meias de meu pai e de meu irmão que eram de fio de escócia. Ela tinha um ovo de madeira e o colocava dentro da meia, no lugar em que a mesma apresentasse furo, esticava bem e ia cerzindo. Ela também fazia roupas para minhas bonecas em crochê. Cantava muito para mim. Recitava também muitos versinhos, dentre os quais me lembro destes:

Mandei fazer um relógioda casca de um caranguejo

para contar os minutosdas horas que não te vejo.

Pinheiro dá-me uma pinhaPinheiro dá um pinhão

Menina dá-me teus olhosque dou-te o meu coração.

Eu era muito biqueira para comer, era o termo que ela usava e falava estes versos:

Menina levada, você quer salada?Não mamãezinha, está muito salgada.

Menina levada, você quer pudim?Não mamãezinha, está muito ruim.

Menina levada, você não quer nada,menina levada, pois tome palmada...

* * *

Inesquecíveis eram os cavalinhos de chocolate que meu pai, de vez em quando, trazia. Eu os comia bem devagar para que durassem muito, eram umas delícias. Quando eu ia à feira com meu pai levava uma bolsinha de lona, onde só cabia a ilusão de o estar ajudando. Ele parava na barraca da melancia e meus olhos brilhavam na expectativa pelo prêmio da “grande

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ajuda” que lhe dera. Ele então, comprava uma fatia generosa que passava às minhas mãos. A cada dentada gulosa escorria pelos meus braços aquela doce seiva que deliciava o meu paladar. Voltava para casa um tanto melada, mais feliz da vida, por desfrutar a companhia de papai e pela fruta gostosa. Até hoje, tudo que é doce me atrai, acho que devemos procurar doçura nas coisas da vida para torná-la agradável.

Minha mãe teve um trabalhão por causa do açúcar ser o meu eleito. Tomava Licor de Cacau Xavier, Erva de Santa Maria (também chamada de mastruço) e a terrível Limonada Purgativa. Tapava-me o nariz, dava-me a dita cuja e era só correr para o lugar apropriado onde meus “invasores” seriam depositados. Não faltavam os tônicos para me abrirem o apetite, como ela os denominava: Biotônico Fontoura, Emulsão de Scott, Vinho Reconstituinte Silva Araújo, Pílulas do Dr. Mckoy, Vinol e muitos outros.

Mas eu gostava era do xarope Grindelia de Oliveira Junior, era muito doce. Também havia o Phimatosan. De vez em quando eu estava resfriada e mamãe não conversava, fazia chá de cambará, guaco, folhas de laranjeira e outras especiarias que tínhamos no quintal. Comprava na padaria os célebres Rebuçados de Lisboa, balas que tinham em sua composição: guaco e mel. Eram deliciosas. Embrulhados em papel branco com letras roxas. Ficavam acondicionadas nos baleiros, espécie de compoteira de vidro com tampa de metal. As pessoas pediam de acordo com o dinheiro disponível: 10 tostões de balas, etc.

Meus irmãos iam ao Dispensário do Méier, hoje Hospital Salgado Filho, apanhar óleo de fígado de bacalhau, que era distribuído às crianças e na volta entravam no parque e comiam mata-fome ou quebra queixo, doces vendidos por ambulantes. Lembro das caixas de madeira onde era acondicionada a goiabada, da marca Colombo ou Peixe, que meu pai comprava. Ficava meio intrigada com os nomes. Será que a primeira foi descoberta a exemplo da América? Será que a segunda é feita de peixe? Mas logo era tranqüilizada ao saber que eram apenas marcas de fabricação. A marmelada já era acondicionada em lata com desenhos da cor verde. Levei muito pão recheado com um desses doces para a minha merenda escolar, envolto em guardanapo de pano. Sinto saudades da mistura de

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sabores: pão, doce e guardanapo. Na época não apreciava muito, mas era o que se apresentava na hora do recreio.

* * *

Aliás, inesquecível minha entrada para a Escola 9-9 Hercílio Luz, cuja diretora era Dona Ariadne. Minha primeira professora foi Dona Risoleta e a seguinte Dona Juracy que me acompanhou até o final do curso primário. Inesquecível o caderno “De Março a Dezembro” que estampava na capa crianças se dirigindo à escola e na contra capa as letras dos Hinos Nacional e o da Bandeira. O livro era o Clube dos Sete Amigos e uma das personagens era “D. Suavidade” – e D. Juracy passou a chamar-me por esse apelido.

Um dia feliz para os alunos acontecia quando D. Felicidade batia à porta da sala de aula e entrava. Todos se levantavam, pois no dia anterior nossa professora havia advertido para que estivéssemos com o uniforme impecável, cadernos encapados e limpos. D. Felicidade era a supervisora da rede escolar, uma senhora de idade avançada, de estrutura baixa e gordinha, mas de semblante, embora austero, agradável. Usava chapéu enterrado na cabeça com um passarinho. Nossa professora ressaltava as qualidades dos melhores alunos. Depois de alguns minutos D. Felicidade se retirava, prometendo voltar no mês seguinte. Aguardávamos, então o próximo mês; suas visitas eram uma felicidade para nós, pois passávamos momentos sem os exercícios extenuantes.

Lembro que, num concurso de redação, ganhei uma réplica de sala de jantar de madeira que muito me encantou: era uma mesinha e quatro cadeiras pintadas de azul com decalcomanias estampadas. A propósito, quem se lembra dos cromos e decalcomanias? Meus cadernos eram repletos.

Lembro que quando o prefeito do então Distrito Federal, Henrique Dodswort, foi visitar nossa escola, eu e meu colega José Ney apresentamos uma peça, que foi muito aplaudida; eu me admiro de como eu gostava dessas apresentações e hoje sou tão tímida. Ganhei uma casa toda bem

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montada em papelão duro que muito me encantou e o abraço do prefeito e de sua esposa.

As recordações de nossa primeira escola permanecem para sempre na memória. Os célebres cadernos de versos que trocávamos para que dedicatórias marcassem o tempo feliz que estávamos vivenciando. Hoje verifico, com saudades, que o que neles estava escrito, traduz fielmente a realidade. Hoje, ao abri-los em suas páginas amarelecidas, os nossos cabelos brancos, ao ler aquelas palavras jogadas ao sabor do tempo, fico emocionada e me pergunto:

– Onde estarão os colegas de outrora? Inesquecível foi a dedicatória de D. Juracy, minha professora:

E você querida Josepha, há de ser uma estrela rediviva que brilhará sempre para aqueles que lhe dedicam uma sincera amizade.

Sua mestra e amigaJuracy Lessa – 8/11/46.

* * *

Na escola também havia a catequese. Uma professora de religião vinda da Igreja dos Sete Santos Fundadores, atual Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, apresentou-se na sala de aula a fim de preparar aqueles alunos que quisessem para a primeira eucaristia. Muito convicta, logo me apresentei e através do primeiro catecismo de Doutrina Cristã aprendi as sagradas orações e outros preceitos ligados à religião. Todos os domingos tínhamos que assistir à missa; assistir sim, pois eu nada entendia pois era em latim, onde o Dominus Vobiscum era muitas vezes repetido. O sacerdote ficava de costas para os fiéis.

Mesmo sem entender, eu gostava de ver as pessoas na missa, muito bem vestidas. Sim, bem vestidas, pois os trajes sumários de hoje não eram aceitos: bustiers, calças compridas, bermudas, bermudinhas e bermudões, nem existiam. As moças usavam na cabeça véu branco e as senhoras, véu negro; ninguém do sexo feminino exibia a cabeça descoberta, enquanto nenhum homem cobria a cabeça, tinham que tirar o chapéu e também o

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faziam ao passar por uma igreja. Atualmente as missas são celebradas com maior participação dos fiéis na língua-pátria, os sacerdotes já não são tão austeros; dentro do respeito, se comunicam com os fiéis. As músicas embora mostrando a religiosidade, são mais alegres; todos participam tornando os atos de fé alegres e descontraídos.

Voltemos à catequese: depois de alguns meses eu já sabia o que o Catecismo ensinava e foi marcado o grande dia da minha primeira comunhão. Vieram os preparativos: o tecido para o vestido, minha madrinha fez questão de dar; também o livrinho de missa e o terço, comprados na Casa Cruz que tem mais de um século. Havia no centro da cidade casas especializadas em artigos religiosos, a Casa Cruz, a Casa Sucena... Entretanto, um contra-tempo: a fazenda era pouca e não quisemos molestar minha madrinha. Pobre de nossa costureira, Dona Antônia: estica daqui, estica dali e inventou de colocar uns entremeios de renda para o vestido render, isto é arrematar. Depois de muita mão de obra, ficou pronto e bonito. A costureira também armou o véu com a grinalda. Os sapatos de camurça branca foram dados por minha irmã, que já trabalhava.

Chegou o grande dia: jejum absoluto desde a meia-noite. Muitas recomendações: não pode engolir saliva, não pode trincar a hóstia e contavam fatos escabrosos, decorrentes dessas desobediências. Lembro que eu ia nervosamente pela rua cuspindo, fraca pelo jejum e temerosa, já pensando em escancarar a boca para a hóstia consagrada entrar sem que eu a maculasse; ia decorando as músicas, uma delas inesquecível:

Queremos Deus, homens ingratos...

As orações aprendidas na catequese povoavam meu pensamento. E não podia ter maus pensamentos, más palavras, nem más ações, pois as tinha deixado inteirinhas no dia anterior através dos furinhos do confessionário. Eu me sentia leve, pura e feliz, pois ia ao encontro de Jesus. Sentia-me até um pouco noiva naquele dia 5 de novembro de 1945. Nós, os catequizados, nos encontramos na escola e, em fila, fomos à igreja. Os lírios em minhas mãos se tornavam líricos, como se traduzissem a pureza dos anjos naquele grande dia. Tudo deu certo, após a cerimônia os

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cumprimentos de parentes e amigos e o que mais almejávamos a partir dali aconteceu: um lanche na escola nos aguardava. Uma mesa com linda toalha branca e canecas de louça branca estavam enfileiradas esperando que nossas boquinhas, cheias de pureza, sorvessem um chocolate quente como o amor que tínhamos declarado a Jesus. Foi o chocolate mais gostoso que já tomei, compartilhado com meus colegas e acompanhado de biscoito e bolo. Para não faltar nada, a diretora deu a todos os alunos um marcador de livros em cartolina prateada, tendo um santinho circundado por purpurina onde estava escrito:

Jesus, inflamai meu coração de amor por vós!

No verso havia o nome da escola. Dali, fui ao Foto Quesada tirar minha fotografia para a posteridade.

Em casa, um lauto almoço nos aguardava: carne assada, macarrão, salada feita por minha mãe e pastéis que meu pai fazia como ninguém.

Após a mistura habitual,esticava a massa com o rolo de pastel de madeira,

cortava com a carretilhae os recheava com carne assada moída, azeitonas, salsa e ovo cozido.

Fritava-os.

Ficavam imensos com bolhas crocantes que enchiam nossa boca e aguçavam o paladar. Sobremesa: salada de frutas e arroz doce. Foi um dia muito doce em minha vida.

