Revista MPEspecial 11

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ASSECOMMPMS

Lançado no dia 24 de janeiro, o novo Portal trouxe grandes mudanças que vão desde o layout até novas funcionalidades. Atentos aos novos padrões de comunicação e as necessidades atuais, a Secretaria de Tecnologia da Informação do Ministério Público de Mato Grosso do Sul não poupou esforços para apresentar à sociedade, servidores e membros do MPE um novo site, que é um canal unificado de informação e sistemas internos de trabalho.

Desde as primeiras experiências é possível identificar os novos padrões de acessibilidade, disposição das informações, organização de conteúdo, o que proporcionará ampliação do acesso do cidadão à informação pública, serviços, prestação de contas e acompanhamento das atividades ministeriais.

Na página inicial, o cidadão encontra uma pequena parte da integração entre sistemas institucionais e o portal por meio de contador atualizado em tempo real, que apresenta os números de ações civis públicas ajuizadas, audiências judiciais realizadas, manifestações e termos de ajustamento de conduta firmados durante o ano corrente.

Outra alteração importante e que demonstra a constante atualização aos novos meios de comunicação é a integração do portal às redes sociais e ferramentas online, apresentadas na área reservada para a Assessoria de Comunicação, que integra Notícias, Youtube, Facebook, Twitter e SoundCloud, que, além de mais um canal de comunicação com a sociedade, é mais uma forma de apresentar os trabalhos audiovisuais do Ministério Público. Padrão atual Web e Responsividade também foi uma das preocupações da Divisão de Desenvolvimento; a atual demanda pela informação exige que ela esteja disponível a qualquer momento via diferentes meios, e assim o novo portal dispõe de adaptabilidade a tablets e smartphones.

Com o novo portal de informação, o MPMS se faz atual, adaptado aos novos padrões de acessibilidade e transparência e organização de conteúdo.

O MINISTÉRIO PÚBLICO COMEÇA 2014 COM NOVIDADES!

O NOVO PORTAL INSTITUCIONAL É UMA DELAS.

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Ministério da Justiça

Secretaria deReforma do Judiciário

www.apav.pt

Parceria no Brasil Criação Apoio

Iniciativa

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Sumário

6 Expediente

7 Editorial

8 Artigo - A ARTE IMITA A VIDA

por Ariadne de Fátima Cantú da Silva - Procuradora de Justiça

10 Artigo - 10 PRINCIPAIS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA NOVA LEI DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS

por Jiskia Sandri Trentin - Promotora de Justiça (50ª Promotoria de Justiça de Campo Grande)

18 Artigo - ASPECTOS JURÍDICOS DA PERÍCIA MÉDICA por José Aparecido Rigato - Promotor de Justiça (3ª Promotoria de Justiça de Dourados)

28 Artigo Destaque - O PAPEL DO DIREITO INTERNACIONAL NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS NACIONAIS: UM DEBATE TEÓRICO CONTEMPORÂNEO por Jaceguara Dantas da Silva Passos - Promotora de Justiça (Doutoranda em Direito, área de concentração em Direito Constitu- cional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

42 Artigo - TRIBUNAL DO JÚRI: DUAS QUESTÕES por por Rodrigo Correa Amaro - Promotor de Justiça

(3ª Promotoria de Justiça de Corumbá)

50 Artigo - DIREITO SISTÊMICO: A JUSTIÇA CURATIVA, DE SO- LUÇÕES PROFUNDAS E DURADOURAS por Amilton Placido da Rosa - Procurador de Justiça

59 Entrevista - WILSON FORTES - Procurador de Justiça Aposentado

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Expediente

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO

Jornalistas ResponsáveisAna Paula LeiteHordones EcheverriaWaléria Leite

Projeto Gráfico e Direção de ArteThayssa Maluff

DiagramaçãoYngrid Corsini

RevisãoKarl Frederick Alecksander Phillip de F. RochaSuzana Costa Val Gomide BaroliThuliana Alves da Silveira

Núcleo de TVFelinto Paes Márcio Higo

Núcleo de RádioJosé Guilherme Oliveira

EstagiárioYngrid Corsini

SecretariaSandra de CamposPamela Batista

Finalização da edição: 24 de janeiro de 2014

Fotos: Assecom

Tiragem: 1.000 exemplares

R. Pres. Manuel Ferraz de Campos Salles, 214

Jardim Veraneio - CEP 79031-907

Campo Grande-MS

Telefone: (67) 3318-2086

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL

Procurador-Geral de JustiçaHumberto de Matos Brittes

Procurador-Geral Adjunto de Justiça JurídicoPaulo Alberto de Oliveira

Procurador-Geral Adjunto de Justiça AdministrativoJoão Albino Cardoso Filho

Corregedor-Geral do Ministério PúblicoMauri Valentim Riciotti

Corregedor-Geral Substituto do MPAntonio Siufi Neto

Chefe de Gabinete do PGJPaulo Cezar dos PassosSecretário-Geral do MPRodrigo J. Stephanini

Assessores Especiais do PGJCristiane Mourão Leal dos SantosMara Cristiane Crisóstomo Bravo

Paulo César ZeniAssessores do CGMP

Douglas Oldegardo Cavalheiro dos SantosFernando Martins Zaupa

Ouvidor do MPOlavo Monteiro Mascarenhas

COLÉGIO DE PROCURADORES DE JUSTIÇAIrone Alves Ribeiro Barbosa

Sergio Luiz MorelliMauri Valentim RiciottiHudson Shiguer Kinashi

Guilherme Ferreira Dutra JuniorOlavo Monteiro Mascarenhas

Irma Vieira de Santana e AnzoateguiNilza Gomes da Silva

Silvio Cesar MalufAntonio Siufi Neto

Evaldo Borges Rodrigues da CostaMarigô Regina Bittar Bezerra

Belmires Soles RibeiroHumberto de Matos Brittes

Miguel Vieira da SilvaAmilton Placido da RosaJoão Albino Cardoso FilhoPaulo Alberto de Oliveira

Lucienne Reis D’AvilaAriadne de Fátima Cantú da Silva

Francisco Neves JuniorEdgar Roberto Lemos de MirandaMarcos Antonio Martins Sottoriva

Esther Sousa de OliveiraAroldo José de Lima

Adhemar Mombrum de Carvalho NetoGerardo Eriberto de Morais

Luis Alberto SafraiderSara Francisco Silva

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Caros colegas e leitores em geral:

Tenho a satisfação de apresentar mais uma Revista do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, esperando que o leitor tenha uma leitura aprazível. A lida do membro do Ministério Público é interagir com a comunidade e ser ins-trumento de alteração da sociedade, encarando a luta dos outros como nossa luta. Nossa existência, enquanto Promotores e Procuradores de Justiça, é auxiliar na construção da cida-dania e promover a justiça social. E é um agir pautado com probidade, lealdade, urbanidade e, acima de tudo, com ÉTICA. Enfrentamos grandes turbulências no ano de 2013, mas encontramos um grande aliado: a sociedade. A razão maior da existência do Ministério Público saiu às ruas e levantou a voz de modo uníssono para defender as prerrogativas da nossa Instituição, as quais existem para que possamos atuar com intensidade em prol da transformação social, na construção de um modelo mais justo e isonômico. O Ministério Público sempre foi entendido como repositório natural dos interesses so-ciais não satisfeitos ou vulnerados, e hoje tem de agir direta e responsavelmente pelo Estado de Direito e pela democracia, além das garantias dos direitos coletivos e difusos. E é assim que o Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul age. Reafirmando minha fé no profícuo trabalho de cada Promotor e Procurador de Justiça do nosso Ministério Público, desejo a todos que desfrutem desta edição. Cordialmente,

Humberto de Matos Brittes Procurador-Geral de Justiça

EDITORIAL

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A ARTE IMITA A VIDA

por Ariadne de Fátima Cantú da SilvaProcuradora de Justiça

Quantos de nós, membros do Minsitério Público, já não tiveram vivências transformadoras em nosso dia a dia?

Quantas vezes nos deparamos com histórias que por sua singeleza e peculiaridade nos transportam a muitas reflexões sobre a própria vida?

Isto, sem falar em todas aquelas vezes em que a tragédia e a comédia parecem realmente brotar de forma inusitada no meio de uma audiência.

Somos todos privilegiados, por vivermos num universo tão rico e podermos exercer nosso mister de forma tão transformadora.

Todas as áreas que ocupamos dentro de nosso trabalho são igualmente belas, mas não posso deixar de falar daquela que considero a mais bela entre tantas tão belas: a infância.

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faz mais falta: O AMOR. O amor incondicional, daqueles que por dever legal deveriam protegê-las, e que, por não fazê-lo, permitem com que essas crianças virem números em processos de medidas cautelares e protetivas.

Poder transformar muitas dessas vivências em livros para crianças e adolescentes, e ainda agregar uma mensagem que possa lhes ser útil, foi um desafio que venci com raro orgulho quando lancei meu primeiro livro, no ano de 2009. O livro “Enquanto mamãe não vem” recebeu, dentro da minha própria casa, uma dura crítica do meu filho do meio, quando me disse que o livro “não tinha fim”. Reescrevi o final do livro e aprendi uma importante lição: Além de encantar o leitor e despertar-lhe o sonho, escrever para crianças tem que sempre despertar a ESPERANÇA.

Assim, escreversobre temas

difíceis e especialmenteáridos como adoção,

câncer, violênciano trânsito, drogas,

ou violênciana adolescência,é um desafio que

encaro commuita seriedade.

Apesar de Oscar Wilde assegurar que a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida, tenho que dizer que, no caso dos livros de minha autoria, este processo se inverte, e se investe de pura realidade composta em sonhos que derivam letras, e em letras que se transformam em livros. Realmente é um raro prazer e um grato presente poder escrever para adultos e crianças.

Os anos que passei à frente da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude me transformaram como ser humano e me acrescentaram experiências marcantes.

Somos de fato, todos, atentos observadores, e sempre podemos aprender algo em tudo que fazemos. Mas aprender com as crianças é realmente mágico e profundamente transformador.

Em muitas de minhas vivências, captadas por um ângulo nem sempre jurídico, pude incorporar ricos conceitos e novas nuances.

A criança é um serque enfeitiça,e poder observara imensacapacidade queelas têm desuperar acontecimentosdifíceis é um raropresente da vida.

Meus primeiros escritos surgiram assim. De uma observação amiúde e desprendida, que procurava enxergar o prisma daquele pequeno ser em formação.

Os colegas que militam na área da infância sabem bem do que falo, quando me refiro à imensa capacidade de transformação que as crianças possuem. Daquela incessante necessidade que têm de ver sempre “um final feliz” em tudo que acontece.

Inúmeras delas, violadas em seus direitos mais basilares e fundamentais, encontram uma força ímpar, para lutar em busca de um espaço onde tenham aquilo que na maioria das vezes lhes

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Em vigor desde 19 de setembro de 2013, e tendo revogado a Lei n° 9.034/95 –“ Lei do Crime Organizado”, a nova “Lei das Organizações Criminosas” – Lei n° 12.850/2013 – trouxe importantes inovações e verdadeiro alento aos operadores do direito que, de uma forma ou de outra, laboram com a investigação e/ou o processo de crimes praticados por grupos criminosos, muitos dos quais constituem verdadeiras “empresas do crime”[1].

Sim, finalmente o ordenamento jurídico pátrio estabeleceu, em lei ordinária, os contornos do fenômeno “organização criminosa”, apontados no § 1º do art. 1º da Lei n° 12.850/2013, encerrando acirrados debates doutrinários e jurisprudenciais acerca da aplicação de dispositivos legais que mencionam essa figura associativa, já que nem os tribunais superiores se entendiam sobre a possibilidade de aplicação

por Jiskia Sandri TrentinPromotora de Justiça50ª Promotoria de Justiça de Campo Grande

10 PRINCIPAIS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA NOVA LEI DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS

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da definição jurídica dada pela Convenção de Palermo[2] sobre “grupo criminoso organizado”.

À guisa de introito, insta consignar que o presente ensaio tem por escopo apenas posicionar o leitor sobre as 10 principais alterações promovidas pela Lei n° 12.850/2013, sem a pretensão de esgotar o tema, até porque foram muitas as alterações produzidas – aliás, bem superiores à dezena aqui selecionada – ; ou de ingressar em discussões profundas acerca da constitucionalidade de suas disposições, o que

demandaria outro tipo de estudo.

Pois bem. A primeira alteração importante é exatamente essa: definiu-se “organização criminosa” – não só para os efeitos da aplicação de uma lei específica, como se deu com a Lei n° 12.694, de 24 de julho de 2012 – que dispôs sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas[3] – mas para todo e qualquer dispositivo legal que venha a ela fazer menção, a exemplo da causa de diminuição de pena inserta no art. 33, § 4º, da Lei n° 11.343/2006[4] e da causa de aumento de que trata o art. 1º, § 4º, da Lei n° 9.613/1998[5].

Assim, de acordo com o § 1º do art. 1º da novel lei, “considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.

Restam, pois, superadas aquelas definições de “organização criminosa” contidas na Convenção de Palermo e na Lei n° 12.694/2012,

sendo imperioso o registro de que, com a nova lei, é preciso um agente a mais para composição mínima do grupo organizacional, o qual, pelas definições anteriores, contentava-se com 3 agentes no patamar inicial.

