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REVISTA ELETRÔNICA DO CURSO DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO DE ARARAS- ESTADO DE SÃO PAULO VOLUME 18 – Nº 01 - 2018
Revista Jurídica do Centro Universitário ”Dr. Edmundo Ulson” – UNAR, Araras, v.18, n.01, p.131-150, nov.2018. DOI: 10.18762/1983-5019.20180007
O PRESENTE SERÁ PASSADO POR ALGUMAS PÁGINAS: AS POLÍTICAS
PÚBLICAS E A COMPULSORIEDADE DA VACINAÇÃO EM 1904.
Fernanda Cristina COVOLAN
ISABELLA SAYURI
Introdução
Em que pese o correr dos anos, que se transformam em décadas, a saúde pública
continua ocupando lugar de destaque nos anseios populares e nas ações dos gestores
públicos. Basta ligar a TV ou ler o jornal, ou realizar pesquisa mais aprofundada para
tomar conhecimento do reaparecimento de diversas doenças que se pensavam
erradicadas no país, graças as políticas de vacinação para as quais intensas campanhas
foram encampadas por décadas.
E espantosamente, em tempo de veloz disseminação de saberes, graças aos meios
digitais, o que se tem observado é a disseminação da desconstrução dos saberes,
gerando dúvidas que são amplificadas por teorias com poucas bases científicas,
jogando-se por terra um longo processo de conscientização da importância dos métodos
de prevenção de certas doenças graves.
Os números revelam que os índices de cobertura vacinal têm diminuído
sistematicamente, especialmente entre crianças pequenas, e novos surtos de doenças que
as últimas gerações não conheciam senão nas regiões endêmicas, reaparecem próximas
aos grandes centros, como a febre amarela.
Seria possível tornar compulsória a vacinação, de modo a impedir a disseminação destas
doenças já desaparecidas, não experimentadas por pelo menos uma geração ou duas?
Seria esta uma violação da liberdade garantida constitucionalmente, inclusive com
violação da incolumidade física? Estaria o direito coletivo e individual à saúde (direito
Mestre em Direito na Unimep; Doutoranda em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, com bolsa Capes/Prosuc; Professora e coordenadora de grupo de Iniciação Científica em História do Direito, e supervisora de TCC no Centro Universitário Adventista de São Paulo. Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo; estagiária concursada na Defensoria Pública de Limeira.
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social, portanto) acima deste direito à liberdade, da categoria dos direitos civis? Não
seria a compulsoriedade uma forma de política pública, quando a conscientização
parece não surtir efeito?
Na hipótese de se estender tal reflexão teórico-jurídica certamente seriam analisadas as
relações entre os direitos fundamentais, em face do seu valor semelhante. Em que pese a
dificuldade desta discussão, é possível fazer uma reflexão ao voltar-se os olhos ao
passado, há mais de 100 anos atrás, quando no país pela primeira vez introduz-se a
vacinação como forma de prevenir doenças. Diante da falta de colaboração ou
conhecimento popular, agravados por métodos autoritários de convencimento social,
uma lei que tornava a vacinação compulsória e permitida a entrada nas casas para
inspeção sanitária e medidas ditas profiláticas, causou grande ebulição social na cidade
do Rio de Janeiro, denotando a dificuldade do governo de transformar a cidade segundo
o modelo moderno que ambicionava.
Em face desta dicotomia entre as experiências presentes e passadas, este trabalho se
dedica a refletir sobre a teoria das políticas públicas, recentemente abraçada pelo
Direito, já que o sistema de realização destas passa por estruturas jurídicas, além da sua
face de estudo nas ciências políticas, a saber: elaboração normativa, interpretação,
fiscalização e execução das normas, limites legais de ação dos entes públicos, e
interferências judiciais, como o denominado ativismo judicial.
Na sequência então se adentra a análise do fenômeno histórico-social referido para,
comparando teorias recentes a práticas antigas, permitir a reflexão sobre o alcance e
possibilidades da norma como meio de realização de mudanças públicas específicas, em
especial nas situações em que os costumes ou concepções se contrapõem.
Políticas Públicas
O ser humano em todos os estudos que discute sobre determinado elemento, objeto de
pesquisa, deve mostrar o seu marco inicial, e se não for possível, pelo menos definir do
que se trata. Partindo dessa premissa, segundo o Dicionário Aurélio, uma das definições
para política pode ser: ação cortês e civil do Estado no agir; Público, que se refere ao
povo em geral ou que visa o interesse público.
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O conceito de Políticas Públicas ainda não encontrou está, em especial dentro da seara
jurídica, terminantemente definido, mas Bucci (2006, p. 241) trata das Políticas Públicas
como ação governamental, dizendo:
A doutrina diverge sobre se as políticas públicas são atos, normas ou
atividades. Em uma definição concisa, afirma-se que políticas públicas
são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à
disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de
objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
[...] o fato de que a política pública é um programa, isto é, um
conjunto coordenado de ações; a adjetivação de que se trata de ações
governamentais, ou seja, levadas a cabo, ao menos prioritariamente,
pelo Estado: e, por fim, os objetivos, que devem ser socialmente
relevantes.
