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RETA FINAL ANALISTA E TÉCNICO TRF– Direito Civil – Gustavo Nicolau 1 RETA FINAL ANALISTA E TÉCNICO TRF Disciplina: Direito Civil Prof. Gustavo Nicolau Material para as aulas exclusivamente online MATERIAL DO PROFESSOR OS NEGÓCIOS DESEQUILIBRADOS E SUA INVALIDADE. A LESÃO E O ESTADO DE PERIGO GUSTAVO RENE NICOLAU Advogado em São Paulo. Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Civil da FAAP, de cursos de pós-graduação lato sensu e da Rede de Ensino LFG. Livros publicados pela Editora Atlas. 1. O elemento vontade nos negócios jurídicos. 2. Vontade manifestada. 3. Socialidade. 4. Negócios desequilibrados. 5. Estado de perigo. 6. Lesão. 7. Invalidade do negócio praticado sob Lesão ou Estado de Perigo. 8. Direito potestativo de anular o negócio. 9. Conclusões. Bibliografia 1. O ELEMENTO VONTADE NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS Por detrás de toda a disciplina dos defeitos do negócio jurídico, sob o véu de todas as sanções que os defeitos podem acarretar está a preocupação do legislador com o elemento vontade. É este elemento subjetivo que se esconde por detrás de todos os negócios e que leva o cidadão a praticá-los sob diversas formas. A vontade ocupa uma posição de destaque na escala ponteana, pois é um requisito fundamental para que o negócio possa existir. Ao lado da vontade, agente e objeto complementam a tripartição necessária para que o primeiro plano do negócio surja. Daí para o negócio ganhar validade só resta adjetivar cada um dos elementos da existência. Desta forma, o agente deverá ser capaz, o objeto lícito e a vontade se manifestar dentro da forma que a lei exigiu. Para ganhar eficácia só basta examinar o caso concreto e pesquisar se nele houve alguma condição suspensiva ou termo inicial, que lhe subordine os efeitos. Caso contrário, os efeitos fluem do negócio com o beneplácito do ordenamento. Os defeitos do negócio jurídico operam justamente no segundo plano desta famosa escala. Tanto é verdade que em se verificando algum deles a macular um negócio, a sanção será a nulidade relativa do mesmo, o que nos faz concluir imediatamente que o problema reside na sua validade. A questão que surge de imediato envolve saber como pode tecnicamente ser considerado anulável um negócio defeituoso sendo que o agente era capaz, o objeto lícito e a forma utilizada foi a prescrita em lei. A resposta está no fato de que ao lado de tais famosos requisitos de validade um outro muito importante se esconde e não vem expressamente previsto na lei. Trata-se da exigência do sistema de que a vontade seja livre, esclarecida e ponderada, o que não acontece quando algum defeito do negócio entra em cena e o que será demonstrado no transcorrer deste artigo. 2. VONTADE MANIFESTADA Mesmo diante de um defeito do negócio jurídico, como o dolo, v.g., não há divergência entre o querer do agente e o que ele de fato manifestou. Ocorre que há um vício na formação da vontade do agente,

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RETA FINAL ANALISTA E TÉCNICO TRF Disciplina: Direito Civil Prof. Gustavo Nicolau Material para as aulas exclusivamente online

MATERIAL DO PROFESSOR

OS NEGÓCIOS DESEQUILIBRADOS E SUA INVALIDADE. A LESÃO E O ESTADO DE PERIGO

GUSTAVO RENE NICOLAU

Advogado em São Paulo. Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Civil da FAAP, de cursos de pós-graduação lato sensu e da Rede de Ensino LFG. Livros publicados pela Editora Atlas. 1. O elemento vontade nos negócios jurídicos. 2. Vontade manifestada. 3. Socialidade. 4. Negócios desequilibrados. 5. Estado de perigo. 6. Lesão. 7. Invalidade do negócio praticado sob Lesão ou Estado de Perigo. 8. Direito potestativo de anular o negócio. 9. Conclusões. Bibliografia 1. O ELEMENTO VONTADE NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

Por detrás de toda a disciplina dos defeitos do negócio jurídico, sob o véu de todas as sanções que os defeitos podem acarretar está a preocupação do legislador com o elemento vontade. É este elemento subjetivo que se esconde por detrás de todos os negócios e que leva o cidadão a praticá-los sob diversas formas.

