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  • NARRATIVAS

    Para manter-se fiel ao seu compromisso com os intelectuais negros e negras, a Revista Palmares-Cultura Afro-Brasileira elegeu como temtica central desta edio uma das expresses mais caractersticas da juventude negra contempornea: o Movimento Hip-Hop. Este tema est presente na seco Idias, na seco Fala Negra, no Ensaio Visual, nas Resenhas e no Mosaico. A mulher negra est igualmente em destaque na Entrevista com a Makota Valdina Pinto (capa), nos Ensaios e na seco Prolas Negras, em que homenageada a nossa escritora Carolina de Jesus.

    Este segundo nmero beneficiou-se dos comentrios crticos de vrios leitores e, especialmente, do nosso Conselho Consultivo. Algumas mudanas foram introduzidas na apresentao grfica, sem contudo comprometer a identidade visual da revista. A seco Ax de Fala foi rebatizada como Fala Negra, em ateno s ponderaes de que o primeiro ttulo referia-se a um momento ritual do Candombl e, por isso, deveria ser poupado de uma banalizao. Na seco Literatura e Arte, as matrias foram reagrupadas em dois grandes blocos: Narrativas e Poesia.

    Esperamos continuar a merecer a ateno e a crtica de todos os leitores, de modo a termos nesta revista um espao de qualidade, aberto a todas as expresses das letras e das artes negras.

    Ubiratan Castro de ArajoEditor-chefe.

  • Ana Lcia Souza

    Waldemir Rosa

    Nelson Maca

    Ademiro Alves (Sacolinha)

    Jnatas Conceio

    Cidileide Silva

    Srgio Vaz

    Grupo Anastcias

    Hlio de Assis

    Cludia Schapira

    Elizandra Souza

    Ivanildo QueirozLia Vieira

    Hamilton Borges Wal

    Helton Fesan

    Cidinha da Silva Jaime Sodr

    Eustquio Rodrigues

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  • Prolas Negras

    Articuladoras e Articuladores da Campanha Reaja ou ser morto! Reaja ou ser morta!

    Vilson Caetano de Souza Jnior

    Rivas e Lance

    Valdina Pinto

    Marco Dipreto

    Reconhecimento pela arte em favor da incluso social

    O cinema de Zzimo Bulbul

    Jean Carlos Ferreira Santos

    Deise Benedito

    Florentina Souza

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    Ana Beatriz Gomes 74

    Maringela Andrade 73

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  • Nelson Maca

    O que o Movimento Hip Hop? Seria apenas mais um modismo, ou ainda uma expresso de rebeldia juvenil? Como entender este novo repertrio de saberes, fazeres e viveres praticados por jovens negros habitantes das periferias das metrpoles ocidentais? Uma das formas de criar uma interlocuo afirmativa com rappers, grafiteiros, djs e outros manos e minas abrir o espao da Revista para que eles se manifestem. Nesta seco, apresentamos as idias de trs intelectuais negros que vivenciam intensamente este movimento, que so a sociloga Ana Lcia Souza, o professor de literatura e poeta Nelson Maca, o antroplogo Waldemir Rosa. Deixemos que repercutam em nossas cabeas as palavras que cortam, as imagens e os sons que sobressaltam, os corpos em movimento que estonteiam. Estas so as armas de liberdade de uma juventude negra militante da resistncia negra.

    Militante do Movimento Hip Hop na Bahia; pesquisador musical e professor de Literatura do Instituto de Letras da Universidade Catlica de Salvador; produtor cultural, poeta e autor do livro Gramtica da Ira (Indito).

    o negra no movimen-to que se faz perceber no pas pelos diversos painis estampados nas paredes e muros, pelos grupos de dana que, ao modo das rodas de capoeira, se apre-sentam nas ruas, e, princi-palmente, pela experin-cia da msica que atualiza o discurso de Brasil. Tanto no plano local, como mun-dial, trata-se de linguagens j percebidas e valorizadas pelas mdias,por estudos acadmicos, pelas orga-nizaes polticas e civis e, tambm, pela indstria cultural, estruturando o que chamamos, quando verdadeiro, de Mercado Negro.

    Uma cultura 4 ele-mentos

    A cultura hip hop re-presenta para ns, afro-brasileiros, mais uma oportunidade de diverso, ao mesmo tempo que for-talece nossos laos iden-titrios, atualizando-os com as experincias da contemporaneidade. Valo-riza linguagens artsticas de concepes esttica e temtica que envolvem os elementos presentes no dia-a-dia da comunidade preta, de forma crtica, atuante e, sobretudo, bela. So manifestaes das ar-tes plsticas, da dana e da msica. H uma participa-

  • Hip hop baianidades

    Na opinio de pensado-res como o saudoso Milton Santos, o movimento hip hop nacional divide com o dos Sem Terra o que h de mais expressivo e abran-gente na discusso de nossa realidade social, bem como na prtica voltada para as

    intervenes necessrias. A cultura hip hop funda-se na participao majoritria de jovens que buscam se expressar atravs de lin-guagens artsticas de rua. No hip hop de forma geral, e na Bahia com muita evi-dncia, essas linguagens esto organicamente atrela-das ao trabalho social. J tradicional o encontro arts-tico em aes que buscam a discusso, preservao e construo da cidadania em

    atividades internas ou aber-tas comunidade. Apesar do destaque social e midi-tico dado ao rap, nos even-tos de nosso coletivo de hip hop, Blackitude, faz-se in-dispensvel a presena do grafite, do break e do dj, em performances realizadas si-multaneamente, e com po-sicionamento crtico.

    Salvador conta com de-zenas de grupos de rap envolvidos em projetos ou atuando de forma indepen-dente. Ocupam espaos al-ternativos em eventos que bem lembram os ensaios dos jovens blocos afro no incio da dcada de oiten-ta. Um rpido passeio pela cidade, principalmente nas zonas perifricas, o bas-tante para se observar os diversos murais grafitados, com ou sem a participao

    governamental. Na maioria das vezes, com a autoriza-o, e at mesmo convite dos respectivos propriet-rios, que j compreendem a diferena esttica, ideol-gica e legal entre grafite e pichao. Alis, tornou-se uma estratgia evitar as pi-chaes atravs da grafi-tagem. Em alguns pontos da cidade, os danarinos estabelecem suas rodas de break ao modo da tradicio-nal capoeira. A figura do dj tornou-se simblica do contexto contemporneo de uma Salvador urbana. Em muitos casos, so tratados como dolos da juventude, levando aos fs divertimen-to e um estilo de vida.

    As polticas pblicas para a juventude no podem es-tar alheias a esta manifes-tao, mas tambm no devem almejar conduz-las com os tentculos viciados de uma cultura poltica na-cional de interesse partid-rio ou de qualquer pragma-tismo oportunista. Se, por um lado, o hip hop mantm razes nas comunidades de origem e na cultura under-ground, por outro, embora fragmentada, ou correndo o risco de despolitizao, uma parcela j se insere na grande mdia e na indstria de consumo, direta ou indi-retamente, formando valo-res e orientando condutas de jovens de todas as cores, credos e estratos sociais.

  • Rap ritmo, poesia e enfrentamento

    O rap instala um con-flito na tradio sonora do pas. Tanto em sua estru-tura musical como na lin-guagem verbal a adoo de traos polmicos torna pblica a t ransformao ocorrida na pos-tura da juven-tude negra, que assina sua pr-pria representa-o, assumindo a tenso social como alternati-va artstica pos-svel e urgente. Nega duplamen-te a cordialida-de construda e sustentada pelo mito da democracia racial brasileira, herdando elementos do Black Power e agindo de forma a se apro-ximar da contundncia de Malcolm X e dos Panteras Negras, eleitos como mo-delos transgressivos.

    Essa tenso no co-mum ao negro brasileiro que, de forma geral, ainda vive o sonho do interacio-nismo, buscando se ade-quar na realidade nacional, intermediado pela ideologia do branqueamento que exi-ge e sustenta sua imagem malevolente e cordial, es-teretipo que Frantz Fanon destaca ao comprovar que a presena de negros sorri-

    dentes em anedotas e peas publicitrias uma exign-cia do branco colonizador. O mecanismo da cordiali-dade promove a integra-o harmoniosa do negro numa sociedade que lhe adversa, imagem e compor-

    tamento calcados na ausn-cia de sinais de revolta.

    A discusso das questes raciais alcanou um gran-de grau de elaborao no Brasil, porm fica restrita intelectualidade acadmi-ca ou a militantes que, na maior parte dos casos, dei-xam de pisar na lama rude da favela, enquanto popu-lao, o negro continua no hall da misria e na sala da alienao. Encontra-se integrado nos valores do outro e corresponde quela alegria abordada por Frantz Fanon como mecanismo de preservao da espcie.

    O rap inverte esta pos-tura, elegendo o enfrenta-mento verbal violento como

    pulso artstica e etno-so-cial. Antes de ser local, o problema do negro dias-prico, por isso a virulncia do rap encontra-se mundia-lizada. A exemplo do rock e do reggae, o rap tornou-se uma linguagem sem fron-

    teiras. Extra-pola os limi-tes nacionais e adquire a cor preta e pobre local de cada s-tio onde se instala. Lo-g icamente, com essa abertura, co-mu n idades no negras se apropriam

    do rap como protesto social, fruio esttica ou merca-doria de consumo. No caso especfico do contexto da negritude, essa msica ar-ticula elementos universais como as reminiscncias da transplantao violenta, a experincia da escravido, o presente de misria, a violncia policial, o exter-mnio dos miserveis, o rebaixamento do corpo fsi-co, a intolerncia religiosa, a discriminao racial e o racismo.

    Para os interesses ime-diatos dos jovens afro-des-cendentes brasileiros, o rap mais familiar que os fil-mes subjetivos, os roman-ces eruditos ou as novelas

  • televisivas. H na postura dos rappers uma sisudez marcada pela ausncia de sorrisos conciliadores e por uma rgida e agressiva ges-ticulao. Tranqilidade, adequao e alegria so o que a sociedade brasilei-ra ainda espera dos negros bons, mesmo em tempo de cotas vrias. Na contramo desta expectativa, o rap e s t a - b e le c e ,

    cons-c i e n t e - mente, uma postura calcada em atitudes descolonizadas. As letras e a postura dos artistas do hip hop se fundem na ten-tativa de anulao das fron-teiras entre a realidade e sua representao. Estetiza a conscincia adquirida no contato dirio como o pe-sadelo perifrico de nossa vizinhana pobre, preta e

    violenta. Instala um discur-so que, se por um lado, se apresenta como fala do co-letivo, por outro, centra-se no negro drama de cada um.

    Na Bahia, tambm, ele-vam-se vozes no-cordiais que agridem frontalmente o mito da baianidade feliz desde e para sempre. Ofe-rece uma imagem do negro oposta veiculada em pe-as publicitrias e cartes postais, para escamotear as mazelas e atrair turistas que enriquecem os ricos. O rap soteropolitano instala um mau-cheiro no jardim das musas perfumadas da ax-music.