Partindo-se desta conceituação do tema, o outro aspecto relevante para entender o
assunto do presente trabalho é mostrar em que as Políticas Públicas se fundamentam.
Segundo alguns estudiosos, as políticas são embasadas nos direitos sociais, e teriam
emergido com a existência deles, os quais se concretizam pelas ações positivas do
governo para o público. Estas atividades tentam diminuir as desigualdades sociais, e se
consolidaram a partir do século XX, quando o Estado ganhou maior liberdade para
intervir nas relações coletivas e dessa forma proteger e fazer valer direitos necessários
para a coletividade. (BUCCI, 1997, p. 90).
Entretanto, para melhor compreensão das Políticas Públicas, convém igualmente buscar
uma definição dos direitos sociais. Bernardo Gonçalves Fernandes (2013, p. 577)
explica que os direitos sociais, integrantes do conjunto dos direitos fundamentais, são
comumente identificados, na teoria de direitos geracionais - em que a primeira geração
teria dado meios para o surgimento da segunda geração, e assim sucessivamente - como
direitos de segunda geração:
Os direitos sociais constituem-se no segundo grupo integrador do
conceito de Direitos Fundamentais, [...], os direitos sociais não só
alargam a tábua de direitos fundamentais, mas também redefinem os
próprios direitos individuais.
Sua origem histórica está na crise da tradição do Estado Liberal e na
consagração do paradigma do Estado Social de Direito, que,
rompendo com os padrões formalistas de igualdade e de liberdade do
paradigma anterior, vão buscar mecanismos mais concretos de
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redução das desigualdades socioeconômicas dentre os membros da
sociedade. (FERNANDES, 2013, p. 577)
Todavia, importa ressaltar que Fernandes (2013), como se pode observar pelo primeiro
dos parágrafos acima, não defende a ideia geracional dos direitos fundamentais, já que
compreende que eles interferem uns nos outros, e são interdependentes, além de ser
necessária a análise dos casos em espécie de modo a identificar o lugar ocupado por
aquela gama de direitos: se coletivo, social ou individual.
Em suma, portanto, os direitos sociais são direitos fundamentais, que passam a ser
efetivados mediante a intervenção do Estado, que até então, no modelo de estado liberal
moderno, estava impedido de intervir ativamente na economia, entendendo-se que esta
era a única maneira de efetivamente garantir-se a liberdade de cada indivíduo
pertencente ao seio social: ao Estado cabia a tarefa de permitir e garantir a não
interferência nesta liberdade, inclusive, no caso que aqui interessa, da interferência do
próprio Estado que desequilibraria a natural tendência do mercado para autorregular-se.
Em que pese hoje em dia ser claro que não há mais estados liberais no modelo clássico,
nem mesmo os que aparentemente possuem pouco grau interventivo, se estudados de
perto, também é verdade que há estados em que, admitida a intervenção mínima
necessária para garantir que a liberdade possa se expressar e gerar benesses sociais,
compreende-se que cabe a cada indivíduo sozinho alcançar seus objetivos, pela força do
seu caráter e capacidades, sem que se considere diferenças de cunho econômico e social
existentes entre os indivíduos.
Na passagem do século XIX para o XX o processo de industrialização dos países
centrais levou à situações inesperadas para os meios antes existentes de proteção social
contra os males próprios da existência: doença, acidentes, morte. E neste processo uma
nova categoria de cidadãos se auto erige, os trabalhadores urbanos, operários de fábrica,
que percebem seu valor e desafiam autoridades e governos reivindicando garantias em
face da falácia da igualdade contratual entre o trabalhador e o contratante.
Os direitos sociais, uma vez introduzidos nas normas e por fim nas constituições
tornaram-se direitos positivos, e paulatinamente migrando de uma concepção de normas
dirigentes para direitos garantidos que exigiam ação direta do Estado, por meio de
elaboração e implantação de programas e serviços custeados pela sociedade através de
impostos, para minorar desigualdades, ampliando, assim, o status de igualdade
constante do rol principal dos direitos humanos.
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Em face disso, da necessidade desta elaboração e implantação de programas e serviços
sociais é que as normas fundamentais que tratam dos direitos sociais tendem a ser
interpretados dentro da lógica da reserva do possível, ou seja, compreendendo-se que
há, infelizmente, limites econômicos para que a igualdade se realize – que todos os
direitos sociais sejam garantidos em seu patamar mais elevado.
E quais são os direitos sociais? De acordo com o artigo 6º da Constituição Federal de
1988, são direitos sociais: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança e outros elencados nos demais dispositivos da Carta Magna do Brasil.
Como se vê, os constituintes parecem ter pensado o rol dos direitos sociais dentro da
lógica de uma constituição dirigente, ou seja, como uma carta política, instrutora das
ações dos poderes públicos, mas sem que pudessem ser diretamente exigidos como
direitos diante dos tribunais. Mas a norma não se esgota no desejo do seu autor, antes
mantém-se viva pela interpretação que sofre enquanto vige, e deste modo alguns destes
direitos, em especial o direito à saúde, passou por este caminho de mudança de
interpretação.