A vontade ocupa uma posição de destaque na escala ponteana, pois é um requisito

fundamental para que o negócio possa existir. Ao lado da vontade, agente e objeto complementam a tripartição necessária para que o primeiro plano do negócio surja. Daí para o negócio ganhar validade só resta adjetivar cada um dos elementos da existência. Desta forma, o agente deverá ser capaz, o objeto lícito e a vontade se manifestar dentro da forma que a lei exigiu.

Para ganhar eficácia só basta examinar o caso concreto e pesquisar se nele houve alguma

condição suspensiva ou termo inicial, que lhe subordine os efeitos. Caso contrário, os efeitos fluem do negócio com o beneplácito do ordenamento. Os defeitos do negócio jurídico operam justamente no segundo plano desta famosa escala. Tanto é verdade que em se verificando algum deles a macular um negócio, a sanção será a nulidade relativa do mesmo, o que nos faz concluir imediatamente que o problema reside na sua validade.

A questão que surge de imediato envolve saber como pode tecnicamente ser considerado anulável um negócio defeituoso sendo que o agente era capaz, o objeto lícito e a forma utilizada foi a prescrita em lei. A resposta está no fato de que ao lado de tais famosos requisitos de validade um outro muito importante se esconde e não vem expressamente previsto na lei. Trata-se da exigência do sistema de que a vontade seja livre, esclarecida e ponderada, o que não acontece quando algum defeito do negócio entra em cena e o que será demonstrado no transcorrer deste artigo. 2. VONTADE MANIFESTADA Mesmo diante de um defeito do negócio jurídico, como o dolo, v.g., não há divergência entre o querer do agente e o que ele de fato manifestou. Ocorre que há um vício na formação da vontade do agente,

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que já nasce com uma mácula por ter ocorrido uma distorção em seu elemento formador. Assim, a vontade íntima será exteriorizada da mesma forma como é imaginada, mas nascerá de forma defeituosa. Márcio Kammer de Lima sustenta no mesmo sentido: Elemento externo e elemento interno da declaração negocial coincidem, mas há anomalia no processo volitivo. Trata-se de perturbações do processo formativo da vontade, operando de tal modo que esta, embora concorde com a declaração, é determinada por motivos anômalos e valorados, pelo direito, como ilegítimos. Nos vícios da vontade, o problema não está na própria formulação [...] senão na formação da vontade.1

Desta forma, o agente que adquire um quadro falsificado, pensando ser de famoso pintor alemão,2 age com manifesta vontade de produzir o negócio jurídico. De acordo com as informações que possui e dentro da realidade vivida, a aquisição da obra é exatamente o desejo do agente. O problema é que tal vontade não nasceu esclarecida porque se o fosse, ele jamais adquiriria o objeto. Atinge-se assim o plano da validade do negócio jurídico e ele é tido como anulável, pois contaminado pelo defeito do negócio jurídico denominado Erro. Há perfeita sincronia entre o elemento interno e o externo. Defeituosa é a origem desta vontade que não é livre, esclarecida ou ponderada.

Uma hipótese (que não se refere a vício do consentimento) em que há divergência entre o

que foi declarado e a vontade real da parte ocorre na simulação. Assim, querendo intimamente doar uma casa à sua amante, o homem simula um contrato de compra e venda.

3. SOCIALIDADE

Um dos princípios do Código Civil foi a socialidade3. O Código procura regulamentar e forçar não o cumprimento cego do que foi assinado em contrato, mas sim trocas justas e razoáveis, atendendo os fins éticos e o senso comum das pessoas que buscam inconscientemente o justo e o ponderado. A pacta sunt servanda, por si só, já não atende a necessidade do III milênio.