A segunda alteraçãodigna de registroé a tipificação do

que vem a que sero crime de

“organização criminosa”[6],estabelecendo pena de

3 a 10 anos de reclusão,além da multa,

para os seus infratores.Então, a nova lei

não só definiuos contornos do

grupo criminoso,mas também criouum novo tipo penalpara aqueles que,

com ânimo associativoe visando vantagem

de qualquer natureza,organizam-se para

praticar crimes gravesou de caráter

transnacional.

A punição para a formação de grupo com características organizacionais foi efetivamente recrudescida, já que antes a tipificação possível se cingia ao art. 288 do Código Penal, que tem

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pena relativamente branda – de 1 a 3 anos de reclusão na sua forma básica – bem como ficam proscritos alguns benefícios legais, como a suspensão condicional do processo e a suspensão condicional da pena, exceto, neste último caso, quando a pena não ultrapassar quatro anos e o condenado for pessoa maior de 70 anos ou quando razões de saúde justificarem a suspensão, nos moldes do que estabelece o § 4º do art. 77 do Código Penal.

Um terceiro pontorelevante daLei n° 12.850/2013é a criação de uma figuraequiparada ao tipo penalde “organização criminosa” no § 1º do art. 2º, punindocom a mesma penado caput quem,de qualquer forma,impedir ou embaraçara investigação de infração penalque envolva organizaçãocriminosa, demonstrandoverdadeira preocupaçãodo legislador em preservara integridade das apurações– que, por sua própria natureza, são complexas – e garantir o bom êxito dotrabalho investigativo.

Também são estabelecidas causas de aumento de pena na conduta dos integrantes da organização criminosa quando esta (1) atuar com emprego de arma de fogo – o aumento pode se dar até a metade da pena; (2) quando houver participação de criança ou adolescente;

(3) quando houver concurso de funcionário público, valendo-se a organização criminosa dessa condição para a prática de infração penal; (4) se o produto ou proveito da infração penal destinar-se, no todo ou em parte, ao exterior; (5) se a organização criminosa mantém conexão com outras organizações criminosas independentes; (6) se as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade da organização, sendo que o patamar de aumento para essas últimas cinco causas é de 1/6 a 2/3.

Ademais, há previsão expressa de agravamento da pena quando o integrante exercer posição de comando na organização, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução, agravante que já constava de forma genérica no art. 62, I, do Código Penal e agora se repete na Lei n° 12.850/2013.

Em quarto lugar, merece destaque a mudança da nomenclatura para o tipo penal descrito no art. 288 do Código Penal, que de “quadrilha ou bando”, passou a “associação criminosa”, além da redução do número mínimo de integrantes, de 4 para 3 pessoas, tornando-o adequado e proporcional, já que se trata de um tipo penal mais singelo quando comparado ao da “organização criminosa” – cuja formação é bem mais preocupante sob o ponto de vista da proteção do bem jurídico “paz pública” – esta sim exigindo 4 ou mais pessoas para a sua formação.

A quinta relevante modificação, agora

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no campo dos meios de prova e procedimentos investigatórios, é a possibilidade de o Ministério Público deixar de oferecer a denúncia ao comparsa colaborador –

o benefício não maisse chama “delação premiada”,mas “colaboração premiada”,termo mais suavepara indicar a recompensaque deve ser dadaa quem dedurar os “companheiros” do crime

– desde que ele seja o primeiro a delatar e que não seja o chefe da organização, previsão encartada no § 4º do art. 4º da Lei n° 12.850/2013.

Similar a uma das modalidades do plea bargain norte-americano, o dispositivo tem causado polêmica, pois estabelece como regra, sem exceção, que o primeiro a delatar seja o mais merecedor do prêmio de não se tornar réu. Ora, nem sempre o primeiro que resolver colaborar com a Justiça dará o depoimento mais eficiente, ou seja, contribuirá com maior relevância de informações para desvendar os crimes da organização e os seus autores, de modo que o benefício de não ser denunciado pode acabar sendo entregue a quem merecia menos.

Em sexto, o dever de renúncia ao direito ao silêncio e o sequente compromisso de dizer a verdade por parte do “colaborador” – aquele interessado em contribuir positivamente para o avanço da investigação e o sucesso do processo criminal instaurado em face de integrantes de organização criminosa, em troca de um benefício legal, que pode ser um dos seguintes: redução de pena em até 2/3, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, perdão judicial e até mesmo deixar de ser denunciado.

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De fato, a Lei n° 12.850/2013 colocou o comparsa que resolve “entregar” a ação do grupo criminoso em uma posição diferenciada ao longo do processo criminal, de modo que, se o integrante de organização criminosa quer efetivamente demonstrar espírito de cooperação, deve agir como tal, desprendendo-se da figura de réu e de todo o arcabouço de garantias que lhe circunda, como expressamente constou no § 14 do art. 4º da Lei n° 12.850/2013:

Nos depoimentos queprestar, o colaboradorrenunciará, na presençade seu defensor,ao direito ao silêncioe estará sujeitoao compromisso legalde dizer a verdade

Um sétimo aspecto diferencial da Lei n° 12.850/2013 foi o tratamento minucioso da técnica investigativa “infiltração de agentes”, dando a ela contornos até então inexistentes na legislação pátria, em especial quanto aos limites e direitos do agente do estado que for inserido em organização criminosa com o propósito de colheita de provas. A propósito, apenas o agente de polícia poderá obter autorização para ingresso em organização criminosa, já que o agente de inteligência, que na Lei n° 9.034/95 também podia ser infiltrado, não mais pode sê-lo, por falta de previsão legal.

Relevante notar que no art. 13 da Lei n° 12.850/2013 ficou estampada a necessidade de atuação proporcional do agente policial infiltrado, sob pena de ele responder pelos excessos praticados, o que já era defendido doutrinariamente quando se discutia acerca das possíveis infrações penais que o agente infiltrado estaria autorizado a praticar na condição de “falso integrante de organização criminosa”. Também no parágrafo único desse mesmo dispositivo fora estabelecida expressamente uma hipótese de exclusão da culpabilidade - a inexigibilidade de

conduta diversa – quando o agente, diante do caso concreto, não tiver alternativa senão cometer um crime, isentando-o, neste caso, de punição.

Quanto aos direitos estabelecidos no art. 14 da Lei n° 12.850/2013, destaca-se o de ter todos os seus dados pessoais sob sigilo, inclusive durante o processo criminal, salvo se houver decisão judicial em contrário, bem como o de ter a sua identidade alterada e usufruir de medidas da proteção a testemunhas, o que veio bem a calhar diante do elevado grau de periculosidade da ferramenta investigativa.

Em oitava posição merece lembrança a previsão de “acesso a dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores da internet e administradoras de cartão de crédito” como meio de prova para apuração da criminalidade organizada – art. 3º, IV, da Lei n° 12.850/2013 – desincumbindo a autoridade policial ou o membro do Ministério Público da necessidade de prévia autorização judicial para

obter tais informações.

Numa visão apressada, estar-se-ia diante de uma provável ofensa ao direito à intimidade ou à vida privada de que trata o art. 5º, X, da Constituição Federal, já que, sem o filtro judicial prévio, órgãos investigadores poderiam, a qualquer tempo, lograr informações concernentes à vida pessoal dos investigados.

Porém, é de se atentar para o fato de que as informações estão limitadas a apenas três

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espécies de dados: qualificação pessoal, filiação e endereço, e que, num mundo contemporâneo e globalizado, não há mais sigilo algum quanto a esses dados, facilmente extraídos por qualquer pessoa – e de qualquer pessoa – pelo acesso à internet.

De acordo com o raciocínio de GUILHERME DE SOUZA NUCCI[7],

A previsão do art. 15 não merece censura, pois os dados cadastrais, referentes à qualificação pessoal (nome completo, RG CPF, profissão, nacionalidade, estado civil), a filiação (nome dos pais) e ao endereço (lugar de domicílio ou residência) não constituem meios de prova contra o indivíduo, mas sua identificação.

O direito de nãoproduzir prova contra simesmo nuncaabrangeu a ocultaçãode tais dados. Igualmente,não tem o investigadoou acusado o direitode manter silênciosobre isso.

Logo, útil a medida para alavancar a investigação, que ficaria – como já ficou outrora – literalmente travada sem a possibilidade de se obter tais de forma direta e imediata daqueles órgãos, os quais deverão doravante fornecê-los sempre que requisitados pelos investigadores em questão, inclusive podendo cometer crime em caso de recusa ou omissão desses dados, de acordo com o novo tipo penal descrito no art. 21 da Lei n° 12.850/2013[8].

Caminhando para a nona inovação produzida pela Lei n° 12.850/2013, cita-se a ação controlada – também conhecida como flagrante retardado ou postergado – que foi repetida como meio de prova na Lei n° 12.850/2013, mas com

o acréscimo de também poder ser utilizada como forma de retardar a intervenção administrativa – não só a policial – concernente à ação de organização criminosa, com o intento de buscar maior eficácia na colheita da prova, mantendo-se os requisitos de “observação e acompanhamento

da medida”.

Sendo assim, setores administrativos que também

tenham interesse na apuração

da conduta de servidores envolvidos

nas práticas delitivas estarão autorizados a

aguardar o momento mais apropriado para a tomada de

providências, a fim de não prejudicar o andamento das investigações.

Demais disso,houve menção expressa

à necessária comunicação prévia ao juiz no caso

de uso dessa técnica investigativa

– art. 8º, § 1º, da Lei n° 12.850/2013 –o qual poderá,

se entender necessário, estabelecer limites ao retardamento da ação

policial ouadministrativa.

Essa exigência não constava da revogada Lei n° 9.034/95, sendo que a doutrina se divergia acerca da necessidade ou não de autorização judicial, já que dispositivo similar existe na Lei n° 11.343/2006 – Nova Lei Antidrogas, no seu art. 53, II, sob a nomenclatura “entrega vigiada”[9] – em que a exigência de autorização judicial é expressa. Agora não há mais dúvidas: é necessário o prévio aviso – a lei não fala em autorização

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judicial, mas em comunicação prévia – ao juiz competente acerca da intenção do uso dessa ferramenta investigativa.

Em décimo, mas não menos importante, cabe mencionar que foram criados novos tipos penais pela Lei n° 12.850/2013, além do já nominado tipo de “organização criminosa”. Estão descritos no art. 18 até o art. 21 da Lei[10] e visam à proteção do curso da investigação criminal e da obtenção de prova em face das organizações criminosas. Embora com penas relativamente brandas tipo penal – o do art. 21 é de menor potencial ofensivo, enquanto os outros três permitem a suspensão condicional do processo – eles demonstram o intento do legislador em aparelhar o Estado no enfrentamento a eventuais manobras praticadas com o intuito de fragilizar a apuração dos crimes em questão.

Em arremate, após terem sido pinceladas as dez alterações mais relevantes ou que chamam a atenção pela novidade no trato do assunto, acredita-se que, a par das falhas ou ineficiências de qualquer produção legislativa, a nova “Lei das Organizações Criminosas” está muito mais adequada às necessidades enfrentadas no dia a dia pelos encarregados de sua apuração e da persecução penal dos crimes praticados por essas organizações.

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[1] - MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado – Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 6;

[2] - Aprovada pelo Decreto-lei n° 231, de 30 de maio de 2003; promulgada pelo Decreto n° 5.015, de 12 de março de 2004;

[3] - Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.

[4] - Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. (...) § 4º Nos delitos definidos no ‘caput’ e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de 1/6 a 2/3, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa.

[5] - Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. (...) § 4º A pena será aumentada de um a dois terços, se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa.

[6] - Art. 2° Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

[7] - NUCCI, Guilherme de Souza. Organização Criminosa – Comentários à Lei 12.850, de 02 de

agosto de 2013. São Paulo: RT, 2013, pág. 41.

[8] - Art. 21. Recusar ou omitir dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia, no curso de investigação ou do processo: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, de forma indevida, se apossa, propala, divulga ou faz uso dos dados cadastrais de que trata esta Lei.

[9] - Art. 53. Em qualquer fase da persecução

criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são

permitidos, além dos previstos em lei, mediante

autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os

seguintes procedimentos investigatórios: (...) II - a não

atuação policial sobre os portadores de drogas, seus

precursores químicos ou outros produtos utilizados em

sua produção, que se encontrem no território brasileiro,

com a finalidade de identificar e responsabilizar maior

número de integrantes de operações de tráfico e

distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.

[10] - Art. 18. Revelar a identidade, fotografar

ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização

por escrito: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos,

e multa.

Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de

colaboração com a Justiça, a prática de infração penal

a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações

sobre a estrutura de organização criminosa que sabe

inverídicas: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)

anos, e multa.

Art. 20. Descumprir determinação de sigilo

das investigações que envolvam a ação controlada e a

infiltração de agentes: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4

(quatro) anos, e multa.

Art. 21. Recusar ou omitir dados cadastrais,

registros, documentos e informações requisitadas pelo

juiz, Ministério Público ou delegado de polícia, no

curso de investigação ou do processo: Pena - reclusão,

de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo

único. Na mesma pena incorre quem, de forma

indevida, se apossa, propala, divulga ou faz uso dos

dados cadastrais de que trata esta Lei.

Notas

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ASPECTOS JURÍDICOS DA PERÍCIA MÉDICA

por José Aparecido RigatoPromotor de Justiça3ª Promotoria de Justiça de DouradosDoutor em Direito Internacional/USPMembro da IAP- International Associa-tion of Prosecutors

Este artigo trata de aspectos do procedimento da perícia médica quanto à existência, validade e eficácia jurídicas do respectivo laudo pericial diante da isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física. Dada a relevância pública e a incumbência do serviço médico oficial da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a correspondente atividade pericial deve seguir critérios técnicos e éticos, sob pena de ofender ao princípio constitucional da eficiência, dentre outros, e à imprescindível documentalidade administrativa e, ainda o pior, resultar em várias violações a direitos fundamentais da pessoa humana e a sua dignidade.