Uma vez compreendidos os direitos sociais, falta referir que são eles os objetos das
Políticas Públicas. Logo, compreende-se que as políticas públicas seriam o meio
executório destes direitos fundamentais. No entanto Maria Bucci (1997, p. 89) relata
que há complexidade no tema, “O tema é, por natureza, muito complexo. Em primeiro
lugar, porque não é um tema ontologicamente jurídico, mas é originário do universo de
preocupações da teoria política”.
Além disso, para que haja meios de diminuição das desigualdades, é necessária a
intervenção de um “estranho” nessa relação, o Estado, que tem a função de criar e
executar ações que realizem os direitos garantidos pela norma. Esta atividade estatal,
que pode ser feita direta ou indiretamente e que conta com a colaboração dos demais
entes públicos ou privados para assegurar o direito interindividual, recebe a
nomenclatura de Política Pública.
A necessidade de compreensão das desigualdades sociais, políticas,
econômicas e culturais, historicamente oprimidas tanto pelo Estado
como pela sociedade dominante, faz- se imprescindível como
categoria jurídica em busca da concretização dos direitos sociais,
amplamente valorizados na tarefa de redemocratização imposta pela
Constituição Federal de 1988. (SPAT; SUPTITZ, 2015, p. 4).
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Ademais, é de grande relevância tratar da competência da iniciativa das Políticas
Públicas, pois segundo Ana Maria Dallari Bucci (1997), o caminho que as políticas
públicas seguem, e seu objetivo final, são decisões que cabem aos representantes do
povo, logo, ao Poder Legislativo, que as estabelece em forma de normas. No entanto, há
a parcela dessa função que cabe ao executivo, que é a parte da realização do plano ou
programa, o que permite que uma parte dessa capacidade de gerir essas políticas sociais
fique no encargo do Poder Executivo. Assim, no mesmo sentido completa:
Parece relativamente tranquila a ideia de que as grandes linhas das
Políticas Públicas, as diretrizes, os objetivos são opções políticas que
cabem aos representantes do povo e, portanto, ao Poder Legislativo,
que as organiza em forma de leis de caráter geral e abstrato, para
execução pelo Poder Executivo, segundo a clássica separação de
poderes de Montesquieu. Entretanto, a realização concreta das
Políticas Públicas demonstra que o próprio caráter diretivo do plano
ou do programa implica a permanência de uma parcela da atividade
“formadora” do direito nas mãos do governo, Poder Executivo,
perdendo-se a nitidez da separação entre os dois centros de
atribuições.
E por conta dessa divisão de função que João Trindade Cavalcante Filho (2013) busca
analisar quais são os limites da iniciativa parlamentar sobre esses atos governamentais
de direção e execução dos direitos fundamentais do indivíduo, no contexto social. A
discussão parte da dúvida quanto à possibilidade do Legislativo iniciar projetos de lei
que constituam as Políticas Públicas, ou se se trata de diligência exclusiva do Poder
Executivo, sugerindo uma análise dos textos constitucionais, para que se possa perceber
desde quando essa segmentação de poderio com relação a instauração das Políticas
Públicas existe.
Dessa forma, menciona o artigo 61, §1º, II, e, da CF (na redação dada pela Emenda
Constitucional, nº 32, de 11 de setembro de 2001) que dispõe do seguinte texto:
Art. 61 [...]
§ 1º- São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis
que:
[...]
II- disponham sobre:
[...]
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração
pública, observado o disposto no art. 84, VI;
[...]
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Nos dias atuais, segundo Ives Gandra da Silva Martins e Celso Ribeiro Bastos (1995),
entende-se que a competência para a iniciativa das políticas públicas seria do Executivo,
por entenderem que este possui mais conhecimento que o Legislativo, por estar gerindo
a máquina pública, e a outorga para a casa legislativa seria um risco, tendo em vista que
as iniciativas públicas tratam sobre assuntos que fogem da especialidade do legislativo.
Diversamente, Daniel Sarmento (s\a, p. 2) entende que ambos os poderes teriam esta
capacidade já que dentro do Congresso tanto é possível que haja muitos tecnicamente
capacitados como podem contratar peritos ou indivíduos bem preparados ao seu dispor,
não sendo esta a razão para que as políticas públicas ficassem aos cuidados da casa
legislativa, mas elucida que é o Poder Executivo o mais apto.
Entretanto, Cavalcanti Filho (2013) discorda desta alegação que o Legislativo seria
inculto para instituir as normas que gerassem as Políticas Públicas, pois mesmo que o
Executivo tenha mais contato com tais políticas, não quer dizer que o Legislativo criaria
normas sem sentido, tendo em vista que tal poder não é completamente alheio aos
assuntos administrativos.