    BlacKitude diverso consciente

    O coletivo Blackitude composto por pessoas que se renem para apresenta-es artsticas e trabalhos sociais com o mesmo pra-zer e intensidade. Compre-endemos o hip hop como um patrimnio de todos. A nossa vinculao ao hip hop segue duas bases vi-tais: a esttica das lingua-gens artsticas dos chama-dos quatro elementos e a insero nas lutas sociais. Neste sentido, entendemo-nos como desdobramento do movimento negro. Pro-curamos retomar a linha esttica e politicamente contundente da cultura da

    dcada de setenta, assu-mindo-nos como uma ten-tativa de desdobramento do inesquecvel Black-Bahia, que lanou as sementes dos blocos afros baianos, como o pioneiro Il Aiy. Da sua forma, a Blackitude con-cebe a arte como forma de luta contra a discriminao e contra o racismo que viti-mam o povo africano onde quer que ele se encontre. Por isso Blackitude: blacks + atitude, blacks com atitu-de.

    A arte o elemento que primeiro atrai na cultura hip hop, mas, no dia-a-dia da comunidade, no se en-contra isolada, pois se tor-nou uma poderosa estrat-gia para promover uma me-lhor compreenso de parte dos problemas que afligem as comunidades de mais baixa renda. Esta compre-enso pode, efetivamente, engendrar crticas, aes, projetos e polticas que in-terfiram na auto-estima e na melhoria material da vida da comunidade ne-gro-mestia e carente. Mas no se trata do mecanismo que faz da arte aparelho ou panfleto ideolgicos. Antes de tudo, a Blackitude res-peita a autonomia esttica possvel nas linguagens ar-tsticas realizadas. E antes do antes de tudo, no hip hop, arte e luta no se anu-lam como pretendem as te-orias do culto forma.

  • O coletivo atua no pro-cesso de conscincia, cons-truo, divulgao, forta-lecimento e independncia do hip hop soteropolitano.

    Desta militncia, j resul-taram atividades que en-volveram posses, escolas, faculdades, associaes de bairro, sindicatos, segmen-tos do movimento social or-ganizado, teatros, manifes-taes polticas, passeatas, festas, etc.

    A construo de um mo-vimento global de cidada-

    nia no pode menosprezar as demandas da juventu-de urbana contempornea. Afirmamos elementos tra-dicionais, folclricos ou ar-

    caicos, mas no concordamos com a sua es-sencializao. As mudanas operadas nos jovens negros e carentes que transitam pela cidade de Sal-vador na con-dio de cida-dos expostos s transforma-es engen-dradas pelas experincias das culturas da ps-moder-nidade so da-dos concretos que devem ser considerados por todos que militam na construo de sua subjetivi-dade e sua pre-parao para a

    experincia coletiva. por este vis que a BlacKitude participa do movimento da sociedade civil, dando n-fase ao processo cotidiano do hip hop como experin-cia positiva e que pode ser aproveitado na elaborao de projetos que priorizem a construo e defesa de uma cidadania ampla e plural.

    Na crena que pode trans-formar o outro, o ativista do hip hop transforma, primei-ro a si mesmo. Ser hip hop cotidianamente o que faz com que eles sejam sujeitos e objetos de mudanas ope-radas no presente bem como produtores de bens comuns. Os produtos estticos gera-dos devem ser compreen-didos como arte: msica, poesia, dana, pintura e as-sim devem ser respeitados e valorizados quando ex-postos a apreciao pblica ou disponibilizados como bens de consumo. Eles tm sua validade artstica, no se diferenciando das de-mais linguagens e estilos existentes. Tm, logica-mente, seu valor de troca, dando acesso a mais con-forto material aos envolvi-dos no processo de sua ela-borao e comercializao. Formam-se as estrelas, os destaques, os aceitos, os le-gitimados, os artistas, mas formam tambm empres-rios e empreendedores de forma geral. Na Bahia, este mercado engatinha, porm o seu processo de elabo-rao artstica e sua parti-cipao poltica cotidiana atingem a muitos. Dar vi-sibilidade ao seu exerccio cultural pode influenciar a conduta dos responsveis pela implementao de po-lticas pblicas. Isso no pode ser ignorado pela co-munidade.

  • A nossa escolha no apartar a arte do ativismo social. Por isso o processo nos atrai tanto quanto o pro-duto. No palco ou no cd, o rap msica. Na sua elabo-rao, na solido ou em gru-po, um caminho efetivo e simultneo de construo da subjetividade e transforma-o do coletivo. Essa lgica vale tambm para o break, para o graffitti, para o dj. O fato de um jovem de 18 anos tocar ou samplear James Brown, Bezerra da Silva, Fela Kuti, Jovelina Prola Negra, Jorge Benjor, Cle-mentina de Jesus, Tim Maia ou Originais do Samba re-vela, em parte, a orientao modelar promovida pelo hip hop. Essa procura de razes diferente da arqueologia conservadora, pois, embora

    legitime a conscincia de tradio, no busca purismo ou originalidade, mas ins-pirao que se materializa pela apropriao. O sampler dilui as barreiras entre o que a cultura da elite insiste em referenciar como original ou rejeitar enquanto cpia.

    A apropriao atualiza-dora, orgulhosa de explici-tar suas fontes, representa a grande mudana operada pelo canibalismo cultural atravs do qual a cultura hip hop abalou os paradigmas das belas artes e sua busca de singularidade.

    A Blackitude se identifica e se mantm fiel s lingua-gens do hip hop, mas busca estabelecer um dilogo cul-tural mais abrangente. H tambm o interesse pela li-teratura, pelo cinema, pelo

    teatro, enfim, por tudo que possa expressar a realidade do povo negro brasileiro. Ela tenta ser uma ponte entre o hip hop e outras experin-cias culturais do povo negro. Tem o orgulho de levar o hip hop para dentro de espaos oficiais sem subservincia, sem ferir a tenso gerada pela rebeldia que lhe vital, tem orgulho de participar da vida poltica da cidade sem permitir seu aparelhamento: partidrio ou de qualquer outra natureza.

    Dedicado aos companhei-ros da Blackitude: Afrogue-to, Elemento X, Quilombo Vivo, O Clan, Turbilho Urbano, Independente de Rua, Ana Cristina Pereira, Ricardo Soares, Lucinha Black Power, Luza Gata, e, especialmente, aos incrveis parceiros DJ Edilson, Dj Joe, Penga, Fbio Sangues-suga, Robson Sem Acordo e Rangel Santana, nosso texto quer ser, apenas, o anncio que o hip hop da Bahia pre-para o bote da serpente de vrias cabeas que cresce na surdina enquanto o pas s tem olhos para nos estereo-tipar, continuamente, como a verso negra da viso pa-radisaca, catlica e sensual, inaugurada, aqui mesmo em nosso estado, pelo co-lonialismo de Pero Vaz de Caminha e seus quarenta ladres.

    One love!!

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    Ana Lcia Souza

    Sociloga. Doutoranda em Lingstica Aplicada IEL Na ONG Ao Educativa coordena o Concurso Negro e Educao, e compe a equipe de formao do Programa de EJA. Integra a Associao Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN - SP.

    nam formas de produzir conhecimentos sobre his-tria e cultura afro-brasi-leiras. Ainda que no ab-solutamente generalizvel esta a vertente predo-minante no universo hip hop.

    O hip hop tem sido apontado como um im-portante fenmeno urbano juvenil no cenrio scio-poltico do pas. Protago-nizado por jovens, em sua maioria negros e negras, de baixo poder aquisitivo e que moram nas perife-rias das grandes capitais brasileiras, o movimento chama a ateno, entre outros aspectos, por mos-trar significativo poten-cial de gerar identificao e articulao em torno da cultura negra.

    Nos muros das cidades seu referencial se faz pre-sente em cartazes de sho-ws e lanamentos de CDs, na programao de pales-tras e oficinas dos princi-pais centros culturais, no rdio e na televiso que anunciam apresentaes, nas matrias especiais de jornais e revistas. Afinal, o que pode o hip hop?

    Sua histria brasileira

    H mais de duas dcadas, o movimento hip hop vem se firmando pe-las crticas s excluses sociais e desigualdades raciais. Mostra-se como espao cultural e poltico de desenvolvimento de prticas scio-educativas e de auto-afirmao para a populao negra, po-bre e jovem do Brasil. De certa maneira continua a tradio: para muito alm dos espaos oficiais de educao aprende-se arte e cultura, nos terreiros de candombl, nos acon-tecimentos da capoeira, maracatu, jongo, macule-l e congadas, nas rodas de batures e sambas, nas rodas do soul e do funk. Nestas produes cultu-rais so muitas as hist-rias que organizam a vida, heranas que precisam ser conhecidas e valorizadas como tal.

    Com foco no movimen-to hip hop, este ensaio des-taca que na festividade, no ritmo e nas cores, os usos das linguagens, - gestos, falas, leituras, escritas e imagens, - realizados com fins determinados em v-rios contextos, descorti-

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    cantada, contada e escri-ta por muitas vozes e mos desde os anos 80, quando surge por aqui. Em linhas gerais, os registros apontam que o hip hop tem origem na cultura Jamaicana e No-vaiorquina, herdando um estilo musical que, inicial-mente com caractersticas

    festivas, ganha contornos de resistncia, de protesto e denncia contra as desi-gualdades sociais e raciais vividas pela populao ne-gra.

    Nesta poca, o Centro de So Paulo, reconhecido como o bero do hip hop, v surgir um nmero cada vez maior de jovens que saem das periferias e ele-gem o local como o ponto

    de encontro. L acontecem os campeonatos de dana, com passos elaborados ao som de msicas meio can-tadas meio faladas, inicial-mente chamadas de taga-rela, atualmente marcadas pelo forte teor social e li-bertrio.

    Dos anos 80 para c, o

    hip hop se espalha por todo o pas e estrategicamente afirma um discurso de de-nncia e proposies por meio de expresses mate-rializadas em quatro ele-mentos: a dana de movi-mentos quebrados; o grafite da arte em desenhos colori-dos com tcnicas e suportes diversos; a palavra cantada do MC, o mestre de ceri-mnias que leva as mensa-

    gens ao pblico e o DJ da manipulao de aparelha-gens eletrnicas que leva a msica s quebradas.

    Com o passar dos anos, em torno destes quatro elementos que os participantes desenvolvem uma srie de aes com a crescente preocupao de

    subsidiar o trabalho, em es-pecial a elaborao das le-tras de rap. Muitos jovens, mulheres e homens, se jun-tam em grupos de discus-so - posses ou associaes - e se encontram para dis-cutir sobre a dinmica e as transformaes do hip hop, organizar eventos e shows, pensar em questes emer-gentes e importantes da co-munidade em que vivem,

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    bem como formas de inter-veno.

    Neste processo de auto-formao, criam-se diversas e variadas oportu-nidades de contato e mane-jo da lngua escrita, oral e imagtica; prticas sociais que os insere em um pro-cesso coletivo de investiga-o e de trocas e promovem aprendizagens que am-pliam as habilidades e co-nhecimentos que atendem as necessidades criadas nos fazeres de rapper.

    Ressalta-se que nestes grupos, os jovens desempe-nham um papel educativo que em grande medida res-ponde s demandas sociais em torno da leitura, escrita e oralidade, adensando no apenas o prprio processo de insero no mundo le-trado, mas tambm dos que esto em sua volta. Mais que saber ler, escrever e fa-lar, interessa saber como e porque as pessoas o fazem, com que sentidos e como estes usos das linguagens interferem em suas manei-ras de lidar com as situa-es em que esto envolvi-das no cotidiano

    A comear pela compo-sio das letras de rap, vale descrever brevemente como os/as jovens circulam e se aproximam dos diversos usos sociais da linguagem.