* * *

Outra recordação muito presente é a época natalina, onde o cheirinho gostoso das rabanadas ou do bacalhau cozinhando em panelas imensas, como imensa é a emoção dessa data ao recordar de minha mãe fritando os bolinhos ou de meu pai fazendo arroz doce com cobertura de chocolate; da presença de meu irmão Agostinho, de minha irmã Conceição em volta da

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mesa e eu, caçula, esperando meu presente de Papai Noel. Éramos cinco num só coração!

Só depois que eu dormisse conseguiria o almejado presente que o “bom velhinho” traria. Lembro que eu preparava um prato bem generoso com iguarias natalinas para subornar o Papai Noel. Geralmente colocava uma camisola bonita e ia dormir, o sapatinho colocado na janela. Jamais esquecerei de um embrulho coberto de castanhas que Papai Noel em retribuição ao meu agrado tinha deixado para mim. Era uma boneca de pano com pernas compridas e um chapéu de abas escondia a calvície, pois os cabelos só existiam em volta do rosto. Quando a vi fiquei encantada:

– Mirandolina, era você mesmo que eu queria!E abracei-a e beijei-a muito. Mirandolina passou a ocupar um

lugarzinho na minha caminha e no meu coração.Antes de Mirandolina eu tivera outras bonecas de celulóide – um

material japonês – que eram ocas e amassavam com facilidade. Quando isso acontecia tínhamos que colocá-las em água fervendo para voltarem ao normal; era uma desilusão... No melhor da brincadeira acontecer esse traumatismo... Geralmente, essas bonecas eram dadas por minha madrinha; elas vinham com selos e estampilhas nas costas, pois eram importadas. Havia também as de louça e de pano como Mirandolina. Certa vez, fui comprar carne no açougue do Sr. Joaquim acompanhada de Alice, minha bonequinha. Entretanto, o embrulho vazou sangue da carne – na época a carne era envolta num pequeno papel branco e em jornal; o rosto de Alice foi atingido e foi uma choradeira tremenda; quando cheguei em casa, mamãe tentou limpar mas a mancha não saiu e a solução foi passar rouge Royal Briar para disfarçar. O Natal é um misto de alegria, saudade, beleza. É o dia em que amamos ao próximo indiscriminadamente, o que deveria ser realizado diariamente. O Feliz Natal, nesse dia, realmente é transmitido pelo coração.

* * *

Na infância, lembro que minha mãe fazia tripa com batatas e paio, hoje a tripa é denominada de dobradinha. Também fazia coração de boi

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ensopado, que eu repudiava. Eu gostava de fígado com batatas acebolado, era muito gostoso. Comprávamos no tripeiro que ia passando pela rua puxando um burrinho.

Na época era comum um ditado:

Quem tem burro e anda a pé, mais burro é.

Seguia o tripeiro e seu burrinho com uma caixa de cada lado onde os chamados miúdos estavam acondicionados; trazia também uma balança para pesar o produto. Gostava de apreciar o vendedor, um senhor português; mas, o que mais me prendia a atenção era um dente de ouro que ele exibia ao sorrir, quando agradecia a compra aos fregueses. Para mim era como se fosse um porta jóias falante. Achava que ele devia ser muito rico pelo brilho daquele dente e também tinha vontade de possuir um semelhante.

Como o açúcar era meu doce companheiro, não tardou para que precisasse de cuidados odontológicos. Pobres dos dentistas que me atenderam. Na época o motor mais parecia uma britadeira e para mim aquela cadeira móvel era como se subisse rumo ao martírio, uma verdadeira cadeira elétrica. Berrava e distribuía chutes que meu pai, envergonhado com o vexame, procurava contornar me repreendendo, mas prometendo alguma coisa, caso eu me acalmasse, na saída do consultório.

O dentista, ao mesmo tempo em que abria minha boca, procurava

esquivar-se para se livrar dos pontapés, dizendo:– Criança é assim mesmo...Mas seus pensamentos... Talvez fossem os piores possíveis. Quando

eu já sabia rezar, nas idas ao dentista eu prometia ave-marias para o dentista não aparecer. Após alguns dentistas fui atendida por um casal que me dominou: prometeu-me um dente de ouro igual àquele do tripeiro que conseguira fazer morada em meu pensamento. Passei a ficar quietinha. A promessa nunca se concretizou... Graças a Deus! Atualmente, minha boca é um tanto metálica e um dente amarelou, ocasionado, talvez, por um dentista não muito confiável. O meu sorriso não é de alívio, mas amarelo;

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esteticamente, é horrível; mas enquanto não incomodar na função da mastigação, fará parte do meu frontispício... Até quando Deus quiser.

Na nossa rua passava o peixeiro, italiano, com dois cestos presos numa madeira roliça que levava às costas. Ele gritava:

– Olha o peixeiro!As donas de casa corriam de prato na mão. A freguesa escolhia, ele

pesava, escamava os peixes, cortava em postas e os gatos não se faziam esperar, rodeando o vendedor numa alegre e esperançosa sinfonia felina. O peixe frito que mamãe fazia era divino. As sardinhas também eram bem recebidas em nossa mesa. Quando sobravam, mamãe fazia escabeche: era um molho de tomate e cebola, onde os peixes eram afogados e o nosso nariz pescava ao longe aquele cheiro delicioso. Era muito saboroso.

O sorveteiro, que as crianças ouviam ao longe, tinha alegre recepção. Não sei como numa caixa de madeira, transportada em sua cabeça, conseguia conservar os picolés. Ele bradava:

– Olha o picolé de uva, coco, maracujá. Venha comprar, vou embora, venha já.

Eram de gelo puro colorido, mas eram os únicos na época. Quando surgiram as carrocinhas Kibon, foi uma gélida novidade. Lembro que, certa vez, desci as escadas da vila – sim, porque eu morava numa vila, onde o acesso à nossa casa era de cem degraus – escorreguei e fui deslizando de costas. Parecia que estava nos Alpes rumo ao doce gelo. Fiquei toda ralada, mas não desisti. De posse de meu picolé, ao chegar em casa, desatei a chorar, ao mesmo tempo em que o saboreava, mostrando meu infortúnio.

Minha mãe falou:– Zefinha, porque correu? Devia ter voltado!Numa choradeira imensa respondi:– Eu ia ficar sem meu picolé?Em 1948 entrei para a Escola Bento Ribeiro. Funcionava em horário

integral, das 7 às 17 horas. Almoçávamos lá e eu, que era difícil para me alimentar, tive que comer a comida feita em panelões. Pasmem! Postas de bacalhau eram expostas em travessas com a maior naturalidade; ainda não era considerado alimento de elite. A carne seca com abóbora também lotava as panelas ferventes em fogões imensos. As turmas entravam, uma

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de cada vez, enfileiradas no refeitório. As merendeiras enchiam os pratos, que previamente havíamos colocado no bandejão, e rumávamos para as mesas redondas com toalhas de matéria plástica. Para ser franca, eu quase não conseguia comer. Não era de se admirar: eu era bem enjoadinha. A maior parte das colegas se deliciava. A sobremesa, geralmente, era banana ou queijo com goiabada. À tarde, ganhávamos biscoitos com generoso pedaço de queijo prato. Em casa, eu dizia que comia tudo, para não desgostar a família; entretanto, minha magreza revelava a mentira.

Quando íamos a algum passeio com a escola, ganhávamos sanduíche e biscoitos embalados em sacos de papel. A irreverência da juventude era de enlouquecer as inspetoras que sempre faziam inúmeras ameaças. Na época, as moças tinham que ser prendadas e íamos para as chamadas oficinas aprender a fazer flores, tricô, bordado e as famosas rendas: irlandesas e valencianas. Certa vez houve uma exposição dos trabalhos no Teatro Municipal e uma bolsa de “faille” com uma rosa bordada em ponto cruz que eu fiz, foi ofertada à esposa do prefeito da época de quem não me lembro o nome. Fiquei envaidecida.

Tínhamos, também, que ter aulas de culinária, das quais eu sempre me esquivava para não ter que descascar batatas e outros legumes. Lá ia eu para a copa. Colocávamos a mesa e servíamos as professoras que, na época, almoçavam no colégio. Aqueles de quem mais gostávamos, recebiam os melhores quitutes. Pobre da professora de matemática: para ela eu reservava a faca mais pesada e tentava não a servir. Apesar de trabalhoso era divertido. Às vezes, sem querer, derrubávamos as travessas e era um tremendo estrago a comida esparramada no chão.

Atualmente, dou valor àquela época em que, sem nos darmos conta, muito estávamos aprendendo, não só através do estudo como também com o convívio com outras pessoas de diversas classes sociais. Muita saudade do canto orfeônico, onde extravasávamos os dotes musicais; chegamos a ter a regência do imortal maestro Villa Lobos. Nós brincávamos dizendo que ele era “Vira Lobo”, por ser muito temperamental. O canto do Pajé, além dos hinos patrióticos, eram então entoados. Depois que saí da Escola Bento Ribeiro, não pude continuar meus estudos.

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* * *

Meu sonho era ingressar no Instituto de Educação, mas o destino traçou outro rumo. Levada por minha prima Zélia, fiz concurso para a Light, na época Companhia de Carris, Luz e Força do Rio de Janeiro; o nome era quilométrico, posto que a empresa não atendia somente aos serviços de eletricidade. Este meu primeiro emprego aconteceu em 1954; entrei para a Holerith, trabalhando em máquinas IBM. Em 1955 tive uma grande tristeza, meu pai faleceu. Eu nunca havia conhecido de tão perto tamanha perda.

Eu que já era muito magra e difícil de me alimentar, fiquei ainda mais avessa às refeições. Minha mãe preparava a marmita e eu, muitas vezes, a jogava fora. Certo dia a prima Zélia encontrou com meu irmão e contou-lhe esse tremendo delito. Minha mãe ficou triste, chegando a chorar; e toca de dar-me novamente fortificantes para abrir meu apetite.

Muito interessada em estudar, matriculei-me no curso de secretariado onde uma das matérias era a taquigrafia. Esse curso funcionava na sala de reuniões da Light, onde ao redor de uma mesa grande com vidro em cima, os alunos se posicionavam.

Meu olhar esquivo bateu no de um jovem magro de terno; aliás o terno era obrigatório. Nos dias subseqüentes, meu coração teve os batimentos acelerados sempre que eu me deparava com o jovem na aula ou nos corredores. Timidamente, disfarçava meus sentimentos, coisas de uma época em que a mulher era reprimida e não podia demonstrá-los. O rapaz, do outro lado da mesa, fazia graça para eu ir. Certa vez, íamos conversando pelo corredor com outras colegas; uma delas fez-lhe pergunta indiscreta e eu o defendi. Notei que ficou grato. Outra vez ele impediu que eu entrasse de cabeça num poste no corredor da Light, pois perto dele eu ficava perturbada.

No dia 23 de março de 1956, no ponto do bonde, em frente a Light, ele falou:

– Você me daria resposta sem eu fazer a pergunta?Austeramente respondi:– Não há resposta sem pergunta, mas eu quero que você saiba que

eu nunca namorei.

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Então, ele respondeu:– Era o que eu queria ouvir. Posso ir na sua casa no sábado?Justamente, o sábado era de Aleluia e no dia seguinte, 31 de março,

eu completaria 21 anos. Ele mostrou-me a carteira para mostrar que era solteiro. No sábado olhei o portão: lá em baixo na rua e vi o jovem andando de um lado para o outro, à minha espera. Meu coração parecia que ia saltar; se coração competisse nas olimpíadas, o meu naquele dia ganharia todas as provas.