Além disso, sempre haveria o poder do veto, que o Chefe do Executivo poderia usar, e
que da mesma forma, se fosse concedida a iniciativa apenas para o Executivo, o
Congresso Nacional teria a prerrogativa de emendar o projeto, desmistificando esse
argumento que o Legislativo pode produzir leis absurdas. A ideia da divisão é para que
haja o equilíbrio entre os poderes, e que melhor se concretizem os direitos do povo, por
meio das políticas públicas.
As Políticas Públicas ganharam muito mais campo na Carta Magna de 1988, mas
historicamente há uma tendência de situar na Era Vargas, a partir de 1930, seu processo
de formação, já que logo após assumir a presidência, Vargas inicia uma reforma
constitucional que lhe permite legislar por decretos. O final do ano de 1930 ainda veria
vários destes decretos regulamentando direitos de natureza laboral e a positivação de
direitos.
A Constituição de 1934 seria tida como a primeira constituição brasileira a dedicar uma
parte de si para a garantia dos direitos sociais, o que se repetiria em todas as
subsequentes, mesmo quando os direitos civis e políticos foram relativizados. Mas seria
necessário que os direitos sociais estivessem positivados para que as políticas públicas
existissem?
Ao considerar-se a conceituação aqui trazida, quer parecer que não, já que tais políticas
são atividades organizadas e levadas a cabo pelo governo. Pois as Políticas Públicas são
nomenclatura para as atividades exercidas pelo governo, e as ações ou normas do
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Estado para com o seu povo sempre foram imprescindíveis, mesmo que em
determinados períodos históricos a ideologia principal fosse da não intervenção.
(BALBINO, 2013).
Outro aspecto da política pública, que cabe como objeto de pesquisa, é que estas ações
governamentais podem ser vislumbradas em ângulos diversos: vista como a execução
de uma lei com o fim de assegurar os direitos sociais – uma visão positiva; mas se os
programas causarem segregação indireta, como estigmas pelo uso das referidas
políticas, pode haver um benefício de natureza econômica, mas uma grande perda de
valor de si quanto ao meio social em que se vive.
Pensando nestas questões: definição de políticas públicas, sua vinculação teórica com
direitos sociais, seus efeitos e limites é que se pensou em olhar para um momento
emblemático da história brasileira, também símbolo das mudanças científicas e das
mudanças políticas do país, a Revolta da Vacina.
A Revolta da Vacina
A Lei da Vacina de 1904, de natureza compulsória, culminou em uma das maiores
manifestações da história do Brasil, consoante as palavras de Sevcenko(2010, p. 11),
“Nunca se contaram os mortos da Revolta da vacina. Nem seria possível, [...]. Seriam
inúmeros, centenas, milhares, mas é impossível avaliar quantos. [...]”.
A Revolta da Vacina foi resultado de um conjunto de elementos: 1- a falta de
informação do povo sobre os planos de saneamento que o Estado estava criando; 2- a
compulsoriedade da lei que não apenas elevou o direito coletivo acima do individual,
como esqueceu a humanidade dos necessitados; 3 – a incitação de um grupo político de
oposição que desejava capitalizar com o insucesso da medida.
Os antecedentes e pressupostos históricos que conduziram à república no Brasil em
nada se assemelham as que se deram nos países centrais, cuja transição para a
democracia se deu após processos revolucionários, ou por influência destes.
Além disso, nestes países a democratização, paulatina, andou pari passu com o processo
de industrialização/urbanização, que implicavam em mudanças econômicas e sociais
profundas, que pediam um novo arranjo político e uma nova ordem econômica.
De todo modo, considerando-se o interregno temporal entre o republicanismo liberal
nos países centrais e seu início no Brasil, é importante retomar que o republicanismo
liberal não era exatamente democrático no senso atual, já que predominavam os
chamados liberais conservadores, que entendiam ser
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[...] essencial o retorno do governo às mãos de uma elite política
culta, esclarecida e verdadeiramente liberal (isto é,
conservadora) Devidamente aparelhada, ela poderia reprimir a
anarquia socialista e, por meio de privatizações, fazer o Estado
recuar aos limites traçados pelas infalíveis leis do mercado.
(LYNCH, 2014, p. 84)
Não era, como se vê, um republicanismo ou liberalismo “radical”, com inclusão de
mulheres entre os eleitores, direitos políticos de mão dupla – votar e ser votado. Não se
desejava inclusão, mas a manutenção do ideário de liberdade para a propriedade,
fundamentalmente, e direitos formais de igualdade.
Nem Deodoro nem Floriano, seu sucessor, tiveram êxito na retomada da ordem e da paz
políticas, até que Campos Sales, cujo governo se iniciou em 1898, trouxesse da
Argentina inspiração para sua Política dos Governadores, pacto político que garantiu os
situacionismos estaduais, vetou o pluralismo político e reservou legislativos governistas.
E também do país vizinho copiou-se a prática de meios interventivos de repressão às
oposições políticas, como os estados de sítio e intervenções federais, frequentes no
período. (LYNCH, 2014, p. 110)
O modelo adotado parece ter sido mesmo aquele idealizado pelo republicanismo
paulista, para o qual o Estado brasileiro deveria ser conservadoramente liberal,
afastando-se da atuação econômica e social do país, abraçando o federalismo e a divisão
entre Igreja e Estado, mas especialmente deixando livres os estados para organização de
suas políticas econômicas, o que certamente foi mais favorável aos estados
exportadores.