Assim, quando alguém é submetido ao serviço da perícia, em decorrência da portabilidade de doença grave isentiva do imposto de renda[1], o atendimento humanizado e acolhedor[2] resulta no respectivo laudo pericial, que é a designação da peça médico-legal escrita

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por perito, na qual relata a perícia, registrando o diagnóstico nosológico, conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID), bem como a data do início da moléstia e do seu diagnóstico[3]. Embora não prescreva tratamento, deve, no entanto, ser referido, inclusive acompanhamento ou monitoramento para o resto da vida quanto à(s) patologia(s) diagnosticada(s). Pois bem. O laudo pericial, para assim sê-lo, em termos jurídicos de existência, validade e eficácia, deve conter três requisitos essenciais: i) relatório, ii) análise de dados e iii) conclusão.

A razão é muito simples. O laudo emitido pelo serviço público é um ato administrativo elaborável por experts e deve individualizar o periciado, contendo determinados elementos: a começar pela sua qualificação completa (idade, profissão, etc.), quais as ocorrências patológicas por ele informadas e se apresentou relatórios médicos e exames correspondentes. Deve também se referir, ainda que resumidamente, ao que consta nos documentos, biópsias e exames apresentados. Isso configura histórico médico. É o registro da vida do periciado ao qual os peritos devem sempre atentar-se. Cada paciente é um ser concreto individuado e portanto deve ser observado concretamente. Por isso a não menção às patologias informadas pelo periciando representa grave indiferença. Humilha, desrespeita e atinge a dignidade do periciando, causando-lhe violação a seu direito de personalidade, que envolve bens imateriais.

Eis um primeirodireito fundamentalda pessoa humana:sentir sua presença reconhecida.Ser ouvida e ter suaversão devidamente registrada.A indiferença comprometeainda o direito fundamentala saúde, do qual a períciaé um desdobramento.

O sigilo médico que existe para resguardar a privacidade e intimidade da pessoa não é

absoluto, e não tem a força de imunizar e blindar a conduta médica em detrimento do examinado, pelo que o laudo pericial não pode ser omisso e reducionista, omitindo o diagnóstico de determinadas moléstias[4].

A menção de todosos dados, perfazendo o

histórico médico individual é, ademais, a prova

de que os expertsrealmente tiveram

um contato e um olhar efetivo e devido com

o periciado e, portanto, a individualidadeda perícia restou

assegurada mediantea demonstração documental do relatório – e não haveria

margem para dúvidas se os experts realmente leram

os exames apresentados pelo periciado.

A exigência, mais que questão de ordem técnica, é obrigação ético-política. O mesmo se passa com os membros do Poder Judiciário, que, antes de decidir, devem relatar todas as ocorrências e informações processuais. Da mesma forma, o Ministério Público, que, antes de opinar ou pugnar pela condenação do réu, também deve relatar os fatos. A razão dos escritos serem assim, contendo relatório de todas as circunstâncias, sua análise e conclusão, é sempre a mesma: demonstrar que se inteirou da realidade. E no caso de perícia, que conhece a situação histórico-médica da vida humana sobre a qual presta seus serviços.

Cabe, portanto, aos peritos que subscreverem o laudo, ter analisado todos os

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elementos médico-individuais constatados, registrá-los, e consequentemente emitir uma conclusão: i) se o periciado está doente; ii) se e quando esteve doente; iii) se, embora já curado e capaz para o trabalho, apresenta ele sequelas das patologias havidas; iv) se necessita ainda de medicamentos ou monitoramento para o resto da vida; v) no caso de a patologia ser viral, se

o vírus no caso específico é totalmente eliminado do organismo e impede haver recidivas; vi) no caso de carcinoma, se pode haver recidiva. Ou seja, faz

lembrar do adágio visum et repertum, expressão antiga que se tornou lema dos profissionais

peritos e que significa ver bem (examinar minuciosamente) e referir (descrever,

documentar) exatamente o que viu.

O requisito formal de existência jurídica do laudo reside na copresença destes três elementos essenciais: relatório, análise de dados e conclusão. Se falta um, inexiste laudo pericial no sentido

técnico-jurídico, embora indiferentemente possa assim autodenominar-se e carregar a epígrafe ou rótulo de laudo pericial. A rigor, não passa de um início ou mero pedaço de laudo. Configura nada mais que um simulacro de perícia. O resultado será um laudo “impericial”, prova documental da imperícia praticada.

Pressuposto que o trabalho da perícia é essencialmente técnico, critérios científicos

pertinentes são seguidos. Por isso,

os critérios de

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enquadramento adotados devem conter obrigatoriamente os diagnósticos[5] anatomopatológico, etiológico e funcional até então realizados. É um enquadramento técnico-médico com os parâmetros da área da saúde, e não da área do direito.

Não é a períciaformada por juristas,e nem é da alçadade sua competênciae responsabilidadesreconhecer ou não seo periciado é isento do IRPF.Isso está afeto àdecisão administrativa, apenas ao gestor doórgão a que está vinculadoo servidor.Por isso, o laudodeve se absterde considerações ouenquadramentos jurídicos,devendo ater-sea área privativa da saúde, fundamentando olaudo com critériosda doutrina médico-especializada.E obviamente respondera todos os quesitoseventualmente formulados.

No tocante ao conteúdo, se a conclusão não se harmoniza com os dados relatados e/ou avaliados, a autoridade administrativa, o gestor, conferirá o valor jurídico que merece, à luz do princípio da autotutela administrativa dos atos superintendidos. Com efeito, nenhuma

decisão administrativa prejudicial válida pode ser tomada com base em laudo (im)pericial. Do ilícito não decorre licitude alguma. Tal como na teoria jurídica dos frutos da árvore envenenada, decisão alguma pode se fundar, sob pena de invalidade, em prova ilícita ou ilegal. Aliás, a própria validade ou eficácia deste laudo pode ser também contestada judicialmente. Afinal, o juiz é o perito peritorum, sendo que as conclusões da perícia não vinculam o julgador, o qual pronuncia sua decisão de acordo com o livre convencimento motivado.

Se, por um lado,em um primeiro

momento o laudo se apresenta ineficaz

para fins previdenciários, sua eficácia como prova

documentada de imperícia por outro, seja no campo

administrativo,cível e até criminal,é irrefutável.

Na área administrativa/disciplinar, a desídia, na mais simples definição do termo, consiste em descuido na execução de um serviço. Em se tratando de serviço pericial, o descuido funcional, as omissões praticadas e a indiferença, inclusive às complexidades do mister, configuram desídia profissional, ferindo a ética e o decoro devidos. Por conseguinte, a infração ao dever de cuidado objetivo enseja a abertura de PAD, processo administrativo disciplinar, forma de controle correlata à própria concepção de Estado Democrático de Direito, visando assegurar o serviço público pericial adstrito aos lindes delimitadores de sua legitimidade: tempo e modo da respectiva prestação. Trata-se de inegligenciável controle endógeno[6].

Na área criminal, em situações indiciárias de ilícito(s) penal(is), medidas podem e devem ser tomadas. Administrativamente o superior hierárquico, sob pena de condescendência

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por diversos protagonistas, os quais também titularizam legitimidade para a causa, a exemplo do Ministério Público, Defensoria Pública, OAB, ONGs, etc., para a defesa de interesses e direitos difusos e coletivos afetados.

Se a ação civil pública utilizada for a de improbidade administrativa, de titularidade processual mais restrita, o fundamento reside exatamente na infringência dos princípios constitucionais regentes da atividade estatal: o da legalidade, o da moralidade e o da eficiência. Com efeito, a ineficiência causa também dano moral ao papel do próprio Estado. Enfraquece a legitimidade pressuposta dos atos do poder público e reduz a fé pública (substancial) dos documentos públicos (laudos periciais), erodindo em última consequência a própria fé na democracia.

Se o dano materialpode ser diretamente

palpável, e coloca o poder público como vítima

apenas, o dano moral o coloca como vítima mas

também como protagonista, pois aos olhos da sociedade

o Estado está ímprobo;é vítima, sim, e ao mesmo

tempo sujeitoque pratica esse dano.

Nesse contexto, a ineficiência estatal degenera a cidadania, a esperança e o impulso oficial para o bem comum. Degenera a consecução e a própria crença da sociedade nos valores que a fundamentam. Por isso o Estado nunca pode, condescendentemente, ser protagonista da improbidade. É contra sua essência. Com ou sem dano material, o dano moral é sempre grave. E grave gravíssimo, pois é infeccioso da cidadania política, do imaginário coletivo de que o poder público respeita, promove e garante a dignidade humana de todos[7], sadios e adoecidos.

A Lei de Improbidade Administrativa, Lei nº

criminosa, deve agir. Mas independentemente da responsabilidade administrativa, a criminal decorre do comportamento de retardar ou não praticar determinados atos inerentes e necessários à perícia, cometendo-se então o crime de prevaricação. E quem, de qualquer modo, concorrer para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade (Código Penal, artigo 29). Outros crimes também tipificados pelo ordenamento jurídico são os de falsidade ideológica e de falsidade de atestado médico, hipóteses subsumíveis quando o perito afirma ocorrência de patologia inexistente ou nega existir patologias ou sequelas diagnosticadas.

Na seara cível, os prejuízos materiais e também morais (estes decorrentes da ofensa aos direitos de personalidade) podem ser judicialmente cobrados tanto da pessoa jurídica quanto do(s) perito(s) imperito(s).

As ações que visemreparar a violaçãoa direitos fundamentaisda pessoa humanasão imprescritíveis.É exigível a qualquertempo consectáriosà violação, porquantoé da dignidade humana,valor supremo, que se trata.

A abertura de processo, no âmbito civil, tem como protagonista inaugural do devido processo legal, não o poder público como ocorre na área administrativa e criminal, mas o próprio periciado vítima, sujeito de direito. Além disso, a responsabilização cível não pressupõe a responsabilização administrativa e criminal. E dela não depende. Depende, sim, apenas da vontade e iniciativa do periciado vítima em acionar os causadores dos prejuízos, perante o Poder Judiciário. O processo está em suas mãos. Tem legitimidade ad causam. Paralelamente a esta titularidade individual, enquanto condição da ação cível, é importante sublinhar que coexistem as ações civis públicas, que podem ser movidas

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8.429/1992, dispõe que: “Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (...) II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; (...).”

Oportuno lembrar também da Lei nº 12.527/2011, conhecida como “Lei de Acesso à Informação”, o seguinte: “Art. 32. Constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público ou militar: I

- recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu

fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou

imprecisa; II - utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições

de cargo, emprego ou função pública; (...)”.

P o r t a n t o , retardar a perícia

ou informar sua r e a l i z a ç ã o

de forma incorreta,

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incompleta ou imprecisa, ocultando dados levantados no iterpericial e que devem constar do prontuário pericial, configura improbidade administrativa. A não realização a tempo e modo da atividade pericial, bem como mal informá-la, configuram omissões indevidas na prática de atos de ofício, violando, a um só tempo, os princípios constitucionais da legalidade, da eficiência e da moralidade (CRFB, artigo 37, caput).

Na era das TICs, tecnologias de informação,

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comunicação e transportes, é inaceitável a não sincronia temporal da perícia com a velocidade atual da realidade.

Demorar em procederà perícia e demorar depoisainda mais para elaboraro respectivo laudo,configura atentado à lógica,ao bom senso e representareal e manifesta violaçãodaqueles princípiosconstitucionais, maltratandoo direito indisponível,individual e social, à saúde,do qual, como já dito,a perícia é um desdobramento.Além disso, a demorasignifica ainda um tipode indiferença,não menos lesiva aosdireitos de personalidade,obrigando os responsáveisa indenizar o dano.

Preocupada com suas próprias responsabilidades, a União estabeleceu regras deontológicas e os principais deveres do servidor público. É o que se colhe do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal – Decreto n° 1.171/94, nas Seções I e II do Capítulo I: dever de dizer a verdade; necessidade de cortesia e boa vontade no serviço; e que atendimento inadequado, permitindo a formação de longas filas, viola a ética e causa dano moral aos usuários dos serviços, etc.

Como se vê, todo zelo é pouco dada a relevância do serviço prestado e, por isso, jamais se pode perder de vista que o periciado por alguma razão se encontra em posição de

vulnerabilidade e todos aqueles procedimentos na elaboração de laudo têm como objetivo, no campo da saúde, reconhecer, proteger, promover e garantir a dignidade desse sujeito mediante atendimento humanizado e acolhedor. Assim, retardar ou não praticar o serviço da perícia a tempo e modo adequados tipifica ilicitude multifacetária, lesando direitos individuais e sociais indisponíveis.

Os serviços periciaisda saúde configuram,

na essência, direito individuale social ao mesmo tempo.

Ambos indisponíveis.Sua efetividade é interessede toda sociedade e deverdo Estado, cujos agentes

não podem,inconsequentemente,

descuidar, causando enormesprejuízos ao periciado,

à sociedade eao próprio Estado.

Daí que essas preocupações, de como proceder durante a perícia e como elaborar o respectivo laudo, têm respaldo e exigência expressas no direito. Não é por outra razão que a legislação traça diretrizes e procedimentos a serem seguidos. No âmbito federal, a Portaria SRH nº 797, de 22 de março de 2010[8], instituiu o Manual de Perícia Oficial em Saúde do Servidor Público Federal.