    O rap, a parte mais co-nhecida e visvel do hip hop, revela nas linhas e entre-

    linhas os conflitos vividos por boa parte da populao brasileira. Vale atentar para o qu e como diz?

    ... sou tipo o soldado do Afeganisto o homem bom-ba da favela, o vulco em erupo o super homem que incentiva a viagem do pive-te sou Mandela, sou Zumbi, Lampio l no nordeste eu sou a fria, Antonio Conse-lheiro, sou Lamarca, Luis Gama sou Zapata, sou guerreiro sou viagem sociedade, sou rapper nacional submundo Racional pra burgus no paga pau refro o Negro tem sua his-tria, negro tem seu valor.

    Na msica est presente a afirmao de identidade negra, socialista e guerreira, alm de importantes aspectos histricos so-bre os movimentos so-ciais latino-americanos. A letra, acentuando o poder coletivo sobre o in-dividual, de maneira cine-matogrfica apresenta os l-deres populares de diversos pases que buscam ou bus-caram fazer histria a favor dos grupos socialmente mi-norizados.

    Nela percebe-se a aproxi-mao com fontes e refern-cias diversas, o que mobili-za conhecimentos prvios e

    pesquisa em fontes escritas ou orais. Os jovens e as jo-vens, compondo ou no as letras de rap, apro-ximam-se de leituras e escutas de te-

    m a s e auto-res com objetivos de-finidos: conhecer a histria e a cultura para dar

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    suporte s argumentaes. As biografias, por exemplo, de Malcon X, Martin Luther

    King, Che Guevara, Zumbi dos Pal-

    mares, e ou-tras so

    impor-t a n -

    tes

    para a c e s -

    sar ou-tras aborda-

    gens e pontos de vista diferentes

    do que se aprende nos li-

    vros escolares. Em geral um trabalho de garimpo em um acervo composto por li-vros, letras de msica, jor-nais alternativos, fanzines, quadrinhos e outros mate-riais guardados nas casas dos amigos, nas bibliotecas pblicas e nos sebos.

    Ao escrever letras de rap ou ajudando na construo de composies alheias, os participantes organizam o discurso de forma a con-vencer e chamar a aten-o para a necessidade da tomada de conscincia, para participao e para transformao social. Os valores atribudos linguagem tambm po-dem ser percebidos na hora de cantar, nos mo-dos como os/as MCs usam publicamente a fala, com desenvoltura, estudando o tom das pa-lavras, imprimindo n-fase s metforas. Neste cenrio de fala, os gestos cadenciados, as imagens

    e cores de suas roupas e dos ambientes reforam a

    postura de enfrentamento pretendida e que por vezes assusta os menos avisados.

    Mais recentemente, com o avano das novas tecno-logias de informao e com busca por acesso aos bens culturais, a juventude ne-gra contempornea mostra a existncia de outras for-mas de ler e de falar mate-rializados nos fanzines, nos

    jornais e na literatura - cr-nicas, contos e poesia que criam vida nos saraus que se alastram pelas regies da periferia, como o caso de So Paulo. Parte deles informa e sustenta a pro-duo de sites e grupos de discusso na Internet, bem como de vdeos e documen-trios. As novas tecnologias tm efeitos tambm sobre o trabalho dos DJs.

    A produo de um grafi-te, outra entrada para o uni-verso de letras e imagens, requer um projeto que en-globa, na maioria das vezes, pesquisa, troca de idias para a elaborao do de-senho, a escolha das cores e do suporte. Envolve, em maior ou menor grau, a lei-tura e a escrita de imagens e a circulao de diferentes materiais para estruturar o conjunto de idias que abarca esse tipo de texto e o que ainda pode ser feito individual ou coletivamen-te, aprendido e ensinado por meio das oficinas que atualmente acontecem den-tro e fora das comunidades de periferia. Geralmente as oficinas de grafite, de DJ, de dana de MC, de pro-duo tambm exigem pre-parativos que vo desde os momentos para definir os locais, formatos, roteiros, estratgias, at a avaliao.

    A dinmica at aqui apon-tada se traduz em um pro-cesso poltico de resistncia

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    REFERNCIA BIBLIOGRFICA

    ANDRADE, E. N. Movimento negro juvenil: um estudo de caso de jovens ra-ppers de So Bernardo do Campo. Dis-sertao de Mestrado. So Paulo: USP, 1996.

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    JOVINO, Ione. As Minas e os Manos tm a Palavra. Dissertao de Mestrado Faculdade de Educao So Carlos, UFSCar, 2005.

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    SOUZA, Ana L. S. Os sentidos da prtica de lazer da juventude negra. In: Racismo no Brasil: percepes da dis-criminao e do preconceito no sculo XXI.

    SANTOS, G e SILVA, M.P. (org.) So Paulo: Editora Fundao Perseu Abra-mo, 2005.

    e de criatividade, que cada vez mais destaca a importn-cia da presena desta juven-tude nos diversos espaos de participao poltica. Nestes espaos, governamentais ou no governamentais, surgem situaes e conflitos em situ-aes reais, diante dos quais h necessidade de buscar e organizar argumentos para tomada de decises.

    Alm disso, a participao em espaos e instncias p-blicas conectam estes grupos a outros, seja para construir alianas, seja para apresentar demandas e propostas gerais e tambm especficas perti-nentes a agenda mais ampla da diversidade racial, social, tnica, etria, cultural, de g-nero, ambiental, o que tende a fortalecer os integrantes.

    A cultura transforma-se em movimento por mostrar-se capaz de envolver diferen-tes pessoas e grupos numa rede de acontecimentos na qual as prticas sociais de leitura, escrita e a oralidade tm objetivos e funo volta-da para questes de interesse dos grupos. Em contato com os jovens no difcil ouvir que para muitos a participa-o no movimento imprime mudanas significativas em seu modo de agir e posicio-nar-se diante da produo e da circulao de conhe-cimento sobre o mundo, na medida em que amplia o repertrio cultural e polti-co, fortalece as idias sobre

    questes sociais e raciais e sobre juventude e prope novas maneiras de gestar, or-ganizar e realizar as prticas que asseguram o aprender e o ensinar para a vida.

    Quem so estes jovens, homens e mulheres, de rou-pas largas, blusas e camise-tas estampadas com palavras de ordem em favor da popu-lao negra da periferia, que falam bastante e bem, que movimentam-se em grupos, que carregam agendas ou cadernos rabiscados com le-tras e desenhos que nem to-dos entendem, que declaram gostar de ler e escrever e, quando em sala de aula, pu-xam assuntos polmicos?

    Estas indagaes tm despertado o interesse das organizaes no governa-mentais, de diversos setores do poder pblico, em espe-cial da escola. Algumas de-las, para responder a estas e outras questes, comeam a entender que, mais que ati-vidades pontuais em hor-rios vagos ou espordicos ou em alguns finais de semana, preciso ouvir, franquear o acesso e dispor-se a desco-brir as mltiplas maneiras e lugares onde circulam co-nhecimentos e valores que, articulados s necessidades e interesses dos jovens, pos-sibilitam a participao e a interveno na realidade em que se vive. So muitas e novas vozes que ecoam mostrando que os/as jovens,

    por meio de gestos negros, ampliam a traduo e fazem muito mais que balanar (hip) os quadris (hop). So jovens, homens e mulheres negros e negras, ou brancos e brancas que vivem a mesma realidade e que esto fazendo, arte, his-tria e cultura.

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    REFERNCIA BIBLIOGRFICA

    ANDRADE, E. N. Movimento negro juvenil: um estudo de caso de jovens ra-ppers de So Bernardo do Campo. Dis-sertao de Mestrado. So Paulo: USP, 1996.

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    Mestrando em antropologia social pela Universidade de Braslia. Pesquisa relaes raciais com enfoque no movimento hip hop, gnero e educao.

    Nos dias atuais, quando o pas se v envolto em debates sobre as polticas de aes afirmativas para a incluso da populao negra no siste-ma educacional e no merca-do de trabalho, fica evidente que os parmetros de cons-truo da identidade nacio-nal brasileira fundamentada no ideal da cooperao e da harmonia racial perdem fora. Os grupos que ante-riormente eram vistos como perfeitamente integrados nao passam a reivindicar sua participao social de forma eqitativa e qualita-tiva no campo educacional, profissional e da represen-tao poltica. O que pre-tendemos aqui apresentar algumas notas introdutrias sobre a compreenso de um discurso contra-hegemni-co expresso nas msicas do rapper MV Bill, que apre-senta um Brasil diferente da representao hegemnica, racista e excludente. Antes, porm, de entrar no discur-so contra-hegemnico de MV Bill, cabe-nos uma pe-

    quena apresentao sobre a constituio da identidade nacional brasileira.

    Em ensaio sobre o ethos da elite brasileira George Zarur, remontando a Olivei-ra Viana, diz que essa elite tem seu eixo na classe pro-prietria rural do Centro-Sul do Brasil, especial So Pau-lo, Minas Gerais e Rio de Janeiro (Zarur, 2000). Sua principal tese apresentada que essa elite foi o elemen-to de unidade nacional e de formao do ideal de brasi-lidade. Os elementos cultu-rais cunhados por essa elite representam os fundamen-tos da identidade nacional consolidada nos anos 1930.

    Esse fato se torna impor-tante, pois a partir desse pe-rodo o Brasil vai assumir, mesmo que no oficialmen-te, uma poltica de homoge-neizao racial que encon-trou nos escritos de Gilberto Freyre (1983) uma impor-tante colaborao terica. Ao remontar a influncia terica que motivou Freyre encontramos o culturalis-

    Waldemir Rosa

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    mo do antroplogo Franz Boas, que era um dos prin-cipais debatedores e ferre-nho opositor aos eugenistas norte-americanos nos anos 1920. Nos Estados Unidos o debate travado com os eugenistas era o lugar do negro norte-americano na sociedade, visto que, esse era o grupo que mais pre-ocupava esses cientistas (Vianna, 2002). Neste mes-mo perodo debate similar ocorria no Brasil e as con-tribuies de Freyre foram fundamentais para que, ao contrrio dos Estados Uni-dos, se optasse pela formu-lao de uma identidade nacional que valorizasse a mestiagem como um ele-mento de homogeneizao tnica e racial.

    Esses dois elementos des-tacados aqui, permitem-nos concluir que a partir dos anos 1930 se estabelece no Brasil uma sociedade hierar-quizada onde os elementos tnico-raciais so ordenados tendo por referencia o ethos de uma elite branca, agrria e do centro-sul brasileiro. Em outras palavras, podemos dizer que as contribuies negras e indgenas eram re-conhecidas como elementos que constituem a socieda-de, mas no enquanto con-tedo tico das instituies nacionais que se consoli-davam nesse perodo. No que se refere aos segmentos populacionais negros e in-

    dgenas, sendo impossvel elimin-los completamente pela mestiagem, buscou-se impedir que suas manifesta-es penetrassem nas esferas da economia e poltica o que equivale a dizer que negros e indgenas foram alijados em suas possibilidades da acender ao poder econmico e poltico. Parece-nos perti-nente que tais manifestaes vo se apresentar de forma mais vigorosa, a partir dessa segregao inicial, nas esfe-ras da religio, do erotismo e das artes. O que pretende-mos aqui com o estudo do rap como um discurso con-tra-hegemnico buscar na esfera das artes o discurso que apresenta uma reao mais virulenta contra a or-dem social vigente.