Vesti-me rapidamente, penteei-me, fazendo tudo para que nenhum fio de cabelo ficasse em desalinho. No meu vestido listradinho, branco e cinzento, com imensa saia godê eu me sentia uma princesa; meu príncipe encantado me esperava; não vinha num cavalo branco, tinha chegado de bonde. Andamos na rua pra lá e pra cá, mas antes das 21 horas subi novamente as escadas para casa. Na despedida ele beijou-me a mão. Fiquei até assustada, pois o achei ousado nesse gesto, entretanto, até hoje seguro aquele momento como um dos mais bonitos de minha vida.

No dia seguinte, ele subiu e falou com minha família. Lembro-me que fiz para ele refresco de limão com gelo quebrado da geladeira; era a que tínhamos na época. Os dias e meses foram se sucedendo e num sábado de carnaval fomos assistir ao filme “Suplício de Uma Saudade”. A música desse filme marcou muito e virou o símbolo de nosso amor e, até hoje, quando a ouvimos, corremos um para o outro entre beijos e abraços. Como sempre, muito organizado, meu namorado trouxe uma lista de enxoval, fiquei ruborizada. Assim, fomos juntando peças de cama e mesa e demais utensílios; comecei a bordar meus lençóis. No dia 18 de agosto de 1958 ficamos noivos; houve um almoço em família e um bolo em forma de coração. Ele vestiu um terno cinza novo, gravata combinando e eu um vestido azul de bolinhas brancas, como sempre desejei que fosse nossa vida: azul de bolinhas brancas.

Trocamos nossas alianças de ouro maciço. Foi outra emoção, eu me sentia dona do mundo com aquele elo reluzente no dedo anelar.

Dava vontade de gritar para todo mundo: “– Eu amo o Wilson. Eis aqui o elo de nossa união!” Entretanto, eu me contentava em andar de dedo duro e resguardar minha aliança de arranhões. Na época todas as pessoas

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tinham o direito de exibir o estado civil com aliança de ouro. E nem havia outros tipos pois não existiam ladrões; no cotidiano, as pessoas usavam jóias sem medo. Como os tempos mudaram...

Dois anos depois foi marcado o grande dia: 19 de março de 1960. Grandes preparativos: escolha dos padrinhos, da igreja, dos móveis, o terno, o vestido de noiva... Os doces, os salgadinhos, as bebidas e o bolo: castelo de três andares, branquinho como a neve com rosinhas em tons suaves e guirlandas com laços, como os laços que estavam unindo aquele casal com tanto amor. Na época as noivas mostravam o enxoval e o quarto de núpcias, a camisola e o robe, quase sempre em seda pura ou lingerie, dando água na boca às solteiras da família.

Voltando ao bolo de casamento, era um castelo de três andares, como já disse, cheio de laços, guirlandas e pombinhos; no alto, um casal. Era todo branquinho, ornamentado por glacê mármore, que era feito de açúcar de confeiteiro, manteiga e claras em neve. Na época era tudo manual, o glacê era colocado no saco de confeitar e espremido até tomar as formas açucaradas de pitangas.

Lembro que a última camada do bolo era feita especialmente para a volta do casal da lua de mel. O papel dos bolos é importantíssimo em qualquer aniversário, casamento ou outras festividades. Geralmente, quando convidamos alguém para uma festa dizemos:

– Venha comer um pedaço de bolo.É desfeita recusar uma fatia de bolo oferecida nessas ocasiões.. O bolo traduz uma mistura de elementos que além de energéticos,

significam a mistura de nossos sentimentos e a sua divisão simboliza a partilha de nossa vida. O primeiro pedaço, geralmente, é para a pessoa mais querida, o que às vezes causa embaraço. Ao cantarmos o tradicional “Parabéns Prá Você” o fazemos na presença do gostoso e cobiçado personagem: o bolo. Indiretamente, ele está sendo homenageado com as exclamações: “Ele é bonito!” ou “Ele está gostoso, hum...”

Lembro também dos docinhos que as amigas ajudavam a confeccionar. Era uma participação alegre, onde eram feitos os cajuzinhos, os brigadeiros, os olhos de sogra e outros. Lembro que na época os pirex também faziam parte da festa; era a novidade do momento. Eram

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refratários e não havia noiva que não tivesse, em meio aos presentes de casamento, uma forma pirex, com tampa ou sem tampa, não importava. As galinhas assadas também faziam parte das festas de casamento, além dos salgadinhos: rissoles, pastéis, empadas e canapés. Ganhei de minha cunhada uma linda bolsa de barbante em crochê. Minha mãe não conversou, envolveu galinha assada em guardanapos e também salgadinhos para levarmos na viagem de lua de mel. Assim rumamos para São Lourenço. Nós dois? não, nós três: Wilson, eu e a galinha, que comíamos furtivamente nas paradas dos ônibus. Como sempre a preocupação de minha mãe era a minha magreza.

Lembro que pela manhã, no dia do casamento, ela me pegou no colo e disse:

– Olha o que guardei para você...E deu-me um enorme caqui, que saboreei em seu colo. Infelizmente

aquele foi seu doce e último presente. Inesquecível foi o garçom acordar-nos para jantar ao som de La Cumparsita. Foi pena que o coração de minha mãe parou e dez dias após tivemos que regressar.

O primeiro almoço que fiz para meu marido foi sensacional! Eu não me preocupara em aprender a cozinhar, porque teria minha mãe para ajudar. Na época o jeito era mesmo enfrentar a pia e o fogão. Lavei o feijão, botei na panela para cozinhar e fui lavar umas roupas, na época era no tanque mesmo. Enquanto isso, Wilson encerava a casa que era de tábuas corridas. De repente exclamei:

– Alguém deve estar torrando amendoim...Alguns minutos depois o Wilson falou rindo:– Sabe o que esse amendoim? É nosso feijão que queimou.Aí eu falei:– Ah! Eu dou um jeito.Lavei um pedaço de carne seca e joguei dentro da panela que exibia

o feijão estorricado. Foi um desastre total. Mas no fim tudo deu certo. Minha irmã passou a ser minha instrutora, pois já sabia que meus dotes culinários eram zero. Às vezes, já mandava a comida pronta. A sorte do Wilson é que ele almoçava na Light.

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Mais uma vez todos esses fatos ligados ao casamento demonstraram a importância dos alimentos, que estão sempre presentes em nossa vida e trazem recordações de fatos inesquecíveis.

* * *

Sou muito observadora; no outro dia, ao descer a rua onde minha filha e marido moram, deparei-me com o Teatro Sergio Porto. Muito interessante é que esse teatro muda o cartaz de suas peças de maneira curiosa; um artista plástico o renova. Isso desperta minha curiosidade porque as pinturas são perfeitas e variadas de acordo com a peça. Dessa vez, num fundo de tonalidade verde, estava estampado o título em letras pretas: “A Sopa”. Não sei do conteúdo da peça, mas meu apetite foi aguçado e lembrei-me das sopas que minha mãe fazia.

Mentalizei então uma sopa de ervilha, verde como a esperança. Voltei para casa, coloquei um pacote de ervilhas de molho e no dia seguinte cozinhei juntamente com um pedaço de carne magra, paio e temperos na panela de pressão, durante meia hora. Por falar em panela de pressão, meu aplauso para esse grande invento. Antigamente, o feijão preto e outros grãos levavam três horas de cozimento. Atualmente, em poucos minutos, temos a vantagem de saborear uma suculenta sopa que, acompanhada de torradinhas, torna-se mais apetitosa.

Interessante como tanta coisa fluiu em meu pensamento a partir do título da peça teatral. Muitas pessoas quando querem se referir a alguém que quer levar vantagem em tudo dizem: “Você quer é sopa”. Ou em outras ocasiões: “Não dá sopa”. Através desses ditos populares a sopa tem significado leve de algo bom.

Nos regimes alimentares ela é muito usada e na enfermidade logo nos lembramos de uma sopinha, que alimenta sem congestionar o organismo. Na Inglaterra, por ser um país muito frio, existem quiosques de sopas de todas as variedades para aquecer o transeunte.

Aqui no Rio, existe uma casa de chá e confeitaria, cuja sopa é servida diariamente às 18 horas. Muitas pessoas idosas e solitárias para lá se dirigem procurando este prato. Assim, aquecem o organismo e o coração,

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antes solitário em algum apartamento. A sopa é um alimento tão importante, que as igrejas, através de suas pastorais, serve-na à noite, nas vias públicas, para os excluídos. A sopa é o veículo da caridade.

* * *

Em alguns dias da semana escuto um caminhão estacionar no restaurante em frente ao prédio onde residimos. Corro à janela, através da cortina, gosto de bisbilhotar a carga descarregada. Fico encantada com o que denomino “a carga da saúde”, pois os transportadores levam às costas para dentro do restaurante sacos de laranjas, limões, maçãs, bananas, mamões e abacaxis.

Aqueles trabalhadores talvez não saibam do precioso conteúdo que ali está exposto. As frutas formam um lindo colorido, digno de telas de pintores.

Em outros dias chegam pelo mesmo veículo verduras e legumes: couve, brócolis, tomates, alface, vagem, agrião, espinafre e outros. Novamente o colorido da carga me encanta e penso: como a natureza é pródiga e nosso solo?

O nosso sol vibrante faz com que nossos alimentos tenham mais beleza e sabor, mesmo recebendo os agrotóxicos. Pessoas estrangeiras declaram que, aqui no Brasil, os alimentos são mais saborosos. Outro fato muito importante é a variedade que nosso solo produz. Cada época possui sua safra e assim, procuramos tudo que esteja dentro da safra, para economizarmos e porque tudo é colhido no tempo certo. Tudo tem seu tempo, tempo de plantar e tempo de colher.

* * *

No outro dia, ao levar o resultado da densitometria óssea para minha médica, fiquei decepcionada, pois ela alertou que estou com osteoporose lombar. Apesar de declarar que nada sinto, ela esclareceu que a osteoporose é uma doença que afeta os ossos, que todo osso é um tecido vivo, que necessita de nutrientes para manter força e elasticidade. A

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osteoporose reduz a densidade dos ossos afetados, tornando-os frágeis e propensos a fraturas. A doutora aconselhou-me a ingerir alimentos ricos em cálcio, dentre eles: queijo branco, leite de preferência desnatado, iogurte, couve. E o mais importante: os exercícios físicos, a caminhada e sol. Sai do consultório triste, eu que tinha orgulho dos meus ossos, verifiquei que não vão bem.

* * *

Domingo pela manhã, toca o telefone. É nossa filha!– Oi, oi! Posso almoçar aí?– Claro, filhinha, já estou esperando.É dia de festa a visita de filhos. Mais uma vez verificamos como a

comida é importante. Ela aproxima as pessoas. E sempre quando sabemos ou desconfiamos que alguém nos visitará, logo pensamos no quê vamos oferecer aos visitantes. Para os inesperados que gostam de nos surpreender, às vezes nas horas mais críticas, nunca falta um cafezinho com biscoitos, suco ou refrigerante ou um simples copo d’água para aqueles que relutam em aceitar algo. Gosto de ter sempre na despensa um doce em calda que, servido com creme de leite, agrada ao paladar.