Nos Estados e Municípios, ainda que a normatização seja menos eloquente costuma-se invocar aquele Manual. E no âmbito do INSS, o Manual de Perícia Médica da Previdência Social é taxativo ao estabelecer na realização do exame médico-pericial que: “Não basta examinar bem e nem chegar a uma conclusão correta. É preciso registrar, no Laudo de Perícia Médica, com clareza e exatidão, todos os dados fundamentais e os pormenores importantes, de forma a permitir à autoridade competente

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elemento(s) essenciais de existência, validade e eficácia, não se pode falar, no sentido técnico-jurídico, em laudo pericial, pois estar-se-á diante de laudo impericial (prova documentada da imperícia praticada), sujeitando os responsáveis/autores a consequências administrativas, cíveis e até criminais, na medida em que ofende direitos individuais e sociais indisponíveis, bens jurídicos protegidos por vários e distintos ramos do direito, irradiando flagrante violação de direitos fundamentais da pessoa humana e da sua dignidade.

Notas

[1] - Vide matéria na Revista MPEspecial, Campo Grande, Ano 01, Ed. 10, p. 28-33, outubro de 2013, intitulada “Breves considerações sobre isenção tributária do IRPF”, disponível em http://www.mpms.mp.br/portal/pg_banners/revistampe.php

[2] - Adjetivos empregados na Portaria GM/MS 1820/09, e lembrados nos considerandos dos encaminhamentos da audiência pública sobre o programa “Mais médicos para o Brasil”, por parte do Conselho Nacional do Ministério Público, Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais, Grupo de Trabalho – Proteção à Saúde, em 4 de setembro de 2013.

[3] - Tratando-se de isenção de Imposto de Renda, é a partir da ocorrência da doença diagnosticada que o benefício tributário ocorre. Se foi pago tributo indevidamente, poderá o portador de moléstias graves enumeradas na Lei nº 7.713/88, artigo 6º, XIV, pedir a devolução do imposto pago, corrigido. Nesse sentido também tese intitulada “Isenção Tributária do IRPF: A Identidade de um Direito Individual e Social Indisponível”, apresentada e aprovada por unanimidade no XX Congresso Nacional do Ministério Público, realizado em Natal-RN, no período de 30/10 a 2/11/2013, in XX CONGRESSO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, Natal, 2013. Anais. Brasília: Gomes e Oliveira Editora, 2013, p. 425-440. Disponível em http://site1381759324.provisorio.ws/congressomp2013/teses_aprovadas_CongressoMP2013.pdf

[4] - É a hipótese legal das patologias graves, elencadas em diversas leis, dentre as quais a Lei nº 7.713/88, que altera a legislação do imposto de renda e dá outras providências.

[5] - Manual de Perícia Oficial em Saúde do Servidor Público Federal, Capítulo VII, p. 47.

[6] - Por outro lado, o controle exógeno da atividade administrativa é outorgado ao Ministério

que deva manuseá-lo, inteirar-se dos dados do exame e conferir a conclusão emitida” (p.26-27).

Bem, por issoo concurso de todos,desde a conscientizaçãodos direitos humanoselementares atéas (re)ações proativasde elaborar uma cartilhaem papel e on-line,esclarecendo a importânciada perícia, os direitosde cidadania dos periciandos,os requisitos do laudoe suas consequências,com textos de lei e modelosde requerimento e recursos,bem como o contatoe endereço de Ouvidorias,Ministério Público,Defensoria Públicae demais órgãos fiscalizadores,consubstanciamideia oportuna,conveniente, necessária,esclarecedora e indutorade cidadania.

Em conclusão, cabe ao serviço médico oficial da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, constitucionalmente reconhecido de relevância pública, 1º) oferecer atendimento humanizado e acolhedor e 2º) nos casos de perícia referentes a doenças graves elencadas em lei, finalizar com a elaboração de um laudo pericial, que deverá conter i) relatório, ii) análise e iii) conclusão. Ausente(s) esse(s)

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Público pelo artigo 129, II, da Constituição da República, segundo o qual é atribuição da referida Instituição “zelar pelo efetivo respeito do Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia”. A propósito, um dos instrumentos de controle da atividade estatal que o Ministério Público utiliza tem sido a dos termos de ajustamento de conduta – TAC.

[7] - Sobre a interface dignidade e direito, bem como uma tipologia da dignidade humana, ver

nossas reflexões In “O Direito Penal na proteção da(s) dignidade(s) humana(s)”. Revista Videre, Dourados, MS, ano 2, n. 4, p. 211-229, jul./dez. 2010. Disponível em http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/videre/article/viewFile/786/pdf_41 e “A persecução penal frente à(s) dignidade(s) humana(s)”. In: 4º Congresso Virtual Nacional do Ministério Público, 2010. Disponível em http://www.

[8] - Disponível em http://www.farmacia.ufg.br/uploads/130/original_manual_de_per__cia_oficial.pdf

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por Jaceguara Dantas da Silva PassosPromotora de JustiçaDoutoranda em Direito, área de con-centração em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Tradicionalmente, quando se aborda o Direito Internacional Público, necessariamente se impõe a discussão acerca de sua relação com os ordenamentos jurídicos nacionais, na qual se dividem os teóricos mais tradicionais entre as clássicas e diametralmente opostas concepções, monismo e dualismo.

Entrementes, esta abordagem não apresenta resposta de forma satisfatória quando se trata de uma análise sob a perspectiva de proteção dos direitos humanos, que necessita ser reconfigurada diante de uma realidade pluralista, complexa e globalizada.

Hodiernamente há a prevalência do entendimento de que os instrumentos internacionais de direitos humanos incidem diretamente sobre os beneficiários, não comportando, desta feita, a análise do direito internacional e do direito nacional de forma fragmentada, como se não fossem parte do mesmo todo.

O PAPEL DO DIREITO INTERNACIONAL NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS NACIONAIS: UM DEBATE TEÓRICO CONTEMPORÂNEO

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Há uma inexorável integração dos sistemas jurídicos, internacional e nacional, com influências recíprocas a propiciar comunicação e consequências jurídicas, em face do fenômeno da internacionalização da proteção dos direitos humanos, sustentando, alguns doutrinadores, o surgimento de um novo constitucionalismo, no qual os tratados de direitos humanos teriam um tratamento diferenciado. [1]

Quanto às concepções mencionadas, o monismo se apresenta como uma concepção jurídica superada, enquanto o dualismo, para alguns teóricos, deveria ser substituído por uma nova base conceitual, pluralismo jurídico, capaz de enfrentar com maior eficiência a diversidade no âmbito jurídico e estabelecer os vínculos necessários entre as Constituições nacionais e os fenômenos jurídicos internacionais. [2]

Sustenta esta nova concepção que

as correntes monistae dualista nos temposatuais serviriam apenascomo um indicativopara evidenciar umaposição mais herméticaou mais aberta frenteao direito internacional.

O pluralismo jurídico propõe o reconhecimento da coexistência de diversos sistemas normativos desvinculados da noção de Estado, em que diversos atores influem no cenário nacional e internacional, ultrapassando os limites dos Estados, enquanto nação.

Tal concepção considera que as formas diferenciadas de atuar da sociedade em múltiplas áreas, tais como, mercado, economia, ciência, cultura, turismo, esporte e outras, notadamente de maneira globalizada, propiciam a criação de subsistemas que também operam de forma globalizada, superando a ideia até então vigorante da existência de um único sistema que contemple a todos os povos. [3]

Desta diversidade de ordens decorrem problemas de direitos humanos, cuja solução

perpassa necessariamente pelas diversas ordens envolvidas.

SOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE NORMAS ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO NACIONAL

Conforme já assinalado, duas correntes sustentam pontos de vista antagônicos, no que concerne ao potencial ou aparente conflito de normas entre o direito internacional e o direito nacional.

Para a escola monista, a primazia é do direito internacional em detrimento do direito nacional, conferindo personalidade internacional ao indivíduo como sujeito de direito, corrente prevalecente nos tempos atuais.

Já a escola dualista, sustenta a predominância do direito nacional, havendo uma única possibilidade de intersecção entre dois sistemas jurídicos distintos, quando existente previsão expressa de incorporação das normas de um sistema no outro.

A posição sustentada por esta escola conduz à paradoxal situação de uma norma interna ter, em tese, a possibilidade de contrariar um tratado, razão pela qual ela se torna cada vez mais superada, uma vez que não consentânea com a visão contemporânea do direito internacional.

Ressalta-se que,

não obstanteas divergentes

opiniões, ambas as escolas são uníssonas

no sentido de comungarem o entendimento da

necessidade de uma conformação da ordem

internacional com a ordem nacional.

A realidade do sistema global e regional de proteção dos Direitos Humanos e a necessária

” “

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integração e complementaridade entre os ordenamentos jurídicos para o fim de ampliar e tornar mais efetiva a

proteção a estes direitos tornam inócua a discussão sob a ótica da corrente dualista.

É inegável que a corrente monista é a que melhor se ajusta à moderna realidade

internacional, por propiciar a concretização dos Direitos Humanos, deste fato

decorrendo sua maior aceitação e viabilidade.

Muitos problemas decorrem da aplicação

da lei internacional e de seus ajustes no

ordenamento j u r í d i c o

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nacional. Eugenio Raúl Zaffaroni et al.[4] mencionam dois interessantes exemplos da realidade brasileira para destacar essa celeuma:

O primeiro deles refere-se à disposição inserta na Carta Magna de 1988, em seu artigo 5º, § 2º. No ano de 1992, o Brasil promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual contém norma que conflita com a Carta Magna no que concerne à prisão civil. Isso porque, enquanto a Convenção permite apenas a prisão na hipótese de dívida alimentícia, o texto constitucional admite esta e a prisão do depositário infiel.

A questão foi posta sob apreciação da Suprema Corte, tendo sido inicialmente firmado o entendimento de que deve vigorar o texto constitucional, ainda que frontalmente contrário à disposição expressa da Convenção Americana, tendo por fundamento aludida decisão a “[...] Soberania do estado-povo na elaboração de sua Constituição.”[5]

Posteriormente, esse posicionamento do Supremo Tribunal Federal foi revisto por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343-1/SP, rel. min. Cezar Peluso, 03/12/2008, Tribunal Pleno, DJE 5/6/2009; e do Recurso Extraordinário n. 349.703/RS [6], rel. min. Carlos Ayres Britto, 03/12/2008, Tribunal Pleno, DJE 5/6/2009. Assumindo postura mais adequada à realidade, voltada à proteção dos direitos humanos, a maioria dos Ministros concluiu que, diante da supremacia da norma constitucional que prevê a prisão civil do depositário infiel, não houve revogação pela adesão ao Pacto de San José da Costa Rica, que a proíbe, no entanto, a norma constitucional deixou de ter aplicabilidade em razão do efeito paralisante desse Tratado sobre as normas infraconstitucionais conflitantes com seu mandamento, decorrente do seu caráter supralegal.

Outro exemplo refere-se ao duplo grau de jurisdição que a Convenção Americana considera como garantia judicial (art. 8º, inc. 2, al. “h”) e que, no ordenamento jurídico pátrio, é admitida circunstância que não comporta recurso ordinário, a exemplo das denominadas ações originárias.

Instado a se manifestar, o Supremo decidiu que, não obstante a vigência da Convenção, em face da sua promulgação, o duplo grau de jurisdição não é considerado garantia constitucional. [7]

O monismo é a teoria adotada pelo

ordenamento jurídico brasileiro, entretanto constata-se na prática a dificuldade de implementá-la, o que alicerça cada vez mais a convicção da necessidade de fazer constar expressamente na Constituição a inserção dos instrumentos internacionais dos direitos humanos, como ocorrido na Argentina (art. 75, inc. XXII, da Constituição Federal de 1988), de forma a torná-la inconteste e assegurar a sua aplicabilidade plena.

Desta forma, assenteestará o conteúdo

da Declaração Universale demais instrumentos

jurídicos internacionais, marcando de forma

indissociável seu sentidojurídico e não

meramente ético.

No que concerne ao conflito entre as normas de direito internacional e as de direito nacional, a exegese mais adequada e que atende aos interesses de uma ordem globalizada é a da coexistência das normas, de forma a possibilitar uma integração e complementariedade dos sistemas. [8]

O critério para a resolução das antinomias deve ser o mais plural possível, com a inclusão de todas as fontes, tais como Constituição e os próprios tratados, dentre outros, com a prevalência da norma mais favorável à vítima, seja ela de direito internacional ou nacional.

