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Ano 3 - Número 1 - Janeiro/Junho - 2004

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REVISTA JURÍDICADA ESCOLA SUPERIOR DO

MINISTÉRIO PÚBLICODO ESTADO DE SÃO PAULO

Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público, ano 3, n.1, 1-236, janeiro/junho - 2004

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Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo2001 -

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Apresentação...............................................................Luís Daniel Pereira Cintra

Aproximação das instâncias do Ministério Público eReformulação das Procuradorias de Justiça..................Orlando Bastos Filho e Eduardo Martines Júnior

A Responsabilidade Criminal do “Homem de Trás” dasOrganizações Criminosas..............................................Arthur Pinto Lemos Júnior

A Responsabilidade Civil das Empresas Fabricantesde Cigarro......................................................................Guilherme Ferreira da Cruz

Tráfico de Pessoas..........................................................Euclides Dâmaso Simões

As Informações Armazenadas pela Instituição Bancáriae o Direito à Intimidade do Cliente ...............................Têmis Limberger

Alguns Pespontos do Artigo 28 do Código de ProcessoPenal............................................................................Sergio Demoro Hamilton

O Duplo Grau de Jurisdição e o Foro por Prerrogativade Função......................................................................Carolina Alves de Souza Lima

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A Escola Superior do Ministério Público, no início docorrente ano, após um período de ausência na publicaçãodesta revista - consumido pelas necessidades própriasdas tratativas inerentes à renovação do contrato com aIMESP, especialmente em face da inexistência de qual-quer ônus para o MP e a ESMP, bem concluídas já nagestão da nova Diretoria daquela empresa–, sente-se or-gulhosa em apresentar o volume nº 5, Janeiro a Julho de2004, da Revista Jurídica editada por esta casa de ensinodo Parquet paulista.

O Brasil, consoante sucede com as demais nações,vem passando por grandes transformações no campopolítico, econômico, legislativo, tecnológico e no própriocampo jurídico, particularmente em virtude de inúmerasemendas constitucionais e da entrada em vigor do novoCódigo Civil, do Estatuto do Idoso, do Estatuto do Torce-dor e de alterações fundamentais na legislação de biosse-gurança/biotecnologia. A estrutura da Justiça e do Judi-ciário como um todo também precisa se adaptar a taistransformações e buscar seu aperfeiçoamento, bemcomo alcançar maior eficiência.

Nessa conjuntura o nosso Ministério Público se in-sere, principalmente o parquet paulista, que sempre es-teve na vanguarda dos avanços institucionais e de defe-sa da cidadania no Brasil, que teve como ápice a Cartade 1988. Portanto, o papel da nossa Escola Superior seavulta ainda mais, pois ela se constitui num canal funda-mental para a discussão e debates científicos, doutriná-rios e técnicos que servirão de fundamento para que es-sas transformações nos conduzam a um Ministério Pú-blico mais avançado, estruturado e capacitado para a con-secução de suas missões constitucionais e legais nadefesa da sociedade paulista e brasileira.

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A Escola Superior do Ministério Público, dentro des-sa perspectiva, na presente Revista, traz a lume a abor-dagem de temáticas que interessam diretamente aosmembros do Parquet nesse momento que passa nossasociedade. Tratam-se de questões que envolvem as di-versas áreas do mundo jurídico, cujos assuntos precisamser refletidos e debatidos intensamente não somente noâmbito institucional, mas por toda a comunidade jurídica.

Para tanto, foram compilados textos com temáticasvariadas, mas dentro de uma abordagem interdisciplinar.

Há muito se debate no seio institucional a necessi-dade de um intercâmbio mais amplo e maior proximidadeentre as instâncias do Ministério Público. Por isso, o es-tudo “Aproximação das Instâncias do Ministério Público eReformulação das Procuradorias de Justiça”, de autoriados Drs. Eduardo Martines Júnior e Orlando Bastos Fi-lho, constitui interessante ensaio sobre questão tão rele-vante ao aperfeiçoamento e à eficiência dos misteresinstitucionais: a harmonia e o entrosamento que devenortear o exercício funcional do Promotor e do Procura-dor de Justiça.

A problemática das organizações criminosas e suacrescente intervenção no dia-a-dia da criminalidade, cadavez mais calcada numa “atuação profissional” e sofistica-da, vem preocupando os órgãos do Ministério Público, daPolícia e do Judiciário (notórios os reflexos da denominada“Operação Anaconda”). Em trabalhos vultosos no campodoutrinário, mas de evidente utilidade prática, os ensaios“A Responsabilidade Criminal do ̀ Homem de Trás´ das Or-ganizações Criminosas” e “Tráfico de Pessoas – Breveanálise da situação em Portugal”, respectivamente da la-vra dos Drs. Arthur Pinto Lemos Jr. e Euclides Dâmaso Si-mões, este Procurador de Justiça em Portugal e especia-lista em criminalidade transnacional, discutem-se temáticas

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de inquietante atualidade e de preocupação permanenteno campo do combate às modernas formas de criminali-dade que envolvem as principais nações do planeta Terra.

Na área da defesa do consumidor apresentamostrabalhos de amplo interesse e que encontram-se nastelas dos debates jurídicos e forenses. “A Responsabili-dade Civil das Empresas Fabricantes de Cigarros”, arti-go de autoria do Dr. Guilherme Ferreira da Cruz, e “AsInformações Armazenadas pela Instituição Bancária e oDireito à Intimidade do Cliente”, da lavra da Dra. TêmisLimberg, são temas em constante discussão nos tribu-nais e nas lides judiciais, particularmente em razão dosreflexos que o cigarro gera para a saúde humana e asconseqüências que o uso abusivo e indevido de informa-ções pessoais dos consumidores bancários acarretampara a honra e a moral dos correntistas e devedores deinstituições financeiras no Brasil.

A velha e nova discussão torna à passarela dos de-bates jurídicos no âmbito do Ministério Público. Falamosdo vetusto e sempre – cada vez mais -, utilizado artigo 28do Código de Processo Penal. No estudo “AlgunsPespontos ao Artigo 28 do Código de Processo Penal”, oDr. Sérgio Demoro Hamilton procura mostrar a nova rou-pagem – para não dizer fantasia -, que se pode dar aodisposto no art. 28 do CPP, sempre invocado, mormentepor via de solução analógica, para diversas situações jurí-dicas envolvendo a atuação do Ministério Público, quer noâmbito criminal, quer no cível e, mais recentemente, nocampo da tutela dos interesses difusos e coletivos.

Por fim, trazemos à reflexão, pela importância quevem assumindo a temática do foro por prerrogativa de fun-ção, o artigo “Duplo Grau de Jurisdição e o Foro por Prer-rogativa de Função”, de autoria da Dra. Carolina Alves deSouza Lima. É ensaio que ganho relevo em virtude das

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recentes alterações legislativas com o fim de beneficiarpolíticos que deixam o exercício de cargos públicos. Porisso, merece leitura crítica, sempre com o viés da atua-ção prática, principalmente dos membros do MinistérioPúblico.

Finalmente, encerrando este pequeno bosquejointrodutório, esperamos que esta publicação tenha utili-dade para o desempenho funcional dos colegas de Mi-nistério Público, bem como para os demais profissionaisdo Direito, e, assim, agradeço a todos aqueles que sedispuseram a colaborar, com seus trabalhos jurídicos, naedição da presente revista e na expectativa de continuarmerecendo a confiança de todos nossos leitores na apre-sentação de críticas e na colaboração científica para oaperfeiçoamento das publicações mantidas pela EscolaSuperior do Ministério Público.

Luís Daniel Pereira Cintra,procurador de Justiça, diretor da ESMP

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das procuradoriasdas procuradoriasdas procuradoriasdas procuradoriasdas procuradoriasde Justiçade Justiçade Justiçade Justiçade Justiça

Orlando bastos filho eEduardo Martines Júnior,promotores de justiça

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APROXIMAÇÃO DAS INSTÂNCIAS DOMINISTÉRIO PÚBLICO E REFORMULAÇÃO

DAS PROCURADORIAS DE JUSTIÇA

Orlando Bastos Filho e Eduardo Martines Júnior

Sumário: I – Introdução. II – Atuação fragmentada e suas con-seqüências. III – Uma Proposta. IV– Os resultados esperadose as vantagens da sistemática proposta. V – Conclusão.

I – Introdução

Temas em voga no âmbito do Ministério Público, já há algum tem-po, e sem a implementação de soluções efetivas, são o distancia-mentoentre seus órgãos de execução de primeiras e segundas instâncias, e oda necessidade de reformulação das atribuições das Procuradorias deJustiça, aí compreendida a maneira de atuação.

Segundo entendemos, esses assuntos são interligados e nãopodem ser tratados de forma distinta. Isso impede a abordagem dequalquer deles, olvidando-se da compulsoriedade de referência ao outro,na medida em que a própria carência de unidade entre as instâncias éque, em grande parte, fomenta o debate quanto à necessidade de re-modelação das Procuradorias de Justiça.

Parece haver consenso entre os membros da Instituição (Promo-tores e Procuradores de Justiça) que a falta de uma maior proximidadeentre os órgãos de execução, resulta em prejuízo à atuação ministerial,já que eles trabalham, regra geral, de maneira estanque, sem troca deinformações e, não raro, conflitante. Embora exista pouca discordânciaem relação às maléficas conseqüências da atuação fragmentada, noque diz respeito às soluções do problema, ainda pendem justos receiose fundadas indagações.

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Nos deteremos a examinar a situação interna corporis – é dizer –no âmbito do parquet estadual. Não se olvida, contudo, que o mesmo severifica em relação à atuação do Ministério Público Estadual vis a vis oFederal, na hipótese de recursos aos Tribunais Superiores. Aliás, a mes-ma difícil relação entre a primeira e segunda instância no Estado, senota em relação aos Ministérios Públicos estaduais e Federal, igualmenteem evidente prejuízo para a tutela dos direitos da sociedade.

Não será desconsiderada, por outro lado, a independência funcio-nal (Gomes, 1989), quer do Promotor quer do Procurador de Justiça,não sendo possível sequer pensar em arranhar um princípio construídoao longo da história do Ministério Público, fruto de árduas lutas institucio-nais. Enquanto a doutrina mais conservadora, iluminada pelas peculiari-dades do parquet francês, cita como regra o princípio hierárquico, naverdade, ao contrário, nosso Ministério Público tem a autonomia funcio-nal assegurada como princípio da instituição; e como garantia dos seusmembros, têm eles a independência no exercício de suas funções (art.127, §§ 1º e 2º) (Mazzilli, 1993). A preservação da independência funcio-nal implica afastar a paralela idéia da hierarquização entre órgãos deexecução, pois a divisão em instâncias distintas deve significar apenasuma divisão de funções, não subordinação funcional.

Também não será colocada em dúvida, ou questionada, a ne-cessidade de existência das Procuradorias de Justiça.

E nem poderia ser diferente. A Constituição Federal tratou daorganização do Ministério Público no Art. 128 limitando-se a mencionarque o Procurador-Geral da República será o chefe do Ministério Públi-co da União (§ 1º). No que pertine à Instituição nos Estados, determinaque será formada lista tríplice dentre os integrantes da carreira, naforma da lei respectiva, para escolha de seu Procurador-Geral (§ 3º).As leis orgânicas – Lei Complementar nº 75/93 e Lei nº 8.625/93 –deram organização ao parquet da União e dos Estados, respectiva-mente, aí sim tratando dos órgãos de execução. Trataremos apenasdo Ministério Público estadual.

O Art. 7º da Lei nº 8.625/93 (LONMP) estabelece como órgãosde execução o Procurador-Geral de Justiça, o Conselho Superior, osProcuradores de Justiça e os Promotores de Justiça, indicando as

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linhas gerais de cada um deles, transferindo à lei orgânica estadual ocometimento das atribuições. A Lei Complementar Estadual nº 734/93,também no Artigo 7º, repetiu os órgãos de execução, definindo no Artigo119 a atribuição dos Procuradores para oficiarem junto aos Tribunais.Relativamente aos Promotores de Justiça, o Artigo 121 determina quecabe a eles exercer as atribuições de Ministério Público junto aos ór-gãos jurisdicionais de primeira instância. Já o Código de Processo Pe-nal determina que chegando os autos ao Tribunal, será aberta vista ao“procurador-geral” pelo prazo de cinco dias,1 enquanto o Código de Pro-cesso Civil se refere ao parquet de segunda instância esparsamente,como no caso da uniformização de jurisprudência, declaração deinconstitucionalidade de lei ou ato normativo e agravo de instrumento.2Ressalta clara, pois, a necessidade de existência de Procuradorias deJustiça para oficiarem perante os Tribunais, se por mais não fosse, dadoque o “procurador-geral” não pode, à evidência, exercer individualmenteas funções de Ministério Público perante os órgãos judiciais de segundainstância. Pensamos, portanto, que tanto a lei como a própria sistemáti-ca processual determinam a existência dos órgãos ministeriais de se-gunda instância, que não poderiam ser exercidas, apenas para argu-mentar, pelos Promotores de Justiça que estão em distantes Comarcase delas não podem se ausentar. A conclusão é, no mínimo, pelaobrigatoriedade da existência de Promotorias e Procuradorias de Justi-ça, distintamente, impondo, isso sim, o repensar do modo de atuaçãoem benefício da defesa dos interesses da sociedade ou interesse públi-co (Mazzilli, 2002), pois existem dificuldades como se verá abaixo, e queurgentemente precisam ser superadas.

Por fim, não deixamos de notar que se firmou o entendimento se-gundo o qual as atuações ministeriais de primeiro e segundo graus têmnaturezas distintas, sendo como custos legis tão somente, ainterveniência do Procurador de Justiça,3 tanto assim que pode mesmopedir a absolvição do réu ou qualquer outro benefício. Igualmente, no

1 Art. 610 e 613.2 Art. 478, parágrafo único; Art. 480; 527, inc. VI.3 “’...STF: HC 54.651-SP, Neder, RTJ 82/97 e HC 73.545-SP, I. Galvão, DJ 6-9-96’ (STF – 2ª T. –HC nº 76.943-3/RJ – Rel. Min. Carlos Velloso, Diário da Justiça, Seção I, 30 out. 1998, p.3).”,apud MORAES, 2002.

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cível, pode pleitear a improcedência da ação cujo autor é o próprioMinistério Público, sem que isso represente aceitação da decisão.4

Todavia, pensamos que se faz necessário um repensar de toda atua-ção ministerial, sem o qual a defesa dos direitos tutelados pela Institui-ção e tão cuidadosamente declarados no Texto Constitucional, ficaráseriamente comprometida.

Esse o desafio que nos propusemos a enfrentar, apresentandoà discussão uma proposta, longe de pronta e acabada, sem a mínimapretensão de perfeição, mas que permite levar ao debate.

II – Atuação fragmentada e suas conseqüências

Sobressai evidente que a pluralidade de órgãos ministeriais emum mesmo processo, em inferior e superior instâncias, foge à razoa-bilidade justamente porque desde a propositura da ação, penal ou cível,ou mesmo na atuação interveniente, nos propomos a alcançar um re-sultado social e juridicamente legítimo.

Inegáveis os prejuízos à eficiência, com a sumária e prematuraretirada de um processo, de representante do Ministério Público queaté por anos nele militou, desde as investigações preliminares, pas-sando pela instrução judicial até a sentença de primeiro grau, conhe-cendo-o profundamente, para a sua entrega a outro membro da Insti-tuição, que por mais qualificado, experiente e compenetrado que seja,pouco sabe sobre o feito, e pouco tempo terá para sabê-lo.

Tirante as peculiaridades da organização ministerial, não acredi-tamos possa alguém, à luz da eficiência, razoabilidade e bom senso,argumentar em contrário, bastando ver que nossos adversários, por ve-zes bastante preparados e poderosos, mantém-se os mesmos desde oinício até o termo final da demanda, conduzindo-a em sua inteireza epermitindo traçar estratégias desde o interrogatório no inquérito policiale o primeiro depoimento no inquérito civil ou ainda, na contestação daação civil pública.

4 Art. 503 e seu parágrafo único do CPC.

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O Ministério Público, de outra parte, padece da contraproducen-te substituição no meio do caminho, daquele que propôs a ação eportanto, presume-se que a conheça, por outro membro da Instituiçãoque a ignora. Isso é inexplicável se se tem em conta uma atuação deresultados, repetimos, abstraindo a questão legal e processual queimpõe o fracionamento. Fato é que em função disso a atuação minis-terial fica enfraquecida.

Outro desajuste apontado como resultante do malfadado distan-cia-mento, diz respeito à falta de contato e conhecimento pessoal entreo Promotor e o Procurador de Justiça responsável pela continuidade dacondução de uma causa proposta pelo primeiro. As Procuradorias sãocompostas por um substancial número de membros, e as distribuições,somente por coincidência se repetem, fazendo com que as ações inici-adas por um determinado Promotor sejam encaminhadas a Procurado-res diversos, dificultando o estreitamento de relações. Sabe-se que nãoé tarefa simples ao Promotor de Justiça identificar o membro ministerialde segunda instância que atua em processo do seu interesse funcional,igualmente não sendo tão singelo, em algumas oportunidades, mesmoidentificado, com ele manter contato. É verdade que muitos atendem oPromotor de Justiça com extrema cordialidade e atenção, dispostos aouvi-lo, e porque não, consultá-lo sobre uma nuance qualquer do pro-cesso (já que ele é o maior conhecedor dos autos); outros, todavia, nemtanto, sendo difícil ao órgão de primeiro grau, pela falta de habitualidadee constante variação dos Procuradores de Justiça, detectar quando estádiante de cada situação, fato que, inequivocamente, desestimula a suainiciativa, em prejuízo da unidade de atuação. O próprio acompanha-mento do processamento dos autos nos Tribunais não é fácil, ainda quese possa contar com a intermedição dos Centros de Apoio Operacional,que não conseguem, por razões que aqui não cabem ser delineados,desincumbir-se satisfatoriamente desse mister.

A visão pelo prisma da segunda instância não pode ser diferente,pois recebendo processos cada momento de um Promotor de Justi-ça, dificilmente terá condições de conhecer e avaliar o seu trabalho,salvo por amostragem limitada e pontual. Certamente que conhecen-do o trabalho de determinado membro de primeira instância apenas

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esporadicamente, não poderá o corregedor permanente5 estabelecerpadrão de comportamento (e até de temperamento), nem de atuaçãoprocessual, ficando afastada, via de conseqüência, por exemplo, acompreensão sobre posturas eventualmente adotadas nos autos. Nãose pode negar, por seu turno, que os Procuradores de Justiça tambémpodem encontrar dificuldades de receptividade por parte de algunsPromotores, mesmo quando deles parta a iniciativa do contato.

Além disso, estando sujeito o Procurador de Justiça a receberprocessos de todas as Comarcas do Estado, poderá ver-se em con-tato com alguns originários de regiões com as quais jamais conviveu,nas quais nunca trabalhou e quiçá, sequer visitou, conhecendo pouco,ou quase nada, sobre a realidade local e suas peculiaridades. Essacircunstância, por vezes, subtrai da segunda instância, a possibilidadede compreender a grande importância, para certa comunidade, dedeterminada demanda que para ele, a princípio, por desconhecimentodo particular cotidiano daquela sociedade, se apresenta como menore corriqueira. O fato, infelizmente, não é raro: a causa da “vida” dedeterminado Promotor de Justiça (abstraída, evidentemente, qualquermotivação de cunho pessoal) e de determinada comunidade, não étratada como tal na segunda instância, que não por sua culpa, maspela sistemática atual, desconhece as peculiaridades locais e analisaa questão sob ótica apartada e diversa daquela onde se originou a lide.

Pode acontecer de deixar um Procurador de Justiça de recorrerde uma causa por entendê-la de subalterna importância, sem se aten-tar para o fato de que, eventualmente, na Comarca de origem, é ela amuito importante e trará reflexos substanciais para a imagem do Mi-nistério Público e da própria Justiça.

Mas situação ainda mais incômoda ocorre quando os posiciona-mentos dos membros do Ministério Público, de primeira e segundainstância, são conflitantes. Com constância maior que a desejável, te-ses ferrenhamente defendidas por órgãos de execução de primeiro grau,são desabonadas pelos órgãos de segunda instância, gerando, inequi-vocamente, não só tensão nas relações internas como também, o queé ainda mais lamentável, desgaste e enfraquecimento da Instituição como

5 Art. 19, § 2º da Lei nº 8625/93 e Artigo 44, § 4º, inc. VI da LC nº 734/93.

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um todo. Sem posturas institucionais firmes, homogêneas e coesas,não se pode falar em atuação profissional, eficiente e eficaz do Ministé-rio Público, colocando-nos em posição de desvantagem em relação anossos contendores, sempre unidos e bem organizados.

Tudo isso é agravado porque o distanciamento entre as instânci-as ministeriais e a pulverização da distribuição dos processos pelasProcuradorias, ausente um critério mais elaborado (salvo o já existen-te por matéria), coloca os Procuradores de Justiça, de certa forma,em situação consideravelmente mais protegida e confortável em rela-ção aos Promotores.

É que nas Comarcas, notadamente nas menores do interior, oPromotor de Justiça, na linha de frente da Instituição, recebe gravescobranças da comunidade, cada dia mais organizada e exigente, sabeseu nome, suas atribuições, questiona suas posturas, critica seus exa-geros, ironiza sua inércia e exige sua atuação. A imprensa local dádestaque à atuação ministerial, quer enaltecendo o trabalho bem feitoquer criticando aquilo que considerado inadequado.

Em relação àqueles que a partir de certa fase passam a ser osresponsáveis pela condução do processo junto aos Tribunais, no entan-to, devido, como dito, à falta de constância nas distribuições aos Procu-radores de Justiça, são rigorosamente ignorados pela comunidade, fi-cando isentos, via de conseqüência, de quaisquer questionamentos dequem quer que seja, dentro e fora da Instituição. O Procurador de Justi-ça, na realidade, em sua atividade, no atual sistema, se encontra imunea cobranças, atuando sob o desígnio exclusivo de sua própria convicção,não devendo maiores esclarecimentos aos Promotores de Justiça ou aoChefe da Instituição, com os quais não mantém contato regular e habi-tual, e muito menos com a comunidade, dado que não postula emrelação qualquer delas em particular, mas sim, em tese, quanto a to-das do Estado.

Releva notar que nos parece interessante e positivo, mantidoum grau de tolerância aceitável, a existência de certa cobrança e fis-calização sociais da atividade do membro do Ministério Público, inde-pendentemente da instância em que funcione, servindo não só de es-tímulo como também de eficaz instrumento para motivação daqueles

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mais acomodados. Na sistemática atual, tendo os Procuradores deJustiça idêntica responsabilidade por todo o Estado, não guardandorelação direta com nenhuma comunidade, os ônus se difundem e, ondetodos são igualmente responsáveis, já vaticina a sabedoria popular,ninguém na verdade o é.

Esses são alguns dos problemas existentes e decorrentes dire-tamente do fracionamento da atividade ministerial, cumprindo ressaltarque tal partição é fruto da lei e da sistemática processual vigente, impon-do encontrarmos solução que atenda à necessidade de eficiência e efi-cácia da atuação ministerial como um todo, sem olvidar da necessidadede preservação do modelo organizacional em suas grandes linhas,máxime a divisão de trabalho entre primeira e segunda instância.

III – Uma proposta

Apontados alguns dos problemas e delineadas suas conseqüên-cias, é forçoso reconhecer que qualquer alternativa apresentada paracorrigir ou minorar as distorções, inexoravelmente esbarrará em pelomenos três respeitáveis obstáculos: as dificuldades orçamentárias, ainconveniência de alterações legislativas e a resistência dos setores maisconservadores da Instituição, seja em primeira ou segunda instância.

A presente conjuntura político/econômica torna quase indeco-rosa qualquer proposta que redunde em aumento de despesa orça-mentária. Perceptível que não tem sido fácil à Administração Superiordo Ministério Público, a obtenção de verbas junto ao Executivo, sequerpara dar cabo, na sua integralidade, dos compromissos de pessoal ede despesas de custeio e investimento já existentes, ficando pratica-mente inviabilizadas quaisquer reflexões que representem aumentodessas despesas.

Alterações legislativas, por seu turno, se nos parecem, no atualmomento, absolutamente temerárias, tendo em vista a possibilidadede abertura de brecha para modificações mais profundas na estruturainstitu-cional. Análise superficial do ambiente político atual, leva à se-gura conclusão no sentido de que o Ministério Público, pelo próprio

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regular exercício de suas funções, vem angariando inimigos em veloci-dade, quantidade e qualidade vertiginosas, os quais, muitos integrantesda classe política ou capazes de nela influenciar, não poupariam esfor-ços na direção do encolhimento da Instituição, com a revisão de suasfunções e conseqüente diminuição de sua influência na sociedade, tudose essa oportunidade lhes fosse conferida. Não seria prudente, por ób-vio, que tal oportunidade lhes fosse oferecida pela própria Instituição, oquê se observaria pelo encaminhamento, no contexto atual, de projetode lei remodelando suas funções ou atribuições.

O enfrentamento dos setores mais conservadores da Instituiçãonão é empreitada menos complexa que a superação dos demais en-traves elencados, mormente considerando que essa tendência estápresente em importantes setores dos órgãos de segunda instância.Uns por convicção, outros em homenagem às tradições e outros pou-cos por puro comodismo, é certo que alguns Procuradores de Justiçasequer aceitam a idéia de simplesmente debater as atribuições dasegunda instância do Ministério Público, quanto mais com membrosdo primeiro grau. De outro lado, há fundadas críticas à atuação minis-terial de primeira instância, estando a merecer atenção e reparos dita-dos pela experiência dos que hoje ocupam os cargos do segundo grau.

Em conclusão, temos que para solucionar as distorções referi-das, imperiosa a superação dos três entraves apontados. Proposta,por-tanto, que busque, séria e descompromissadamente, a resolu-ção dos problemas relacionados ao distanciamento entre a primeirae segunda instância do Ministério Público e ao remodelamento dasProcuradorias de Justiça, terá de dar satisfatória solução às ques-tões referentes à impossibilidade de aumento das despesas e deinviabilidade de alterações legislativas, bem como terá de ser hábil osuficiente para contornar eventual resistência dos setores mais con-servadores da Instituição.

E nesse sentido, a sugestão que apresentamos, a qual, nãoobstante incipiente, longe de estar pronta e acabada, e sem a míni-ma pretensão de perfeição, tende à evolução no caminho da soluçãodas questões postas ao debate, bem como à minimização de suasnefastas conseqüências, sem se chocar frontalmente com qualquer

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das objeções referidas. Estas, talvez, as maiores virtudes da pro-posta: não gera aumento de despesa, independe de modificaçõeslegislativas e não altera substancialmente as atribuições e o cotidia-no dos Procuradores de Justiça.

Propõe-se a simples modificação da divisão de atribuições dasProcuradorias de Justiça de molde a criar, em substituição às hojeexistentes, Procuradorias de Justiça Regionais, cuja distribuição deautos vincule-se a determinada parcela de Comarcas do Estado, semolvidar de uma divisão interna por matéria, como hoje ocorre.

Com efeito, atualmente as atribuições das cinco Procuradorias deJustiça6 encontram-se disciplinadas no Ato nº 31–CPJ, de 14/09/94, pu-blicado no DOE de 15/09/94, págs. 38 e 39. Excetuada a 3ª Procurado-ria de Justiça cujas atividades se definem em razão da matéria,7 emlinhas gerais, os órgãos de execução de segunda instância têm suasáreas de atuação desvendada, tendo em vista o exercício de atribuiçõesjunto a determinado Tribunal. Assim, a 1ª Procuradoria funciona junto àSeção Criminal do Tribunal de Justiça; a 2ª Procuradoria conta com atri-buições para oficiar no Tribunal de Alçada Criminal; a 4ª perante as Se-ções de Direito Privado e Público do Tribunal de Justiça; e a 5ª Procura-doria exerce atividades nos 1º e 2º Tribunais de Alçada Civis.

Estabelece, também, o dito ato do Egrégio Colégio de Procura-dores de Justiça, em absoluto prejuízo da eficiência, que nas sessõesde julgamento do Tribunal de Justiça e dos Tribunais de Alçada, oficia-rão, respectivamente, os integrantes da 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Procuradoriasde Justiça, ainda que em processos de habeas corpus ou mandados desegurança, implicando na elaboração de parecer por membros de umaProcuradoria e participação nas sessões por membros de outra, com-posta por profissionais que não tiveram sequer contato anterior com oprocesso. Não abordaremos os setores especiais para ficarmos naregra geral.

6 Art. 21 da Lei nº 8.625/93 e Artigo 44, incisos e parágrafos da Lei Complementar Estadual nº734/93.7 3ª Procuradoria de Justiça: 24 (vinte e quatro) Procuradores de Justiça, com atribuições deoficiar em todos os processos de habeas corpus, das áreas cível e criminal, e mandados desegurança da área criminal de competência originária.

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Percebe-se claramente, portanto, que, regra geral, as atribuiçõesse definem em função de um Tribunal, colocando como parâmetropara a definição de atuação do Ministério Público, os órgãos do PoderJudiciário, estando aí o maior equívoco do sistema atual. É inaceitávelque se continue determinando o Ministério Público tendo por norte oJudiciário. a:Urge, pois, revitalizar a Segunda Instância, dar-lhe funçãoda qual derive uma contribuição prática efetiva na realização da justi-ça, sem transformá-la num mero espelho do Poder Judiciário (DalPozzo, 1981). O foco não pode ser os órgãos judiciários, só podendosê-lo a comunidade, destinatária imediata da atividade ministerial. Ser-ve o Ministério Público – e deve prestar contas – à sociedade de que éadvogado e não ao Poder Judiciário, pelo quê, a primeira deverá servircomo norte para sua orientação em termos de atuação institucional, enão o segundo. O erro de parâmetros é indisfarçável impondo corre-ção para alcançarmos uma Instituição independente e voltada à defe-sa de valores democráticos (Mazzilli, 1998).

O que se propõe, resumidamente, é a correção desta distorçãode molde a que as áreas de atuação dos órgãos de execução de se-gundo grau sejam definidas em função da comunidade, com estrei-tamento de laços e unidades de direcionamento entre o Ministério Pú-blico – de primeira e segunda instâncias – e os destinatários dessaatividade, concretizada a partir da edição de novo Ato pelo EgrégioColégio de Procuradores de Justiça.

É essa a base da idéia de criação das Procuradorias de JustiçaRegionais: definir que determinada Procuradoria (podendo dividir-seinternamente por matérias) somente receberá processos de uma re-gião do Estado, que quanto menor for tanto melhor. Essa divisão deatribuições tornará, ainda que involuntariamente, muito maisaprofundado o relacionamento entre as instâncias institucionais, inclu-sive a própria Procuradoria-Geral de Justiça, vindo como conseqüên-cia natural da continuidade, perenidade e constância de contatos. Evi-dente que recebendo, o Procurador de Justiça, sempre processos dosmesmos Promotores, terá melhores condições de conhecer seu tra-balho, avaliar suas atitudes e compreender suas agruras, tendo maissubsídios para orientá-lo e instruí-lo, transferindo seus conhecimentos

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e experiência acumulados ao longo dos anos de carreira, cabedal quehoje fica restrito aos outros Procuradores que trabalham “no mesmoandar ou prédio”, ainda assim em trocas ocasionais. Vez por outra con-segue o Procurador transferir seu saber num parecer, espaço diminutopara tão importante tarefa, mas isso é raro, restando mesmo enclau-surada a sabedoria dos mais antigos, quando em verdade, deveria acon-tecer exatamente o contrário. É no momento em que o Promotor deJustiça está no ápice de seu desenvolvimento profissional que galga omais elevado posto na carreira, muitas vezes deixando de ter contatodiário com outros membros da Instituição para dar expediente em horá-rios e locais alternativos, significando afastamento e desalento com acarreira. Tão rica experiência não pode ser tão rapidamente desdenha-da. Nenhuma empresa séria do mundo treina seus empregados paraquando chegarem ao ápice, enclausurá-los e colocá-los em situação naqual é praticamente impossível transferir o conhecimento acumulado.

O Promotor de Justiça, noutra banda, tendo seus processos emsegunda instância, sempre entregues aos mesmos Procuradores deJustiça (em número quanto menor, melhor), terá muito mais condi-ções de contato, procurando a segunda instância, inclusive, previa-mente, tratando de questões em tese, contribuindo para que os feitostenham uma melhor condução e continuidade. A regularidade de con-tato entre os mesmos Promotores e Procuradores de Justiça, semqualquer dúvida, levará a um estreitamento de relacionamento com acriação, paulatina e segura, de relações de conhecimento, compreen-são e confiança recíproca, uniformizando a condução dos feitos embenefício da atividade institucional. Com a constância e pré-determi-nação de contatos, na hipótese de necessidade saberá o Promotor deJustiça a quem procurar na segunda instância, tendo confiança e inti-midade suficiente para fazê-lo.

O Procurador de Justiça, por sua vez, disporá de melhores infor-mações sobre os trabalhos de primeira instância, conhecendo mais pro-fundamente não só as atividades e a personalidade de seu correicio-nado permanente, quanto os próprios processos, possibilitandomelhores condições de acompanhamento. Evidentemente que esseacompanhamento não significa hierarquização e nem mesmo parti-cipação do Procurador de Justiça em atividades processuais de modo

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a permitir eventual argüição de impedimento.8 Todavia, a discussão decasos em tese não encontra nenhuma restrição legal ou ética, ao con-trário, como se vê, é necessária. Aliás, as recentes alterações do Có-digo de Processo Civil em relação ao agravo de instrumento e aosrecursos especial e extraordinário, impõem hoje a necessidade de en-tendimento entre as instâncias, se por mais não fosse.

Falamos do parágrafo único do Art. 526, com a redação dada pelaLei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2001, in verbis: O não cumprimen-to do disposto neste artigo, desde que argüido e provado pelo agravado,importa inadmissibilidade do agravo. O representante ministerial de pri-meira instância deverá fornecer subsídios ao Procurador de Justiça casoo agravante não tenha informado nos autos sobre a interposição do re-curso, quer seja o Ministério Público autor ou interveniente na ação, for-çando a troca de informações e, eventualmente, até de documentos.

Também exige troca de informações e afinamento entre os mem-bros do parquet de primeiro e segundo grau o caso tratado no § 3º doartigo 542 do Código de Processo Civil. Como se sabe, os recursosespecial ou extraordinário ficam retidos nos autos se interpostos con-tra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar ouembargos à execução, somente se processando se a parte os reiterarnas razões ou contra-razões de apelação. Tratando-se de requerenteou requerido outro que não o Ministério Público, pouca alteração severifica, mas se qualquer dos recursos tenham sido interpostos peloProcurador de Justiça oficiante, necessariamente o Promotor de Jus-tiça terá de reiterá-lo sob pena de não processamento. Dessa forma, orecurso interposto pelo Procurador, no mais das vezes para defesa deimportantes teses institucionais, ficará na dependência da reiteraçãopelo Promotor de Justiça, que poderá ou não fazê-lo. À evidência que aatuação ministerial deverá ser coordenada e única, permitindo ser al-cançado o resultado pretendido.

Por fim, necessário dizer que essa sistemática de distribuição deprocessos não afeta o princípio do Promotor natural (Penteado, 1985),

8 Art. 138, inc. I do CPC e Art. 258 do CPP.

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regra não inscrita na Constituição Federal, mas que encontrou guaridano Pretório Excelso9 e, de resto, está hoje estabelecida em lei.10

IV – Os resultados esperados e asvantagens da sistemática proposta

A implantação da proposta não nos parece excessivamente difí-cil, sobretudo se contraposta aos benefícios que se espera, como seviu. Pensamos ainda que acabará o problema, em primeiro grau, paraidentificação do Procurador de Justiça que atuará em determinado pro-cesso, uma vez que é ele previamente conhecido, ou pelo menos onúmero possível deles é pequeno. Esse conhecimento prévio influenci-ará na questão da disposição para a atenção recíproca que igualmenteexperimentará melhoras, como conseqüência natural do próprio siste-ma, pois não mais haverá ambiente para a falta de atenção, de ambosos lados. Atualmente, se sabe que algum desentendimento – pessoalou processual – pouco reflexo produzirá no cotidiano dos contendores,pois dificilmente se encontrarão novamente dentro de um processo. Oquadro se modifica profundamente com as Procuradorias Regionais,dado que o trato rotineiro, por certo inibirá excessos e exigirá posturasrespeitosas e de maior tolerância. Os que eventualmente se desenten-dem hoje, estarão juntos amanhã, obrigando ao diálogo e à busca desoluções para o conflito que atendam o interesse público.

O acompanhamento dos processos melhorará substancialmen-te, não sendo tarefa difícil a determinada Procuradoria manter suaregião atualizada sobre datas de julgamentos, inclusive acompanhan-do as sessões e tomando as medidas que se fizerem necessárias,inclusive sustentação oral, hoje realizadas por Procuradores que, viade regra, tomam contato com os autos pela primeira vez minutos an-tes do início dos trabalhos.

A pré-determinação do órgão ministerial de segunda instância, oestreitamento e constância de relacionamento com seus integrantes,

9 RTJ 150/123 e 148/181.10 Art. 21 da LONMP.

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o aumento do diálogo, o conhecimento recíproco, a possibilidade demaior intimidade com o feito, certamente redundarão num processa-mento mais homogêneo dos autos pelas instâncias do Ministério Pú-blico, em inegável benefício da atuação como um todo.

Ao Promotor de Justiça ficará mais facilitado o acesso aos ór-gãos de segunda instância, à troca de idéias e ao acompanhamentodos processos nos Tribunais. Ao Procurador será permitido melhorconhecimento dos posicionamentos dos autores das ações ou mes-mo dos fiscais da lei, possibilitando e tornando eficiente sua orienta-ção, e do próprio feito por via de conseqüência, com o fomento à trocade idéias, facilitando sua atividade, mormente considerando o exíguoprazo que dispõe para se familiarizar com os autos.

E tão importante quanto propiciar ao Procurador de Justiça melhorconhecimento do feito e de seu autor, é ofertar-lhe condições de saberdas peculiaridades da comunidade da qual originada o processo. Rece-bendo feitos sempre das mesmas Comarcas, a segunda instância toma-rá contato com sua realidade, fixará seus olhares em seus problemas,compreenderá suas dificuldades, dimensionará suas aflições e poderá,via de conseqüência, muito melhor avaliar a amplitude dos casos delasoriundos. A própria busca de informações restará simplificada, permitindoacompanhamento, inclusive, do noticiado nos meios de comunicação lo-cais, possibilitando adiantar, muitas vezes, o conhecimento sobre deter-minado tema, que poderá vir a ser objeto de demanda judicial. Além disso,essa intimidade com as peculiaridades locais, permitirá maior influênciada segunda instância sobre a elaboração dos planos de atuação, hojelimitadas a meras sugestões11 e, ainda assim, de difícil consecução práti-ca pois, difícil, para dizer o mínimo, imaginar que alguma das atuais Pro-curadorias tivesse conhecimento específico suficiente para sugerir medi-da de atuação ao Procurador-Geral de Justiça e, muito menos, àsPromotorias de Justiça, se assim desejassem. Fora de dúvida que co-nhecendo o Procurador de Justiça o cotidiano das Comarcas dos pro-cessos em que atua, terá melhores subsídios para se posicionar, querem relação ao Promotor, às decisões judiciais e as posturas dos advoga-dos, bem assim às questões de fato, levando-o a decisões com muitomais profundidade, substância e eficiência.

11 Artigo 44, § 4º, inc. IV da LONMP.

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A criação das Procuradorias Regionais poderá acarretar até adici-onal estímulo à progressão funcional na carreira, além de melhor apro-veitamento, em segunda instância, de mão-de-obra oriunda da primeira.Isso porque permite ao Promotor de Justiça que exerceu por muito tem-po suas atividades em determinada Comarca e região, promova-se paraa superior instância e trabalhe junto a essa mesma Comarca e região.Além da satisfação profissional proporcionada, esta possibilidade cuidade exemplar hipótese de maximização no aproveitamento da mão-de-obra institucional, posto que, certamente, não existirá ninguém melhorpreparado para atuar pela segunda instância do Ministério Público emdeterminada região do que aquele profissional que por anos a serviu emprimeiro grau, conhecendo-a em profundeza. Irracional seria colocar esteexperimentado profissional para trabalhar pelo Estado inteiro, inclusiveregiões com as quais não tem a menor intimidade, não ligado a umacomunidade, mas a um Tribunal, desprezando por completo todo seuconhecimento específico sobre uma parcela da sociedade.

Posicionamentos conflitantes seriam mais raros, embora even-tualmente possam ocorrer. É que a proximidade entre os órgãos deatuação, a constância de relacionamentos com aumento do diálogo,inclusive em relação à freqüência deles, determinaria, ou pelo menosfavoreceria, a homogeneização de entendimentos. Fugiria ao naturalque Promotores de Justiça insistissem em adotar certo posiciona-mento, se pacificado na Procuradoria Regional com atribuição para osprocessos originados em suas Comarcas, entendimento contrário àtese defendida. A sistemática permitiria, inclusive, a adoção pela pri-meira instância de posicionamentos reiterados e pacificamente assu-midos pelas Procuradorias respectivas, emprestando às posturas dosórgãos de segunda instância do Ministério Público, papel semelhante aocumprido pela jurisprudência junto ao Judiciário de primeiro grau. Essafixação de orientações jurídicas, conquanto não vinculativas nem mes-mo para os próprios Procuradores,12 daria um norte para atuação racio-nalizada do parquet da região, não impedindo, de outro lado, queposicionamento maciçamente acatado em primeira instância demovessea segunda de sua inicial contrariedade ou mesmo incentivasse para umaluta processual mais contundente na defesa de determinada tese. No

12 Art. 20 da LONMP e Artigo 44, § 4º, inc. I da LC 734/93.

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sistema proposto, sem sombra de dúvida, as possibilidades de entendi-mento entre os órgãos de execução seriam maiores, havendo mecanis-mos mais hábeis para a solução dos problemas atinentes à incongruên-cia de manifestações ministeriais num mesmo processo.

Por fim, a atuação regionalizada revitalizaria e estimularia a ativida-de das Procuradorias de Justiça, no sentido de que seus integrantespassariam a ser conhecidos e identificados na região de exercício dasatribuições, aumentando não só sua responsabilidade como ofertandopossibilidade de reconhecimento do trabalho. Tendo as comunidades,desde o início da demanda, prévio conhecimento a respeito da identida-de daqueles membros da Instituição que a partir de determinado momen-to serão os responsáveis pela condução do processo, aberta estará nãosó a oportunidade de eficaz fiscalização e objetiva cobrança de resulta-dos de sua atuação, como também de valorização da própria atividade.

V – Conclusão

Como se disse, não há pretensão alguma de apresentar propos-ta pronta e acabada, mas mero desejo de fomentar a discussão sobretão relevante tema, máxime em momento em que a sociedade se or-ganiza e passa a cobrar as instituições, exigindo delas o retorno embenefícios, nem sempre se preocupando com os recursos financeirosempregados em cada uma delas. Fato é que em relação ao MinistérioPúblico, nota-se que a sociedade já percebeu a enorme gama de pode-res atribuídos à Instituição pelo constituinte, exigindo cada vez mais atua-ção que nem sempre somos capazes de responder à altura. Basta vero crescimento vertiginoso da criminalidade e o relativamente pouco quefazemos para combatê-lo. De outro lado, a corrupção assume propor-ções e refinamento tal que exigem firme e eficaz posicionamento dodefensor dos interesses sociais, do Estado de Direito e da democracia.

Não podemos esquecer, no entanto, que qualquer alternativa quese apresente para reparar o distanciamento entre as instânciasinstitucionais e revitalizar a atuação de segundo grau, por mais sedu-tora que seja, terá de dar satisfatória acomodação aos entraves quese interpõe à adequação da matéria.

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Esta proposta não demanda o aumento de um único real nasdespesas orçamentárias.

Não vislumbramos a necessidade de transferência física dasProcuradorias para o interior do Estado ou de criação de espaços eprédios regionais. Nada impede, todavia, que no futuro isso venha acon-tecer, se aconselhável for. Hoje, as Procuradorias de Justiça devemficar absolutamente onde estão, se servindo da mesma estrutura físi-ca e de pessoal, somente tendo alteradas suas áreas de atuação.

A reforma também independe de modificações legislativas, con-cretizadas com a edição de Ato do Colégio de Procuradores de Justiça.

As áreas de atuação dos Procuradores de Justiça não seriamsubstancialmente alteradas, permanecendo as atuais com a diferen-ça de ligarem-se a uma determinada região, havendo, contudo, ne-cessidade de especialização interna por matérias. Note-se que hoje játemos uma divisão regional administrativa estruturada e que poderiaser utilizada como parâmetro. De todo modo, exige-se acurado estudosobre o número de processos oriundos de cada região, relacionadoscom as matérias, visando uma distribuição equânime de Procurado-res, sob pena de não o fazendo tornar a redistribuição de serviçostanto iníqua como inócua. A preservação do equilíbrio na distribuiçãode processos para cada uma das Procuradorias com atribuições regi-onais, e dentro delas, para cada Procurador de Justiça, é objetivoinafastável e que deve ser buscado sempre.

Em conclusão, temos que a equivocada estruturação da segun-da instância do Ministério Público, focada que é, para desenvolvimentode suas atividades, não na comunidade a que serve, mas nos órgãosdo Poder Judiciário, cria indisfarçável distorção, gerando afastamentoem relação aos órgãos de execução de primeiro grau e desvaloriza-ção geral de suas próprias atribuições, freqüentemente questionadase chegando a injusto menosprezo, com conseqüentes malefícios parao desempenho da atividade institucional.

A mudança de foco com a regulamentação da atividade da segun-da instância em função da sociedade, criando-se, a partir da mesmaestrutura já existente, Procuradorias de Justiça com atribuições regio-nais, promoveria natural aproximação entre as instâncias do MinistérioPúblico e a revitalização das atribuições dos Procuradores de Justiça.

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Isso se faria independentemente de aumento de despesas, dealterações legislativas e de profundas incursões na estrutura e atribui-ções da segunda instância, tornando razoável, segundo entendemos,a proposta, encorajando-nos a apresentá-la à classe, expondo-a ascríticas e ao salutar debate que sempre notabilizou e precedeu as fa-ses de crescimento institucional, certos de que construí-la não é tarefapara um dia. Nem para apenas uma geração (Frontini, 1977).

Orlando Bastos Filho,15.º Promotor de Justiça de Sorocaba, e

Eduardo Martines Júnior,Promotor de Justiça, designado na 4ª Procuradoria de Justiça

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Arthur pinto lemos júnior,promotor de justiça da capital

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A RESPONSABILIDADE CRIMINALDO “HOMEM DE TRÁS” DAS

ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS (*)

Arthur Pinto Lemos Júnior

Sumário: 1. Introdução. 2. Aspectos gerais da responsabi-lidade criminal do «homem de trás». 2.1. Breve referênciaquanto a importância do tipo penal da associação crimino-sa. 2.2. A responsabilidade jurídico-penal nos crimes co-metidos em concreto pela organização criminosa. 2.2.1. Con-siderações prévias sobre a teoria do domínio do facto. 2.2.2.A autoria mediata e a utilização de instrumentos dolosos.2.2.2.1. O domínio por organização como critério da autoriamediata. 2.2.2.2. Estrutura das organizações criminosas (emsentido estrito). 3. A teoria da autoria mediata (como resolu-ção do problema). 4. A teoria da co-autoria. 5. A teoria dainstigação. 6. Considerações finais. 7. Bibliografia.

1. Introdução.

De acordo com o pensamento de MAX WEBER, o homem paraalcançar melhor seus objectivos e fazer frente, com eficácia, aos obs-táculos surgidos, de forma espontânea e conatural, passou a organi-zar-se. E foi essa necessidade de organizar-se que levou o homem aassociar-se, mas isto não só para alcançar fins lícitos, como também

(*) Este trabalho – com pequenas alterações – foi apresentado na Faculdade de Direito da Universi-dade de Coimbra, em maio de 2002, durante Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, nadisciplina de Direito Penal, sob a orientação do Sr. Doutor Prof. Manoel da Costa Andrade. Com istojustificamos o maior enfoque na doutrina européia e na legislação portuguesa.

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ilícitos1. Resulta daí incontroverso que a criminalidade organizada exis-te desde que sempre existiu a atividade lícita organizada2. Mas, importareconhecer que essa fenomenologia social delinquente ajustou-se comperfeição à produtividade capitalista e, atualmente, coloca em risco ademocracia, porquanto compromete inúmeros princípios, dentre eleso da responsabilidade penal.

O tema a ser desenvolvido centra-se nesse contexto e reflete aincidência do fenômeno, criminalidade organizada no Direito Penal.

É incontroversa a falta de precisão dessa expressão – criminalidadeorganizada – e, por isso mesmo, para não cairmos em inevitável frustra-ção, a contrariar, de propósito, o método usual adotado, não tentaremosdefinir o que é o fenômeno do crime organizado. Cuidaremos, tão-só,das organizações criminosas no sentido estrito, ou mais específico pos-sível, com a aproximação do foco em sua estrutura e nas caracte-rísticasde sua atuação com o escopo de divisar a responsabilidade jurídico-penal daquele que a dirige. Não abordaremos, assim, as importantesquestões dos aparatos (ou aparelhos) de poder organizados estatais, dacriminalidade econômica organizada e empresarial 3 .

À partida, sugerimos as seguintes situações introdutórias: umindivíduo é surpreendido pela polícia numa casa de campo alugada porterceira pessoa, tendo em seu interior grande quantidade de cocaína,numa nítida atividade do tráfico de estupefacientes; outro é indicadopelas provas do inquérito como sendo o autor imediato de um crime dehomicídio do qual foi vítima uma pessoa que ele sequer conhecia.

1 Pensamento desenvolvido nas obras: A ética protestante e o espírito do capitalismo, trad. AnaFalcão Bastos e Luís Leitão, 2001; e Economia e sociedade, esboço de sociologia compreensiva,esta última citada por HERRERO Herrero, Cesar, in Criminologia (Parte General y Especial), 1997,p. 498.2 Cfr. HERRERO Herrero, como nota anterior, p. 475.3 Embora patente a conexão com o tema, impossível o aprofundamento de todas questões derivadasdessas organizações, motivo pelo qual cuidaremos apenas e tão só da criminalidade específica, ouem sentido estrito, as quais serão precisadas no capítulo 2.2.2.2. Sobre os aparatos de poder estataisver as obras: ROXIN, C.: Autoria e Domínio do Fato em Direito Penal, 7ª ed., trad. Joaquín C. Contrerase J.Luis S.G.de Murillo, 2000, p. 269-280; AMBOS, Kai: Sobre a antijuridicidade dos disparosmortais no muro, trad. Claudia López Diaz, Univ.de Colómbia, 1999; SERRA, Teresa, “A autoriamediata a través do domínio de um aparelho organizado de poder”, RPCC 3º-4º fasc., 1995, p. 303.