A Política dos Governadores permitiu o desenvolvimento da conhecida política Café
com Leite, segundo a qual São Paulo e Minas Gerais revezariam o cargo de presidente,
mantendo os pactos com os estados. Primeiro, importa deixar claro que isso não
significou que as presidências foram de paulistas e mineiros, intercalando-se, mas sim
foram dos candidatos endossados pelos referidos estados, que poderiam ser de outros
lugares.
Em segundo lugar, para o que aqui interessa, o Rio de Janeiro, além de capital do estado
era também a capital do país, razão pela qual as políticas desenvolvidas naquele
município tinham interferência de ambas as instâncias, e os interesses do governo
federal em muito influenciavam as políticas urbanas.
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A república na capital implicara em forte processo de migração de pessoas
desempregadas, na esperança de encontrarem meios de subsistência na cidade mais
importante do país de então. O número de habitantes da cidade sofreu um extremo
crescimento nestes primeiros anos.
Assim, o começo do século na cidade do Rio de Janeiro com o presidente Rodrigues
Alves (1902-1906) e o prefeito Pereira Passos foi marcado por novos ideais de
modernização, com desejo de construção de novas vias e novos edifícios segundo
modelos europeus, de modo a deixar de lado as aparências do período imperial e
principalmente colonial. Para a realização destes intentos foram deitadas abaixo muitas
casas no centro da cidade em que se administravam cortiços e vivia a gente mais pobre,
e muitos libertos. Chegou-se ao ponto de derrubarem todo um morro, que concentrava
muitas moradias populares.
Ao mesmo tempo, Rodrigues Alves e o cientista Oswaldo Cruz, apoiado pelo
presidente, planejam outro tipo de reforma, higienista, com o fito de tornar a capital do
país sinônimo de lugar aprazível, destruindo a imagem de cidade cheia de doenças, a ser
evitada por viajantes.
Como bem resume Sevcenko (2015), esse número exacerbado de habitantes, os centros
do Rio de Janeiro tornaram-se um caos, as ruas eram sujas, por causa da quantidade de
lixo que era produzido diariamente e que ficavam jogados nas alamedas. Sem
mencionar a aparência da cidade, lotada de cortiços que ficavam localizados exatamente
no centro, e essas sujeiras se tornaram a porta de entrada para diversas doenças, que se
proliferavam por meio de mosquitos, ratos, bactérias e fungos, e que desencadearia
grandes epidemias na cidade.
Ora, quando o governo de Rodrigues Alves desencadeou sua maré de
reformas, uma das intenções não anunciadas, mas fáceis de prever, foi
justamente a conjuração do perigo permanente a que o Estado estava
sujeito. De fato, essa era uma preocupação altamente coerente com a
estratégia política dos governos civis, cujo intuito maior, pelo que
vimos, era exibir ao mundo desenvolvido a imagem de uma nação
próspera, civilizada, ordeira e dotada de instituições sólidas, a imagem
de um Estado consolidado e estável. (SEVCENKO, 2015, p.80).
A reforma iniciada por Pereira Passos no urbanismo da cidade pode até não ter tido por
finalidade a divisão social da cidade, já que seus planos também criavam formas de
integração entre os diversos bairros e facilitava a circulação. Mas de fato, com a
expulsão violenta dos moradores dos cortiços e pensões do centro, sem qualquer auxílio
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material, estes buscaram outros lugares onde habitar, havendo associações históricas
entre a formação das primeiras favelas nos morros centrais e tais medidas de
modernização urbana.
Quanto às políticas sanitaristas, elas de fato eram necessárias. As epidemias de febre
amarela, varíola, peste bubônica eram apenas parte das que ocorriam ali. A cidade não
tinha qualquer estrutura de saneamento, mas o que agravava a situação – não muito
diferente em Paris apenas alguns anos antes, era o desconhecimento sobre os modos de
disseminação de doenças, que permitia epidemias de grande extensão e gravidade.
O que havia mudado, no começo do século, era justamente este conhecimento, que
chegava no Brasil pela mão de Oswaldo Cruz, cujo contato com o Instituto Pasteur
havia permitido trazer para o país as mais inovadoras medidas de saúde pública e
combate de doenças. Começando em São Paulo, que se antecede em diversas áreas de
direitos sociais, Oswaldo Cruz é trazido pelo paulista Rodrigues Alves quando da
assunção da presidência, justamente em um dos momentos de maior caos derivado de
epidemias.
A nova ciência da qual Oswaldo Cruz se tornara representante era, por
isso, a resposta desejada pelas autoridades ante a questão da higiene
pública- o que fez com que fossem dados a ele plenos poderes para
enfrentar a questão. Com saber científico aliado à força política, o
médico conseguiu medidas duras visando a eliminação das moléstias
que atingiam a capital- com a criação de novos instrumentos e leis que
tinham como objetivo aumentar o controle público sobre salubridade
da capital. (PEREIRA, 2002, p.17).