A popularmente chamada “Lei de Gérson” foi revogada pela visão social de Miguel Reale, que concluí: “Estabelecidos esses princípios, não foi mais considerada sem limites a fruição do próprio direito, reconhecendo-se que este deve ser exercido em benefício da pessoa, mas sempre respeitados os fins ético-sociais da comunidade a que o seu titular pertence. Não há, em suma, direitos individuais absolutos”.4

O art. 478 do Código Civil é prova disso, possibilitando a revisão e até resolução do contrato na hipótese de “a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra”. É a mesma idéia do art. 473 do CC português.

O principal é perceber que além da autonomia privada, há a Justiça. Tratando de uma situação semelhante, o Código de Hamurabi estabelecia: “Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta d’água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano”. 5

O art. 422 do Código também revela essa idéia de socialidade do contrato, ao preconizar o respeito aos ditames da boa-fé objetiva e às implicações daí oriundas, tais como os deveres anexos e a limitação ao exercício de direitos subjetivos. Na mesma esteira caminha o art. 187, que equipara o direito exercido de modo abusivo a um ato ilícito. Ruy Rosado de Aguiar considera esta a cláusula mais rica do projeto no campo dos direitos obrigacionais.6

4. NEGÓCIOS DESEQUILIBRADOS

1 LIMA, Márcio Kammer. Vícios da declaração e vícios da vontade nos negócios jurídicos. Os defeitos do negócio jurídico no regime do novo Código Civil, p. 38. 2 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível 3.063/96 – 7.ª Câm., rel. Gustavo Adolpho Kuhl Leite, j. 25.06.1996. 3 Jornal O Estado de São Paulo. REALE, Miguel. Espírito da nova lei civil, Caderno A, p. 2. 4 Idem, ibidem. 5 PASQUALOTO, Adalberto. A boa-fé nas obrigações civis, p. 133. 6 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil. As obrigações e os contratos, p. 23.

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Decorre dessa idéia de justiça, equilíbrio e bom senso os defeitos do negócio que serão agora analisados. Tanto a lesão quanto o estado de perigo apresentam em comum o fato de apresentarem um negócio desproporcional, mas que já nasceu assim, devido a um só fato: a vontade do agente prejudicado não era ponderada naquele momento. Ao Direito não cumpre obedecer a letra fria do contrato, mas sim, tentar amoldar tal letra aos princípios de justiça e equidade. "Em outras palavras, o contrato é também instrumento do bem comum, de modo que somente se enquadra na sua função social o contrato que, sendo útil, é também justo".7

Três principais entre os defeitos da lesão e do estado de perigo e as disposições que tratam sobre a resolução por onerosidade excessiva (art. 478) podem ser apontadas. Naqueles, o negócio nasce desequilibrado por conta da necessidade que assola o prejudicado, enquanto neste as cláusulas são razoáveis, mas tornam-se desproporcionais com o passar do tempo e por circunstâncias imprevisíveis. Outra diferença reside no fato de a lei prever a anulabilidade para estes e a resolução do contrato para aqueles. Por fim, só se fala em resolução por onerosidade excessiva nos contratos de trato sucessivo, exigência que não se faz para a lesão e o estado de perigo.

Vale ressaltar que tanto na lesão quanto no estado de perigo haverá um negócio desequilibrado. A diferença entre eles reside no motivo que levou uma das partes a aceitar tal descompasso entre o que se oferece e o que se cobra. 5. ESTADO DE PERIGO

O aspecto fundamental do estado de perigo é a necessidade de salvar a si própria ou a pessoa de sua família. Quer parecer que a situação do estado de perigo é mais aflitiva do que a lesão, em que há apenas uma necessidade ou inexperiência. O parágrafo 138 do Código Civil alemão trata de situação muito parecida com o estado de perigo, proibindo a prática daquele que se aproveita da situação aflitiva de outrem.

Numa situação tão delicada e perigosa, a vontade da pessoa obviamente não surgirá de

maneira livre, desembaraçada. A busca por sua integridade sobrepõe-se a qualquer raciocínio consciente e coerente da parte que paga muito além do que normalmente lhe seria cobrado.do que poderia normalmente oferecer. Há na verdade um “temor de grave dano moral ou material à pessoa ou a algum parente seu que compele o declarante a concluir contrato, mediante prestação exorbitante”.8

O estado de perigo apresenta uma relevante distinção com a coação. É que nesta, o perigo

que leva a parte a praticar o negócio foi criado justamente por quem se beneficia dela. É o que ocorre com o mal intencionado, que ameaça de morte a vida do cidadão a fim de que ele pratique determinado negócio. O perigo de morte foi causado justamente pelo coactor.