Tal posição encontra fundamento no princípio internacional pro homine e que visa dar concretude à proteção dos direitos humanos, de forma a possibilitar um diálogo de fontes, uma harmonização entre o direito internacional, em especial o decorrente dos tratados de direitos humanos e o direito nacional, cujo objetivo é assegurar a mais ampla proteção da pessoa humana. Exemplo da aplicação deste princípio encontra-se no artigo 29, inciso “a”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. [9]

O importante é reconhecer nos sistemas

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formal previsto nesse § 3º, entende-se que a antiga celeuma existente antes da Emenda Constitucional n. 45/2004 persiste, comportando a temática discussão teórica sobre sua hierarquia, mantendo-se, em tese, as quatro principais correntes doutrinárias anteriormente existentes: a) hierarquia supraconstitucional; b) hierarquia constitucional; c) hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; d) paridade hierárquica entre o tratado e lei federal ou ordinária. [13]

A corrente que adota a posição de hierarquia constitucional sustenta que, para tais tratados, deve-se considerar o disposto no artigo 5º, § 2º, do texto Constitucional, que prevê: “[...] não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

Flávia Piovesan [14], Antonio Augusto Cançado Trindade [15], José Joaquim Gomes Canotilho [16], entre outros, defendem que o dispositivo mencionado inclui, dentre os direitos constitucionais, os demais Direitos H u m a n o s p r o t e g i d o s por tratados internacionais, a d q u i r i n d o dessa forma hierarquia de norma constitucional. [17]

Sustentam tal posicionamento, sob justificativa de ser o mais adequado à interpretação sistemática, que busca a máxima efetividade e teleológica do texto, conferindo força ampliativa ao valor da dignidade humana e direitos

normativos, internacional e nacional, uma unidade de propósito para garantir a efetiva proteção do ser humano, resultando desta a importância da prevalência da norma mais favorável à pessoa, diretriz que é adotada pela Comissão Europeia de Direitos Humanos, Petição n. 235/56, de 1958-1959, e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva de 1985. [10]

Ademais, a fim de prevenir eventuais conflitos entre as jurisdições internacional e nacional, estabeleceu o sistema de proteção internacional dos direitos humanos a exigência de esgotamento prévio dos recursos de direito interno, o que ressalta o caráter subsidiário daquele, subsistindo aos órgãos internos dos Estados a responsabilidade primária.

DA HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Quanto à normativa dos tratados internacionais e sua hierarquia no ordenamento jurídico brasileiro, imperiosa a ressalva sobre os que versem sobre direitos de ordem econômica, financeira, ou seja, tratados inerentes à ordem privada, na qual inclusive prevalece o princípio do pacta sunt servanda entre os signatários [11], estes possuem inegável hierarquia infraconstitucional, em especial pelo seu caráter comum de mero compromisso recíproco entre os Estados-Parte.

Entrementes, considerando-se o teor do disposto no artigo 5º, § 3º [12], inserido pela Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, os tratados e convenções internacionais que versem sobre Direitos Humanos e que forem objeto de procedimento formal exigido para aprovação das emendas, a estas se equivalem.

A título exemplificativo, menciona-se a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, primeiro tratado sobre Direitos Humanos assinado e aprovado pelo Congresso após a Emenda Constitucional n. 45/2004, mediante o procedimento previsto no citado § 3º, e ratificado no ano de 2008 pelo Brasil, que, por isso, possui indiscutível hierarquia de Emenda Constitucional.

Quanto aos tratados que versam sobre Direitos Humanos aprovados sem o procedimento

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§ 2º, apresentam hierarquia constitucional; e estes, hierarquia infraconstitucional. Mais recentemente, referida posição ganhou adesão de Lenio Luiz Streck [22], dentre outros.

A tese da hierarquia supraconstitucional, consoante destacado pelo voto do rel. min. Cezar Peluso, no Recurso Extraordinário n. 466.343-1/SP, que tem como recorrente o Banco Bradesco S/A, e como recorrido L. C. S., no qual consistiu em objeto de discussão a inconstitucionalidade da prisão civil em contrato de alienação fiduciária e, por consequência, aludido tipo de prisão em face dos tratados internacionais de Direitos Humanos, tem como grande defensor em termos de Direito Comparado o doutrinador Gérman J. Bidart Campos [23], para quem o Direito Internacional dos Direitos Humanos deve estar acima da Constituição.

Perante a legislação pátria, destaca-se o doutrinador e Ministro Celso de Albuquerque Mello, que, no Recurso Extraordinário n. 466.343-1/SP [24], sustenta a posição de superioridade dos tratados de Direitos Humanos em face das normas constitucionais.

A despeito de esposar o entendimento de que a discussão a respeito do tema foi esvaziada pela promulgação da Emenda Constitucional n. 45/2004, que inseriu a disposição contida no artigo 5º, § 3º, o Ministro Gilmar Mendes sustenta que tal alteração, embora aponte para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais, é uma declaração eloquente de que os tratados de Direitos Humanos ratificados antes dessa mudança, e não submetidos ao processo legislativo especial, não podem ser equiparados às normas constitucionais. [25]

A corrente doutrinária que defende a tese da hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados internacionais dos Direitos Humanos tem como um de seus maiores expoentes o doutrinador Sepúlveda Pertence (Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 79.785/RJ), que pugna pela defesa da internacionalização dos Direitos Humanos e, se necessário, aplicação de normas internacionais, sem ferir a Constituição, mesmo contrárias às leis ordinárias, desde que as complementem, especificando ou ampliando as garantias nelas constantes.

Atualmente, obtém a adesão da maioria dos Ministros da Corte Suprema do Brasil, sendo

fundamentais, parâmetros axiológicos que orientam o fenômeno constitucional, reforçam suas alegações acrescentando a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais. [18]

Nesse sentido, Flávia Piovesan [19] afirma:

A Constituição assumeexpressamente o conteúdoconstitucional dos direitosconstantes dos tratadosinternacionais dos quaiso Brasil é parte.Ainda que esses direitosnão sejam enunciadossob a forma de normas constitucionais, mas soba forma de tratadosinternacionais, a Cartalhes confere o valor jurídicode norma constitucional,já que preencheme complementam o catálogodos direitos fundamentais previsto pelo TextoConstitucional [...].

Os direitos internacionais integrariam, assim, o chamado “bloco de constitucionalidade”, densificando a regra constitucional positivada no artigo 5º, § 2º, caracterizada como cláusula constitucional aberta. [20]

Para Flávia Piovesan [21], e outros doutrinadores que sempre defenderam a tese da hierarquia constitucional, o Brasil adotou um sistema misto disciplinador dos tratados: um regime aplicável aos tratados de Direitos Humanos e outro aplicável aos tratados tradicionais. Aqueles, por força do artigo 5º,

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também defendida pelo Constitucionalista e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, a teoria que sustenta que, embora os tratados que versem sobre Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, sejam infraconstitucionais, mas com caráter de supralegalidade, teriam posição privilegiada em relação aos demais atos normativos. [26]

Nesse diapasão, importante o paradigma da Alemanha, em termos de direito comparado, que prima facie sustenta a posição de que as normas gerais do Direito Internacional integram o direito federal e prevalecem sobre as leis. [27]

A par dessa s u s t e n t a ç ã o teórica, Gilmar

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Mendes aponta para uma alternativa, qual seja, a submissão do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, e demais tratados que versem sobre Direitos Humanos ao procedimento especial de aprovação explicitado no artigo 5º, § 3º, da Constituição, consoante alteração introduzida no ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional n. 45/2004, o que asseguraria a todos esses instrumentos o status de Emenda Constitucional. [28]

Embora a celeuma da recepção dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro esteja resolvida para o futuro, a partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, ressalva-se que, em relação aos tratados e convenções de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil ou que não atendam ao quórum qualificado exigido ou mesmo ao procedimento formal previsto na mencionada Emenda, compartilha-se do entendimento de que estes possuem status constitucional, que lhes é assegurado por força do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988.

Esposa-se o entendimento de que a visão que se deve ter dos Direitos Humanos é a da máxima efetividade, não se sustentando direcionamento restritivo sobre temática que vise salvaguardar direitos e valores imprescindíveis para a afirmação do ser humano, que possibilite seu desenvolvimento e que assegure a preservação de sua dignidade.

Essa é a perspectiva com que são elaborados os tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos, de forma a possibilitar um diálogo entre as diversas culturas jurídicas sempre numa visão maior de defesa e inclusão do ser humano.

Com base no princípio mencionado, da máxima efetividade [29], há que se concluir pela força normativa dos tratados internacionais assinados pela República Federativa do Brasil, mormente quando envolvem matéria referente a Direitos Humanos, independentemente de terem

sido firmados mediante o mesmo procedimento das emendas constitucionais ou de forma simples. Dada a relevância do conteúdo, esses tratados devem ser considerados materialmente constitucionais.

DA ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO § 3º DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004

O § 3º do artigo da Emenda Constitucional n. 45/2004, que tratou da reforma do Poder Judiciário, prevê procedimento de incorporação ao direito interno dos tratados relativos a direitos humanos, equivalentes estes às emendas constitucionais, o que deve ser entendido como forma de conferir aos direitos insertos nos tratados o status de direitos formal e materialmente fundamentais. [30]

De modo contrário, alguns doutrinadores sustentam a inconstitucionalidade da referida disposição, sob o fundamento de que a modificação operada por meio da citada Emenda representa uma inegável dificuldade da incorporação dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos, uma vez que exige a participação direta do Presidente da República, em uma das fases, contrariando o princípio da prevalência dos direitos humanos, enquanto princípio constitucional, e ainda por consolidar o entendimento de que os tratados não incorporados de conformidade com o rito das emendas teriam hierarquia apenas legal.

A opção do legislador constituinte estaria, de conformidade com este entendimento, a dificultar a proteção dos direitos humanos, produzindo um inaceitável retrocesso, violando o princípio da vedação do retrocesso ou da proibição de regresso, que na doutrina francesa recebe a denominação de “efeito cliquet” dos direitos humanos. [31]

Esta objeção é refutada por outros doutrinadores, para os quais o procedimento diferenciado estaria a garantir uma maior proteção,

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em virtude de conferir aos direitos contidos nos tratados uma hierarquia constitucional, agregando maior legitimidade democrática e, por consequência, eficácia e efetividade, requisitos indispensáveis para consolidar a posição do Brasil perante a comunidade internacional. [32]

Ademais, fundamenta esta posição doutrinária que este procedimento diferenciado para a incorporação dos tratados de direitos humanos seria mais adequado e compatível, por se constituírem em verdadeiros limites materiais a eventual reforma, servindo desta feita de obstáculo a limitações e retrocessos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações efetivadas buscaram evidenciar que os direitos humanos redimensionam o papel do direito internacional e do direito nacional, de forma a destacar o novo aporte hermenêutico no qual sobressai a interação entre os sistemas, que, num diálogo horizontal, consagram a diretiva de máxima proteção da pessoa humana.

Assim, de fundamental importância a teoria de coexistência de diversos sistemas jurídicos, uma vez que mais consentânea com uma sociedade globalizada e complexa, na qual não mais subsiste a ideia de um só sistema que contemple a todos os povos.

Nesse sentido, o destaque realizado do critério de solução das antinomias, que deve incluir todas as fontes, Constituição e os próprios tratados, dentre outros, com a prevalência da norma mais favorável à vítima, seja ela de direito internacional, ou de nacional, posição assentada no princípio internacional pro homine.

Importante ainda o debate travado em nível nacional da hierarquia dos tratados de direitos humanos e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que demonstram o processo de inserção dos tratados no ordenamento jurídico pátrio.

A abordagem da matéria inspira um novo olhar ao direito internacional, a fim de estabelecer premissas para uma relação entre os Estados no qual seja dada primazia à proteção dos direitos humanos.

Notas[1] - CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto.

El derecho internacional de los derechos humanos en el siglo XXI. 2. ed. Santiago, Chile: Editorial Jurídica de Chile, 2006.

[2] - VON BOGDANDY, Armin. Del paradigma de la soberanía al paradigma del pluralismo normativo: una nueva perspectiva (mirada) de la relación entre el derecho internacional y los ordenamientos jurídicos nacionales. In: CAPALDO, Griselda; SIECKMANN, Jan; CLÉRICO, Laura. (Dir.). Internacionalización del derecho constitucional, constitucionalización del derecho internacional. Buenos Aires: Eudeba, 2012. p. 21-40.

[3] - FIGUEIREDO, Marcelo. La internacionalización del orden interno en clave del derecho constitucional transnacional. In: VON BOGDANDY, Armin; PIOVESAN, Flávia; ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coord.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica: emergência de um novo direito público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 143-177. (Série Estudos Avançados).

[4] - ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1.

[5] - STF, HC n. 73.044/SP, rel. min. Maurício Correa, j. 01/03/1996, DJ 05/06/1995. ZAFFARONI, 2003, p. 340.

[6] - “Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF (‘não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;’). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP, abaixo relatado. Vencidos, no ponto, os Ministros Celso

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de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento. Na linha do entendimento acima fixado, o Tribunal, por maioria, desproveu recurso extraordinário no qual se discutia a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia (DL 911/69: ‘Art. 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.’) — v. Informativos 304, 449 e 498. Vencidos os Ministros Moreira Alves e Sydney Sanches, que davam provimento ao recurso.”

[7] - STF, RHC n. 79.785/RJ, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 15/08/2000, DJ 30/08/2000; STJ, 1ª Turma, AIAgR n. 248.761/RJ, rel. min. Ilmar Galvão, j. 11/04/2000, DJ 23/06/2000; STJ, 6ª Turma, AgRg n. 1.073/RJ 1999/0012978-4, rel. min. Fernando Gonçalves, j. 24/05/1999, DJ 30/08/1999.

[8] - GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. (Coleção Ciências Criminais, v. 4).

[9] - Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Artigo 29. Normas de interpretação. “Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a. permitir a qualquer dos Estados-Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista.” Ibid., 2013.

[10] - CANÇADO TRINDADE, 2006.

[11] - Assim, o artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, dispõe que uma parte não poderá invocar as disposições do seu direito interno como justificação do descumprimento de um tratado. [NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993). Durban, 2001. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/Dec la rac255eo%20e%20Plano%20de%20Ac255eo%20-%20Viena.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2013].