E frente a essa responsabilidade o médico trouxe como tratamento para a varíola, a
doença responsável pela epidemia na cidade, a aplicação de vacinas, o que não foi
compreendido pela população, ao mesmo tempo em que Cruz demonstrava pouco
interesse em conscientizar e ensinar, tendendo ao uso da força, partindo do pressuposto
da ignorância dos insatisfeitos. A cidade sofria um processo de modernização com
expulsões que atingiram os mais pobres, e a compulsoriedade da vacina só chegou a
porta dos mais pobres, implicando em invasões às casas e violação dos corpos,
considerado inadmissível pelos maridos, quanto a suas esposas. (LOPES, 2000, p.83).
O mais intrigante desse episódio histórico é que realmente os sujeitos que habitavam o
Rio de Janeiro necessitavam de um reforma urbana, precisavam que políticas de saúde
fossem criadas e executadas, mas a falta de consciência por partes de seus instituidores
quantos aos métodos – criação de leis com sanções, dando ao poder de polícia licitude
para atos considerados então imorais, causaram uma revolta social sem precedentes.
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Como diria Foucault (2002), em sua sanha de vigiar e punir, de modo a normalizar o
comportamento social ainda que por meio da força, causando suplícios, deixou-se de
lado a oportunidade de educar sobre a doença, tornando-se um ato ilegal de poder.
Referente a necessidade da sociedade carioca em receber a vacina, o próprio Sevcenko
(2010, p. 18) confirma que o argumento do governo de tornar a vacina uma obrigação
legal era necessário:
O argumento do governo era de inegável e imprescindível interesse
para a saúde pública. E não havia como duvidar dessa afirmação, visto
existirem inúmeros focos da varíola no Brasil, o maior deles
justamente na cidade do Rio de Janeiro. [Demonstra um
acontecimento da época, para confirmar a precisão de um tratamento
para a doença]. Esse mesmo ano de 1904 atestou um amplo surto
epidêmico: [...] e o total de óbitos devido à varíola seria de 4.201.
Contudo, porque então o povo não aceitou essa medida? Qual foi o erro dos
instituidores dessa norma legal? Com certeza, não terem conquistado a confiança do seu
povo. E terem falhado com a publicidade que apresentava a composição da vacina. A
população brasileira tinha seus motivos para desconfiar de seus representantes, a
começar pelo fato que quando as teorias da medicina moderna chegaram ao país foram
impostas para os pobres: “uma medida que é essencialmente um controle da saúde e do
corpo das classes mais pobres para torna-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas
às classes mais ricas”. (FOUCAULT, 2011, p.97)
A medida obrigatória pretendia conciliar os altos e importantes interesses da saúde
pública, com as garantias constitucionais pertinentes aos direitos individuais, presentes
na Constituição de 1891. No entanto, esse alvo nem passou pela mente da população,
pois eram bombardeados pela publicidade feita pela oposição, que enraivecidos,
respondiam ao governo que, no caso da lei brasileira, os métodos de execução do
decreto de vacinação eram agressivos, os soros e sobretudo os aplicadores pouco
confiáveis, e os funcionários, enfermeiros, fiscais e policiais encarregados da campanha
manifestavam instintos brutais e moralidade discutível. Experiências ruins de
campanhas anteriores eram relembradas, e esses opositores ainda apelavam, dizendo
que os governantes deveriam deixar a escolha/consciência e liberdade de cada um para
sua aplicação, como prova da eficiência benéfica para eles. (SEVCENKO, 2010, p. 18).
O não cumprimento da norma possui relação mais íntima com o sentimento de violação
de suas crenças e direitos individuais, que os opositores fomentavam nas entrevistas ou
nos jornais, do que simplesmente uma negativa por vontade de ir contra o governo.
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Arguia-se o direito à liberdade e propriedade privada de cada um, e a população mais
vulnerável, ao ver os agentes sanitaristas entrando forçadamente em suas residências,
usando de força para praticar a vacinação, sem qualquer respeito, a resistência era
esperada. (PEREIRA, 2002)
Sevcenko (2010) mostra que, naquela época, a sociedade era extremamente recatada,
apenas os braços já eram considerados como parte íntima do corpo, cuja simples
menção em público constrangia a todos, o que permite no presente se solidarizar com os
sentimentos de incompreensão e revolta.
Mas além disso, havia o medo. Ao considerar-se o prévio senso comum sobre as
doenças, como convencer a população de que a vacina, a ser introduzida no corpo, era
produzida a partir de micróbios da própria doença, extraídos de um animal previamente
infectado com a varíola, doença terrível já conhecida? Tratava-se de uma mudança no
conhecimento científico que para a sociedade era de difícil assimilação, e a falta de
tempo e cuidado na conscientização, na compreensão dos processos médicos, na
explicação dos processos de disseminação de doenças, no que eram os micróbios, tudo
isso gerou pavor, ainda mais exacerbado diante da morte de um indivíduo recém
vacinado. (PEREIRA, 2002).