No estado de perigo o agente doloso não cria a situação de risco, mas dela se aproveita. A torpeza envolvida no fato de se aproveitar da situação de perigo equivale a causar o perigo, como já preconizado desde Ulpiano (D., L. IV, T. II, Lei IX, § 1.°).9

Tereza Ancona Lopes10 traz outros exemplos de estado de perigo: “[...] a hipótese daquele que, assaltado por bandidos, em lugar ermo, se dispõe a pagar alta cifra a quem venha livrá-lo da violência; ou também do doente que concorda com os altos honorários exigidos pelo cirurgião ou da mãe que promete toda a sua fortuna para quem lhe venha salvar o filho, ameaçado pelas ondas ou de ser devorado pelo fogo”.

Todavia, se a lei se preocupa com o prejuízo da vítima, deveria também lembrar que muitas vezes houve um trabalho, um serviço oferecido pelo agente de má-fé e permitir que a vítima do estado de perigo simplesmente anule o negócio posteriormente implicaria em enriquecimento sem causa por parte deste, o que também não é razoável. Como fez na lesão (art. 157 § 2.°), o Código deveria prever um dispositivo que possibilitasse a revisão do negócio, com a mera diminuição da desvantagem apresentada. A utilização analógica do art. 157 § 2° asseguraria trocas úteis e justas no contrato. Com

7 NERY JÚNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil – apontamentos gerais, p. 425. 8 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria geral do direito civil, p. 401. 9 Apud LOPES, Tereza Ancona. O estado de perigo como defeito do negócio jurídico, p. 52. 10 LOPES, Tereza Ancona. O estado de perigo como defeito do negócio jurídico, p. 51.

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isso, atenua-se a desvantagem experimentada pela vítima sem a necessidade de anular o negócio. É o que faz o art. 1.450 do CC italiano. 6. LESÃO

Muito parecida com o estado de perigo, a lesão tem como característica principal a inexperiência ou a necessidade de uma pessoa em praticar determinado negócio, nem que para isso seja preciso oferecer uma quantia totalmente desproporcional ao que foi fornecido pela outra parte.

Instituto semelhante foi introduzido na década de 1950 em nosso país, na lei de Economia popular (art. 4°, alínea b). A lei 8.078, de 1990 (art. 6°, V) também proibiu a vantagem manifestamente excessiva de uma das partes, em um claro aceno social e ético de conduta entre fornecedor e consumidor.

O Código Civil português de 1966 previu a lesão sob a denominação de usura, dispondo no art. 282 ser anulável o negócio jurídico quando alguém: “explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados".11

O Código Civil traz a lesão para o âmbito civil, prevendo a possibilidade de anulação dos negócios assim viciados, mesmo quando ocorressem entre pares de uma civilização. A desproporção entre o cobrado e o oferecido é o primeiro requisito, independendo de maiores investigações para sua verificação. Basta que se demonstre que o valor pago foi manifestamente desproporcional ao valor normalmente praticado pelo mercado, não havendo uma fração para designar tal desproporção. Assim como em Portugal, “só haverá benefícios excessivos ou injustificados, quando, segundo todas as circunstâncias, a desproporção ultrapassa os limites do que pode ter alguma justificação”.12

Tal divergência de valores deve ser aferida segundo os valores da época do contrato. Logo, eventuais distorções por conta de desvalorização ou oscilação mercadológica não podem influenciar na configuração do defeito.