Depois do telefonema da filha fomos ao supermercado. Fiquei mentalizando o que fazer para o almoço domingueiro.

Compramos filé para fazer bifes. Já tinha em casa brócolis, batatas e cenouras cortadas em quadradinhos para a maionese. Arroz também já tinha deixado refogado. Comprei alface que por sinal estava em promoção: a R$ 0,25 um pé generoso.

Passamos na padaria do supermercado e compramos o pão ainda quentinho. Também pão de forma que sempre gostamos de ter nos fins de semana. Compramos dois bolos Plus Vita, novo sabor: maçã, passas e canela; entretanto, não o recomendamos: achamos enjoativo.

Compramos alguns refrigerantes e não resistimos ao apelo da Malzibier à nossa frente e a colocamos no carrinho.

Havíamos desfilado no dia anterior pelo bairro, levando em sacolas transparentes do sacolão: bananas, mamão, melão, laranjas, maçãs,

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berinjelas, brócolis, beterraba e cebolas. As pessoas que circulavam na calçada nos olhavam e às nossas compras, talvez pensando, “também preciso usar desses alimentos”. Nós éramos quitandas ambulantes, espalhando bom exemplo de alimentação à nossa volta.

Voltemos ao domingo: pagamos nossas compras, subimos ao estacionamento, colocamos tudo no veículo e fomos para casa. Lavei mãos e rosto, mudei de roupa e a cozinha me esperava. Coloquei legumes no fogo, temperei os bifes com alho e sal, lavei a alface, coloquei-a de molho em água e uma colherzinha de água sanitária, fiz o arroz, fiz o refogadinho dos brócolis e cortei e recortei tomates, cebolas e pimentões, fritei os bifes e ainda fiz uma farofinha com ovo cozido.

Ao meio dia estava tudo pronto e a mesa arrumada. Às 13:30 horas os hóspedes do coração chegaram: a filha e o genro. Beijinhos prá lá, beijos prá cá.

– Oi, mãe! Estou com uma fome! Põe tudo que tenho direito.– Oi, sogra! Cadê meus pasteizinhos?Descobri que falhei:– Ih! Hoje eu não fiz... Na quarta-feira nós vamos lá e levamos. – A sogra está despedida... Durante o almoço a filha falou que está consumindo leite de soja e

carne de soj;, está cortando o açúcar e o refrigerante; mas não resistiu a Malzibier e disse brincando:

– Mãe, eu estou “vêvada”... Assim, tudo transcorreu num clima de alegria. Antes de saírem, filha e

genro tomaram um suco de maracujá com o bolo que não foi muito apreciado.

Levamos os dois até o local onde estava estacionado o carro e beijos prá lá e beijos prá cá. Desejamos boa viagem à filha que, no dia 26 próximo, irá à Inglaterra a serviço; ficará dez dias no país que ela muito aprecia.

Este relato foi feito para demonstrar como a alimentação é importante. Primeiro foi a reação ao telefone, de como agradar a quem amamos numa refeição, procurando caprichar ao máximo. Depois a ida ao supermercado. Mais adiante o pensamento rápido do que comprar para tornar o almoço agradável. A elaboração carinhosa dos alimentos. A

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arrumação da mesa, que muito valoriza a convivência da família reunida. A pergunta bem humorada dando falta de uma iguaria. O mais importante, a família em volta da mesa, compartilhando dos alimentos.

Realmente, foi um bom domingo e esperamos muitos outros. Brindemos à saúde, à vida, à alimentação.

* * *

Uma lembrança que tenho na memória é de que as festas familiares eram comemoradas nas casas. Até porque existiam as casas espaçosas e com quintais. Hoje, as comemorações são externas. Geralmente, nos restaurantes, nas casas de festas ou lanchonetes.

As pessoas se reúnem e o recinto de um restaurante torna-se o ponto de encontro. No mês passado fomos com um grupo de familiares comemorar o vigésimo aniversário de nossa neta postiça no Rincão Gaúcho, da Tijuca, por determinação da própria. Era um ambiente requintado, com música ao vivo, muito bem decorado. O que mais me chamou a atenção foi um grupo imenso de pessoas ao redor de mesas enfileiradas ao longo do restaurante, reservadas para essa família numerosa, onde estava presente um casal de cabeça branca. Só descobri a causa do evento, quando não contive a curiosidade e perguntei ao garçom que respondeu ser a comemoração das Bodas de Ouro.

Todos muito alegres, eram diversas gerações homenageando o galante casal, bem conservado, elegantemente trajados. O noivo de outrora estava impecável em seu terno e a noiva vestia um lindo vestido azul. Pediam à orquestra as músicas preferidas e eram atendidos. Não pude, nem ficava distinto bisbilhotar o cardápio escolhido, até porque o grupo era numeroso. Tínhamos que nos preocupar com a nossa comemoração, também bonita: os vinte anos de uma jovem.

Em dado momento, ouvimos a orquestra tocar e todos os participantes das bodas acompanharam de pé, enquanto imenso bolo branco e dourado chegava à mesa. Muitas garrafas de champagne espoucavam trazendo alegria aquele acontecimento festivo. O casal cortou o bolo, talvez recordando o momento vivido há cinqüenta anos, quando

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tudo era tão diferente, na época eles nunca pensariam que esse dia chegaria e que a comemoração seria num restaurante. Como os tempos mudaram...

O importante foi estarem juntos todo o tempo, coisa que está se tornando difícil nos dias atuais.

Tive vontade de mandar-lhes uma mensagem, nem que fosse através de um guardanapo, mas pensei que seria inadequado; não combinando com o momento de delicadeza ali presenciado, talvez me tornasse indesejável. Pedi, então, a Deus, mentalmente, felicidades para o casal.

Voltei ao prato que saboreava: salada, arroz, grão de bico, peixe e banana frita, acompanhado de guaraná. Após o almoço o garçom trouxe várias sobremesas diferentes em uma bandeja, achei interessante esse processo que eles usam em vez de escolhermos no papel, escolhemos ao vivo o que mais nos agrada; ele recolhe a bandeja e traz o que cada um pediu.

Eu, muito gulosa, escolhi uma torta de coco, que parecia ter sido feita no céu de tão gostosa que era. Ao final nos retiramos, mas nossos vizinhos, unidos pelo matrimônio há cinqüenta anos, permaneceram naquele recinto festivo.

Na minha opinião esse tipo de comemoração é interessante, pois exige menos trabalho para a dona de casa; eu só acho é que não há privacidade, o que é constatado até por minha curiosidade; indiretamente, também participei do evento.

Há um restaurante em frente ao nosso apartamento, onde assisto muitas comemorações. Geralmente são jovens que se reúnem para comemorar aniversários e, em dado momento, escuto o tradicional “Parabéns pra você!”. Fico imaginando se, em casa, os pais não ficaram esperando o aniversariante com uma surpresa ou simples bolo para comemorar a data. Fico feliz quando vejo uma família reunida participando de um evento dessa natureza.

As casas de festas também oferecem tudo o que há de imaginável e inimaginável nas festas infantis: animação, carroça de pipoca, piscina de bolas, música da Xuxa, chegando exageros que muitas vezes assustam os baixinhos. Tudo mudou, tudo faz parte da mudança.

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* * *

Hoje, dia 28 de outubro, é o dia do Halowen, comemoração trazida de outros países. As crianças se fantasiam grotescamente de bruxas, vampiros, fantasmas, esqueletos e há até fantasias luxuosas no gênero; batem em nossa porta pedindo doces e balas; fingimos que não os reconhecemos e ficam felizes.

Acho nosso Cosme e Damião mais simpático. É uma festa vestida de simplicidade, onde as crianças, às vezes de pé no chão, ficam felizes ao receber o saquinho de papel com a estampa dos dois santos, onde o pé de moleque, a cocada, a Maria Mole, a mariola, o doce de abóbora, a paçoca enchem de alegria a doce ilusão infantil. Aquele saquinho trazido em mãozinhas carentes representa o troféu conquistado na “olimpíada” pelo bairro rumo às guloseimas.

* * *

Assisto também no mesmo restaurante as filas às sextas-feiras para conseguir lugar. Fico indignada – olha a bisbilhotice outra vez – quando vejo um casal com bebê após as 22 horas no recinto; acho inadequado pelo barulho. Não acho um local próprio para crianças à noite.

Havia um senhor que até bem pouco tempo, chegava no local, ocupava seu lugar determinado e ali permanecia. Era um senhor forte de espesso bigode e cabelos grisalhos e eu o chamava de “o velho solitário”; tomava chopp, acompanhado de salgados, de vez em quando o maitre trocava algumas palavras com ele. Geralmente adormecia, mas sem incomodar ninguém. Ele já fazia parte do folclore do restaurante. Entretanto, sumiu.

Há um que chega no restaurante que parece louco; dá gargalhadas tão altas que é ouvido, mesmo com todas as nossas janelas fechadas. É forte e enquanto ri dá tapas nas costas dos garçons, que agüentam fingindo achar graças; afinal o freguês tem sempre razão... Parece que o estoque da conversa jogada fora é grande e hilariante.

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Estendi muito meu relato e saí do assunto, apesar de que, mesmo não falando especificamente nos alimentos, eles norteiam a nossa mente em todos os momentos e os recintos onde os encontramos também estão ligados à alimentação.

Vou encerrar por hoje, o Wilson fez o café e foi buscar pão quentinho para o saborearmos. Até a próxima. Estão servidas?

* * *

Hoje é o dia em que nos lembramos dos entes queridos que partiram para a vida eterna. Muitas vezes, quando saboreamos algo, nos lembramos de como determinadas pessoas que não mais estão entre nós tinham preferências por algum alimento; assim, eles são importantes e estão presentes em todas as ocasiões.

Divagando, lembrei-me de um livro que possuo e fui buscá-lo num cantinho da estante. Não se trata de um romance, nem de um livro de história, nem de matemática. É, simplesmente, um livro de receitas, tão ou mais importante do que qualquer outro. Seu valor prende-se ao fato de ter-me sido ofertado por meu saudoso irmão Agostinho. O livro está velhinho, amarelecido pelo tempo, nele está registrado meu nome, ainda escrito com caneta tinteiro e a data: 1950. Seu título: “Dona Benta. 1001 Receitas de Bons Pratos”. Aí, eu tinha quinze anos e passava longe da cozinha.

Acho que meu irmão já pensava no meu futuro e também no seu estômago. Era guloso. Lembro que deu o mesmo presente à minha irmã.

O livro tem início com o título “Conselhos úteis”; apresenta os utensílios de cozinha: uma das preocupações mais sérias de uma dona de casa é a escolha do vasilhame de cozinha. Há utensílios de ferro, cobre, alumínio, níquel, pedra, porcelana, ferro, ágata e vidro inquebrável. Daí em diante era apregoada a qualidade de uns e o perigo de outros. Em outro capítulo são abordados os diversos tipos de fogão, os pesos e medidas, os cardápios, o arranjo da mesa e as guarnições usuais. Os temperos ou condimentos também mereceram um capítulo especial.

Para nossa felicidade, nos dias atuais, basta pegarmos um pacotinho de qualquer um deles. O trabalho que tiveram os nossos antepassados, para

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nós foi simplificado. Que diriam nossas avós se vissem sopa em pó nas prateleiras dos supermercados? Elas, para cozinhar uma sopa teriam que perder horas e horas à beira do fogão.