    O rap, no quadro da msica popular brasileira atual, o gnero que pos-sui o tom mais conflitivo e radical, onde os contedos sociais segregados apare-cem de forma mais vigo-rosa. Em suas narrativas, existem representaes que indicam uma sociedade se-gregada que se utiliza da diferenciao racial interna para manter um sistema de explorao econmica e de excluso social. A imagem do Brasil expressa no rap revela uma sociedade ra-cista, intolerante e violenta. So essas representaes que vamos buscar na msi-ca do rapper MV Bill.

    No mundo moderno, as culturas nacionais se confi-guram como uma das prin-cipais fontes de identidade. Podemos encarar a nao como uma produtora de sen-tido, um sistema de repre-sentao cultural e de iden-tidades coletivas. A nao surge a partir das diferen-as regionais e tnicas que foram colocadas, de forma subordinada, debaixo de um teto poltico chamado de Estado Nacional, que se configurou como um pode-roso elemento irradiador de significados para as identi-dades culturais modernas.

    As culturas nacionais so compostas no apenas de instituies culturais, mas tambm de smbolos e representaes. Uma cul-tura nacional um discur-so e um modo de construir sentido que influncia e or-ganiza tanto nossas aes quanto a concepo que temos de ns mesmos. As culturas nacionais, ao pro-duzirem sentidos sobre a nao, sentidos como os que podemos nos identifi-car, constroem identidades. (Hall 2001: 50).

    A representao que se cria de Brasil, bem como o carter civilizacional da so-ciedade brasileira, a partir de um ideal de uma nao mestia pretende-se como uma nao que supera os

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    malefcios do escravismo e do colonialismo, possibi-litando aos grupos, outrora escravizados e colonizadas, uma grande mobilidade e plasticidade social por ser as formaes culturais mes-tias, supostamente, mais maleveis que as formaes culturais no-mestias. Se-gundo Freyre (op. cit.) essa seria uma das principais ca-ractersticas da colonizao portuguesa nos trpicos e a principal herana cultural que vo conferir ao Brasil sua especificidade histrica.

    Essa viso foi um dos principais elementos gera-dores da identidade nacio-nal. Os elementos de brasili-dade quase sempre remetem a uma tentativa de negar o conflito, seja ele de classe ou tnico-racial, ao mesmo tempo em que revela uma narrativa histrica que ten-de para a harmonia racial e a acomodao de classe. Segundo Damir Francisco a identidade um jogo de semelhana e diferenciao e esse jogo linguageiro. jogo discursivo ou nar-rativo que abrange desde um certo modo de contar a histria [...], produo literria e artstica [...], valorizao de certa produ-o musical-popular, pro-duo simblica miditica [...] e tambm, as anedotas, piadas e ditos folclricos ou populares (Francisco, 2000, 125).

    O que se percebe nas msicas do rapper MV Bill uma narrativa que recria esse jogo linguageiro em outras bases que no a da cooperao e do equilbrio de antagonismos.

    Como se observam nos estudos de musicologia e etnomusicologia, a simples abordagem semitica das letras significa atentar-se para uma parcela irrisria do universo da produo musical (Carvalho & Se-gato, 1994; Pinho, 2002). Por esse motivo buscamos apreender nas msicas de MV Bill os contedos de uma determinada represen-tao da sociedade brasilei-ra. Representao identi-ficada aqui como um siste-ma de pensamento baseado na diferenciao ontolgica e epistemolgica entre uma realidade scio-histrica vivida e uma outra a qual se pretende conhecer. Nes-ses termos, a representao uma figurao cognitiva baseada em uma herana histrico-cultural espec-fica que busca imputar em uma outra realida-de social

    uma gama de significados culturais com a inteno de lhe exercer alguma forma de controle (Said, 2001).

    No estudo das represen-taes proposto por Said (op. cit.) observou-se trs pressupostos fundamentais para se compreender a re-lao existente entre as re-presentaes e a realidade emprica. O primeiro es-tar convicto que existe uma correspondncia entre esse sistema especfico de idias e uma realidade material. A representao no uma falsificao da realidade, esta se relaciona com a re-alidade a que se pretende explicar. O segundo pressu-posto que essas relaes de idias contidas na repre-sentao so, sobre tudo, relaes de poder, ou seja, as idias se prestam a um jogo de dominao/libera-o social. O terceiro e lti-mo pressuposto refere-se

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    existncia de um investi-mento material que sustenta essas representaes. Ao se pronunciar uma verdade que contradiga essa repre-sentao ela no se desfaz em um passe de mgica, pelo contrrio, tende a eri-gir suas estruturas materiais contra essa suposta verdade adversa. Nesse nosso pe-queno esboo seguimos al-gumas orientaes propos-tas por Said para a anlise da msica de MV Bill, no que se refere representa-o da sociedade brasileira.

    Uma das idias que se apresentou como funda-mental para se compreender a representao contra-he-gemnica da nao brasilei-ra nos raps de MV Bill foi oposio entre sociedade e comunidade. Essa oposio configura-se como uma es-trutura modular que baliza todas as formulaes sobre a realidade brasileira. Mes-mo que se comuniquem constantemente, sociedade e comunidade se diferem entre s pelos seus conte-dos ticos. Pode se compre-ender a idia de conflito na obra de MV Bill oriunda do choque entre esses con-tedos.

    Na msica Contraste Social MV Bill apresenta uma relao desses conte-dos antagnicos existentes na cidade do Rio de Janei-ro expresso pela diferena entre a vida na comunidade

    e ao posiciona-mento da socie-dade.

    Eu quero de-nunciar o con-traste social / Enquanto o rico vive bem, o povo pobre vive mal / Cidade Maravi-lhosa uma grande iluso / Desemprego, pobreza, mis-ria, corpos no cho / As crianas da favela no tm direito ao lazer / Governan-tes s falam e nada querem fazer / O posto de sade uma indecncia / S atende se o caso for uma emergn-cia / Sociedade capitalista com sorriso aberto / Rir de longe melhor que sofrer de perto / Pelo menos en-tre ns no existe judaria (Contraste Social. MV Bill. Traficando Informao, 1999)

    Os elementos contradit-rios existentes na Cidade Maravilhosa so marcados por um sistema de carncias que alimenta a distncia en-tre a vida na comunidade e a na sociedade. Ricos e pobres se opem pelo seu modo de vida. As instituies gover-namentais se omitem sobre as condies precrias da infncia e da sade nas co-munidades carentes e fave-las enquanto a racionalida-de econmica, representada

    como a sociedade capitalista na letra, identificado

    como a beneficiara de um sistema que gera pobreza e excluso. No entanto a comunidade que cria suas prprias formas de lealdade.

    Gilberto Velho(2000) em artigo sobre a violncia, re-ciprocidade e desigualdade social apresenta a necessi-dade de se preocupar, nos estudos antropolgicos, mais com a percepo dos n tipos de alteridade associa-dos s diferenas entre os atores, suas vises de mun-do, perspectivas, interesses e, sobretudo, aos variados modelos de construo da realidade. O que Velho pro-pe um redirecionamento do enfoque dos estudos so-bre a violncia para as for-mas de representao que os atores, ao contrrio do

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    que ocorre nos estudos atu-ais que se dedicam princi-palmente as manifestaes aparentes da chamada vio-lncia. Nesta perspectiva, a violncia vista como relativa, sendo identifica-da e representada de forma diferenciada pelos grupos sociais.

    A representao que o ra-pper MV Bill faz da socie-dade brasileira indica para uma polarizao de valores culturais vistos como vio-lentos. O Estado, via ao policial, representado como o agente da violn-cia. Na msica Cidado Comum Refm aparecem diversos elementos que ca-racterizam o a ao violenta do Estado.

    Toda vez a mesma hist-ria /Criana correndo, me chorando / Chapa quente / Tiro pra todo lado, silncio na praa, um corpo de um inocente / Chega a maldita policia / Chega a policia o medo geral / Armado, fardado, carteira assinada com dio na cara pronto para o mau / Mais um pre-to que morre / Ningum me socorre / A comunidade na cena / A arma dispara / O pnico aumenta / Pare-ce at cinema / No / real / As armas no so de brinquedo / Quando a poli-cia invade a favela espalha terror e medo / gente da gente que no nos entende

    e usam de violncia / Um corpo estendido no cho ao lado uma poa de sangue / Conseqncia do desespero daqueles que eram pra dar segurana. (Cidado Co-mum Refm. MV Bill. De-clarao de Guerra, 2002)

    O autor busca dar nfa-se na diferena, ou seme-lhana, entre a fico cine-matogrfica e a vida real apresentada nessa alegoria. Os agentes da violncia, os policiais, so originrios das favelas, mas o que os diferencia dos restantes dos seus moradores a partici-pao dos sistemas de reci-procidade existente nessa comunidades, so gente da gente que no nos entende e usam de violncia. A vio-lncia proveniente, na l-gica do discurso do rapper MV Bill, de fora da co-munidade, em outras pala-vras, o sentido, visto como direcionamento da ao social, de uma unida-de sociocultural para outra unida-de. O conflito oriundo do cho-que entre essas duas unidades socioculturais, a sociedade e a co-munidade o que demonstra a exis-tncia de uma l-gica intra-social para o lidar com

    as diferenas postas em re-lao. Devido a este fato a violncia quando praticada de dentro para fora da co-munidade toma os contor-nos de autodefesa, que o relato da msica Declara-o de Guerra, que entre suas composies onde o conflito racial da sociedade brasileira emerge de forma mais expressiva.

    Ei me, acorde que o ter-ror vai comear /Coloque a janta pode ser a ltima ceia / Se eu no voltar sorria / Vou em busca da alegria / T incentivando o dio quem diria? / tudo pela salva-o / [...] / Eu avisei que a guerra inevitvel / Pra quem t na condio desfa-vorvel / Subestimaram, pa-garam pra ver e to vendo / Ignoraram nossa coragem e to morrendo / A violn-cia no foi eu que inventei / Somos condenados a ser-

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    REFERNCIA BIBLIOGRFICA

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    vio de um rei / Chega de ouvir esse discurso social / Chega de ouvir a lenga-lenga racial / [...] / Convo-quem os ndios, convoque os canibais / Convoque os sonhos dos nossos ances-trais / Vou invadir mais um hospcio / Vivemos bem no precipcio, que que isso? / Quero mais guerrilheiros pra essa noite / Vida lon-ga para os pretos, fim do aoite / Vou maquinar, mais homicdios pressentia / Fim de vida aos brancos, a co-vardia / So Benedito, por favor nos proteja / Traga os fiis que esto orando na igreja / Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Nada, distante / Sem-Fama, Sem-Grana, Sem-Luz, Sem-Parente. (Declarao de Guerra. MV Bill. Declarao de Guerra. 2002).