A situação piorou muito, levando a insurreição popular com a aprovação no Congresso
de uma lei em 31 de outubro de 1904, que definia a obrigatoriedade de vacinação de
todos, incluindo recém nascidos e idosos, sob pena de multas, demissão, proibição de
matrícula, de viagens. O objetivo era a erradicação da doença a qualquer custo
(SEVCENKO, 2010), talvez inclusive supondo-se que não haveria meios de educação
social, pelo que a força deveria ser o meio usado.
A compulsoriedade da vacinação, a drástica mudança nos conhecimentos científicos
sem conscientização social, o uso de métodos invasivos e penosos, naquele tempo, em
que pese a resistência da conhecida revolta, levaram a diminuição e posterior
erradicação desta e de outras doenças, não só na cidade, mas em todo o país, com os
estados pedindo o auxílio federal nos anos seguintes da república.
Assim, ainda que os modos usados tenham sido excessivamente duros com a população,
que além disso era deseducada pelo oportunismo dos opositores políticos do governo;
ainda que direitos individuais constantes do texto constitucional tivessem sido violados,
houve sucesso na garantia de uma qualidade coletiva de saúde, que certamente implicou
em ganhos individuais incalculáveis.
No período em questão, só é possível falar dos direitos civis, já que não havia ainda a
perspectiva de direitos sociais como atualmente, pelo que não havia a percepção de ser
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dever do Estado zelar pelo bem-estar coletivo e individual; mas também é verdade que,
mesmo constando da constituição como direitos, os direitos civis não eram exatamente
os mesmos para todos em uma sociedade clientelista, coronelista e mandonista.
A necessidade das políticas sanitaristas no Rio de Janeiro
O Rio de Janeiro na época, como já mencionado, estava em um processo de transição,
em busca de uma imagem mais moderna, que se coadunasse com a idealização política
do que deveria ser a capital do país, em especial frente às ideias negativas que existiam
sobre as condições de saúde e de higiene, retratadas por visitantes estrangeiros. Era a
época do higienismo, do sanitarismo, e não só no país predominava a ideia de que as
cidades precisavam ser limpas, erradicada a sujidade associada à doença, mas também à
feiura. Neste sentido, sofriam mais os menos privilegiados.
Tratava-se de um período de crescimento de consciência entre as elites em relação as
dificuldades epidêmicas que o país enfrentava. Para Hochman (2012), na primeira fase
as ações governamentais se basearam na era do saneamento, que passava para o Estado
Nacional a responsabilidade pela saúde da população e salubridade do território. E com
essa ideia os serviços públicos de higienização para combater a epidemias seria
ampliado, como acabou ocorrendo, vistos os resultados positivos na capital do país, que
antes experimentava surtos periódicos de varíola, febre amarela e peste bubônica. A
situação era tão grave em 1904que o governo federal decretou estado de calamidade
pública.
Ratificando a necessidade das políticas de saúde, Covolan (2016) mostra que os surtos
epidêmicos não eram apenas uma dificuldade atual na cidade, mas sim uma
preocupação que assolava o Rio de Janeiro desde a era do Império, e que desde aquele
período fazia-se necessária uma reforma, o que só foi possível já na república,
ensejando a a criação do Conselho Superior de Saúde Pública.
Os meios para combater cada doença foram diferentes: para a peste bubônica houve a
caça aos ratos; para a febre amarela foi feita a campanha para eliminar os agentes
causadores, com a chamada “brigada mata-mosquito”, e as casas eram invadidas para
higienização, ou mesmo demolições de construções, mas por fim Cruz conseguiu conter
a proliferação das doenças, embora a febre amarela tenha sido contida lentamente até se
tornar endêmica no país, e a varíola tenha precisado de muitos anos de campanhas de
vacinação. (HOCHMAN, 2012)
A partir de 1904 os serviços públicos voltados a medidas de prevenção de doenças
epidêmicas e endêmicas implicaram em um grande processo de intervenção política,
dando-se a descentralização dos serviços de higiene, que até então era da esfera da
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municipalidade, pois havia a separação administrativa quanto a competência
(HOCHMAN, 2012).
Covolan (2016) indaga se diante de elementos conceituais básicos, é possível um olhar
para o passado brasileiro e verificar experiências de políticas públicas antes da fixação
dos direitos sociais. Seria possível, utilizando-se de um conceito de política pública
atual, vislumbrar no passado essas políticas, tendo em vista que a definição passou por
uma construção histórica, consolidando-se a partir dos direitos sociais prescritos, da
democracia, em uma estrutura de Estado nacional, e na percepção mais amadurecida de
direitos fundamentais e direitos humanos?
O início da análise tem por embasamento o entendimento de Bucci(1997) e de João
Cavalcante Filho (2013), que enxergam as Políticas Públicas como normas, atividade ou
programas do governo. E a Lei da Vacina foi uma ordem legal, que motivou a
necessidade de construção de programas por parte do Estado para resolver os problemas
das patologias epidêmicas. Logo, mesmo antes dos direitos sociais, havia legitimidade
de quem propôs e executou a norma e a princípio sua finalidade era aniquilar doenças, o
que traria o bem estar para o povo. Com base nesses componentes, as políticas então
desenvolvidas caberiam no conceito de políticas públicas.