No capítulo dos molhos achei interessante a definição de Ramalho Ortigão:

O molho é como a essência da flor e o suco da fruta.É ele que define o acepipe e lhe transmite as qualidades peculiares.

Muitas vezes, a excelência de um prato ou de uma iguaria depende do molho que o completa. Pode-se dizer que os molhos são imprescindíveis na boa cozinha. O livro apresenta uma infinidade deles. Separei o de maionese, pois é interessante o modo de fazê-lo, numa época em que não existia o liqüidificador e nem era industrializado.

Molho de MaioneseDeite numa vasilha funda ou numa tigela três gemas cruas e três

cozidas. Misture-as muito bem. Depois, mexendo sempre,

vá juntando, às gotas, um azeite fino qualquer,até formar uma espécie de creme de boa consistência.

Tempere de sal e na hora de servir junte o caldo de meio limão galego.

Quer um conselho? Vá ao supermercado e pegue um pote de maionese.

O livro apresenta preparações das verduras e legumes diversos, em ordem alfabética, cada um em várias formas. A salada é um dos pratos que mais põe em evidência o capricho e o bom gosto de uma dona de casa. Antigamente, a salada era um prato modesto, sem grandes foros de valia. As rendilhadas chicórias, as viçosas alfaces e os requestados agriões se contentavam em ser apresentados com a simples graça de uma ponta de sal e um fiozinho de azeite e vinagre. Hoje, não! O seu nível subiu e ela

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ganhou não só o prestígio dos demais pratos, como ainda permitem, na sua apresentação as misturas mais extravagantes e originais.

Por hoje eu vou ficar nas saladas.E pensar que todas essas recordações gastronômicas devo ao livro de

receitas que recebi há cinqüenta anos atrás e à saudade do meu irmão, sempre presente em minha vida.

Nesta data meu irmão completaria setenta e três anos. Vou recordar mais um pouco...

* * *

Achei interessante o capítulo sobre os sanduíches e sua origem. Da página 112 do livro “Comer Bem” de D. Benta.

Havia, na Inglaterra, um lorde, proprietário de ricas terras e jogador inveterado, o qual passava horas e horas diante do pano verde, esquecido da vida e do mundo. Tal era sua obsessão pelo jogo, que nem a fome o fazia arredar o pé da mesa recoberta de pano verde.

Um dia esse gentil homem que se chamava Sandwich, ou porque estava mais excitado mais que de costume ou porque se interessasse mais pela partida em que se empenhara, esqueceu-se das suas refeições habituais. Sua atenção, presa ao sortilégio dos naipes, nem sequer fazia conta do tempo e só alta madrugada notou que era preciso fortalecer o estômago, para poder prosseguir sem fadiga. Pediu então que lhe trouxessem qualquer coisa para comer ali mesmo.

Assim que o criado lhe apresentou a bandeja, o nosso lorde, sem abandonar o seu posto, cortou com uma faca algumas fatias de carne e, colocando-as entre dois pedaços de pão, foi mastigando sem perder um só movimento do jogo e nem interrompê-lo por um segundo sequer.

Os companheiros de partida, aplaudindo o expediente, seguiram-lhe o exemplo e deram à rápida e pronta refeição, cada vez que a reclamavam, a designação abreviada de sandwich.

Tal foi a popularidade que adquiriu a nova maneira de refeição que Lord Sandwich não teve dúvida em mencioná-la em testamento como um bom legado que deixava ao seu país e como uma das coisas mais

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importantes que havia inventado na sua vida, mais importante talvez que as sessões da Câmara Grave e as complicadas cerimônias de coroação.

Hoje, o nome sandwich corre mundo. Enquanto outros lordes famosos ficaram, com o tempo, esquecidos ou apenas deles se tem menção na lombada dos livros ou pelas complicadas genealogias e brasões dos vetustos castelos da Escócia ou da Irlanda, Sandwich se universalizou de tal forma que até as crianças de todos os países sabem o seu nome e o apreciam desta ou daquela maneira, como um excelente amigo nas horas de merenda, nos lanches, pique-niques, etc.

Não faz muito, realizou-se em Budapest a célebre Exposição de Sanduíche, promovida pela Associação dos Cozinheiros Húngaros. Do êxito desse certame, basta dizer que foi preciso organizar, depois, uma exposição de consolação para os que não puderam, por motivos vários, comparecer à primeira.

A concorrência foi a maior e a mais seleta. Chefes de cozinha dos grandes hotéis e restaurantes, senhoras e senhoritas das casas mais aristocráticas e opulentas enviaram as suas contribuições, verdadeiras maravilhas do gênero.

A perícia e a habilidade dos magiares revelaram-se numa infinidade de receitas, cada uma mais original e apetitosa do que a outra. Havia retratos feitos com sanduíches, flores, recortes bizarros de figuras, bonecas, corações, cartas de jogar, brasões e escudos e uma relação minuciosa de mais de trezentas maneiras e variedades de sanduíches.

A repercussão foi tal, que idênticos certames se têm realizado em diversas partes da Europa e nos Estados Unidos, onde há hoje uma verdadeira industria dessas pequeninas maravilhas culinárias, tão populares na terra de Tio Sam como em outras paragens.

O sanduíche, como vimos, nada mais é do que um recheio entre duas fatias de pão. A qualidade do pão deve, portanto, ser escolhida de acordo com o recheio. Atualmente, os sanduíches são vendidos nas carrocinhas e vans espalhadas pela cidade.

Entretanto, a “mídia” invadiu as cidades e é impossível resistir aos coloridos comerciais, onde as fotos iluminadas dos sanduíches saltam aos nossos olhos, quase os tornando reais.

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É difícil uma criança passar pelo Bob’s ou McDonald´s sem arriscar o olho no interior dessas lanchonetes ou aprontar uma baita pirraça ou uma choradeira convincente para ter seu “Mc-Dia-Feliz”.

Estas duas cadeias gastronômicas exercem poder e magia através dos acepipes oferecidos com criatividade.

E pensar que nem todos os freqüentadores desses espaços de quitutes saborosos sabem que tudo começou com Lord Sandwich.

* * *

Os alimentos estão presentes a todo o momento. Quando acordamos, ao fazermos a higiene matinal, logo nos defrontamos com a abençoada água, grande partícipe no preparo dos alimentos; muitas vezes o cheiroso sabonete que usamos é feito de frutas, de aveia, de capim limão, etc. Ao escovarmos os dentes novamente a hortelã refrescante, contida no creme dental, que também é responsável pelo sabor de diversos pratos, se faz presente.

O cheirinho do café, vindo da cozinha, também é nosso despertador e logo pensamos no seu acompanhamento: pão, manteiga, leite e outras iguarias, de acordo com o gosto e as posses de cada um.

Até na oração o alimento está presente:

O pão nosso de cada dia, nos dai hoje.

Mal acabamos o desjejum, logo o pensamento no almoço nos domina. O que fazer? Ou, onde comer. Ou, o que comer?

As prateleiras dos supermercados e dos sacolões desfilam em nossa mente e também as bandejas dos self-service. Cereais, legumes, verduras, frutas, sucos, são personagens importantes.

Mal acabamos de degustar os escolhidos pratos do almoço e já pensamos no lanche. Mal acabamos de consumir o lanche, o jantar já desafia nosso pensamento. E após o jantar? Ainda vai sobrar um lugarzinho para uma xícara de chá ou um copo de leite.

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Feliz de quem tem o privilégio de tornar tais pensamentos em realidade. Muitos têm apenas miragem, pois seus estômagos estão vazios quase constantemente. Muitas vezes, apesar de bem alimentados, sonhamos que estamos preparando ou nos deliciando com uma iguaria. Nem dormindo os alimentos se omitem de nossa mente.

Ontem a filha chegou e disse:– Mãe, pode fazer um doce com estas bananas que estão um pouco

passadinhas? Não tenho tido tempo de comê-las.Fui para a cozinha; as cascas estavam pintadas, mas boas e com

açúcar queimado fiz um doce que agradou.Olhei em volta: uma penca de bananas amarelinhas, um mamão,

maçãs, laranjas e, de repente, não sei como, pensei: “O que é que a baiana tem?"

Lembrei-me de Carmem Miranda, que era a “Xuxa” da minha geração. Usava na cabeça turbante de cetim e em cima uma cesta com as mais diversas frutas tropicais de nosso país: laranjas, bananas, abacaxis estavam presentes no seu remelexo. Carmem Miranda era de nacionalidade portuguesa, levou nossas músicas aos Estados Unidos e seu maior sucesso foi “Taí”.

Outra música alusiva ao prazer da alimentação foi:

Banana, menina, tem vitamina,banana engorda e faz crescer.

Quem não lembra de...

No tabuleiro da baiana tem...vatapá, oi, mugunzá, oi...

Emilinha Borba também homenageou as bananas com a música:

Chiquita Bacana lá da Martinica,se veste com uma casca de banana nanica...

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Quem pode esquecer o romantismo do nosso “Rei” Roberto Carlos, que interpreta “O Café da Manhã”. A “Marcha do Gafanhoto” também lembra os alimentos quando diz:

Xô gafanhoto, xô, xô,deixe um pé de agrião

pro meu pulmão,gafanhoto, isso não se faz,

deixa a minha horta em paz.

Muitas outras músicas nacionais alusivas aos alimentos poderiam ser citadas. Há também músicas estrangeiras que fazem alusão a eles; vejamos o fado:

A Rosinha dos Limões

Quando ela passaApregoando os limões

A sós com os meus botõesDo vão da minha janela

Fico pensandoQue qualquer dia, por graçaVou comprar limões à praça

E depois caso com ela...

“Uma casa portuguesa” ressalta hospitalidade, solidariedade e à partilha do amor, do pão, do vinho e do caldo verde quentinho...

Uma Casa Portuguesa

De R. Ferreira, V.M. Sequeira e A. FonsecaGravado por Amália Rodrigues

Numa casa portuguesa

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Fica bemPão e vinho sobre a mesa

Quando à porta humildementeBate alguém

Senta-se à mesa com a genteFica bem essa franqueza

Este trabalho demonstra que a alimentação está ligada ao dia-a-dia do ser humano. Ela é fator de saúde, quando balanceada e causa de enfermidade quando mal administrada; excesso e deficiência trazem sérias conseqüências.

* * *

Atualmente, a televisão nos mostra regiões carentes de nosso país, onde a fome impera. Vemos pessoas deprimidas, quase morrendo, o mesmo acontecendo com o gado. É um quadro muito triste que ocorre em nosso Brasil e que é transmitido para o mundo inteiro, envergonhando-nos. Fiquei revoltada ao assistir que alimentos doados não foram distribuídos, porque a população faminta não havia sido cadastrada. Será que o estômago vazio tem cadastro?

Felizmente, outra reportagem mostrou pessoas simples se empenhando em levar alimento aos desamparados, usando criatividade e transformando folhas e legumes desprezados pelos mercados em sopa suculenta para amenizar a fome da comunidade de diversos lugares e a satisfação, principalmente, das crianças ao receberem o alimento; até emociona. As pastorais também distribuem sopa nas ruas.