[12] - “Os Tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalente às emendas à constituição.”

[13] - Tal tese foi inicialmente sustentada pelo STF em 1977, em matéria referente a tema comercial, porém foi sendo reiterada para demais áreas, como no julgamento de Habeas Corpus n. 72.131/RJ, rel. min. Marco Aurélio, j. 22/11/1995, Tribunal Pleno, DJ 20/09/1996, sobre prisão civil por dívida de depositário infiel, em votação não unânime (doutrinariamente, a tese é defendida também por Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior). [ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.]

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[14] - PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[15] - “É alentador que as conquistas do Direito Internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no Direito Constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.” CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil. 2. ed. Brasília, DF: Ed. UnB, 2000.

[16] - CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993.

[17] - Nesse sentido foi o voto vencido do min. Celso de Mello lido no dia 12 de março de 2008 no Pleno do Supremo Tribunal Federal, no HC n. 87.585/TO e RE n. 466.343/SP, ao reconhecer o valor constitucional dos tratados internacionais de Direitos Humanos.

[18] - PIOVESAN, op. cit., 2011.

[19] - Ibid., p. 107.

[20] - Ibid.

[21] - Ibid.

[22] - STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. O Seu Portal Jurídico, 2007. Disponível em <http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=66&Itemid=40>. Acesso: 23 mar. 2011.

[23] - BIDART CAMPOS, Gérman J. Teoría general de los derechos humanos. Buenos Aires: Astrea, 1991.

[24] - “Entre nós, Celso de Albuquerque Mello é um exemplar defensor da preponderância dos tratados internacionais de Direitos Humanos em relação às normas constitucionais, que não teriam, no seu entender, poderes revogatórios em relação às normas internacionais. Em outros termos, nem mesmo emenda constitucional teria o condão de suprimir a normativa internacional subscrita pelo Estado em tema de Direitos Humanos.”

[25] - MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva/Instituto Brasiliense de Direito Público, 2007.]

[26] - MENDES; COELHO; BRANCO, 2007.

[27] - Artigo 25 da Constituição da Alemanha: “As normas gerais do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito federal. Elas prevalecem sobre as leis e produzem diretamente direitos e deveres para os habitantes do território nacional.” [Ibid., p. 666.]

[28] - Ibid.

[29] - “Deve assentar-se no postulado de que todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma pode dar-se uma interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Mais: a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê, a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação.” [MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002.]

[30] - SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e tratados internacionais em matéria de direitos humanos: revisitando a discussão em torno dos parágrafos 2º e 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988. In: NEVES, Marcelo (Coord.). Transnacionalidade do direito: novas perspectivas dos conflitos entre ordens jurídicas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010. p. 73-100.]

[31] - CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. O controle de convencionalidade e o diálogo entre ordens internacionais e constitucionais comunicantes: por uma abertura crítica do direito brasileiro ao sistema interamericano de direitos humanos. In: FURTADO, Marcos Vinícius (Coord.). Reflexões sobre a Constituição: uma homenagem da advocacia brasileira. Brasília, DF: Alumnus, 2013. p. 415-441.

[32] - SARLET, 2010.

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PIOVESAN, Flávia; ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coord.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica: emergência de um novo direito público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 143-177. (Série Estudos Avançados).

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direito constitucional internacional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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VON BOGDANDY, Armin. Del paradigma de la soberanía al paradigma del pluralismo normativo: una nueva perspectiva (mirada) de la relación entre el derecho internacional y los ordenamientos jurídicos nacionales. In: CAPALDO, Griselda; SIECKMANN, Jan; CLÉRICO, Laura. (Dir.). Internacionalización del derecho constitucional, constitucionalización del derecho internacional. Buenos Aires: Eudeba, 2012. p. 21-40.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1.

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TRIBUNAL DO JÚRI:DUAS QUESTÕES

por Rodrigo Correa AmaroPromotor de Justiça3ª Promotoria de Justiça de Corumbá

Se por um lado é notório que a instituição do tribunal do júri sempre foi alvo de críticas, não menos verdade que, por outro, muitos desses ataques são feitos sem o menor embasamento jurídico. Nas palavras de Edilson Mougenot Bonfim, “nem sempre, e não por todos, seguramente, foi ou tem sido defendido. É que não se põe à justiça humana como um ‘ek théon gegonót’ dos antigos gregos... cumpre aperfeiçoá-lo, quando detectados vícios intrínsecos ou dos homens que dele se ocupam. Necessário que se diga, contudo, que aqueles que combatem o Júri, via de regra, nele não militam” [Júri, do Inquérito do Plenário, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 263].

Nesse afã de “menosprezo” à importância do júri, duas teses defensivas têm despontado com relativa frequência: a primeira, argumentando que o judicium acusationis deveria se orientar pelo in dubio pro reo; já a segunda, refere-se aos pedidos – sem justa causa – de cisão do plenário

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quando da existência, pura e simples, de mais de um defensor na causa. Nenhuma delas, contudo, digna de amparo.

A primeira tese tem servido de base a recursos interpostos contra decisões de pronúncia, mesmo quando clara a materialidade e presentes os indícios de autoria. Em apertada síntese, tem sido sustentado que, no atual panorama jurídico nacional, não mais se poderia aceitar o brocado in dubio pro societate por ser incompatível com

o moderno EstadoDemocrático de Direitoe com os princípiosda Carta Política de 1988,devendo sempre prevalecer,mesmo em relaçãoaos crimes dolososcontra a vida,o postulado in dubio pro reo,de modo que, não havendorobusta prova da autoriaou existindo dúvidasobre alguma excludenteou dirimente, impor-se-iaa impronúncia oua absolvição sumária(presunção de inocência).

Não obstante, e de forma indubitável, o fato é que o brocado in dubio pro societate encontra amparo no ordenamento pátrio e se mostra imprescindível, justamente, às garantias do acusado. Parece que, em nome da conveniência defensiva, ignora-se que a vigente redação do artigo 413 do CPP foi objeto de recente reforma, sendo considerada em total consonância com a Magna Carta que, a propósito, possui no inciso XXXVIII do seu artigo 5º expressa previsão quanto à competência do Tribunal do Júri e destaca a soberania dos veredictos e a garantia da plenitude de defesa.

Ora, se a competência para os crimes dolosos contra a vida é, por lei e por mandamento constitucional, exclusiva do Tribunal Popular, intuitivo reconhecer que o juiz togado, ao proferir a pronúncia, não deve se aprofundar na análise das provas e, muito menos, julgar com base no tão festejado in dubio pro reo. Mas na dicção defensiva, a pronúncia somente deveria ocorrer dentro de um “parâmetro de certeza”, o que, por via transversa, imporia afirmar que o julgador singular somente poderia remeter o caso ao júri quando não mais houvesse qualquer dúvida de que o réu foi o autor dos golpes (disparos, facadas, etc.) ou, ainda, quando não mais houvesse qualquer chance de reconhecimento de excludentes, como a legítima defesa.

Na verdade, o magistrado singular – não é por outra razão que suas decisões devem ser sucintas – deve atuar apenas como um “filtro” processual, impedindo que acusações infundadas cheguem ao plenário.

E admitindo-se a tesedefensiva em comento,

o julgador teria de abandonar a “linguagem

sóbria” exigida pela doutrina (segundo a lei,

“limitar-se-á à indicação da materialidade do fato

e da existência de indícios suficientes da autoria ou

de participação”) e realizar uma análise exauriente da

prova, espancando asdúvidas (“pro reo” ou

“pro societate”).

Isso, inegavelmente, traduziria verdadeiro prejuízo ao próprio acusado, que ficaria impossibilitado de se utilizar de teses defensivas favoráveis e recorrentes (a própria negativa de autoria, por exemplo), porquanto já teriam sido elas rebatidas à saciedade pelo juiz de direito,

””

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tudo em afronta a outra garantia constitucional e inafastável: a plenitude de defesa em plenário. E vale lembrar: a decisão de pronúncia é, por lei, peça que obrigatoriamente deve ser entregue aos jurados no dia do julgamento, viabilizando-se a sua leitura (CPP, art. 472, parágrafo único).

Da mesma forma, isso também afrontaria a garantia da soberania dos veredictos, que deve ser compreendida em sua dupla acepção: imutabilidade da decisão e direito à análise global (soberana) do fato pelos jurados, em todas as suas nuances; afinal, são eles os juízes naturais da causa. E ao se admitir tal tese defensiva – e o seu “parâmetro de certeza” – esta segunda faceta seria irremediavelmente tolhida.

Sempre válido consignar que o tribunal do júri tem sua previsão constitucional sediada no título reservado às garantias fundamentais, sendo reconhecido como um direito individual do cidadão. Certa, nesse ponto, a lição de Gladston Fernandes de Araújo, quando lembra que “Rogério Lauria Tucci & José Rogério Cruz e Tucci, ao apreciarem o dispositivo constitucional citado, asseveram que ‘é consagrado neste, uma vez mais, e de modo inarredável, um dos mais importantes direitos subjetivos materiais conferidos pelo Estado aos membros da comunidade’” [in “Tribunal do Júri: uma análise processual à luz da Constituição Federal”. Niterói: Impetus, 2004, p. 26]. Assim, qualquer afronta à sua sistemática implica tentativa de subversão do ordenamento e impõe imediata

repulsa jurídica.

Em outras palavras, esse contexto que por vezes vem sendo proposto em sede recursal defensiva, flagrantemente, traduz tentativa de usurpação de uma competência constitucional exclusiva. E o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Carta Política, soube muito bem sopesar a questão ao afirmar que “(...) 3. A aplicação do brocado in dubio pro societate, pautada nesse juízo de probabilidade da autoria, destina-se, em última análise, a preservar a competência const i tucionalmente reservada ao Tribunal do Júri. 4. Considerando, portanto, que a sentença de pronúncia submete a causa ao seu juiz natural e pressupõe, n e c e s s a r i amen t e , a valoração dos elementos de prova dos autos, não há como sustentar que

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o aforismo in dubio pro societate consubstancie violação do princípio da presunção de inocência” [RE 540999, Relator Min. Menezes Direito, Primeira Turma, julgado em 22/04/2008].

Por outro lado, com relação à segunda proposta da

presente reflexão, tem chamado a atenção alguns pedidos – até

mesmo decisões ex officio – de desmembramento do plenário sob

o argumento, puro e simples, da existência de mais de um defensor

na causa, sob a alegação de que isso prejudicaria a defesa diante de teses

conflitantes entre os acusados do mesmo crime. Eis um error in procedendo!

Primeiramente, há que se distinguir a “conveniência” defensiva de cada denunciado se fazer representar por seu defensor da real “necessidade” de se nomear defensores diversos para cada acusado; só esta última hipótese se coaduna com o chamado “conflito de defesas”, instituto que somente resta configurado quando um comparsa imputa ao outro a autoria delitiva de um crime que foi praticado por uma única pessoa, de modo

que a responsabilidade de um exclui a do outro. É exatamente esse o entendimento consolidado do

Superior Tribunal de Justiça que, por sua excelência,

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pedimos vênia para a transcrição: “(...) 2. Na esteira de julgados deste Superior Tribunal, só se configura o conflito de defesas na hipótese em que um réu atribui a outro a prática criminosa que só pode ser imputada a um único acusado, de modo que a condenação de um ensejará a absolvição do outro, ou quando o delito tenha sido praticado de maneira que a culpa de um réu exclua a do outro. 3. (...)” [HC 118.581/ES, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 06.09.2010].

E corriqueiramente o desmembramento com base na alegação de “teses conflitantes” encontra seu pseudo fundamento na chamada cisão facultativa (CPP, art. 80). Esta, no entanto, pressupõe a existência de requisitos, dentre os quais se destaca a previsão de infrações (plural) “praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes”, ou seja, cisão em razão da “conexão” e não “continência”; esta última pressupõe a existência de uma única infração penal, praticada em concurso de pessoas.

Havendo autor,coautor e/ou partícipe,não há exclusãode responsabilidades,mas sim divisão de tarefasna execução do crime.Nesses casos, portanto,o desmembramentodo plenário somenteestaria autorizadodiante de um “motivorelevante” (CPP, art. 80).

E segundo a boa hermenêutica, a lei não contém palavras inúteis e as “regras restritivas interpretam-se restritivamente”.

Até se poderia cogitar de motivo relevante na hipótese iminente de prescrição de um dos réus (v.g., em razão da menoridade), mas nunca a alegação de pretenso conflito de defesas pela mera existência de concurso de pessoas. E nem

se alegue que o julgamento conjunto poderia acarretar prejuízo aos debates, já que, nesses casos, o período de exposição sofre acréscimo para todos e o Parquet também tem de dividir o seu tempo entre os diversos réus, as condutas que lhes são imputadas e as suas circunstâncias defensivas; permanece garantida, pois, a paridade de armas.

Não se pode olvidar, assim, que o desmembramento – em casos de continência – só deve ser efetivado diante de um motivo verdadeiramente relevante, sendo tratado como verdadeira exceção à regra da unidade de processo e julgamento, já que os jurados – juízes naturais – têm o direito de julgar o crime doloso em toda a sua inteireza, detalhes e circunstâncias, cabendo trazer à baila a lição de Eugênio Pacelli e Douglas Fischer:

Como regra, e aí,quase geral, deve-se manter reunidos

os processos cuja reunião tenha sido determinada pela continência, já que, nessas

hipóteses, a unidade de conduta deve implicar a unidade

de solução jurisprudencial. Somente quando se puder

verificar a identidade de situação probatória de cada

réu e mesmo da acusação, em relação a cada acusado, é que se poderá pensar na separação

de processos continentes, assumindo-se o custo da

repetição da instrução criminal (para cada processo, de réu

diferente)

[(in Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 181)]. Essa regra da unidade de julgamento foi, inclusive, recentemente reforçada pelo § 1º do artigo 469 do CPP; hoje, a cisão em plenário só terá vez no raro caso de “estouro de urna”.