    O conflito no se realiza apenas no plano das ativi-dades simblicas da msica rap, ele existe nesse porque havia se instaurado ante-riormente no social que, a partir da representao social, que nega o conflito ao mesmo tempo em que reprime qualquer tentativa de pautar o conflito como um matiz da nao mesti-a. Nesse ponto que jul-gamos importante perceber como se d a negao da re-presentao do Brasil como uma nao homognea, tanto tnico,como racial-

    mente, onde os elementos antagnicos se relacionam em equilbrio.

    O Brasil uma nao, tal como as outras origin-rias de processos coloniais ou no, que formada por interesses antagnicos que historicamente subjugaram populaes em nome de uma narrativa que confere unidade social a uma vasta diversidade cultural. Mas como um processo hist-rico, as naes so pass-veis dos efeitos da batalha discursiva que se d sobre a possibilidade de narrar as memrias originrias dos Estados Nacionais. No caso brasileiro, o rap, como uma expresso cultural que traz em seu bojo a virulen-ta crtica ao iderio de uma nao mestia e as implica-es dessa representao, se apresenta com um dos vetores de desmonte e re-viso dos fundamentos da representao do Estado Nacional Brasileiro.

    Como afirmamos ante-riormente o que buscamos nessas notas introdutrias foi apresentar algumas re-flexes sobre como o estu-do da representao social da nao brasileira per-meada pelas relaes de poder que constituram o teto poltico que hoje identificado como Brasil. A partir da hiptese de que os contedos sociais das tra-dies culturais dos povos

    subalternamente integrados nao brasileira foram re-legadas s esferas das artes, da religiosidade e do ero-tismo os estudos da musi-cologia e etnomusicologia, assim como ligados a reli-giosidade afro-brasileira, os estudos de gnero e se-xualidade podem contribuir de forma considervel para o debate sobre a identida-

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    NARRATIVAS

    Escritora

    O morro desceu para o grande triunfo. Saiu nos cabealhos dos grandes jornais,

    dez em tudo, a escola foi a primeira.. Bira, procurou um ponto mais alto em meio ao povo. Queria , precisava encontrar a Ritinha, impossvel aquilo ter acontecido... escapar entre os dedos... Recordou a moa menina, ensaiando os primeiros passos na quadra, pernas crianas se tropeando, desafiando o repique do tamborim. Apreciava-a. Ela olhou para ele ingnua no pedido de ajuda, me ensina a fazer moo! Largou o instrumento, rodopiou em volta dela, assim menina, os ps rpidos desenharam na quadra o sapateado do samba nascido com ele, compassos que os ouvidos levava aos calcanhares, ela procurou imitar os volteios com graa, riu feliz, tu levas jeito criatura, s saltar o corpo, o ritmo faz o resto, assim que nem eu, rodou mais algumas vezes, o apito parou a batucada, algumas palmas;Foi para o barraco pensando na menininha com um sorriso nos lbios, poxa, essa vai longe ... agora estava a sua procura, a menina

    crescida, a passista nmero um, a melhor da ala, Ritinha, que desabrochou pouco a pouco na frente de seus olhos, tomara o corpo de uma deusa, os quadris sinuosos que se fizeram assim com o chegar da idade, a estreita fita dividindo as ndegas salientes, os seios ao lu. Afastou com os cotovelos a multido que se comprimia no desejo de participar da comemorao ... queria dizer-lhe que a queria depois de tudo, coisa fora de moda, respeito, remorso, sei l, dvidas que no existiam mais depois do ltimo ensaio, foi ela que provocou, sara com ele, ainda comentou, no disse que tu ia ser a melhor passista, ta , t vendo a rapaziada toda se amarra em tu, ela mostrou as continhas brancas brilhando entre os lbios carnudos, um sorriso infantil, Bira foi tu que me deu fora, a deu uns requebros na frente dele roando a bunda nas calas dele, as mos deslizaram pela pele lustrosa da cintura dela, fez mais devagar se apertando de encontro ao corpo dele, deu vontade de esprem-la, traz-la para mais junto ... Te vi menina, garota, pirralha ...eu sei..mais

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    NARRATIVAS

    s que num sou mais, sente s, deixou o pescoo dobrar em volta do ombro dele, olhou dentro dos olhos de Bira, quase um apelo , forou o brao para estreit-lo contra o corpo suado, fervente, saiu baixinho, parecia dizer sem querer ... me possui Bira ... Empurrou-a bruscamente para desvencilhar-se, toma tenncia garota, tu ainda uma fedelha, p, a , adespois tu fica cheia, o morro todo vai saber e a como que fica o papai aqui ...saiu se ajeitando enquanto ela lpida foi se esgueirando pelo labirinto dos barracos em busca de gua para abrandar-lhe as chamas ... Naquela noite, Mirtes , nga de f, at achou que seu homem amava mais ela do que antes, nem ouviu quando ele chamou ela de Ritinha !

    Cara de idiota, corao pequenino, caa de Ritinha. Fechou os olhos, os refletores incendiando, as a r q u i b a n c a d a s aplaudindo, o surdo marcando, os taris rufando, ala evoluindo com preciso e ela girando debochada em volta dele, o corpo negro se contorcendo sensual, no samba rasgado se inclinou num passo que s ele sabia dar. Ela repetiu o gesto, desafio, estava mais mulher que nunca, tremeu os peitos... tu t vendo s...tomou pela cintura, foi deixando que o corpo escorregasse, se dobrasse at ter o ventre seminu deslizando pelo seu rosto, as coxas que se abriram para que ele deixasse a dana executar sua coreografia, o odor acre do suor veio forte, trouxe-lhe a realidade ... instinto, abandonou-o em busca de outro componente da ala,

    chegou o fim da passarela, a escola em bloco foi se dispersando, fim de festa, voltou ao morro pensando na glria, na Mirtes e na Ritinha. Olhou com ar de enfado a companheira, tinha outro cheiro, tirou a fantasia, adormeceu com a outra... logo seria dia, ento iria mostrar quela foguenta quem era o Bira !

    Sabe, num por nada , mas achava que tu era uma criana, os olhos iam acompanhando estreitando, enquanto Ritinha ia tirando as peas , um corpo desconhecido embora j o tivesse visto e sentido diversas vezes, mas que

    agora parecia d i f e r e n t e , real, tentao sedutora na brejeirice dos anos, viu-a nua, teso, a nsia de extravasar o gozo prometido.

    Bira puxou-a contra seu corpo, rolaram sobre o carpete macio, refez o quadro, a

    menininha t r o p e a n d o

    na quadra, o sorriso criana, ela pediu baixinho, faz gostoso Bira. A paixo dele era to grande que aps tanto tempo se convertera em fogo, quis fazer... no dia em que finalmente se deram a conhecer, de suas entranhas brotou uma lngua flamejante que reduziu o membro to esperado em um montinho de cinzas.

    Levantou-se da cama, foi janela e, do parapeito com carinho, comeou a sopr-las ao vento... Bira, voc brochou? ... Ele vestiu a roupa em silncio, falou para o moo da portaria, v l o que a menina quer, subiu seu morro, no caminho vendeu o tamborim.

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    NARRATIVAS

    Integrante da Campanha Reaja ou ser morta! Reaja ou ser Morto!, militante do Movimento Negro Unificado/Bahia, ator e poeta maloqueiro.

    isso. O Curuzu uma favela abandonada pelo governo baiano preocupado em batizar tudo com o nome de certo Deputado morto.

    Curuzu de becos estreitos que ligam s ruas de baixo Santa Mnica e aos frades. O Curuzu fica no bairro mais negro do Brasil. O Bairro da Liberdade. No a liberdade de So Paulo, dos japoneses que operam sua prpria economia e gerenciam seus prprios bancos. Ali, na Liberdade baiana, at atendente de banco tem olho azul.

    No Curuzu falta asfalto pelos lados da avenida Cariri e o esgoto da rua Nadir de Jesus ainda esta a cu aberto, a escola capenga, o lixo anda espalhado, ali, onde fica o primeiro bloco afro do Brasil. Onde eu nasci.

    O Curuzu o meu jardim do den,

    onde meu umbigo fertiliza a terra. Onde a ginga de um preto rebrilha uma fora indizvel, uma mgica estupenda sob o sol.

    Eu nasci de parto natural, minha av me aparou e cortou rapidamente o cordo umbilical que estava enlaado em meu pescoo. Diz minha velha tia, Dona Antonieta, que eu chorei na barriga, por isso saberei o dia de minha morte. Por precauo, meu umbigo foi enterrado num p de mangueira l no meu quintal, onde hoje fica a oficina, ao p da ladeira, na baixada mesmo.

    Lembro dos candombls de Dona Roxa que nos oferecia mungunz quente e histria de gente morta, visagens andavam pela roa do maluco assombrando o povo.

    Meu amigo Gabriel disse-me certa vez, que assombrao mesmo era quando em noites de lua-cheia o maluco

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    NARRATIVAS

    virava lobisomem e vagava pela mata, perto da ladeira do cavalo morto. Lembro do Exu da discoteca de Macrio que nos seguia voando dia de sexta feira se no oferecssemos uma garrafa de cachaa ou uma vela preta...Curuzu era encantado.

    Fiquei muitos anos sem andar no Curuzu, depois de muitas confuses pelos becos da Rua Progressista; de pular o muro do Colgio Celina Pinho para roubar merenda, po, presunto e Nescau. Eu, finado Carroa e finado Hiplito que hoje dicono da Assemblia de Deus. Corramos de seu Anacleto que nos pegava pela orelha ao mando de Minha av que gritava:

    Deus lhe d fora nos braos Seu Fl, antes voc bater do que a policia

    ramos uma famlia extensa, todo mundo cuidava de todo mundo.

    Fiquei anos sem andar no meu bairro, rodei por Salvador, fui descobrir minha cidade em detalhes, muitos distante dos dramas l da rua, fui vendo, os olhos cados das mulheres da Montanha, antigo bordel que rivalizava com as prostitutas do Pelourinho, fui satisfazer-me com as cantigas dos blocos dos ndios na ladeira da Praa, meu preferido era o Comanche do Pel com suas sensuais travestis, entre elas a linda Carlete que tinha sido sargento da policia e ali ostentava fartos seios oferecidos juntos a uma rica feijoada para quem entrasse nos seu castelo como convidado.

    Passava pelo Terreiro de Jesus e dava a beno ao Mestre Caiara com sua bengala talhada e uma vida entregue

    a capoeira e a briga de rua. Ia para a beno de So Francisco ver aqueles pretos elegantes com pastas na mo distribuindo panfletos.

    Eu j circulava pela boemia que ia cedendo espao para outros tempos. Novos tempos.

    Deixei com minha Av a responsabilidade com os destinos de meus antigos parceiros.

    Vov faz responsos para Santo Antonio, reza de ventre e espinhelas cadas.

    Hoje no Curuzu o que vejo a dor das mes que doaram suas vidas pelos filhos, como dona Marileusa que em cinco anos

    enterrou trs filhos. Beto foi morto pela polcia no Pero Vaz, antigo Corta Brao, no tinha culpa nenhuma o pobre Beto. Os rapazes da Rua do Cu assaltaram a loja de roupas de seu Anastcio, deram um cassete no velho que tinha um filho na polcia do Exercito e desceram em fuga para o Pero Vaz. Beto fumava um baseado no Beco das Gordinhas, a policia chegou atirando, um tiro atingiu em cheio o corao do rapaz, ningum foi punido.