Muito triste, também, é a procura de alimentos nos lixões; é deprimente. Vamos esperar que as autoridades se emocionem também com essa situação, fazendo com que dias melhores venham realizar o desejo do saudoso Betinho.

O racionamento de energia elétrica no nosso Estado também fez com que os hábitos mudassem; os hábitos alimentares também sofreram influência, pois alguns aparelhos elétricos tiveram que ser desligados e o

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“freezer”, o liqüidificador e outros estão de férias e não sabemos até quando.

* * *

Através deste trabalho recordei minha infância, tenho saudades do guarda-louça imenso, do assoalho de tábuas corridas por onde eu corria num alarido de alegria espontânea daquela época.

Era prazeroso ver a família reunida. Na época, eu não me dava conta da felicidade presente na casa simples, na horta, no jardim, na imensa mangueira.

Mais tarde a recordação da escola, do trabalho, do namoro, casamento e dos filhos: nossos tesouros...

Quando parecia que já estava tudo realizado, eis que a vida mostrou que há mais a ser feito e nós dois, como no tempo de namoro, voltamos a freqüentar, lado a lado, os bancos escolares na UnATI-UERJ.

Bendito seja Deus que da terra abençoada faz brotar tudo que é necessário à manutenção do ser humano, numa diversidade deslumbrante.

FimFim

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Wilson SoaresWilson Soares

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Eu e ZefinhaEu e Zefinha

Quando nascemos abre-se para nós um livro e sua primeira página é a nossa certidão de nascimento. A partir daí, e enquanto vivermos, muitos capítulos virão, uns alegres, outros tristes, mas sempre fazendo parte de nossa trajetória nesta dimensão.

Um dos capítulos mais importantes na minha vida foi o meu casamento com a Josepha, em 19 de março de 1960, e a partir daí outros bons fatos foram acontecendo graças ao carinho e sabedoria com que ela sempre conduziu o nosso lar, em todos os aspectos, principalmente no que se refere à alimentação.

O nascimento de nossos filhos. Um casal, realizou nosso sonho de ter uma família, limitada a quatro membros, mas feliz. Mais uma vez, Josepha demonstrou, sua capacidade em administrar as questões relativas às crianças, principalmente nos primeiros meses de vida. Graças a Deus e ao desejo de amamentar nossos bebês, seu organismo propiciou o alimento mais indicado e saudável: o leite materno que possui o equilíbrio perfeito de nutrientes. Contém, ainda, anticorpos da mãe e proteínas específicas que protegem os bebês contra infecções. Está sempre disponível, já vem esterilizado e na temperatura correta. O contato físico entre mãe e bebê estreita o relacionamento entre os dois. Bebês amamentados ao seio têm menos tendência à obesidade pois, assim, não há excessos na alimentação nessa primeira idade.

Aos seis meses, nossos filhos começaram a experimentar novo tipo de alimentação, ou seja, sopinha de legumes com músculo, abóbora, cenoura e batatas, que era passada na peneira, pois o médico não gostava que passasse no liqüidificador, para incentivar a mastigação. Como complemento, era oferecido às crianças banana amassada, suco de laranja lima ou maçã raspadinha. As fibras consistem nas partes indigeríveis dos alimentos de origem vegetal e ajudam a prevenir doenças cardíacas e câncer nos intestinos.

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Com o devido acompanhamento médico, as refeições ministradas aos nossos filhos, fora do aleitamento materno, foram suficientes para uma vida saudável nos primeiros doze meses de vida.

Nossos filhos, primeiro o garoto e depois a menina, foram crescendo; crescendo, também, foi a nossa responsabilidade em proteger a nossa prole. Josepha com os cuidados maternos e eu procurando ser cada vez melhor no trabalho, para garantir no final do mês o combustível necessário para todos nós, ou seja, o meu salário.

Depois dos doze meses de vida, nossas crianças passaram a ser alimentadas com caldinho de feijão, que a Zefinha passava no liquidificador juntamente com espinafre e beterrab, cozidos e como sobremesa comiam geléia de mocotó Colombo.

A sopinha, que foi muito empregada na alimentação de nossos filhos, até hoje continua sendo administrada aqui em casa. Quando voltamos do encontro com Mabel, Myriam e duas estagiárias, almoçamos um pratinho de sopa bem gostosa preparada pela Zefinha, cujos ingredientes foram repolho, cenoura, batata, massinhas e caldo de carne e sem muito sal. Algumas gotinhas de azeite, pão picado e água acompanhando. Para adoçar um pouquinho esta refeição, comemos uns biscoitinhos finos ofertados pela cunhada. Para completar nossa refeição, tomei um indispensável cafezinho.

Consultando enciclopédias para ilustrar-me sobre certos produtos que me despertam maior atenção, detive-me no café: fruto do cafeeiro e infusão feita com esse fruto, depois de torrado e moído.

Então me levantei,Bebi o café que eu mesmo preparei.

Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

(Manuel Bandeira)

Quando o enterro passouOs homens que se achavam no caféTiraram o chapéu maquinalmente...

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(Manuel Bandeira)* * *

Enquanto a Zefinha ia participar de um evento cultural na Biblioteca Popular do Méier – Lima Barreto, eu me dirigi ao centro da cidade. Quando embarquei num trem da Supervia (antiga Estrada de Ferro Dom Pedro II, inaugurada em 1858), comecei a recordar do tempo em que, entre 1948 e 1983, o trem foi o meu meio de transporte favorito no trajeto casa-trabalho, trabalho-casa. Inicialmente Riachuelo-Central e por último Engenho de Dentro-Central. Graças a ele, enquanto trabalhei, meu índice de pontualidade foi considerado satisfatório. Foi realmente uma volta ao passado quando, ao chegar na gare de Dom Pedro II senti aquela brisa que circula naquele grande espaço... Sempre foi assim. Chamou-me a atenção o sistema de comunicação da ferrovia que transmitia os sons de uma música suave. Apreciei, também, o imponente monumento dedicado a Cristiano Benedicto Ottoni, primeiro diretor da ferrovia. Nunca havia reparado nele. Passei em seguida em frente ao Quartel General da Primeira Região Militar (antigo Ministério da Guerra) e mais adiante a sede histórica do Palácio Itamarati, do Ministério das Relações Exteriores. Emoção ainda maior senti quando passei em frente ao número 168 da Av. Marechal Floriano, prédio da Light – Serviços de Eletricidade S.A., onde, ainda menino (14 anos), ingressei como “office-boy”. Na volta fiz o mesmo trajeto e até dei uma estradinha no prédio da Light, construído em 1911, e que hoje abriga o Centro Cultural Light. O pisar naquele solo me trouxe emoções fortes.

A propósito, está ocorrendo uma exposição – O Rio Antigo – mostrando, com fotos de Augusto Malta, a nossa cidade no início deste século. Vemos os bondinhos “caixa de fósforos” puxados a burros, a tradicional Confeitaria Colombo com seus freqüentadores "almofadinhas" e os prédios que mais chamavam a atenção na primeira década deste século: o Hotel Avenida, onde se acha, hoje, o imponente Edifício Avenida Central e o tradicionalíssimo Park Royal, o “point” da época.

* * *

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Recentemente fomos passear pelo Méier, era dia de colher algumas fotos para o livro que estamos escrevendo sobre o Méier, em fase final. Passamos inicialmente pelo terminal rodoviário localizado nas imediações do viaduto Castro Alves; aí batemos uma foto do pôster em que aparece o Cristo Redentor, colocado nos abrigos dos ônibus. Lindo! Já do outro lado, passamos pelo novo terminal rodoviário Comendador Américo Ayres, localizado na antiga estação de bondes da Light, passamos também pelo Colégio Estadual Visconde de Cayru, tradicional no bairro desde o início do século, onde estudou o sobrinho bisneto do Camarista Meyer e seguimos rumo às Ruas Marques Leão e Vaz Toledo, onde íamos tirar fotos de duas casas do século passado. Fomos muito bem recebidos pela Sra. Aida Favre; a casa, com amplo quintal arborizado, é bem antiga, mas conservada e tem ainda o forro de madeira. Depois de um gostoso papo com aquela senhora simpática e afável, seguimos nosso caminho. Ganhamos de um rapaz que trabalha para D. Aida duas gostosas mangas que foram a nossa sobremesa no almoço deste dia tão gostoso. Quando passamos em frente ao número 215 da Rua Vaz de Toledo batemos fotos da casa construída em 1879, que pertenceu à família de Osório Duque Estrada, autor do nosso querido Hino Nacional.

Já de volta para casa, nas esquinas das Ruas Miguel Fernandes com Capitão Resende, assistimos à passagem da procissão motorizada de Nossa Senhora Aparecida, cuja igreja fica nas imediações; os motoqueiros eram mais de duzentos. Foi um espetáculo de fé religiosa que nos comoveu. Fomos atrás para documentar este grande acontecimento. Não ficamos para assistir à missa campal porque o sol de meio-dia estava muito forte e já tínhamos andado muito.

Na Rua Aristides Caire, que homenageia o Dr. Aristides Caire (1880-1924), grande médico do bairro, paramos na Confeitaria Nova Glória a fim de saciar a sede, e para isso, pedimos um pequeno lanche constando de uma fatia de pizza e refresco de caju. Apesar de estar bem quente, não dispensei um cafezinho. Contraditório, não!

Aliás, a pizza que comemos na confeitaria, em nada se parecia com a pizza, que conheço que é um prato de origem italiana feita com massa

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similar à do pão, geralmente em forma de disco, que se assa no forno, coberta fartamente com queijo mussarela, acrescentando-se tomates e orégano; depois de assada, pode-se colocar azeite de oliva (a inventividade dos pizzaiolos criou grande variedade, como a toscana, margherita, calabresa, etc.).

* * *

Depois de nossa reunião da "Oficina", por sinal bem proveitosa, passamos na Alicantina, uma das padarias do bairro, e compramos duas roscas, com massa de sonho salpicadas de açúcar, para oferecer ao sobrinho e um colega que viriam aqui em casa. Pareciam apetitosas. Quando chegamos em casa, verificamos que, pela embalagem, as mesmas estavam bem gordurosas, portanto, impróprias para uso de pessoas da terceira idade. Nossas visitas não vieram, assim, tivemos que degustar aqueles tentadores acepipes, porém com um certo receio (não recheio), pois estávamos cometendo um delito alimentar. De fato, embora não fazendo mal, o meu organismo não digeriu a contento aquela tentação e no dia seguinte ainda sentia os efeitos de uma alimentação inadequada.

Por falar em delitos alimentares, é só dar um passeio pela nossa cidade para sentir que estamos cercados de muitos deles. Senão, vejamos: quando fazemos uma refeição fora de nossa casa, embora as condições de higiene do estabelecimento comercial sejam boas, nem sempre os seus bastidores confirmam isso e até mesmo o manuseio dos alimentos está fora das especificações recomendadas pelas autoridades da Fiscalização Sanitária, o que, muitas vezes, prejudica o nosso organismo.