Por fim, há que se consignar um aspecto importante e que merece ser coibido. Muitas vezes

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essa cisão em plenário é postulada quando um dos réus realizou a delação dos demais, tornando-se interessante à defesa técnica que o(s) comparsa(s) seja(m) julgado(s) primeiramente, já que a sua condenação ou absolvição, a depender da tese defensiva adotada, servirá como argumento de retórica no segundo julgamento. E sendo julgados os corréus separadamente, a delação pode até perder força probatória em plenário, prejudicando a atuação ministerial.

Enfim, não há nada mais discrepante do que submeter – sem embasamento legal para tanto – réus que se encontram em uma mesma situação jurídica a julgamentos distintos perante o Conselho de Sentença, colocando-os perante circunstâncias, sensações e julgadores díspares.

Isso, ainda mais quando presente a hipótese de delação dos comparsas, pode até mesmo comprometer a busca da verdade real. Mais, não há nada que justifique o custo processual, o dispêndio de tempo de servidores e dos próprios jurados – que terão de comparecer a mais um julgamento – quando não há réus presos, pois não há risco de prescrição ou de perecimento da prova.

E o juiz togado, a quem também se aplicam todos os princípios inerentes à Administração Pública, tem o dever legal e funcional de zelar pela economia processual e do próprio erário público, evitando-se gastos desnecessários com múltiplos julgamentos que, em última análise, dizem respeito a um mesmo fato delituoso.

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DIREITO SISTÊMICO:A JUSTIÇA CURATIVA, DE SOLUÇÕES

PROFUNDAS E DURADOURAS

por Amilton Placido da RosaProcurador de Justiça

Em face do recente surgimento de um novo paradigma de interpretação jurídica, denominado Direito Sistêmico, tendo como expoente, no Brasil, o Juiz de Direito Sami Storch, da comarca de Amargosa, na Bahia, cuidarei aqui de traçar determinados marcos teóricos e históricos mínimos que possam servir de roteiro de pesquisa para os interessados.

O Direito Sistêmico tem sua base e inspiração na Constelação Familiar ou Representação Familiar[1], que é um método psicoterapêutico, realizado por meio de representações[2], desenvolvido nos inícios dos anos 80 por Bert Hellinger, filósofo e psicoterapeuta alemão, com base na metodologia que ele denominou de abordagem sistêmica fenomenológica[3].

A Constelação Familiar pode ser vista de duas formas diferentes. Na primeira, ela é considerada em si mesma, bastando por si própria, sem precisar de nenhuma explicação a respeito

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de sua atuação e origem. Aqui é necessário saber apenas que ela funciona e que dá resultado.

Neste sentido, diz Bert Hellinger que ele não sabe explicar como a coisa acontece, só sabe que acontece.

Na segunda maneira de ver a Constelação Familiar, busca-se percebê-la dentro de um sistema maior, olhando para o que veio antes dela, dando-lhe a base de sustentação; o que lhe é contemporâneo e que ajudou na sua compreensão e explicação; e o que veio depois, originando-se dela e de todos os princípios e leis que lhe dão vida. Essa é uma busca de entendê-la cientificamente.

Este trabalho,que tem como escopo primordial fornecerum roteiro de estudocientífico do Direito Sistêmico,dá ênfase ao segundo modode se ver a ConstelaçãoFamiliar, falando das várias correntes que estudarama abordagem sistêmica,antes e depois dosurgimento destemétodo terapêutico.

Breve linha de pesquisa da Abordagem Sistêmica

Não se pode falar de abordagem sistêmica sem se mencionar os trabalhos de Levy Moreno[4], e da psicoterapeuta americana Virginia Satir[5]; as pesquisas dos biólogos Humberto Maturana, Francisco Javier Varela García[6] e Rupert Sheldrake[7]; os conceitos da Física Quântica como, por exemplo, o da não localidade; a técnica descrita por Eric Berne[8]; as constelações familiares de Ruth McClendon e Leslie B. Kadis; e a Programação Neurolinguística - PNL.

Neste diapasão e também como linha de pesquisa, tem-se que olhar igualmente – como sugerido pela Psicóloga, Pesquisadora, Pedagoga

Sistêmica, Professora e Terapeuta Olinda Guedes – para as Teorias do Caos e dos Fractais que são ramos da Teoria dos Sistemas Dinâmicos, que mostram padrões claramente comprováveis pela matemática, bem como é importante voltar-se para as Teorias do Pensamento Complexo (Edgar Morin, Fritjof Capra, entre outros), da Fenomenologia e, também, para a Teoria Geral de Sistemas (também conhecida pela sigla, T.G.S.), que surgiu com os trabalhos do biólogo alemão Ludwig von Bertalanffy, publicados entre 1950 e 1968, sendo Gregory Bateson um dos grandes expoentes do pensamento sistêmico e da epistemologia da comunicação.

Constelação Familiar

Constelação Familiar, na melhor tentativa de explicá-la cientificamente, é uma das formas de acessar o campo energético-informacional famíliar de uma pessoa, campo esse que Rupert Sheldrake chamou de campo morfogenético, onde estão, no caso, todas as informação daquela família.

Ao acessar referidas informações, traz-se, como diz o terapeuta constelador Antonio Carlos Dornellas de Abreu,

à luz os sistemas familiares e seus emaranhamentos,

que podem ser os causadores de muitas doenças, dificuldades, fracassos, depressões

etc. (...)

E continua ele, “quando membros de uma geração da família deixam situações por resolver, membros das gerações posteriores podem inconscientemente assumir a responsabilidade de reestabelecer a ‘ordem’ nesta família, trazendo à tona problemas e/ou dificuldades pelos quais não são responsáveis.

Através da Constelação é possível que os emaranhamentos apareçam e também as soluções.”. [9]

Dito do ponto de vista sistêmico-fenomenológico, como está no site do Instituto

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Bert Hellinger Brasil Central, Constelação Familiar “trata-se de um método de ajuda baseado nas descobertas do alemão Bert Hellinger, que [se] utiliza de pessoas que estão presentes no grupo como representantes para membros da família ou grupo social do cliente. Hellinger descobriu 3 (três) leis naturais que regem os relacionamentos humanos e tais leis são tão verificáveis quanto a lei da gravidade, se nos dermos ao trabalho de observar. São também chamadas de 3 leis do amor, que são: hierarquia (estabelecida pela ordem de chegada), pertencimento (estabelecido pelo vínculo), equilíbrio (estabelecido pelo dar e tomar/receber). Quando tais leis são violadas numa família, surgem compensações que atuam nos membros da mesma, como: depressões, doenças, problemas nos relacionamentos, d i f i c u l d a d e s f i n a n c e i r a s , etc. Graças à representação, o cliente pode perceber para onde olha o seu amor e o que ele pode fazer para que tais leis possam ser novamente respeitadas. Então ele pode, talvez, enxergar o próximo passo que o conduza de uma maneira mais leve na vida, solucionando a questão que o incomoda.” [9].

Seja explicada de uma forma ou de outra, a Constelação Familiar torna-se um método terapêutico, porque, a partir do momento que a pessoa vê a realidade tal como ela é e o que

a impede de caminhar, uma das consequências

mais provável que acontece é a sua cura.

Há um rio de conhecimento a ser falado sobre essa abordagem, mas como o espaço é

pequeno e o tempo curto, apresento no final uma pequena bibliografia, por

meio da qual o leitor pode se aprofundar nos estudos.

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Outras abordagens que se originaram a partir da Constelação Familiar

Nesse passo, é importante registrar também, a título de conhecimento, que a Constelação ou Representação Familiar não deu origem apenas ao Direito Sistêmico, mas também a diversas outras modalidades de intervenção nos sistemas humanos, com base na abordagem sistêmico-fenomenológica, de Bert Hellinger, como a Pedagogia Sistêmica, com a alemã Mariane Frank-Gricksch, a mexicana Angelica Olvera, as brasileiras Paula Matos, Olinda Guedes, Sizumi Claudia Sato Suzuki, Maria Leila Palma Pellegrinelli, Marly Cordeiro, Ana Lúcia Braga, dentre outras; as Constelações Organizacionais, para as empresas, com Gunthard Weber, que é considerado o pai desta abordagem, Jan Jacob Stam, dentre inúmeros outros; o Coaching Sistêmico; as Constelações de Traumas e Sintomas, com Stephan Hausner; e as Constelações Quânticas, da venezuelana Carola Castillo.

Direito Sistêmico

O Direito Sistêmiconão é um novo direito,mas o mesmo direitovigente nosso de cada dia,

porém interpretado, percebido e aplicado de uma nova forma hermenêutica, chamada sistêmica, que, aliás, não surge do nada nem cai do céu, mas resulta de uma síntese da experiência humana em vários domínios, como se viu anteriormente.

Segundo Sami Storch, Direito Sistêmico é “uma visão sistêmica do direito, pela qual só há direito quando a solução traz paz e equilíbrio para todo o sistema”. Isso porque “em um sistema, o desequilíbrio de qualquer pessoa se reflete nos outros”, de modo que não se pode ter a solução para um elemento isolado do sistema.

Segundo Bert Hellinger, “há dois tipos de decisões: as que levam para o mais e as que levam para o menos”[10]. Do comentário que o médico Décio Fabio de Oliveira Jr. faz a respeito dessa afirmação, chega-se à conclusão

de que as decisões que levam para o menos são aquelas que decidem a lide, com a aplicação pura e simples do direito, mas não põem fim ao conflito. As que levam para o mais são aquelas que deixam as partes conciliadas interiormente, sendo que destas se ocupa o Direito Sistêmico, dando instrumentos para que elas ocorram.

Eis, por ser pertinente ao tema aqui tratado, como Décio desenvolve essa ideia: “supostamente a ação da Justiça deveria (....) encontrar uma solução que fosse justa para ambas as partes, que trouxesse a reconciliação. (....) Onde o juiz atua de maneira a conseguir de fato uma conciliação verdadeira, do coração das duas partes, então, efetivamente, nós temos uma solução duradoura. Quando ele apenas julga, mas o conflito continua no coração das pessoas, o que acontece é que mais adiante terá que julgar de novo uma nova situação e o conflito permanece, perpetua-se. Então eu diria que é muito louvável este movimento que busca uma reconciliação, contanto que ela seja verdadeira. O problema é, talvez agora você vai dizer que muitos dos juízes não estão aparelhados para poder intervir nestes conflitos, de maneira a conseguir esta conciliação profunda, verdadeira, que vem do coração. Quero dizer exatamente o contrário: daquilo que você aprendeu conosco (a juíza fez, com Décio e Wilma, curso destinado a formar Terapeutas em Constelação Familiar[11]) e que não exigiu de você tantas horas assim, gera muitos frutos bonitos. Você conseguiu muitas conciliações profundas e efetivas no coração das partes. Eu posso dizer, sem sombra de dúvida, que isso foi uma solução perene, duradoura para aquele conflito, não continua mais. Uma vez que se estabelece esta reconciliação, ela não segue.(....) a busca de uma conciliação real, verdadeira, nunca é demais, nunca é um desperdício de tempo. Nunca é um desperdício de recurso. Eu arrisco dizer que, em última instância, este é o verdadeiro papel do Judiciário na sociedade.”[12].

Então, se esse direito é tão maravilhoso assim, por tocar e reconciliar o coração das pessoas, temos que saber como ele é colocado em prática.

Ele, como as constelações familiares, pode ser aplicado de duas maneiras básicas. A primeira é aplicada fundamentalmente com a postura dos operadores do direito, que devem

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ver as partes de uma maneira sistêmica, com tudo o que elas trazem consigo, tendo em mente os princípios que regem todos os sistemas vivos.

Quando um juiz de direito recebe as partes e seus advogados com essa postura, de respeito e amor, a audiência ocorre de uma forma harmônica e conciliadora. Todos sentem o respeito que reina no ambiente e percebem que dali sairá um bom resultado para todos os envolvidos no problema.

É um ir ao âmago da questão. É um ir à alma dos seres humanos, para obter uma conciliação do coração de cada um dos envolvidos no conflito.

O juiz, o promotor de justiça e o próprio advogado, quando recebem as pessoas, podem atuar com aquilo que, em constelação familiar, Bert Hellinger chama de intervenções breves. O primeiro ponto para isso é estar disposto a agir assim, vendo não só quem os procura, mas todos os envolvidos, como participantes de um sistema, em que seus antepassados viveram coisas boas e más e isso repercute em todos daquele sistema.

A segunda maneira de aplicar o Direito Sistêmico é por meio de representações, seguindo a técnica usada nas constelações familiares. Essas representações podem ser feitas em

grupo ou individualmente. Se for com crianças e adolescentes, o trabalho individual pode ser feito de maneira bem descontraída, como faz o juiz de direito Sami Storch, que trabalha com adolescentes, usando os bonecos (playmobil).