A par desta desproporção o Código ainda impõe que o negócio tenha se realizado por conta de um dos seguintes motivos: necessidade ou inexperiência. Só a prova de tais situações – somadas ao desequilíbrio ínsito de um negócio viciado – é que permitirão o sucesso em ação anulatória. Na primeira hipótese a lei deixa nas mãos do juiz a tarefa de investigar a considerável falta de traquejo comercial da vítima. É o caso da jovem moça que – tendo perdido seus pais muito cedo – aliena o imóvel herdado por um preço muito abaixo do que o mercado poderia lhe oferecer. A vontade dela existe, é livre, mas não é esclarecida, o que é suficiente para macular o negócio. Tratando sobre o direito português, Mota Pinto estabelece a semelhante estrutura subjetivo-objetiva dos requisitos da lesão, que naquele país leva o nome de usura: “Emprega-se para definir a figura uma formulação objectivo-subjectiva, cujo elemento objectivo é apreciado não por um critério matemático rígido [...] e cujos elementos subjectivos são dois: a) a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependencia, estado mental ou fraqueza de carácter em que se encontra a vitima do acto lesivo; e b) a exploração dessas situações”.13

Destaca-se ainda que há uma sutil diferença entre o perigo do art. 156 e a necessidade do art. 157. Ocorre que naquela, a vítima procura se salvar ou alguém de sua família. Pode-se imaginar casos mais graves, como m seqüestro, uma emergência hospitalar que fazem com que a vítima celebre contrato de mútuo a taxas e condições absolutamente leoninas. Perceba que o bem tutelado é a integridade psíquica e física do agente. Já na lesão há uma necessidade que deve ser premente, mas que não chega a ponto de envolver a integridade da vítima. O famoso exemplo é esclarecedor. Imagine um aflito agricultor que – ciente da praga que toma conta dos arredores de seu sítio isolado – procura o único vizinho que dispõe do inseticida capaz de solucionar o problema. Este, por sua vez, cobra valor muito acima do mercado. Caberia então ao agricultor buscar a anulação do negócio com base na lesão sofrida, visto que sua vontade não foi ponderada.

Salutar em nosso ponto de vista a orientação do Código Civil, no sentido de não se exigir da parte lesada a dificílima prova de que sua necessidade era conhecida pela outra parte. Tal exigência praticamente aniquilaria o instituto pois a prova seria um sério entrave ao seu implemento.

11 PORTUGAL. Código Civil. Decreto-lei 47.344, de 25 de novembro de 1966. 12 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil, p. 533. 13 Idem, ibidem, p. 502.

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“Não há necessidade de provar-se a má-fé da parte beneficiada, como se cogitava anteriormente, pois o art. 157, sob comentário, criou essa nova figura de lesão como vício da manifestação da vontade, que torna, portanto, anulável o negócio jurídico por ela maculado”.14

Encerrando as disposições sobre a lesão, o Código Civil ainda insere um segundo parágrafo ao art. 157 possibilitando a manutenção do negócio desde que a desproporção seja reduzida. Na prática isso significa uma revisão do contrato, que pode ocorrer de duas formas. Na primeira, a parte lesada foi quem vendeu a um preço muito abaixo do mercado, podendo então o beneficiado “oferecer suplemento suficiente”. Na segunda forma a parte beneficiada concorda com a devolução parcial das quantias recebidas. É um dispositivo útil e que pode servir analogicamente ao instituto do estado de perigo a fim de evitar a anulação do mesmo.

7. INVALIDADE DO NEGÓCIO PRATICADO SOB LESÃO OU ESTADO DE PERIGO

Como já mencionado, o negócio praticado sob lesão ou estado de perigo envolve a violação da ponderação na formação da vontade do agente e isso nos leva ao segundo plano da escala ponteana que é justamente a validade do negócio. Não por acaso a conseqüência do negócio assim viciado é o artigo 171 do Código Civil. Tal qual a previsão do art. 1.560 do Código Civil uruguaio, todos os defeitos do negócio jurídico (erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo) estão sujeitos ao regime da anulabilidade, daí decorrendo todos os seus consectários. Desta forma, o juiz não pode suscitar tal hipótese de ofício e somente as partes interessadas poderão alegá-la; sua confirmação pode ocorrer de modo expresso e tácito e, findo o prazo legal, decai o direito de anulá-las.