    No enterro, Dona Marileusa no derramou uma lagrima sequer, ali comear seu calvrio.

    Se a vontade de deus, eu me conformo

    E se conformou no enterro de Ari, de Csar e de Marcos. Todos envolvidos com o jogo do bicho, foram fuzilados em pleno dia na porta da casa de Dona Marileusa que em silencio os acompanhou at uma cova sinistra nas Quintas dos Lzaros. Cemitrio bem servido de corpos pretos mortos no Curuzu.

    Hoje eu vejo a tristeza dos jovens entre os de minha gerao, bbados,

  • 25

    NARRATIVAS

    drogados, largados, esquecidos, sambando como almas penadas o mais novo sucesso da Bahia. Alguma letra fcil sobre aquela melodia bumbum- flica que nada representa a realidade que atravessa os becos estreitos de onde vi, por muitos anos, parceiros tombarem mortos por causas fteis como a perda de uma namorada ou uma aposta no cumprida sobre o resultado do jogo entre Bahia e o Vitria. O valor da vida? Uma garrafa de refrigerante quase sempre mal conservada na barraquinha do Chico, aquele que manca exageradamente por causa de uma bala perdida que atingiu sua perna num tiroteio na Rua So Joo. Para variar, Chico no tinha nada que ver com o peixe.

    Capote e Cinzenano trocaram tiros no dia da copa de 1986. O Brasil Perdeu para Argentina, Cinzenano que tinha organizado uma farra com cerveja e feijoada, maconha e tira gosto para comemorar a vitria do Brasil ficou furioso e saiu atirando para o alto, um dos disparos quase atinge Adelaide, amante de Capote, linda negra de corpo de sereia, um linda mulher de olhos grandes e lbios macios com um batom vermelho comprado numa revista de cosmticos e roupas sensuais, uma linda saia jeans apertada atiando a gula de quem se atrevesse a olha-la.

    uma freteira discarada, mul de ladro que gosta de com home dosotro.

    (...) Dizia Alzira do Feijo, recalcando seu amor por Capote, seu antigo amante.

    Ele me tirou de casa, meu devedor

    Dizia quando tomava uma pingas no bar de Risadinha, Alzira tinha seus encantos, mas a decepo amorosa com Capote a tinha deixado cada vez mais largada.

    Adelaide era feita de santo em Dona Edelzuita de Oxossi, uma exuberante

    mulher, dava seus dotes de amante ao malandro Capote, que em troca a enchia de presentes e mimos. Perfumes, roupas, sandlia, correntes de micheline, anis, brincos tudo banhado a ouro. Adelaide brilhava, reluzia, punha as mais belas

    saias para fazer rodas no candombl, todo dia oito de dezembro, quando dava comida para Oxum.

    Capote era o comandante da gesto do Curuzu, o co chupando manga. Tinha uma beleza natural de quem comanda, com seu porte de leo, sua voz que ecoava nas peladas de sbado, o baba. Era um heri antropolgico, querido por todos.

    Desfilava com seus relgios, pulseiras de prata, e armas de grosso calibre, ele e sua turma. Brasinha, Negreiro, Professor e Miguel pareciam cavaleiros medievais em constante cruzada.

    Quando traziam os despojos da guerra era uma festa na comunidade. Sobretudo para os meninos que tomavam muito refrigerante de graa.

    No exato instante que Cinzenano disparou os tiros para o ar, Capote estava sentado na sacada da casa de seu Valzinho, com seu olhar de lince via tudo. Uma questo de segurana, de sobrevivncia. Percebeu quando Adelaide assustada, quase desmaia pensando que ia ser atingida.

    Capote foi tirar o desaforo.

  • 26

    NARRATIVAS

    fulano, Fila da puta, c quase mata minha mulher

    Gritou do alto de sua guarita, com a mo num revolver calibre trinta e oito, cabo de madreprola, preto como betume, (a mesma sonoridade do riso de satans cuspindo fogo). Engatilhou, parou alguns segundos, esperando as desculpas do parceiro de goles e golpes .... silncio, a desculpa no veio... Pelo contrario. Cinzenano olhou em fria, tragou a ponta de um cigarro sem filtro, puxou uma pistola sete meia cinco do bolso da blusa de frio em pleno sol de Salvador e atirou

    Vai se fud porraE corria como uma pantera na mata,

    ali era a selva, o habitat de Cinzenano e ele estava como queria, em combate, pronto para devorar a presa, conquistar um territrio, uivar como vencedor da peleja.

    Capote, quase sentia a bala roar sua orelha, pulou da sacada como um anjo apocalptico em seu xtase armagedonico, parecia o fim de Cinzenano, a besta-fera que o stimo anjo iria sujeitar. Tiros, muitos tiros.

    A multido corria assustada, os curiosos paravam para ver. Uma das balas atingiu a perna de Chico-da-Barraca que sangrava e chorava menos por dor, que por medo, um medo desgraado

    Um frouxo esse rapaz, ponto puta, que fica de chiada

    (...) falava seu Carlos Telles, velho bomio, dono do servio de alto falantes. Tirado a valento. Um tocador de bandolim de valor. Meu velho pai.

    O tiroteio reiniciou, a esta altura o jogo da copa era secundrio, Chico foi posto para dentro da venda de Risadinha. Os desafetos cessaram fogo. Capote falou manso a Cinzenano.

    ta vendo ai vacilo, se a vera eu te matoAbraou o amigo Fica atirando a toa, assustando minha

    nega, e se voc mata ela? Pague uma cerveja ai v

    Falava ofegante guardando as duas armas na blusa. Cinzenano pegou uma cerveja no bar e ofereceu ao amigo matador

    Porra c quase me levou viFalou limpando o sangue de Chico

    do cho com uma talagada de cerveja oferecida ao santo como de praxe. No caso dele era Boiadeiro seu protetor.

    Chico foi esquecido, subiu p a ladeira do Curuzu, com poucos amigos, at o posto de sade para tomar seu socorro e seu antibitico.

    A bela Adelaide de sua janela dava umas piscadas descaradas e mostrava a lngua para Cinzenano que tentava disfarar a traio com tapas nas costas de Capote. Que s pensava agora em se preparar par ir ao ensaio do Il Ay. Mesmo com a derrota do Brasil ia ter as cantigas de Buziga alegrando as cabeas.

    O Brasil foi desclassificado, repetiram-se os tiros pela madrugada, Chico ficou definitivamente manco. Ningum sabe que revolver o atingiu, e se soubesse no falariam. Lei lei .

    Anos mais tarde encontrei Cinzenano. Bbado, magro, todo sujo, danando essas musicas da moda em frente quitanda do Chico.

    Perguntei por Capote. Ele parou, fixou-me, procurou um revolver imaginrio, talvez achando que aquilo levantaria a moral em minha presena. Com uma lata de crack na mo e os olhos soltos na passado ele me respondeu

    T morto, foi pra Califrnia, se fudeu. O irmo de Adelaide matou ele na crocodilagem, deu uma facada nas costas

    Coando muito o corpo e a cabea, Cizenano mudou de assunto

    Me d um real ai Almir Eu fingi que no escutei, sai batido,

    trpego, melanclico.Capote no tem nome em aeroporto,

    provavelmente nem em Lapide, morreu num dia de 2 de julho. Independncia da Bahia.

  • 27

    NARRATIVAS

    Escritor

    Andava preocupado, montado num passo arisco, que volta e meia o fazia tropear, agredindo pedras distradas pelo meio do caminho.

    Tinha medo!Revoltava-se ao pensar no motivo de

    seu temor:Nunca havia tocado

    em cigarro de maconha;Cocana, s em filme;E craque senhor, no

    passava de um moleque bom de bola.

    Porm, conhecia o risco. Cedo ou tarde perguntariam sua opinio sobre o assunto.

    A qualquer momento poderia ser abordado por trombadinha lhe exigindo dinheiro:

    - Corre, corre...- Volta aqui moleque, ladro,

    ladro...J foram! Duas raposas que se perdem

    no meio da floresta que s tem sombra,

    pedra e desespero pra oferecer.Talvez, e bem provvel, a abordagem

    viria do policial exigindo explicaes de sua vida:

    - Mo na cabea vagabundo! Grita o tosco esteretipo de filme de quinta categoria, seguindo risca, as falas e

    gestos ultrapassados.(Super policial grita

    nervoso)- Tem tatuagem? (Figurante vilo com

    voz trmula)- No senhor!(Super policial)- Trabalha?(Figurante vilo)- Trabalho sim,

    sou ajudante na Plast...(Super policial

    mostrando que engraado)

    - No perguntei onde voc trabalha neguinho, (trinta e tantos anos, dois filhos e ainda no deixou de ser neguinho) t com algum B.O. encima neguinho?

  • 28

    NARRATIVAS

    (Figurante vilo)- Tenho nada no Senhor!(super policial)- Ah Z (deixou de ser neguinho

    pra virar Z) se eu achar c t na gua.

    Mexe na bolsa, acha roupa suja, acha marmita, pe tudo para fora entrega

    de qualquer jeito e vai embora. Antes conclui elegantemente:

    - Toma vai, sai fora!(corta, corta valeu...)O pobre fica l! Indignado, com

    vontade de fazer o mal e estranhamente agradecido por ainda estar vivo.

    Agora chegar em casa e ser encurralado em meio ao tiroteio do noticirio das oito.

    Policiais so preparados para essa rotina, bandidos acostumam-se a ela, mas ele, pobre cidado, mesmo sendo leigo no assunto obrigado a opinar, e assustado, confessa no saber o que fazer.

    - Que me diz?A mesma, os olhos arregalados, a boca

    seca, o estmago corrodo pela lcera instantnea. O pobre leigo pensa nos entes queridos, inocentes em sua espera que talvez seja v. Agora verdade, e j tarde. O cano reluzente da coao tem mira implacvel,

    o instrumento da violncia tambm tem medo, d pra ver que virou bicho (como pode algum to jovem no ser filho de ningum?)

    - Que me diz? Grita novamente o instrumento, dessa vez

    mais pavoroso, de uma vez engatilhado.O leigo gagueja e j escorre pelo

    rosto a lgrima do desespero, um pouco da humilhao de ser ignorante, um pouco de adeus, lembra da esposa com a velocidade de um relmpago que corta a alma:

    - Vem nego, vem gostoso...- Ah nega! Minha alma, meu amor,

    te aaaamm...- Nego, voc me ama?- J no falei que amo?- Mas fala de novo!- Te am..- Ah! Fala com vontade, ta

    morrendo?- Me deixa dormir nega!- S se voc disser que me ama!- Te amo, po...- Nego?- Que ...- Se voc me falta eu acho que

    morro sabia?- Humm...

  • 30

    Diretora do Instituto Kuanza e organizadora de Aes afirmativas em educao: experincias brasileiras, Selo Negro edies, 2003.