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Conscientes da simplicidade dos exemplos, é evidente que, parapunir o executor material dos dois crimes citados, pouco interessa dis-cutir o conceito de autoria. Mas salta à vista que tais crimes – dentretantos outros – devem estar inseridos numa constelação complexa ede difícil observação: o espaço dos crimes cometidos por organiza-ções criminosas.

O mister de definir a responsabilidade criminal de quem determi-nou as práticas dos crimes exemplificados – os chefes das correspon-dentes organizações criminosas – não pode ser cumprido, como pre-tendemos demonstrar, com a concepção do princípio da responsabilida-de pessoal nascido no direito penal liberal, concebido na Revolução Fran-cesa4. De fato, para além da responsabilidade penal de entes coletivos,no universo que a criminalidade organizada oferece, a constelação daautoria e participação sofreu e está a sofrer constantes alterações, tudoa exigir da dogmática uma nova reflexão 4(a).

Ainda invocamos os dois casos antes mencionados para eviden-ciar um dos fatores geradores de dificuldade: a atuação opaca dasorganizações criminosas, resistente a qualquer visualização, comodecorrência de uma programação não «artesanal mas antes um pro-jecto racionalmente elaborado»5 e que conta com uma sofisticada es-trutura de poder organizado não estatal.

Uma vez vencido o desafio de se identificar a organização crimino-sa, restará, a não menos difícil, tarefa de definir a responsabilidade jurídi-co-penal de seus membros, em especial, a do chefe. Para tanto, exis-tem várias e antagônicas teorias que buscam solucionar a questão do

4 Em consonância, pois, com as concepções filosóficas daquela época, fundadas no individualis-mo, representadas por KANT e HEGEL.4(a) Aliás, «o direito penal, tal como outro ramo do multiversum jurídico, nunca deixou de setransformar. (...) este constante fluir que tem que ser percebido, não como algo degenerativo quetorne a ciência do direito penal insusceptível de apreensão e captação metódica mas, ao invés,como um dado em relação ao qual devem ser aperfeiçoados os instrumentos de análise e compre-ensão. (...) é este permanente desenvolvimento da complexidade (...) que se envolve em regras deraciocinar que diminuem o grau daquela complexidade, mas que despertam novas complexida-des, o que leva a que o pensamento jurídico-penal, porque intencionalmente vocacionado para asolução justa, se reveja na procura também constante de novas formulações teoréticas (cfr. FARIACOSTA, in O Perigo em Direito Penal, 2000, p. 179-180).5 Cfr. FARIA COSTA, in “O fenómeno da globalização e o direito penal económico”, BFDUC n.º61, 2001, p. 540.

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concurso de pessoas e os problemas daí decorrentes6: a teoria formal –objetiva, a subjetiva, a material – objetiva e a teoria do domínio do fato7.Como nosso objetivo prescinde da abordagem de cada uma dessasfiguras em sua autonomia, presumiremos conhecido seu conceito e,assim, centraremos nossa atenção para a teoria que melhor satisfaz oárduo tema: a teoria do domínio do fato.

Os posteriores desenvolvimentos da teoria do domínio do fato bematendem à reclamada nova dogmática do futuro, «zukunftsbezogene» -com STRATENWERTH -, «como forma de domínio jurídico-penal decertas “relações ou âmbitos da vida como tais”, que não mais se deixa-riam tutelar eficazmente em nome da mera proteção de interesses in-dividuais; de que o fenômeno da criminalidade organizada constituiria(...) expressão paradigmática»8.

Com efeito, desde que a criminalidade organizada interagiu com aglobalização, o fenômeno ganhou dimensão e a repercussão desse qua-dro na ciência penal tem sido de desafio, ainda não vencido. A pós-modernidade estabeleceu em definitivo uma – com MARSHALL MCLUHAN – «aldeia global» cada vez mais tecnológica e uma sociedadecada vez mais de risco9, caracterizada por ações cada vez mais impes-soais, anônimas, produzidas em tempo e lugar distantes do resultado.Tudo facilitado pelo espaço sem fronteiras como é o caso do europeu10,

6 No caso da lei penal portuguesa, o art. 26 prevê quatro figuras: a autoria singular imediata (épunível como «autor quem executar o facto, por si mesmo»), a autoria mediata (quem o executa«por intermédio de outrem»), a co-autoria («quem (...) toma parte directa na (...) execução, poracordo ou juntamente com outro ou outros») e a instigação (quem «dolosamente, determina outrapessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução»). E o art. 27 do CPprevê a figura da cumplicidade.7 Por todos, FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal, Sumários, FDUC, 1976, p. 50 ss.8 Cfr. FIGUEIREDO DIAS, “Autoria e Participação no Domínio da Criminalidade Organizada”, emQuestões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas, 1999, p. 357.9 MC LUHAN, Marshall, in The Gutenberg Galaxy: the making of typographic man., Toronto,University of Toronto, 1962, refere-se à aldeia global; e BECK, Ulrich, Risikogesellschaft, in ASociedade do risco, 1998, à sociedade do risco.10 Sobre isto: SILVA SÁNCHEZ, J.M. in La expansión del derecho penal – Aspectos de la políticacriminal en las sociedades postindustriales, 1999, p. 63 ss; FARIA COSTA, in “O Fenómeno daGlobalização...”, como nota 5; FIGUEIREDO DIAS, “O direito penal entre a sociedade industrial ea sociedade de risco”, BFDUC 61, 2001; e numa visão sociológica: ZIEGLER, Jean, in Os Senhoresdo Crime, trad. M. Torres, 1999.

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a gerar a «qualidade da inexistência do local do delito», de sorte que«procurar ou destrinçar quem é quem (...) na cadeia de autoria se tor-na, não só tarefa labiríntica mas também atitude de empenhamento,por banda da Polícia, Ministério Público e Juízes»11.

Pretendemos, pois, estabelecer os elementos estruturais unifor-mes dessas organizações criminosas, em sentido estrito, e depois dedelinear o método de atuação do «homem de trás». Em seguida, numaanálise crítica, aplicaremos as principais construções teóricas que pro-curam solucionar a seguinte questão: como definir o comportamentocriminoso do «homem de trás» - «autores de escritório»12 - ou chefesde específicas organizações criminosas, que permanecem distantesdo executor material e do locus delicti, mas resguardam o pleno domí-nio do fato criminoso?

2. Aspectos gerais da responsabilidadecriminal do «Homem de Trás»

A responsabilidade jurídico-penal exige a individualização dos mem-bros da organização criminosa como forma de puni-los adequadamen-te, conforme suas condutas ilícitas. Para tanto, é imperioso reconhecerque cada figura da comparticipação guarda autonomia, com seu regimejurídico próprio, sendo defeso acreditar num conteúdo apenasclassificatório, sem importância em seu efeito punitivo, o que restarámais evidente ao longo da análise das diferentes teorias.

A definição de uma das figuras da comparticipação também temimportância para o efeito do reconhecimento do crime de «associa-ção» ou «organização» criminosa, vez que a própria lei cuida de distin-guir o envolvimento de cada integrante de acordo com seu papel indivi-dual, embora a lei penal brasileira, no artigo 288, “caput”, do CP, como ésabido, não faça essa distinção.

11 FARIA COSTA, in “O fenómeno da globalização...”, como nota 5, p. 536.12 Cfr. STRATENWERTH, Günter, Direito Penal, 1982, p. 242.

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2.1. Breve referência quanto à importânciado tipo penal da «associação criminosa».

No âmbito das organizações criminosas, o Direito Penal depara-se com o desafio de definir a responsabilidade criminal daqueles queexecutam os crimes e dos chefes dos aparatos de poder (não estatal,i.e., daqueles que não se aproveitam do poder do próprio Estado para aorganização dos delitos). Dada a expressão dessa fenomenologia e comocritério político-criminal de repressão, cumpre considerar uma dupla di-mensão dessa responsabilidade jurídico-penal: a) na medida em quesão concretizados os crimes planejados, os membros da organizaçãodevem responder por cada ato criminoso cometido e, neste espaço, cabea distinção das figuras do concurso de pessoas; b) mas devem tambémresponder, com autonomia, pelo crime de associação criminosa13.

Essa punição pelo crime de associação/organização criminosareflete um importante instrumento de política-criminal adotado pelo legis-lador. Isto porque as organizações estruturam-se e atuam de forma anão serem perceptíveis, de sorte que sempre haverá necessidade deintensa investigação criminal para a demonstração do envolvimento detodos seus membros nos delitos específicos cometidos, maxime da-quele que dirige o aparato e atua por detrás. Nas – inúmeras – situaçõesem que a Justiça não consegue atribuir à organização a prática de umdeterminado delito, restará, ao menos, punir os responsáveis como au-tores do crime de associação ou organização criminosa14. E, ao contrá-

13 Entre nós, como já frisamos, temos o crime de quadrilha ou bando, no artigo 288 do CP. EmPortugal, o art. 299 do CP prevê as condutas de promover, fundar, ou integrar e apoiar, ou mesmoangariar novos elementos para grupo, associação ou organização; «estes designativos são segu-ramente sinónimos na teleologia legal», cfr. FIGUEIREDO DIAS, in Comentário Conimbricense doCódigo Penal, 1999, p. 1160.14 Precisa a doutrina de MUÑOZ CONDE (“Problemas de Autoría y Participación”, 1999, p. 152):«...delito de asociación ilícita (...) se castiga de forma autónoma e independientemente del delito odelitos que a través de la asociación ilegal se cometan, con los que en todo caso puede entrar enconcurso real o ideal. Esta autonomía (...) puede ser muy importante para castigar adecuadamentealgunas formas de criminalidad organizada, ya que el castigo de la pertenencia o la dirección deuna asociación ilícita, tanto más cuando se trata de las bandas armadas, organizaciones y gruposterroristas (...), puede ya de por sí ser suficiente o servir de penalidad alternativa en los casos en losque no se puede imputar, conforme a las reglas generales de imputación a título de autoría oparticipación y a la valoración de la prueba que haga el Tribunal, a todos los miembros de laorganización los hechos concretos realizados sólo por algunos miembros de la misma». Para FARIACOSTA (in “XV Congresso Internacional de Direito Penal”, RBCC n.º 8, p. 151) com a utilização do

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rio, quando o delito específico restar esclarecido, há que se impor o con-curso material de crimes com o tipo de «associação»15. Essa técnica éa que melhor reconhece judicialmente a enorme periculosidade que re-presentam tais associações16, sendo, pois, mais adequada do que aquelaque apenas estabelece agravantes especiais nos tipos penais.

Com referência a mesma política-criminal cumpre registrar a pre-ocupação da União Europeia, nomeadamente pela incontroversa carac-terística da transnacionalidade das organizações criminosas17, num con-texto favorecido pela integração regional europeia – tudo favorecido coma facilidade e liberdade de circulação de capital, bens, serviços e pesso-as. Como reação, o Tratado da União Europeia propõe a harmonizaçãodas legislações dos Estados membros para facilitar a cooperação inter-nacional. Neste sentido, o Conselho Europeu, com o objetivo de maximizara repressão à criminalidade organizada, instituiu a «Acção Comum de21 de Dezembro de 1998» e deliberou sobre a tipificação penal da parti-cipação numa organização criminosa nos Estados membros. E a Con-venção das Nações Unidas contra a Delinquência OrganizadaTransnacional, firmada em Palermo, em dezembro de 2000, tambémobrigou os Estados membros a tipificarem a participação num grupocriminal organizado como delito diferente dos que envolvem a intenção

tipo penal «tornou-se, pura e simplesmente, muito mais fácil fazer a acusação de associaçãocriminal. (...) explodiram verdadeiramente as acusações, nos tribunais, de associação criminal (...)mas hoje (...) houve um retrocesso (...) começou-se a fazer, verdadeiramente, uma distinçãorigorosa entre as situações de autoria, de co-participação e de cumplicidade e as situações relati-vas às associações criminosas propriamente ditas».15 GARCIA-PABLOS de Molina, Antonio, in Asociaciones Ilícitas en el Código Penal, 1978, p. 353)indica o entendimento do concurso de crimes como quase unânime na doutrina e na jurisprudência.Em Alemanha a questão é polêmica, como demonstra CAVALEIRO DE FERREIRA, in “Associaçãocriminosa formada para a prática de delitos fiscais”, RFDUL, vol. XXXIX, n.º 2, 1998, p. 471.16 De fato, a preocupação na repressão da criminalidade organizada leva a maioria dos paísesconsagrarem um tipo penal das associações criminosas, como medida de política criminal e formaabstrata e autônoma, de proteger a paz pública. Em Espanha, o art. 515 do CP prevê o crime deasociación ilícita; a mesma figura em Alemanha, no art. 129º; em Itália, o art. 416 prevê a Associazioneper Delinquere e a Lei 642/92 prevê o delito de Associazione di Tipo Mafioso; em França, o art.450.1 do CP prevê o crime de Association de Malfaiteurs (cfr. MONTALVO, J.A. Choclán, in Laorganización criminal, tratamiento penal y procesal, 2000, p. 29).17 Neste ponto e apenas neste, utilizamos o sentido amplo da expressão para designar todos osfenómenos abrangidos pela designação «criminalidade organizada», embora o ênfase esteja, noque toca a transnacionalidade, na criminalidade económica organizada.

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ou a consumação da atividade criminal pela eleição de uma destas duasmodalidades, ou sancionando ambos18.

2.2. A responsabilidade jurídico-penal nos crimescometidos em concreto pela organização criminosa.

Em meio a tanta polêmica a doutrina consente quanto a insuficiên-cia da Teoria do Delito, com sua estrutura individual de crime, para asdefinições das condutas daqueles que se reúnem em organizaçõescriminosas19 estruturadas hierarquicamente. Mesmo porque a amplia-ção do conceito de autoria, protagonizada em Portugal por EduardoCorreia20, é insuficiente para uma perfeita correspondência às condu-tas dos integrantes de uma organização criminosa, porquanto o exe-cutor material não comete o delito sozinho, mas sim através de umavontade superior, como se verá.

Exsurgem três entendimentos principais para conceituar a respon-sabilidade do agente que actua por detrás e no comando da organizaçãocriminosa: a teoria da autoria mediata, da co-autoria e da instigação. Estaanálise, contudo, deve ter como precedente necessário uma definiçãoda teoria que distingue a autoria da participação. E, há algum tempo, aconcepção preponderante é a da teoria do domínio do fato.

2.2.1.Considerações prévias sobrea teoria do domínio do fato.

Em 1915, na Alemanha, surgiu a teoria do domínio do fato

18 Cfr. BARJA DE QUIROJA, J. L., in “Posición de la Unión Europea sobre el crimen organizado”,Cuardernos de Derecho Judicial, 2001, p. 121; TIEDEMANN, K., in La armonización del derechopenal en los Estados Miembros de la Unión Europea, trad. M. C. Meliá, Univ. Colombia, 1998; eMONTALVO, La criminalidad organizada. Concepto. La asociación ilícita. Problemas de autoría yparticipación. Cuadernos de Derecho Judicial II – 2001, p. 247.19 Nesse sentido: ROXIN in Autoria e domínio..., como nota 3, p. 270. O Autor acrescenta: «Porém istonão nos exime da obrigação de considerar os comportamentos dos intervenientes a título individualem tais fatos também desde a perspectiva dogmática do delito individual» (idem).20 “Problemas Fundamentais da comparticipação criminosa”, Separata, RDES n.º 1 a 3, 1951.

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(Tatherrschaft) com HELGER21. Mas foi WELZEL quem a introduziu,em 1939, na dogmática penal ao vincular, pela primeira vez, a idéia dateoria com a doutrina da ação, derivando desta uma autoria final base-ada num critério do domínio do fato. A doutrina uníssona justifica seudesenvolvimento como forma de preencher as lacunas jurídicas deixa-das pelas tradicionais teorias, objetiva e subjetiva, as quais não distin-guiam satisfatoriamente – e ainda não o fazem – o conceito de autoriae participação, porquanto é impossível desconsiderar seus aspectosobjetivos e subjetivos22. Assim, não basta apenas a vontade que infor-ma a conduta para definir a autoria, deve-se considerar a importânciamaterial que cada parte interveniente assume no fato.

Para JESCHECK é autor quem, em atenção a importância de suacolaboração objetiva, contribua a dominar o curso do fato23. É inexorávelatribuir à teoria do domínio do fato o mérito de assumir, numa única mol-dura, critérios utilizados pelas duas anteriores e, assim, responder me-lhor as questões que surgem no âmbito de aplicação do Direito.

Essa compreensão deve assimilar a advertência de ROXIN: domí-nio do fato não é um conceito fixo e apto ao método da subsunção, massim indeterminado ou aberto, o que permite sua adaptação aos inúme-ros casos concretos que a fenomenologia criminal produz. Forçoso,assim, buscar sua concretização através de sua aplicação às situaçõesconcretas, o que é fator gerador de inúmeras dificuldades e polêmicas24.21 Porém, o conteúdo era diverso do atual: o conceito era relativo a conduta do sujeito do delitoquanto aos requisitos materiais de culpabilidade jurídico–penal: imputabilidade, dolo e impru-dência, assim como as causas de exclusão. Quinze anos depois de introduzir a expressão, «domí-nio do fato», HEGLER a aplicou para fundamentar a autoria mediata, em sua monografia: ZumWesen der mittelbarer Täterschaft = Para a natureza da culpa indireta, na qual desenvolveu aessência da “autoria mediata”: a «supremacia do sujeito de trás, assinalando (...) que se o executorage sem culpa ou de modo somente imprudente, o que ocasiona é autor porque ou é “plenosenhor do fato” ou – dada a imprudência – tem o “domínio do fato mais intenso”» (Cfr. ROXIN inAutoria e domínio ...como n. 3, p. 81-82).22 JESCHECK, Hans-Heinrich (in Tratado de Direito Penal, trad. S. Mir Puig e Muñoz Conde, v. II,1981, p. 897) afirma que as teorias puramente objetiva e a puramente subjetiva, isoladamenteconsideradas, desvirtuam o sentido de sua totalidade. Para ENGISCH «nada de verdadeiramentenovo se ganhou a não ser um enquadramento (‘bild’)» (apud FIGUEIREDO DIAS, Sumários, comonota 7, p. 55).23 In Tratado..., como nota anterior, p. 897.24 Autoria e domínio ..., como nota 3, p. 279. Eis alguns dos problemas surgidos na aplicação dateoria: nos crimes culposos, de infração de dever, nos crimes omissivos, nos crimes de mão própria,no erro quanto aos requisitos da autoria, etc. Refém ao nosso objetivo, tais questões não serãoestudadas nesta oportunidade.

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Por fim, trata-se da teoria aceita em vários países25. No direitobrasileiro, por todos, BITENCOURT afirma que «a teoria do domínio dofato molda com perfeição a possibilidade da figura do autor mediato»26.

2.2.2.A autoria mediata e a utilizaçãode instrumentos dolosos.

Na visão tradicional27 e de acordo com o princípio da responsa-bilidade, a autoria mediata restringe-se aos casos em que o instrumen-to de execução age sem dolo, movido por erro ou por coação exercidapelo «homem de trás»; nesta concepção, se o autor imediato praticar ocrime voluntária e conscientemente, não há como falar em autoriamediata do agente que atua na sombra, que deve ser punido, na me-lhor das hipóteses, «como um mero instigador»28.

Não obstante, os Tribunais têm abandonado essa orientação tra-dicional. Aliás, há mais de um século atrás, em 1872, o Tribunal Supe-rior da Prússia já havia reconhecido a possibilidade do «homem detrás» utilizar-se de um instrumento doloso29 - doloses Werkzeug, ou naposterior expressão de LANGE: o autor atrás do autor. Mas o destaquefundamental, pela consistência dogmática, foi a partir de 1963, com

25 É a teoria adotada pela lei penal portuguesa, ou pelo menos com ela é consentâneo (cfr.BELEZA, Teresa P., in A estrutura da autoria nos crimes de violação de dever. Titularidade versusdomínio do facto? RPCC, a. 2, 3º f., 1992, p. 338); no mesmo sentido o Acórdão de 14 de Novembrode 1984, do STJ português, publicado no BMJ n.º 341, 1984, p. 213-217. ROXIN, C. (in Sobre oEstado da teoria do delito, 2000, p. 165) indica absoluto predomínio da teoria do domínio fato nadoutrina alemã; no mesmo sentido, mas em Espanha, a indicação de MIR PUIG, S. (DerechoPenal, 1998, p. 366).26 BITENCOURT, Cezar R., in Manual de Direito Penal, 2000, p. 383. Resumidamente, também:CALLEGARI, J.F., in “Concurso de Pessoas – os conceitos de autoria e participação e a teoria dodomínio do fato”, ESMP, a. 1, v. 1, 2001, p. 157; e MARQUES, O.H.D., in “A autoria no códigopenal e a teoria do domínio do fato”, ESMP, 2001, p. 171.27 Para EDUARDO CORREIA, ob. cit. como nota 20, p. 38-39, autoria mediata dá-se «sempre quealguém causa a realização de um facto criminoso, utilizando ou fazendo actuar ou agir por si (...)corresponde à autoria moral: o autor mediato, embora não executando materialmente a infracção,é seu autor moral ou intelectual.28 FIGUEIREDO DIAS, in Autoria e Participação ..., como nota 8, p. 364.29 Cfr. RODRIGUEZ MOURULLO, Gonzalo, in “El autor mediato en derecho penal español”, ADPCPn.º 22, 1969, p. 469.

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ROXIN30-31, no seu monumental tratado sobre o domínio do fato. Paraalém das hipóteses de instrumentos sem intenção, exclusivamente paraos delitos comissivos e dolosos, ROXIN teorizou três vertentes diferen-tes dentro da mesma constelação: domínio do fato por ação (referenteao autor imediato), domínio do fato funcional (referente ao co-autor) edomínio por vontade (ao autor mediato); deste último, o penalista alemãodesenvolve o domínio por erro, por coação e por organização.

2.2.2.1. O domínio por organizaçãocomo critério da autoria mediata.

Constitui o domínio por organização «uma forma de domínio-da-vontade que, indiferente à atitude subjetivo-psicológica do específicoexecutor, não se confunde com o domínio-do-erro ou com o domínio-da-coação, integrando um fundamento autônomo da autoria mediata»32.Vale dizer, presente uma das modalidades – erro ou coação – afasta-se a autonomia do domínio por organização.

Antes de avançar, convém delimitar o alcance da teoria que nãopode ser aplicada a todas espécies e tipos de organizações existentesno seio do amplo universo da criminalidade organizada. ROXIN restrin-ge sua aplicação às organizações estritas, com as seguintes caracte-rísticas: 1º) organização em estrutura hierárquica rígida; 2º) presençada efetiva fungibilidade do executor material do delito; 3º) e estar a

30 Com humildade, ROXIN divide o mérito da sua doutrina com os que o sucederam no estudo; dizque a aplicação da teoria do domínio do fato, na problemática da participação, não foi descobri-mento de um só autor, senão que estava a flutuar no ar a espera somente de elaboração edesenvolvimento amplos (Autoria e domínio do fato..., como nota 3, p. 85).31 A doutrina de ROXIN revolucionou o tema da comparticipação criminosa. Logo aplicada pelosTribunais alemães, o BGH (BGHSt 39,31) condenou como autores mediatos os membros doConselho Nacional de Defesa da República Democrática da Alemanha, que ordenavam os disparosdesfechados (também pela colocação de minas – BGHS 40,218) por guardas de fronteira, no murode Berlim, contra aqueles que fugiam do país; considerou, assim, os soldados como autores. (cfr.ROXIN, Sobre o Estado .., como nota 25, p. 159).32 Cfr. FIGUEIREDO DIAS, in Autoria e Participação ..., como nota 8, p. 366.

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organização - ou o aparelho [preferimos a expressão aparato] de po-der - estruturada à margem da ordenamento jurídico, tendo como opçãoo crime33.

E ainda de acordo com a doutrina roxiniana, duas espécies deorganizações criminosas ajustam-se à estrutura delineada: 1º) as milita-res, policiais, ou de cunho político34, as quais se valem do aparato dopoder do Estado35; 2º) e «os movimentos clandestinos, organizaçõessecretas, associações criminosas e grupos semelhantes» com objetivoscontrários da ordem jurídica estatal e que vulnere as normas penais po-sitivas; deve tratar-se, pois, de um poder que constitua um «Estado den-tro do Estado»36.

Interessa-nos a aplicação do domínio da organização na segun-da categoria, porquanto a estrutura dessas organizações clandestinastem elementos comuns a dos aparatos de poder de Estado, como vemassinalando - com certa insegurança - a doutrina37. Mas, a final, no queconsiste essa estrutura mínima comum?

33 Cfr. ROXIN (in Autoria e domínio do facto ..., como nota 3, p. 277) caso contrário, não se atuarácom a organização ou com o aparato, mas sim contra ele. Neste ponto, discute-se o alargamentoda teoria ao âmbito das grandes empresas, as quais não atuam à margem do direito. Sobre isto:ROXIN (como nota 3, p. 276-278 e 729); VALDÁGUA, in “Figura Central, Aliciamento e AutoriaMediata”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, v. I, 2001, p. 923-925, nota 25.34 Como as organizações surgidas na Capital de São Paulo (1997-1999) denominadas comoMáfias dos Fiscais, sem dúvida um modelo dessa estrutura.35 O exemplo recorrente é o caso Eichmann, que foi considerado, na Alemanha, autor mediato decrimes de homicídio, porque, como alto funcionário que era, planejava a execução de judeus emcampos de concentração, embora não matasse pessoalmente ninguém. Em Argentina, no casoVidela, a Corte Suprema também reconheceu a existência de organização de poder estatal parapunir os Generais da Ditadura de Videla, como autores e responsáveis pelo desaparecimento eassassinatos de milhares de cidadãos argentinos. Desenvolvidamente: MUÑOZ CONDE, comonota 14, p. 154; AMBOS, Kai, como nota 3; ROXIN como nota 3, p. 273.36 ROXIN, idem, como nota 3, p. 278. Exemplos diversificados dessas associações criminosas sãovistos no Brasil narradas pelo sociólogo MINGARDI, Guaracy, in O Estado e o Crime Organizado,IBCCRIM n.º 5, 1998.37 Nesse sentido: ROXIN (idem ibidem); STRATENWERTH, Günter, como nota 12, p. 242; BENITEZ,José Manuel Gómez, in “El dominio del hecho en la autoría”), ADPCP 37, 1984, p. 112 (o Autorsintetiza a aplicação da teoria do domínio do fato nas hipóteses de autoria e participação);FIGUEIREDO DIAS: in Autoria ..., como nota 8, p. 366, e Sumários, como nota 7, p. 63. Criticamen-te: AMBOS (in “Domínio do fato pelo domínio da vontade em virtude de aparatos organizados depoder”, trad. Evandro Fernandes de Pontes, RBCC 37, p. 64) diz que «a falta de pontos de conexãocom a pratica nesse âmbito deixa-nos em terrenos menos seguro» que o campo dos aparatos depoder organizados. Contrariamente: WELZEL (apud HIRSCH, Hans Joachim, Direito Penal, TomoI, p. 195), que nas últimas edições de seu tratado definiu de excessiva a ampliação dos contornosda autoria mediata desenvolvida por Roxin; para MUÑOZ CONDE (Problemas de Autoría ..., como

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2.2.2.2. Estrutura das organizaçõescriminosas (em sentido estrito).

Tal como se projeta uma empresa voltada ao sucesso financeiro,projeta-se uma organização criminosa. À sofisticação de sua atuaçãocorresponde à dificuldade de sua repressão no âmbito penal e proces-sual penal, num jogo de determinações recíprocas: o aprimoramentodo combate ao crime corresponde a evolução técnica de seu modusoperandi. Neste estudo, desenvolvido no âmbito da criminologia e soci-ologia, deparamo-nos com questões complexas, mas também comelementos uniformes nas estruturas e características das organiza-ções criminosas38 – repita-se, no seu sentido estrito –, o que permite aformulação de teorias relativas à autoria e participação. Numa síntesedesse universo, indicamos, pois, as seguintes estruturas básicas39:

1º. A formação de uma unidade com objetivos autônomos, oque as distingue do mero concurso de pessoas. Há verdadeira cons-tituição de um ente ou uma «instituição»40 dotada de estabilidade ecom um efeito devastador: fazer prevalecer um querer único, ao qual

nota 14, p. 154-155) as organizações criminosas ilegais não estatais, não estão estruturadas comprincípios de hierarquia e obediência cega, porquanto «seu carácter marginal e ilegal faz com queseus membros tenham entre si uma relação pessoal muito mais estreita do que a que se dá entreos membros dos aparatos de poder estatais».38 Com didática, X. ZHANG (apud HERRERO Herrero, como nota 1, p. 477-478) define a estruturacom quatro características: «uma coletividade composta de criminosos submetidos a autoridade deum chefe, uma clara divisão de trabalho, na qual cada membro joga um papel definido e que estáem coordenação com o resto das funções; uma nocividade social considerável, resultante da activi-dade profissional e eficácia destes grupos; capacidade de resistência às sanções penais, que obede-ce a natureza própria das atividades ilícitas realizadas por seus membros, a característica estruturainterna e as relações de conspiração mantidas com estratos da sociedade».39 Com apoio em: ABADINSKY, Howard, in Organized crime: atributes and structure, sixth edt.,Wadsworth, Belmont, 2000, p. 1-12; HERRERRO Herrero, como nota 1, p. 478-505; FIGUEIREDODIAS, in As associações Criminosas no Código Penal Português de 1982,1988; GARCIA-PABLOS,como nota 15, p. 248-270; BORRALLO, E. A., in “Conjeturas sobre la criminalidad organizada”, emDelincuencia Organizada, Universidad Huelva, 1999, p. 13-57; ZIEGLER, in Os Senhores do Crime,como nota 10, p. 39-51; e JOSHI JUBERT, U., in “Sobre el concepto de organización en el delito detráfico de drogas en la jurisprudencia del Tribunal Supremo”, ADPCP, t. XLVIII, 1995, p. 661-673.40 PATALANO, ao referir-se ao estudo das organizações criminosas em Itália, fala da formação deuma instituição «mais ou menos formalizada e sofisticada», como uma «declaração de guerra» aoEstado (apud Figueiredo Dias, in As Associações ..., p. 39).

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os pensamentos e desejos particulares de cada integrante devem su-cumbir41 como “verda-deira transformação da personalidade individualno seio da organização”42. Esta unidade é constituída com vistas a con-ferir a maior opacidade possível à organização, como forma de dificultaras investigações criminais e proteger seus integrantes, maxime o «ho-mem de trás»43.

Neste sentido tem sido interpretada a expressão associação ouorganização criminosa para os fins de punição do tipo penal autônomo.De fato, a doutrina e a jurisprudência procuram suprir a ausência doconceito legal e tem interpretado a expressão no seu sentido estrito.Tal visão remonta ao tempo do marcante Código Penal napoleônico –que inspirou o legislador português de 1852 e o espanhol de 1822 –,porquanto, já em sua época, Autores como CHAUVEAU e HÉLIE exigi-am, dentre outros aspectos, uma estrutura de organização criminosa,com certa rigidez e hierarquia no relacionamento entre seus membros44.Enfim, para se reconhecer uma associação ou organização criminosa,por mais simplória que seja sua estrutura, afigura-se como insuficiente omero acordo ou a decisão conjunta de uma pluralidade de pessoas comvista à prática de crimes, com o que estar-se-ia a confundir o fenômenoem estudo com a figura da co-autoria45. Por isso, um grupo de jovensque se reúne para cometer crimes em conjunto, no qual desponta um

41 Cfr. LENCKNER (apud Figueiredo Dias, in As Associações ..., como nota anterior, p. 32-33), queexige «a subordinação da vontade individual à vontade do todo»; «MAURACH e SCHROEDERfalam da prossecução de fins comuns mediante a subordinação do indivíduo ao todo» (idem).42 FIGUEIREDO DIAS, As Associações ..., como nota 39, p. 30. Com a doutrina de RUDOLPHI, oAutor explica razão da atenuação – ou mesmo eliminação – do sentimento pessoal do membro daorganização: «são os processos de dinâmica de grupo, desenvolvida no seio destas associações, quedestroem as resistências individuais e, não raro, oferecem motivos adicionais para a prática de crimes(...)»; as «associações tornam o cometimento dos crimes (...) extremamente fácil, já devido às suasestruturas organizatórias internas de racionalidade finalisticamente orientada para o crime, já porforça do potencial de planificação e execução do crime que nelas se contém» (idem, p. 30, nota 33).43 Cuidado este que se aprimora na mesma medida em que evolui a persecução penal. BORRALLO(ob. cit., como nota 39, p. 34, nota 57 ) fala também de uma opacidade interna dentro das própriasorganizações - caso da Cosa Nostra - para impedir dissidências, traições, infiltrações e controle dasaspirações de poder. Sobre isto também: PELLEGRINI, Angiolo, in Criminalidade Organizada,trad. Paulo José da Costa Jr,, 1999, p. 15-23.44 In Théorie du Code Pénal, tomo I, 1862, p. 700-710.45 GARCIA-PABLOS (ob. cit., como nota 15, p. 224) ressalva a existência de Autores, como CUELLOCALÓN, E., que defendem o mero “acordo genérico para delinquir”.

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líder, não constitui um aparato de poder organizado para os fins jurídico-penais.

2º. A estrutura mínima de organização. De acordo com o maiorou menor nível de sofisticação da organização, conforme o local deatuação – com alcance transnacional ou não46 – e dos seus objetivoscriminosos, pode haver alguma variação nessa estrutura. Contudo,sempre haverá uma organização mínima. No que toca a aplicação dateoria de ROXIN, que reclama uma rígida estrutura hierárquica de seusmembros, na qual o chefe posiciona-se no vértice da pirâmide e osexecutores do delito em sua base, sendo que, invariavelmente, estesnão conhecem aquele, porquanto existe uma cadeia de sujeitos, comintermediários (gerentes) entre eles, que transmitem a ordem superior.Ao mesmo tempo, os executores, muitas vezes, sequer conhecem oplano criminoso global. Esta estrutura piramidal – fundamental para odeslinde do estudo da autoria e participação a que nos propomos –confere uma qualidade particular no relacionamento entre os integran-tes da organização, que, como já frisamos, destoa da tradicional co-delinquência. Numa palavra, os executores dos delitos agem, em obe-diência cega47, na medida exata da ordem recebida e conforme os pla-nos da organização. Com ROXIN, reside essa característica na fungi-bilidade do executor material do crime, na possibilidade de substitui-locaso se negue a cumprir o comando criminoso.

3º. O caráter multidisciplinar: a mescla de atividades lícitas e ilíci-tas. As organizações não se fixam em apenas uma única modalidadecriminosa – como é o caso da constante lavagem de dinheiro paraauferir e aplicar o lucro obtido em outras atividades –, pois a complexida-de de seus atos, coerente com seus desígnios criminosos, exigem aprática de variados delitos48. Decorre ainda dessas inúmeras disciplinas

46 Concordamos com MONTALVO (ob. cit. como nota 16, p. 8) no sentido da transnacionalidadenão ser um requisito para a configuração de uma associação criminosa, mas uma evidência a maisde uma maior estrutura no aparato da organização, assim ela pode atuar nos limites de seuterritório nacional.47 Assim expõe HERRERRO Herrero, César, como nota 1, p. 478.48 Em razão desse caráter multidisciplinar das organizações criminosas, melhor seria não catalogarna lei os delitos por esta praticados, sob pena de inibir a aplicação dos instrumentos processuaisdestinados à investigação criminal.

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criminosas a existência da divisão de tarefas entre os membros das or-ganizações, na medida em que cada integrante tem uma função especí-fica, as vezes profissional, numa evidência de estrutura empresarial.

4º. A perpetuação no tempo: consequência dos propósitos crimino-sos da organização, os quais não são alcançados com um único atoilícito e, assim, a autêntica organização não se desfaz depois de atingi-do um crime ou um plano criminoso.

5º. (49)O emprego da violência e da intimidação em duas dimen-sões: a interna, como forma de proteger os desígnios criminosos e aprópria unidade da associação, e a externa, como forma de obstar queterceiros, ou outras organizações concorrentes, atrapalhem o plano eas atividades ilícitas desempenhadas no mundo exterior50.

6º. Por fim, o objetivo de lucro econômico, embora seja possíveltambém – o que sempre se vê nas organizações terroristas e nas máfiasitalianas – fins sócio-políticos51.

3. A teoria da autoria mediata (como resolução do problema).

Visto o âmbito de aplicação da teoria e no que consiste a estrutu-ra das organizações ilícitas, cumpre esmiuçar o conteúdo da teoriacomo solução da responsabilidade jurídica-penal do chefe da organi-zação criminosa, no que a dogmática fica a dever, e muito, a ROXIN.

49 As duas características seguintes não têm correspondência direta com o critério definidor daquestão da autoria e participação do «homem de trás» - aliás, como visto, a coação afasta a teoriado domínio por organização -, mas serão, brevemente, citadas.50 A violência nem sempre se faz presente, nomeadamente se lembrarmos da delinquênciaeconômica organizada e máfias italianas: preferem atos de corrupção a violência, mesmo porqueesta torna mais evidente a existência da unidade da organização, o que não lhes interessa. Apropósito, significativa a expressão de PAUL CASTELANO, líder da Máfia de New York: “Nãopreciso mais de pistoleiros. Agora quero deputados e senadores” (MINGARDI, Guaracy, ob. cit.como nota 36, p. 66; o itálico é nosso).51 PELLEGRINI, Angiolo (como nota 41, p. 43): «a criminalidade organizada representa a extensão deum sector de mercado legítimo em esferas normalmente proibidas. O princípio que inspira a empre-

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De início, o domínio por organização concentra um maior domí-nio do fato em comparação com o domínio daquelas outras duas hipó-teses tradicionalmente aceitas pela doutrina – atuação por erro ou sobcoacção. Isto porque, como vimos, a estrutura criminosa confere aosujeito de trás o controle do funcionamento da associação – naquelesentido estrito – semelhante ao de uma máquina, com a qual cometeseus crimes sem ter que depender da vontade autônoma do executor.

Embora responsável - não atua sob erro ou coação52-, o execu-tor não tem o domínio do fato delituoso que comete e tampouco podeimpedir o «homem de trás» de alcançar o resultado visado, vez queocupa uma posição subordinada e é caracterizado pela fungibilidade.Ou seja, os executores são engrenagens numa máquina, que se falha-rem serão substituídos por outras rapidamente – sem a participação diretado «homem de trás». Constituem, pois, «figuras anônimas esubstituíveis»53. Como vimos no item anterior, há a constituição de umente ou uma institui-ção controlada por uma central, como uma espéciede cérebro do aparato, no qual se encontra o verdadeiro autor do crime.

Para tanto, não é preciso recorrer a meios de coação ou engano-sos, pois se um executor não cumprir sua ordem, outro o fará, não res-tando afetada a execução do plano global54. É verdade que, por vezes,como já salientado, o domínio da organização pode provocar no execu-tor pressão correspondente a uma coação ou mesmo uma instigação

52 Durante as execuções perpetradas pelos soldados alemães no muro de Berlim, estes não agiamsob coação: a única censura que sofriam era quanto ao desperdício de munição; investigações nadocumentação dos processos de Nuremberg revelaram que ninguém foi fuzilado por negar-se acumprir as ordens de fuzilar (Cfr. ROXIN, in Autoria ..., como nota 3, p. 271). TERESA SERRA (comonota 3, p. 307, nota 10) relata que «na noite de 5 para 6 de Fevereiro de 1989 também em Berlim,o comportamento dos soldados fronteiriços que dispararam sobre os dois fugitivos foi objecto delouvor num jantar realizado em sua honra. Importa não esquecer que o muro caiu em Novembro domesmo ano».53 ROXIN, in Autoria e domínio..., como nota 3, p. 273. O Autor parece definir a conduta do executormaterial como autor, pois afirma: «En este tercer grupo de casos, que es el que aquí nos interesa,no falta, pues, ni la libertad ni la responsabilidad del ejecutor directo, que ha de responder comoautor culpable y de propia mano» (destaque nosso). E prossegue: «El ejecutor, si bien no puede serdesbancado de su dominio de la acción, sin embargo es al mismo tiempo un engranaje (...) en lamaquinaria del poder, y esta doble perspectiva impulsa al sujeto de detrás, junto con él, alcentro del acontecer» (idem, destaque nosso).54 Cfr. ROXIN, in Autoria e domínio ...., como nota 3, p. 272.

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qualificada, como forma de evitar a dissidência da unidade organizacional,quando esse domínio poderá aproximar-se da tradicional concepção daautoria mediata – fundada na coação do instrumento não responsável.

Numa visão mais prática, pode-se dizer que tal domínio permiteao «homem de trás» apertar o botão dando a ordem de matar e poderconfiar que a ordem vai ser «cumprida sem que se tenha que conhecero executor»55; ou – com JÄGER – a simples ação do «homem de trás»firmar um documento ou falar ao telefone, pode já ser o bastante paraconstituir um assassinato56-57.

O Tribunal Supremo Alemão, no julgamento dos crimes cometidospelos membros do Conselho de Segurança Nacional da República De-mocrática de Alemanha, ao acolher a construção teórica da autoriamediata, lançou argumentos coerentes à fundamentação de que estamosa tratar; eis um pequeno trecho da decisão, traduzida para o espanhol:

«... hay (...) casos, en los que (...) pese a un intermediarioque actúa con completa responsabilidad, la intervencióndel hombre de atrás conduces casi de forma automáti-ca a la realización del tipo perseguido por el mismo. Asípuede ocurrir, cuando mediante estructuras deorganización el hombre de atrás se vale de determina-das condiciones, en las que su contribución desencadenadesarrollos regulares»58.

Esta teoria, sem dúvida, é a que melhor responde ao problemada responsabilidade jurídico-penal do chefe da organização criminosaestrita e, ao mesmo tempo, ajusta-se à lei penal de diversos países(Brasil, Portugal, Alemanha e Espanha). Considerá-lo como autor – naforma da autoria mediata – é dar a importância devida ao seu domínio

55 Idem, ibidem.56 In MschrKrim (1962), apud ROXIN, idem, p. 276.57 Sobre eventual excesso do executor do crime, vide CORREIA, Eduardo, ob. cit. como nota 20,p. 64-6558 Foram, pois, considerados autores mediatos pelos homicídios executados pelos soldados defronteira, cfr. ROXIN, in “Problemas de autoria e participação na criminalidade organizada”, trad.

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do fato e reconhecê-lo como o cérebro, ou como o detentor do maiorcontributo responsável pelo evento criminoso.

Mas é necessário cuidado na aplicação da teoria do domínio daorganização, porquanto deve ser examinada, em cada situação concre-ta, a existência dos pressupostos estritos que a ensejam.

A partir da teoria de ROXIN muitos outros Autores alemães de-senvolveram outras soluções, alguns com o mesmo resultado. Assimocorre com BOTTKE, que recorre a uma concepção de «domínio deconfiguração de superior relevância»59 para também advogar a autoriamediata; e SCHILD, ao invocar o «domínio da ação do superior», defi-ne a conduta do «homem de trás» como uma mera autoria individual60.

Em contrapartida, existem também opositores. Os argumentosmais fortes visam fulminar a importância da fungibilidade do executormaterial do crime como critério definidor da autoria mediata. Dizem quea tese de ROXIN acaba voltando-se contra ela própria. Com efeito, se háfungibilidade é porque o executor imediato, dentro de seu domínio deatuação, pode livremente desistir do plano delituoso ou deixar escapar avítima, o que descaracteriza o caráter de instrumento típico da figura daautoria mediata61. Ademais, dizem ainda, a situação dessas organiza-ções estarem em «autênticos ghettos», dificulta que fora do círculoreduzido da associação haja outras pessoas dispostas a realizar o delitoe a substituir aquele que estava disposto a executar o crime62.

59 Cfr. BOTTKE, Wilfried (in “Estrutura da autoria na acção e na omissão como requisito para aconstrução de um sistema de direito penal da Comunidade Europeia”, trad. M.C. Bidasolo, 1995,p. 317): o homem de trás, diante da estrutura da organização, dá instruções a outro de um postoinferior para que cometa um delito, certo de que prevalecerá a vontade da organização.60 Porque «quem comete desse modo o fato por meio de outro cria ele mesmo a ação típica(precisamente, através de um instrumento e, por isso, não por meio de ‘outro’) – Täterschaft alsTatherrschaft, apud AMBOS, Kai, in “Domínio...”, como nota 37, p.48. Também SCHROEDER,MURMANN, JUNG, GROPP e BLOY manifestaram-se concordes com a teoria de ROXIN, emboraapenas os três últimos apresentem a mesma fundamentação (in “Problemas de autoría...”, ob. cit.como nota 58, p. 62).61 Ao refutar essa crítica, ROXIN (“Problemas de autoria...”, idem, p. 64) afirma que isto não é argumentoefetivo, pois «prova unicamente que a autoria mediata também pode fracassar. Haveria então umaautoria mediata tentada». E prossegue: «quem se serve de instrumento coacionado, que está louco ouque atua sem dolo, pode ver fracassadas suas pretensões por acções imprevisíveis do executor, sem quepor isto ninguém ponha em dúvida a existência de uma autoria mediata» (idem, ibidem).62 Cfr. MUÑOZ CONDE, “Problemas de Autoría...”, como nota 14, p. 155.

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Os argumentos, contudo, são inconsistentes. A partir da constru-ção de ROXIN, é HERZBERG quem responde o que é fundamental paraalicerçar a responsabilidade criminal do «homem de trás»: o aparato daorganização e seu modus operandi. De fato, a liberdade de ação do exe-cutor material não diminui o domínio do chefe da organização, porquanto«o verdadeiro instrumento não é a pessoa individual, e sim um mecanis-mo de poder que funciona de modo praticamente automático, o ‘apara-to’, que segue funcionando sem dificuldades ainda que o indivíduo senegue a intervir»63. Cumpre, pois, com RUDOLPHI, lembrar que desa-parece a vontade do indivíduo, que sucumbe à vontade da organização,tal qual um processo de dinâmica de grupo64.

4. A teoria da co-autoria.

De duas maneiras pode um sujeito ser co-autor de um delito: porintervenção igual a dos outros sujeitos ou por divisão de funções, istoé, a co-autoria é a prática comunitária do crime, segundo WESSELS65.Tendo como critério a teoria do domínio do fato, temos que cada co-autor tem o domínio do fato e o dirige conjuntamente com os outros; oumelhor, cada co-autor tem algo mais que o domínio sobre sua porçãodo fato. Tudo resume-se na formulação de ROXIN do domínio funcionaldo fato: consiste no domínio conjunto do indivíduo como resultado desua função no marco do plano global66.

63 In Täterschaft und Teilnahme, apud AMBOS, como nota 37, p. 47. Porém, ROXIN (Autoria eDomínio..., como nota 3, p. 727) informa que HERZBERG mudou de opinião e, agora, advoga atese da instigação.64 In Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch apud Figueiredo Dias, As associações crimi-nosas ..., como nota 39, p. 30, nota 33.65 WESSELS, J., Direito Penal, trad. Juarez Tavares, 1976, p. 117. Para ele a co-autoria é a espéciede autoria cuja particularidade consiste no domínio do fato ser comum a várias pessoas. Todosparticipam da realização do comportamento típico, sendo desnecessário que todos pratiquem omesmo ato executivo (idem, p. 113).66 Autoria e Domínio ..., como nota 3, p. 310. Também em Problemas Fundamentais de DireitoPenal, trad. M. Fernanda Palma, 1998, p. 334), ROXIN assinala que o co-autor tem o domínio dofacto pela repartição de funções derivadas do acordo entre os comparsas, ou seja, cada co-autor

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Com efeito, em alguns delitos a colaboração de vários indivíduos éimprescindível para a realização do plano criminoso, no qual, ao mesmotempo, cada agente pode dar cabo ao plano conjunto retirando sua con-tribuição67. À partida, essa primeira idéia parece ter adequação com osmultidisciplinares crimes praticados por uma organização criminosa,sempre constituída por um número significativo de membros, sem osquais fracassa seus desígnios.

Contudo, discordamos da adequação da teoria ao problema pro-posto, não obstante ela seja a dominante e defendida por Autoresrenomados como MUÑOZ CONDE68, em Espanha, JESCHECK69,JAKOBS70, OTTO e SAMSON71, em Alemanha – com diferentes argu-mentos. Sinteticamente, a cada co-autor imputa-se os comportamentosdos restantes, conforme o plano comum, como se de comportamentospróprios se tratassem, visto que cada co-autor assume a responsabili-dade pelas condutas dos comparsas ao pôr-se de acordo com eles so-bre o plano criminoso comum. Os defensores desta teoria admitem aestrutura hierárquica da organização criminosa (ou do aparato de poderorganizado), mas com a idéia de que a comparticipação do domínio fun-cional do fato entre o «homem de trás» e os executores delineia melhora responsabilidade penal daquele.

Com este fundamento, JAKOBS, em sua concepção normativado domínio do fato, afirma que as figuras da co-autoria e da instigaçãosão suficientes para solucionar a maioria das hipóteses surgidas no seioda criminalidade organizada e, salienta, embora seja aceite a caracterís-tica da fungibilidade do executor, isto não é fundamental para a definição

67 É o caso de um assalto à banco, no qual se exige um agente para intimidar os funcionários eclientes, outro para efectivar a subtracção, outro para dirigir o veículo da fuga, etc (cfr. ROXIN,Autoria e Domínio..., como nota 3, p. 309)68 In “Problemas de Autoría...”, como nota 14, p. 151-159. No mesmo sentido: MIR PUIG, Santiago, ob.cit. como nota 25, p. 389-390; e, embora com restrições, FERRÉ OLIVÉ, Juan Carlos, in “Blanqueo decapitales y criminalidad organizada”, Delincuencia Organizada, Univ. Huelva, 1999, p. 97.69 JESCHECK, Hans-Heinrich, como nota 22, p. 888.70 JAKOBS, G., Direito Penal, Fundamentos e Teoria da Imputação, trad. J.C. Contreras e J.L.S.G.deMurillo, 1997,p. 783.71 OTTO, H., in Grunkurs Strafrecht, e SAMSON, E., ambos citados por JOSHI JUBERT, U., in“Sobre el concepto...”, como nota 39, p. 673, nota 25.