A conseqüência da decretação de nulidade – mesmo nos negócios anuláveis e não nulos - é o de fazer as partes retornarem ao estado anterior à prática do negócio jurídico. É equivocado sustentar que os efeitos são ex nunc. Não seria razoável pensar que uma locação mantida durante dez meses sob violenta coação pudesse ser anulada apenas a partir da sentença. Todo o negócio está viciado e nenhuma parte dele poderá ser mantida, sob pena de se prestigiar a torpeza.. Bem faria o legislador pátrio se repetisse a disposição prevista no art. 289, n. 1 do CC português: “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.

8. DIREITO POTESTATIVO DE ANULAR O NEGÓCIO

O direito que a parte tem de anular o negócio jurídico é daqueles chamados potestativos. Ocorre quando não há – juridicamente – como a outra parte violar o direito do titular. Configurada a situação que fez surgir o direito potestativo, a outra parte está – tecnicamente – no estado de sujeição e limita-se a submeter-se a seus efeitos.

Se não há como violar tais direitos, é certo que deles não deflui nenhuma pretensão. É por esse motivo que na decadência, o que causa insegurança na sociedade não é a pretensão, é o próprio direito que – exatamente por isso – já nasce com ‘período de validade’ para ser exercido. É por isso que se houver algum prazo nos direitos potestativos, estes serão necessariamente decadenciais. Transcorrido este lapso, o direito em si é atingido mortalmente (MAGISTRATURA/PB – 1998). Com isso atinge-se uma certeza jurídica que vai de encontro aos anseios de segurança e estabilidade social. No caso da anulação do negócio jurídico por conta da lesão ou do estado de perigo, o prazo decadencial estabelecido pelo Código é de quatro anos.

Não podemos esquecer ainda que alguns direitos potestativos não têm prazo para serem exercidos, como por exemplo, o do mandante em desconstituir seu mandatário ou o do condômino de desfazer a comunhão.

9. CONCLUSÕES

O Código Civil de 2002 traz uma série de dispositivos pouco visíveis até agora pela doutrina

que muitos benefícios trarão à vida do cidadão. Engloba em seu contexto uma série de saudáveis princípios e balisas sociais e éticas que levaram séculos para serem construídas. A socialidade – tanto mencionada por Miguel Reale – é um desses atributos do Código, que em diversas ocasiões é justo e equilibrado, preocupando-se mais com o bom senso e com a razoabilidade do que com a letra fria de um contrato.

14 AZEVEDO, Álvaro Villaça, cit., p. 237.

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A visão limitada antiquada e inadequada da pacta sunt servanda não mais atende as necessidades de um novo tempo marcado pelo fim das fronteiras, pelo dinamismo nas relações e – sobretudo – pela raridade nos contratos igualitários e com amplas discussões de cláusulas e condições. Não seria realista o Código se presumisse que todos os civis são iguais e que seus contratos foram livremente estabelecidos pelas partes. Há um desequilíbrio entre os contratantes e o Código tenta atenuar tais diferenças mediante mecanismos que contenham o enriquecimento com base na necessidade e na inexperiência alheia.

Nesse contexto apresentam-se os artigos 421 e 422 que – em poucas linhas – trazem enormes valores como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Aquela a desempenhar uma visão equânime e razoável do contrato que é a propriedade circulante e esta a trazer um padrão de conduta probo e íntegro entre as partes contratantes. Apresentam-se ainda os artigos 317 e 478 a prever reajustes ou resoluções de contratos desequilibrados que assim se tornaram por conta do tempo e por circunstâncias supervenientes. Assim se mostra apto também o art. 187 que prevê a necessidade de o direito ser exercido de modo razoável e não de modo abusivo, o que caracterizaria um ato ilícito. Poderia se falar também no art. 330 e no art. 174, que trazem exemplos da proibição da parte em agir de modo contrário ao que já vinha fazendo no transcorrer de um contrato, típica aplicação do princípio que proíbe a parte de venire contra factum proprium.

Ao que parece, a lei fez sua parte. Mas ela é apenas um dos elementos na construção do Direito. Doutrina e a jurisprudência também devem perceber a evolução legislativa em inúmeros aspectos e sua adequação social e econômica aos novos tempos. Se assim o fizerem, certamente se dará um passo importante rumo a um país que queremos, mas acima de tudo, um país que merecemos.

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