Em seu blog[13], ele fala de alguns trabalhos por ele feitos, em “Audiências concentradas na instituição Aldeias Infantis S.O.S. e na Associação das Irmãs Servas do Espírito Santo, em Lauro de Freitas/BA”, nos dias 18 e 19/7/2013. Diz ele que nessas audiências foram utilizados “bonecos para realizar constelações familiares com as crianças acolhidas na instituição, a fim de verificar a necessidade de permanecerem abrigadas ou de encaminhá-las de volta à própria família ou a uma família substituta”. Narram-se também alguns resultados muito animadores.

Lá é explicado que “as constelações com bonecos facilitaram a visualização da situação

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familiar de cada criança e permitiram testar a reação de cada pessoa envolvida (criança, pai/mãe, possível guardião ou adotante, etc.) com cada movimento, verificando o melhor lugar para a criança.”

A respeito dos resultados obtidos, consta no referido blog o seguinte: “O juiz (autor da prática) possui formação específica nessa área e vem aplicando algumas dessas técnicas nas audiências em geral, obtendo índices bastante expressivos de conciliações nas audiências, inclusive em casos tidos como de difícil solução (inventários de mais de 10 anos e outros envolvendo questões familiares antigas e complexas). Em ações da Vara de Família, os acordos chegam a 90%.”

O trabalho é realmentefantástico e emocionante,pois traz resultadosanimadores, inesperadose de forma bastante rápidae eficiente.Quem já viu umaconstelação familiar,pode perceber o queeu estou falando.

No mais, o que resta a fazer é pesquisar sobre o assunto, participar de algumas constelações familiares e ler os livros técnicos sobre o assunto, os quais estão relacionados ao fim. Os mais interessados podem, inclusive, fazer cursos direcionados a formar terapeutas na abordagem sistêmico-fenomenológica.

Há muito mais a falar sobre o assunto, mas o dito já é o suficiente, de maneira que espero que esta breve introdução possa ajudar muitos a perceber a grandeza desse trabalho e a se interessar pelo Direito Sistêmico.

Considerações finais

Direito Sistêmico é um direito em construção e está ainda muito dependente das Constelações Familiares. Isso, em si, não é um mal, mas ele pode e deve tomar seu rumo

próprio, como o tomou a Pedagogia Sistêmica e as Constelações Organizacionais. Isso ocorrerá quando ele for aplicado em todas as áreas do direito e não somente nas questões ligadas à família, de modo a alcançar a sua independência científica. Cada um de nós, operadores do direito, pode colaborar para que isso ocorra.

No mais, sejam bem vindos ao Direito Sistêmico!

Notas[1] - “O nome original do trabalho desenvolvido

por Bert Hellinger em alemão é Familienaufstellung e significa, numa tradução literal, ‘Colocação [Representação] familiar’. Porém o verbo “stellen” em alemão foi traduzido ao inglês como ‘constellate’, ou seja, posicionar certos elementos numa configuração dada. Como o primeiro livro traduzido ao português veio do inglês e não do original em alemão, foi então traduzido como ‘constelações familiares’. O termo “constelação” aqui nada tem a ver com estrelas, astrologia, esoterismo ou similares, mas tem sim uma conotação de uma representação, uma colocação onde os elementos são posicionados numa certa configuração de relações”. (do site http://www.institutohellinger.com.br/)

[2] - As representações, na Constelação Familiar, de membros do sistema familiar que está sendo trabalhado (constelado), acontecimentos, objetos, sintomas, traumas, etc. podem ser feitas por pessoas, bonecos, como playmobil, âncoras de solo (emborrachados), sapatos ou com qualquer outro meio representacional. Alguns estão usando cavalos, e dizem que eles, em razão de sua inteligência e docilidade, são excelentes instrumentos para isso.

[3] - Em breves palavras, a abordagem é sistêmica porque abrange todos os membros de uma família (vivos e mortos) que agem, não como um mero agrupamento de pessoas, mas articuladamente como uma totalidade, de modo que o comportamento de um atua em todos, não só na geração presente, mas também nas futuras. Ela é fenomenológica, porque é uma abordagem empírica e baseada na percepção do cliente e dos representantes, no momento em que a coisa acontece. Isto se explica pela própria etimologia da palavra, que possui duas raízes gregas: “phainesthai”, que significa aquilo que se mostra; e “logos”, que é estudo.

[4] - Jacob Levy Moreno, médico, nascido na Romênia em 1892 e falecido nos Estados Unidos em 1974, foi o criador do Psicodrama e do Sociodrama. Ele foi um dos primeiros a descrever o fenômeno da representação, que foi tratado posteriormente por Virginia Satir, no método das esculturas familiares; percepções estas, dentre outras, que ajudaram Bert Hellinger a conceber a abordagem sistêmico-fenomenológica, sustentáculo de suas Constelações Familiares.

[5] - “Virginia Satir (26 de junho de 1916 - 10 de setembro de 1988) foi uma notável autora e psicoterapeuta norte-americana, conhecida sobretudo pela sua abordagem de terapia familiar e por seu trabalho com constelações sistêmicas. Seus livros mais conhecidos são Conjoint Family Therapy, de 1964, Peoplemaking, de 1972, e The New Peoplemaking, 1988”. (in http://pt.wikipedia.org/wiki/Virginia_Satir). Bert Hellinger, nos anos 70, deparou-

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se com um fenômeno descortinado por ela, “quando esta trabalhava com o seu método das ‘esculturas familiares’: que uma pessoa estranha, convocada a representar um membro da família, passa a se sentir exatamente como a pessoa a qual representa, às vezes reproduzindo, de forma exata, sintomas físicos da pessoa a qual representa, mesmo sem saber nada a respeito dela” (in http://pt.wikipedia.org/wiki/Constela%C3%A7%C3%B5es_familiares). Foi com base neste método (ao qual denominou abordagem sistêmico-fenomenológica) que Bert Hellinger concebeu as Constelações Familiares.

[6] - Maturana e Francisco Varela, ambos biólogos e filósofos chilenos, desenvolveram um trabalho transdisciplinar centrado no propósito de entender a organização do sistemas vivos com relação ao seu caráter unitário, tendo descoberto que os sistemas vivos, por agirem, não como um mero agrupamento de partes, mas articuladamente como uma totalidade, autorregulam-se, buscando sempre o seu equilíbrio. Descobriram que todo sistema vivo é regido por três princípios: Pertencimento, Ordem (hierarquia) e Compensação (equilíbrio entre dar e receber). Descobriram também que a violação destes princípios traz consequências graves para o sistema. Vejam comentário da teoria desenvolvida por eles, a partir de suas observações da natureza, que eles denominaram de Autopoiesis, em http://www.geocities.com/pluriversu/autopoies.html. É importante acrescentar, para fins de dar credibilidade ao que aqui se expõe, que Maturana, em 1959, obteve o título de Doutor em Biologia pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, sendo indicado junto ao cientista Jerome Lettvin do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), ao Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, pela relevância de sua pesquisa.

[7] - Rupert Sheldrake, biólogo e filósofo inglês, criador da teoria dos campos morfogenéticos, que já havia surgido na cabeça de alguns biólogos na década de 20 e que tem sido utilizado para levantar algumas hipóteses sobre situações que ocorrem com as pessoas em razão de pertencerem a um sistema familiar. Segundo descobriu Sheldrake, nos campos morfogenéticos estão as informações de todo um sistema vivo, por exemplo, do sistema familiar de uma determinada pessoa. Uma das formas de acessar este campo é pelas constelações familiares.

Vale acrescentar, a título de conhecimento, que Sheldrake, que tem alguns livros publicados, estudou ciências naturais na Universidade de Cambridge; Filosofia na Universidade de Harvard (EUA), e doutorou-se em Química pela Universidade de Cambridge em 1967.

[8] - Eric Berne, nome que, em 1938, Eric Lennard Bernstein adotou quando naturalizou-se estado-unidense. Ele, nascido em Montreal, Quebec no Canadá, em 10 de maio de 1910, e falecido na Califórnia, em 1970, era médico psiquiatra e foi o criador da abordagem da psicologia chamada Análise Transacional.

[9] - Disponivel em: http://www.institutohellinger.com.br/principal/index.php?option=com_content&view=article&id=130&Itemid=50.

[10 e 11] - Excerto retirado da conversa que Décio Fábio de Oliveira Jr. teve com a juíza de trabalho Wanda Lúcia Ramos. Degravação do vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=3hPRH67Nij8.

[12] - http://direitosistemico.wordpress.com/

Bibliografia recomendada

CASTELLA, J.; GROCHOWIAK, K. Constelações organizacionais: consultoria organizacional sistêmico-dinâmica. São Paulo: Cultrix, 2007. 264 p.

COHEN, D. B. Family Constellations: An Innovative Systemic Phenomenological Group Process From Germany. The Family Journal, jul-2006. Disponível em: <http://hiddensolution.com/family-constellations-an-innovative-systemic-phenomenological-group-process-from-germany/>. Acesso em 30 jan. 2014.

COHEN, D. B. I carry your heart in my heart: Family constellations in prison. EUA: Carl Auer International, 2009. 159 p.

COHEN, D. B. Llevo tu corazón in mi corazón: Las constelaciones familiares y el sistema penitenciario. Espanha: Gaia Ediciones, 2011. 224 p.

ENRICH, C. P.; GARCÍA, A. P. O.; VILAGINÉS, M. T. Sintonizando las miradas. Soluciones amorosas y breves a los conflictos entre la escuela y la familia. México: Grupo Cudec, 2011.

FRANKE, U. Quando fecho os olhos vejo você: As constelações familiares no atendimento individual. Patos de Minas: Atman, 2006. 176 p.

FRANKE-GRICKSCH, M. Você é um de nós: Percepções e soluções sistêmicas para professores, alunos e pais. Patos de Minas: Atman, 2005. 192 p.

GROSS, B.; SCHNEIDER, J. R. Ah! que bom que eu sei! A visão sistêmica nos contos de fadas. Patos de Minas: Atman, 2005. 224 p.

HAUSNER, S. Constelações familiares e o caminho da cura: a abordagem da doença sob uma perspectiva de uma medicina integral. São Paulo: Cultrix, 2010. 240 p.

HELLINGER, B. Amor à segunda vista. Patos de Minas: Atman, 2006. 240 p.

______ . A fonte não precisa perguntar pelo caminho. 2 ed. Patos de Minas: Atman, 2007. 319 p.

______ . A paz começa na alma. Patos de Minas: Atman, 2006. 214 p.

______ . A simetria oculta do amor. 9 ed. São Paulo: Cultrix, 2012. 320 p.

______ . Conflito e paz: uma resposta. São Paulo: Cultrix, 2007. 152 p.

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______ . Liberados, somos concluídos. Patos de Minas: Atman, 2006. 166 p.

______ . No centro sentimos leveza: conferências e histórias. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 2006. 168 p.

______ . Ordens da ajuda. Patos de Minas: Atman, 2007. 248 p.

______ . Ordens do amor: um guia para o

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57

trabalho com constelações familiares. São Paulo: Cultrix, 2013. 424 p.

______ . O amor do espírito. Patos de Minas: Atman, 2009. 211 p.

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MPMS - O que o motivou a ingressar no poder judiciário e em sua carreira no MP?

WILSON FORTES - Antes de ingressar no Ministério Público, por aproximadamente 13 anos advoguei em uma comarca do Estado. No exercício das minhas atividades pude observar a atuação e desempenho do Promotor de Justiça da comarca, em prol da sociedade local, e estimulado pelo pranteado Dr. Manoel Gomes de Oliveira, decidi prestar concurso e ingressar na carreira. O que efetivamente ocorreu em 1983.

MPMS - O que o Ministério Público ensinou, tanto para sua carreira, como para sua vida particular?

WILSON FORTES - O Ministério Público prima pela moralidade e ética dos seus membros, como se pode ver dos princípios insculpidos na Constituição Federal. Isto banaliza a vida de seus membros tanto no desempenho de suas funções, como na vida particular.

MPMS - O senhor possui alguma filosofia de vida, ou ensinamento que carrega consigo? Se sim, qual?

WILSON FORTES - Desde os bancos acadêmicos, no decorrer dos meus estudos, deparei-me como uma frase que tem um significado especial para mim, e me serve como norte em minha vida, cujo teor é o seguinte: “Viver honestamente, dar a cada um o que é seu, não causar dano a outrem”.

MPMS - Em toda a sua carreira, qual (quais) foi (foram) o (s) momento (s) marcante (s) que lhe deu (ram) grande satisfação profissional?

WILSON FORTES - Penso que o que marcou em minha carreira, quiçá dos demais membros, foram as garantias e deveres do Ministério Público na Constituição de 1988.

MPMS - O que pode ser positivamente destacado nos trabalhos dos atuais Procuradores de Justiça do MP?

WILSON FORTES - Os Procuradores de Justiça além de administrarem as diversas Coordenadorias de Justiça, destacam-se também pela emissão de pareceres a serem apreciados pelo Tribunal de Justiça, bem como recursos dessas decisões para outras instâncias.

MPMS - Ao seu ver, qual a importância das ações do Ministério Público para a sociedade?

WILSON FORTES - Penso que o Ministério Público no desempenho de suas atividades tem resgatado em prol da sociedade valores abrangentes na área dos direitos difusos, penais etc.

MPMS - O senhor tem algum conselho para dar para os novos integrantes da carreira do Ministério Público?

WILSON FORTES - Atrevo-me a recomendar aos membros do Ministério Público para que vivam intensamente a carreira que abraçaram. Ao final, terão o sentimento de dever cumprido.

WILSONFORTES

Procurador de Justiça Aposentadodo Ministério Público do

Estado de Mato Grosso do Sul

por Ana Paula Leite

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