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que se busca, maxime porque o autor imediato atua com plenaresponsa-bilidade e, por isso, não pode ser um instrumento. Há, pois,uma decisão coletiva de realizar o delito materializada na consciênciacomum do chefe da organização e dos executores, no sentido de de-terminado fato ser levado a cabo conforme as instruções da direção.Não há necessidade de uma decisão recíproca ou conjunta, pois bastauma decisão de adaptação (einpassungsentschlub). Nesse contexto,pouco importa se os mem-bros da organização se conheçam, ou quetodos pratiquem atos de execução, pois a responsabilidade é igual, oque configura a co-autoria72.

No mesmo sentido, HIRSCH também minimiza a fungibilidade doexecutor imediato, porque este pode adotar uma «decisão psiquicamen-te livre sobre sua acção», o que evidencia a figura da co-autoria73. Deforma mais fundamentada, JESCHECK define o autor mediato comoaquele que não realiza por si mesmo o facto punível, mas o faz valendo-se de outro que atua, necessariamente, sem dolo; quem induz uma pes-soa que atua típica, antijuridicamente e com plena responsabilidade, éinstigador ainda que “domine” a outra pessoa em maior ou menor medi-da, «pois a resolução de cometer o fato se toma em tais casos, geral-mente, sob a poderosa influência do homem de trás»74.

Enfim, esta teoria nega a possibilidade da autoria mediata coadu-nar-se com instrumentos qualificados – responsáveis pelos atos crimi-nosos – e, assim, só admite a figura quando o executor transmuda-seem mero instrumento não responsável, sob domínio do «homem detrás», do contrário, deve ser responsabilizado como co-autor75.

Depois de utilizar o mesmo fundamento para opor-se à doutrina deROXIN, MUÑOZ CONDE acrescenta que o executor material do crimedemonstra, muitas vezes, um alto grau de adesão à causa, entusiasmo

72 JAKOBS, G., como nota 70, p. 783-784; ainda nos informes das discussões no Seminário na Univ.Pompeu Fabra, ob. cit. nota 25, p. 203. Também: Serra, Teresa, como nota 3, p. 314.73 HIRSCH, H.J., Direito Penal, T. I, trad. de E.S.Reche y M.Klein, 1999, p. 210.74 Cfr. JESCHECK, como nota 22, p. 898. No mesmo sentido: STRATENWRTH e SEELMANN (apudVALDÁGUA, in Início da Tentativa do co-autor, 1993, p. 121).75 Nesse sentido JESCHECK, como nota 22, p. 928.

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ou fanatismo, igual ou superior ao dos superiores que lhe dá ordens76.Assinala, destarte, que a figura da co-autoria consiste na prática de umacto criminoso, conjuntamente, por várias pessoas que atuam de for-ma plenamente consciente e voluntária, de acordo com a divisão depapéis – há a co-autoria executiva e a não executiva – o que é coerentecom a conduta do «homem de trás» da organização, nomeadamente àvista do total controle do domínio funcional do fato deste, mesmo quenão esteja presente no locus delicti.

Todavia, cumpre observar que o regime jurídico da co-autoria di-verge de país para país. Por exemplo, o regime adotado em Portugaldestoa da lei penal alemã e da literatura juspenalista germânica, emboraexista muita polêmica neste particular77. De acordo com o Código Penalportuguês, o artigo 26º ao prever em sua terceira figura a co-autoria,exige textualmente: “é punível como autor quem (...) tomar parte directana sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros”78. Nesteponto, a lei portuguesa distancia-se do ordenamento alemão e sua cor-respondente doutrina, porquanto neste último não se encontra previstaaludida exigência – o artigo 25º, n.º 2, do StGB, limita-se a prever: “sevários cometem o facto conjuntamente, cada um é punido como autor(co-autor)”; não impõe, assim, que o co-autor intervenha diretamente nafase executiva79.

76 In “Problemas de Autoria ...”, como nota 14, p. 153.77 São variadas as teorias do regime jurídico da co-autoria: para SCHILLING o co-autor respondenos mesmos termos do autor imediato; SCHRÖDER a co-autoria constitui caso especial de autoriamediata (apud VALDÁGUA, ob. cit. como nota 74, p. 106-107); para JESCHECK o co-autor deveser participar da fase de execução (Tratado..., como nota 22, p. 943-944).78 Encontramos na doutrina discussão a respeito do alcance do acordo existente entre os co-autorese previsto no art. 26º do CP português. Sem aprofundarmos na questão, é certo que o simples acordodelituoso é insuficiente para configurar a participação do co-autor, sob pena de se consagrar a figurado Verabredung ou da conspiração, numa antecipação do início da execução do crime. Este é oentendimento – isolado – de SCHILLING (cfr. VALDÁGUA, como nota 74, p. 123). A autora esclareceque «a redacção dada ao artº 26 (...) (“por acordo ou juntamente com outro ou outros”), embora nãoseja porventura muito feliz e rigorosa, se explica pelo desejo do legislador de afastar a posiçãofrequentemente assumida pela jurisprudência portuguesa, na vigência do anterior Código, que ia nosentido de exigir, para a existência de co-autoria, um acordo prévio» (idem, p. 129-130, itálico original).79 Nesse sentido: VALDÁGUA (como nota 74, p. 116). A Autora diferencia o regime jurídico do co-autor e da instigação: «a punição do co-autor não depende de um comportamento de outrem nosmesmos termos que valem para a punição do instigador: enquanto o instigador só é punível comocomparticipante na tentativa se o instigado tiver, pelo menos, iniciado a execução (art. 26º, 4ºproposição), o co-autor pode ser punido por delito tentado, mesmo que nenhum outro comparticipan-te pratique qualquer acto de execução» (idem). Porém, quanto a execução «não é indispensável

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Diante desse regime jurídico adotado na lei penal portuguesa,evidencia-se à luz do perfil de atuação das organizações criminosas,em seu sentido estrito, no qual o «homem de trás» não suja as mãos enão pratica atos de execução, ser inaplicável a teoria que atribui ao«homem de trás» o status de co-autor. Neste contexto, precisa a afir-mação de VALDÁGUA: «o legislador português, que manifestamentese inspirou, em maior ou menor medida, no modelo alemão, ao formu-lar as três primeiras proposições do artº 26º, conhecia seguramente areferida controvérsia e decidiu – a nosso ver, bem – estabelecer demodo inequívoco que não pode ser punido como co-autor aquelecomparticipante cuja actuação, seja qual for a sua importância para arealização do plano criminoso comum, se processa, toda ela, na fasedos actos preparatórios»80.

Não obstante, a definição da co-autoria pode ser adequada se,no caso concreto, ausentes os requisitos estritos da organização cri-minosa, houver menor rigidez na hierarquia e no relacionamento entreseus membros, tal como um grupo de delinquentes juvenis que se de-dica a roubos ou sequestros numa dada localidade.

Mas ainda não é tudo! É inapelável concluir que a teoria contrariao funcionamento das organizações criminosas. Estas, como enfatizado,apresentam-se em estrutura hierárquica-piramidal: quem está no vérti-ce não se comunica e tampouco planeia qualquer delito com o execu-tor material. O «homem de trás» e o autor imediato não fazem acordos(mesmo tacitamente), como propõe essa doutrina. Em geral, este últi-mo recebe a descrição do plano criminoso através de uma cadeia desujeitos. Pode-se dizer que a co-autoria está moldada num sistemahorizontal, enquanto que a autoria mediata, fundada no domínio da or-ganização, num sistema vertical. Como afirma BLOY: quando estamos

que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar para a obtenção do resultadopretendido, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente dotodo e indispensável à produção do resultado» (ac. STJ, 18.7.1984, em MAIA GONÇALVES,Código Penal Português, Anotado e Comentado, 1998, p. 144).80 VALDÁGUA, como nota 74, p. 121. Por todos, a Autora lembra ser inviável a aplicação daanalogia para estender ao co-autor a possibilidade de ser punido por um ato de que não tomouparte diretamente, pois o recurso está vedado pelo princípio nullum crimen, nulla poena sine lege

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diante de condutas claramente coordenadas de forma vertical, nas quaiso papel do «homem de trás» está de antemão disposto a contar com acompleta execução do fato por outros, então claramente se fala contraa co-autoria e a favor da autoria mediata81.

Em última análise, não há um co-domínio funcional do fato, por-que, no esquema caracterizado pela fungibilidade do executor, este nãotem o domínio do fato ou a energia suficiente para obstar o êxito docrime planejado. Cumpre lembrar: o executor é uma mera peça dentrode uma máquina sofisticada, perfeitamente substituível por outra.

5. A teoria da instigação82.

Para BITENCOURT a instigação «é uma espécie de participa-ção moral em que o partícipe age sobre a vontade do autor, quer provo-cando para que surja nele a vontade de cometer o crime (induzimento),quer estimulando a idéia existente, que é a instigação propriamentedita, mas, de qualquer modo, contribuindo moralmente para a práticado crime»83. A lei penal brasileira destoa das demais legislações, por-quanto não define a figura da participação. Em Portugal, o instigador édefinido como aquele que determina outrem à prática do fato crimino-so, sendo exato que o artigo 26º do CP português o pune como seautor fosse, assim como a legislação alemã e espanhola.

Esta teoria parece ter um menor número de adeptos, emboramuito bem representada e com maior força na doutrina espanhola, por

81 In Täterschaft bei fremdhändiger Tatausführung, apud ROXIN, in “Problemas de autoria...”, comonota 58, p. 62.82 De acordo com ORLANDIS, J. (in “El concepto del delito en derecho de la alta edad media”,AHDEXVI, 1945, p. 182-183) a instigação foi a figura que mais demorou para ser reconhecida dentro do temada comparticipação, maxime devido ao seu caráter não material, mas sim, moral, e a necessidade deser superado o critério da responsabilidade pelo resultado. Na Alta Idade Média, a questão surge noscrimes de homicídios praticados mediante instigação, ou melhor, “consilium”, como se dizia à época.83 In Manual ..., ob. cit. como nota 26, p. 387.

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intermédio de GIMBERNAT ORDEIG84; também em Alemanha encon-tramos KÖHLER85, RENZIKOWSKI e HERZBERG86-87.

A teoria da instigação, como de forma responsabilizar penalmen-te o «homem de trás» da organização criminosa, em tese, seria ade-quada no direito penal luso e brasileiro, na medida em que as respecti-vas leis não exigem do instigador a participação direta na execução dofacto criminoso. No caso português, seu envolvimento consiste em“...dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto”. Disposiçãosemelhante encontramos no direito germânico. Contudo, para a puniçãodo instigador - e só para a dele -, no caso português, a mesma regrapenal exige a execução ou começo da execução. Há, pois, diferente es-trutura legal para a autoria e para a instigação, o que bem justifica oconhecimento perfunctório desta teoria. Com mais objetividade, percor-reremos o conteúdo desse entendimento.

À partida, a teoria utiliza o mesmo argumento de JESCHEK: aautoria mediata só é viável se o executor do delito estiver induzido emerro ou estiver sob coação.

Com o foco no caso Eichmann – genocídio: extermínio de judeuspelo regime nacional-socialista alemão – GIMBERNAT ORDEIG opõe-se expressamente à doutrina de ROXIN88 e afirma que os executoresdos homicídios devem ser considerados autores imediatos e os de-mais componentes da organização devem ser definidos comoinstigadores ou cúmplices. Isto porque os executores possuem uma

84 GIMBERNAT ORDEIG, E., in Autor y Complice en Derecho Penal, 1966, p. 187-193.85 In Allgemeiner Teil, 1997, apud MONTALVO, como nota 16, p. 264. A mesma citação encontra-mos em ROXIN, Sobre o Estado..., como nota 25, p. 171.86 RENZIKOWSKI, in Restriktiver Täterbegriff, e HERZBERG, in Mittelbare Täterschaft und Anstiftungin formalen Organisationen, apud ROXIN, como nota 3, p. 727.87 Quanto a figura da instigação no direito português, FARIA COSTA anota que ela nunca tevetradição, é «antes de tudo fruto da dogmática alemã» (in “Formas do Crime”, Jornadas de DireitoCriminal, 1983, p. 172).88 Para opor-se a essa doutrina, o Autor dá razão às palavras finais de Eichman em seu processoquando afirmou: «tenho a mais profunda convicção de que aqui estou pagando pelos vidros queoutros quebraram» (ARENDT, Eichmann in Jerusalem, 1964, apud GIMBERNAT ORDEIG, in Au-

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energia criminal superior e neutralizadora do comportamento daqueleque somente transmite a ordem de seu superior, o qual, por esse mo-tivo, deve ser considerado cúmplice89. É que o executor material cum-pre a ordem não por causa do comando recebido do intermediário,mas sim porque sabe que a diretriz foi dada pelo «homem de trás» daorganização. Numa palavra, a tese de GIMBERTNAT ORDEIG pode serresumida: «o dirigente do aparato (instigador) convence aos executores(autores imediatos), através de outras pessoas intermediárias (cúmpli-ces)»90. Por sua vez, para o mesmo Autor espanhol, o «homem de trás»deve ser qualificado como instigador.

Contudo, o próprio GIMBERNAT ORDEIG assinala que a defini-ção de instigação não corresponde ao relevante papel desempenhadopor quem está por detrás do aparato organizado de poder – como Hitlerestava –, o que decorre da situação do Código Penal espanhol – aonosso ver, não só este – estar pensado para casos mais simples e nãopara crimes de genocídio.

De outra forma, outro espanhol, PLASENCIA, invocando o pen-samento de KORN e referindo-se ao fenômeno dos aparatos organiza-dos de poder, adequado nesta questão, afirma que o problema nãopode ser analisado apenas do ponto de vista do «homem de trás», poiso foco deve estar no plano da execução do delito91. Com esta perspec-tiva, PLASENCIA advoga que o «homem de trás» tem apenas e nomáximo o «domínio negativo do fato, um poder de interrupção da reali-zação do delito, porém resulta insuficiente para fundamentar sua auto-ria, posto que, como tem assinalado a doutrina, para ostentar essedomínio negativo nem sequer se faz necessário manejar um aparatode poder»92. E mais, a fungibilidade contraria a própria tese da autoriamediata, porque esta acaba por admitir a possibilidade do executor,dentro da liberdade que tem – não está sob coação ou submetido a

89 In Autor y Complice ..., como nota 84, p. 188.90 Cfr. PLASENCIA, in La Autoría Mediata en Derecho Penal, 1996, p. 270.91 Idem, p. 275.92 Idem, p. 276. PLASENCIA define a conduta do «homem de trás» como cumplicidade oucooperação necessária, tendo apenas um domínio negativo do fato, sua contribuição se baseia ematos de instigação, em auxílio com meios materiais etc.

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erro – cumprir ou não os desígnios e as ordens do «homem de trás» e,sendo assim, este comando é constitutivo unicamente de instigação.Dessa forma, o «homem de trás» domina a organização como unidade,mas não domina o executor do delito, que tem o verdadeiro domínio dofato e o realiza conforme seu entendimento particular no caso concreto.

A crítica que se faz a esta teoria, com a autoridade de ROXIN,situa-se no fato de não haver uma mera instigação entre o «homem detrás» e os executores dos crimes. Cabe lembrar, com TERESA BELE-ZA93, que a instigação, como espécie de participação, tem caráter aces-sório (depende do início da execução por outrem), conquanto equipara-da à autoria imediata. E em nosso problema, há mais do que instigação.O «homem de trás», através do domínio do mecanismo de funciona-mento da organização criminosa, domina a vontade do executor. Ade-mais, à vista da fungibilidade deste, se não for cumprido sua parte noplano, outro o fará em seu lugar. Numa palavra: de acordo com o princí-pio da responsabilidade, a figura do instigador não reflete a importânciada intervenção do «homem de trás» na perpetração do crime94.

Cabe ainda outro argumento. A considerar a existência de umautor atrás do autor, a doutrina tem entendido – e bem – impossívelfalar da instigação em cadeia – instigação à instigação, ou instigaçãoindireta –, o que levaria os agentes à impunidade. Ante todo o exposto,a teoria da instigação apresenta-se como inexata ou inadequada coma real estrutura das organizações criminosas e seus particulares ma-nejos. Seria, ao revés, cabível se o instigador não tivesse o domínio daorganização ao ponto de fazê-la funcionar com autonomia, como é asituação daquele que apenas instiga, ou, no caso do cúmplice, apenasaconselha ou proporciona meios para o delito.

Bem ao contrário, a doutrina de ROXIN corresponde a real rela-ção dos «homens de trás» com os executores, pois não há uma verda-deira ou uma mera instigação, mas sim uma relação de subordinação

93 Cfr. BELEZA, Teresa P., como nota 25, p. 339 e também em Ilicitamente comparticipando – Oâmbito de aplicação do art. 28º do Código Penal”, Separata BFDC, 1998, p. 11. No mesmo sentido:VALDÁGUA, como nota 33, p. 919, n. 8.94 Assim: FIGUEIREDO DIAS, in Autoria e Participação ..., como nota 8, p. 364

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hierárquica através do total controle da organização ou, como falaBOOTKE, um «domínio de configuração de superior relevância»95.

6. Considerações finais.

A fundamentação lançada ao longo deste trabalho, adiantou nossaopinião concordante com a tese construída por ROXIN. Embora de for-ma bastante sucinta, trouxemos à baila as principais discussões relati-vas aos árduos problemas da autoria e participação nos crimes cometi-dos por organizações criminosas, não estatais e em sentido estrito.

Finalizamos com a reflexão da decisão do Tribunal Regional deJerusalém:

«Os delitos julgados são delitos massivos ..., de modoque a proximidade ou a distância quanto ao homem quematou de fato a vítima não pode ter nenhuma influênciano alcance da responsabilidade. Pelo contrário, a medi-da da responsabilidade aumenta (...) quanto mais nosdistanciamos daquele que põe em funcionamento a armahomicida com suas mãos e chegamos aos níveis dehierarquia superiores (...)»96.

Os fundamentos jurídicos acima, levados a efeito na sentençaproferida no caso Eichmann, para além de colocar «em causa ainadequação do direito penal clássico, duma perspectiva de eficácia»97,e demonstrar que muitos renomados teóricos – inclusive adeptos dateoria do domínio do fato, com diferentes argumentações – ainda estãodemasiados influenciados pela idéia básica da teoria subjetiva e, as-sim, reféns de um direito penal tradicional98, de raiz individualista. Tudo

95 Cfr. BOTTKE, Wilfried, in “Estrutura…”, como nota 59, p. 317.96 A decisão foi transcrita por AMBOS, “Domínio do Fato...”, como n. 35, p. 58 (itálico); tambémmencionada por ROXIN, ob. cit. como nota 3, p. 274.97 Cfr. FARIA COSTA, José de, e COSTA ANDRADE, Manuel da, in “Sobre a concepção e osprincípios do direito penal económico”, DPEE, 1998, p. 357.98 Assim ROXIN, in Autoria e Domínio..., como nota 3, p. 309, ao referir-se aos teóricos da co-autoria.

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parece querer se reportar à interrogação feita por GIMBERNAT ORDEIG:«Terá futuro a dogmática jurídico-penal?».

A resposta, sem dúvida, é positiva. Mas com o mister irrenunciávelda luta contra a criminalidade organizada.

Se no âmbito do processo penal, a grave doença do crime organi-zado não pode ser combatida com um único remédio99, no espaço dodireito penal não pode ser diferente. A dogmática deve integrar-se nessecombate e, para tanto, exercitar-se, não com reacções simbólicas – daqual fala HASSEMER –, mas no espaço da legalidade e dos princípiosdo Estado de direito democrático, no sentido de responder adequada-mente à fenomenologia criminal crônica e aguda.

E essa resposta, no campo da autoria e participação na crimina-lidade organizada, é dada pelo critério do domínio da organização. Nãocomo uma resposta pronta e definitiva, mas sim como critério aindaem intensa discussão, como, aliás, deve ser.

É imperioso esclarecer que não temos a teoria roxiniana comoperfeita, porquanto seu conteúdo, de acordo com o caso concreto,pode aproximar-se a um conceito unitário de autor, vez que a inter-venção de cada envolvido – o autor atrás do autor – é definida comoautor na fórmula da autoria mediata, assim como também o autorimediato do delito.

De outra sorte, a teoria do domínio da organização parece fra-cassar quando se depara com organizações especializadas no bran-queio de capitais, ou mesmo naquelas organizações empresariais –as quais não integraram o objecto deste trabalho –, porquanto, nestashipóteses, o membro dessas associações criminosas detém conheci-mentos e habilidades financeiras específicas, como é o caso do res-ponsável pela contabilidade do dinheiro ou do método financeiro da la-vagem do dinheiro. Em tais casos, o indivíduo não seria um elementofungível, substituível como uma peça dentro de uma máquina100.

99 Cfr. CHIAVARIO, M., in “Direitos Humanos, Processo Penal e Criminalidade Organizada”, trad.M.Z.de Moraes, RBCC 5, a. 2, 1994, p. 27.100 Assim também FERRÉ OLIVÉ, J.C., ob. cit. como nota 68, p. 95.

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Mas, sem qualquer dúvida e os casos práticos citados – e aque-les que certamente ainda o serão – provam o avanço da doutrina jurí-dico-penal, deixando esperança quanto a possibil idade dacriminalidade organizada sucumbir ao embate frente à dogmáticapenal e colocar a perder o velho brocardo: “Lex est araneae tela, quia,si in eam inciderit quid debile, retinetur; grave autem pertransit telarescissa – a lei é como uma teia de aranha: se nela cai alguma coisaleve, ela retém; o que é pesado rompe-a e escapa.

Arthur Pinto de Lemos Júnior,promotor de Justiça da Capital de São Paulo,

Mestrando em Ciências Jurídico-Criminaisna Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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A responsaA responsaA responsaA responsaA responsabilidade civbilidade civbilidade civbilidade civbilidade civililililildas Empresas fadas Empresas fadas Empresas fadas Empresas fadas Empresas fabricantesbricantesbricantesbricantesbricantes

de cigarrode cigarrode cigarrode cigarrode cigarro

Guilherme Ferreira da cruz,juiz de direito em santos-sp

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DASEMPRESAS FABRICANTES DE CIGARROS

Guilherme Ferreira da Cruz

Sumário: 1. Da ampla e irrestrita proteção ao consumidor.2. Abuso do poder econômico x autonomia da vontade. 3.Liberdade do fornecedor x necessidade do consumidor. 4.Elementos inerentes à economia de massa. 5. O binômiotransparência/confiança. 6. Fundamentos da responsabili-dade. 6.1. Atividade lícita. 6.2. Conhecimento público dosriscos à saúde associados ao consumo de cigarros. 6.3. Aquestão da publicidade e das advertências. 6.4. Um históri-co de respeito à lei. 6.5. A questão do livre-arbítrio. 6.6.Inimputabilidade de eventuais danos às companhias de ta-baco: assunção de risco como excludente de responsabi-lidade. 6.7. Nexo causal como requisito da obrigação deindenizar. 6.8. Possibilidade de consumo de diferentes mar-cas. 6.9. Risco do produto segundo o Código de Defesa doConsumidor. 7. Do dano extrapatrimonial. 7.1. A expressãomoral. 7.2. Noção. 7.3. Prova. 7.4. Quantificação e funçãopunitiva (caráter aflitivo). 7.5. Ausência de limitaçãoinfraconstitucional. 8. Pedido x princípio da adstrição(sucumbência). Bibliografia.

1. Da ampla e irrestrita proteção ao consumidor

Observe-se, desde já, que a relação jurídica estabelecida entre ascompanhias de tabaco e seus fumantes é nitidamente de consumo e,por isso, nela incide o microssistema protetivo instituído pela Lei nº 8.078/90, sobretudo no que tange à vulnerabilidade material e à hipossuficiênciaprocessual do consumidor (CDC, arts. 4º, I, c.c. 6º, VIII).

Nenhuma dúvida remanesce neste ponto.

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Entretanto, o Código de Defesa do Consumidor há de ser enten-dido como uma lei principiológica que promove um corte horizontal nosistema jurídico pátrio, atribuindo, com isso, eficácia material às re-gras constitucionais no desiderato de realizar a dignidade da pessoahumana, a liberdade, a justiça, a solidariedade e a prevalência dosvalores sociais (CF, arts. 1º, III e IV, c.c. 3º, I).

Torna-se mister, pois, recolocar a Constituição Federal no ápiceda pirâmide normativa, transformando sua hodierna concepção progra-mática em outra que lhe reconheça como autêntica determinante positi-va, notadamente quanto aos princípios nela cimentados, tal como o queadmite ser o consumidor um sujeito falto de proteção (CF, art. 5º, XXXII).

Ultrapassado o apogeu das codificações, no século XIX, o Códi-go Civil perde o atributo de norma exclusiva do direito privado, verda-deira condicionante de um corpo legislativo monolítico (monossistema),o que enseja o aparecimento de um grande número de leis esparsasnum fenômeno denominado estilhaçamento do direito.1

Cumpre frisar que a sociedade contemporânea, insegura e massi-ficada pela crescente oferta de produtos e serviços, pelo império e cres-cimento da publicidade (marketing), pela facilitação do crédito etc., nãoencontrou meios apropriados de defesa no ordenamento jurídicoinfraconstitucional, em regra, idealizado para a solução de lides eminen-temente individuais.

É neste contexto histórico que a Constituição retoma seu lugarno ápice da pirâmide estrutural; porém, agora funcionando como lídimadeterminante positiva, ou seja, abandona-se a concepção secular esuperada do conteúdo meramente programático (simples complexode diretrizes políticas) – sem vinculação imediata – para se atingir aidéia de uma normatividade própria constitucional.

As regras e os princípios constitucionais têm, sim, eficácia e in-cidência concreta e autônoma.

Isto é, os princípios – mais do que regras (expressas ou implíci-tas) – são fundamentos inquebrantáveis do direito, sobretudo se guar-

1 Cláudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ª edição. São Paulo:

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dam foro constitucional. Sua violação representa, aí, a mais grave for-ma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade. Nem mesmo o PoderConstituinte originário pode ignorá-los, transgredi-los.

Tal realidade passa a ser sensível no Brasil com a promulgaçãoda Constituição da República de 1988, que, num passo altamente sig-nificativo, consagra direitos de terceira geração (difusos e coletivos),erigindo em garantia fundamental, entre outras, a defesa do consumi-dor. Positiva, para que nenhuma dúvida restasse, princípio nuclear dasociedade contemporânea.

Desse ângulo, padecerá de inconstitucionalidade norma ou si-tuação jurídica que viole – ou possa, de algum modo, obstar – a defesado consumidor, pois o desequilíbrio nessa relação entre o capital e anecessidade está reconhecido no próprio texto constitucional.

2. Abuso do poder econômico x autonomia da vontade

Com efeito, a economia de massa que atualmente rege o mer-cado eliminou a concepção tradicional (falsa, aliás) da autonomiairrestrita da vontade. Esse declínio do voluntarismo coincide com acrise do paradigma do direito privado moldado pelo Estado liberal.

Diante de tal abuso do poder econômico, supostamente fundadonuma ampla liberdade de contratar, percebeu-se que entre o forte e ofraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta2. Isso obrigou oEstado a agir no sentido de assegurar o equilíbrio nessas relações(dirigismo contratual).

Com argúcia, salienta Luiz Amaral:

Que liberdade há para quem desconhece as regrasbásicas do mercado, os produtos e seus similares, os pre-

2 O resultado negativo do exercício da liberdade contratual foi condensado magnificamentenessa frase de Lacordaire, apud, Orlando Gomes. Contratos, Atualização e notas de HumbertoTheodoro Júnior. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1995, pág. 26.

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ços e seus componentes? Que liberdade há para quem estásob pressões diversas (publicidade subliminar, rótulos eembalagens enganosas, monopólios, insuficiência salarialetc.?) Que liberdade há para quem ignora o sentido e alcan-ce das conseqüências jurídicas de cláusulas contratuaisexclusivamente arquitetadas pelo economicamente maisfor-te? Como se pode ver a famosíssima e secular liberda-de contratual ou autonomia da vontade amiúde não passade máscara para a vontade unilateral, e por isso mesmo eenquanto princípio absoluto, acha-se a caminho do museude belas utopias jurídicas.3

Indiscutivelmente, o consumidor foi um dos mais prejudicadosnesse processo, tanto assim que, após o reconhecimento da ineficá-cia do modelo jurídico anterior, outorgaram-se-lhe direitos específicose fundamentais. Dessa linha de pensamento surge o consumerismo.

Imbuído de valores já assimilados na comunidade internacional,o Brasil adota uma nítida postura intervencionista com a promulgaçãoda Constituição Federal de 1988, propondo-se tutelar situações de de-sigualdade e de desequilíbrio social.

Nessa quadra a defesa do consumidor é erigida a princípio cons-titucional impositivo, exercendo dupla função: de meio para realizaçãode existência digna e de diretriz (norma-objetivo).

Posterga-se, neste passo, o fetichismo da lei (v.g., Código Civil)para as relações de direito privado, que tem seu centro de gravidadedeslocado para estatutos autônomos com vinculação direta (base desustentação) em princípios e em regras constitucionais.

Observa-se a ineficácia do modelo jurídico anterior para enfren-tar o desequilíbrio inerente às relações de consumo (insegurança), si-tuação que exigiu uma postura intervencionista do Estado, agora dirigi-do à realização do social e à concretização das liberdades públicas.

3 O Código, a Política e o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Revista Direito do Consu-midor. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 6, 1993, pág. 71.

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3. Liberdade do fornecedor x necessidade do consumidor

Nos restritos limites da análise proposta, a expressão livre encontrabase constitucional em três momentos distintos: a) como fundamentoda República (CF, art. 1º, IV); b) como seu objetivo (CF, art. 3º, I); e c)como princípio geral da ordem econômica (CF, art. 170, caput, e IV,c.c. seu parágrafo único).

Pois bem.

É necessário fixar, e de modo inquebrantável, a idéia de que osistema constitucional brasileiro não admite qualquer livre iniciativa,mas apenas aquela livre iniciativa fundada em valores sociais (CF, art.1º, IV); logo, percebe-se, a olho desarmado e ao contrário do que pen-sam alguns, que a iniciativa não é tão livre assim.

Conclui-se, portanto, que a ordem econômica nacional há deguardar ressonância com os valores sociais da livre iniciativa, porquesomente dessa forma poderá assegurar a todos existência digna (CF,art. 170, caput), nova representação da dignidade da pessoa humanajá prevista como fundamento da República (CF, art. 1º, III).

Fixadas essas premissas, indaga-se: o Estado deve garantir alivre iniciativa e a livre concorrência em benefício dos empreendedores(fornecedores concorrentes) ou do mercado, onde o consumidor é agrande maioria?

À evidência que essa noção de liberdade só pode aproveitar aoconsumidor, sob pena de se admitir uma exploração irracional, e, atécerto ponto, autofágica do mercado, que não pertence exclusivamenteaos fornecedores.

Busca-se, em verdade, a realização do social, vale dizer, umajustiça distributiva que permita a construção de uma sociedade livrejusta e solidária (CF, art. 3º, I), com prevalência do mandamento jurídi-co nuclear: dignidade da pessoa humana (piso mínimo normativo4).

4 Celso Antonio Pacheco Fiorillo. O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. SãoPaulo: Saraiva, 2000, pág. 14.

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Referida transmudação está envolta e condicionada pelos anseiosresultantes do movimento de massas que domina o mundo contem-porâneo, ostensivamente desde o limiar do século, para o que vêmsendo idealizados novos instrumentos de realização da justiça.5

O Estado social é, nitidamente, um Estadointervencionista, que procura, a partir da concretização dasliberdades reais ou positivas, realizar a justiça social,prestigiando e fortalecendo, desse modo, os direitos eco-nômicos e sociais reconhecidos em favor das pessoas.Sob a égide do Estado Social – e precisamente em funçãode suas novas finalidades – surgem as liberdades positi-vas ou concretas, as quais, projetadas no domínio jurídico,exteriorizam-se nos direitos econômicos e sociais, queconstituem realidade importante que emerge do processode transformação do próprio Estado. O estágio de evolu-ção em que se encontra o Estado contemporâneo é umaconseqüência direta do processo histórico de sua trans-formação. O Estado não pode ser visto como um aparelhodestinado a cumprir os desígnios de uma classe dominan-te. A modernização do Estado reflete, na realidade, as no-vas tendências que exigem a sua constante atualização.Sem transformações substanciais, que privilegiem a justasolução das graves questões sociais, o Estado terá, cer-tamente, falhado à sua alta missão institucionalus:.6

Alerta, porém, Nelson Nery Júnior,

É preciso que se diga, por primeiro, que a defesa doconsumidor é instrumento da livre iniciativa e só existe empaíses de economia de mercado. As economias estatiza-das não se coadunam com a defesa do consumidor. Nos

5 José Manoel Arruda Alvim Neto. Tratado de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dosTribunais, 1990, volume I, pág. 108.6 STF – ADIN nº 319/DF (Questão de Ordem) – trecho do voto do Ministro Celso de Mello.

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países capitalistas, notadamente os mais industrializados(EUA, Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Suécia,Canadá, Austrália etc) é que se tem desenvolvido com mai-or vigor a defesa do consumidor. O tema não tem, portanto,conteúdo político-ideológico comunista ou socialista.7

Daí surge a precisa noção da liberdade constitucional, ao menosno que tange às relações de consumo. Com perspicácia ímpar, lecio-na Luiz Antonio Rizzatto Nunes:

A liberdade de iniciativa é conferida a todos aquelesque decidam, sponte propria, tomando seus bens e cons-tituindo-os em capital, ir ao mercado empreender algumaatividade – qualquer atividade permitida e/ou regulada cons-titucional e infraconstitucionalmente.

O sentido de “livre” iniciativa aí, então, significa o di-reito de escolher correr o risco do empreendimento. A pes-soa tem, portanto, o direito garantido de, caso queira, em-preender um negócio.

Em relação ao consumidor, a liberdade que o textolhe garante é objetivo da República, ou seja, o Estado bra-sileiro tem entre seus objetivos o de assegurar que a socie-dade seja livre. Isso significa que, concretamente, no meiosocial, dentre as várias ações possíveis, a da pessoa de-signada como consumidora seja livre.

A conseqüência disso é que o Estado deverá intervirquer na produção, quer na distribuição de produtos e servi-ços, não só para garantir essa liberdade como para regularaqueles bens que, essenciais às pessoas, elas não possamadquirir por falta de capacidade de escolha. Explica-se.

Primeiramente, como dissemos, o sentido de liber-dade da pessoa consumidora, aqui, é o de “ação livre”. Essa

7 Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Revista de Direito doConsumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 3, 1992, pág. 47.

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ação é livre sempre que a pessoa consegue acionar duasvirtudes: querer + poder. Quando a pessoa quer e pode,diz-se, ela é livre; sua ação é livre.

Assim, a regra básica será a da escolha com possi-bilidade de aquisição: a pessoa quer algo, tem dinheiro oucrédito para adquiri-lo, então é livre para fazê-lo.

Contudo, haverá casos em que, justamente por nãopoder escolher, a ação da pessoa não será livre. E nessahipótese a solução tem de ser outra. Estamo-nos referindoà necessidade. O conceito é clássico: liberdade é o opostode necessidade. Nesta não se pode ser livre: ninguém temação livre para não comer, não beber, para voar etc. Apli-cado o conceito à realidade social, o que se tem é o fato deque o objetivo constitucional da construção de uma socie-dade livre significa que sempre que a situação real for denecessidade o Estado pode e deve intervir para garantir adignidade humana.8

No atinente ao fornecedor, a liberdade constitucional encontra suarepresentação concreta no dispositivo que assegura a todos o livre exer-cício de qualquer atividade econômica (CF, art. 170, parágrafo único).

A opção é, pois, do fornecedor.

Mas saliente-se: a mesma liberdade que assegura ao agenteempreendedor (fornecedor) a iniciativa de explorar o mercado,inexoravel-mente o vincula aos riscos e aos percalços dessa emprei-tada, e de maneira exclusiva.

Ou, em outras palavras, o exercício dessa prerrogativa relega aofornecedor todos os riscos da atividade economicamente lucrativa ex-plorada no mercado, inviabilizando qualquer tentativa de transferênciadesse ônus, inclusive mediante contrato expresso (CDC, art. 51, I, III eXV, c.c. seu § 1º, I, II e III).

8 Comentários ao Código de Defesa do Consumidor,Direito Material (arts. 1º a 54). São Paulo:Saraiva, 2000, pág. 18.

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Trata-se da teoria do risco integral.9

Básico o fundamento: sem repartição adequada dos lucros (quasesempre exagerados), não é possível divisão dos riscos. É essa a vigamestra da responsabilidade independente da existência de culpa fir-mada na Lei nº 8.078/90.

4. Elementos inerentes à economia de massa

Tem-se o cuidado, neste passo, de não se vincular esses elemen-tos apenas às típicas relações de consumo, assim definidas na Lei nº8.078/90, pois o Código de Proteção e de Defesa do Consumidor nadamais fez do que positivar situações e realidades há muito identificadasna sociedade contemporânea – voltada à economia de massa, àglobalização e ao mercado irracional – com destaque para o flagrantedesequilíbrio entre os sujeitos envolvidos: o fornecedor e o consumidor.

É claro que essa preocupação não ficou restrita às particularida-des do Brasil, pois a globalização gera a necessidade de fortalecimen-to da atuação estatal na proteção da sociedade e do indivíduo, princi-palmente no que se refere às relações consumeristas e à própriaregulação do mercado, sempre com vistas a garantir a dignidade comonúcleo mínimo intangível.10

De fato, o que deu enorme dimensão ao imperativo cogente deproteção ao consumidor, ao ponto de impor-se como tema de segu-rança do Estado no mundo moderno, em razão dos atritos sociais queo problema pode gerar e ao Estado incumbe delir, foi o extraordináriodesenvolvimento do comércio e a conseqüente ampliação da publici-dade, do que igualmente resultou, isto sim, o fenômeno conhecido doseconomistas do passado – a sociedade do consumo, ou o desfrute

9 Também chamada de teoria do risco do negócio ou teoria do risco da atividade.10 Cristiano Chaves de Farias. A proteção do consumidor na era da globalização. Revista Direitodo Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 41, 2002, págs. 90/91.

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pelo simples desfrute, a aplicação da riqueza por mera sugestão cons-ciente ou inconsciente.11

Assinala, a propósito, Pizarro:

A evolução tecnológica exigiu dos homens do direitouma permanente tarefa de adequação das normas vigen-tes, modificando critérios consagrados em busca de solu-ções justas.12

E Adverte Silvio Luís Ferreira da Rocha:

Como os códigos elaborados no início do século, poradotarem concepção liberal e individualista, mostraram-seinadequados à efetiva proteção do consumidor13, houve anecessidade de adequá-los às novas situações oriundasdo desenvolvimento industrial e um novo direito – o do con-sumidor – surgiu para estabelecer a igualdade das partesrompida pelas transformações sócio-econômicas e tute-lar, efetivamente, a liberdade e o equilíbrio contratual.

A descoberta do consumidor, fenômeno típico da so-ciedade opulenta que surgiu gradualmente em todos ospaíses industrializados, não foi seguida da adoção imedia-ta dessas medidas protetoras. Foi preciso um longo perío-do para sensibilizar a opinião pública e reclamar a atençãodo legislador para o problema do consumidor.14

11 José Maria Othon Sidou. Proteção ao Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1977, pág. 5.12 Ramon Daniel Pizarro. Responsabilidad civil por el riesgo o vicio de las cosas. Buenos Aires:Editorial Universidad, 1983, págs. 29/30. No original: “La evolución tecnológica ha exigido a loshombres de derecho una permanente tarea de adequación de la normativa vigente o modifican-do creterios perimidos en procura de soluciones justas.”13 Segundo Jean CALAIS-AULOY, Droit de la consommation, p. 16, no início da sociedade liberalnão havia lugar para a proteção do consumidor em face do princípio da autonomia da vontadeque se tornou a base do sistema jurídico. Todos os contratantes eram considerados igualmentelúcidos e razoáveis. O adquirente tinha, à sua disposição, apenas a ação fundada sobre um víciode consentimento ou ação em garantia dos vícios ocultos raramente utilizadas em matéria deconsumo. Apenas no final do século XIX surgiram algumas regras protetoras, sancionadoras dosabusos mais flagrantes do liberalismo econômico tais como as fraudes e os atentados contra asaúde pública.14 A Oferta no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Lemos Editorial, 1997, pág. 66/67.

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Na análise de Thierry Bourgoignie, a passagem da sociedadeliberal para a pós-industrial foi marcada pela:

(......) adoção de novo modelo de direito do consumi-dor chamado adaptador, que, admitindo a ineficácia domodelo anterior, reconheceu, no consumidor, um sujeitode direitos específicos e lhe atribuiu direitos fundamentaiscomo o direito à segurança, à informação, à escolha e odireito de ser ouvido.15

Não se ignorando a ligação do direito do consumidor com outrosramos do direito, verifica-se, por meio da releitura dos problemas acercadas relações de consumo, a massificação da submissão do consumi-dor diante do fornecedor. Quando se preconiza a autonomia didáticado direito do consumidor, quer-se destacar a atuação de um direitoespecial a regular situações também especiais, que mereçam um tra-tamento unitário.16

João Batista de Almeida esclarece:

A proteção jurídica do consumidor não é tema que digarespeito a um único país; ao contrário, é tema supranacional,pois abrange todos os países, desenvolvidos ou em vias dedesenvolvimento. A relevância do tema, as repercussõessentidas nos seguimentos sociais dos vários países, a sen-sibilidade para os problemas sociais e os direitos humanos,em suma, toda essa modificação nas relações de consu-mo, acabaram levando a ONU a se preocupar com a defe-sa do consumidor, aliás atitude esperada do organismo in-ternacional, caixa de ressonância dos grandes temas queenvolvem a melhoria da qualidade de vida dos povos.17

15 Éléments por une théorie du droit de la consommation. Bruxelas: Story-Scientia, 1988, pág.155, apud Silvio Luís Ferreira da Rocha, op. cit., pág. 67.16 Antônio Carlos Efing. Contratos e Procedimentos Bancários à Luz do Código de Defesa doConsumidor. 1ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pág. 27.17 A Proteção Jurídica do Consumidor. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, pág. 04.

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Nessa trilha de preocupações é que se encontra a Resolução nº39/248 da Organização das Nações Unidas, aprovada em sessão ple-nária de 09-04-1985, inspirada na famosa declaração dos direitos doconsumidor, proferida pelo Presidente John Kennedy, em 15-03-1962,data em que, aliás se comemora o dia internacional do consumidor.

A Resolução nº 39/248, em última análise, traçou uma políticageral de proteção ao consumidor destinada aos Estados filiados, ten-do em conta seus interesses e necessidades em todos os países e,particularmente, nos em desenvolvimento, reconhecendo que o con-sumidor enfrenta, amiúde, desequilíbrio em face da capacidade eco-nômica, nível de educação e poder de negociação. Reconhece, ainda,que todos os consumidores devem ter o direito de acesso a produtosque não sejam perigosos, assim como o de promover um desenvolvi-mento econômico e social justo, eqüitativo e seguro.18

Assinala James J. Marins de Souza que o nº 3 dessas diretrizesindica os seguintes direitos básicos do consumidor:

“a) a proteção dos consumidores frente aos riscos àsua saúde e à sua segurança;

b) a promoção e proteção dos interesses econômicos dosconsumidores;

c) o acesso dos consumidores a uma informação ade-quada que os permita fazer eleições bem fundadas con-forme os desejos e necessidades de cada qual;

d) a educação do consumidor;

e) a possibilidade de compensação efetiva ao consu-midor;

f) a liberdade de constituir grupos ou outras organizaçõesafins de consumidores e oportunidade para estas organizações

18 José Geraldo Brito Filomeno. Manual de Direitos do Consumidor. 5ª edição. São Paulo: Atlas,2002, pág. 25.

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de fazer ouvir suas opiniões nos processos de adoção de de-cisões que as afetem” (g.n.)19

Parece fundamental assinalar, ainda, o relevante papel desem-penhado pela CEE, ao constituir-se em fonte de direito. São editadasResoluções, Diretivas, Proposições, Recomendações, etc. que inter-ferem no direito interno de cada um dos integrantes da Comunidade.20

Ressalte-se, neste particular, que o Conselho das Comunida-des Européias aprovou21 o Programa Preliminar da Comunidade Eco-nômica Européia para uma política de proteção e de informação dosconsumidores, estabelecendo em seu nº 3: Os interesses dos consu-midores podem ser agrupados em cinco categorias de direitos funda-mentais:

a) direito à proteção da saúde e da segurança;

b) direito à proteção dos interesses econômicos;

c) direito à reparação dos prejuízos;

d) direito à informação e à educação;

e) direito à representação (direito de ser ouvido) (g.n.)22

Resta solarmente claro que, embora na essência desequilibra-da essa relação, três direitos básicos sempre foram reconhecidos eassegurados ao consumidor: à proteção da sua saúde, à correta e àprecisa informação, e à reparação dos danos suportados; logo, não sepode admitir nem amparar uma atividade econômica explorada comtamanha voracidade pelo fornecedor que ponha em risco qualquer umdesses valores.

Eis o mínimo esperado.

19 A Responsabilidade Civil do Fornecedor pelo Fato do Produto e do Serviço. JurisprudênciaBrasileira (JB) 166/55.20 Newton de Lucca. Direito do Consumidor, aspectos práticos – perguntas e respostas. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1995, pág. 22.21 Resolução do Conselho de 14 de abril de 1975. Esse elenco de direitos é confirmado noSegundo Programa da Comunidade Econômica Européia, conforme a Resolução do Conselhode 19 de maio de 1981.22 James J. Marins de Souza, id.

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Trata-se da conjugação de seis elementos: 1) vulnerabilidade doconsumidor; 2) inviabilidade de abuso no mercado; 3) harmonia e equi-líbrio; 4) transparência; 5) confiança; e 6) boa-fé (objetiva).

5. O binômio transparência/confiança

Transparência é clareza qualitativa e quantitativa da informaçãoque incumbe às partes conceder reciprocamente na relação jurídica,contratual ou extracontratual (v.g., publicidade, vitrines, marketing,etc.)23. É objetivo implícito em quase todos os dispositivos do Códigode Defesa do Consumidor e implica na boa-fé e na reta intenção dosfornecedores, dos anunciantes e dos financiadores.24

Para o insigne Luiz Antonio Rizzatto Nunes:

(......) se traduz na obrigação do fornecedor de dar aoconsumidor a oportunidade de conhecer os produtos e ser-viços que são oferecidos e, também, gerará no contrato aobrigação de propiciar-lhe o conhecimento prévio de seuconteúdo.25

Em relação à confiança, sustenta Cláudia Lima Marques:

A manifestação de vontade do consumidor é dadaalmejando alcançar determinados fins, determinados inte-resses legítimos. A ação dos fornecedores, a publicidade,a oferta, o contrato firmado criam no consumidor expecta-tivas, também, legítimas de poder alcançar estes efeitoscontratuais.

(......)

23 Roberto Senise Lisboa. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revistados Tribunais, 2001 pág. 101 e Cláudia Lima Marques, ibidem, pág. 286.24 Fabio Nusdeo et alii. Comentários ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1992,pág. 26.25 Ibidem, pág. 105.

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No sistema do CDC leis imperativas irão proteger aconfiança que o consumidor depositou no vínculo contratual,mais especificamente na prestação contratual, na sua ade-quação ao fim que razoavelmente dela se espera, irão prote-ger também a confiança que o consumidor deposita na se-gurança do produto ou do serviço colocado no mercado.26

Dessa confiança inerente às relações de consumo, variante di-reta da boa-fé objetiva (CDC, art. 4º, III) mesmo na esfera extracontratual,decorrem três deveres anexos fundamentais: o de informar, o de coo-perar e o de cuidado (segurança). O primeiro guarda estreita resso-nância com a transparência, destacando-se a preocupação do legisla-dor com a saúde do consumidor (CDC, arts. 8º c.c. 9º).

O direito à informação decorre da boa-fé objetiva, queé princípio da política nacional das relações de consumo,constituindo-se em uma regra básica de convivência socialque passa a ter relevância jurídica para o asseguramentodos demais princípios decorrentes da constituição do víncu-lo de direito.

(......)

Considera-se que é dever do fornecedor concederao consumidor, que é parte vulnerável na relação de con-sumo, o conhecimento prévio de todas as informações re-levantes sobre o produto ou o serviço que a ele é oferecido(características, qualidade, quantidade, composição, pre-ço, garantia, prazos de validade, origem, riscos existentesà vida, à saúde ou à segurança), de forma clara, correta,ostensiva, precisa e em língua portuguesa (art. 31 do Có-digo de Defesa do Consumidor).27

Se bem que não expresso, infere-se o dever de cooperar da sis-temática protetiva. Sua força é tamanha que pode chegar até a impor

26 Ibidem, pág. 574.27 Roberto Senise Lisboa, ibidem, p

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uma renegociação das obrigações assumidas pelo consumidor28. Jáo dever de cuidado (segurança) projeta-se em dois níveis medulares:o da pessoa do consumidor (v.g., saúde, dignidade, patrimônio etc.) eo dos objetos da relação de consumo – o produto e o serviço – (v.g.,materiais e métodos utilizados no fornecimento).

Apesar de anexos, ou secundários, esses deveres, enquantocontratuais, representam verdadeiras obrigações (acessórias) a in-dicar que a relação contratual obriga não somente ao cumprimentoda obrigação principal (a prestação), mas também ao cumprimentodas várias obrigações acessórias ou dos deveres anexos àquele tipode contrato.29

E arremata José Geraldo Brito Filomeno:

Em síntese, pois, grande é a responsabilidade dosprodutores ou fornecedores no sentido de:

a) bem informar os seus consumidores sobre os ris-cos que apresentem seus produtos ou serviços, além, cer-tamente, de suas características;

b) retirar do mercado os produtos que apresentem ris-cos constatados após seu lançamento, assim como comu-nicar às autoridades competentes tais circunstâncias;

c) preventivamente, ainda, estabelecer canais de co-municação com o público consumidor, quer para informa-ções, quer para ouvir sugestões, quer para reparar danosjá causados, e para que outros não ocorram, mediante me-canismos de solução conciliatória.30

28 CDC, arts. 39 c.c. 40 c.c. 51 c.c. 52 c.c. 53.29 Cláudia Lima Marques, ibidem, pág. 110.30 Et alii. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentado pelos autores do anteprojeto.4ª edição. São Paulo: Forense Universitária, 1996, pág. 53.