No comércio informal da alimentação, as carrocinhas que vendem sanduíches apresentam risco à nossa saúde. É perigosa, também, a venda de produtos do mar e de outros tipos de alimentação, através deste tipo de negócio pois, além dos produtos não serem de origem conhecida, ficam expostos ao sol, à poeira e sem uma refrigeração adequada, reduzindo sensivelmente o tempo de duração de sua qualidade. A venda de água e refrigerante em frascos pequenos aos passageiros dos ônibus e ocupantes dos automóveis, parados nos pontos e nos sinais, em época do verão, está

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crescendo e o manuseio dessas embalagens, pelo vendedor, também deixa a desejar. Nos supermercados também devemos tomar cuidados para não levar produtos fora do prazo de validade e latas amassadas, pois nesses casos, a qualidade do produto fica reduzida.

* * *

Desde que comecei a trabalhar, sempre almocei no serviço e, felizmente, sempre me dei bem com a comida que era preparada no restaurante da firma. Até mesmo quando o serviço foi terceirizado e a comida vinha congelada, não tive qualquer problema. O cardápio consistia de feijão, arroz e o prato do dia: carne assada, carne moída com macarrão, bife à milanesa, peixe, vatapá, purê de ervilha com língua defumada, dobradinha e como sobremesa vinha o tradicional queijo com goiabada e pudins variados.

Em casa, nossas refeições eram saudáveis e contavam regularmente com feijão, arroz, carne, massas e, com boa freqüência, dos ensopadinhos que até hoje são servidos. Um prato que marcou muito as mesas das famílias cariocas foi a “carne assada com macarronada”. Aos domingos, as famílias se reuniam para aqueles gostosos bate-papos dos homens, enquanto as senhoras colocavam a conversa em dia, principalmente o desenvolvimento das crianças nas escolas e suas artes.

Neste vai e volta do presente ao passado, estou me lembrando de uma poesia que retrata bem um prato gostoso que fazia parte constante do cardápio dominical da maioria das famílias brasileiras.

Carne assada com macarronada

DomingoFamília reunida

Em volta da mesaToalha branquinha

Que beleza!

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Família unidaQual a comida?

Carne assada com macarronada.Tinha até salada

Da cozinha o cheirinhoDa comida feita com carinho.

Qual a comida?Carne assada com macarronada.

O suco, o vinho, a cerveja,Não importados.

Só a alegria importavaO amor não se esgotava.

E a sobremesa?Era a alegria!

Compotas e aletria,Laranja, banana,

Manga, mamão.Tudo ali na mão

Muitas frutas com certezaQue beleza a nossa mesa!

Mas o progresso chegouO micro-ondas simplificou.

Já não se fazCarne assada com macarronada

Que massada!

Sobremesa?Industrializada.

E a família?

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Desintegrada,Simplificada.

Já não se faz maisCarne assada com macarronada

Nem salada.

O suco? a cerveja?Industrializadas

Ficaram enlatadas.

Resta no coraçãoA recordação,

Da família tão amada,Em volta da mesa

E da:Carne assada com macarronada.

Talvez,No fim da jornada,

Talvez no céuQue beleza,

Jesus reuna em sua mesaA família abraçada

Com certeza.

E para não faltar nadaHaverá uma surpresa:

Carne assada com macarronadaQue beleza!

(Josepha Barbosa Soares)

A poesia acima nos conduz a duas reflexões. A reunião familiar, tão tradicional, que acontecia nos encontros dominicais, aos poucos se dilui

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cada vez mais, pois os costumes modernos (compromissos imperiosos, trabalho, etc) terminam impondo a impossibilidade do comparecimento de todos neste ato de confraternização familiar. Outro aspecto importante da questão é a diminuição acentuada das casas com quintais e as novas moradias que estão surgindo estão cada vez mais reduzidas, destinadas a famílias cada vez menores e transformadas em apenas dormitórios.

Outro hábito na maioria dos lares brasileiros, principalmente os católicos, era a presença indispensável de um quadro retratando a “Ceia de Jesus com seus Apóstolos”, simbolizando a união da família, principalmente nesta hora tão sagrada que é a alimentação.

* * *

Como será no futuro o regime alimentar das pessoas? A modernidade está aí e a cabeça do ser humano é inesgotável quando procura descobrir algo em prol da população, mesmo que, para isso, às vezes resulte no sacrifício de alguns... Já há algum tempo, os soldados que combatiam na guerra recebiam um “kit” de alimentação para sobreviver em situações de extrema dificuldade. O mesmo já está acontecendo com os astronautas em seus vôos espaciais, onde, em reduzidos espaços, sobrevivem até seu retorno a Terra. Com a construção de estações orbitais, ou seja, plataformas de baldeação para novos planetas, o tempo de permanência dessas pessoas deverá aumentar. Até agora, a utilização de alimentos concentrados em forma de pílulas, que contém todos os ingredientes necessários à saúde, parece que satisfaz.

Os avanços tecnológicos estão chegando a uma boa parte da população do mundo, trazendo conforto e comodidade. Contudo, um grande contingente humano, jamais terá acesso a essas melhorias. O número de pessoas que passa fome no mundo é cada vez maior. No Brasil, este quadro não é diferente e, enquanto isto acontece, a quantidade de alimentos desperdiçados, desde o produtor até o consumidor, é enorme.

* * *

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Um fato interessante que ainda acontece quando ocorrem as reuniões dominicais é a distribuição da sobra do almoço ou jantar para os animais domésticos: cães, galinhas, gatos e até mesmo porcos. A reunião da bicharada em torno do alimento, cada um procurando sorver o mais rápido possível seu quinhão; às vezes, o mais bobinho fica a ver navios e a fome continua. Hoje, contudo, o tipo de alimentação para os bichos, já facilita e garante a ração constante para os mesmos, pois se apresentam na indicação correta para cada raça. Neste aspecto, os cachorros e gatos estão levando vantagem pois são considerados quase que um membro da família. Tenho uma irmã com problemas de saúde, sofre do mal de Alzheimer, que tem um animalzinho de estimação, recomendado pelo médico que a assiste.

Sempre tivemos animais em casa, mas no momento, só temos um canarinho belga, que já está na terceira idade. Sentimos muita pena dele, pois canta de tristeza por estar preso. Infelizmente já nasceu preso e soltá-lo agora será a sua morte. Ganhamos de um vizinho quando tinha pouco tempo de vida. É uma espécie destinada ao cativeiro, mas mesmo assim considero uma crueldade mantê-lo preso. Já tomamos uma decisão: quando ele falecer, não vamos ter animais em nossa casa. Temos duas tartarugas, uma com trinta e nove anos (a Fusquinha) e a outra com trinta e três (a Joinha), que estão na casa de Nicola e Conceição. As nossas tartarugas são primas de uma outra que lá vive há muitos anos. Elas se alimentam só de verduras e legumes e muitas vezes entram no estágio de hibernação e ficam semanas quietinhas num canto que nem parece que existem naquele quintal.

Atualmente, contribuímos mensalmente com a União Societária Protetora de Animais, na Ilha do Governador. Um dia, o filho viu uma pomba ferida na rua; recolheu-a e levou ao veterinário que a curou, mas, infelizmente, a bichinha não pode mais voar. Ficou algum tempo com ela, mas preocupado, pois este tipo de animal transmite doenças graves nos seres humanos, inclusive a cegueira. Quando viajou, a bichinha ficou aqui em casa, mas nos deixou a incumbência de colocá-la em uma organização que cuidasse dela e assim o fizemos, localizando uma senhora que cuida de vários animais domésticos: quinze cães e dezessete gatos, estes dentro de sua casa. Quando deixamos a pombinha naquele local, sentimos um aperto

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no coração, mas infelizmente não podíamos retê-la em nosso apartamento. Será que ainda vive? Até mesmo agora, quando escrevo esta parte do trabalho, sinto isto. Foi dura a separação de Jujuba, Cocada e Agatha, nossos cães de estimação, mas a vida continua!!!

* * *

Drupa – s.f. (Do lat. drupa, azeitona). Fruto carnoso, formado por apenas um carpelo, que contém só uma semente. A semente concresce com endocarpo e juntos formam o caroço (exemplo: pêssego, ameixa, azeitona, amêndoa).

O verde oliva da azeitona, mencionado acima, faz-me recordar o período de junho de 1953 a abril de 1954, quando servi ao Exército Brasileiro, no Regimento Floriano – 1º RO-105 na Vila Militar. Procurei servir da melhor maneira enquanto estava nesta obrigação militar, para retornar à vida civil de ficha limpa, o que felizmente aconteceu. Ainda guardo duas fotografias do grupo de colegas e também documentos em que meus superiores comentam o meu desempenho no período em que servi naquela unidade militar. No período em tela, graças a Deus, não houve nenhum movimento que perturbasse a ordem interna, a não ser uma ou outra escaramuça e nessas ocasiões nem saí do quartel. Que bom!

É um período da vida do rapaz que deve ser visto com carinho por cada um, pois o aprendizado dentro das forças armadas torna-o responsável para o resto de sua vida. É uma verdadeira escola de civismo.

Quanto à alimentação, deixava muito a desejar no seu preparo e variedade; mas, mesmo assim, atendia aos meus anseios, porquanto não tinha recursos financeiros para complementar minha dieta na cantina. Saía bem cedinho de casa para chegar à Vila Militar antes do café da manhã e aproveitar a chance, pois gostava muito do pão que era servido. O almoço, meio brabo, eu encarava com democracia e comia tudo. Achava que “saco vazio não fica em pé”. Lembro-me dos ensopados, principalmente, o de cenoura, cujo caldo era verde, pois cozinhavam com as folhas do produto. Quando vinha aipim, tínhamos que ter dentes fortes para traçar aquele alimento.

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Em datas festivas, lembrando acontecimentos importantes e heróis militares da nossa história, não vou negar, a comida era bem mais gostosa e até uma dose de pinga era servida.

Os exercícios eram bem puxados e deles nunca fugi, inclusive as marchas de 8, l6, 24 e 32 quilômetros que tínhamos que fazer, munidos de fuzil e mochila, com os equipamentos necessários para os acampamentos. Vi, às vezes, colegas desmaiando durante o trajeto e recolhidos pela ambulância que dava assistência à tropa. Só não participei de um desses exercícios porque me acidentei no trem que conduzia à Vila Militar, no dia 23 de agosto de 1953 (Dia de Maria Quitéria). Fui atendido no Hospital Guarnição da Vila Militar por recrutas. Imaginem que atendimento... Mas valeu. Hoje, com satisfação, ostento uma linha extra na palma da minha mão esquerda, dando um toque de bom acabamento ao “M” de Maria, mãe de Jesus, de melancia, melado, melão, maçã, mamão, marmelada, de Méier e muitas outras.

Foi um bom período da minha vida. Entrei como recruta, passei a soldado, depois cabo; só não cheguei a sargento porque o emprego aqui fora estava me aguardando. Tanto meus superiores, como meus colegas formaram um conjunto legal. Atualmente, as Forças Armadas estão recrutando moças para a caserna.

* * *

São quatro horas da manhã de 27 de outubro e, sem sono, meu cérebro começa a funcionar fazendo com que os pensamentos registrem inúmeros assuntos como um caleidoscópio. Entre eles este trabalho que estou realizando com um grupo muito seleto, composto de Myriam, Augusta, Zefinha, Mabel, Shirley, Renata e Alessandra. Faz-me sentir importante dentro do complexo cultural que é a UERJ. Em dado momento, abraço de leve Zefinha para não acordá-la, protegendo-a. Sinto-me também protegido. Ser sincero ao declarar que é protegido pela esposa é fazer justiça à mulher, que desempenha todos os magníficos papéis que herdou ao nascer. É muito bom ter a esposa ao lado para compartilhar nossa

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existência. Espero que papai do céu nos conserve juntinhos ainda por muito tempo.