    NARRATIVAS

    Anos finais da Ditadura e nos barzinhos, festivais de msica nos colgios, rodas de violo nos grupos de jovens da igreja, todo mundo canta Geraldo Vandr: caminhando e cantando e seguindo a cano, somos todos iguais, braos dados ou no. Canta-se tambm Andana vi tanta areia, andei, da lua cheia, eu sei, uma saudade imensa. E Gilberto Gil faz uma verso de No woman no cry, de Bob Marley, aludindo aos desaparecimentos polticos nos pores da represso militar. Mas parte da moada negra, alheia a esse movimento de resistncia poltica, s pensa em outro, nos passos de dana no baile black, nas combinaes rtmicas e estticas para brilhar na pista.

    Termina a dcada de 70, primeiros anos dos 80 e James Brown (infelizmente, um futuro espancador de mulheres) d aquele gritinho esganiado e sensual... auuuuuuuu, I fell good - entram os sopros: pararan raram raram so good os sopros novamente tantan, so good, tantantantan tantan, uuulllll! Foi dado o grito de guerra, os bailarinos e bailarinas

    deslizam na pista. dia ainda, matin, mas a luz do sol no entra, a pintura das paredes escura e os lustres piscam para dar aquele ar de discoteca. Dezenas de calas boca de sino vo e vm, em profuso de movimentos. Blusinhas estampadas, coladas ao corpo das moas, os punhos mais largos, uma espcie de boca de sino pequena. Sapatos plataforma, pretos, engraxadssimos, uma correntinha ou crucifixo no pescoo, braceletes dourados imitando ouro e os cabelos, ah meu Deus, os cabelos black power, black panther, poder negro no Brasil.

    A indumentria de quem curtia a soul music era cheia de detalhes e requintes, mas os cabelos constituam um captulo parte, a comear pela escolha do pente, seguido pela tcnica de desembaraamento e coroado pelo uso de um disco. Era mais ou menos assim: imagine um garfo. No, no, no, no um garfo de mesa, imagine o garfo de Netuno, o rei do mar, imaginou? Aquela coisa imponente, elegante, com trs dentes

  • 31

    no original. Mas acrescente outros, vrios, dentes finos, de metal, levemente e s p a a d o s , adequados para o cabelo crespo desenrolar-se por aqueles pequeninos vos. Diminua o tamanho do cabo, de acrlico, deixe-o adequado sua mo, uns dez centmetros bastam. Da j viu, n? Muito jovem negro que tinha um pente desses no bolso foi preso por porte ilegal de armas, mas o pior no era ser preso, era ficar sem o pente e ser impedido de cuidar dos cabelos. E voc pode me perguntar por qu esse pente era carregado no bolso. Ora, para retocar o penteado entre uma sesso de msica quente e outra lenta durante o baile. As meninas eram mais discretas ou mais contidas e costumavam portar um garfo menor, dentro da bolsa, de material mais flexvel, tipo plstico. De volta ao ritual de desembaraamento, recomendava-se passar o garfo da raiz dos cabelos at as pontas, eriando-os, inmeras vezes, de olho no espelho e acertando-os incessantemente com as mos. E o disco, onde entra? Nos arremates. Era o disco, um compacto simples ou pedao de long play, o finalizador da cerimnia, aquele que acertava os fios soltos e deixava o cabelo impecavelmente redondo.

    Durante o baile, quando comea a primeira sesso de msica lenta aquela correria para os banheiros. Os garotos sacam o pente do bolso de trs da cala e iniciam os retoques cabeleira e ai daquela que, num carinho mais afoito, desarrumasse alguns fios da juba circular do amado, era motivo para fim

    de relacionamento. As garotas seguem para seu respectivo banheiro e fazem o mesmo. A p r o v e i t a m tambm para lavar o rosto suado e renovar o batom que ser borrado nos beijos seguintes. Termina a primeira sesso de lentas e o disc jockey aproveita para

    apresentar um grupo pouco conhecido da galera, um tal The Wailers get up, stand up, get up for your rights, get up, stand up, dont stop to fight.

    Chega a esperada hora do concurso de melhor danarino e danarina da noite. A disputa entre as meninas pega fogo, mas s enquanto Nena no entra na pista. Depois que ela chega, altaneira e soberana em seu metro e meio, no h mais concorrncia. Em sua performance inicial, os punhos postam-se cerrados prximos barriga, cabea para a esquerda, ps para a direita e escorrega para a esquerda, a cabea sempre do lado oposto ao p que conduz o movimento, desliza, flutua, pe as mos para trs e roda, d uma pirueta. E a gente embevecida com a agilidade dela. Quando menos se espera ela cruza os braos junto ao peito, empina a cabea, joga-a para trs e vai para o cho de pernas abertas, numa abertura que quela poca encantou Ndia Comanetti, hoje arrancaria aplausos de Daiane dos Santos. E no tem para ningum, as outras meninas danam at terminar a msica, s para evitar a vergonha de abandonar a disputa pela metade, mas o resultado j de domnio pblico: NE-NA! NE-NA! NE-NA!

    NARRATIVAS

  • 32

    Servidor pblico federal, poeta, escritor e ativista do Movimento Negro.

    NARRATIVAS

    Que se quede el infinito sin estrellas...

    Meu amor.. contam que durante a guerra dos Estados Unidos contra o Mxico, em meados do sculo XIX, apaixonaram-se um oficial americano e uma ndia do povoado mexicano ocupado, perto da fronteira, ali onde hoje o Arizona.

    Ao recusar-se a abandonar a cidadezinha e a vida em comum com a ndia, o oficial perdeu sua patente e foi expulso do exrcito. As pessoas do lugar passaram a hostilizar a ambos, tambm no vendo com bons olhos a aliana de uma delas com o invasor.

    Um dia, desesperado, o casal subiu para o alto de uma montanha e o oficial, abraado mulher, cravou-lhe a espada s costas, de modo que a lmina, traspassando o corpo da amada, lhe entrasse tambm peito a dentro. Os dois corpos enlaados vieram rolando pela encosta, chegando mortos ao sop da colina.

    Consternados, os moradores enterraram ali os corpos dos amantes e, em cada cova, plantaram um coqueiro.

    As duas rvores cresceram lado a

    lado, e hoje, coisa estranha, quando o vento lhes bate, de qualquer direo que venha, suas copas se aproximam uma da outra, como se mergulhadas em eterno e profundo beijo.

    Os especialistas em anemotcnica dizem que isso se d devido ao perfil orogrfico local, que faz com que os ventos convirjam vindos de duas gargantas opostas, gerando o fenmeno.

    Mas, na regio, ningum leva f na teoria dos especialistas em anemotcnica. consenso que as duas almas apaixonadas, incompreendidas nesta vida, beijam-se diariamente na outra.

    o que pierda el ancho mar su inmensidad...

    ... E que na Indonsia, quando o cnjuge de um(a) governante morre, este(a) se obriga a abandonar o governo. entendimento corrente que um casal que se ama, juntos, forma a unidade. Assim, com morte de uma parte, a outra torna-se metade. E meio governante inadmissvel, na Indonsia.

    pero el negro de tus ojos que no muera...

    E seu nome apareceu na minha

  • 33

    tela. Nos falamos. Nasceu onde? Viajou muito? Casou? Como? Descasou? Como? Me deseja? Como?

    Pensei: somos iguais! Nossas dvidas. Certezas. Esperanas: uma casinha de alpendre, em Guaratinguet (Guaratinguet? Por qu? No sei. Gostamos do nome? Herana imemorial?), um cachorro, jardim, uma rede, fogo, despensa. Cama larga, lenis macios... Entramos em transe. Nossos sucos e mucos se entrelaaram ciberneticamente. Quer me conhecer? No sentido bblico? Tambm...

    (Mandei a minha. Medo... aahh.)y el canela de tu piel se quede

    igual.Quando recebi a foto, via internet,

    pensei: como somos diferentes. Tentei reinvent-la com outro rosto, outros olhos, outros cabelos, outros ombros... Fechava os olhos. Reabria.

    Si perdiera el arco-ris su belleza...

    Voltava a olhar. Imposssvel reconhec-la. O sonho est morto. Viva o sonho! Compreendi. Voc meu sonho. Redivivo.

    y las flores su perfume y su color...

    Enfim, marcamos encontro. Em Havana. tarde. s trs. Meio caminho entre minha solido e seu desejo. Ou do meu desejo e da sua solido. Ou do nosso desejo e de nossa solido?

    Te busco, meu amor. no seria tan inmensa mi

    tristeza...Ei-la que surge: sou eu. Vamos, querida.Os coqueiros somos ns. Refazendo a

    unidade.como aquella de quedarme sin tu

    amor.(Eu: maior do que na foto, mais

    tranqila do que eu pensava)(Voc: mos macias... Sorriso

    bonito...)

    (Voc: maior do que na foto, mais tranqilo do que eu pensava)

    (Eu: mos macias... Sorriso bonito...)Me importa tu, y tu, y tu, y tuy solamente tuCaminhemos juntos, no reencontro

    imemorial. Enfim te reconheo. Vem, amor... Nessa tarde fria de Guar,

    o calor do nosso afeto traz certeza de outra noite aconchegante, sob lenis macios envolvidos pela crena na possibilidade de um Brasil multirracial...

    Me importa tu, y tu, y tuY nadie mas que tu,Ojos negros, piel canela.

    NARRATIVAS

  • 34

    NARRATIVAS

    Escritor

    Nossa... Como era bom, eu vivia um sonho real. Adrenalina, medo, alvio. Depois?

    Muita curtio, prazer e teso. No fim?

    A satisfao, satisfao de relaxar, fechar os olhos e dormir.

    No meio da madrugada, eu acordava ao ritmo de uma mo acariciando o meu corpo. Era ela pedindo mais, parecendo um bichano carente quando quer carinho.

    Sem resistir quele rostinho maravilhoso, eu me metia a galopar no seu corpo, exercendo a posio a qual ela deu o nome de Pegada de negro. S de imaginar eu sinto as gotas pingando na cueca.

    s vezes, depois de muito suar os abdomens e praticar diversos sobe e desce, o instrumento relutava em dar sinal, mas bastava eu sentir a essncia do ambiente e dar ouvidos aos gemidos vindos de outros quartos. Pronto. E pra completar de vez, ela o agarrava com sua

    boca voraz, e fazia da lngua a bailarina.Pena que isso tudo passado. Hoje

    estou aqui no meio de um monte de criminosos, ladres, psicopatas... O poro dos pecadores. Sou mais um presidirio. Sem sexo ou amor, privado de visita ntima pelo motivo da ausncia dela. Estou morrendo aos poucos.

    Uma vez ou outra me pego a me masturbar relembrando as cenas mais quentes. E o que antes era momento de satisfao e prazer ao extremo, hoje vem acompanhado de depresso. Triste realidade que me encontro.

    Daria tudo o que tenho para reviver mais uma noite com ela. Pra ser mais objetivo daria a minha vida apenas, afinal, s isso que eu tenho.

    Hoje sexta-feira, so nove horas de uma noite linda e calorosa. Aqui dentro da minha cela, fico olhando pra fora e imaginando as pessoas saindo do servio e indo direto aos barzinhos, outras indo para as festas e muitas para os motis, com o

    Foto

    s: M

    auro

    Man

    uel

  • 35

    objetivo de pernoitar, varar a madrugada regada a muito teso e prazer.

    Se hoje sofro, porque me prendi a apenas uma coisa. Roubar e desfrutar o fruto do roubo. Agora tarde pra se arrepender.