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6. Fundamentos da responsabilidade

É de ressaltar-se, desde já, que a exploração comercial do taba-co e da nicotina (venda de cigarros) representa um negócio extrema-mente lucrativo, mas tolerado pelo Poder Público que, com isso, previ-ne a clandestinidade que uma súbita proibição poderia causar – talqual o fenômeno verificado durante a Lei Seca nos Estados Unidos31 –fomentadora de sensível evasão (sonegação) fiscal, sem prejuízo daruptura do controle exercido sobre a qualidade e sobre os componen-tes disponibilizados ao consumidor.

Infere-se da experiência comum neste plano que as companhi-as de tabaco, quando judicialmente acionadas, articulam suas defe-sas em três capítulos principais, onde sustentam basicamente ainexistência de: a) ato ilícito; b) nexo causal; e c) responsabilidade àluz do CDC; logo, todas essas teses e seus desdobramentos recla-mam acurada análise dentro do contexto jurídico até aqui formado (su-pra, itens 1 a 5).

6.1 Atividade lícita

Em nada altera o deslinde da quaestio a licitude da atividade.

A prevalecer tal raciocínio simplista, todas as conseqüências ilí-citas de atos, a priori, lícitos estariam imunes às regras da responsabi-lidade civil, o que é técnica e juridicamente inaceitável.

Tome-se o exemplo do cidadão intoxicado após comer um sal-gadinho (coxinha) adquirido numa cantina de determinada rodoviária.Vender salgadinhos também é atividade lícita, mas certamente nin-guém sustentaria na espécie a ausência do dever de indenizar.

E a indústria farmacêutica? Será possível acreditar e defender airresponsabilidade pelos danos causados por um remédio à população?

31 Lei que vigorou nos Estados Unidos e proibia a venda de bebidas alcoólicas.

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Ora, não é simples como querem as companhias de tabaco? Venderremédios também é lícito.

Por que com o cigarro é diferente?

Ilusório o argumento.

Se o exercício da sua atividade lícita compromete algum direitoda população, isto somente interessa às companhias de tabaco dianteda teoria do risco integral (supra, item 3), sobretudo se violadas umadas vigas mestras da dignidade da pessoa humana (CF, arts. 1º, III,c.c. 6º, caput): v.g., saúde.

De fato, a responsabilidade em razão do risco está definitiva-mente consagrada e incorporada no Direito Brasileiro, in casu, comespecial destaque para o artigo 12, e seus §§, da Lei nº 8.078/90:

O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ouestrangeiro, e o importador respondem, independente-mente da existência de culpa, pela reparação dos danoscausados aos consumidores por defeitos decorrentes deprojeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas,manipulação, apresentação ou acondicionamento de seusprodutos, bem como por informações insuficientes ouinadequadas sobre sua utilização e riscos (g.n.).32

Mas se alguma dúvida ainda remanescer, basta se voltemos olhos (estancada a miopia) para o novo Código Civil (Lei nº 10.406/02), diploma legislativo antenado com a evolução do direito e que, porcerto, regerá toda a atividade da ré, mormente porque a Lei nº 8.078/90não exclui a incidência da legislação interna ordinária (CDC, art. 7º,caput) visando à melhor defesa do consumidor (supra, item 1).

À guisa de exemplo, anotem-se dois dispositivos:

Haverá obrigação de reparar o dano, independente-mente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando

32 A existência, ou não, do defeito será apreciada oportunamente (infra, item 7.9).

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a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do danoimplicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.33

Ressalvados outros casos previstos em lei especi-al, os empresários individuais e as empresas respondemindependentemente de culpa pelos danos causados pe-los produtos postos em circulação (g.n.).34

Eis os comentários da doutrina mais abalizada:

8. Risco da atividade. A norma determina que sejaobjetiva a responsabilidade quando a atividade do causa-dor do dano, por sua natureza implicar risco para o direitode outrem. É a responsabilidade pelo risco da atividade. V.CDC 6º VI, 12 e 18.35

A obrigação de indenizar é, portanto, imposta porlei a certas pessoas independentemente da prática dequalquer ato ilícito, considerando-se que: a) determina-das atividades humanas criam um risco especial para ou-trem. (......) e b) o exercício de certos direitos deve implicaro dever de reparar o prejuízo que origina (CC, arts. 1.289,1.293 e 1.251) (g.n.).36

A propósito, acentue-se que a responsabilidade civil pelo fato doproduto prevista nesse artigo 931 do novo Código Civil também incluios riscos do desenvolvimento.37

Possível dizer-se, nesta quadra, que o fato de alguém escolheruma atividade que lhe dê lucros estratosféricos, apesar dos riscos a

33 CC/02, art. 927, parágrafo único.34 CC/02, art. 931.35 Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery. Novo Código Civil e Legislação ExtravaganteAnotados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 323.36 Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro. 16º edição. São Paulo: Saraiva, 2002, 7ºvolume, pág. 49.37 Enunciado 43 aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de EstudosJudiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob acoordenação científica do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, do Colendo Superior Tribunalde Justiça.

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ela inerentes, não importa afirmar ser tal comportamento irracional ouinvoluntário. A liberdade de assim agir e seus ônus somente a ele inte-ressam. Isso apenas reflete uma diferente percepção dos riscos e,possivelmente, de valores diversos.

Longe de configurar a inócua excludente do exercício regular dedireito – que se tanto eliminaria a ilicitude (CC, art. 160, I) e, por isso,relevante só em sede de responsabilidade subjetiva – a atividade derisco explorada pelas companhias de tabaco em muito se aproxima doabuso de direito.

6.2 Conhecimento público dos riscos à saúde associadosao consumo de cigarros

Abuso de direito, sim, pois mesmo há muito sabedoras dos ma-les gerados pela ingestão do tabaco e dos efeitos viciantes da nicotina,passivamente relegaram seus consumidores à própria sorte, ora como silêncio, ora com a negativa expressa da realidade.

Lembra Marcello D. Stalteri que há trezentos anos, de fato, otabaco era acusado no Velho Continente como produto danoso à saú-de, e a partir dos anos 20, em função de experiências realizadas emseus próprios laboratórios, tinham já conhecimento as empresas fa-bricantes de cigarros das características cancerígenas do produto, pre-ferindo à divulgação de tais informações a sua ocultação.38

Que adiantam, então, informações esparsas veiculadas por ter-ceiros, tal qual os consumidores ignorantes acerca da efetivapotencialidade lesiva do cigarro, simplesmente porque não participa-vam – e não participam até hoje (CPC, arts. 334, I, c.c. 335) – do pro-cesso de produção.

38 IL PROBLEMA DELLA RESPONSABILITÀ DEL PRODUTTORE DI SIGARETTE E IL CASOCIPOLLONE: L’ASSALTO ALLA CITTADELLA È REALMENTE COMINCIATO? Rivista di Diritto

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Tal como nos Estados Unidos, litigantes europeustêm sido encorajados pela prova de que os fabricantes decigarros sabem há muito tempo dos danos que seu produ-to causa. “À medida que os europeus forem percebendoque a indústria visava a eles, mas mentia quanto aos peri-gos dos seus produtos, você verá um número ainda maiorde processos sendo iniciados e vencidos”, diz RichardDynard, professor de direito e presidente do TobaccoProducts Liability Project em Boston, Massachusetts.39

Sem nenhum relevo para o deslinde da controvérsia assertivascomo: a) é de amplo conhecimento público que o consumo do tabacoé um fator de risco para o surgimento de algumas doenças; b) a mídiano Brasil há décadas veicula informações sobre o tema nos diversosmeios de comunicação; c) nenhum consumidor, por mais rudimentara sua formação, deixou de saber dos riscos associados ao cigarro; d)ninguém jamais levou um cigarro à boca sem estar informado e adver-tido de que isso poderia causar males à saúde; e) o fato de um indiví-duo decidir ignorar ou não acreditar em advertências e informaçõespúblicas acerca destes riscos é uma questão de livre arbítrio que nãopode ser imputada às fornecedoras.

Adotando essa linha defensiva, parece claro que o fabricantede cigarro:

(......) sempre negou publicamente a mortalpericulosidade do fumo, exaltando até as propriedades inó-cuas dos cigarros, pretendendo ao mesmo tempo invocaro suposto conhecimento ab immemorabilia daquele graveperigo para os consumidores.40

39 Aisha Labi, Tobacco on Trial: THE SMOKING GUN. TIME Magazine. USA, January, 2003, pág.23. No original: As in the U.S., European litigants have been emboldened by recent evidencethat tobacco manufacturers have long known of the harm their product causes. “As Europeansabsorb the fact that the industry was targeting them and lying about the dangers of the products,you’re going to see a lot more suits being filed and being won”, says Richard Daynard, a lawprofessor and president of the Tobacco Products Liability Project in Boston, Massachusetts.40 Idem, pág. 220. No original: (......) ha sempre negato pubblicamente la mortale pericolosità delfumo, ha perfino esaltato le proprietà innocue delle sigarette, ma ha preteso al tempo stesso diinvocare la presunta conoscenza ab immemorabilia di quel grave pericolo da parte deiconsumatori.

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A propósito, não se ponha no oblívio que em 14 de abril de 1994os diretores-presidentes das sete maiores companhias de cigarro dosEstados Unidos41 compareceram, como testemunhas, a uma audiên-cia designada pelo Subcomitê de Saúde e Meio Ambiente, do Comitêde Energia e Comércio da Câmara dos Deputados Norte-Americana.

O presidente dos trabalhos, Representante Henry Waxman (D-CA), quando de sua abertura fez questão de consignar:

A reunião do subcomitê está para começar. Eu pedi-ria aos nossos convidados por favor tomem seus assen-tos. Esta é uma audiência histórica. Pela primeira vez,os diretores chefes de operações das companhias de ci-garros do nosso país estão testemunhando juntos peranteo Congresso dos Estados Unidos. Eles estão aqui porqueeste subcomitê tem jurisdição legislativa sobre essas ques-tões que afetam a nossa saúde. E não há questão de saú-de tão importante quanto fumar.

Às vezes é mais fácil criar uma ficção do que en-frentar a verdade. A verdade é que os cigarros são sim-plesmente o produto de consumo mais perigoso jamaisvendido. Quase meio milhão de americanos morrem anu-almente por causa dos cigarros. Esta é uma estatística qua-se incompreensível que nos deixa perplexos. Imaginem arevolta da nossa nação se dois aviões jumbos lotados depassageiros caíssem todo dia, matando todos a bordo. Ain-da assim, este é o mesmo número de americanos que oscigarros matam a cada 24 horas. Tristemente, este vício mor-tal começa com as nossas crianças. A cada dia 3.000 crian-ças começam a fumar. Em muitos casos, elas se tornam

41 William Campbell, Presidente e Diretor Chefe de Operações da Philip Morris, Estados Unidos;James W. Johnston, Presidente das Organizações e Diretor Chefe de Operações da RJR TobaccoCompany; Joseph Taddeo, Presidente da U.S. Tobacco Company; Andrew H. Tisch, Presidentedas Organizações e Diretor Chefe de Operações da Lorillard Tobacco Company; Edward A.Horrigan, Presidente das Organizações e Diretor Chefe de Operações da Liggett Group Inc.;Thomas E. Sandefur, Presidente das Organizações e Diretor Chefe de Operações da Brown andWilliamson Tobacco Corp.; e Donald S. Johnston, Presidente das Organizações e Diretor Chefede Operações da American Tobacco Company.

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viciadas rapidamente e desenvolvem uma dependência quedura toda vida e é quase impossível rompê-la. Nos últimos30 anos, vários ministros da saúde tem publicado uma sériede relatórios esclarecedores detalhando os perigos queessas crianças eventualmente enfrentarão. Câncer de pul-mão, doenças do coração, enfisema, câncer de bexiga e der-rame, apenas algumas das doenças que o cigarro causa.

E agora nós sabemos que as crianças enfrentarãouma séria ameaça à saúde mesmo que não fumem. A fu-maça ambiental do cigarro é um cancerígeno classe Ae causa doenças em mais de um milhão de criançastodo ano. De fato, cinco ex-ministros da saúde dos Esta-dos Unidos disseram este ano perante este subcomitê quea mais importante legislação sobre prevenção de doençasque nós poderíamos editar seria sobre restrições de fumarem lugares públicos. Este subcomitê logo agirá sobre aque-la legislação e considerará outras medidas também. Estaaudiência ajudará nossos esforços ao nos mostrar umaperspectiva importante. Mas esses testemunhos são ou-trossim relevantes por outra razão. Por décadas, as com-panhias de cigarros têm-se eximido dos padrões deresponsabilidade e sujeição que se aplicam a todas asoutras corporações americanas. Companhias que ven-dem aspirina, carros e refrigerantes estão presas a rígi-dos padrões quando causam dano. Não permitimos queessas companhias vendam produtos que deliberadamenteameaçam os consumidores. Não permitimos que elas su-primam as provas dos perigos quando os danos ocorrem.Não permitimos que elas ignorem a ciência e o bom sen-so. E exigimos – quando esses problemas aconteçam –que as corporações e os seus diretores sejam respon-sabilizados perante o Congresso e o povo.

Esta audiência marca o início de uma nova relaçãoentre o Congresso e as companhias de cigarros. As ve-lhas regras não valem mais. Os padrões que se aplicam

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a qualquer outra companhia agora estão valendo. Estamosansiosos para ouvir o testemunho esta manhã e paratrabalhar com essas companhias para começar a re-duzir a extraordinária ameaça de saúde pública que oproduto delas apresenta. Um antigo ditado popular dizque uma jornada de milhares de milhas deve começar comum simples passo. Hoje estamos dando o nosso primeiropasso. E muitos outros virão enquanto estivermos lidandocom o mais grave problema de saúde enfrentado pela nos-sa nação (g.n.).42

42 Disponível no site www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/settlement/timelines/april94.html.No original: The meeting of the subcommittee will come to order. I’d like to ask our guests toplease take your seats. This is an historic hearing. For the first time ever, the chief executiveofficers of our nation’s tobacco companies are testifying together before the United StatesCongress. They are here because this subcommittee has legislative jurisdiction over thoseissues that affect our health. And no health issue is as important as cigarette smoking. It issometimes easier to invent fiction than to face the truth. The truth is that cigarettes are the singlemost dangerous consumer product ever sold. Nearly a half million Americans die every year as aresult of tobacco. This is an astounding, almost incomprehensible statistic. Imagine our nation’soutrage if two fully loaded jumbo jets crashed each day, killing all aboard. Yet that’s the samenumber of Americans that cigarettes kill every 24 hours. Sadly, this deadly habit begins with ourkids. Each day 3.000 children will begin smoking. In many cases, they become hooked quicklyand develop a lifelong addiction that is nearly impossible to break. For de past 30 years, a seriesof surgeons general have issued comprehensive reports outlining the dangers these childrenwill eventually face. Lung cancer, heart disease, emphysema, bladder cancer and stroke are onlysome of diseases tobacco causes. And now we know that kids will face a serious health threateven if they don’t smoke. Environmental tobacco smoke is a class A carcinogen and it sickensmore than a million kids every year. In fact, five former surgeons general of the United States havesaid before this subcommittee this year that the most important legislation in disease preventionthat we could enact would be restrictions on smoking in public places. This subcommittee willsoon act on that legislation and it will consider other measures as well. This hearing will aid ourefforts by presenting an important perspective. But these hearings are important for anotherreason as well. For decades, the tobacco companies have been exempt from the standards ofresponsibility and accountability that apply to all other American corporations. Companies thatsell aspirin, cars and soda are all held to strict standards when they cause harm. We don’t allowthose companies to sell goods that recklessly endanger consumers. We don’t allow them tosuppress evidence of dangers when harm occurs. We don’t allow them to ignore science andgood sense. And we demand that when problems occur, corporations and their senior executivesbe accountable to Congress and the public. This hearing marks the beginning of a new relationshipbetween Congress and the tobacco companies. The old rules are out. The standards that applyto every other company is in. We look forward to hearing the testimony this morning and toworking with these companies to begin to reduce the extraordinary public health threat that ajourney of a thousand miles must begin with a single step. Today is the first step. Many more areto come as we deal with the most serious health problem facing our nation.

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Tomados os compromissos (juramentos) de dizer a verdade,toda a verdade, nada além da verdade, seguiu-se a inquirição. Omomento crucial surge da pergunta formulada pelo RepresentanteRon Wyden (D-OR), sobretudo em razão das respostas dadas pelastestemunhas. Veja-se:

Representante Ron Wyden (D-OR): (......) eu gosta-ria de começar as minhas indagações pela questão dese a nicotina causa dependência ou não. Deixe-me per-guntar primeiro a você, e então eu gostaria que os outrosem seqüência também respondessem, se cada um devocês acredita que a nicotina não causa dependência. Eu jáouvi todos vocês abordar este tema. Apenas sim ou não.Vocês acreditam que a nicotina não causa dependência?

Sr. Campbell: (?) Eu acredito que a nicotina não cau-sa dependência, sim.

Representante Wyden: Sr. Johnston?

Sr. Johnston: Congressista, os cigarros e a nicotinaclaramente não se enquadram nas clássicas definições dedependência. Não há intoxicação.

Representante Wyden: Nós consideraremos istocomo um não, e novamente, o tempo é curto. Se vocêsapenas puderem apenas – eu acho que cada um de vocêsacredita que a nicotina não causa dependência. Tão-sógostaríamos que isso ficasse registrado.

Sr. Taddeo: (?) Eu não acredito que a nicotina ou nos-sos produtos causem dependência.

Sr. Horrigan (?) Eu acredito que a nicotina não causadependência.

Sr. Tisch: (?) Eu acredito que a nicotina não causadependência.

Sr. Sandefur: (?) Eu acredito que a nicotina não cau-sa dependência.

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Sr. Donald Johnston: (?) E eu, também, acredito quea nicotina não causa dependência.43

Sedutor, aos ouvidos predispostos, o jogo de palavras das com-panhias de tabaco, mas a quem elas pretendem convencer que só em1999, após a edição da MP 2.039 e da Portaria 695, tomaram conheci-mento de que a nicotina é droga e causa dependência, nada obstantea acurada percepção para aquilo que chamam, sem nenhuma timi-dez, de fator de risco, além da notória tecnologia de ponta de seuslaboratórios, ao menos se espera que assim seja.

Afinal, desde 1988, graças à Portaria nº 490, editada pela UniãoFederal (!), já sabiam as companhias de tabaco que fumar é prejudici-al à saúde; porém, mesmo assim e mais uma vez, coube ao Estado(Ministério da Saúde) impor uma informação mais clara e honesta,princípio básico e elementar da atividade econômica.

Por que as fornecedoras, em nome próprio, reconhecendo os efei-tos nocivos do produto, não fizeram registrar na publicidade e nos maçosdos seus cigarros: A companhia tal adverte: fumar é prejudicial à saúde?

Jamais!

Por que nenhuma das grandes companhias de tabaco norte-americana assumiu, em 1994 (cinco anos antes da esclarecedora ereveladora Medida Provisória brasileira), que a nicotina é droga e cau-sa dependência?

Por que se limitam a sustentar uma larga difusão dos riscos paraa saúde associados ao cigarro (v.g., governos, entidades e profissio-

43 Idem. No original: Rep. Ron Wyden (D-OR): (......) Let me begin my questioning on the matter ofwhether or not nicotine is addictive. Let me ask you first, and I’d like to just go down the row,whether each of you believes that nicotine is not addictive. I heard virtually all of you touch onit. Just yes or no. Do you believe nicotine is not addictive? Mr. Campbell: (?) I believe nicotineis not addictive, yes. Rep. Wyden: Mr. Johnston? Mr. Johnston: Congressman, cigarettes andnicotine clearly do not meet the classic definitions of addiction. There is no intoxication. Rep.Wyden: We’ll take that as a no and, again, time is short. If you can just – I think each of youbelieve nicotine is not addictive. We just would like to have this for de record. Mr. Taddeo: (?) Idon’t believe that nicotine or our products are addictive. Mr. Horrigan: (?) I believe nicotine is notaddictive. Mr. Tish: (?) I believe that nicotine is not addictive. Mr. Sandefur: (?) I believe that

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nais da área médica, escolas, autoridades escolares, mídia, jornais erevistas populares), mas em nenhum momento justificam as compa-nhias de tabaco o silêncio por tantos anos!

A resposta é uma só: falta de transparência e de lealdade paracom o consumidor (supra, itens 4 e 5), descaradamente enganado pordécadas, quiçá séculos, vilipendiado na sua confiança.44

Mascarar essa verdade é o mesmo que esconder os raios sola-res do meio-dia com uma peneira por onde passa um foguete.

Referindo-se à recente adequação dos ditames traçados pelaComunidade Européia, discorre Marcello D. Stalteri:

(......) não se pode certamente apagar com uma pas-sada de esponja os culpáveis e talvez cúmplices atrasosdo passado. Aqui a escolha do silêncio, em matéria de ad-vertências, deixando os consumidores – inclusive os maisatentos e conscientes – com alguma dúvida sobre a realgravidade dos riscos assumidos, pelo menos em relaçãoao tipo e à quantidade de produto consumido, encontra ime-diata resposta em termos de maior volume de vendas, con-seqüentemente mais benefícios econômicos para o fabri-cante. Tal procedimento, culposo ou doloso, pouco importa,não poderia eximir o fabricante de responsabilidade (......).

Cumpre efetivamente admitir que há, entre os fabri-cantes de cigarro, o clássico prisoner’s dilemma: nenhumdeles daria o primeiro passo na busca de uma maior trans-parência sobre os riscos do uso do produto, se não tivessecerteza de ser logo imitado pelos próprios concorrentes.45

44 Segundo Marcello D. Stalteri, essa violação atinge a mais comezinha das obrigações dequalquer fabricante: não enganar o consumidor (duty not to deceive). (......) a atitude nadatransparente e correta dos fabricantes de cigarros a respeito da efetiva publicidade dos reaisriscos enfrentados pelos fumantes. a:Ibidem, págs. 218 e 224. No original: (......) in quanto sirientra più in generale nell’obbligo, gravante su qualsiasi produttore, di non ingannare ilconsumatore (duty not to deceive). (......) infatti, l’atteggiamento per nulla transparente e correttodei produttori di sigarette circa l’effettiva pubblicizzazione dei reali rischi corsi dai fumatori.45 Ibidem, págs. 187 e 224. No original: (......) non può certo cancellare con un colpo di spugnai colpevoli e forse complici ritardi del passato. Qui la scelta del silenzio in materia di avvertenze,lasciando i consumatori – anche quelli più attenti e consapevoli – con un margine di dubbiosulla reale gravità dei rischi assunti, anche in relazione al tipo ed alla quantià di produtto

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Claro como o sol que reluz o abuso de direito.

Mister se faz, neste passo, trazer à colação o magistério de Sil-vio Rodrigues no que tange à hipótese sub examine:

Acredito que a teoria atingiu seu pleno desenvolvi-mento com a concepção de Josserand, segundo a qual háabuso de direito quando ele não é exercido de acordo coma finalidade social para a qual foi conferido, pois, como dizeste jurista, os direitos são conferidos ao homem para se-rem usados de uma forma que se acomode ao interessecoletivo, obedecendo à sua finalidade, segundo o espíritoda instituição.46

Posto que remonte ao direito romano as primeiras divagaçõessobre o tema47, o abuso de direito ganha status legislativo no novoCódigo Civil, ex vi de seu artigo 187. Vejamo-lo:

Também comete ato ilícito o titular de um direito que,ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impos-tos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pe-los bons costumes.

Força é concluir que um dos maiores abusos possível de ser pra-ticado pelas fabricantes de cigarro (ávidas na busca de lucros) é a omis-são deliberada dos fatores prejudiciais à saúde dos seus consumido-res, inexoravelmente vinculados ao consumo do tabaco e da nicotina.

consumato, trova un immediato riscontro in termini di maggiori vendite, quindi di maggiori beneficieconomici per il produttore. Tele comportamento, colposo o doloso meno importa, non dovrebbeesimere il produttore da una responsabilità, (......) Va in effetti riconosciuta l’esistenza di unclassico prisoner’s dilemma all’interno della categoria dei produttori di sigarette: nessuno farebbeil primo passo nella direzione di una maggiore transparenza sui rischi associabili all’uso delprodotto, se non avesse la certezza di venire súbito imitato dai propri concorrenti.46 Direito Civil, Parte Geral. 32ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, volume 1, pág. 321.47 Lembra Silvio Rodrigues, idem, pág. 319: “Embora em sua forma atual seja recente a concepçãode abuso de direito, o espírito, que inspira a teoria, já se encontrava na velha Roma. No estudo deseu histórico, feito no 2º Capítulo de seu excelente livro sobre a matéria (Do abuso do direito noexercício da demanda, São Paulo, 1932), Jorge Americano mostra que a primeira impressão quese tem ao examinar textos antigos – de que os romanos desconheciam a idéia de abuso de direito,pois nullus videtur dolo facere qui suo jure utitur – é destruída por uma observação mais atenta. Defato, só a noção de abuso de direito pode conduzir à condenação de seu absolutismo, o que seencontra na palavra de Cícero (De Officis, 1,10), summum jus, summa injuria, ou na fórmula malitiisnon est indulgendum, a qual condena não só os atos praticados à margem do direito, comotambém aqueles praticados abusivamente.

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Note-se que o dever de bem informar, antes de jurídico, é moral e suanão observância tisna, sem sombra de dúvida, o maior fim social queo exercício de um direito pode almejar: o respeito à dignidade da pes-soa humana.

O procedimento se afasta, pois, da boa-fé objetiva e, só por isso,já se equipara a ato ilícito e gera o dever de indenizar, independente-mente da existência de dano concreto.

É dizer: a mera violação de um direito subjetivo tutelado pela lei(v.g., adequada e correta informação) – mormente se instituído visan-do à preservação de atributo da personalidade ou da dignidade da pes-soa humana (v.g., saúde) – é passível de reparação compulsória.

Outro aspecto de relevo a ser destacado é o relativo àinformação. Já o dissemos, informação é elemento inerenteao produto (e ao serviço). Dessa maneira, o consumidorpode sofrer dano por defeito não necessariamente do pro-duto, mas da informação inadequada ou insuficiente que oacompanhe ou, ainda, pela falta de informação. A lei nãomenciona esta última hipótese, mas ela é decorrente dasoutras duas. Se a informação insuficiente pode gerar dano,sua ausência total, por mais força de razão, também.48

Como uma luva, mais uma vez, cabe a intervenção de NelsonNery Júnior e de Rosa Maria Andrade Nery:

8. Abuso do direito. Natureza e características. Écategoria autônoma, de concepção objetiva e finalística, enão apenas dentro do âmbito estreito do ato emulativo (atoilícito). Diferentemente do ato ilícito, que exige a prova dodano para ser caracterizado, o abuso de direito é aferívelobjetivamente e pode não existir dano e existir ato abusivo(Guilherme Fernandes Neto, O abuso de direito no Códigode Defesa do Consumidor, 1999, p. 200). O abuso de direi-to é aferível de modo objetivo, prescindindo do dolo ou cul-pa e também do dano para caracterizar-se.49

48 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, ibidem, pág. 162.49 Ibidem, pág. 110.

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6.3 A questão da publicidade e das advertências

Avulta da realidade instalada, rogando-se os elementos até aquicolhidos, que não é possível sustentar-se: a) uma inexigibilidade ouuma impossibilidade legal de prover informações e advertências dis-tintas das que são impostas pela lei e pelos atos normativos federais;b) a inexistência do dever jurídico de informar ou de advertir com cláu-sulas diversas das que eram ditadas pela legislação; c) a legitimidadeda publicidade das companhias de tabaco.

Ao invés de cumprir sua obrigação primária: bem informar e, as-sim, não enganar o consumidor – o que certamente nada tem a vercom a legislação e os critérios de cada época, muito menos com umasuposta aplicação retroativa da lei, as companhias de tabaco explo-ram a ignorância e a boa-fé dos consumidores.

(......) A pressão exercida pelos grandes produtoresfoi uníssona em tal sentido: a partir dos anos 40 e 50, pro-curam atribuir aos cigarros algo de fascínio e de graça pes-soal e coletiva, utilizando com astúcia as mais agressivastécnicas publicitárias, afinadas com a literatura cinemato-gráfica americana daquelas décadas, que pintava o produ-to como companheiro inseparável de vida dos protagonis-tas da grande tela.

Os cigarros eram considerados nessa época verda-deiro bem de consumo inócuo, tanto nos Estados Unidoscomo em outros lugares: na Itália a sua inclusão na “cestabásica” de despesa de uma família normal, visava a apu-rar o índice de inflação. Não devemos esquecer, além domais, que, para os soldados, têm os cigarros sido há mui-to reputados parte indispensável da ração diária, juntamentecom bolachas e lataria diversa.50

50 Marcello D. Stalteri, ibidem, págs. 189/190. No original: La spinta esercitata dai grandi produttoriè estata univoca in tal senso: a partire dagli anni 40 e 50, essi cercarono di attribuire alle sigaretteuna dose di fascino e di piacevolezza personale e collettiva, utilizzando sapientemente le piùaggressive tecniche pubblicitaire, senza neppure trascurare la letteratura cinematografica ameri-

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Registre-se, neste particular, que o jornal Folha de São Paulo, nasua edição de 03-12-2002, noticiou:

A União Européia aprovou ontem, em Bruxelas (Bél-gica), a proibição da propaganda de produtos derivados detabaco em jornais, em revistas e na internet a partir de 2005e em eventos esportivos internacionais a partir 2006. A proi-bição vale para todos os países-membros do bloco.

6.4 Um histórico de respeito à lei

Tal realidade poderia ser classificada como um exemplo típicode inexigibilidade de conduta diversa. Ou, em outras palavras, se nãodá mais para enganar ou para mascarar o todo, como sempre foi feito,contenta-se com a fração não disciplinada pela lei (lato sensu); aliás,infinitamente maior, até porque, de modo proporcional e por incrívelque pareça, diminui-se a tutela do consumidor.

Quanto maior o número de regulamentos normativos menor seráa proteção, pois as companhias de tabaco certamente se limitarão aocumprimento exato e mínimo das regras impostas (cf., a desproporcio-nalidade entre a duração das advertências e a da própria mensagempublicitária), ao mesmo tempo que os consumidores – agora com legi-timidade – carregam sozinhos o fardo da sua natural ignorância, dafalta de transparência e da deliberada violação da boa-fé objetiva.

Esse resultado foi apreendido pela arguta pena de Marcello D.Stalteri, da Universidade de Firenze:

Os efeitos de tais intervenções do legislador foram pa-radoxalmente contraproducentes para os consumidores emmatéria de tobacco litigation: salvo as dúvidas suscitadasacerca da mesma admissibilidade dos recursos contra o

cana di quegli anni, pronta a dipingere il prodotto quale compagno constante di vita dei protagonostidel grande schermo. La sigarette erano consideate in quell’epoca um vero e proprio bene diconsumo innocuo tanto negli Stati Uniti che altrove, come testimonia in Italia la loro inclusione nelpaniere di spesa di uma normale famiglia, allo scopo di determinare il saggio d’inflazione. Non vadimenticata, inoltre, che per i soldati le sigarette sono state a lungo una parte immancabile dellarazione giornaliera di vettovagliamento, alla pari di gallette o scatolame vario.

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fabricante de cigarros (preemption), hoje resolvidas gra-ças ao caso Cipollone, o aparecimento de tais advertênci-as acabava por influenciar negativamente a possibilidadede invocar a ignorância do consumidor médio sobre os ris-cos do fumo. Surgido para tutelar o sujeito mais fraco, di-tas providências voltaram-se contra estes, restringindo asmargens de um recurso vitorioso na medida inversamenteproporcional seja à clareza, seja à incisividade das adver-tências feitas nos maços de cigarros.51

Reza o § 4º, do artigo 220 da Constituição Federal:A propaganda comercial de tabaco, bebidas alco-

ólicas, agrotóxicas, medicamentos e terapias estará sujei-ta a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafoanterior, e conterá, sempre que necessário, advertênciasobre os malefícios decorrentes do seu uso (g.n.).

Quando é necessário respeitar a dignidade da pessoa humana,sua saúde inclusive?

Quando é necessário respeitar os valores sociais da livre iniciativa?Quando é necessário respeitar a solidariedade?Quando é necessário respeitar e defender o consumidor?Apenas o sempre responde a essas indagações.À evidência, não se exige lei para tal compreensão.Muito pelo contrário, pois a boa-fé objetiva que orienta (hoje e

sempre) as relações de consumo, derivada do respeito inexorável aobinômio transparência/confiança (supra, item 5), ainda que sem impo-sição normativa, recomendava a adoção de uma postura tal qual a

51 Idem, pág. 203. No original: Gli effetti di tali interventi del legislatore sono stati paradossalmentecontroproducenti per i consumatori in materia di tobacco litigation: a parte i dubbi suscitati circala stessa ammissibilità dei ricorsi contro il produttore di sigarette (cd. preemption) dubbi oggirisolti al caso Cipollone, la comparsa di quelle avvertenze finiva com l’influenzare negativamen-te la possibilita di invocare l’ignoranza del consumatore medio sui rischi del fumo. Nati a tuteladel soggetto più debole, quei provvedimenti gli si ritorcevano addirittura contro, restringendo imargini di um ricorso vittorioso in mistura inversamente proporzionale sai allá chiarezza che alláincisività delle avvertenze apposte sulle confezioni di sigarette.

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insculpida pelo legislador de 1990 no artigo 10, caput, c.c. seu § 1º, doCódigo de Defesa do Consumidor. Confira-se:

O fornecedor não poderá colocar no mercado de con-sumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apre-sentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúdeou segurança.

O fornecedor de produtos e serviços que, posterior-mente à sua introdução no mercado de consumo, tiver co-nhecimento da periculosidade que apresentem, deverá co-municar o fato imediatamente às autoridades competentese aos consumidores, mediante anúncios publicitários.

Como se admitir, então, um argumento no sentido de que ascompanhias de tabaco sempre seguiram rigorosamente as determi-nações normativas, tanto as veiculadas em portarias como as que sematerializaram na lei vigente, incluindo todas as cláusulas de adver-tência por elas exigidas ao longo do tempo.

Somente cumpriram, no mínimo exigido, a obrigação legal (ouregulamentar), mas daí a inferir uma total isenção quanto aos desdo-bramentos nocivos causados pela sua atividade de risco, contraria-mente ao que entendem as companhias de tabaco, vai muito longe.

Será (?) que foi o texto dos reveladores e esclarecedores atosnormativos já mencionados (Medida Provisória nº 2.039, reeditada 18vezes, e a Portaria nº 695, de 1º de junho de 1999), a fonte da necessi-dade de se avisar que:

Fumar causa câncer de pulmão;

Fumar provoca infarto do coração;

A nicotina é droga e causa dependência;

Fumar causa impotência sexual;

Crianças começam a fumar ao verem os adultos fumando.

Bem que as companhias de tabaco tentam direcionar essa con-clusão; mas, sem nenhum sucesso.

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Os fabricantes, na realidade, melhor do que qualqueroutro poderiam concorrer com as autoridades sanitáriasem conseguir alcançar os indispensáveis objetivos de pre-venção na matéria. Limitando-se à aposição de advertên-cias previstas pela lei, estes continuaram a achar poucoconveniente propagar os efeitos danosos do produto, emuito menos investir seja na pesquisa relativa a modelosde patologias ligadas ao fumo, seja na introdução de even-tuais intervenções dirigidas à interrupção daquele modeloacentuado de consumo, que aumenta em maneira geomé-trica os riscos de danos.52

No entanto:

(......) em Países como os Estados Unidos – onde apublicidade do produto ainda é admitida – as tobaccocompanies recorreram a técnicas de convencimento aindamais subliminares e sofisticadas, tendentes a associar oproduto a imagens de saúde e de juventude, afastando aomesmo tempo do consumidor o impacto das advertênciassobre a periculosidade do fumo.53

Saliente-se, em arremate deste tópico, que a falta de publicidadenos países do antigo bloco comunista também não interfere na proble-mática, pois, no concernente aos esclarecimentos sobre males do fumo,estavam eles em pé de igualdade com as demais nações, niveladospela omissão e pela falta de transparência dolosas.

52 Id., ibidem, pág. 228. No original: I produttori, in realtà ,meglio di chiunque altro potrebberoconcorrere con le autorità sanitarie al raggiungimento degli indispensabili obbiettivi diprevenzione in materia. Limitandosi all’apposizione delle avvertenze previste per legge, essihanno continuato a trovare poço conveniente propagandare gli effetti dannosi del prodotto, etantomento investire sai nella ricerca relativa ai modelli di patologie legate al fumo, sai nellaintroduzione di eventuali interventi mirati allá interruzione di quel modello accentuato di consu-mo, che aumenta in maniera geometrica i rischi di danno.53 Idem, pág. 188. No original: (......) in Paesi come gli Stati Uniti – dove la pubblicità del prodotto èancora ammessa – lê tobacco companies hanno fatto ricorso a tecniche di convincimento ancor piùsobdole e sofisticate, tese ad associare il ptodotto ad immagini di salubrità e di giovinezza,allontanando al tempo stesso dal consumatore l’impatto delle avvertenze sulla pericolosità del fumo.

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6.5 A questão do livre-arbítrio

Fala-se muito em livre-arbítrio, mas, sinceramente, o usuário deuma droga (nicotina) que causa dependência exerce liberdade ou su-cumbe à sua necessidade (supra, item 3)?

Embora se possa até admitir – ignorando-se as décadas de maci-ça publicidade glamourosa, cuja influência negativa jamais poderá sernegada em sã consciência – que a decisão de fumar é fruto de umaliberdade pessoal, quem, fora as companhias de tabaco poderiam sus-tentar o insustentável:

Exercida por um público esclarecido;Uma escolha voluntária e consciente;Tal decisão é tão individual quanto a de deixar de fumar;Não existe coisa alguma no cigarro (inclusive a nicotina)que obrigue alguém a optar por uma ou outra conduta;Os fumantes não se tornam intoxicados nem fisicamentedependentes;Tudo não passa de uma questão de motivação pessoal.Nada mais é preciso. Só força de vontade.

Esclarecido de que?Consciente de que?Alguém realmente acredita que se pára de fumar do dia para

noite, tal qual se acende um cigarro atrás do outro?E a nicotina, droga que gera dependência?E os prazerosos efeitos sensoriais que as pessoas comprovada-

mente experimentam ao fumar?

E a manipulação da nicotina para aumentar, artificialmente, suaabsorção pelo organismo (pulmões, cérebro e sistema nervoso cen-tral); efeito decorrente da utilização de amônia num processo conheci-do como reforço de impacto?

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Em que galáxia o fumo não causa intoxicação?Motivação pessoal e força de vontade contra dependência quí-

mica, que paridade de armas!Depois que o estrago está feito, pouco há se fazer!Mas a precisa intervenção de Marcello D. Stalteri põe às claras a

situação:(......) no caso dos cigarros existe plena imunidade

da qual gozam até hoje os fabricantes, mesmo se há decê-nios circulem dados sobre a gravidade dos males à saúdedos fumantes. Seria simplismo, entretanto, tentar explicartal imunidade com o clássico argumento da ausência deum dano contra ius a alguém que, perfeitamente ciente dosperigos a que se sujeita, consumindo o produto de manei-ra prolongada, decida livremente enfrentar o risco.

(......)Os efeitos de dependência causados pela nicotina,

por outro lado, facilitam o jogo dos fabricantes de cigarros,tornando os consumidores menos atentos e sensíveis aosavisos da ciência médica.54

Se a nicotina não pode ser apontada como o motivo primáriopelo qual as pessoas fumam, por certo, ao causar dependência quími-ca, representa o maior obstáculo para a interrupção do vício.

6.6 Inimputabilidade de eventuais danosàs companhias de tabaco: assunção de riscocomo excludente de responsabilidade

Vencidas as teses do exercício de uma liberdade e da ampla eadequada informação sobre os malefícios do fumo, resta às fabrican-tes de cigarro o argumento fundado numa fictícia assunção de risco.

54 Idem, págs. 07 e 11. No original: (......) nell caso delle sigarette va riscontrata la totale immunitàdella quale hanno goduto fino ad oggi i produttori, anche se da decenni ormai circolano i datisulla gravita dei danni allá salute per i fumatori. Simplicistico sarebbe, tuttavia, tentare dispiegare tale immunità con il classico argomento dell1assenza di un danno contra ius per couli

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Como se falar em assunção se o risco não é – tal qual deveria ser– conhecido em sua plenitude (transparência e adequada informação)?

Como se falar em assunção se o risco é exclusivo do fornece-dor e não pode ser transferido a ninguém?

Desde essa primeira fase da história da tobaccoproducts liability notamos outrossim a presença de ulte-rior elemento, fundamental para o futuro curso da maté-ria: as cortes se mostraram reticentes em condenar ofabricante, reportando-se ao argumento da assunção dorisco pelo consumidor. O fumante vinha sendo conside-rado, na realidade, muito perspicaz para poder compreen-der que ditas mensagens promocionais eram artificiosas,senão falsas: não se importando com os efeitos de depen-dência da nicotina, o fumante poderia livremente ter dei-xado de fumar, assumindo para si em caso contrário todaa responsabilidade sobre os futuros reveses que se ma-nifestaram em seu prejuízo.

(......)Enfim, com demasiada freqüência pesam sobre as

opções do consumidor as características aditivas do pro-duto, a influência dos modelos de comportamento socialdifíceis de superar, graças também às técnicas de persua-são publicitária, ainda hoje exercidas com sucesso pelastobacco companies.

Se tais circunstâncias fossem avaliadas de maneirapreponderante em relação ao tradicional e simplista argu-mento da assunção do risco, seria mais fácil admitir umacompensation às vítimas do fumo.55

il quale, essendo perfettamente al corrente dei pericoli incorsi assumendo il prodotto in manieraprolingata, decida liberamente di affrontare il rischio. (......) Gli effetti di dipendenza causatidalla nicotina, d’altro canto, facilitano il gioco dei produttori di sigarette, rendendo i consumatorimeno attenti e sensibili ai richiami della scienza medica.55 Idem, ibidem, págs. 199 e 236/237. No original: Sin da questa prima fase della storia dellatobacco products liability notiamo anche la presenza di un ulteriore elemento, fondamentale peril corso futuro della materia: le corti si sono mostrate restie a condannare il produttore,richiamandosi all’argomento dell’assinzione del rischio da parte del consumatore. Il fumatoreveniva ritenuto in realtà così perspicace, da poter comprendere in via autônoma di giudizio chequei messaggi promozionali fossero artificiosi, se non addirittura falsi: incurante degli effetti di

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O desconhecido e exclusivo risco é mesmo só das fornecedoras.

6.7 Nexo causal como requisito da obrigação de indenizar

O grande sustentáculo das companhias de tabaco neste porme-nor é a tentativa de estabelecer uma diferença entre fator de risco ecausa, como se isso tivesse o efeito liberatório pretendido; porém, ol-vidam que para sua responsabilização civil basta o risco (supra, item6.1), aliás, inerente à sua atividade econômica.

Até o novo Código Civil é incisivo nessa matéria.56

Os cigarros, na realidade, pertencem a uma catego-ria totalmente particular, isto é, a dos produtos ditos“unavoidably unsafe per se”, para os quais foi impossívelevitar de maneira absoluta o risco dos danos, embora se-jam estes usados com todas as precauções possíveis.57

No que tange aos problemas de saúde, os consumidores basi-camente afirmam que eles foram adquiridos e agravados pelo usodo cigarro. Trata-se de duas articulações fáticas distintas que não seconfundem.

São, pois, autônomas e independentes.

Ora, conquanto se admita a tese de ser o fumo apenas um ino-cente fator de risco para a aquisição de inúmeras patologias, é certo

dipendenza dalla nicotina, questi avrebbe produto smettere liberamente di fumare, accollandosiin caso contrario tutta la responsabilità sulle future vicende manifestatesi a suo danno. (......)Infine, troppo spesso pesano sulle scelte del consumatore sai lê caratteristiche addittive delprodotto, sai l’influenza di modelli di comportamento sociale difficili da superare, grazie anchealle tecniche di convincimento pubblicitario, ancora oggi esercitate com sucesso dalle tabaccocompanies. Se queste circostanze fossero valutate in maniera prevalente rispetto al tradizionalee semplicistico argomento della assunzione del rischio, sarebbe più facile ammettere umacompensation per le vittime del fumo.56 CC/02, arts. 927, parágrafo único, c.c. 931.57 Marcello D. Stalteri, ibidem, pág. 209. No original: Le sigarette, in realtrà, appartengono aduna categoria del tutto particolare, quella dei prodotti ed. “unavoidably unsafe per se”, per iquali risulta impossible evitare in maniera assoluta il rischio di danni, ance se èssi venganoadoperati con tutte le precauziono possibili.

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que compromete a saúde do fumante, e tal vínculo – ainda que genéri-co – é suficiente para condicionar seu efeito prejudicial (CPC, arts.334, I c.c. 335).

Pode até não ter sido mesmo a causa originária da doença58;mas isso não importa, visto que funcionou como causa do agrava-mento do estado clínico do consumidor doente, circunstância aferíveldiante das particularidades de cada caso concreto.

Aí está outro alicerce do dever de indenizar.O agravamento do estado de saúde é per se um dano.Irrelevante é, assim, discutir-se a origem da doença.Claro como o sol que reluz o nexo causal.O dano é um só: comprometido estado de saúde do consumidor

no seu atual estágio; assim, a hipótese, quando muito, seria deconcausa simultânea e não concausa sucessiva.

A teoria do nexo causal encerra dificuldades porque,em razão do aparecimento de concausas, a pesquisa daverdadeira causa do dano nem sempre é fácil. Essas con-causas podem ser sucessivas e simultâneas. Nas últimas,há um só dano, ocasionado por mais de uma causa. É a hipó-tese de um dano que pode ser atribuído a várias pessoas.59

Infere-se, portanto, que o atual estágio de comprometimento dasaúde do consumidor – prejudicada pelo fumo – decorre direta e ime-diatamente do consumo de cigarros.

Sendo no mínimo fator de risco (como querem as companhiasde tabaco), o consumo de cigarros não implica na ruptura do liame de

58 Idem, pág. 184: Não devem ser desprezadas, todavia, as graves conseqüências vaso-circulató-rias, nem os danos sofridos pelo feto humano, no caso particular em que as fumantes sejammulheres gestantes. Não é difícil imputar propriamente ao fumo patologias assim graves: além danicotina e do alcatrão em relevante quantidade, os cigarros contêm mais de duas substâncias denatureza cancerígena, entre as quais os pesticidas usados no cultivo do tabaco. No original:Non vanno assolutamente trascurate, tuttavia, le gravi conseguenze vaso-circolatorie, nonché idanni subiti dal feto umano, nel caso particolare che a fumare siano donne incinte. Non èdifficile imputare proprio al fumo patologie così gravi: oltre a nicotina e catrame in rilevantequantità, le sigarette contengono altre duemila sostanze di natura carcinogenica, tra cui ipesticidi usati nella coltivazione del tabacco.59 Carlos Roberto Gonçalves. Responsabilidade Civil. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994,pág. 371.

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desdobramento natural da relação de causa e efeito, ao revés, atuacomo eficaz agente acelerador à medida que debilita a saúde do fu-mante. E isso é irrefutável.

Quanto à teoria da interrupção do nexo causal, de medular im-portância não se perder de vista a precisa advertência de CarlosRoberto Gonçalves:

Mas, segundo reconhece o próprio Agostinho Alvim,a teoria da necessariedade da causa não tem o condão deresolver todas as dificuldades práticas que surgem, em-bora seja a que de modo mais perfeito e mais simples cris-talize a doutrina do dano direto e imediato, adotada pelonosso Código. Enneccerus, por sua vez, pondera: “A difícilquestão de saber até onde vai o nexo causal não se poderesolver nunca, de uma maneira plenamente satisfatória,mediante regras abstratas, mas em casos de dúvida o juizhá de resolver segundo sua livre convicção, ponderandotodas as circunstâncias, segundo lhe faculta o § 287 doLPC” (lei processual alemã).60

E alerta Marcello D. Stalteri:(......) Em face dos casos de exposição múltipla das

vítimas a substâncias tóxicas, nenhuma das quais passí-vel de ser considerara causa exclusiva do dano, mesmoem virtude dos inevitáveis fatores naturais que concorrempara o resultado patológico, a escolha tem-se revelado sem-pre mais no sentido da procura de um conceito de causali-dade sobre a base provável e estatística: a substantialconnection entre agente tóxico e dano poderá ser demons-trada à vista dos elementos probatórios, que possam indu-zir o júri a considerar que a existência do fato contestado émais provável do que sua inexistência.61

60 Idem, pág. 374.61 Ibidem, págs. 222/223. No original: (......) Di fronte a casi di esposizione multipla dei danneggiatia sostanze tossiche, nessuna delle quali da considerare causa esclusiva del danno, anche invirtù degli inevitabili fattori naturali che concorrono arealizzare l’evento patologico, la scelta èstata sempre più quella di muovere verso un concetto di causalità su base probabilistica estatistica: la substantial connection tra agente tossico e danno potrà essere provata grazie adelementi probatori, i quali inducano la giuria a ritenere che the existence of the contested fact ismore probable than its not existence.

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Pode até ser que não exista nenhuma doença que ocorra apenasem fumantes e não ocorra em não fumantes, mas pelo menos, graçasaos reveladores e esclarecedores atos normativos mencionados (Medi-da Provisória nº 2.039, reeditada 18 vezes, e a Portaria nº 695, de 1º dejunho de 1999), hoje se tem a certeza (!) que fumar causa câncer depulmão, impotência sexual e provoca infarto do coração.

Na tentativa de desviar o foco central da discussão, as grandescompanhias de tabaco procuram outorgar uma inexistente relevânciaao histórico pessoal, médico e familiar do consumidor, tal qual fazempelo mundo afora.