* * *

Aproxima-se o dia 2 de novembro, dia de finados, neste dia, acompanho Zefinha e Conceição ao Cemitério de São Francisco Xavier, no Caju, para uma visita aos restos mortais de nossos familiares, o que fazemos há muitos anos. Neste momento, pensamos: é último capítulo de nossa vida. Quanto aos demais parentes e amigos, os recordamos, com saudade, com nossas orações.

É dia, também, de lembrar do Barão do Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos, estadista e historiador brasileiro que nasceu no Rio de Janeiro em 1845 e aqui faleceu em 1912), cujo túmulo está nas imediações. No Jardim do Méier há um monumento homenageando este grande brasileiro.

* * *

Madrugada de 28 de outubro – sábado. Movimento intenso no Sindicato do Chopp, um restaurante nas imediações de minha casa; se deixarmos as janelas abertas, mesmo dormindo, nos alimentaremos a noite toda com o aroma das comidas servidas.

Foi uma madrugada muito barulhenta devido à realização, na noite anterior, do jogo de futebol entre as equipes dos Clubes de Regatas Flamengo e Vasco da Gama, tradicionais no Rio de Janeiro. A partida foi vencida pelo Flamengo (4x0) e , depois do jogo, alguns dos seus torcedores vieram festejar, movidos pela alegria e pelo álcool.

Para gozar os torcedores adversários cantavam hinos debochados e entre eles um destacava o bacalhau que eu aproveito para inserir neste meu trabalho: muito apreciado pela carne e pelo óleo de seu fígado, rico em vitaminas A e D. Por isso, é tão pescado que poucos indivíduos atingem o desenvolvimento máximo. Em geral, aparece no mercado depois de seco e prensado.

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Nas nossas ceias natalinas, o bacalhau é muito apreciado, em forma de bolinhos e também na salada em que a batata, a azeitona e azeite contribuem para que este prato fique mais gostoso. Aqui no Rio de Janeiro temos o canal do Bacalhau, que fica entre a restinga da Marambaia e o continente.

* * *

Recebemos, hoje, a visita do Sr. Manoel, senhor de oitenta anos, para receber nossa contribuição para a União dos Cegos no Brasil, com sede no Encantado e que funciona desde 1924, onde se encontram trinta deficientes visuais. É um senhor bem alegre, atualizado e que tem muitas histórias para contar. Conversamos sobre riqueza e pobreza e ele citou que “Pobre é bicho de goiaba”, e então me lembrei que a goiaba, fruto da goiabeira, foi citada na reunião passada.

Interessante, esta semana, sinto-me fraco para colocar idéias no papel. Uma coisa está acontecendo: à medida que o programa avança, fica mais e mais aguçada a minha vontade de aprender sobre o nosso corpo, principalmente os órgãos ligados às funções digestivas. Acho maravilhoso quando pessoas dedicam anos de sua vida aprendendo a passar para os outros, a maneira correta de se alimentar, para ter uma vida saudável. No trabalho da Josepha de 23 de outubro, ela mencionou um almoço festivo no Rincão Gaúcho. Observei que uma Nutricionista, constantemente, se apresentava no salão, onde estavam sendo servidas as iguarias, para verificar se estavam em ordem para serem consumidas. Fiquei tranqüilo, tudo estava perfeito. Um prato que não me atrai muito em restaurante é a salada, pois já senti, em duas oportunidades, que o mesmo já estava ficando passado.

Coloquei no papel, nos mínimos detalhes, os órgãos encarregados da nossa alimentação, desde a boca até os intestinos, porém, achei que era demais, e que não acrescentaria muita coisa. Por isso risquei tudo, só aproveitando os nomes: então lá vai: boca, faringe, laringe, esôfago, estômago, fígado, pâncreas e intestinos. Corrijam-me se falei demais ou esqueci de mencionar mais algum órgão. Se o conjunto destes órgãos

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estiver em perfeita harmonia com o que comemos, ou seja, uma dieta saudável, eles funcionarão a contento por muitos e muitos anos.

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Na ocasião em que estava procurando as tais explicações, encontrei o seguinte: Boca-de-Forno. Brincadeira infantil em que são postas à prova a destreza e a coragem dos participantes, através de fórmula fixa:

Boca de forno?Forno.

Tirando o bolo?Bolo.

Farei tudo o que o mestre mandar?

Por falar em brincadeiras infantis, lembro-me que brinquei muito de “garrafão”, “carniça”, “pique-esconde”, “cabo de guerra”; para isto tínhamos um imenso quintal de uma casa de cômodos à Rua José Eugênio nº 23, ao lado da Quinta da Boa Vista. Nesta ocasião, a rua ainda não tinha calçamento. Lembro-me também que, quando chovia, eu percorria toda a extensão da rua e geralmente encontrava alguma moeda que possibilitava a compra de alguma guloseima no botequim de Dona Deuzina, especialmente as famosas cavacas.

* * *

Desde cedo, gostei muito de futebol. Quando comecei meus estudos primários, em 1944 no Colégio Salesiano do Jacaré, procurava chegar bem cedo ao colégio, antes das rezas, para poder participar das “peladas” em que a maioria dos alunos participava. Havia três campos de futebol que eram usados de acordo com a faixa etária. Sob os olhares vigilantes dos padres e seminaristas, a garotada corria a valer atrás da bola. Tocada a sineta para a entrada, era um avanço nas torneiras para lavagem dos pés e a recolocação dos calçados e que, muitas vezes, isto não era possível,

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devido ao rigor com que os padres exigiam no cumprimento dos horários regulamentares. Por causa deste esporte tão gostoso, dez anos mais tarde, ganhei três parafusos de platina no punho esquerdo, que até hoje fazem parte do meu esqueleto.

Foi um período doloroso para mim, pois além de duas intervenções cirúrgicas, na segunda fiz companhia a um menino, de pouco mais de um ano, que precisava ser operado numa das pernas para ficar no mesmo tamanho da outra. Sua cama ficava mais alta nos pés e sua perninha mais curta ficava presa a um peso de cinco quilos, preparando para dita cirurgia. A criança ficava muito impaciente e sofria muito e sem nenhuma companhia, ele se agarrava em mim, como um protetor. Até hoje, aquele quadro é emociona. Hoje, acredito que a medicina tenha outra forma de resolver casos como este.

* * *

Hoje pela manhã, no programa Bom Dia Brasil, da TV Globo, vimos a entrevista da Myriam, aluna da UnATI, sobre os riscos que cercam as pessoas de idade dentro de nossas próprias casas. A reportagem acabou focalizando uma casa especialmente construída para pessoas "jovens" como nós, onde o construtor pensou nos mínimos detalhes para termos mais conforto e segurança.

Emoção. Assim começo o trabalho desta semana, após assistir na Segunda Edição do Bom Dia Rio, a última reportagem em que foram focalizados alguns deficientes físicos se aprimorarem em Dança de Salão, orientados pelo grande dançarino Carlinhos de Jesus. Não há barreiras quando se tem muita força de vontade e dedicação, mesmo para pessoas impossibilitadas de se locomoverem normalmente.

* * *

Bem. Não preciso dizer qual foi o nosso almoço desta segunda-feira. Só que houve uma pequena diferença, ou seja, uma tentação. Isso mesmo, não resistimos ao desejo de tomar um traguinho do licor Frangelico, um

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brinde de nossa sobrinha quando veio aqui em casa. Dividimos uma dose, bem comportada, e creio que não chegou a fazer mal, a não ser umas quenturas pelo corpo. No jantar repetimos o pecado e houve uma surpresa: a Zefinha preparou, como sobremesa, um gostoso arroz-doce, coisa que não fazia ha bastante tempo.

* * *

Para registrar um fato que me ocorreu há muitos anos. Fui visitar um irmão que residia em Suruí, Distrito de Magé, e sua casa ficava em meio a um quintal com inúmeras árvores frutíferas, inclusive um frondoso abacateiro, que gentilmente estava oferecendo os frutos que produzira. Sem hesitar, subi naquela árvore, em busca de alguns abacates para oferecer à minha namorada, e assim ganhar alguns pontos perante sua família. Só não contei, na ocasião, com uma residência de marimbondos que, sem pena atacaram e ferroaram o intruso carioca. Resultado: quando cheguei à casa da Zefinha, estava meio irreconhecível, principalmente nos lábios, o que foi hilariante, apesar dos cuidados que fez para não me magoar. Naquela noite, quase não pude falar, nem beijar a minha amada. São coisas da vida.

Há uma fruta que, nos grandes centros urbanos, como os animais, são consideradas extintas pela redução, cada vez mais freqüente, de casas com quintais. Por isso, a título de recordação dos saudosos tempos que não voltam mais, lembrarei do Abricó. Para ser franco, não me lembro se comi esta frutinha algum dia; e, se comi, não me lembro do gosto que tem.

* * *

Terminando o meu trabalho desta semana, hoje (20 de novembro), comi uma comidinha bem gostosinha preparada pela Zefinha, composta de feijão, arroz, uma farofinha supimpa e uma gostosa roupa velha (roupa velha: carne assada desfiada, passada na frigideira). Estava muito gostoso este almoço bem simples. Como sobremesa: maçã.

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Sexta-feira é o dia em que, nas imediações de onde residimos, as pessoas se dirigem aos bares, lanchonetes e restaurantes para, depois de cinco dias de trabalho, praticarem uma boa dose de descarrego emocional para suportar a pressão a que são submetidas. O “baixo Méier”, impropriamente denominada a área do centro do nosso bairro, pelo Projeto Rio Cidade – numa infeliz alusão ao “Coração do Méier” – fica em reboliço. Muitos aniversários são comemorados entre colegas e amigos, e às vezes, os pais ficam em casa chupando dedo, aguardando o filho ou a filha aniversariante. São coisas do modernismo.

Aproveitando este embalo, eu e a Zefinha fomos até à galeria do Imperator, onde está montada uma feira comercial, que vai até o Natal, e tomamos duas porções de vinho do Rio Grande do Sul, da marca Graviollo, acompanhadas de uns bolinhos de bacalhau. Tanto o vinho como os bolinhos estavam gostosos e ao sairmos dali, tivemos que caminhar um pouquinho, pois estávamos um tanto alegrinhos. Não foi uma refeição normal, mas valeu. Para arrematar a noite, tomamos um bom copinho de leite desnatado e fomos deitar. Foi um fim de noite alegre e diferente.

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Hoje foi a última reunião do grupo Alimentação e Memória. Como as outras, esta foi uma manhã bem gostosa. Fomos para o encontro, munidos de garrafa térmica, xícaras, colheres, açúcar, saches de chá, guardanapos, toalha e biscoitos. Foi uma confraternização de encerramento das aulas muito doce. Só faltaram as bolachinhas de água e sal... A colega Augusta não pode comparecer, em virtude de uma fratura no ombro esquerdo, devido a uma queda em sua residência. Com Mabel, Shirley, Myriam, Zefinha e eu, compusemos o grupo que no decorrer das reuniões semanais, vamos colocando no papel, passagens de nossa vida dentro do tema: Alimentação.

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