    Saio da janela e volto o rosto para a minha situao. Os companheiros aqui da cela esto vendo televiso, eu procuro nem olhar, a televiso tem o poder de fazer sofrer aqueles que no podem ter o que nela mostrado. o suco de laranja no caf da manh, o moo de boa pinta que beija uma moa tremendamente linda, a escola particular com piscina e barzinho, e por a vai.

    Infelizmente eu no tenho o poder de domnio, pois h um ditado que fala que quem no consegue dominar a si mesmo no livre. Ento eu sou presidirio por duas vezes. No consigo ficar sem fazer sexo, no posso ficar sem me masturbar...

    Deito no meu colcho e tento dormir, ao som da trilha sonora do meu devaneio e pela lgrima que escorre no meu travesseiro.

    Foto

    s: M

    auro

    Man

    uel

    NARRATIVAS

  • 36

    Jnatas Conceioprofessor e diretor do Bloco Afro Il Aiy. Publicou Vozes Quilombolas Uma Potica Brasileira, 2004.

    POESIAS

    Os pobres de hoje tambm se preparam para esperar o Senhor do Universo e das

    Criaturas.Arranjam seus prespios,

    toscas casas, com o de melhor.

    Primeiro enfeitam a fachada: um azul aqui, um rosa acol.

    e a cor branca, sempre presente, igualmente s imagens que as igrejas

    o representam;mesmo tendo ele

    nascido e morrido em to trridas

    terras.Mas o Senhor resiste em

    voltar.As muitas lapinhas que lhe so oferecidas, no o

    mobilizam mais.O seu mundo, em definitivo,

    tambm no ser este.Ficaram as verses de sua boa palavra em Matheus,

    Lucas, Joo e nos cantos dos reizados e

    pastoris como para sempre renovar as

    suas lies.

  • 37

    POESIAS

    No Brasil, A frica escorre na

    pele, Nos olhos, na alma

    e nos ps Desse povo que vive

    Nesse quilombo chamado periferia. A dana,

    Que a luta disfara, Tem na alma a mesma sintonia

    Das mos espalmadas De mestre Bimba e Pastinha,

    Maestros da sinfonia. Canta Zumbi,

    Os extintos navios de alm-mar, Que palmares crava teu canto

    Nos corpos retintos Da corda solo do berimbau.

    No muito longe daqui, Os irmos guerreiros de Angola Giram no compasso da histria

    Srgio

  • 38

    ( Foto: Regina Santos) modelos: crianas Kalungas/Gois

    POESIAS

    Sou Negra SimSou Negra com amorSou negra simE tenho o meu valor!

    Somos um povo sofrido,Mais somos um povo escolhidoPois temos muita garra e vontadePara lutar por nossa liberdade

    Liberdade no ser livreE sim ter condies para vivera liberdade. Ax para todos!

    Cidileide LimaMulher negra Quilombola- Capoeiras/RN

  • 39

    Claudia Schapira

    POESIAS

    Sou Negra SimSou Negra com amorSou negra simE tenho o meu valor!

    Somos um povo sofrido,Mais somos um povo escolhidoPois temos muita garra e vontadePara lutar por nossa liberdade

    Liberdade no ser livreE sim ter condies para vivera liberdade. Ax para todos!

    Voc sabe Quem mora ao lado?Adivinha Quem se esconde l

    embaixo?...Aprecia Quem olha de cimaRepara Quem se aproxima

    Ser que Algum me conhece?Tem algum ser Que me

    reconhece? Vivemos em proximidade

    foradaFado destino ou sina?

    Pois em meio cidadeDe ns todos ss

    A Cultura do medonos incita distncia

    e nos aprisiona

    Em lendrio pavorO vizinho assassino

    O porteiro perigoQuem passa suspeito

    Quem pra me tira o alentoMe escondo ofegante

    De canto espreitoO humano inimigoalgoz do meu terroruns contra outros

    seguimos mundanosreceosos de todos

    solitrios e carenteshabitantes urbanos

    de corao descrente

  • 40

    Grupo gacho formado por Carla Joseana da Silva Padilha(MC); Claudia Talita Fontoura Gonalves (DJ); Malizi Fontoura Gonalves (MC); Qunia Lopes Moraes (DJ) e Denise Gonalves (DJ).

    Vencedora do Prmio HUTUS (melhor Cd feminino) .

    Grupo Anastcias

    POESIAS

    Trazidos de longe a fora, na chicotada por fumo, por grana tivemos vidas roubadas, vendidas sem chance, sem sada a origem deste caos das favelas, dos becos da vida bandida quem sabe at quando consegue agentar ?

    A hipocrisia da falsa democracia.

    A unio dos povos da raa brasileira.

    Que um povo beneficia e escraviza o outro a vida inteira que nos nega o tempo todo tem medo da cara preta fala da bunda, do corpo temos espao na mdia uma vez por ano pra ver a ginga da mulata sorridente rebolando homem negro mete medo e ao mesmo tempo objeto gostoso bem dotado sempre pronto pro sexo, a carne mais barata do mercado a carne negra, despedaada, humilhada entregue de bandeja,

    assim como nossa arte como nossa cultura, deturpada levada na cara dura a histria foi mal contada, omitida ningum fala nada, esconde a dor, no mostra a cor

    parece at piada de mal gosto, desgosto quando escutada desde pequeno negritude sinnimo de macacada essa

    a ttica pra subjugar mas temos nossas armas e foras pra lutar pra defender nossa afro

    descendncia, nosso jeito de ser igualdade de condies o que a gente quer HOMEM NEGRO,

    NEGRA MULHER direo pro nosso futuro que dizem ser preto escuro vai ser sim temos muito orgulho!

    Identidade necessrio! Ponto de partida frica meu

    povo originrio. Resgatando referncias esbanjando nossa cultura no vendo no troca minha

    cultura, meu mundo...

  • 41

    POESIAS

    Fazendo estripuliasLiberdade de menina arteira Para afastar tristezaQuerena, sonhos, vontadesSoltando pipa no ventoMas firme para trilhar o caminho

    Sendo abanada por redemoinhosDanada para me prender Estrada de ervas daninhasEta! Mundo agressivoQuerendo me corromper

    Amaldioada por desviarDa rota coletivaSigo o oposto, fujo de atalhos...Percorro erranteEmaranhada nos meus cachosSe pego aquela rosa em meus braosRealizando sonhos de menina brejeiraFazendo estripulias e amando a arte.

    Elizandra Souza

    Nascida em So Paulo, comunicadora, escritora e autora de poemas com temticas raciais. O Poema acima foi publicado no site Recanto das Letras em 21/11/2005

  • 42

    Hlio de Assis

    POESIAS

    ONTEM ARRASTAVAM CORRENTES

    HOJE

    DESCONTENTESARRASTAM

    GENTE

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    Estamos ainda acorrentados

    ao preconceitoO chicote ainda

    ardeem nossas costas

    Somos ainda escravosdo sistema

    dependendo ainda

    das migalhas nossas de cada dia

    Casais encontram-se

    Mas ainda estamos ss

    Crianas ainda morrem de fome

    Estamos ainda presos

    aos vciosSonhar ainda

    nossa ltima esperana.

    Ivanildo Queiroz

    POESIAS

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    A todos que tocaram e Tocam o Tambor na esperana de harmonizar e humanizar as divindades

    Foto

    : arq

    uivo

    pes

    soal

    Mestre em Teoria e Histria da Arte pela Escola de Belas Artes/UFBA e doutorando pela Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas na UFBA

    Professor universitrio da UNEB e CEFET-BA, escritor, poeta,msico e compositor.

    Muito ainda se tem de conhecer sobre o poten-cial musical do continente africano. Porm, o pouco que se sabe nos demonstra que a msi-ca, em especial o ritmo, a essncia da sua imagem. Em-bora quando se fale na frica lembre-se dos tambores, a sua exuberncia musical no se concentra nos instrumen-tos percussivos. A sua criatividade percorre do exerccio vocal, de sonoridade particular, at a execuo de instru-mentos dos mais diversos timbres.

    Em relao a nossa cultura, a frica louvada pela in-corporao no nosso cotidiano dos parmetros bsicos da nossa musicalidade. Sua presena em nosso meio deve-se perseverana do povo vindo para c na condio de escravo, e nisso est um aspecto fantstico que memorizao dos padres rtmicos em uma mente to atribulada e violentada pelo carter repressivo e devastador do ambiente escravo-crata.

    A grande maioria dos instrumentos de resistncia trazi-dos para o novo mundoclassifica-se como membrafones, tambores dos mais diversos tipos morfolgicos e de timbres empregados nas mais diversas manifestaes, de uso e ri-tual religioso ou nas atividades profanas, como o caso da trilogia dos tambores sagrados do candombl e dos tambo-res de formatos diversificados, posicionados na horizontal, a exemplo dos tambores Batas Cubanos, ou outros confeccionados em tronco nico de uma espcie de rvore sagrada, chamados de Ilus, encontrados no Maranho, ou os tambores falantes de Porto Novo.

    No Brasil, a trilogia de tambores sagrados: Rum, Rumpi e L articula a men-sagem rtmica e meldica

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    da comunicao com as di-vindades, fazendo-as movi-mentar-se nas coreografias que revelam aos olhos de todos a odissia de Orixs, Voduns, Inquices e Cabo-clos, reportando-se hist-ria, ao mito, s propriedades e s virtudes dos mesmos, com a mesma finalidade de repercutir mensagens que tem os Tambores Falantes na frica.

    O uso profano dos tam-bores se incorpora s ma-nifestaes pblicas, base rtmica das canes, dando identidade e diversos esti-los musicais. Na frica, por ocasio da coroao de um Rei de Kto, os tambores soam vibrantes em reve-rncia ao novo monarca. importante destacar que o tambor do Rei tem o dom da verdade e usado no s para transmitir mensagens decisrias do Rei, como tambm tem a propriedade de ser o tambor-me, aquele que emite o som que afina-r todos os outros instrumentos, pois todos devem soar na tonalidade ma-jestosa do Tambor do rei, nem muito acima e nem muito abaixo.

    Um tipo de tam-bor especial de utilizao litrgica na solenidade aos mortos na frica a cuca, que no

    Brasil passou a ter utiliza-o profana nas bases rtmi-cas das Escolas de Samba. A cuca tocada solenemente nos rituais morturios na re-gio prxima ao Rio Uem, no Benin, na frica. No Brasil, nos ritos funerrios, utiliza-se a cabaa que bia numa vasilha com liquido devidamente preparado e percutida por Aquidavis.

    A cabaa tambm faz parte da caixa sonora dos berimbaus, nos seus mais diversos tamanhos e fina-lidades. A grande maioria dos instrumentos de cabaa pertence ao grupo dos ins-trumentos idiofones usados como chocalho, tendo em seu interior sementes ou pequenos seixos. Um tipo especial de instrumento idiofone shequer, onde a cabaa revestida por uma rede de sementes ou bzios em volta da mesma.

    Um outro instrumento idiofone conhecido como agog que confeccionado

    com duas campnulas de metal, preferencial o ferro, e percutido por uma vareta, tambm de metal. Por vezes, em lugar do agog de cam-pnula dupla, encontramos o Gan de apenas uma cam-pnula, percutido tambm por uma vareta de ferro. Em outras manifestae