O Tobacco Institute tem tido um papel importante tam-bém em sede processual, no que diz respeito aos compor-tamentos uniformes a serem adotados contra aqueles queporventura tenham ousado pleitear ressarcimento. Com talescopo, sem se importar com despesas, foi criado umnetwork permanente entre estudos legais e um grupo deconsultores técnicos, utilizados sabiamente em sede pro-cessual para contradizer, contra toda evidência científica,o nexo etiológico entre o fumo e o dano à saúde.

Os fabricantes tem sobretudo procurado desfrutar aomáximo as vantagens relativas à notável disparidade demeios econômicos em relação aos consumidores. Em par-ticular, uma constante técnica dilatória na fundamental fasepré-debate (pretrial), utilizada para percorrer minuciosamentea vida passada da vítima dos danos com o escopo de en-contrar um nexo etiológico diverso do fumo, servindo paraalongar os tempos processuais e a enxugar portanto os cer-tamente mais limitados recursos dos consumidores.62

62 Marcello D. Stalteri, ibidem, pág. 193. No original: Il Tobacco Institute ha avuto un ruoloimportante anche in sede processuale, per quel che riguarda i comportamenti uniformi da adottarecontro coloro che avessero osato invocare un risarcimento. A tale scopo, senza badare a spese,è stato creato um network permanente tra studi legali ed um grupo di consulenti tecnici, sapien-temente utilizzato in sede processuale per contraddire, contro ogni evidenza scientifica, ilnesso eziologico tra fumo e danno allá salute. I produttori hanno sopattutto voluto sfruttare almassimo i vantaggi relativi allá notevole disparità di mezzi economici rispetto ai consumatori. Inparticolare, uma costante tecnica dilatoria nella nella fondamentale fase predibattimentali(pretrial) utilizzata per ripercorrere minuziosamente la vita passata dei danneggiati allo scopo ditrovare um nesso eziologico diverso dal fumo, è servita ad allungare i tempi processualli, ed aprosciugare quindi le certo più limitate risorse dei consumatori.

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6.8 Possibilidade de consumo de diferentes marcas

A premissa maior, aqui, avulta da condição de fumante ostenta-da pelo consumidor; logo, sobre isso nada pode ser ventilado ou aceitopena de nítida incompatibilidade argumentativa.

Considerando que o cigarro é um produto de consumo bem po-pular, é praticamente impossível que um fumante jamais se tenha va-lido de uma das marcas disponibilizadas pela companhia de tabacoeleita para o pólo passivo da ação reparatória (CPC, art. 335).

Ainda que o consumidor também tenha fumado cigarros não pro-duzidos por essa determinada empresa, nenhuma relevância concretahá na fixação do dever de indenizar, pois isto encerra típica responsabili-dade solidária (CDC, arts. 7º, parágrafo único, c.c. 25, § 1º, c.c. CC/1916,art. 1.518, parágrafo único, c.c. CC/2002, art. 942, parágrafo único).

Mesmo na hipótese de consumo ao mesmo tempo de diversasmarcas de cigarros, seria possível considerar solidariamente respon-sáveis todos os fabricantes que venderam o produto para determinadosujeito, se bem que em medida proporcional à quantidade ou à dura-ção do consumo.63

Nessa linha de pensamento por igual se orienta Roberto SeniseLisboa:

Se mais de um fornecedor tiver concorrido para acausação do dano, a responsabilidade civil pelo prejuízomoral puro ou cumulado com o dano patrimonial recairásobre todos eles, segundo a sua participação no evento.

A responsabilidade perante o consumidor é, nestecaso, solidária, por expressa disposição legal (art. 7º, par.Ún., da Lei 8.078/90), viabilizando-se em prol do fornece-dor que proceder ao pagamento da indenização o direito

63 Idem, pág. 223. No original: Anche nell’ipotesi di consumo nel tempo di diverse marche disigarette, serebbe possibile considerare solidalmente responsabili tutti i produttori che hannovenduto il prodotto a quel determinato soggetto, seppure in misura proporzionale a quantità odurata del consumo.

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de regresso em face dos demais fornecedores que partici-param para o fato.64

Impende frisar, no entanto, que tal acertamento (CDC, art. 13, pa-rágrafo único65) constitui res inter alios e, por isso, não pode prejudicar oconsumidor-vítima. As companhias de tabaco, havendo interesse, hãode resolver suas pendências financeiras em sede própria.

Em se tratando de ofensa ou violação ao direito deoutrem, desnecessária a detalhada apuração da parcelade responsabilidade de cada um dos demandados. Emação regressiva entre os responsáveis, o grau de respon-sabilidade de cada um poderá ser apurado.66

6.9 Risco do produto segundo o Código de Defesa doConsumidor

Em que pesem os respeitáveis entendimentos em sentido con-trário, o rol estatuído no artigo 12, caput, da Lei nº 8.078/90 é numerusapertus; e não poderia ser de outra forma sob pena de se comprome-ter a ampla e a irrestrita proteção do consumidor ordenada pelo siste-ma constitucional vigente (supra, item 1).

Implacável é a autorizada pena de Luiz Antonio Rizzatto Nunessobre a questão sub examine:

Como norma protetora do consumidor deve-se enten-der que o elenco das hipóteses aventadas é meramenteexemplificativo. Qualquer outra possibilidade ligada ao produ-to, quer antes, durante ou após o processo de fabricação,pode implicar a qualificação do defeito – que sempre geradano. Assim, por exemplo, pode-se falar no transporte do pro-duto, na sua guarda, na confecção, enfim, não há alternativa

64 Ibidem, pág. 240.65 CDC, art. 13, parágrafo único: Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercero direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação doevento danoso.66 RT 784/292.

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capaz de excluir o produto da incidência legal. Nesse sentidoentram no rol, também, a oferta e a publicidade relativa aoproduto e que possam causar dano (cf. arts. 30, 31, 36 e 37).67

Afora isso, ressai à evidência, que as informações insuficientesou inadequadas sobre sua utilização e riscos integram a concepçãolegal de defeito do produto firmada na Lei nº 8.078/90 (art. 12, caput, infine), e aqui a matéria já foi examinada à exaustão.68

Desprovidas de suporte fático-jurídico, nesta quadra, vagas esuperficiais assertivas como: a) inexiste defeito de informação relati-vamente ao produto comercializado (cigarro); b) os riscos associadosao seu consumo são de amplo conhecimento público, mesmo antesda existência das cláusulas de advertência, e por isso situam-se den-tro da expectativa legítima ou razoável do consumidor; e c) ninguémjamais precisaria ser advertido dos riscos (públicos e notórios).

Ao rigor desse raciocínio, neste contexto de ignorante escuridãoou de claridade manipulada, pergunta-se:

É possível falar-se em risco razoavelmente esperado?É possível falar-se em expectativa legítima do consumidor?É possível falar-se em patamar da normalidade e da

previsibilidade do risco?Certo que somente um não rotundo responde a essas indaga-

ções, até porque as empresas de tabaco, mesmo quando indagadaspelo Congresso Norte-Americano (veja-se a dimensão da audácia!),nunca assumiram ou ratificaram com a necessária riqueza de detalhese transparência, sponte propria, aquilo que sustentam ser periculosidadeinerente do produto e/ou risco socialmente conhecido e disseminado.

Tão-só a irrestrita, a correta, a ampla, a adequada e a ostensivainformação (CDC, arts. 8º69 c.c. 9º70), concedida num regime de plena

67 Ibidem, pág. 160.68 C.f., o que foi dito nos tópicos: Elementos inerentes à economia de massa (item 4), O Binômiotransparência/confiança (item 5), Conhecimento público dos riscos à saúde associados ao consu-mo de cigarros (item 6.2), A questão da publicidade e das advertências (item 6.3), Um históricode respeito à lei (item 6.4) e A questão do livre arbítrio (item 6.5).69 CDC, art. 8º: Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscosà saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em

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transparência e de respeito à confiança depositada, é que admite anoção de riscos razoavelmente esperados pelos consumidores.

(......) o uso que deverá ser o considerado correto parao produto, para os efeitos da valoração da sua segurança, éexatamente aquele que se dessume de toda a informaçãoque o cerca, especialmente a publicitária, destinada a influ-enciar o convencimento do consumidor (ver comentáriosao artigo 8º). O risco razoável irá depender também das in-formações preventivas que devem, necessariamente,acompanhar o produto “normalmente perigoso” (ver artigo9º), ou seja, aquele que por sua própria natureza ou fruiçãoapresenta algum grau de periculosidade ou nocividade.71

Em outra obra James J. Marins de Souza desenvolve a idéia:

Isto significa que há inegável proporção direta entreo grau de informação franqueado ao consumidor acercade sua correta fruição, ou, nos termos do art. 8º normalfruição e a segurança que o produto ou serviço apresenta,ou seja, quanto mais eficientemente o fornecedor propiciaas indispensáveis informações sobre as características doproduto ou serviço que possam de alguma forma preveni-lo ou orientar o utente sobre a melhor forma de usufruir obem objeto da relação de consumo evitando eventuais pe-rigos, mais seguro será considerado o produto ou serviço,para os efeitos legais, em benefício da segurança do con-sumidor. Ao contrário, se o fornecedor omite, intencional-mente ou não, características essenciais ao produto, es-pecialmente aquelas que possam relacionar-se com riscos

decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, adar as informações necessárias e adequadas ao seu respeito. Parágrafo único: Em se tratandode produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo,através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto.70 CDC, art. 9º: O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúdeou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade oupericulosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.71 José Manoel Arruda Alvim Neto et alii. Código do Consumidor Comentado. 2ª edição. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1995, pág. 108.

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afetos à segurança e saúde dos consumidores, estará vio-lando o sistema protetivo do Código.72

E essa transparência, como se percebe a alho desarmado, não é,nem nunca foi, a tônica do procedimento adotado pelas companhias detabaco.

Força é concluir, analisado-se as propriedades e os efeitos noci-vos do fumo, que a mera ruptura das expectativas legítimas do consu-midor, fundadas na sua inerente confiança e tuteladas por normas es-pecíficas, basta para materializar o que a Lei nº 8.078/90 chama defato do produto (ou apenas defeito) e, conseqüentemente, impor umareparação que na indenização se efetiva.

(......) o produto pode ser defeituoso apesar de ofere-cer toda a segurança que legitimamente dele se espere.Aliás, esse é o elemento-chave e mais forte do defeito: asurpresa. O produto parece seguro, mas causa dano. Esseé que é o problema.73

Observe-se, porém, que não se confundem defeito e vício.

Não se ignora que os vícios (CDC, art. 18) podem ser de quali-dade e quantidade (impropriedade ou inadequação), enquanto os de-feitos (CDC, art. 12) se encontram atrelados à idéia de periculosidade(criação, produção e informação), seja ela inerente aos produtos e aosserviços (v.g., agrotóxicos) – dês que normal e previsível, ligada àsinformações – seja ela adquirida (CDC, arts 12 a 17) ou presumida(CDC, art. 10 e 18, § 6º).

Ocorre que o defeito, na sua essência, representa um plus emrelação ao vício, ou, em outras palavras, é o vício qualificado pela ocor-rência de dano, material ou moral, que extravasa o próprio produto ouserviço retirado do mercado (aquisição ou utilização), alcançando tantoo consumidor próprio quanto eventuais terceiros estranhos à relaçãoconsumerista originária.

72 Responsabilidade da Empresa pelo Fato do Produto (Os acidentes de consumo no Código deProteção e Defesa do Consumidor). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, págs. 126/127.73 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, ibidem, pág. 165.

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Vêm a talho de foice, na espécie, os ensinamentos do insigneArruda Alvim et alii:

O fato do produto, desta forma, não correspondeestritamente ao dano nem ao defeito. Em primeiro lugarporque o mero defeito constatado não caracteriza fato doproduto, mas apenas vício, regulado na forma dos artigos18 e seguintes, somente configurando-se fato do produtoquando do defeito decorrerem prejuízos, danos, que não amera desvalorização ou impossibilidade de uso, estandoestes vícios regulados na seção subseqüente, não autori-zando a reparação nos termos do art. 12 que não podeprescindir do dano e do nexo causal.74

E prosseguem os lúcidos comentadores:

Se verificado o defeito do serviço, sem que este te-nha ocasionado dano ao consumidor que não seja maiorque a mera desvalorização ou inservibilidade, a matéria étratada pelos artigos 20 e seguintes, referentes, referentesao vício do serviço.75

Distinguem-se, pois, pela ocorrência, ou não, de dano, ainda quemoral.

O defeito é o vício acrescido de um problema extra,alguma coisa extrínseca do produto ou serviço, que causaum dano maior que simplesmente o mau funcionamento, onão-funcionamento, a quantidade errada, a perda do valorpago – já que o produto ou serviço não cumpriram o fim aoqual se destinavam. O defeito causa, além desse dano dovício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico materiale/ou moral do consumidor.

Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em ter-mos de dano causado ao consumidor, é mais devastador.

74 Ibidem, pág. 118.75 Idem, pág. 137.

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Temos, então, que o vício pertence ao próprio pro-duto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumi-dor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto oudo serviço para atingir o consumidor em seu patrimôniojurídico, seja moral e/ou material. 76

Impende frisar que o paralelismo proposto já foi consagrado pelajurisprudência em hipótese análoga. Veja-se:

(......) para o fim de definição de sua responsabilidadeobjetiva pelo fato do serviço, as diretrizes traçadas pelo Có-digo de Defesa do Consumidor, a saber: de um lado, a apti-dão ou idoneidade do produto ou do serviço geram a res-ponsabilidade pelo chamado vício, caso em que o fornecedorsó arca com as conseqüências jurídicas do fornecimentode um produto ou serviço imperfeito; de outro lado, a falta desegurança do produto ou serviço acarreta, por sua vez, aresponsabilidade do fornecedor pelo fato do produto/serviço(acidente de consumo), especificamente no que diz respei-to aos danos produzidos, caso em que a imperfeição doserviço recebe o nome de defeito.77

7. Do dano extrapatrimonial

Assevera Clayton Reis:O patrimônio sempre foi considerado, em épocas

remotas da história, como um acervo de bens de naturezamaterial. No entanto, o sentido amplo da palavra patrimônioinduz-nos, necessariamente, à conclusão de que essa ex-pressão não é restritiva tanto quanto não o é intelectual-mente limitada. O homem é também, como observamos,um ser constituído por um complexo de bens e ideais.78

Eis o patrimônio moral.

76 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, ibidem, pág. 158.77 TJSP – Apelação Cível nº 70.286-4 – Relator Desembargador Antonio Carlos Marcato – j.29.04.1999.78 Dano moral. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1997, pág. 82.

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7.1 A expressão moral

Segundo Pontes de Miranda,A expressão dano moral tem concorrido para graves

confusões, bem como a expressão alemã Schmerzengeld(dinheiro de dor). Às vezes, os escritores e juízes empre-gam a expressão dano moral em sentido amplíssimo (danoà normalidade da vida de relação, dano moral estrito, que éo dano à reputação, dano que não é qualquer dos anterio-res mas também não ofende o patrimônio, como o de dorsofrida, o de destruição de bem sem qualquer valorpatrimonial ou de valor patrimonial ínfimo). Aí, dano moralseria dano não patrimonial. Outros têm como dano moral odano à normalidade da vida de relação, o dano que faz bai-xar o moral da pessoa, e o dano à reputação. Finalmente,há o senso estrito de dano moral: o dano à reputação.79

Realmente a definição de dano moral encontra várias vozes esentidos no cenário jurídico mundial80, mas parece haver uma certatendência em considerar o dano moral uma expressão lato sensu, queabrangeria toda a esfera interna e valorativa do ser como entidade indi-vidualizada81, escolhida apenas pela força de sua expressividade e pelatradição do nosso direito.82

Doutrina com sabedoria Yussef Cahali quando, ao citar Dalmar-tello, conclui:

Parece mais razoável, assim, caracterizar o dano moralpelos seus próprios elementos; portanto, ‘como a privaçãoou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo navida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de espírito,

79 Tratado de Direito Privado. 2ª edição. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, XXVI, págs. 30/31.80 V.g., cf., Wladimir Valler. A Reparação do Dano Moral no Direito Brasileiro. 4ª edição. Campi-nas: E. V. Editora, 1996, págs. 33/34.81 Carlos Alberto Bittar. Reparação Civil por Danos Morais. 2ª edição. São Paulo: Revista dosTribunais, 1994, pág. 34.82 Yussef Said Cahali. Dano Moral. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pág. 21.

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a liberdade individual, a integridade individual, a integridadefísica, a honra e os demais sagrados afetos’; classifican-do-se, desse modo, em dano que afeta a ‘parte social dopatrimônio moral’ (honra, reputação etc.) e dano que mo-lesta a ‘parte afetiva do patrimônio moral’ (dor, tristeza, sau-dade etc.); dano moral que provoca direta ou indiretamen-te dano patrimonial (cicatriz deformante etc.)83.

Oportuno salientar que o vocábulo moral, como empregado, nãose contrapõe a físico e sim a patrimônio; logo (e isto é importante parase definir a amplitude da reparação), melhor seria o uso de outras ex-pressões: extrapatrimonial, não patrimonial ou imaterial, delas exsurgindo,aí sim, o dano moral (stricto sensu) como uma de suas vertentes.

Em verdade, como anota Carlos Alberto Bittar,

Qualificam-se como morais os danos em razão daesfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoana sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectosmais íntimos da personalidade humana (o da intimidade eda consideração pessoal), ou o da própria valoração dapessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou daconsideração social).84

É certo que a classificação do dano só pelo critério dapatrimonialidade não alcança o extenso plano dos danos morais; entre-tanto, analisado-se a matéria com os olhos voltados para a defesa doconsumidor fumante, mais fácil será o entendimento e a compreensãoacerca, verbi gratia, do dever de indenizar pelo simples defeito do produ-to fornecido (cigarro), sem reflexos patrimoniais diretos nem morais, seconsiderados stricto sensu, tão-só pela quebra da expectativa legítimada correção e da qualidade ofertadas (supra, itens 4, 5, 6.2 e 6.7).

Enfim, a mens legis não pode excluir da conseqüente compensa-ção nenhum dano decorrente de ato ilícito; todos, portanto, devem ser

83 Ibidem, pág. 20, citando Dalmartello, Danno morali contrattuali, Rivista di Diritto Civili 1933/55.84 Ibidem, pág. 41.

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objeto de reparação.85 Se o detrimento de bens materiais ocasiona preju-ízo patrimonial, a agressão aos bens imateriais configura prejuízo moral.86

7.2 Noção

Para evitar confusões terminológicas, observado seu conteúdoefetivo (supra, 7.1), adota-se a expressão dano moral.

Entende-se por moral tudo aquilo que está fora da esfera materi-al, patrimonial do indivíduo. Diz respeito à alma, àquela parte única quecompõe cada intimidade; logo, o dano moral é aquele que afeta a pazinterior de cada um, atingindo tudo aquilo que não tem valor econômi-co, mas é capaz de causar dor e sofrimento.87

Dá-se, conforme ensina José de Aguiar Dias, quando o danonão corresponde às características do dano patrimonial, mas a distin-ção, ao contrário do que parece, não decorre da natureza do direito,bem ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter da suarepercussão sobre o lesado, de forma que tanto é possível ocorrerdano patrimonial em conseqüência de lesão a um bem não patrimonialcomo dano moral em resultado de ofensa a bem material.88

É a lesão sofrida pela pessoa em seu patrimônio ideal, assimentendido em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudoaquilo que não seja suscetível de valor econômico.89

Aliás, não poderia ser de outra forma. A esse respeito, asseverao Ministro Hélio Mosimann, citando Von Ihering:

O direito não ampara unicamente bens econômicos.A norma jurídica perderia seu alto sentido social se se

85 Clayton Reis, ibidem, pág. 91.86 STJ – RESP nº 37374/MG – Relator Ministro Hélio Mosimann – j. 28.09.1994.87 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, ibidem, pág. 59.88 Da Responsabilidade Civil. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1995, Volume II, pág. 729,apud, Pedro Frederico Caldas. Vida Privada, Liberdade de Imprensa e Dano Moral. São Paulo:Saraiva, 1997, pág. 125.89 Wilson Melo da Silva. Dano Moral e sua Reparação. 3ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1983,pág. 01.

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considerasse impotente para proteger valores de afeição,bens imateriais, pela só circunstância de não ter cotaçãomonetária. Correlativamente com esta concepção ficoudelineada a figura do agravo moral. O detrimento de bensmateriais ocasiona prejuízo patrimonial. A agressão aosbens imateriais configura prejuízo moral.90

Vincula-se esse patrimônio ideal ao direito à preservação daprópria personalidade e, por isso, deve ser amplamente tutelado peloEstado.

Alerta Clayton Reis:

Não há dúvida de que a defesa desse patrimônio idealconstitui obrigação do poder estatal, preocupado em pre-servar seus próprios valores ético-morais e históricos. As-sim, toda a forma de cerceamento ou lesão direta ou indire-ta a esse direito constitui-se em um dano de natureza moral.91

Não se trata de pecunia doloris ou pretium doloris,que não se pode avaliar e pagar; mas a satisfação de or-dem moral, que não ressarce prejuízos e danos e abalos etribulações irressarcíveis, mas representa a consagraçãoe o reconhecimento, pelo direito, do valor e importânciadesse bem, que se deve proteger tanto quanto, se não maisdo que os bens materiais e interesses que a lei protege.92

Ultrapassados esses obstáculos e na esteira da sua busca pelajustiça social, com destacada valoração da dignidade da pessoa hu-mana, a Constituição da República levou a termo todas as discussõesoutrora existentes quando garantiu93, expressamente, a indenização por

90 STJ – RESP nº 37374/MG – j. 28.09.1994.91 Ibidem, págs. 82/83.92 STF – RTJ 108/194.93 Alguns sustentam que os termos amplos do artigo 159 do Código Civil abrangem quaisquerdanos, até os de natureza moral. Cf., STJ – RESP nº 4236/RJ – Relator Ministro Eduardo Ribeiro– j. 04.06.1991.

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dano moral (art. 5º, V e X)94, definindo a jurisprudência, a seguir, sobre apossibilidade de se cumular o dano moral com o dano material quandoprovenientes do mesmo fato (STJ – Súmula nº 37).95

Impende frisar, por oportuno, que entre as múltiplas manifesta-ções do chamado dano moral (lato sensu), cujo exato conceito não seidentifica como mero fenômeno psíquico – sensação psicossomáticadesagradável conhecida, em sentido amplo, como dor (experiênciabiopsicológica abstraída pelo ordenamento jurídico e avaliada apenasna formação da ratio normativa)96 – ao contrário, melhor se afina àidéia objetiva da violação de algum dos chamados direitos da persona-lidade, inclusive toda lesão à segurança pessoal (v.g., saúde), que é

(......) um dos bens cuja violação pode gerar ofensamoral (......) mais amplo que o da integridade física (que,aliás, o compreende). O direito inerente à personalidadeque protege a segurança das pessoas pode ser definidocomo a faculdade de que goza todo sujeito de que sua inte-gridade não seja exposta a riscos e perigos por atos deterceiros (......) entretanto uma violação do direito de segu-rança de um sujeito pode não trazer conseqüências físi-cas. O substrato do dano moral ocasionado por uma lesãocorporal consiste na dor física ou moral resultante da le-são, da angústia e do medo suportados, enfim do sofri-mento da vítima acarretado pela própria lesão.97

94 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, ibidem, pág. 61, elenca exemplos da legislação infraconstitucionalque já previam a indenização por dano moral antes da CF/88: “(......) podemos citar os arts. 76,parágrafo único, 1.538, 1.539, 1.543, 1.548, 1.549 e 1.550, todos do Código Civil; os arts. 81 e84 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.177/62), o art. 244, § 1º, co CódigoEleitoral (Lei nº 4.737/65); os arts. 21,25,27,122 a 130 da lei que regula os direitos autorais (Leinº 5.988/73); os arts. 49 a 53 da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67); o Código Brasileiro deAeronáutica (Lei nº 7.565/86); o art. 21 do Decreto nº 2.681/12, que regula a responsabilidadecivil nos eventos ocorridos nas estradas de ferro”.95 In verbis: São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato.96 TJSP – Apelação Cível nº 110.196-4 – Relator Desembargador Cezar Peluso – j. 03.04.2001.97 Roberto H. Brebbia. El Daño Moral. Buenos Aires: Ed. Bibliográfica Argentina, págs. 254/256,nº 113, com mais grifos no original, apud, TJSP – Apelação Cível nº 170.660-4/2-00 – RelatorDesembargador Cezar Peluso – j. 20.03.2001. Na fonte: uno de los bienes cuya conculcaciónpuede engendrar agravio moral ... más amplio que el de integridad fisica y lo comprende. Elderecho inherente a la personalidad que protege la seguridad de las personas puede serdefinido como la facultad que posee todo sujeto de que su persona no sea expuesta por elacto de otra a riesgos o peligros ... Una lesión en la integridad de la misma, mientras que unaviolación del derecho de seguridad de un sujeto puede no traer consecuencias para la integridad

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7.3 Prova

No que respeita à prova do dano moral, é de aplaudir a lição deCarlos Alberto Bittar:

Na concepção moderna da teoria da reparação dedanos morais prevalece, de início, a orientação de que aresponsabilização do agente se opera por força do sim-ples fato da violação. Com isso, verificado o evento dano-so, surge, ipso facto, a necessidade de reparação, umavez presentes os pressupostos de direito. Dessa pondera-ção, emergem duas conseqüências práticas de extraordi-nária repercussão em favor do lesado: uma, é a dispensada análise da subjetividade do agente; outra, a desne-cessidade de prova de prejuízo em concreto.

Nesse sentido, ocorrido o fato gerador e identificadasas situações dos envolvidos, segue-se a constatação doalcance do dano produzido, caracterizando-se o de cunhomoral pela simples violação da esfera jurídica, afetiva oumoral, do lesado. (......)

É que as lesões morais derivam imediata e diretamen-te do fato lesivo, muitas vezes deixando marcas indeléveisna mente e no físico da vítima, mas outras sob impres-sões internas, imperceptíveis às demais pessoas, mesmoíntimas. São, de resto, as de maior amargor e de mais de-sagradáveis efeitos para o lesado, que assim pode, a qual-quer tempo, reagir juridicamente.98

(......)Despreza-se, assim, a investigação do subjetivo

do ofensor (dolo ou culpa), visto que basta a lesão em si

fisica del mismo ... El substrato del daño moral ocasionado por una lesión recibida en el cuerpoo en la salud consiste en el dolor fisico o moral ocasionado por la lesión, la angustia y el miedosoportados, en fin, en el sufrimiento acarreado a la víctima por la lesión.98 Ibidem, pág. 202.

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mesma. Evidenciada a conduta lesiva, ou definida objetiva-mente sua repercussão negativa, surge a obrigação de re-parar. O dano moral existe no próprio fato violador dos direi-tos da personalidade da vítima (ex facto), impondo anecessidade de resposta, que na reparação se efetiva. É oque se denomina damnum in re ipsa.99

Prossegue a apurada intervenção:

(......) trata-se de presunção absoluta, ou iuris et dejure, como a qualifica a doutrina. Dispensa, portanto, provaem concreto. Com efeito, corolário da orientação traçada éo entendimento de que não há que se cogitar de prova dedano moral. Não cabe ao lesado, pois, fazer demonstra-ção de que sofreu, realmente, o dano moral alegado. (......)

Esses reflexos são normais e perceptíveis a qual-quer ser humano, justificando-se, dessa forma, a imediatareação da ordem jurídica contra os agentes, em conso-nância com a filosofia imperante em tema de reparação dedanos, qual seja, a da facilitação da ação da vítima na bus-ca da compensação. Há assim, fatos sabidamente hábeisa produzir danos de ordem moral, que à sensibilidade dojuiz logo se evidenciam.”100

A seu turno e no mesmo sentido, já afirmava Ruggiero que, parao dano ser indenizável,

(......) basta a perturbação feita pelo ato ilícito, nasrelações psíquicas, na tranqüilidade, nos sentimentos, nosafetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição nogozo do respectivo direito.101

Hoje, sólida, pacífica e uniforme é a posição de que, em sede de da-no moral, a responsabilização do agente se opera por força do simples

99 Ibidem, págs. 203/204.100 Ibidem, pág., 204.101 Instituições de Direito Civil. Tradução de Ary dos Santos. São Paulo: Saraiva, 1937.

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fato da violação, de modo a tornar-se desnecessária a prova do preju-ízo concreto (reflexos direitos ou indiretos).102

In casu, afora a quebra da expectativa legítima e o evidente de-feito do produto fornecido (supra, itens 4, 5 e 6.2), como já verificado(supra, item 6.7), as companhias de tabaco admitem que a saúde dosseus consumidores, sempre no seu atual estágio, está comprometi-da também pelo consumo de cigarros, vício confessadamente incluí-do entre os fatores de risco relacionados a diversas doenças.

Está aí, no sofrimento injusto e grave que acomete os fuman-tes em razão do desassossego imputável ao comportamento tortuo-so das companhias de tabaco, o dano moral suscetível de reparaçãopecuniária, ou seja, o que a dor retira à normalidade da vida parapior.103 E mais, pois ao frustrar as justas expectativas dos consumi-dores provocam, id quod plerumque accidit (CPC, art. 335), dissabore angústia que não tinham de experimentar e, caso fossem leais asfornecedoras, não experimentariam.

Ou, em outras palavras, os consumidores padecem de condi-ção orgânica vulnerável que, embora quase sempre não apresentenítida morbidez, os expõem, de modo objetivo, aos riscos do agrava-mento do seu estado de saúde, comprometendo-lhes a incolumidadepessoal, e ao surto de outras doenças malignas.

Força é concluir, nesta quadra, que a simples violação do direitoà segurança pessoal e à saúde, há muito assegurado (supra, item 4),basta para se estabelecer o dever de indenizar.

Perfilhou tal linha de raciocínio o Eminente Desembargador An-tonio Cezar Peluso quando do julgamento da Apelação Cível nº 170.660-4/2-00, ontologicamente análoga à hipótese sub examine, de onde seextrai o seguinte excerto:

Não precisa, portanto, insistir em que, a despeitode não ter sofrido, até a data do laudo, nenhuma ofensa

102 STJ – RESPs nºs 173124/RS, j. 11.09.2001; 312689/SP, j. 18.09.2001; 323964/RJ, j.06.09.2001; 261028/RJ, j. 30.05.2001; 261558/AM, j. 22.05.2001; 304738/SP, j. 08.05.2001;234472/SP, j. 05.12.2000 e 86271/SP, j. 10.11.1997; e AGAs nºs 356447/RJ, j. 17.04.2001 e292232/DF, j. 16.02.2001.103 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. 3ª edição, 2ª reimp. São Paulo: Revista dosTribunais, 1984, t. XXVI/32, § 3.108, nº 2, apud, TJSP – Apelação Cível nº 095.913-4/1-00 –Relator Desembargador Cezar Peluso – j. 29.08.2000.

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concreta à sua integridade física, a autora está exposta,pela contaminação tóxica oriunda do comportamento gra-vemente culposo da antecessora da ré, aos riscos perma-nentes de ser acometida de patologia maligna, cujo medoe angústia conseqüente, abstraídos pelo ordenamento jurí-dico e, como tais, de prova dispensável, compõem, comoreação ordinária do ser humano, o substrato empírico dodano moral caracterizado pela ofensa ao direito objetivo àsegurança pessoal. A tutela jurídica da pessoa humana, nasua complexa realidade, que é a última razão da ilicitudedo dano moral, tem por insuportável a mera situação obje-tiva de tal risco, induzido por culpa alheia, porque importasacrifício de garantia à esfera da personalidade e, pois, de-gradação da dignidade pessoal, a pessoa condenada, porato culposo de outrem, a conviver com o perigo diuturnode um câncer, ainda que não venha nunca a sofrê-lo.104

7.4 Quantificação e função punitiva (caráter aflitivo)

A resistência histórica e a pouca idade do apagamento das dúvi-das a respeito do cabimento do dever de indenizar os danos moraistalvez sejam o motivo que ainda leva o Poder Judiciário a fixar em quan-tias muito tímidas as indenizações capazes de reparar o dano moral.105

Ocorre que a reparação do dano moral acaba sendo integradapor dois fatores de suma importância, um deles reside no caráter pu-nitivo e o outro, no caráter compensatório. O caráter punitivo visa, aci-ma de tudo, a irrogar ao agente violador uma verdadeira pena, que emúltima análise serve de fator inibitório a novas práticas.106

Essa pena ou sanção inflige ao transgressor um preceito de or-dem econômica, colocando-o entre dois males: o mal causado pela

104 TJSP – j. 20.03.2001.105 Luiz Antonio Rizzato Nunes, ibidem, pág. 61.106 Pedro Frederico Caldas, ibidem, pág. 126.

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sua observação (sacrifício do interesse contra o qual o preceito foiestabelecido) e o mal decorrente de sua inobservância.107

Carnelutti, estribado na teoria da equivalência e da compensa-ção de interesses, sustenta existirem duas espécies de sanções híbri-das ou intermediárias: o ressarcimento e a reparação. O hibridismo, aseu turno, reside no fato de terem elas, ao mesmo tempo, carátersatisfativo e de aflição. Ou seja, o ressarcimento resolve-se no sacri-fício de um interesse diferente do interesse sacrificado pela inobser-vância do preceito, mas a ele equivalente; enquanto a reparação, nosacrifício de um interesse compensativo.108

Carlos Alberto Bittar, discorrendo sobre os componentes centraisda textura da nova teoria da reparabilidade dos danos morais, ensina:

Na reparação pecuniária, prospera, ademais, a teseda exacerbação da indenização devida, em razão do vultodo direito atingido, assumindo aquela a força inibidora de quenecessita (punitive damages), para permitir que se alcanceefetivo sancionamento do lesante e desestímulo à socie-dade para novas investidas do gênero.109

E adita Luiz Antonio Rizzatto Nunes:

Além disso tudo é preciso realçar um dos aspectosmais relevantes – e que, dependendo da hipótese, é o maisimportante –, que é o da punição ao infrator.

O aspecto punitivo do valor da indenização por danosmorais deve ser especialmente considerado pelo magistra-do. Sua função não é satisfazer a vítima, mas servir de freioao infrator para que este não volte a incidir no mesmo erro.110

107 Yussef Said Cahali, Dano Moral, cit., pág. 38.108 Teoría general del derecho. Madrid: RDP, 1941, págs. 100/102, apud, Yussef Said Cahali, id.,pág. 38, onde o referido autor italiano conclui: “a restituição resolve-se no sacrifício de uminteresse idêntico, enquanto a pena se resolve no sacrifício de um interesse diverso a sercominado segundo o preceito, correlatamente, a restituição tem caráter de satisfação, enquantoa pena tem caráter aflitivo”.109 Ibidem, pág. 239.110 Ibidem, pág. 63.

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Já Thierry Bourgoignie afirma:De um lado, em não aceitando limitar a percepção

de prejuízo alegado por um reclamante isolado somentepor ser individual, mas de valorizar sua importância face àsoma de interesses do conjunto de indivíduos tendo queencarar a mesma situação prejudicial (......)111

Sem embargo de alguma dissidência – fundada na impossibili-dade da reparação do dano moral ser composta dessas duas verbas(reparatória + punitiva) – nossos Tribunais têm acolhido, até com certatranqüilidade, a tese da função intimidativa ou aflitiva.112

A indenização por dano moral é arbitrável medianteestimativa prudencial que leve em conta a necessidade de,com a quantia, satisfazer a dor da vítima e dissuadir, deigual modo e novo atentado, o autor da ofensa. Deve, porisso, adequar-se à condição pessoal das partes, para quenão sirva de fonte de enriquecimento da vítima, nem agra-ve, sem proveito, a obrigação do ofensor.113

Por conseguinte, resta a idéia final de que a função satisfatóriada indenização tem um sentido real de defesa do patrimônio moral davítima, assim como de impor uma punição para o lesionador.114

Lapidar, nesse sentido, é a lição do saudoso DesembargadorWalter Moraes assentada no julgamento da Apelação Cível nº 113.190-1 do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ei-la:

(......) tem outro sentido, como anota Windscheid, aca-tando opinião de Wachter: compensar a sensação de dorda vítima com uma sensação agradável em contrário (nota31 ao § 455 das “Pandette”, trad. Fadda e Bensa). Assim,tal paga em dinheiro deve representar para a vítima uma

111 O conceito jurídico de consumidor. Revista Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dosTribunais, nº 2, 1992, pág. 20.112 STJ – RESPs ºs 283319/RJ, j. 08.05.2001 e 168945/SP, j. 06.09.2001; e TJSP – ApelaçõesCíveis nºs 26.434-4 e 98.101-4, j. 22.12.1998.113 TJSP – Apelações Cíveis nºs 095.913-4/1-00, j. 29.08.2000 e 170.660-4/2-00, j. 20.03.2001,ambas relatadas pelo Desembargador Cezar Peluso.114 Clayton Reis, ibidem, pág. 91.

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satisfação, igualmente moral ou, que seja, psicológica, capazde neutralizar ou “anestesiar” em alguma parte o sofrimentoimpingido (......) A eficácia da contrapartida pecuniária está naaptidão para proporcionar tal satisfação em justa medida, demodo que tampouco signifique um enriquecimento sem cau-sa da vítima, mas está também em produzir no causador domal, impacto bastante para dissuadi-lo de igual e novo atenta-do. Trata-se, então, de uma estimação prudencial.

Fixadas essas premissas, cumpre observar a relação de pro-porcionalidade que deve reger o montante indenizatório e a considerá-vel gravidade objetiva da lesão, sem prejuízo da sua menor (limitada)repercussão subjetiva. A potencialidade econômica do ofensor não é,pois, fator primordial.

A indenização por danos morais não se presta paraenriquecer a vítima de um ato ilícito, mesmo que de pos-ses elevadas o causador do dano.115

Ressalte-se, ademais, que em matéria de reparação de danosonde há seqüelas físicas, como no caso em debate, as indenizaçõesvariam. Ora fixadas em 500 salários-mínimos116, ora chegando aodobro117; entretanto, não se ponha no oblívio que já se deferiu o mesmovalor (1.000 s.m.) numa hipótese de inclusão indevida de nome emcadastros de inadimplentes.118

À evidência que a negativação de um nome, por mais indevida,ilegal e abusiva que seja, jamais pode se equiparar ao grave e delibe-rado comprometimento da segurança e da saúde do consumidor.

Conquanto adotem as indenizações por dano moral, em regra, osalário-mínimo como valor de referência, essa circunstância tem ge-

115 TJSP – Apelação Cível nº 281.173-1 – Relator Desembargador Antonio Manssur – j. 17.06.1997.116 STJ – RESP nº 323973/ES – Relator Ministro Aldir Passarinho Júnior – j. 09.10.2001.117 TJSP – Apelação Cível nº 43.391-5 – Relator Desembargador Rui Stoco – j. 05.10.1999.118 1º TacCiv/SP – Embargos Infringentes nº 754.692-3/1 – Relator J. B. Franco de Godoi – j.27.10.1999.

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rado inúmeros debates em nossos Tribunais Superiores segundo anotaYussef Cahali119;

(......) se efetivamente proveitoso esse critério de fi-xação do quantum, que assegura a dinâmica temporal daindenização, expõe-se ele contudo a ser contestado emface do art. 7º, IV, da Constituição, que veda a vinculaçãodo salário mínimo para qualquer fim.120

O Supremo Tribunal Federal nega a possibilidade121, embora já atenha admitido no passado122, com edição de súmula inclusive123.

Utiliza o Pretório Excelso como linha argumentativa medular o queentende como sendo a finalidade da vedação, qual seja, a de evitar queinteresses estranhos aos versados na norma constitucional venham ater influência na fixação do valor mínimo a ser observado. Entretanto, abusca de melhor assegurar a dignidade da pessoa humana, com umaeficaz proteção dos valores da personalidade e uma efetiva reparaçãodos danos a ela ocasionados, construindo, também com isso, umasociedade mais livre justa e solidária, data venia, não podem ser con-siderados interesses estranhos.

Melhor, assim, o caminho trilhado pelo Superior Tribunal de Jus-tiça que, apesar de alguma dissidência124, vem admitindo indeniza-ções balizadas no salário-mínimo125, chegando até a adotar, spontepropria, esse critério de indexação.126

119 Ibidem, pág. 400.120 CF, art. 7º: São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoriade sua condição social: (......) IV: salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz deatender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educa-ção, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicosque lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.121 STF – REs nºs 225488/PR, j. 11-04-2000; 205455/MG, j. 18-12-2000 e 216538/MG.122 RE nº 116005/RJ, j. 10-05-1988.123 STF – Súmula nº 490: A pensão correspondente à indenização oriunda de responsabilidadecivil, deve ser calculada com base no salário mínimo vigente ao tempo da sentença e ajustar-se-á às variações ulteriores.124 STJ – RESP nº 239973/RN, j. 16-05-2000.125 STJ – RESPs nºs 260721/SP, j. 21-06-2001; 319321/RJ, j. 21-06-2001; 219293/RJ, j. 12-12-2000; 278885/SP, j. 22-03-2001; 41614/SP, j. 21-10-1999 e 193296/RJ, j. 23-11-1999.126 STJ – RESPs nºs 268706/SP, j. 03-04-2001; 251395/SP, j. 14-12-2000 e 233148/SP, j. 25-04-2000.

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De qualquer forma, para se prevenir uma dilatação desnecessá-ria da concreta relação jurídica processual em prejuízo, único e exclu-sivo, do consumidor doente, há de se adotar a moeda nacional comoreferência direta, é dizer, a indenização será em reais, corrigidos mo-netariamente desde a propositura, acrescidos de juros de mora, naforma legal, a contar da citação.

7.5 Ausência de limitação infraconstitucional

Não raro a jurisprudência é chamada a dirimir a seguinte pergun-ta: as indenizações por dano moral, após 1988, estão limitadas aosparâmetros constantes da legislação infraconstitucional?

Reside o fundamento da dúvida no fato de que determinadas leisespeciais estabelecem limite máximo para as indenizações por danosmorais, verbi gratia, o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº4.177/62) e a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67).

Há de ser negativa a resposta.Cumpre assinalar que análogo raciocínio jurídico serve para to-

das as hipóteses fáticas que se assemelhem neste pormenor e, porisso, será tomada como exemplo a Lei de Imprensa (arts. 51127 e 52128),até porque em geral sugerida como critério informativo específico deuma chamada limitação legal sistemática.

Pois bem. A Constituição Federal assegura o direito à reparaçãopor dano moral sem traçar limites (mínimo ou máximo), para o quantumindenizatório e, com isso, alterou o sistema vigente até antes de sua

127 Lei nº 5.250/67, art. 51: A responsabilidade civil do jornalista profissional que concorre parao dano por negligência, imperícia ou imprudência, é limitada, em cada escrito, transmissão ounotícia: I – a 2 (dois) salários mínimos da região, no caso de publicação ou transmissão denotícia falsa, ou divulgação de fato verdadeiro truncado ou deturpado (art. 16, II e IV); II – a 5(cinco) salários mínimos da região, nos casos de publicação ou transmissão que ofenda adignidade ou decoro de alguém; III – a 10 (dez) salários mínimos da região, nos casos deimputação de fato ofensivo à reputação de alguém; IV – a 20 (vinte) salários mínimos da região,nos casos em que a lei não admite a exceção da verdade (art. 49, § 1º).128 Lei nº 5.250/67, art. 52: A responsabilidade civil da empresa que explora o meio de informa-ção ou divulgação é limitada a 10 (dez) vezes as importâncias referidas no artigo anterior, seresulta de ato culposo de algumas das pessoas referidas no art. 50.

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promulgação (05-10-1988). Logo, inviável atribuir a normas de categoriajurídica inferior a função de interpretar e de balizar a Lex Fundamentalis.

Trata-se – adverte o mestre J. J. Gomes Canotilho – dagesetzeskonform Verfassungsinterpretation, ou da interpretação daConstituição em conformidade com as leis e não a das leis em confor-midade com a Constituição.

Assevera, com propriedade, o preclaro jurista português:

A utilidade da interpretação constitucional conforme asleis seria particularmente visível quando se tratasse de leismais ou menos antigas, cujos princípios orientadores logra-ram posteriormente dignidade constitucional. A interpretaçãoda constituição de acordo com as leis não aponta apenaspara o passado. Ela pretende também abarcar as hipótesesde alterações do sentido da constituição mais ou menos plas-madas nas leis ordinárias. Estas leis, que começaram porser actuações ou concretizações das normas constitucio-nais, acabariam, em virtude da sua mais imediata ligaçãocom a realidade e com os problemas concretos, por se trans-formar em ‘indicativos’ das alterações de sentido e em ope-radores de concretização das normas constitucionais cujosentido se alterou. Do direito infraconstitucional partir-se-iapara a concretização da Constituição.

A interpretação da constituição conforme as leis temmerecido sérias reticências à doutrina. Começa por partirda idéia de uma constituição entendida não só como espa-ço normativo aberto mas também como campo neutro, ondeo legislador iria introduzindo subtilmente alterações. Em se-gundo lugar, não é a mesma coisa considerar como parâ-metro as normas hierarquicamente superiores da constitui-ção ou as leis infraconstitucionais. Em terceiro lugar, nãodeve afastar-se o perigo de a interpretação da constituiçãode acordo com as leis ser uma interpretação inconstitucional,quer porque o sendo das leis passadas ganhou um signifi-cado completamente diferente na constituição, quer porque

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as leis novas podem elas próprias ter introduzido alteraçõesde sentido inconstitucionais.129

E acentua Gustavo Tepedino:

(......) o equívoco de tal concepção, ainda hojedifusamente adotada, que acaba por relegar a norma cons-titucional, situada no vértice do sistema, a elemento deintegração subsidiário, aplicável apenas na ausência denorma ordinária específica e após terem sido frustradasas tentativas, pelo intérprete, de fazer uso de analogia e deregra consuetudinária. Trata-se, em uma palavra, de ver-dadeira subversão hermenêutica.130

Por este prisma, jamais a Lei de Imprensa, ou qualquer outra,poderá restringir a amplitude dada pela Constituição às matérias nelaversadas. Conclui-se, portanto, que de maneira alguma pode-se falarhoje em indenização tarifada ou limitada, pena de o intérprete incidirem manifesta inconstitucionalidade.

Advirta-se que o excelso Superior Tribunal de Justiça, intérpretesoberano da legislação federal, já se manifestou sobre o mérito daquaestio, também em face da Lei de Imprensa, quando do julgamentodo RESP nº 52842/RJ.

Do V. Aresto extrai-se o seguinte fragmento:

Na verdade, com essa disciplina clara, a Constitui-ção de 1988 criou um sistema geral de indenização pordano moral decorrente da violação dos agasalhados direi-tos subjetivos privados. E, nessa medida, submeteu a in-denização por dano moral ao direito civil comum e não aqualquer lei especial. Isso quer dizer, concretamente, quenão se postula mais a reparação pela violação dos direitosda personalidade, enquanto direitos subjetivos privados, no

129 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª edição. Coimbra: Almedina, pág. 1.196.130 O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reformalegislativa, Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pág. 3.

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cenário da lei especial, que regula a liberdade de manifes-tação do pensamento e de informação. Não teria sentidopretender que a regra constitucional nascesse limitada pelalei especial anterior ou, pior ainda, que a regra constitucio-nal autorizasse tratamento discriminatório.131

Arreda-se, pois, um suposto ônus no sentido da indispensabilidadede o consumidor-vítima alegar, fundamentar e demonstrar que a indeni-zação tarifada pela Lei de Imprensa seria insuficiente no caso concreto.

8. Pedido x princípio da adstrição (sucumbência)

No âmbito da reparação civil de danos extrapatrimoniais a vítimapode deduzir seu pedido, na essência, de três formas: a) líquido, certoe determinado; b) líquido, mas como mera estimativa; ou c) genérico(aberto), anotando-se que esta representa técnica processual tranqüi-lamente admitida nesses casos.132

A parte, orientada por seu advogado, é livre para optar pela formade redação que melhor atenda a suas expectativas e a seus interesses.

Quanto às duas últimas, não há reflexo algum na sucumbênciaimposta ao ofensor, permanecendo intactos os comandos dos artigos21 e 460, caput, do Código de Processo Civil, em face do arbítrio dojulgador no exercício da sua estimativa prudencial.

Agravo regimental. Recurso especial não admitido.Honorários. Artigo 21 do Código de Processo Civil. Prece-dente da Corte.

1. Não houve pedido de indenização sobre valor cer-to, mas apenas estimativo, decorrendo do prudente arbítrio

131 STJ – Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito – j. 16-09-1997. No mesmo sentido:RESP nº 148212/RJ – j. 07-12-2000.132 STJ – RESPs nºs 160970/SP, j. 23-02-1999; 108155/RJ, j. 04-12-1997 e 125417/RJ, j. 26-06-1997; TJSP – AIs nºs 214089-4/5-00, j. 20-08-2001 e 160473-4, j. 20-06-2000 (JTJ-Lex 234/232);e TJGO – AI nº 9518-3/180, j. 28.12.1995 (RT 730/307).

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do julgador a estipulação da quantia correspondente a 100(cem) salários mínimos. Aplicável o entendimento de que“a condenação em valor inferior, por si só, não caracterizaa sucumbência recíproca”.

2. Agravo regimental desprovido.133

Contudo, o renomado Desembargador Antonio Cezar Peluso, doEgrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com a pena de mes-tre que lhe é peculiar, atribui o mesmo efeito à primeira possibilidade (a).

SUCUMBÊNCIA. Recíproca. Não caracterização.Ação de indenização por dano moral. Pedido líquido.Caráter só estimativo. Ação julgada procedente. Inde-nização arbitrada em quantia menor do que a solicita-da. Irrelevância. Decaimento total da ré. Em ação de in-denização por dano moral, pedido líquido guarda, para efeitode sucumbência, alcance só estimativo, porque, depen-dendo a definição do valor pecuniário de juízo prudencialda sentença, quantia certa que postule o demandante nãopassa de mera proposta sujeita à discrição judicial.134

Do V. Acórdão extrai-se o seguinte excerto:E não se caracterizou a sucumbência recíproca. É que,

em ação de indenização por dano moral, pedido líquido guar-da, deveras, alcance só estimativo, porque, dependendo adefinição do seu valor pecuniário de juízo prudencial da sen-tença, quantia certa que postule o demandante não passade mera proposta sujeita à discrição judicial, como, aliás, járeconheceu o e. STF (REsp. nº 21.696, j. 25.05.93, DJU21.06.93, apud YUSSEF SAID CAHALI, “Dano Moral”, SP,Ed. RT, 2ª ed., 2000, p. 702, nº 15.4 e nota 29), e não, segun-do o pressupõe a idéia de sucumbimento, desconformidadeentre o que pede o autor e o direito que lhe vem, teoricamen-te predefinido, da norma jurídica aplicável. Noutras palavras,

133 STJ – AGA nº 404600/RJ – Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito – j. 03.12.2001. Nomesmo sentido: RESPs nºs 113398/DF, j. 03.09.1998; 112561/RJ, j. 10.11.1997 e 21696-9/SP –j. 1993.134 Apelação Cível nº 150.160-4/4-00 – j. 05.12.2000. Em igual sentido e do mesmo relator:Apelação Cível nº 082.658-4/7-00 – j. 14.12.1999.

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sucumbe quem pede acima do limite preestabelecido, pelalei, à natureza e à extensão econômica do objeto do seudireito subjetivo. Na apuração da indenização por dano mo-ral, não há valor prévio da prestação devida, senão o que serevela no ato e no juízo concreto da sentença.

Tal orientação, apesar de não unânime135, encontra guarida noExcelso Superior Tribunal de Justiça136 e deve prevalecer, veja-se:

Dada a multiplicidade de hipóteses em que é cabívela indenização por dano moral, aliada à dificuldade namensuração do valor do ressarcimento, tem-se que apostulação contida na exordial se faz em caráter meramenteestimativo, não podendo ser tomada como pedido certopara efeito de fixação de sucumbência recíproca, na hipó-tese de a ação vir a ser julgada procedente em montanteinferior ao assinalado na peça inicial.

Força é concluir, portanto, independentemente do valor indenizató-rio concreto estimado e do petitum deduzido pelo consumidor fumante,que, se decretada, a sucumbência das companhias de tabaco serámesmo integral, sobretudo porque a tese da lesão de direito restará intotum acolhida (CF, art. 5º, XXXV).

Guilherme Ferreira da Cruz,juiz de Direito Titular da 4ª Vara Cível de Santos- SP,

pós-graduado em Direito do Consumidor pela Escola Paulistada Magistratura, mestre em Direito pela UNIMES,

professor de Direito Civil e Direito do Consumidor,professor convidado do Programa de Especialização da

UNISANTOS e da Escola Superior de Advocacia

135 STJ – ERESP nº 63520/RJ – Relator Ministro Ari Pargendler – j. 25.08.1999.136 STJ – RESP nº 351602/PR – Relator Ministro Aldir Passarinho Júnior – j. 04.06.2002. Nomesmo sentido: RESPs nºs 330695/MG, j. 04.02.2002; 222228/SC, j. 04.02.2002; 291915/DF, j.04.02.2002; 261168/SP, j. 15.10.2001; e AGAs nºs 374622/MG, j. 04.02.2002; 346673/MG, j.05.11.2001.

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tráfico de pessoastráfico de pessoastráfico de pessoastráfico de pessoastráfico de pessoas

euclides dâmaso simões,procurador geral adjunto,chefe do diap de coimbra - portugal

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TRÁFICO DE PESSOAS

Breve análise da situação em Portugal -notícia do novo protocolo adicional à Convenção das Nações

Unidas contra a criminalidade organizada transnacional

Euclides Dâmaso Simões

Foi com satisfação que acolhi o convite para participar nesteseminário*, abordando o tema do tráfico de pessoas. Foi assunto quesempre me prendeu a atenção, juntamente com o correlativo crime delenocínio, ao longo da minha carreira como magistrado do MinistérioPúblico e como dirigente policial.

Trata-se, além disso, de um tema de inquietante actualidade. Ofenómeno adquiriu, nos dias de hoje, tais proporções que a AssembleiaGeral das Nações Unidas, no seguimento da Cimeira de Nápoles de1994 e do IX Congresso sobre prevenção do crime e tratamento dodelinquente, realizado no Cairo em 1995, houve por bem, através dasua resolução 53/111, de 9 de Dezembro de 1998, cometer ao “Comi-té ad hoc” constituído para elaboração de uma convenção contra acriminalidade organizada transnacional, o encargo de preparar tam-bém um protocolo visando prevenir, reprimir e punir o tráfico de pesso-as, em particular de mulheres e de crianças.

A comunidade internacional deu-se conta de que as Convençõesexistentes sobre a matéria, datadas dos anos 20, 30, 40 e 50 do Sécu-lo XX, não abrangiam já as múltiplas e insidiosas facetas que o proble-ma vinha assumindo. A comunidade internacional apercebeu-se, já nofinal do século XX, na era da energia nuclear, da descoberta do espaço

* Este texto reproduz a comunicação no âmbito de “Study Tour” promovido pela ONU (Viena –Office on Drugs and crime) para Magistrados dos países Lusófonos, sobre terrorismo e criminalidadeorganizada transnacional, em Lisboa, de 3 a 7 de Novembro de 2003.

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e da internet, que outro género de “negreiros” cruzava fronteiras e con-tinentes na senda de um comércio não menos repugnante que o dosseus congéneres de séculos passados.1

Uma das partes da minha comunicação será, pois, preenchidapela notícia das linhas estruturantes desse novo e promissor instru-mento de direito internacional que certamente será o protocolo adicio-nal à convenção das Nações Unidas contra a criminalidadetransnacional organizada, visando prevenir, reprimir e punir o tráfico depessoas, especialmente de mulheres e crianças.

Participei na sua feitura, em sucessivas sessões havidas entreJaneiro 1999 e o mês de Outubro de 2 000. Tais sessões tiveraminvariavelmente a participação de delegações de mais de cem Esta-dos, de todos os continentes e latitudes. O texto foi aberto à assinatu-ra, juntamente com o da convenção mãe, em 15 de Dezembro de 2000 , na cidade italiana de Palermo. Portugal assinou-o nessa data edecorre agora o processo de ratificação.

Primeiramente, porém, e de forma necessariamente esquemá-tica, que mais não permitem o tempo que me foi destinado e o favor davossa atenção, proponho-vos, em cumprimento da agenda, uma in-cursão pela realidade portuguesa em matéria de tráfico de pessoas.

Comecemos pela lei interna.

O art. 169º do Cod. Penal, inserido no capítulo dos “crimes con-tra a liberdade e autodeterminação sexual,” define assim o crime detráfico de pessoas:

1 – “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ardil, manobrafraudulenta, abuso de autoridade resultante de uma relação de dependên-cia hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitamento qualquer

1 O Grupo de Trabalho sobre Formas Contemporâneas de Escravatura (ONU) adoptou, em 1998,uma Recomendação declarando que “o tráfico transfronteiriço de mulheres e raparigas paraexploração sexual é uma forma contemporânea de escravatura e constituí uma violação gravedos direitos humanos(E/CN.4/Sub.2/1998/14).

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situação de especial vulnerabilidade, aliciar, transportar, proceder aoalojamento ou acolhimento de pessoa ou propiciar as condições paraa prática por essa pessoa, em país estrangeiro, de prostituição ou deactos sexuais de relevo, é punido com prisão de 2 a 8 anos”.2

A previsão legal, na versão anterior bastante mais restritiva, mere-ceu alargamento por força da Lei 99/2001, de 25 de Agosto produzida,por certo, na esteira do protocolo adicional à Convenção da O. N. U.assinada em Palermo, doravante referida como Convenção de Palermo.

Não cuidarei da análise de todos os conceitos integrantes dotipo, dada a facilidade de interpretação semântica da maior parte de-les. Limitar-me-ei a assinalar que as inovações essenciais introdu-zidas pela lei 99/2001 traduzem-se no acrescento dos elementosobjectivos seguintes:

- abuso de autoridade resultante de uma relação de depen-dência hierárquica, económica ou de trabalho da vítima.

- aproveitamento de qualquer situação de especial vulnera-bilidade da vitima.

Desses melhoramentos do texto punitivo merece especial desta-que o conceito inovador de “aproveitamento de qualquer situação deespecial vulnerabilidade”. A título de contributo para o farto laborjurisprudencial que se advinha referirei desde já que dos trabalhos pre-paratórios da Convenção constará o esclarecimento de que por abusode uma situação de vulnerabilidade (e faço notar que o texto conven-cional não utiliza o qualificativo “especial” que a lei portuguesa adoptou)3

2 Mantém-se, pois, a tendência tradicional para resumir o escopo do tráfico à exploração daprostituição apesar de, já em 1994, a Assembleia Geral da ONU ter acolhido mais ampladefinição em que cabem o trabalho doméstico forçado, casamentos falsos, o trabalhoclandestino e a adopção falsa (Resolução 49/166, de 23 de Dezembro 1994).3 Como também não o utiliza a Decisão Quadro do Conselho da U.E. de 19/7/2002, que obriga osEstados membros a conformarem as respectivas leis internas com as suas orientações até 1/8/2004.No seu artigo 1º, nº1, c) consagra-se a formula “quando haja abuso de autoridade ou de umasituação de vulnerabilidade” e, na esteira dos trabalhos preparatórios do Protocolo em referência,logo se define que tal abuso deverá ser de maneira a que a pessoa não tenha de facto outraescolha possível e aceitável que a de submeter-se a esse abuso (cfr. J.O. L 203, de 1/08/2002).

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deverá entender-se “toda a situação em que a pessoa visada não tenhaoutra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso.”4

Pessoalmente defendo a interpretação de que são abrangidospela previsão do art. 169º do Código Penal não só os casos em que aspessoas sejam levadas de Portugal para país estrangeiro como tam-bém os casos em que sejam trazidos de país estrangeiro para Portu-gal. A doutrina não é, porém, totalmente explícita e não é ainda conhe-cida jurisprudência sobre este assunto.

Faço contudo notar que caso se interprete restritivamente o pre-ceito, por forma a não considerar abrangidas situações em que aspessoas sejam trazidas de país estrangeiro para Portugal, nem porisso a factualidade ficará sem tutela penal. Responderá nesse caso,como seguramente nos casos de “tráfico nacional” (isto é, dearrastamento para a prática de prostituição ou de actos sexuais derelevo dentro do país, sem cruzamento de fronteiras) o artigo 170º doCódigo Penal, epígrafado de “lenocínio”.

No nº 1 desse artigo pune-se com pena de prisão de 6 meses a5 anos “ quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa fomentar,favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou aprática de actos sexuais de relevo”.

E no nº 2 desse mesmo artigo punem-se com pena de prisão de1 a 8 anos as situações fácticas anteriormente referidas se o sujeitoactivo usar de “violência, ameaça grave, ardil, manobra fraudulenta,de abuso de autoridade resultante de uma relação de dependênciahierárquica, económica ou de trabalho, ou se aproveitar de incapaci-dade física da vítima ou de qualquer outra situação de especialvulnerabilidade”. É o denominado “lenocínio agravado”.

4 O elemento “abuso de uma situação de vulnerabilidade” não constava ainda da definição de“tráfico de pessoas” acolhida no “rolling text” apresentado à última revisão do comité “ad hoc”para a elaboração dos textos dos textos da convenção mãe e protocolos (documento A/Ac. 254/4/Add 3/Ver 7). A par da fraude, engano e abuso de autoridade referia-se então, também , a“incitação” como modo de viciar a vontade da vitima. Ante a oposição de grande número deEstados ao emprego dessa expressão (por se considerar, nomeadamente, demasiado vaga,imprecisa e ampla e coincidente, no leque dos vícios da vontade, com os conceitos de “fraude”e “engano”), a Espanha propôs que, em sua substituição se consagrasse a frase, tida por consensual,

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Verificou-se, uma vez mais, o alargamento do tipo, em termossimilares aos utilizados para o crime de tráfico de pessoas, mercê daLei 99/2001.

Os menores são, por seu turno, alvo de especial protecção. Noart. 176º do Código Penal pune-se o lenocínio e o tráfico de menoresde 16 anos, segundo diferentes condicionalismos e graduações pe-nais. Este normativo, reformulado também pela já citada Lei 99/2001,utiliza na sua previsão sancionatória os conceitos já anteriormente re-feridos, entre os quais avulta o de “aproveitamento de qualquer situa-ção de especial vulnerabilidade”.

Não encerrarei o capítulo do tratamento jurídico penal sem dei-xar expressas seis notas complementares:

1ª - O lenocínio e o tráfico de pessoas bem como o lenocínio etráfico de menores são consideradas infracções subjacentes ao cri-me de branqueamento de capitais, de harmonia com o disposto no art.2º do Dec. Lei 325/95, na redacção introduzida pela Lei 10/2002, de 11de Fevereiro.

O legislador bem poderia, contudo, ser mais cauteloso. Uma in-terpretação mais “fundamentalista” poderá afastar a aplicação do regi-me do branqueamento aos casos menos graves de lenocínio e tráficode menores p. e p. no nº 1 do art. 176º do Código Penal com pena deprisão de 6 meses a 5 anos. Poderá, em suma, argumentar-se que oconceito de “tráfico de pessoas” empregue pela Lei 10/2002 abrange ocrime do art. 169º mas não o de “lenocínio e tráfico de menores “tipificadono art. 176º. Tanto mais que, anteriormente, a Lei 65/98, de 2 de Se-tembro, versando sobre o mesmo tema, curou de fazer referênciaautónoma a estas duas infracções.

2ª - Dada a diversidade de bens jurídicos protegidos é seguroque há uma relação de concurso efectivo entre os crimes de lenocínioou lenocínio de menores e os crimes de auxílio á imigração ilegal e deassociação de auxílio à imigração ilegal.

Embora considerando menos pacífica a afirmação propendo aconsiderar, pelas mesmas razões (da diversidade dos bens jurídicos

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protegidos) que existe também concurso efectivo entre os crimes detráfico de pessoas ou de tráfico de menores e os crimes de auxílio àimigração ilegal e de associação de auxilio à imigração ilegal.

3ª - Expressão clara da importância atribuída a estes tipos decrime e do interesse posto na sua repressão é o facto de a Lei 304/2002, de 13 de Dezembro, que procedeu à reformulação das compe-tências da Polícia Judiciária, ter atribuído a este órgão superior de po-lícia criminal competência para a investigação dos crimes de tráfico depessoas com o emprego de coacção grave, extorsão ou burla relativaa trabalho, “sem prejuízo das competências do Serviço de Estrangei-ros e Fronteiras”.

Em meu entender a intervenção investigatória da Polícia Judiciáriatem ainda lugar em todas as demais situações integrantes de crimes detráfico de pessoas e de lenocínio puníveis com pena superior a 5 anos,quando cometidos por desconhecidos ou sempre que sejam vítimasmenores de 16 anos ou outros incapazes, por força do disposto no art.5º, nº 2, b) da respectiva lei orgânica e no art. 4º b) da L.O.I.C.. A interven-ção investigatória da P. J. assumirá aí, até, carácter exclusivo e nãopartilhado com o SEF, como sucede nos casos primeiramente referi-dos.

4ª - Quando as vitimas do tráfico forem mulheres podem elasbeneficiar dos mecanismos reforçados de protecção legal instituídospela Lei 61/91, de 13 de Agosto, que estabelece um sistema de pre-venção e de apoio, que institui um gabinete SOS para atendimentotelefónico, que cria junto dos órgãos de polícia criminal secções deatendimento directo, que cria um regime de incentivo à criação e funci-onamento de associações de mulheres com fins de defesa e protecçãoe que estabelece um sistema de garantias adequadas à cessação daviolência e à reparação dos danos ocorridos.

Pese embora o facto de só recentemente ter logrado regulamen-tação, é saudável a sintonia desta lei com as medidas de protecçãopreconizadas pelo novo protocolo das Nações Unidas, que posterior-mente referirei.

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5ª No domínio da prova pode utilizar-se, neste tipo de crimes, omecanismo das “declarações para memória futura”, por via do dispostono art. 271º do C.P.P.. Tal tipo de procedimento é, até, aconselhávelcomo regra, tendo em conta a extrema mobilidade das vítimas (quenão raro pretendem, após eclosão do processo, mudar de paradeiro esumirem-se do alcance dos exploradores) e, também, a sua tendencialvolubilidade face a pressões.

Por previsão expressa da Lei de Protecção de Testemunhas emProcesso Penal (Lei 93/99, de 14 de Julho), pode ter lugar durantealguma ou em todas as fases do processo (incluindo, portanto, as de-clarações para memória futura) a reserva do conhecimento da identi-dade da testemunha (cfr. art. 16 º), objectivo que poderá atingir-se atra-vés de depoimentos ou declarações com ocultação da imagem oudistorção de voz, realizáveis por teleconferência ou por outro meioadequado (cfr. art. 19º).5

Lembro, no entanto, as limitações que em matéria de aprecia-ção das provas assim recolhidas (com reserva de identidade) são fi-xadas nessa Lei (art. 19º).

6 ª Estes crimes (de tráfico de pessoas, de lenocínio e de lenocínioe tráfico de menores), pela sua gravidade, constam, em circunstânciasdeterminadas, de um ou ambos os catálogos recentemente estabeleci-dos pelas Leis 101/2001, de 25 de Agosto e 5/2002, de 11 de Janeiro.

A primeira dessas leis estatui o regime jurídico das operaçõesencobertas para fins de prevenção e investigação criminal. No seuâmbito de aplicação inscrevem-se, entre outros, os “t:crimes contra aliberdade e contra a autodeterminação sexual a que corresponda, emabstracto, pena superior a 5 anos de prisão, desde que o agente nãoseja conhecido, ou sempre que sejam expressamente referidos ofen-didos menores de 16 anos ou outros incapazes” .

5 Estas medidas de protecção das vitimas para intervirem como testemunhas são preconizadaspela ONU em diversos documentos sobre a matéria (cfr., entre outros, o Relatório do Secretá-rio Geral à 53º Sessão da Assembleia Geral, em Setembro de 1998 – A/53/409).

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A segunda dessas leis estabelece medidas de combate àcriminalidade organizada e económico – financeira, prevendo regrasespeciais de quebra de segredo profissional, de obtenção de prova ede perda de bens a favor do Estado. No seu âmbito de aplicação ins-crevem-se, entre outros, os crimes de lenocínio e de lenocínio e tráficode menores desde que cometidos de forma organizada. Mas não cons-ta, surpreendentemente (face ao teor do protocolo da Convenção dePalermo que já assinámos e nos propomos ratificar) o crime de tráficode pessoas p. e p. no art. 169º do Código Penal.

Contudo, como verão mais adiante, quando abordar o “campode aplicação” do novo protocolo das Nações Unidas relativo ao tráficode pessoas, algumas serão as obras de ampliação de que o edifíciolegal português carecerá ainda, depois da Lei 99/2001, para se confor-mar ao novo direito convencional em matéria de tipificação criminal.

Posto isto, vejamos qual a realidade com que Portugal se con-fronta na actualidade em matéria de tráfico de pessoas.

Parece-me insofismável que o tráfico de pessoas que, como aprópria semântica indica, é um fenómeno de cariz comercial ilícito,nasce do encontro da oferta com a procura. Do lado da oferta estãopessoas que por regra sofrem situações de extrema carênciaeconómica e de acentuado desequilíbrio social (são as vítimas do trá-fico), situações que as tornam presas fáceis de indivíduos, normal-mente agindo grupalmente e de forma organizada, que as reduzem aobjectos geradores de lucro (os traficantes). Do lado da procura estãogeralmente pessoas de melhor estatuto económico que as vítimas,que estendem ao campo do sexo (e só a este campo me refiro, porforça do quadro legal actualmente vigente em Portugal e em grandenúmero de outros países), as tendências consumistas que invademas sociedades modernas e mais desenvolvidas (são os clientes).

6 Cfr. neste mesmo sentido, o relatório sobre violência contra as mulheres, suas causas econsequências, apresentado à ONU (ECOSOC) em Fevereiro de 1997 (E/CN.4/1997/47).

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Desprezando o epíteto de simplista que poderá ser dirigido aesta conclusão, ouso afirmar que, tendencialmente, as vítimas vêmde países económica e socialmente mais debilitados e que os clien-tes estão em países económica e socialmente mais desenvolvidos.6

Os intermediários ou traficantes são de um lado e de outro e articu-lam-se de forma cada vez mais perfeita entre a fase de recrutamentoe a de colocação no mercado.

Portugal encontra-se a meio do caminho na escala do desenvol-vimento económico e social. É ainda dos menos desenvolvidos daUnião Europeia mas destaca-se já de muitos outros do globo na suamarcha ascensional. Assim, há ainda casos de mulheres portuguesasque são traficadas para outros países da União Europeia, assumindoa Espanha, até por razões de vizinhança, especial relevo como lugarde destino. Muito maior é, porém, o número de vítimas que aflui aPortugal. São quase exclusivamente mulheres (e relembro que estamoslimitados a casos de prostituição e da prática de actos sexuais de rele-vo) e provêm, sobretudo, da Rússia, da Ucrânia, da Polónia, da Hungria,do Brasil e da Colômbia. Os serviços policiais portugueses conside-ram mais organizado o tráfico das mulheres russas, ucrânianas e bra-sileiras. As provenientes dos países do leste europeu são usualmenteportadoras de visto para turismo, que por vezes é deixado caducar eque outras vezes é renovado em viagem de retorno temporário ao paísde origem. As brasileiras e as colombianas utilizam-se da dispensa devistos para Portugal e para Espanha, respectivamente, e aí tendem afixar-se ou a irradiar para outros Estados do espaço Schengen, en-trando em permanência ilegal três meses após a chegada.

O crime de tráfico de pessoas não tem ainda, em Portugal, aexpressão estatística que a dimensão do fenómeno da prostituiçãopraticada por mulheres vindas de países estrangeiros faria pressupor.Este é o campo, por excelência, das cifras negras e as razões podemdecifrar-se da forma seguinte:

1º - As exigências probatórias são elevadas, em função dos pres-supostos de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta aque a lei penal tem confinado o tipo. Os alargamentos recentemente

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registados permitem prognosticar melhor nível de reacção, se vier arevelar-se suficientemente robusta a interpretação dos novos concei-tos de “abuso de autoridade” e de “aproveitamento de qualquer situa-ção de especial vulnerabilidade”.

2º É normalmente escassa a colaboração das vítimas, tanto maisimportante quanto exigente é a prova daqueles pressupostos. A es-cassez dessa colaboração advém especialmente do seu apertado con-trolo pelos traficantes e exploradores em geral, do desconhecimentoda língua do país de destino e, até, da desorientação geográfica, doreceio de represálias sobre elas próprias ou sobre os respectivos fa-miliares nos países de proveniência, do receio de que no seu meio deorigem seja conhecida a sua prostituição e, também, de acentuadosentimento de desconfiança em relação às instâncias formais de con-trole (polícias e tribunais) dos países de destino, herdadas de idênticosentimento nutrido já nos países de origem. Sentimento esse que ostraficantes e exploradores incansavelmente alimentam e que as víti-mas agudizam quando, ainda que com pleno fundamento (e éconsabida a necessidade de as polícias colherem nos meandros danoite e das actividades a ela ligadas informações sobre assuntos damaior grandeza criminal, como assaltos ‘a mão armada, terrorismo enarcotráfico) vislumbram agentes da autoridade ou, pelo menos, al-guém que lhes é sibilinamente apontado como tal, nos locais onde seprostituem.

Não é também descurável a circunstância de que algumas dasvitimas, por ânsia de lucro ou necessidade de sustento de dependên-cias tóxicas, preexistentes ou entretanto adquiridas, vencida a relutân-cia inicial, adiram ou se conformem com a situação de exploração aque são submetidas e se neguem assim a qualquer acto de colabora-ção com as autoridades. Num caso recentemente investigado conclu-ímos que da escassa percentagem que lhes cabia, descontada a quo-ta leonina dos traficantes e exploradores, cada ucraniana auferia numdia de prostituição o equivalente a pelo menos três meses de saláriono seu país de origem.

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3º - É elevado o grau de opacidade da acção dos agentes docrime, com hierarquia e segmentação funcional adequadas, grandemobilidade no terreno, utilização de línguas menos usuais (no casodas redes do leste europeu) e acesso a meios de comunicação facil-mente descartáveis.

Este é, a traços largos, o quadro da situação hoje vivida em Portu-gal. Será, por certo, similar à vivida em muitos outros países do nossohemisfério civilizacional e cultural. São, por isso, fundadas as expec-tativas que acalentamos em relação ao novo protocolo das NaçõesUnidas, visando prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas.

Passarei, pois, nesta segunda parte da minha comunicação,como prometido, à descrição ou notícia das sua linhas estruturantes.

O protocolo é, como o seu próprio título indica, adicional à con-venção contra a criminalidade organizada transnacional, concomitan-temente redigida. Logo, um Estado ou uma organização regional deintegração económica só pode ser parte no protocolo se se tiver tam-bém constituído parte na convenção.

Daí decorre que, como consta das respectivas “disposições ge-rais”, o protocolo completa a convenção e é interpretado conjuntamen-te com ela e que as disposições da convenção se lhe aplicam “mutatismutandis”, salvo disposição em contrário.

Significa isso, desde logo, que disposições tão significativas daconvenção como as relativas ao confisco e apreensão, à cooperaçãointernacional para fins de confisco, à extradição, ao auxílio judiciário,às investigações conjuntas, às técnicas especiais de investigação e àprotecção de testemunhas são aplicáveis à prevenção, repressão epunição do tráfico pessoas.

Não cabendo nos apertados limites desta comunicação umaanálise exaustiva dessas disposições da convenção mãe partamos,então, em visita aos termos do protocolo.

O protocolo tem por objectivos:

- a prevenção e o combate ao tráfico de pessoas, dandoespecial atenção às mulheres e crianças;

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- a protecção e auxílio às vítimas do tráfico, com pleno res-peito pelos seus direitos fundamentais;

- e a promoção da cooperação entre os Estados Partespara alcance desses objectivos.

Aplicar-se-á, salvo disposição em contrário, à prevenção,às investigações e às perseguições penais respeitantes ao crime detráfico de pessoas cometido intencionalmente, quando ele assumacarácter transnacional e esteja implicado no seu cometimento um gru-po criminal organizado.

Por tráfico de pessoas deve entender-se, nos termos do proto-colo (art. 3º, alínea a)) o recrutamento, o transporte, a transferência, oalojamento ou a recolha de pessoas, pela ameaça de recurso à forçaou pelo recurso à força ou a outras formas de coacção, por rapto,fraude, engano, abuso de autoridade ou de uma situação devulnerabilidade ou através da oferta ou aceitação de pagamentos oude vantagens para obter o consentimento duma pessoa que tenhaautoridade sobre uma outra, para fins de exploração.

A exploração compreende, pelo menos, a exploração da prosti-tuição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou

7 Em relatório recente do Conselho da Europa, aprovado pelo seu Comité de Igualdade de Oportuni-dades para Homens e Mulheres, considera-se que os principais factores determinantes da maiorvulnerabilidade das mulheres são a pobreza e a desfavorável situação económica e que estasresultam de não terem acesso a crédito, bens, propriedades, heranças, etc., nem sequer a forma-ção (in Relatório do Secretário Geral da ONU ao ECOSOC , de 9/1/2002 – E/CN . 4/2002/90).8 Comentaristas dos arts. 225-13 e 225-14 do C. Penal francês, que empregam o conceito deabuso da vulnerabilidade da vítima em matéria de condições de trabalho e de alojamento,limitam-se a afirmar que “ a vulnerabilidade pode ser definida como o carácter de uma pessoavulnerável, frágil, que dá ensejo ao abuso” e que a vulnerabilidade, bem como a dependência,conduzem à colocação da pessoa por elas afectada em “situação de inferioridade em relaçãoàs demais”, que tendem a tirar disso partido. Consideram que os factores susceptíveis de gerar avulnerabilidade ou a dependência são extremamente variáveis e que, por isso, o legislador quisutilizar o conceito em branco, deixando campo livre à jurisprudência, a fim de esta poderapreender situações que ele mesmo não tivesse considerado (cfr. Sandy Licari, in Rev. Sc. Crim.(3), Julho - Setembro 2001, pags. 555 e segs.).

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serviços forçados, a escravatura ou práticas análogas à escravatura,a servidão e o transplante de órgãos.

Dos trabalhos preparatórios constará, como já anteriormente re-feri, o esclarecimento de que por abuso de uma situação de vulnera-bilidade deverá entender-se toda a situação em que a pessoa visadanão tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-seao abuso.7 8 9 Deles constará também a precisão de que o transplan-te de órgãos em crianças por razões médicas ou terapêuticas legíti-mas sem o consentimento de um dos pais ou do representante legalnão deve ser considerado como uma forma de exploração.

De acordo com o texto do Protocolo (art. 3º, alínea b)) o consen-timento da vítima na exploração projectada não releva quando tiversido empregado qualquer dos meios enunciados na alínea a).

Por seu turno (nos termos da alínea c) do art. 3º) o recrutamen-to, o transporte, a transferência, o alojamento ou a recolha de umacriança (isto é, de uma pessoa com menos de 18 anos, conforme naalínea d) se estipula) para fins de exploração são considerados comotráfico de pessoas, mesmo se não tiver sido utilizado qualquer dosmeios enunciados na alínea a).

De harmonia com a convenção (art. 3º , nº 2), uma infracção éde carácter transnacional quando:

- tenha sido cometida em mais de um Estado,

- tenha sido cometida num Estado mas uma parte subs-tancial da sua preparação, da sua planificação, da sua con-dução ou do seu controlo tenha tido lugar num outro Esta-do,

- tenha sido cometida num Estado mas implique um grupocriminoso organizado que se dedique a actividades crimi-nosas em mais de um Estado,

- ou tenha sido cometida num Estado mas tenha efeitossubstanciais num outro Estado.

Também de acordo com o texto da convenção (art. 2º, alíneasa) e c)):

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- a expressão “grupo criminoso organizado” designa umgrupo estruturado de três ou mais pessoas, existente des-de há algum tempo e agindo concertadamente com a fina-lidade de cometer uma ou mais infracções graves ouinfracções estabelecidas em conformidade com a conven-ção para obter, directa ou indirectamente, uma vantagemfinanceira ou outra vantagem material;

- e a expressão grupo estruturado designa um grupo quenão se constituiu ao acaso para cometer imediatamenteuma infracção e que não tem necessariamente papéis for-malmente definidos para os seus membros, continuidadena sua composição ou estrutura elaborada.

Cada Estado Parte é obrigado a conferir o carácter de infracçãopenal, no seu direito interno, aos casos de tráfico de pessoas quandocometidos intencionalmente.

Sob reserva dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídi-co cada Estado Parte deve, além disso, conferir o carácter de infracçãopenal à tentativa de cometimento do crime de tráfico. E deve tambémprever a penalização da cumplicidade e da instigação.

Sumariamente descrita a vertente repressiva do Protocolo,passemos então à vistoria da sua faceta protectiva ou assistêncial.

Os artigos 6º, 7º e 8º prevêem medidas de assistência eprotecção às vítimas do tráfico, entre as quais avultam:

- a protecção da sua identidade e vida privada, nomeada-mente através da não publicitação dos actos processuais;

- o fornecimento às mesmas de informações sobre os pro-cedimentos judiciários e administrativos aplicáveis;

- assistência para que as suas opiniões e preocupaçõessejam apresentadas e examinadas no processo penal con-tra os autores das infracções.

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Prevê ainda que possam ser tomadas medidas que visem orestabelecimento físico, psicológico e social das vítimas, se necessárioem cooperação com organizações não governamentais, entre as quais:

- o fornecimento de alojamento adequado;

- o fornecimento de conselhos e de informações, sobretu-do respeitantes aos direitos que a lei lhes reconhece, emlíngua que possam compreender;

- e o fornecimento de assistência médica, psicológica ematerial e de possibilidades de emprego, de educação ede formação.

Cada Estado Parte deve, ainda, esforçar-se em garantir a segu-rança física das vítimas enquanto elas se encontrem no seu territórioe, bem assim, garantir que o seu sistema jurídico lhes ofereça a possi-bilidade de obterem reparação do prejuízo sofrido.

Nos termos do artº 7º cada Estado Parte deve ainda considerara adopção de medidas legislativas ou de outras medidas apropriadasque permitam ás vítimas permanecer no seu território, a título tempo-rário ou permanente, tidos devidamente em conta factores humanitári-os e pessoais.

O artigo 8º estabelece um regime adequado de repatriamentodas vitimas que consiste, essencialmente:

- na facilitação e aceitação do seu retorno sem demorainjustificada ou não razoável por parte do Estado da suanacionalidade ou em que tivesse o direito de residir a títulopermanente no momento em que entrou no Estado Partede destino;- na obrigação de consideração, pelos Estados Partes, defactores como a segurança da vítima e a evolução do pro-cesso respeitante ao seu tráfico, dando-se preferência aorepatriamento voluntário;

- na verificação, sem demora injustificada ou não razoável,a pedido do Estado Parte de acolhimento, por parte do Es-tado Parte requerido, se a vítima é seu nacional ou se tinha

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o direito de residir a título permanente no seu território nomomento da sua entrada no Estado Parte de acolhimento;- na emissão, a pedido do Estado Parte de acolhimento, dedocumentos de viagem ou de qualquer outra autorizaçãonecessária, pelo Estado Parte de que a vítima seja nacionalou onde tivesse residência permanente no momento da suaentrada no Estado Parte de acolhimento, a fim de facilitar oseu regresso no caso de não possuir tais documentos.

Na vertente especificamente preventiva são previstas, entreoutras, as seguintes medidas:

- A adopção, pelos Estados Partes, de estudos e de cam-panhas de informação, especialmente através dos órgãosde comunicação social, bem como de iniciativas sociais eeconómicas, a fim de prevenir e de combater o tráfico.

- A adopção ou o reforço de medidas para evitar os factoresque tornam as pessoas, especialmente as mulheres e cri-anças, vulneráveis ao tráfico, tal como a pobreza, o sub-desenvolvimento e a desigualdade de oportunidades.

- A adopção ou reforço de medidas legislativas ou outras,como as de ordem educativa, social ou cultural, paradesencorajar a procura que favorece todas as formas deexploração das pessoas, conduzindo ao tráfico.

São ainda, neste capítulo da prevenção, previstas medidas decooperação entre serviços de detecção, de repressão, de emigraçãoou outros que permitam detectar a passagem de fronteiras por partede autores ou vítimas do tráfico e o aperfeiçoamento, com tal finalida-de, dos agentes daqueles serviços.

São igualmente previstas medidas de reforço do controlo fron-teiriço, bem como a obrigação de os transportadores comerciais veri-ficarem se os seus passageiros possuem todos os documentos deviagem requeridos para a entrada no Estado de acolhimento.

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De acordo com os meios de que disponha, cada Estado Partedeve também tomar as medidas necessárias para que os documentosde viagem ou de identidade que emita não possam ser facilmente falsi-ficados, modificados, reproduzidos ilicitamente ou usados impropriamen-te.

E, a pedido de outro Estado Parte, cada Estado Parte deve verificar,em prazo razoável, a legitimidade e a validade dos documentos de via-gem ou de identidade por ele emitidos ou supostamente emitidos emseu nome, quando se suponha que são utilizados para o tráfico de pes-soas.

Vou terminar. Tentei trazer-vos esta boa notícia do achamento deum novo e mais eficaz instrumento para a prevenção, repressão epunição do tráfico de pessoas. Fui mais prolixo e seguramente maisfastidioso e menos pitoresco que Pêro Vaz de Caminha. Resta-me aconsolação de que, com o agitar destes temas, se criem condiçõespara que a breve prazo se consigam as 40 ratificações necessáriaspara a entrada em vigor do Protocolo. Não quero, nem por sombras,que daqui a dez anos tenhamos que relembrar o assunto.

Coimbra, Novembro de 2003

Euclides Dâmaso Simões,procurador geral adjunto

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As infAs infAs infAs infAs informaçõesormaçõesormaçõesormaçõesormaçõesarmazenadas pelaarmazenadas pelaarmazenadas pelaarmazenadas pelaarmazenadas pela

instituição bancária e oinstituição bancária e oinstituição bancária e oinstituição bancária e oinstituição bancária e odireito à intimidadedireito à intimidadedireito à intimidadedireito à intimidadedireito à intimidade

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têmis limberger,promotora de justiçado rio grande do sul

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AS INFORMAÇÕES ARMAZENADASPELA INSTITUIÇÃO BANCÁRIA E O

DIREITO À INTIMIDADE DO CLIENTE*

Têmis Limberger

Sumário: 1.Introdução – 2. A privacidade e sua criaçãodoutrinária nos EUA – 3. A importância do direito à intimidadefrente à informática e seu aspecto comercial – 4. Direitocomparado – 5. A importante construção jurisprudencial naAlemanha – 6. Disciplina no direito brasileiro – 7. A intimidadedo cliente de banco – 8. A previsão da privacidade no novoCCB – 9. Da responsabilidade – 9.1. Referente à responsa-bilidade pela comunicação – 9.2. Da construção da responsa-bilidade, a partir dos dispositivos do CDC –– 9. 3. Referenteaos valores e critérios a serem fixados no dano moral – 10.Da impossibilidade de registro, enquanto pendente discussãojudicial - 11. Direito ao esquecimento – 12. Conclusão.

1. Introdução:

A história da humanidade experimentou importantes transforma-ções devido a alguns descobrimentos que permitiram o desenvolvi-mento da civilização. A primeira é a escrita, que propiciou que as pes-soas se comunicassem não somente de uma forma oral, mas gráfica.E, ainda, a informação que poderia ser levada a distintos locais e tam-bém guardada para futuras gerações.

Vale ressaltar a importante conquista que foi o descobrimentoda máquina a vapor, que proporcionou o nascimento da indústria, dotrem e da eletricidade. Posteriormente, com a redução dos custos doslivros e da imprensa, tal fez com que a informação se popularizasse.

* Palestra proferida no 6. Congresso de Direito do Consumidor, Maceió, em 30/05/02.

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Neste aspecto, o acesso das pessoas à informática representaum grande avanço, pois não é somente uma máquina com seu aspec-to tecnológico de última geração. Traz consigo a possibilidade de trans-mitir a informação de uma forma muito mais célere e cada vez setorna mais acessível às pessoas, devido ao tamanho menor dos com-putadores e a diminuição do preço.

A informática não representa somente uma inovaçãotecnológica, mas um fator que permite acelerar e impulsionar muitasoutras descobertas. A diferença ocorre, ademais, porque o compu-tador não está isolado, porém em rede, em conexão com outros equi-pamentos. Isso faz com que a informação saia de um âmbito restri-to e seja transmitida globalmente e com uma velocidade ímpar, com-binando os fatores tempo e espaço.

A Internet1, a diferença da eletricidade, não transmite uma cor-rente inerte, senão informação, significa dizer poder2, através de umalinha telefônica. Isto é como uma moeda com duas faces. A primeira éuma vantagem, propicia que a informática armazene o conhecimentoe o transmita de uma maneira rápida. A outra, um risco, pois os direitospodem ser violados. Essa possibilidade exige uma intervenção do po-der público como forma de proteção ao cidadão.

O progresso tecnológico e o direito à informação conferem no-vos aspectos à intimidade. O direito à informação encontra limites, àsvezes, em alguns direitos fundamentais, entre eles à intimidade ou aocontrário. Nos casos concretos se faz um cotejo entre os interessespúblicos e privados, a fim de determinar o preponderante. Estando oscomputadores presentes na vida quotidiana das pessoas, é naturalque isto traga implicações no mundo jurídico em muitos aspectos. As

1 A respeito dos reflexos da INTERNET nas modernas relações de consumo, veja-se artigo daProfª Cláudia Lima Marques, “ A proteção do consumidor de produtos e serviços estrangeiros noBrasil: primeiras observações sobre os contratos a distância no comércio eletrônico”, Revista deDireito do Consumidor nº 41/ 39.

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transformações fáticas na sociedade, implicam no desenvolvimentoou criação de novos direitos3.

Do direito estrangeiro vale mencionar a contribuição da Consti-tuição Espanhola, em seu art. 18.4, que se preocupou com a proteçãoda honra e da intimidade frente ao fenômeno da informática, dispondo:“a lei limitará o uso da informática para garantir a honra e a intimidadepessoal e familiar dos cidadãos no pleno exercício de seus direitos”. Apartir da Constituição de 1978, esta proteção possui status constitucio-nal. Tal confere uma proteção jurídica maior, pois se trata de direitofundamental, que garante a interposição do recurso de amparo4 .

No direito à intimidade se pode visualizar duplo aspecto5. O direi-to à intimidade evoluiu de uma aspecto negativo a um positivo. Surgiu

3 O direito muda de conteúdo, conforme os novos tempos. O próprio conceito de liberdade nãoé o mesmo em todas as épocas. A liberdade dos antigos é diferente da liberdade dos modernos,conforme Benjamin Constant. Para o autor há duas classes de libedade. Esta liberdade queconhecemos, hodiernamente, surge com a Revolução Francesa e está relacionada à idéia degoverno representativo. Atualmente, o direito de estar somente submetido às leis. Nos povosantigos, o indivíduo era soberano nos assuntos públicos e um escravo nas questões privadas.Modernamente, ao contrário, o indivíduo é independente em sua vida privada, não é umsoberano mais que em aparência nos assuntos públicos, inclusive nos Estados mais livres. ParaConstant, o objetivo dos antigos era a repartição do poder social entre os cidadãos de umamesma pátria e a isso chamavam de liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança nosassuntos privados e denominam liberdade às garantias concedidas pelas instituições a estes,consoante Benjamin Constant, Escritos Políticos, “De la libertad de los antiguos comparada conla de los modernos”, CEC, Madrid, 1989, pp. 257-285.Sartori sustenta a ausência de diferença entre a esfera pública e privada para os povos antigos. Oconceito de liberdade, na época dos gregos e romanos, era um conceito político. O conceito deliberdade que conhecemos hoje é associado à idéia de de democracia no Estado Liberal, conformeGiovani Sartori, Teoría de la Democracia, vol. II, 1ª reimp., 1ª ed., Madrid, 1997, cap. X, pp. 343-65.4 O recurso de amparo é uma ação processual prevista para proteger os direitos fundamentaisconsiderados mais importantes, que estão previstos nos arts. 14 a 30, da CE. Exemplificativamente:direito à igualdade; direito à vida e à integridade física e mental ; liberdade ideológica,religiosa e de culto: à honra, à intimidade e a própria imagem. No art. 18.4, CE, especificamen-te se encontra a limitação ao uso da informática para garantir a honra e a intimidade pessoal efamiliar dos cidadãos e o pleno exercício dos direitos políticos.O recurso de amparo é interposto perante o Tribunal Constitucional (a quem incumbe a guarda daConstituição). São legitimados para a interposição do recurso: o próprio cidadão que tiver seudireito fundamental lesado, art. 53.2, CE, o Defensor do Povo e o Ministério Público, conforme art.46.1, “a”, da Lei Orgânica nº 2/79, do TC. Caberá a alegação de violação a direito fundamentalao TC, incidentalmente, quando se tratar de recurso interposto em razão de ato judicial omissivo.Para aprofundar a questão sobre as hipóteses de cabimento de recurso de amparo, veja-se :Franciso Caamaño Domínguez [et al.], Jurisdicción y procesos constitucionales, McGraw-Hill,Madrid, 1997, pp. 121/40.5 A propósito da liberdade positiva e negativa, Isaiah Berlín, “Dos conceptos de libertad”, inCuatro ensayos sobre la libertad, Alianza, Madrid, 1988, pp. 187-243.

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como o direito a não ser incomodado, até se configurar como um direi-to a exigir prestações concretas da entidades públicas. A evolução daintimidade acompanha as mudanças históricas do Estado. No EstadoLiberal, o indivíduo somente assegura proteção de sua intimidade con-tra atos exteriores. Na fase do Estado Social, com característicasintervencionistas, o indivíduo pode exigir providências do poder públi-co. No âmbito da informática, o conhecimento do cidadão com relaçãoao conteúdo dos bancos de dados, tanto na fase da coleta, quanto noarmazenamento dos dados, relativos ao indivíduo. Desta maneira, oHabeas Data representa uma nova versão do Habeas Corpus Act, naproteção jurídica do cidadão com relação ao fenômeno informático.

Com relação às informações que o cliente de banco fornece àinstituição financeira duas hipóteses podem se apresentar.

Por primeiro, o cliente de banco ao abrir uma conta na agênciafornece inúmeras informações que serão armazenadas pela institui-ção financeira. Estas devem ser corretamente guardadas, sob penade trazer inúmeros prejuízos, uma vez que se estas forem transmiti-das poderão trazer prejuízo aos direitos fundamentais do correntista. Arespeito dessa temática não foi encontrada jurisprudência.

E, por último, o objeto do trabalho, em que o cliente é devedor eessa informação é repassada ao SPC6, SERASA7 ou outro banco dedados com registro negativo, deve haver a prévia comunicação (art. 43,§2º, do CDC). Tal ocorre, a fim de que o mesmo confira se a informaçãoapresenta conteúdo de veracidade, sob pena de ter sua intimidade e

6 O SPC – Serviço de Proteção ao Crédito, ligado à Confederação Nacional dos DirigentesLojistas (CNDL), é o mais amplo de todos esses serviços nacionais, detendo em torno de 70% domercado brasileiro de informações de crédito ao consumidor. Este banco de dados presta serviçode informação a 850 Câmaras de Dirigentes Lojistas no Brasil inteiro, conforme Denise Carvalho,“A expansão do mercado de informações econômicas”, in Revista Mercado, publicação da ADVB,dez. 1998, p. 28, citada por Antônio Hermann de Vasconcelos Benjamin, Código Brasileiro deDefesa do Consumidor, 7ª ed., Forense, São Paulo, 2001, p. 354.7 Outro grande banco de dados é o SERASA que emprega 1500 funcionários distribuídos por 130agências ou postos avançados por todo o Brasil. No ano de 1998 prestou serviço às instituiçõesfinanceiras, mas não só a estas, possui cerca de 300 mil clientes , atendendo a mais de 1 milhão deconsultas ao dia, conforme Elcio Anibal de Lucca ( presidente do SERASA) , entrevista a RevistaMercado, publicação da ADVB, dez. 1998, p. 23, citado por Benjamin, op. cit. nº 6, p. 354.

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outros direitos fundamentais violados, já que este banco de dados infor-mará amplamente ao comércio sobre a situação do cliente, podendo daílhe advir prejuízos econômicos (como o abalo de crédito), e morais.

À intimidade do cliente de banco e os arquivos, em grande parteinformatizados, são consagrados os seguintes direitos previstos noart. 43, do CDC: a) art. 43, § 1º, 1ª parte, objetividade dos dados; b)direito ao esquecimento8; b.1) art. 43, § 1º, 2ª parte, informações nega-tivas não podem ser armazenadas por mais de cinco anos e; b.2) art.43, § 5º , após a prescrição do débito não poderão ser fornecidas infor-mações; c) art. 43, § 2º, comunicação, tem por objetivo garantir aefetivação dos direitos de acesso e retificação; e, d) art. 43, § 3º, reti-ficação. Tais direitos serão desenvolvidos especificamente a partir doitem 7 deste trabalho.

2. A privacidade e sua criação doutrinária nos EUA:

O direito à intimidade, the right to privacy9, surgiu por criação dou-trinária de Samuel Warren y Louis D. Brandeis, sendo que este posteri-ormente se tornou juiz da Suprema Corte. O Senador Samuel Warrenconsiderou que os jornais de Boston haviam exagerado ao divulgar notí-cias reservadas sobre o matrimônio de sua filha. Warren pediu ajuda aojurista Brandeis, a fim de verificar se o common law oferecia uma normapara proteger a intimidade do cidadão. A partir da análise dos preceden-tes se construíu um direito à privacy,a partir dos casos de propriedade(property), quebras de confiança (brech of confidence), violação de di-reitos autorais (copyright) e também, os casos de difamação (defamation).

8 Direito ao esquecimento do direito espanhol, “Derecho al olvido”, veja-se a propósito GiovanniB. Ferri, “Privacy e libertá informatica” in Banche dati telematica e diritti della persona, di GuidoAlpa e Mario Bessone, QDC, Cedam Padova, 1984, p.51.9 Samuel Warren y Louis Brandeis, Privacy, Harvard Law Review, vol. 4, nº 5, pp. 193/219, 15/12/1890. O motivo que estimulou Warren a escrever foram as intromissões escandalosas dos jornaisde Boston em sua vida familiar. Para a tarefa de escrever convidou a Brandeis. O direito a quenos deixem em paz, oriundo da expressão inglesa the right to be let alone, surge com a difusãodo jornalismo e a possibilidade de interferir na vida privada.

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A conclusão a que chegaram foi de que, através do direito à privacy erapossível obter uma proteção jurídica, também, no caso de que a interfe-rência na vida privada se produzisse por meio da imprensa.

Warren e Brandeis10 conseguiram três anos após a publicaçãodo artigo, que o Tribunal da Georgia, utilizasse pela primeira vez a ex-pressão. Posteriormente, em 1965 a Suprema Corte Americana de-clarou que o direito à intimidade está implicitamente previsto na Cons-tituição, conferindo-lhe uma grande dimensão.

Em 1960, Willian Prosser11 propõe uma sistematização do con-ceito da privacy, que até então havia se desenvolvido através dos casosconcretos. Estes representam quatro situações diferentes, protegidaspela Common Law, nos EUA: a) a intromissão na solidão da vida privadade uma pesoa ou em seus assuntos privados; b) a divulgação de fatosembaraçosos que afetem à pessoa; c) publicidade que poderia despres-tigiar a pessoa perante a opinião pública; d) apropriação (com vantagempara a outra parte) do nome ou do aspecto físico do litigante.

O direito norte-americano apresenta quatro aspectos de proteçãoà privacidade. O primeiro, consiste em que não haja intromissão no cír-culo íntimo de uma pessoa, por meio de uma conduta ofensiva ou mo-lesta. A segunda, diz respeito à divulgação de fatos privados, que senoticiam ao público, pertencentes ao círculo íntimo das pessoas. Inclui-se o direito ao esquecimento, que seriam os fatos verdadeiros, que de-vido à passagem do tempo ou alguma mudança na vida da pessoa, jáhaviam deixado de ser conhecidos. Sua divulgação atenta ao direito àintimidade. Em terceiro, a apresentação ao público de circunstânciaspessoais íntimas revestidas de uma falsa aparência - false public eye.No caso de divulgar fatos relacionados a uma pessoa, com considera-ções deformadas ou equivocadas. Por último, a apropriação em benefí-cio próprio, do nome ou da imagem de outra pessoa.

10 Conforme Fernando Herrero-Tejedor, Honor, Intimidad y propia imagen, 2ª ed., Colex, Madrid,1994, p. 39.

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3 – A importância do direito à intimidade frente à informáticae seu aspecto comercial:

Recente notícia ressalta o que aqui pretende se desenvolver: “Lojafilma todas as reações de seus consumidores”12. Diante da constataçãode que as pessoas omitem ou alteram informações quando são per-guntados em pesquisas de consumo, determinada Loja de Departa-mentos13 resolveu colocar centenas de câmeras de circuito interno deTV, microfones ultrasensíveis e uma central de última geração ondese concentram monitores. Os consumidores são filmados em todasas suas reações: quanto tempo uma pessoa ficou parada diante deum produto, qual o cartaz de ofertas que foi mais observado, qual asua expressão facial diante das mercadorias e qual a sua reação dian-te dos preços. O consumidor é observado como um peixe num aquá-rio. Como advertência aos que entram na loja foi colocado um cartazcom os seguintes dizeres: “ Este lugar está sendo filmado para testes;se isso o incomoda, volte quando este aviso não estiver aqui” 14. Res-salta-se que o cartaz está quase sempre no local. Segundo as leis doEstado, os proprietários podem filmar e gravar o quanto quiserem,desde que fiquem longe dos provadores.

Até que ponto um pequeno cartaz é suficiente para advertir os con-sumidores? O consentimento para a captação dos dados está atendido?Saliente-se que, outras vezes, podem haver câmeras em locais sob opretexto de vigilância, quando em realidade as imagens servem para ob-servar o perfil de consumo, em um completo desvio de finalidade.

Os publicitários perceberam que num questionário o consumi-dor pode alterar as informações seja sonegando informações que en-tender inadequadas ou respondendo perguntas de forma inverídica.Assim, com as filmagens, a privacidade do consumidor está sendofortemente invadida, visto que é mais devassada do que se preen-chesse a um formulário.

12 Jornal Folha de São Paulo, 16/6/02, p. A 23.13 Loja Once Famous, em Mineapolis (Estado de Minnesota).14 Jornal Folha de São Paulo, 16/6/02, p. A 23.

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A necessidade de proteger o cidadão juridicamente se origina emque os dados possuem um valor econômico, pela possibilidade de suacomercialização. Diante das novas técnicas da informática, a intimida-de adquire outro conteúdo. Visa-se resguardar o cidadão com relaçãoaos dados informatizados. Um arquivo informatizado pode guardar umnúmero quase ilimitado de informações. Assim, o indivíduo que confiaseus dados deve contar com a tutela jurídica para que sejam utilizadoscorretamente, quer se trate de um organismo público ou privado.

Os dados traduzem aspectos da personalidade, reveladores docomportamento e preferências, permitem até traçar contornos psico-lógicos. Desta maneira, pode-se detectar hábitos de consumo que têmimportância para a propaganda e o comércio. Através desses, é possí-vel produzir uma imagem total e pormenorizada da pessoa a que sedenominaria perfil da personalidade; inclusive na esfera da intimidade,convertendo-se no denominado “homem de cristal”15 .

As novas tecnologias convertem a informação em uma riquezafundamental da sociedade. As tecnologias interativas criam uma novamercadoria. Freqüentemente são captados dados em programasinterativos, em que o sujeito os fornece de uma maneira súbita e es-pontânea. Consequentemente, depois que são armazenados, o indiví-duo esquece que os proporcionou. É significativo que cada vez commaior freqüência, sejam realizadas sondagens de opinião e perfis deconsumo. Por isto, é um desafio oferecer proteção à intimidade frentea esses serviços.

Os meios de comunicação interativos modificam a capacidadede obter os dados, instituindo uma comunicação eletrônica contínua edireta entre os gestores dos serviços e os seus destinatários. Paratanto, é possível não somente um controle do comportamento dos in-divíduos, como um conhecimento mais estreito de seus costumes,interesses e gostos. Daí deriva a possibilidade de toda uma série deemprego dos dados colhidos.

15Denominação utilizada na Sentença de 15/12/83, do Tribunal Constiucional Alemão, Boletínde Jurisprudencia Constitucional, nº 33, enero de 1984, p. 137, que se trabalhará no item nº 5.

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A sofisticação dos serviços oferecidos é proporcional à quota deinformação pessoal que o indivíduo deixa nas mãos do provedor . Des-ta maneira, são realizados perfis individuais e coletivos dos usuários.Um fator que dificulta, igualmente, é que quanto maior é a extensão darede dos serviços, mais crescem as possibilidades de interconexãoentre os arquivos ou banco de dados e a disseminação internacionalda informação obtida.

A função da intimidade no âmbito informático, não é apenas pro-teger a esfera privada da personalidade, propiciando que o indivíduonão seja incomodado, por meio da má utilização de seus dados. Sepretende evitar, outrossim, que o cidadão seja transformado somenteem números16, tratado como se fosse uma mercadoria, esquecendo-se de seus aspectos subjetivos.

4. Direito Comparado

A experiência nos países é diferente. Em alguns, a tutela se es-tabelece a nível constitucional, outros através de lei ou da jurisprudên-cia. No tocante à legislação européia17, podem ser caracterizadas trêsgerações, em uma análise dos últimos 25 anos.

A fase inicial, que se caracteriza pelo rigor na criação dos arqui-vos informatizados. A lei do Land Hesse, na Alemanhã é a primeira,inaugurando a proteção dos dados informatizados de 7/10/70. Estetexto pioneiro contemplava somente os arquivos informatizados de

16 Nos bancos de dados com registro negativo, o controle do consumidor inadimplente é feito pornúmeros, qual seja por meio do nº do CPF, conforme referido pelo palestrante Leonardo Roscoe,no 6º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor.17 Importante referir também a experiência nos EUA: o Freedom of Information Act ( 1974) e oFreedom of Information Reform Act (1986), que visam assegurar o acesso e à retificação oucomplementação das informações . No direito norte-americano a preocupação se centra nosdados armazenados na administração pública. Estima-se que aí estão cerca de 50% dos dadosinformatizados do mundo, segundo Robert M. Gellman, “Les trois piliers de la politique dediffusion de l’information publique aux États-Units”, Revue française d’administration publique,nº 72, octobre-décembre 1994, p. 602. Por isso, evidentemente merece preocupação os bancosde dados públicos, pela quantidade de informação armazenada nos EUA.

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titularidade pública. A lei da República Federal Alemã de 27/1/77, queposteriormente a sucedeu, passou a regular os arquivos de titularidadepública e privada.

Neste período, foi editada a lei sueca de 11/5/73, a lei dinamar-quesa de 18/6/78 e a lei austríaca de 18/10/78, que já é de transição.

A segunda fase se caracteriza por normas menos rigorosaspara criação de arquivos e pela preocupação com relação a tutelados direitos fundamentais. São exemplos deste período: a lei france-sa de 6/1/78, a lei suíça de 1981, a lei da Islândia de 26/5/81e a deLuxemburgo de 30/3/79.

A legislação francesa aporta uma contribuição importante para oâmbito jurídico de proteção de arquivos informatizados, que é a cria-ção da Agência Nacional para proteção de dados. O objetivo do orga-nismo de controle é garantir a segurança e o resguardo da informaçãopessoal.

O Convênio de Estrasburgo de 28/1/81, marca a terceira fase,que se caracteriza pela unificação do direito europeu. O objetivo é agarantia dos direitos e a tentativa de não obstaculizar o desenvolvi-mento do setor informático. São deste período a lei do Reino Unido de12/7/84, a nova lei alemã de 20/12/90, a lei de Portugal de 20/4/91, aprimeira lei espanhola de 31/10/92 e a recente de 13/12/99, bem com alei italiana de 31/12/96.

Atualmente, a última grande novidade em termos de direito co-munitário é a Diretiva 95/46, de 24/10, que além da unificação dosgrandes rumos da legislação de dados informatizados na Europa, ten-ta possibilitar a livre circulação dos mesmos, especialmente no âmbi-to da Comunidade Européia.

Na Alemanha18, devido à anulação parcial da Lei de Censo dapopulação de 1982, pela sentença do Tribunal Constitucional, inicia-se um trabalho para aperfeiçoar a lei federal de proteção de dados,aprovada em 20/12/90. A concepção básica da lei não modificou com

18 No item nº 5 se fará uma referência à construção jurisprudencial.

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relação a legislação de 1977. Trata-se de uma lei que preenche lacunasdo ordenamento jurídico e desempenha uma função subsidiária, aindaque não complete a totalidade do sistema normativo correspondente.

A mudança substancial que a lei aporta, com relação à anterior é aque se refere ao bem protegido. Estatui como fim o objeto legal, o deproteger os dados pessoais contra os abusos a que pudesse dar lugar oarmazenamento, cessão, modificação e eliminação dos dados, visandoimpedir assim toda a lesão dos interesses legítimos das pessoas.

A lei alemã de 1990 estabelece um conjunto de princípios que afe-tam ao recolhimento e ao processamento dos dados. Esta lei pertenceà terceira geração sobre a matéria. Com as características da legisla-ção unificada e a tentativa de não impedir a circulação dos dados. Intro-duz o Princípio da Finalidade, que já havia sido definido pelo Convênio108 do Conselho de Europa. Substitui a noção de responsável do bancode dados pelo de organismo depositante. Por fim, a organização, o sis-tema de controle e a fiscalização se diversificam em função do caráterpúblico ou privado das entidades que armazenam os dados.

A terceira geração se caracteriza, ainda, por alguns Estados pre-verem na Constituição esta matéria e pela perspectiva de direito unifi-cado. Neste contexto, o importante aporte da Diretiva Comunitária 95/46, que contempla a garantia de proteção à intimidade com relação aotratamento informatizado de dados pessoais.

Na Itália, após a edição da Diretiva foi promulgada a Lei nº 675,de 31/12/96. O estatuto legal italiano não pretende somente se ade-quar ao rumos da legislação européia . A pessoa , seja com atitularidade singular ou coletiva, é colocada no centro do ordenamentoe é provida de uma garantia específica no setor da informação, queatualmente é o setor mais dinâmico e de maior desenvolvimento nasociedade. O texto legislativo contém duas formas de proteção. Umapara o setor público e outra para o privado. O aspecto públicoconcerne à liberdade de iniciativa econômica e ao bom funcionamentoda Administração com a proteção dos direitos dos administrados.Com relação à pessoa considerada em sua dimensão individual oucoletiva a legislação prevê: direito à intimidade e à identidade pesso-al, respeito à liberdade fundamental e respeito à dignidade humana.

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Esta nova legislação é estreitamente relacionada com os novoscaracteres da sociedade informatizada.

Na Espanha, a previsão normativa começa com o art. 18.4 CE19.A Constituição espanhola, junto com a portuguesa20 são as duas úni-cas da Europa a prever o problema dos dados informatizados e a inti-midade. São as Constituições mais jovens21 da Europa ocidental, queestão atentas a essa problemática. A primeira possui uma vantagemsobre a segunda, uma vez que contém o tratamento da matéria deforma mais sistemática e sucinta.

Visando adequar-se ao comando da Constituição Espanhola foieditada a Lei Orgânica22 de Tratamento Automatizados de Dados de Ca-ráter Pessoal – LORTAD, Lei nº 5/92. Recentemente, pretendendo adap-tar-se à Diretiva Comunitária foi promulgada a Lei nº 15, de 13/12/99.

A principal novidade que traz a nova lei espanhola é a ampliaçãode seu objeto , que até então vinha restringido a proteção da honra eintimidade pessoal e familiar dos cidadãos diante do tratamento deseus dados. A inovação ocorre em duplo aspecto: a) incluem-se noâmbito de proteção da lei todos os bancos de dados, informatizadosou não. Esta é a principal obrigação derivada da Diretiva Comunitáriaque deveria ser objeto de transposição no direito interno, ao estender aproteção aos arquivos não informatizados; b) protege-se o tratamento

19 O art. 18.4, da CE dispõe: “A lei limitará o uso da informática para garantir a honra e aintimidade pessoal e familiar dos cidadãos e o pleno exercício dos direitos ”.20 A Constituição portuguesa, em seu artigo 3º, disciplina a utilização da informática e em seuartigo 26, diz respeito a outros direitos pessoais, entre eles a reserva da intimidade da vidaprivada e familiar.21 Costuma-se estabelecer como marco as Constituições do segundo pós-guerra. Assim, na Ale-manha, a Lei Fundamental de Bonn de 1949, as Constituições Francesa de 1958 e a Italiana de1947, todas elas ainda em vigor . Estas Constituições vão influenciar a mudança das Cartas,após a queda de Salazar e Franco com a mudança dos regimes políticos. Tal exigiu a elabora-ção de novas Constituições em Portugal e na Espanha. Estas, por sua vez, influenciaram omodelo brasileiro na Constituição de 1988.Tratam o tema com acuidade, dentre outros: Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional,tomo I, 4ª ed., Coimbra Ed., 1990 e Marcello Cerqueira, A Constituição na História – origem ereforma, Ed. Revan, Rio, 1993.22 A Lei Orgânica no ordenamento jurídico espanhol corresponde à lei complementar no regramentobrasileiro.

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de dados pessoais, agora, com relação ao conjunto de liberdades pú-blicas e direitos fundamentais das pessoas , embora permaneça aespecial ênfase no âmbito da intimidade.

A lei espanhola anterior, quando foi elaborada, os legisladores já co-nheciam em parte, o conteúdo da Diretiva. Isso fez com que aproximada-mente 75% da lei já estivesse em conformidade com as regras unifica-das. As alterações dizem respeito a uma parcela menor da legislação.

5. A importante construção jurisprudencial na Alemanha

Em termos jurisprudenciais a contribuição mais valorosa foi ado Tribunal Constitucional Alemão, através da sentença de 25/12/8323.Vale destacar que na época em que foi prolatada, não existia normaexpressa na Constituição. A decisão foi fruto de interpretação de duasregras constitucionais. O objeto do julgamento era aprofundar as ba-ses constitucionais da proteção de dados relativos à pessoa. A normabásica em referência era o direito geral de respeito à personalidadegarantido pelo art. 2.1 24, combinado com o art. 1.125, que dispõe sobrea dignidade humana, da Lei Fundamental. Este direito compreende emparticular o poder de que cada indivíduo possui, ele mesmo, quando eem que limites os dados sobre sua pessoa podem ser revelados. A ques-tão proposta no recurso era de que a execução da lei era suscetível deatentar diretamente contra os direitos fundamentais, de liberdade deopinião, a inviolabilidade de domicílio e a liberdade de expressão. ACorte distingue dois tipos de banco de dados públicos. Os que sãoconstituídos pela Administração para execução da lei e aqueles quesão para fins estatísticos, sendo que para os primeiros as regras sãomais restritivas. Desta maneira, a lei não é conforme à Constituição,

23 Boletín de Jurisprudencia Constitucional nº 33, enero de 1984, p. 137.24 Art. 2.1- Todos têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade sempre que nãovulnerem os direitos de outrem e não atentem a ordem constitucional ou a lei moral.25 Art.1.1. A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todopoder público.

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porque o legislador deveria prever diversas garantias procedimentaisem favor dos cidadãos. E, ainda, que os mesmos fossem informadossobre seus direitos, prazos para eliminação de dados pessoais quepermitissem uma identificação; não havia previsão de recrutamentode pessoas para trabalhar no censo, que não fossem vinculadas àadministração e à cessão dos dados a outros administradores. Porestes motivos, a lei foi declarada inconstitucional.

O Tribunal extrai do direito fundamental do livre desenvolvimentoda personalidade, a faculdade de cada indivíduo de dispor principal-mente sobre a revelação e o uso de seus dados pessoais. Para aproteção em função da autodeterminação informativa, o Tribunal levaem consideração dois fatores. O primeiro, concernente à reserva delei da qual dependem as restrições de direito de autodeterminação in-formativa, que se encontra em função da aplicação concreta ou seja:somente com o respeito a uma situação padrão se pode realizar aopção legislativa entre uma elaboração de dados pessoais em inte-resse comum e o interesse particular dos limites de comunicação. Osegundo, para cada reprodução individualizada de dados sempre háque se considerar o princípio de uma finalidade concreta. A garantiados direitos dos cidadãos é condição para que funcione a democracialiberal - o status constitucional do cidadão, sua posição jurídica de for-mar parte ativa e constituinte do Estado.

O Tribunal Constitucional Federal Alemão interpreta os arts. 2.1 e1.1 da Lei Fundamental, a fim de conferir a proteção do indivíduo contraa coleta, o armazenamento, a utilização e a difusão ilimitadas de seusdados pessoais. O direito constitucional garante a possibilidade de oindivíduo determinar por ele próprio, a divulgação e a utilização dos mes-mos. É a denominada faculdade de autodeterminação informativa. Oindivíduo não tem nenhum direito sobre seus dados, no sentido de umasoberania absoluta e sem restrições. É a partir da personalidade que sedesenvolve o direito, dentro da área de informação da comunidade aque se transmite. A informação relacionada com a pessoa oferece umpanorama da realidade social, que não é exclusiva do interessado. Daísurge a tensão indivíduo-comunidade, cabendo ao Tribunal Constitucio-nal estabelecer o interesse preponderante, privado ou público.

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As limitações à autodeterminação somente são admissíveis nomarco de um interesse geral e superior e necessitam um fundamentolegal baseado na Constituição, que deve corresponder ao imperativo declaridade normativa inerente ao Estado de Direito. Na sua regulação,deve o legislador adotar preocupações de índole organizativa e de direitoprocessual suscetíveis de contrapor o perigo de vulneração do direito àproteção da personalidade, além do princípio da proporcionalidade.

Nas exigências de direito constitucional impostas a estas limita-ções, deve-se distinguir entre os dados referidos à pessoa que se po-dem captar e elaborar em forma individualizada e não anônima e os quesejam adequados às finalidades estatísticas. Na busca de dados parafins estatísticos, não cabe exigir adequação estrita e específica dosdados a sua finalidade. Por outro lado, na escolha da informação e suaelaboração devem estar protegidas dentro do sistema de informação.

O Tribunal entendeu que o programa de coleta de dados esta-belecidos pela lei do Censo não contempla um registro e a cataloga-ção da personalidade compatível com a dignidade do homem, nemresponde tampouco aos imperativos de claridade normativa eproporcionalidade. Se fazem necessárias, também, medidas comple-mentares de direito processual para assegurar a autodeterminação.

Comentando esta sentença, Palici di Suni26 reconhece uma ga-ranti sentença de 15/12/83, sobre o censo da população, o Tribunal re-conhece que o livre desenvolvimento da personalidade pressupõemodernamente cuidados na elaboração , coleta, memorização e utiliza-ção dos dados pessoais. Tal tutela se fundamenta no art. 1º (dignidadeda pessoa) e 2º (livre desenvolvimento da personalidade) da Lei Funda-mental. Este direito à informação não é ilimitado, porque o indivíduo estáinserido em uma comunidade social. Limitações a esse direito devemser determinadas no interesse geral e com fundamento legislativo.

26 Elisabetta Palici di Suni, “Diritti fondamentali e garanzie procedurali”, Diritto e società, nº 4,CEDAM, Padova, 1990, pp. 629/53. Depois da experiência de Weimar de normas puramenteprogramáticas, a Lei fundamental de Bonn, confere caráter de preceito a todas as previsõesconstitucionais.

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Esta construção foi extremamente importante porque a partirdesta sentença foi conferida proteção à intimidade, frente à coleta dedados, sem que houvesse um dispositivo legal explícito.

6. Disciplina no direito brasileiro

No Brasil, ainda não existe proteção jurídica eficaz e disciplinada, daintimidade frente aos bancos de dados informatizados27. O instituto quese aproxima, ainda que de maneira tímida, é o habeas data28 previsto noart. 5º, LXXII, da CF. A Lei nº 9.507/97, estatuiu a regulamentação dopreceito constitucional. O veto presidencial29 diminuiu o alcance da lei.

27 Apesar do Brasil ter recebido a influência das Constituições Portuguesa e Espanhola, quecontemplam dispositivos de proteção à intimidade relacionada à informática, nossa Carta nãoinstituíu comando similar. Sobre o histórico do constitucionalismo e a proteção à informática vernotas 19 a 21.28 O habeas data foi concebido na Constituição de 1988 como um instrumento essencialmentepolítico. Os membros da Assembléia Nacional Constituinte tinham em mente, sobretudo, osregistros do antigo Serviço Nacional de Informações – SNI, durante o regime militar de 1964,conforme Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública,Mandado de Injunção, Habeas Data, 21ª ed., Malheiros, São Paulo, 1999, p. 240.As informações sigilosas, obviamente, restariam protegidas. Não haveria razões para restringir oinstituto, sob a alegação de que desborda o conteúdo constitucional. A mens legis era específi-ca, os dados constantes nos arquivos do SNI. Esta problemática, todavia, cresceu muito nosúltimos anos, adquirindo maiores proporções com relação à idéia da tutela inicial.Para a propositura do habeas data em sede judicial é necessário o esgotamento da via adminis-trativa. Neste sentido, a Súmula nº 2, do STJ, desde o tempo em que havia somente o disposi-tivo constitucional, destituído de regulamentação legal. Tal orientação jurisprudencial foichancelada pelo parágrafo único do art. 8º, da Lei.29 “Art. 1º (Vetado)Parágrafo único – Considera-se de caráter público todo registro ou banco de dados contendoinformações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de usoprivativo do órgão ou entidade produtora ou depostária das informações.”Texto do veto do caput do art.1º - “Toda pessoa tem direito de acesso a informações relativas àsua pessoa, constantes de registro ou banco de dados de entidades governamentais ou decaráter público”.Razões do veto : “Os preceitos desbordam sensivelmente a configuração constitucional dohabeas data, impondo obrigações aos entes governamentais ou de caráter público sem qual-quer respaldo na Carta Constitucional. A definição constitucional do habeas data é precisa, nãopermitindo a conformação pretendida nestes dispositivos.Não é estabelecida, ademais, qualquer sorte de ressalva às hipóteses em que o sigilo afigura-seimprescindível à segurança do Estado e da sociedade, conforme determina a própria Constitui-ção (art. 5º, XXXIII).”

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O âmbito de proteção é ainda muito restrito30, uma vez quesomente se assegura o conhecimento de informações por parte docidadão com relação aos bancos de dados de entidades governa-mentais ou de caráter público. O impetrante resta destituído de prote-ção sempre que estiver diante de entidade de caráter privado. Tal limi-tação, a toda evidência fragiliza o instituto31.

Embora o art. 86 do CDC, que dispunha sobre o habeas data,tenha sido vetado32, sob o argumento de que contrariava ao art. 5º, LXXII,as regras remanescentes33 nos arts. 43/4 do CDC, referentes ao bancode dados e cadastros dos consumidores são muito mais avançadas eprotetivas do que a lei do que dispunha sobre o Habeas Data.

O § 4º do art. 43 equiparou os arquivos de consumo de qualquergênero às entidades de caráter público. O art. 5º, LXXII, da CF trata daconcessão do Habeas Data, com relação aos bancos de dados de enti-dades governamentais ou de caráter público. Daí se extrai que o consu-midor poderá optar entre a proteção conferida pelo CDC ou o HabeasData, sendo o primeiro de conteúdo mais protetivo. Daí se extrai que as

30 Atualmente se encontram em tramitação no Congresso Nacional: o Projeto de Lei nº 1.532/99,que dispõe sobre a elaboração e arquivos de documentos em meios eletromagnéticos, o Projetode Lei nº 1.682/99, com a disciplina penal referente à matéria e o Projeto de Lei nº 4.102/93que regulamenta o art. 5º,XII, da CF, dispondo sobre a inviolabilidade de dados. Caso estesprojetos venham a ser convertidos em lei, ocorrerá um incremento da tutela jurídica noordenamento brasileiro dos direitos do cidadão frente à informática.O projeto de lei nº 3.494/00 (do Senado Federal) dispõe sobre a estruturação e o uso de bancode dados sobre a pessoa e disciplina o rito processual do “habeas data”.31 Em que pese não haver uma proteção específica, há quem sustente que seria ossível construirtutela jurídica ao não-consumidor, a partir do art. 29 do CDC.32 “Art. 86 – Vetado- Aplica-se o habeas data à tutela dos direitos e interesses dos consumidores.”A justificativa apresentada ao veto dos arts. 85/6 - é de que “As ações de mandado de segurançae de habeas data destinam-se, por sua natureza, à defesa de direitos subjetivos públicos e têm,portanto, por objetivo precípuo os atos dos agentes do Poder Público. Por isso, a sua extensão ouaplicação a outras situações ou relações jurídicas é incompatível com a sua índole constitucio-nal. Os artigos vetados, assim, contrariam as disposições dos incs. LXXI e LXXII do art. 5º daCarta Magna.” Kazuo Watanabe, CDC Comentado pelos autores do anteprojeto, 7ª ed., Forense,São Paulo, 2001, pp. 778/9.33 “Art. 45 – Vetado – As infrações ao disposto neste Capítulo, além das perdas e danos, indeni-zação por danos morais, perda dos juros e outras sanções cabíveis, ficam sujeitas à multa denatureza civil, proporcional à gravidade da infração e à condição econômica do infrator, cominadapelo juiz na ação proposta por qualquer dos legitimados à defesa do consumidor em juízo. ” Oveto ao art. 45 do CDC não inibe a aplicação das disposições sobre a indenização por perdas edanos, bem como o dano moral, conforme exposto no trabalho , item 9.3.

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relações privadas de não-consumo, estão à margem de proteção dadisciplina legal específica, restando ao jurista o desafio da construção.

Com os computadores o armazenamento de dados fica cada vezmais fácil, com todos os riscos que uma má utilização possa causar.Apesar das limitações da lei, constituem-se em aspectos positivos adestacar que alguns registros comerciais como o Serviço de Proteçãoao Crédito ou listagens de mala direta estão abragindas na definiçãolegal. Tratam-se das hipóteses em que apesar de se tratar de atividadeprivada, caso sejam transmitidas as informações, dá-se o tratamentode caráter público, em virtude do parágrafo único do art.1º, da Lei. Con-sidera-se a transmisssão da informação potencial ou efetiva. Nestassituações estão abrangidos órgãos de qualquer natureza, desde que asinformações sejam transmissíveis ou transmitidas a terceiros.

Existem muitas entidades privadas que possuem um sem nú-mero de informações dos cidadãos e que ficam com a guarda de mui-tos dados, sem que haja um controle efetivo sobre os mesmos. Oconteúdo comercial ao estabelecer um perfil do consumidor é eviden-te. A intimidade do cidadão fica exposta por largo período de tempo.

7. A intimidade do cliente de banco:

O princípio estruturante do qual decorrem os demais direitos fun-damentais é a dignidade da pessoa humana (art. 1º,IIII, CF) . Tal propo-sição vem agasalhada no CDC, em seu art. 4º, “caput”. Daí se podeconcluir que a proteção da intimidade é corolário do princípio maior dadignidade da pessoa humana.

A intimidade e a privacidade no direito brasileiro apresentam sedeconstitucional, sendo assegurada indenização pelo dano material oumoral decorrente de sua violação, art. 5º, X, CF. Essa regra indenizatóriavem robustecida no art. 6º,VI, CDC.

Alguns países conferem tratamento à intimidade no texto consti-tucional e outros na legislação infra-constitucional34.

34 A intimidade e a privacidade já possuiam sede constitucional e a novidade consiste em que aprivacidade será incorporada ao direito brasileiro no novo CCB, vide item 8.

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O Código do Consumidor prevê a tutela nos arts. 43/4 das infor-mações que o consumidor presta ao estabelecer uma relação de con-sumo e a sua possibilidade de acesso, retificação e prazo35 para quesejam guardadas.

A importância em atribuir a eficácia da Constituição a esses dis-positivos, consiste em que o Constitucionalismo quando foi criado ser-viu para conferir direitos ao cidadão e limitar os poderes do Estado.Modernamente, os conflitos não residem mais na polaridade Estado xcidadão, mas deslocaram-se para o âmbito privado. Tal, em grandeparte, porque alguns grupos econômicos detém poder paralelo aoEstado. A problemática migrou da esfera pública para a privada. Porisso, o desenvolvimento da “drittwirkung”, também denominada de efi-cácia frente a terceiros ou horizontal é hoje questão nodal dos direitosda pessoa. Os litígios se dirigiram progressivamente do plano das re-lações Estado-indivíduo ao plano das relações grupo-indivíduo.

Essa mudança de enfoque no embate jurídico repercute na evo-lução do constitucionalismo e, também, na própria função que a Cons-tituição desempenha na história 36.

Faz-se uma crítica à expressão eficácia horizontal, pois apesardessas relações se situarem na esfera privada, não necessariamente

35 O prazo de 5 anos (art. 43,§3º) para que as informações sejam armazenadas. A propósito, veja-se item 11.36 Por primeiro, a função político-institucionalizadora que vai desde a antigüidade, passa peloabsolutismo e renasce com o iluminismo. Posteriormente, a função limitadora que coincide coma idéia de Constituição propriamente dita e tem seus expoentes máximos na Constituição dosEUA em 1787 e na Constituição Francesa de 1791, expressões do liberalismo. Neste período, aConstituição cuida de limitar os Poderes do Estado e declarar os direitos fundamentais. Porúltimo, a função diretiva, que se inaugura com o advendo do Estado Social que se preocupacom a questão social, da qual é expressão a Constituição de Weimar de 1919 , introduzindo asnormas programáticas. No perído anterior à 2ª Guerra Mundial, tem-se, também, a Constituiçãomexicana de 1917 e a Constituição russa de 1918. Depois, a primeira fase das Constituições quese seguiram, imediatamente, após a 2ª Guerra, quais sejam: a Lei Fundamental de Bonn(1949), a Constituição italiana ( 1947) e a Constituição francesa (V República de Gaulle 1958com a Emenda de 1962). Uma segunda fase, do pós 2ª Guerra, é das Constituições jovens daeuropa, que vieram inaugurar uma redemocratização que se seguiu em seus países: a Constitui-ção portuguesa ( 1976), após a ditadura de Salazar e a Constituição espanhola ( 1978), depoisde Franco. Veja-se a propósito Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. I, CoimbraEd., 1990 e Luis Sanchez Agesta, Curso de Derecho Constitucional Comparado, 7ª ed., Universidadde Madrid, Madrid, 1988.

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são no mesmo plano. Antes, havia uma preponderância do poder pú-blico sobre o indivíduo, o que se denominaria, em contraposição, deeficácia vertical. Atualmente, tampouco as relações estão em seme-lhante hierarquia, ainda que o confronto ocorra na esfera privada.Exempli-ficativamente: uma grande empresa com o trato a seus tra-balhadores ou as instituições bancárias e seus clientes.

Na atualidade, o poder tende a assumir diferentes faces, priva-tizando-se muito mais o público e de outro lado, o privado assume tare-fas públicas. Tal implica em um novo desafio para o pensar do jurista,posto que as relações se tornam mais complexas e dissimuladas.

A antiga distinção público e privado cede ante a atual tendênciade privatização nos países. Como conseqüência, cada vez mais ser-viços que tradicionalmente eram prestados pelo Estado deixam de serpúblicos. Neste contexto, estão situados as instituições financeiras comsua capacidade de movimentar grandes quantias patrimoniais, alémde armazenar uma enorme quantidade de dados, isto é, informaçãosobre seus clientes.

Desta forma, uma leitura tradicional dos direitos fundamentais comodireitos oponíveis frente aos poderes públicos deixaria os indivíduos naesfera privada desprovidos de tutela jurídica no âmbito dos direitos funda-mentais. A célebre dicotomia que se operou por época do Estado Libe-ral37, pode operar como instrumento arbitrário para excluir grupos e pes-soas vulneráveis da proteção conferida pelos direitos fundamentais.

A filosofia abstencionista do Estado-liberal entra em crise quan-do a consciência de marginalização se generaliza nos amplos setorespopulares e se canaliza ante problemas das organizações de massa.Como alternativa ao Estado-liberal surge o Estado-social .

Claphan38 utiliza a expressão “privatização dos direitos funda-mentais”. A Constituição como norma sobre a qual repousa a unidade

37 A forma liberal de conceber as relações sociais no período liberal são distinções entre Estado/sociedade, público/privado, indivíduo/grupo, direito/política, objetivo/subjetivo, etc.38 Human Rights in the Private Sphere, Clarendon Press, Oxford, 1989, p. 343, “in” Bilbao Ubillos,La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares, CEC, Madrid, 1997, p. 256.

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do ordenamento e sua influência sobre o direito privado. No dizer deSmend39, a Constituição se converte num elemento de unidade eintegração do ordenamento jurídico.

Os direitos sociais demandam estrutura para sua implementação,qual seja: o aspecto prestacional do poder público.

Destarte, o direito à intimidade evolui de um aspecto negativo: odireito a não ser molestado; a um aspecto positivo: o direito a exigirprestações concretas do Estado. Daí decorrem: a objetividade dosdados, o direito ao esquecimento, o prazo prescricional para o armaze-namento das informações negativas , a comunicação do envio dosdados, a fim de oportunizar o exercício dos direitos de acesso e retifi-cação da informação.

8. A previsão da privacidade no novo CCB

A novidade no direito brasileiro consiste em que os direitos de per-sonalidade foram contemplados na sistemática do novo Código Civil(arts. 11/21), sendo a vida privada objeto de exame específico no art. 21.

A norma constitucional encontrará, agora, reforço na previsãolegislativa do novo Código Civil que expressamente consagrou a vidaprivada, art. 21.

O tratamento dos direitos da personalidade era previsto no CDC,quando tutelava o grande princípio estruturante da Dignidade da Pes-soa Humana, do qual decorrem os demais direitos. A indenização pordano moral, também já era prevista pelo CDC, encontrando-se, naprevisão do novo Código (art. 927). Tal vem a trazer um reforço, naesteira do que já se desenvolvia em sede consumeirista.

39 Rudolf Smend, Constituición y Derecho Constitucional, CEC, Madrid, 1985, p. 132, assim: “ LaConstitución es la ordenación jurídica del Estado, mejor dicho, de la dinámica vital en que sedesarrolla la vida del Estado, es decir, de su progreso de integración. La finalidad de esteproceso es la perpetua reimplantación de la realidad total del Estado: y la Constitución es laplasmación legal o normativa de aspectos determinados de este proceso”.

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40 Judith Martins Costa e Gerson Luiz Carlos Branco, Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil,Saraiva 2002, p. 14.41 Op. cit. p. 115/6, “Sabe-se que os grandes Códigos oitocentistas de que é paradigma o Codefrancês foram construídos como sistemas fechados, isto é, o mais possível impermeáveis àintervenção da realidade e do poder criador da jurisprudência. Acreditava-se que a perfeição daconstrução conceitual e o encadeamento lógico-dedutivo dos conceitos bastaria para a totalapreensão da realidade nos lindes do corpus codificado.” Posteriormente , assevera a autora“(...) aquele que tributário das concepões iluministas era dominado pela pretensão de plenitudelógica e completude legislativa. Surgiram, assim, como um fenômeno típico da modernidadeoitocentista, os Códigos totais, totalizadores e totalitários, aqueles que, pela interligação siste-mática de regras casuísticas, tiveram a pretensão de cobrir a plenitude dos atos possíveis e doscomportamentos devidos na esfera privada, prevendo soluções às variadas questões da vida civilem mesmo e único corpus legislativo, harmônico e perfeito em sua abstrata arquitetura.”42 Gerson, op. cit., p. 53.

O Código de Beviláqua não continha dispositivo similar, no to-cante à privacidade. Isso faz com que incida nas relações entre parti-culares sem questionamento, uma vez que expressamente previstana legislação vindoura. Tal corrobora o que já estava estatuido em sedeconstitucional. Tratam-se de valores constitucionais que vem agasa-lhados no novo CCB. A previsão de direitos fundamentais com suaforte carga axiológica na legislação civilista, deve-se à matriz ideológi-ca em que se funda o Código. O culturalismo de Miguel Reale40, quetrabalha com a perspectiva do significado da cultura, experiência e his-tória. Neste contexto, a teoria tridimensional do direito, com sua pers-pectiva da compreensão do fenômeno jurídico a partir do fato, valor enorma, é conseqüência da concepção culturalista do direito.

O Código Civil de 1916 foi estruturado a partir de um sistema fe-chado, sob forte influência da idéia de completude a que pretendia o Có-digo Francês Napoleônico. Os Códigos oitocentistas como “códigos to-tais”, no dizer de Judith 41 que “tiveram a pretensão de cobrir a plenitudedos atos possíveis e dos comportamentos devidos na esfera privada”.

Assim, restava ao jurista a mera exegese da lei, ainda sob forteinfluência das idéias de Montesquieu para quem o juiz era somente aboca da lei.

Ocorre, então uma mudança de paradigma, visto que ocorre a aber-tura do sistema, cabendo aos “operadores do direito”, no dizer de MiguelReale42 um papel ativo na determinação do sentido das normas jurídicas.

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A abertura do sistema e o papel criativo do jurista é estimuladopela colocação de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indetermina-dos, em assuntos polêmicos, como por exemplo: função social, boa-fé objetiva, bons costumes e os usos e costumes.

Neste contexto, a colocação na Parte Geral, que assegura unida-de ao sistema, dos valores aplicáveis as pessoas e que vão nortear aParte Geral do Código, bem como outros microssistemas como o CDC.

A possibilidade de abertura do sistema leva a uma integração daresponsabilidade civil por danos à pessoa, no tocante aos direitos dapersonalidade, inclusive quando houver relação de consumo. Interpreta-ção integrada da Constituição, CDC e o novo CCB. Aplicáveis, então osseguintes dispositivos: art. 5º X, da CF; arts. 21, 927 e parágrafo únicodo novo CCB, que vem ao encontro dos arts. 4º, “caput” (dignidade) e6º,VI, do CDC. Destarte, o novo CCB robustece posições já existentesno Código Consumeirista, especificamente atinente ao presente traba-lho: os direitos da personalidade e à indenização por dano moral.

9. Da responsabilidade

Questão que se apresenta é a da responsabilidade pelo enviodas informações negativas do cliente de banco ao serviço responsá-vel pelos órgãos cadastrais: SPC, SERASA43. Quando esses dadossão enviados para o cadastro deve haver uma comunicação? De quemé a responsabilidade por essa comunicação, da instituição financeiraou da entidade que guardará esses dados e os repassará?

O fundamento da responsabilidade pela comunicação de que tratao art. 43, §2º, do CDC é o direito de informação (art. 6º,III, do CDC), deverde boa-fé (art. 4º,III, do CDC) e transparência (art. 4º,”caput”, do CDC).

A incolumidade psíquica do cliente de Banco resta lesada, vistoque terá seu nome exposto a um cadastro de dados negativo sem quetenha sido advertido de que ocorreria tal exposição.

43 A respeito do banco de dados com registro negativo e os números de informações que sãoprestadas, veja-se notas nºs 6 e 7.

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Das decisões jurisprudenciais é possível extrair critérios inter-pretativos, que serão a seguir analisados.

9.1. Referente à responsabilidade pela comunicação:

O art. 43, § 2º44, do CDC não explicita essa responsabilidadepela comunicação. A jurisprudência encarregou-se de fixá-la, no sen-tido de que essa cabe, em regra, à instituição financeira45.

Com relação ao pedido de condenação solidária do Banco e doSERASA, somente o Banco foi responsabilizado pelo encaminhamen-to dos dados, houve o entendimento de que o SERASA estava no exer-cício regular de sua atividade46.

44 Art. 43 (...)§ 2º - A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais de consumo deverá ser comunicadapor escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.45 Nesse sentido :“ CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ILICITUDE DA ABERTURA DE CADAS-TRO NO SERASA SEM COMUNICAÇÃO AO CONSUMIDOR. RELEVÂNCIA E CABIMENTO DADEMANDA DE REPARAÇÃO. LIQUIDAÇÃO DO DANO MORAL. Constitui ilícito imputável àempresa de banco abrir cadastro no SERASA sem comunicação ao consumidor (art. 43, § 2º, daLei nº 8.078/90). O atentado aos direitos relacionados à personalidade provocados pela inscri-ção em banco de dados é mais grave e mais relevante que a lesão a interesses materiais. A provado dano moral que se passa no interior da personalidade se contenta com a existência do ilícito,segundo precedente do STJ. Liquidação do dano moral que atenderá ao duplo objetivo decompensar a vítima e afligir, razoavelmente, o autor do dano. O dano moral será arbitrado, naforma do art. 1553 do CC, pelo órgão judiciário. Valor adequado à forma da liquidação do danoconsagrado no direito brasileiro,” Apelação Cível nº 597 118 926, 5ª CC, TJRS, 7.8.97.46 Nesse sentido:“ DÍVIDA BANCÁRIA. CADASTRO NO SERASA. REQUISITOS PARA O ATO.APLICAÇÃO DOS DISPOSITIVOS DO CDC. O encaminhamento ao cadastro de maus pagado-res se dá por iniciativa e responsabilidade da instituição financeira ou de crédito que não tenharecebido seu crédito. A anotação feita pelo SERASA atende ao exercício regular de sua ativida-de, por força contratual com as entidades filiadas. A inscrição no banco de dados restritivos decrédito deve ser antecedido por prévia comunicação ao devedor. Aplicação o art. 43,§2º, doCDC,” Apelação Cível nº 70000145854, 6ª CC, TJRS, 9.8.00).No mesmo sentido, o Banco foi condenado à indenizar pela não comunicação ( art. 43, §2º doCDC), reconhecendo-se que o SERASA estava no exercício regular de sua atividade. “ DANOSMORAIS. AVALISTA. CADASTRO NO SERASA. REQUISITOS PARA O ATO. APLICAÇÃO DOSDISPOSITIVOS DO CDC. AUSÊNCIA DE PRÉVIA COMUNICAÇÃO. FIXAÇÃO DO QUANTUM.CORREÇÃO MONETÁRIA . JUROS LEGAIS. O encaminhamento ao cadastro de maus pagado-res se dá por iniciativa e responsabilidade da instituição financeira ou de crédito que não tenharecebido seu crédito. A anotação feita pelo SERASA atende ao exercício regular de sua ativida-de, porém, a inscrição no banco de dados restritivos de crédito deve ser precedida de préviacomunicação. Aplicação do art. 43, §2º do CDC. Quantum indenizatório elevado. Correçãomonetária e juros legais afastados. Parcialmente provido o apelo do réu e desprovido o apelo doautor, ”Apelação Cível nº 70000052399, 6ª CC, TJRS, 25.4.01.

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Caso de condenação do SERASA foi quando o Banco não for-neceu o nome do devedor, não houve participação da Instituição Fi-nanceira. O SERASA obteve a informação referente à execução juntoa Cartório Judicial 47.

A administradora de Cartão de Crédito – Finivest - que remeteuo cadastro ao SPC48, também é responsável, e tal decorre do art. 14do CDC.

A jurisprudência não se vale dos dispositivos que tratam da res-ponsabilidade solidária. É possível sustentar a responsabilidade soli-dária49 entre a Instituição Financeira e o Banco de Dado Negativos, apartir dos art. 7º, parágrafo único do CDC , principalmente50. Assim,tanto quem fornece a informação – Instituição Financeira – como quem

47 “1. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. REGISTRO NEGATIVO NOS CADASTROSDO SERASA. INOBSERVÂNCIA DA REGRA CONTIDA NO ART. 43, §2º do CDC, QUE DETERMI-NA A COMUNICAÇÃO POR ESCRITO, AO CONSUMIDOR, DA ABERTURA DE CADASTRO, FI-CHA, REGISTRO E DADOS PESSOAIS DE CONSUMO. FATO QUE DETERMINOU A PERMA-NÊNCIA DO SEU NOME POR MAIS DE UM ANO NOS CADASTROS NEGATIVOS DE MAUSPAGADORES. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, QUE NENHUMA PAR-TICIPAÇÃO TEVE NO ATO DE REGISTRO DO NOME DO AUTOR JUNTO AO SERASA. ART.267, VI, CPC,” Apelação Cível nº 70000241794, 5ª CC, TJRS, 16.11.00.48 “ DANOS MORAIS. CADASTRO NO SPC. REQUISITOS PARA O ATO. APLICAÇÃO DOSDISPOSITIVOS DO CDC. FIXAÇÃO DO QUANTUM .O encaminhamento ao cadastro de mauspagadores se dá por iniciativa e responsabilidade da instituição financeira que não tenharecebido o crédito que lhe era devido. Entretanto, é descabida a anotação feita nos cadastros deinadimplentes quando esta não vier precedida da prévia comunicação. Aplicação do art. 43, §2ºdo CDC,” Apelação Cível nº 700002806503, 6ª CC, TJRS, 13.03.02.49 Antônio Carlos Efing, in Banco de Dados e Cadastro dos Consumidores, Biblioteca de Direitodo Consumidor, vol. 18, Ed. RT, 2002, pp. 211/2, sustenta a responsabilidade solidária a partirdo parágrafo único do art. 7ºdo CDC, para “ responsabilização de todos aqueles que participa-ram da cadeia de fornecimento. (...) Nas relações de consumo oriundas de fornecimento deserviços de informações, mais especificamente na atuação dos arquivos de consumo, a solidari-edade alberga da mesma forma todos aqueles que façam com que a informação precisa sedissemine. Tanto o arquivista como o alimentador destes dados respondem por eventuaisdanos decorrentes de imprecisão, independentemente da apuração de culpa de algum deles.”Da mesma forma Benjamin, op. cit., p. 412, apregoa a responsabilidade solidária dos responsá-veis pela comunicação principalmente do fornecedor da obrigação principal e do administradordo banco de dados, fundamentando no art. 7º, parág. ún., do CDC. “Isso quer dizer que fornece-dor e administrador, como agentes diretamente envolvidos no iter da inscrição, são co-responsá-veis pelos danos eventualmente causados ao consumidor, por defeito da comunicação. (...) Ahipótese evidentemente é de responsabilidade solidária, cabendo, por isso mesmo, ação deregresso de um co-responsável na direção do outro. Compete ao consumidor escolher um outodos os agentes, no momento da propositura de eventual ação indenizatória.”50 Pode-se agregar como reforço argumentativo os arts.25, §1º e 34, do CDC.

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a armazena – Banco de Dados – são responsáveis pela sua guarda eutilização, posto que participam da mesma cadeia de comunicação.

9.2. Da construção da responsabilidade, a partir dos dispo-sitivos legais do CDC:

A jurisprudência se utiliza dos dispositivos do CCB para a fixa-ção da responsabilidade, enquanto o CDC fornece elementos para suaaplicação.

A previsão de indenização por dano moral se encontra no art. 6º,VI, do CDC. O Estatuto consumeirista consagra a responsabilidadepelo fato do produto e do serviço ( arts. 12 a 17) e por vício do produtoe do serviço (arts. 18 a 25).

Assim, pode-se fundamentar a não comunicação do Banco aoseu cliente no art. 14,”caput”, quando trata de informações insuficien-tes. O Banco deixou de proceder a informação a que estava obrigado(art. 43,§2º, do CDC), portanto, a informação é insuficiente.

Nestes casos, a responsabilidade é objetiva e o banco somentese exime quando a culpa é exclusiva do usuário ou de terceiro. Res-salva-se, ainda, o caso fortuito e a força maior.

Referente ao terceiro , tal é o caso do SERASA, quando conse-guiu as informações diretamente, sem que houvesse o repasse da en-tidade financeira. Neste sentido, inclusive, já decidiu a jurisprudência51.

Poder-se-ia agregar à responsabilidade construída a partir doart. 14,”caput”, a responsabilidade solidária na cadeia de fornecimen-to da informação52.

51 A propósito nota nº 47 .52 Vide nota nº 49 .

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9.3. Referente aos valores e critérios a serem fixados nodano moral

A jurisprudência do STJ53 se pauta pelos critérios de que para acaracterização do dano moral basta a comprovação de inscrição

53 “RESPONSABILIDADE CIVIL. BANCO. SPC. DANO MORAL E MATERIAL. PROVA. O Banco quepromove a indevida inscrição de devedor no SPC e em outros bancos de dados responde pelareparação do dano moral que decorre dessa inscrição. A exigência de prova de dano moral(extrapatrimonial) se satisfaz com a demonstração da existência da inscrição irregular. Já a inde-nização pelo dano material depende de prova de sua existência, a ser produzida ainda noprocesso de conhecimento. Recurso conhecido e provido em parte”, Resp. nº 51158/ES, 4ª Turma,Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar , em 29/05/95; “DIREITO DO CONSUMIDOR. INSCRIÇÃO INDEVIDA NO SPC. FURTO DE CARTÃO DE CRÉDITO.DANO MORAL. PROVA. DESNECESSIDADE. COMUNICAÇÃO AO CONSUMIDOR DE SUA INSCRI-ÇÃO. OBRIGATORIEDADE. LEI Nº 8.078/90, ART. 43, §2º, DOUTRINA. INDENIZAÇÃO DEVIDA.FIXAÇÃO. PRECEDENTES. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I – Nos termos da jurisprudên-cia da Turma, em se tratando de indenização decorrente da inscrição irregular no cadastro deinadimplentes, “a exigência de prova de dano moral (extrapatrimonial) se satisfaz com a demonstra-ção da existência da inscrição irregular” nesse cadastro. II – De acordo com o art. 43, §2º do CDC, ecom a doutrina, obrigatória é a comunicação ao consumidor de sua inscrição de proteção ao crédito,sendo, na ausência dessa comunicação, reparável o dano oriundo da inclusão indevida. III – É detodo recomendável, aliás que a comunicação seja realizada antes mesmo da inscrição do consumi-dor no cadastro de inadimplentes, a fim de evitar possíveis erros, como o ocorrido no caso. Assimagindo, estará a empresa tomando as precauções para escapar de futura responsabilidade. ( ....) ”,Resp. nº 165727/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira , em 21/09/98;“SERASA. Dano moral. A inscrição do nome da contratante na SERASA depois de proposta a açãopara revisar o modo irregular pelo qual o banco não estava cumprindo o contrato de financiamen-to, ação que acabou sendo julgada procedente, constitui exercício indevido do direito e ensejaindenização grave pelo dano moral que decorre da inscrição em cadastro de inadimplentes”,Resp. nº 219.184/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar , em 26/10/99. Neste caso, aindenização foi fixada em 50 salários mínimos;“CIVIL. DANO MORAL. REGISTRO NO CDASTRO DE DEVEDORES DO SERASA. IRRELEVÂNCIADA EXISTÊNCIA DE PREJUÍZO. A jurisprudência desta Corte está consolidada no sentido de quena concepção moderna da reparação de dano moral prevalece a orientação de que aresponsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação, de modo a tornar-sedesnecessária a prova do prejuízo em concreto. A existência de vários registros, na mesma época,de outros débitos dos recorrentes, no cadastro dos devedores do SERASA, não afasta a presunçãode existência do dano moral, que decorre in re ipsa, vale dizer, do próprio registro de fatoinexistente. Hipótese em que as instâncias locais reconheceram categoricamente que foi ilícita aconduta da recorrida em manter, indevidamente, os nomes dos recorrentes, em cadastro dosdevedores, mesmo após a quitação da dívida”, Resp. nº 196024/ MG, 4ª Turma, Rel. Min. CesarAsfor Rocha , em 2/03/99;“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Intimação do agravado. Decisão liminar. Cancelamento de ins-crição (SERASA, SPC, etc.) (...) Deve ser cancelada a inscrição em nome do devedor em bancode inadimplentes se o contrato está sendo objeto de ação revisional, em que se discute avalidade de cláusulas, valor do saldo e a própria existência de mora. Precedentes ”, Resp. nº205039/RS , 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar , j. 6/05/99;“Medida cautelar. Cadastro de inadimplentes. SERASA. Débito litigioso. Liminar concedidapara vedar-se o registro do nome da requerente, tendo em vista precedentes desta Corte”, MC2007/PR, 3ª Turma, Rel. Eduardo Ribeiro, j. 14/10/99.E “Agravo regimental. Recurso Especial não admitido. Tutela antecipada. Inscrição dos devedo-res no SERASA. 1. Estando em discussão o débito, inviável se mostra a inscrição do devedor nosServiços de Proteção ao Crédito, mormente porque não demonstrado dano ao credor. Preceden-tes. (...) ”,AGA 221029/RS, 3ª Turma, Rel. Carlos Alberto Menezes Direito , j. 27/04/99.

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irregular, enquanto que o dano material necessita de prova de sua exis-tência.

Observa-se de uma maneira geral que as indenizações54 no TJRSsão fixadas em média de R $ 5.000,00 e no STJ em 50 salários míni-mos. Tais valores são muito baixos e não podem ser considerados aflitivos.

A dificuldade do dano moral consiste muitas vezes na suamensuração. A propósito existe um projeto de lei no Senado nº 150/99,que pretende tarifar o valor do dano moral, em três categorias55: leve (atéR$ 20 mil), média ( de R$ 20 a 90 mil) e grave ( de R$ 90 a 180 mil).

Pelo atual critério jurisprudencial a intimidade do cliente de ban-co que tem seu nome exposto, enquadra-se na categoria leve, poder-se-ia dizer levíssima, já que no máximo as condenações chegam ametade do valor estipulado na primeira escala, do projeto de lei.

10 . Da impossibilidade de registro, enquanto pendente dis-cussão judicial:

Da mesma forma, enquanto pende discussão judicial a respeitodo débito não pode haver inscrição no SERASA, sendo sempre ne-cessária a comunicação de que trata o art. 43, §2º do CDC56.

A jurisprudência do STJ, também é no sentido de não admitira inscrição do nome do devedor no SERASA, enquanto pendente

54 Vide notas nºs 46,47,48 e 57.55 Jornal Folha de São Paulo, p. C1, em 16.6.02.56 Neste sentido:“ DANOS MORAIS. AVALISTA. DISCUSSÃO JUDICIAL DO DÉBITO. CADASTRONO SERASA. REQUISITOS PARA O ATO. APLICAÇÃO DOS DISPOSITIVOS DO CDC. FIXAÇÃODO QUANTUM. O encaminhamento ao cadastro de maus pagadores se dá por iniciativa eresponsabilidade da instituição financeira ou de crédito que não tenha recebido seu crédito.Estando em discussão judicial o débito, descabe anotação feita no SERASA. Porém, a inscriçãono banco de dados restritivos do crédito deve ser precedida de prévia comunicação. Aplicaçãodo art. 43, §2º do CDC ”, Apelação Cível nº 7000065813, 6ª CC, TJRS, 9.8.00.O banco foi condenado, neste caso, a indenizar o avalista por danos morais fixando o montanteno equivalente ao valor informado como sendo o débito, ou seja, R$ 11.795,37. Sentença de1º grau que foi mantido no 2º.

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discussão judicial, concedendo a tutela antecipada, a fim de cancelaro registro do nome do devedor57.

11. Do direito ao esquecimento

O direito ao esquecimento é o “derecho al olvido”58, presente nodireito espanhol. Constitui-se em um aspecto das prestações do direi-to à intimidade. O art. 43, § 1º, 2ª parte, do CDC, agasalha o prazo de5 anos para que as informações sejam guardadas. Tal é muito impor-tante, porque hoje a capacidade dos computadores de armazenaremas informações é muito grande, fazendo com que os dados sejammantidos por um prazo , praticamente, indeterminado59.

57 Veja-se: “BANCO DE DADOS. SERASA. SPC. SDC. Inscrição de devedor. Ação de nulidade.Tramitando ação onde os devedores pleiteiam o reconhecimento da invalidade do título queteria sido preenchido com valores excessivos, mediante argumentação verossímil, pode o juizdeferir a antecipação parcial de tutela para cancelar o registro do nome dos devedores nosbancos de dados de proteção ao crédito. Art. 273 do CPC e art. 42 do CDC. Recurso conhecidoe provido” , Resp. nº 168.934 – MG, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.No mesmo sentido:“MEDIDA CAUTELAR. LIMINAR. EXCLUSÃO DO NOME DO DEVEDOR EMÓRGÃO DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. SECURITIZAÇÃO PENDENTE. Consoante jurisprudên-cia do STJ, a securitização da dívida constitui um direito do devedor rural e não mera faculdadedos bancos. Encontrando-se pendente de julgamento o litígio instaurado entre as partes acercado alongamento do débito não se justifica o registro do nome do devedor no CADIN ou qualqueroutro órgão cadastral de proteção ao crédito” , Resp. nº 217.629 – MG, Rel. Min. BarrosMonteiro, 4ª Turma do STJ, j. 29/6/00;“TUTELA ANTECIPADA. SPC. SERASA. Contratos da dívida sub judice. Estando sub judice amatéria relacionada com os contratos e títulos da dívida, cabe deferir o pedido de sustação dosefeitos dos registros e protestos feitos contra os devedores com base naqueles contratos.Recurso conhecido em parte e provido”, Resp. nº 213580/ RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosadode Aguiar , em 22/11/99;“Execução. Inscrição do nome do devedor em serviços de proteção ao crédito. Ação revisional decontrato ajuizada. CDC, art.42. Havendo ação de revisão de contrato em curso, mesmo sem odepósito da quantia considerada devida, a inscrição do nome do autor em serviço de proteçãoao crédito configura o constrangimento ou ameaça a que se refere o art.42 do CDC” , Resp. nº180843 – RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª Turma do STJ, j. 29/6/00;58 Vide nota nº 8.59 “SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. Cancelamento do Registro. Prazo ( 5 anos). Oregistro de dados pessoais no SPC deve ser cancelado após 5 anos. Art. 43, § 1º, do CDC (Lei nº8.078/90).” Resp. nº 22.337-8/RS, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 13/2/95.No mesmo sentido:“ CIVIL. DEFESA DO CONSUMIDOR. ANOTAÇÕES EM SISTEMA DE PROTE-ÇÃO DE CRÉDITO. Não podem constar em sistema de proteção ao crédito, anotações relativasa consumidor, referentes a período superior a 5 anos ou quando prescrita a correspondente açãode cobrança. “Resp. nº 30.666-1/RS, Rel. Min. Dias Trindade, j. 8/2/93, e Resp. nº 14.624-0/RS,Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 22/9/92.

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O TJRS foi pioneiro nesta matéria, ao estatuir a Súmula nº 11,que dispunha sobre o prazo de 3 anos para que fosse cancelada ainscrição do nome do devedor no SPC. Posteriormente, com o adven-to do CDC, tal foi revisto para se coadunar e o prazo ficou estabelecidoem 5 anos, sendo editada a Súmula nº 13: “A inscrição do nome dodevedor no SPC deve ser cancelada após o decurso do prazo de 5anos se, antes disso, não ocorreu a prescrição da ação de cobrança (art. 43, §§ 1º e 5º, da Lei nº 8.078/90), revisada a Súmula 11”.

Assim, os dados podem ser guardados por determinado tempo,mas não utilizados eternamente.

12. Conclusão

A informática provocou mudanças de costumes na humanidade.Suscita, por isso, novas questões com relação à proteção dos direitosfundamentais, e neste contexto, com a intimidade.

Os bancos de dados contém informações que traduzem aspec-tos da personalidade, que permitem traçar um perfil do consumidor.Estas informações são uma nova mercadoria com interesse comerci-al. É necessário, por essa razão, proteger o cidadão juridicamente comrelação aos avanços da tecnologia, que pode ter sua intimidade viola-da, caso os dados sejam divulgados ou utilizados indevidamente.

É essencial o aprimoramento da tutela jurídica, com o objetivode proteger o cidadão contra os ataques que a informática pode cau-sar na intimidade do cidadão. Deve-se considerar, por conseguinte,as legislações estrangeiras que já estão atentas à problemática hámais tempo, sem deixar de sopesar as características próprias darealidade de nosso país.

A hermenêutica leva à integração da responsabilidade civil por da-nos à pessoa, no tocante aos direitos da personalidade, inclusive quan-do houver relação de consumo. O fundamento da responsabilidade civilpode ser encontrada no CDC. Propõe-se, portanto, uma interpretaçãosistemática da Constituição, do CDC e do novo CCB. Aplicáveis, en-tão, o art. 5º X, da CF, o art. 21, do novo CCB, bem como os arts.6º,VI, 14, “caput” , e 43, § 2º, do CDC.

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A jurisprudência apresenta alguns critérios interpretativos, quepodem ser enunciados:

a) a responsabilidade é do banco pela comunicação de que tratao art. 43,§2º, do CDC;

b) o SERASA está no exercício regular da atividade, não lhe sen-do, por isso, imputada nenhuma responsabilidade nos casos normais;

c) é obrigatória a comunicação ao consumidor da inscrição deseu nome no banco de dados negativos. Na ausência dessa comuni-cação, é reparável o dano oriundo da inclusão indevida. A exigência deprova de dano moral (extrapatrimonial) se satisfaz com a existência deinscrição irregular;

d) as indenizações fixadas possuem valor, em regra, muito bai-xo, considerando-se o abalo moral causado ao cliente do banco e apotencialidade da instituição financeira;

e) referente ao direito de esquecimento, o prazo pelo qual osdados podem ser armazenados é de 5 anos. Após, operada a prescri-ção relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidasinformações pelos sistemas de proteção ao crédito.

Pode-se, concluir que tutela dos direitos da pessoa deve sercompatibilizada com as exigências do mundo atual, que almeja a liber-dade de informação e a livre circulação dos dados. Em última análise,a informática é algo que já se incorporou na vida quotidiana moderna.Hoje, não se vislumbra retrocesso. O desafio é como proteger os da-dos informatizados frente a uma sociedade e um mercado cada vezmais livres de fronteiras, com a denominada globalização.

Têmis Limberger,promotora de Justiça-RS, mestra pela UFRGS e doutoranda pela

Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, professora deDireito Constitucional na PUC/RS e membro do Instituto

Brasileiro de Direito Constitucional e do Brasilcon.

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alguns pespontos doalguns pespontos doalguns pespontos doalguns pespontos doalguns pespontos doartigo 28 do códigoartigo 28 do códigoartigo 28 do códigoartigo 28 do códigoartigo 28 do código

de processo penalde processo penalde processo penalde processo penalde processo penal

sergio demoro hamilton,procurador de justiça aposentadoe professor universitário

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ALGUNS PESPONTOS AO ART. 28DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Sergio Demoro Hamilton

1. Cantado em prosa e verso, pode-se afirmar, sem sombra deerro, que o art. 28 do Código de Processo Penal é pau para toda obra,pois seu âmbito de incidência transcende, de muito, os limites daqueleCódigo, invocado que é, com freqüência, em diversas situações jurídi-cas envolvendo questões de Ministério Público. Com efeito, ele é cha-mado como solução, pela via analógica, para diversas matérias que,sem o seu concurso, acabariam por não encontrar deslinde, criandoimpasse intransponível para o bom andamento dos processos em gerale para a atuação do próprio Ministério Público no particular.

2. Aqui e agora, vou deter-me no exame de alguns aspectos da-quele dispositivo que exigem especial meditação, principalmente apóso advento da Carta Política de 1988.

3. O primeiro deles relaciona-se com a função anômala exercidapelo juiz no controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pú-blica. Está dito na lei que, se o juiz considerar improcedentes as ra-zões invocadas pelo órgão do Ministério Público para requerer o arqui-vamento do inquérito policial ou das peças de informação, remeterá,conforme o caso, um daqueles procedimentos ao Procurador-Geral.Paremos por aí, no momento.

Cabe, desde logo, a seguinte indagação: pode o juiz, diante doprincípio acusatório consagrado na Constituição Federal, continuar exer-cendo tal função judiciária em sentido estrito (portanto, não jurisdicional)?

Desde que se admita como acertada tal conduta processual, omagistrado, que assim venha a proceder, poderá permanecer no pro-cesso exercendo jurisdição na ação penal que, porventura, se origineem razão do acolhimento, pelo Procurador-Geral, dos motivos invoca-dos pelo juiz? É a segunda pergunta que me cabe fazer, até aqui.

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Parto da premissa segundo a qual a Carta Magna em vigor ado-tou o princípio acusatório1, e, como tal, se as palavras significam algu-ma coisa, não mais incumbe ao juiz exercer qualquer ato de persecuçãocriminal, quer na fase pré-processual (caso em exame), quer no cursoda ação penal.

Na fase que antecede o início da ação penal, a intervenção judi-cial só encontra justificação no exercício de função jurisdicional típica,quando então o juiz – e só ele – é chamado a decidir qualquer medidacautelar de natureza pessoal ou real, envolvendo a garantia de direitossubjetivos assegurados pela Lei Maior. Assim, v.g., quando o juiz de-creta uma prisão preventiva ou, ainda, na ocasião em que ordena oarresto dos bens do indiciado, ele estará exercendo atos de jurisdição,e, portanto, legítima e indispensável sua intervenção.

O Anteprojeto de Código de Processo Penal, de técnica bemmais apurada, pelo menos neste aspecto, que o Código em vigor, pôs-se em compasso com a Constituição Federal, resguardando o siste-ma acusatório em toda a sua plenitude. Com efeito, ao regular a “In-vestigação Policial”, a disciplina do arquivamento sofre radical mudan-ça. Examinando a inovação, tive a ocasião de aplaudi-la, salientando oacerto da medida consistente em afastar a figura do juiz da fase deinvestigação penal. A promoção de arquivamento passará a ser con-trolada por “órgão superior do Ministério Público” para homologaçãoou não da providência. Afasta-se, também, o Procurador-Geral comoúnica autoridade a dar a palavra final em matéria de arquivamento, oque, sem dúvida, é solução mais técnica e salutar, quer sob o aspectoprocessual, quer sob o aspecto institucional. É certo que o Anteprojetonão define a composição do “órgão superior”, o que, talvez, não tenhasido boa opção. Faz-se mister destacar que o Anteprojeto, na verdade,adaptou ao processo penal o regime seguido, há longa data e compleno sucesso, no arquivamento do inquérito civil cogitado na lei deação civil pública (art. 9º da Lei 7347, de 24/07/85). No estudo em que

1 Esta é a posição que sustentamos em nosso estudo, “A Ortodoxia do Sistema Acusatório noProcesso Penal Brasileiro: Uma Falácia”, in Processo Penal - Reflexões, p. 127 e seguintes,Editora Lumen Juris, 2002.

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examinei o arquivamento, tal como preconizado no regime previsto peloAnteprojeto, embora, no geral, tenha aplaudido o afastamento do juiz dafase preliminar de investigação, guardando, nesse passo, perfeita con-sonância com o sistema acusatório, formulei algumas propostas paraque a fórmula pudesse ganhar aperfeiçoamento2.

Pode-se, agora, insinuar resposta ao primeiro quesito formuladono decorrer da presente exposição: diante do princípio acusatório quea nossa Carta Política, sem sombra de dúvida, adotou, é, de todo,indevida a atuação do juiz como órgão controlador do princípio daobrigatoriedade da ação penal. O art. 28 do CPP, nesse passo, não seviu recepcionado pela Constituição Federal.

É certo que se poderá indagar se o sistema acusatório integra odevido processo legal e, como tal, sua aplicabilidade é imediata. Nãohesitaria afirmar que o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) é omare magnum para onde desaguam a garantia do contraditório e daampla defesa, com os recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, da CF), osprincípios do promotor legal (art. 5º, LIII c/c 129, I da CF) e do juiz natu-ral (art. 5º, XXXVII e LIII da CF). Ora , não se poderá falar em contradi-tório nem no devido processo legal sem a adoção do princípioacusatório, uma vez abolida a ação penal ex officio (art. 129, I, da CF).

Portanto, no regime nascido após a Carta Magna de 1988, descabeo controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública por par-te do juiz, pois o magistrado, assim agindo, estará realizando, por viareflexa, ato de persecução criminal, vedado pela Constituição Federal.

Espera-se que, com a reforma do processo penal em andamentono Congresso Nacional3, a matéria possa encontrar adequado tratamento

2 Para um exame mais detalhado sobre o arquivamento, no particular, ou sobre a fase pré-processual, no geral, tendo em vista a disciplina traçada no Anteprojeto, o interessado pelamatéria poderá encontrar algum subsídio em meu estudo “O Anteprojeto sobre a InvestigaçãoPolicial”, in Revista Jurídica, da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Ano I, nº1, jan.jun-2001, pp. 103 e seguintes.3 Nove foram os anteprojetos de reforma do CPP chegados ao meu conhecimento, compreendendo:a prisão, medidas cautelares e liberdade (1), investigação policial (2), prova pericial (3), prova teste-munhal (4), provas ilícitas (5), interrogatório do acusado (6), defesa efetiva (7), procedimentos (8) etribunal do júri (9). Veja-se, a propósito, o trabalho citado in nº 2 dessas notas, pp. 103 e seguintes.

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legislativo. Desde que a orientação cogitada no Anteprojeto venha, emlinhas gerais, a ser mantida, o futuro Código ganhará compasso com aLei Maior.

Caminha-se, agora, na tentativa de encontrar apropriada respostaao segundo ponto gerador de perplexidade externado ao início do pre-sente estudo: no regime atual, o juiz que discordar do arquivamentopoderá continuar exercendo jurisdição no processo nascido em razãode providência sua ao provocar a atuação do Procurador-Geral?

Na prática, o assunto é ignorado. E na lei?

O Código em vigor não assegura resposta fácil ao quesito. Atendência natural, na busca de uma solução para o impasse, leva-nos ao reconhecimento da incompatibilidade do juiz para processare julgar o feito em razão de impedimento para o exercício da jurisdi-ção. Porém, se consultarmos o art. 252 do CPP, veremos que, arigor, a hipótese sub examen não se enquadra no rol exaustivo da-quele dispositivo. Anote-se que o Supremo Tribunal Federal teve aoportunidade de decidir que “só há o impedimento do art. 252 se ojuiz se pronunciou de fato e de direito sobre a questão (n. III)”. A hipó-tese cogitada no julgamento em tela versava a respeito dedesembargadores que, anteriormente, haviam, respectivamente, re-cebido a denúncia e interrogado o réu4.

Parece-me não restar dúvida de que o juiz, ao recusar o arquiva-mento, se verá obrigado, forçosamente, a pronunciar-se sobre maté-ria de fato e/ou de direito. Basta a leitura do art. 28 do CPP para que seconclua, com facilidade, constituir dever do juiz a adoção de tal proce-dimento. Na realidade, ali está dito que o juiz, “no caso de considerarimprocedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou pe-ças de informação ao Procurador-Geral”...

4 Referência ao julgado do STF, apud Código de Processo Penal Anotado, DAMÁSIO EVANGELISTADE JESUS, p. 197. Editora Saraiva, 18ª edição, 2002. Ali, o festejado mestre alude também aojulgamento noticiado na RTJ 53/294, onde ficou assinalado que o impedimento não ocorre “emsimples atos de ordenação processual ou de produção de provas”.

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Ora, soa-me evidente que o juiz, para entender improcedente amanifestação do promotor de justiça no sentido do arquivamento doinquérito policial ou de qualquer peça de informação, deva expenderrazões para tanto, até porque todas as manifestações judiciais de-vem, necessariamente, ser fundamentadas (art. 93, IX da CF). Ora,seus argumentos, ao contrariarem os do promotor, deverão, por impe-rativo constitucional, abordar questões de fato e/ou de direito contidasno inquérito policial ou na peça de informação.

É de ver, no entretanto, que o Pretório Excelso, em outra oportuni-dade, manifestou-se no sentido de que o juiz que anteriormente deter-minou a abertura de sindicância ou a presidiu não está impedido de atu-ar no processo (STF, HC 68784, 1ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU26/03/93, p. 5003). Releva notar que a decisão em questão é posterior àConstituição de 88, fato que, não resta dúvida, nos deixa intrigados.

Que fazer diante da insegurança com que o tema vem sendotratado?

A melhor posição, não há negar, é a que considera incompatívelpara o exercício da jurisdição o juiz que, por via reflexa, faz nascer aação penal, pois, para tanto, teve ele que manifestar-se de fato e/ou dedireito sobre matéria que, mais tarde, será chamado a processar ejulgar, ferindo, no cerne, a sua imparcialidade. De certa forma, nãoseria absurdo afirmar que estaria, por caminhos ínvios, promovendoação penal ex officio.

O Anteprojeto (atual Projeto) de CPP, tal como me foi dado exa-minar, em razão de sua fidelidade ao sistema acusatório, fará desapa-recer todos os problemas aqui suscitados.

4. É chegado o momento de examinar a vexata quaestio quea parte final do artigo 28 do CPP encerra5. Refiro-me à atitude do

5 Sobre as críticas a respeito da precária redação do art. 28 do CPP, veja-se nosso estudo sobre a“Reforma do Processo Penal”, in Temas de Processo Penal, p. 249 e seguintes, Editora LumenJuris, Rio de Janeiro, 2ª edição, 2000. Posteriormente, buscamos aperfeiçoar a fórmula paraadequá-la de maneira mais precisa ao sistema acusatório (in Processo Penal – Reflexões, p. 134e seguintes, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2002). Aliás, o “Anteprojeto de CPP” seguiu estaúltima orientação, buscando assegurar o princípio e o sistema acusatório, em toda a sua plenitude.

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Procurador-Geral quando acolhe o pronunciamento do juiz no sentidoda instauração do processo. Pode ele designar (sic) outro órgão doMinistério Público para oferecer denúncia, tal como diz a lei?

Designar nunca. O caso, no meu entendimento, é de delegaçãoe não de designação. Esta, no meu pensar, violaria a independênciafuncional do promotor designado, uma vez que ele não está obrigado,em consciência, a ter a mesma opinio manifestada pelo Procurador-Geral. Já em relação à delegação tal não se dá, pois o delegado agecomo longa manus do Procurador-Geral, estando vinculado, apenas,para o momento do oferecimento da denúncia aos termos traçadospela Chefia do Parquet para dar início à ação penal. Após, terá amplaliberdade para atuar no processo, podendo, inclusive, na fase de ale-gações finais, pedir a absolvição do réu (art. 385 do CPP) e, até mes-mo, apelar em seu favor (rectius, em prol de uma decisão justa).

Porém, há um fator complicador que decorre da independênciafuncional assegurada aos membros do Ministério Público na Constitui-ção Federal de 1988 (art. 127, § 1º, parte final). Como conciliá-la coma regra do art. 28 do CPP, mesmo adotando melhor redação para omalsinado dispositivo?

O thema em análise não passou despercebido ao eminente pro-fessor PAULO RANGEL6, ilustre membro do Ministério Público fluminense,que, em nome do garantismo penal7, entende não estar o promotor dejustiça designado (rectius, delegado) obrigado a oferecer denúncia,desde que se ponha em acordo com o pensamento externado por seucolega que requereu o arquivamento.

6 PAULO RANGEL, Direito Processual Penal, pp. 171 e seguintes, Editora Lumen Juris, Rio deJaneiro, 2002.7 LUIGI FERRAJOLI, Derecho y Razón, Editorial Trotta. A base do garantismo penal, preconizadapelo ilustre jurista italiano, reside na tutela da liberdade individual diante das diversas modali-dades de arbítrio emanadas por parte daqueles que exercem uma parcela de poder político doEstado. Dessa maneira, qualquer norma infraconstitucional que afronte a Constituição Federaldeve ceder passo ao disposto na Lei Magna, uma vez atingidos direitos e garantias fundamen-tais assegurados pela Carta Política. Entre nós, sem a necessidade da criação de uma teoriaespecial ou de uma designação particular, a questão pode ser enfrentada pura e simplesmentepelo fenômeno da não-recepção ou por uma “ADIn”.

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Sem necessidade da invocação do garantismo penal, tão bemdesenvolvido por PAULO RANGEL em seu precioso Direito ProcessualPenal, penso que a questão, tal como posta na sua linha de raciocínio,se resolveria pelo fenômeno da não-recepção do texto processual,nesse ponto, diante da Carta Política de 1988.

Ouso, porém, dissentir da opinião do notável Professor. A hipóte-se, não há dúvida, é de delegação e não de designação. Aquela, comoensina a melhor doutrina8, deriva do “poder hierárquico”, não compor-tando, em conseqüência, recusa pelo membro indicado sob a alega-ção de que violaria a sua independência funcional.

Como salienta o Professor JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO9, “adespeito de ter a lei usado o termo ‘designação’, não é bem essa afigura jurídica que ocorre no caso do art. 28, do C. P. Penal”.

E acrescenta:

“A designação é o instrumento apropriado ao pre-enchimento de vazios orgânicos, e tem, como é óbvio,estreita ligação com a estrutura organizativa-institucionaldo Ministério Público.”

Terminando por concluir:

“não se trata de mero ato de preenchimento deórgão de execução, mas, ao contrário, cuida-se de atri-buição cometida originariamente ao Procurador-Geral deJustiça, o qual, por preferir não atuar diretamente, indicaoutro membro para fazê-lo.”

8 JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, in Revista do Ministério Público - RJ - nº 01, 3ª fase, pp. 238/241.9 JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, ob. cit., in nº 8 dessas notas, pp. 239/241, com apoio em fartadoutrina nacional e estrangeira: SAYAGUÉS LASO (Tratado de Derecho Administrativo, vol. I, 1974,p. 215), MARCELO CAETANO (Princípios Fundamentais de Direito Administrativo, 1980, p. 140),SERGIO DE ANDRÉA FERREIRA (Princípios Institucionais do Ministério Público, 1982, p. 24), FERNANDODA COSTA TOURINHO FILHO, (Processo Penal, vol. 1º, 1975, p. 316), MAGALHÃES NORONHA (Curso deDireito Processual Penal, 1976, p. 26) e PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO (O Ministério Público noProcesso Civil e Penal, 1990, p. 68).

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Porém, há um outro ponto que, na discussão do assunto, nãopode ficar no olvido. Refiro-me ao princípio da obrigatoriedade daação penal, próprio da nossa lei processual penal (art. 24 do CPP).Não se pode negar que ele ficaria, seriamente, afetado caso fossepermitido ao promotor de justiça, sob a afirmação de que sua inde-pendência funcional estaria comprometida, descumprir a funçãodelegada que lhe foi atribuída pelo Procurador-Geral na hipótese doart. 28 do CPP.

Como ficaria a persecução criminal, caso, sucessivamente, vá-rios ou até mesmo todos os delegados não atendessem ao delegante?

Em tese, haveria a possibilidade de que toda a persecução cri-minal em tais casos, em ocorrendo a negativa de proceder por partedos delegados sob a alegação do resguardo da sua autonomia funcio-nal, se concentrasse em mãos do Procurador-Geral, o que ressabe amanifesto absurdo.

Assim, não bastassem os argumentos aduzidos no sentido doreal significado do instituto da delegação, entraria em jogo o princípioda razoabilidade.

Colocados em confronto o princípio da independência funcionale o da obrigatoriedade da ação penal pública, qual deveria prevalecer?

Não se ignora que, entre as funções institucionais do MinistérioPúblico, destaca-se a de promover, privativamente, a ação penalpública (art. 129, I, da CF). Ora, não há negar que a atividade do Parquetficaria seriamente obstruída caso viesse a ser admitida a recusa dodelegado em proceder.

Como sabido, a razoabilidade e a proporcionalidade, a primeirasob os influxos da doutrina norte-americana e a segunda com as bên-çãos da cultura alemã, desde que usadas com parcimônia e equilíbriode maneira que não venham a consagrar o arbítrio judicial anulando afunção administrativa e a legislativa, surgem como solução para ca-sos extremos onde se ponham em confronto princípios relevantes.

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Aliás, no campo penal usa-se, com mais freqüência, o vocábuloproporcionalidade, embora ambos os princípios objetivem o mesmo fim.

Como salienta o culto Promotor de Justiça, EDUARDO SLERCA, emseu apreciado livro sobre a matéria:

“Difícil imaginar um princípio que permita maior cam-po de aplicação que a idéia de razoabilidade ou deproporcionalidade. Afinal, tudo, tudo mesmo, deve ser ra-zoável e proporcional, o desarrazoado é, por definição, in-justo, contrário ao Direito”10.

Parece-me, assim, que não seria razoável sacrificar-se a ativi-dade de persecução criminal do Estado em nome de uma equivocadacolocação do princípio da independência funcional. Equivocada, repi-to, por exibir um falso conceito do que seja delegação.

Concluindo sobre o tema, estamos com EDUARDO SLERCA: “arazoabilidade e a proporcionalidade estão hoje na essência do discur-so civilizado”.11

5. Mas não acabam aí os dissabores com que o art. 28 do CPP,tão afamado e requisitado, como verdadeira minâncora, remédio paratodos os males, se apresenta aos olhos do intérprete. Quero referir-me, agora, à precária redação da sua parte final. Ali está dito que,quando o Procurador-Geral “insiste” (sic) no “pedido” de arquivamen-to, o juiz está obrigado a atender.

Vejamos:

Primo: o Procurador-Geral não “insiste” (sic) no pedido de arqui-vamento. A Chefia do Parquet, na realidade, mediante decisão admi-nistrativa, determina o arquivamento do inquérito policial ou das pe-ças de informação.

10 EDUARDO SLERCA, Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, p. 19, EditoraLumen Juris, Rio de Janeiro, 2002.11 Apud op. cit., in nº 10 dessas notas.

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Secundo: O Procurador-Geral, no caso, não pede. Pedir é re-querer, postular, pretender ou algo assemelhado. Pede-se aquilo quepode ou não ser atendido, que enseja ou não deferimento. Ora, se ojuiz está obrigado a atender o pedido (sic) não se trata de solicitação.

Tertio: a palavra “pedido”, em processo, reveste conotação pró-pria. Assim o autor, quando da inicial, pede; e pede porque é parte naação. Da mesma forma, por exemplo, o Ministério Público, ao propor aação penal, pede a condenação do réu (ou, nos crimes dolosos contraa vida, a pronúncia). Portanto, no caso do defeituoso art. 28 do CPP, oque o legislador desejou afirmar foi “requerimento de arquivamento” (re-dação, igualmente, defeituosa) ou, melhor, promoção de arquivamento.

Na verdade, no regime atual, o que a lei pretendeu dizer masnão disse, reside no seguinte: determinando o Procurador-Geral oarquivamento, voltam os autos ao juízo de origem, onde ficarão arqui-vados os autos respectivos. O primeiro daqueles atos retrata umaprovidência de natureza jurídica com eventuais reflexos no processo(Súmula 524 do STF e art. 18 do CPP). Já o segundo reside no atomaterial consistente na remessa dos autos para o arquivo do cartóriodo juízo para onde foi distribuído o procedimento arquivado, após des-pacho de expediente do juiz respectivo.

6. No Anteprojeto sobre a investigação policial (no momento emque estas linhas são escritas, ignoro as alterações que o Projeto hajasofrido no Congresso Nacional), onde se resguarda, com alguns pe-cados veniais, o sistema acusatório, tudo muda de figura.

Com efeito, ali, o controle do arquivamento se dará integral-mente no âmbito do Ministério Público, através de um “órgão supe-rior” da Instituição, que homologará ou não a providência pretendi-da pelo Promotor de Justiça. Como tive a oportunidade de salientaralhures12, a disciplina do arquivamento é o ponto alto de todo o An-teprojeto, por resguardar, em sua pureza, o sistema acusatório. Naverdade, ao afastar o juiz das funções anômalas de supervisão e

12 Op. cit., in nº 2, passim, destas notas.

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controle da investigação penal, garante-se ao magistrado a sua im-parcialidade para julgar, reservando-se ao julgador a prática, tão so-mente, de atos jurisdicionais.

Vou repetir até o Juízo Final: juiz julga e quem julga não investiga.

Segundo Domingo do Advento do Senhor (A. D. 2002).

Sergio Demoro Hamilton,procurador de Justiça aposentado e professor universitário

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O duplo grau deO duplo grau deO duplo grau deO duplo grau deO duplo grau dejurisdição e o fjurisdição e o fjurisdição e o fjurisdição e o fjurisdição e o foro pororo pororo pororo pororo por

prerrogativa de funçãoprerrogativa de funçãoprerrogativa de funçãoprerrogativa de funçãoprerrogativa de função

Carolina Alves de Souza Lima,mestre em direito

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O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃOE O FORO POR

PRERROGATIVA DE FUNÇÃO.1

Carolina Alves de Souza Lima

O Duplo Grau de Jurisdição é, no âmbito processual penal, umagarantia constitucional, que decorre do Princípio do Devido ProcessoLegal, do Princípio da Ampla Defesa e da organização constitucionaldos tribunais brasileiros. Tal princípio estabelece a possibilidade derevisão, pela jurisdição superior e por meio de recurso, de decisãoproferida pela jurisdição inferior. De acordo com Ada Pellegrini Grinover,Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, “cha-ma-se jurisdição inferior aquela exercida pelos juízes que conhecemdo processo desde o seu início (competência originária). E denomi-na-se jurisdição superior a exercida pelos órgãos a que cabem osrecursos contra as decisões proferidas pelos juízes inferiores”.2

O Duplo Grau de Jurisdição refere-se aos recursos cabíveis noâmbito do reexame da decisão, uma única vez. Não engloba, por exem-plo, o recurso especial dirigido ao Superior Tribunal de Justiça e o re-curso extraordinário endereçado ao Supremo Tribunal Federal que apre-sentam fundamentos específicos.

Desde o ano 1992, a República Federativa do Brasil é signatáriade dois tratados internacionais que acolhem expressa e incondicional-mente o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição no Direito Processual

1 Este tema foi abordado na Dissertação de Mestrado da autora, intitulada “O Princípio do DuploGrau de Jurisdição nos Processos de Competência Originária dos Tribunais pela Prerrogativa deFunção”, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2002.2 Antônio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Ada Pellegrini Grinover.Recursos no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 27. Observa-se que oDuplo Grau de Jurisdição prescinde de órgão superior para a análise da matéria em discussão.É o que ocorre, por exemplo, com o sistema da Lei nº 9099/95 no qual o reexame dá-se porórgão jurisdicional do mesmo nível do sentenciante.

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Penal. O primeiro é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos(adotado pela XXI Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, em16 de dezembro de 1966), promulgado pelo Decreto nº 592, de 6 dejulho de 1992. O segundo é a Convenção Americana sobre DireitosHumanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de1969), promulgada pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. OPacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 14 nº5, prescreve que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá odireito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instân-cia superior, em conformidade com a lei”. O Pacto de São José daCosta Rica, por sua vez, preceitua, em seu artigo 8, item 2, alínea h,ao tratar das garantias judiciais, que “toda pessoa acusada de delitotem direito a que presuma sua inocência enquanto não se comprovelegalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito,em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: direito de recor-rer da sentença a juiz ou tribunal superior”.

Esses tratados fazem parte do ordenamento jurídico constituci-onal brasileiro pelos seguintes argumentos: o §2º do artigo 5º da LeiMaior possibilita o ingresso no ordenamento jurídico constitucional deoutros Direitos e Garantias Fundamentais advindos de tratados inter-nacionais ratificados pelo Brasil; a interpretação sistemática e teleo-lógica da Constituição; a própria natureza materialmente constitucio-nal dos Direitos Humanos e a aplicação do princípio da máxima efetivida-de da norma constitucional.

O referido § 2º integra o próprio artigo 5º, do Texto Constitucional,motivo pelo qual sua previsão tem nível constitucional, não obstante asopiniões doutrinárias em sentido diverso.3 Segundo esse dispositivo,os Direitos e Garantias Fundamentais nele expressos, não excluem

3 Luis Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior sustentam que os tratados têm força denorma infraconstitucional, nos seguintes termos: “entendem alguns autores que o tratado temstatus constitucional, ingressando no sistema na qualidade de norma constitucional. Outrosentendem que a norma deve ingressar no plano ordinário. Somos por esta última corrente. Sepudéssemos entender que o decreto legislativo pode alterar a Constituição Federal, incluindodireitos, estaríamos afirmando que se trata de um texto flexível, não rígido, abandonando umatradição constitucional e não aplicando os princípios do art. 60 e seus parágrafos, regra de

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outros decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constitui-ção, ou dos tratados internacionais dos quais a República Federativado Brasil seja parte. E dentre os tratados internacionais de DireitosHumanos ratificados pelo Brasil, e que tratam do Duplo Grau de Juris-dição, há o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pac-to de São José da Costa Rica.

O Duplo Grau de Jurisdição, segundo o ordenamento constituci-onal brasileiro, incluía-se, até a ratificação dos referidos tratados, comogarantia constitucional implícita, porquanto decorrente do Princípio doDevido Processo Legal, do Princípio da Ampla Defesa e da organiza-ção constitucional dos Tribunais. Com a ratificação daqueles tratadose por força do § 2º do artigo 5º da Constituição, o Duplo Grau de Juris-dição passou a ser garantia expressa, no Direito Processo Penal, embenefício do acusado.

Os citados pactos, ao cuidarem da garantia do Duplo Grau deJurisdição, ampliaram a sua aplicação na órbita do Direito Constitucio-nal Brasileiro, uma vez que estabeleceram sua plenitude no DireitoProcessual Penal, desde que em benefício do acusado, pois os Di-reitos e Garantias Fundamentais têm sempre o escopo de proteger oindivíduo. Segundo tais tratados, o Duplo Grau de Jurisdição é umagarantia jurídico-processual mínima e não deve ter nenhum tipo deinterpretação capaz de restringir sua aplicação. Sua incidência dizrespeito a todos, incluídas as autoridades sujeitas ao foro por prerro-gativa de função. É o que se depreende da interpretação do artigo 5º,n. 2, do Pacto Internacio-nal sobre Direitos Civis e Políticos, ao esta-belecer que “não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos

imutabilidade implícita”. (Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.160). J.F. Rezek defende, outrossim, a paridade entre o tratado e a lei nacional. (Direito Interna-cional Público. 5 ed, São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 105 e 106). Manoel Gonçalves FerreiraFilho sustenta que os tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileirotêm a mesma força da legislação ordinária (Direitos Humanos Fundamentais. 4. ed. São Paulo:Saraiva, 2000, p. 99). Alexandre de Moraes defende a supremacia das normas constitucionaisem relação aos tratados internacionais, nos seguintes termos: “conclui-se, portanto, pela supre-macia das normas constitucionais em relação aos tratados e atos internacionais, mesmo quedevidamente ratificados e plena possibilidade de seu controle de constitucionalidade” (DireitosHumanos Fundamentais. 3 ed, São Paulo: Atlas, 2000, p. 305).

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direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qual-quer Estado-parte no presente Pacto em virtude de leis, convenções,regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pactonão os reconheça ou os reconheça em menor grau”. O artigo 29, b,do Pacto de São José da Costa Rica, por seu turno, preceitua que“nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretadano sentido de limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberda-de que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dosEstados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte umdos referidos Estados”. Dessa forma, com a ratificação desses tra-tados pelo ordenamento jurídico brasileiro, o Princípio do Duplo Graude Jurisdição tem aplicação plena no Direito Processual Penal, sem-pre que beneficiar o acusado. Anteriormente, no período entre a en-trada em vigor da Constituição de 1988 e a ratificação desses Pac-tos, o princípio em questão não era aplicado às autoridades sujeitasao foro por prerrogativa de função, porque se tratava de exceção cons-titucional, advinda do Poder Constituinte Originário.

A finalidade da criação do foro por prerrogativa de função é ga-rantir a certas autoridades públicas um processo criminal justo, nãosó em decorrência da relevância da função que exercem, como tam-bém em benefício da própria sociedade, organizada em um EstadoDemocrático de Direito. Pela relevância do cargo que algumas autori-dades exercem, a Constituição Federal prevê sejam processadas ejulgadas no âmbito criminal por órgãos superiores da justiça, com fun-damento nos princípios da ordem e da subordinação e na maior inde-pendência dos Tribunais.4

O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição constitui garantia fun-damental no Direito Processual Penal, porquanto esse ramo do Di-reito atua diretamente na esfera de liberdade dos homens. Assim, odireito ao reexame das decisões penais condenatórias deve ser ple-no. O direito de reexame refere-se exclusivamente às decisões pe-nais condenatórias, segundo interpretação do Pacto Internacional de

4 Julio Fabbrini Mirabete. Código de Processo Penal Interpretado, cit., p. 161.

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Direitos Civis e Políticos e do Pacto de São José da Costa Rica. Asoutras decisões também podem estar sujeitas ao reexame; no entan-to, tal assunto não é disciplinado pelos pactos em estudo.

Cabe observar que tanto o Pacto Internacional de Direitos Civise Políticos quanto o Pacto de São José da Costa Rica são tratadosde Direitos Humanos. Por isso, possuem tratamento jurídico diferen-te dos tratados comuns. São tratados de natureza especial, pois sãocelebrados para a proteção dos Direitos da Pessoa Humana. Porisso, os Direitos e Garantias Fundamentais que advém dos tratadosde proteção dos Direitos Humanos têm a qualidade de ampliar essesdireitos, quando não previstos no ordenamento jurídico interno, ouquando tiverem uma extensão menor. A interpretação dos Direitos eGarantias Fundamentais previstos em tratados internacionais de Di-reitos Humanos deve ser sempre a que amplia o direito, nunca a queo restringe.áR:5 Deve-se aplicar a norma que mais beneficia a vítimado direito humano violado6, seja a norma do Direito Internacional, sejaa do Direito Interno.7

Conclui-se, então, que as autoridades sujeitas ao foro por prer-rogativa de função também devem ter garantido o Duplo Grau de Juris-dição nas ações penais condenatórias, quando for para beneficiá-las.Tal conclusão é devida pela aplicação conjunta do artigo 5º, § 2º, daConstituição de 1988, com os dispositivos do Pacto Internacional de

5 Consoante Flávia Piovesan, “(...) o Direito Internacional dos Direitos Humanos pode reforçar a im-peratividade de direitos constitucionalmente garantidos - quando os instrumentos internacionaiscomplementam dispositivos nacionais, ou quando estes reproduzem preceitos enunciados da ordeminternacional - ou ainda estender o elenco dos direitos constitucionalmente garantidos - quando osinstrumentos internacionais adicionam direitos não previstos pela ordem jurídica interna” (DireitosHumanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 111).6 Segundo a mesma autora, “(...) se a situação fosse inversa - se a norma constitucional fosse maisbenéfica que a normatividade internacional - aplicar-se-ia a norma constitucional, inobstante osaludidos tratados tivessem hierarquia constitucional e tivessem sido ratificados após o adventoda Constituição. Vale dizer, as próprias regras interpretativas dos tratados internacionais deproteção aos direitos humanos apontam a essa direção, quando afirmam que os tratados inter-nacionais só se aplicam se ampliarem e estenderem o alcance da proteção nacional dos direitoshumanos” (Ibid., pp.114 e 115).7 Antônio Augusto Cançado Trindade. A Interação entre o Direito Internacional e o Direito Internona Proteção dos Direitos Humanos. Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília, vol 46, n. 182, p.27-54, jul. /dez. 1993, p. 49.

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Direitos Civis e Políticos e do Pacto de São José da Costa Rica, quelevam ao entendimento segundo o qual todo indivíduo condenado pe-nalmente por decisão judicial condenatória tem o direito ao Duplo Graude Jurisdição.

Surge, contudo, a seguinte questão: como se aplicar o DuploGrau de Jurisdição às autoridades sujeitas ao foro por prerrogativade função no atual ordenamento jurídico. Apesar da incidência imedi-ata do Duplo Grau de Jurisdição ao acusado, impõe-se a apresenta-ção de algumas sugestões de alteração legislativa para que tal apli-cação seja viabilizada da melhor forma. Se o recurso fosse endere-çado para o mesmo tribunal, a questão seria facilmente resolvida sea competência para julgar o processo ficasse a cargo da Câmara ouTurma do Tribunal competente e o recurso de reexame da decisãopermanecesse afeto ao Pleno ou ao Órgão Especial do mesmo Tri-bunal. Esse entendimento é compartilhado por Fernando da CostaTourinho, para quem “a crítica maior que se faz ao foro pela prerroga-tiva de função repousa na circunstância de se omitir o duplo grau,princípio de valor relevantíssimo. Mas o problema pode ser perfeita efacilmente contornável; basta que a competência para esses casosfique afeta à Câmara ou Turma, com recurso para o Pleno ou ÓrgãoEspecial. Observe-se que nos Estados de São Paulo e Paraná com-pete à Câmara, por força do Regimento Interno, processar e julgaros Prefeitos. Assim os Regimentos dos Tribunais podem fazer o mes-mo em relação às pessoas que gozam de foro especial, dando-serecurso ao Pleno.”8 Se adotada tal solução, seriam resolvidos todosos casos de competência por prerrogativa de função, inclusive osprocessos de competência originária do Supremo Tribunal Federal.

Segundo outra solução, mais complexa, porque demandaria al-teração constitucional, as autoridades sujeitas ao foro por prerrogativade função teriam seus recursos de apelação apreciados pelo tribunalhierarquicamente superior. Por exemplo: o prefeito é julgado, segundoo artigo 29, inciso X, da Constituição da República, pelo Tribunal de

8 Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo Penal. v. 2, cit., p. 225.

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Justiça. O recurso seria, então, apreciado pelo Superior Tribunal deJustiça.

Essa solução não resolveria, entretanto, a situação das autori-dades processadas perante o Supremo tribunal Federal, uma vezque ele é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. Em relação a esseTribunal haveria, então, duas soluções. A primeira retiraria todas ascompetências por prerrogativa de função do Supremo Tribunal Fede-ral, passando-as para o Superior Tribunal de Justiça. O Supremo Tri-bunal passaria a julgar tão somente os recursos de apelação e oDuplo Grau de Jurisdição estaria concretizado. Pela segunda, asTurmas do Supremo Tribunal Federal ficariam responsáveis pelo jul-gamento do processo e os recursos seriam endereçados ao Pleno.Também se aplicaria, nesse caso, o Duplo Grau de Jurisdição.

Concluindo, independentemente da solução adotada, o fundamen-tal é que cada uma delas respeita o Princípio do Duplo Grau de Jurisdi-ção, imprescindível para a aplicação do Direito e a realização da Justiçanum Estado alicerçado nos Direitos e Garantias Fundamentais.

Carolina Alves de Souza Lima,mestre em Direito e professora da PUC-SP e da UNIP

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Luiz Antonio Guimarães MarreyCarlos Henrique MundMaria Cristina Barreira de OliveiraJosé de Arruda

Procurador-geral de JustiçaLuiz Antonio Guimarães Marrey

Membros Natos

José Roberto Garcia DurandLuiz Cesar Gama PellegriniHerberto Magalhães da Silveira JúniorRené Pereira de CarvalhoFrancisco Morais SampaioJosé Ricardo Peirão RodriguesJosé Roberto Dealis TucunduvaOswaldo Hamilton TavaresFernando José MarquesIrineu Roberto da Costa LopesRegina Helena da Silva SimõesRoberto João EliasClaus PaioneJosé de Arruda Silveira FilhoThiers Fernandes LoboÁlvaro Augusto Fonseca de ArrudaPedro Franco de CamposGabriel Eduardo ScottiJosé Luiz AbrantesAntonio Visconti

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça

Corregedor-geral do Ministério PúblicoCarlos Henrique Mund

Conselho do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento FuncionalJúlio César de Toledo PizaOrides BoiatiRoberto Luiz Ferreira de Almeida JúniorLuís Daniel Pereira Cintra

Conselho Superior do Ministério PúblicoLuiz Antonio Guimarães Marrey(presidente)Carlos Henrique MundAntonio Hermen de Vasconcellos e BenjaminEduardo Francisco CrespoFernando Grella Vieira

Francisco Stella JúniorJosé Benedito TarifaJosé Oswaldo MolineiroNewton Alves de OliveiraPaulo Hideo ShimizuWalter Paulo Sabella

Congregação da ESMPLuís Daniel Pereira Cintra (presidente)Antonio Carlos da PonteCélio ParisiDavid Cury JúniorEdgard Moreira da SilvaEduardo Martines JúniorEliana PassarelliIsa Gabriela de Almeida StefanoJosé Carlos Mascari BonilhaJosé Marcelo Menezes VigliarLídia Helena Ferreira da Costa PassosLuiz Antonio de Souza

Luiz Roque Lombardo BarbosaMaria Amélia Nardy PereiraNélson GonzagaOswaldo Henrique Duek MarquesOswaldo Luiz PaluOswaldo Peregrina RodriguesRita de Cássia Souza Barbosa de BarrosRonaldo Porto MacedoSérgio Seiji ShimuraSuely Amici PereiraVidal Serrano Nunes JúniorWallace Paiva Martins Júnior

Membros Eleitos

Júlio César de Toledo PizaMaria Aparecida Berti CunhaEliana MontemagniMarilisa Germano BortolinDráusio Lúcio BarretoFranco Caneva JúniorHideo OsakiDaniel Prado da SilveiraMágino Alves Barbosa FilhoAntonio Carlos Fernandes NeryNelson Lacerda GertelMaria do Carmo Ponchon da Silva PurciniVercingetorix de Castro Garms JúniorRubem Ferraz de OliveiraMaria Cristina Barreira de OliveiraIrineu Penteado NetoJosé Benedito TarifaHerman HerschanderJorge Luiz UssierMarcos Tadeu Gonçalves Teixeira