O Decreto 1.260 de 31 de outubro de 1904 foi mais um entre várias ações e programas
que os representantes do estado brasileiro estavam executando. Pode-se dizer que a Lei
da Vacina surgiu depois de outras atividades que o governo estava implementando,
como as políticas sanitaristas que se constituíram no Brasil no fim do século XIX e
começo do século XX, Covolan (2016).
Por outro lado, a Lei da Vacina determinava que a população se vacinasse, sob pena de
não conseguir matricular-se nas escolas, viajar, se empregar e de utilizar outros direitos
fundamentais. Havia a vigilância e punição drásticas, como Foucault (2002) menciona.
Mas o mesmo autor reflete sobre a flexibilidade dos direitos individuais, que
eventualmente podem ser afastados para realização de fins maiores, desde que essa
ofensa não atinja a humanidade do ser humano.
Também pondera Alimonnt (2014, p. 50) que Políticas Públicas e normas não podem
ser entendidas como sinônimos nem como absolutamente diferentes, tendo em vista que
há sim uma ligação entre as políticas Públicas e a norma. No entanto, as políticas
Públicas são ações que o Estado pode utilizar, ou pode se dizer também que o
mecanismo que possui para promover o bem-estar coletivo. Seria um meio de melhor
cumprimento das normas, criação de medidas para a efetivação destas. Entretanto, não
se pode ter seus conceitos homogeneizados, pelo simples fato de haver entre elas uma
íntima relação.
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As políticas Públicas não são sinônimos ou facetas diferentes de um
mesmo objeto. [...] reflete a já verificada incorporação dos setores
economicamente desfavorecidos na esfera de atuação estatal, não
somente na perspectiva de acomodação das tensões sociais, mas com a
tarefa a ela relacionada de efetivamente garantir direitos e reduzir
diferenças. (ALIMONNT 2014, p. 50).
E ao olhar para como foi a execução da Lei da vacina, nota-se que existiu a violência ao
direito fundamental do ser humano, pois foi na casa dos iletrados e humildes que tais
medidas se deram, já que a elite era não apenas respeitada, mas representante direta do
poder instituído. A afronta aos direitos, ao invés de diminuir tensões sociais, foi o que
as fez explodir. Não teria havido, assim, o cumprimento da finalidade de uma política
pública, ao não concretizar direitos então existentes, delineando as diferenças sociais e a
desigualdade. (ALIMONNT, 2014)
Aqui o sanitarismo não se diferenciara do verificado na França, conforme Foucault
(2011, p. 96): “A intervenção nos locais insalubres, as verificações de vacina, os
registros de doenças tinham de fato por objetivo o controle das classes mais pobres
[estava se referindo ao controle da medicina moderna].” Ou seja, a era do saneamento
no país retratava uma maneira de pensar a população, sua submissão e seu papel, além
de retratar o pensamento médico de então.
Os pobres foram atingidos violentamente, por uma norma mascarada de boas intenções,
mas o objetivo na verdade teria sido o mesmo que motivou a medicina social inglesa,
que segundo Foucault (2011) visava dar assistência médica aos pobres como forma de
proteger as classes mais ricas do perigo geral.
Considerações Finais
Uma das maiores dificuldades na análise histórica é a tendência ao olhar anacrônico,
que se serve de percepções, interpretações e sentimentos incabíveis para o tempo
passado sobre o qual se reflete. E este trabalho, ao se propor refletir sobre a Revolta da
Vacina dentro da lógica do que atualmente se chama de políticas públicas não desejou
incorrer neste erro, antes pretendeu mostrar diferenças significativas dos tempos.
Sucede que geralmente ao se traçar um marco histórico para conceitos jurídicos ou
institutos jurídicos é comum que a análise dos fenômenos tenda a este anacronismo, ou
ainda tenda a esquecer que as palavras mudam de significado no tempo, pelo que uma
mesma palavra pode esconder conceitos muito diversos, no decurso temporal.
O que se pretendeu aqui foi refletir sobre a tendência de fixação no período varguista
das políticas públicas nacionais, que partem do fato de ter sido neste período que os
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direitos sociais começam a ser sistematizados, mas também pelo fato de seu governo ter
sido significativamente marcado por políticas de cunho social, ainda que seja imperioso
ressaltar que mais expressivas que tais políticas foram as contínuas propagandas
construídas no período para fixar na memória histórica seu papel de pai dos pobres.
Como bem ressaltado no presente texto, políticas públicas estão atreladas à efetivação
de interesses públicos, em especial a diminuição de desigualdades sociais já que tais
políticas se voltam a realização do que atualmente chamamos de direitos sociais. E se a
efetivação importa para a análise do conceito, e, portanto, para a busca de um marco
histórico para seu início, a reflexão sobre as políticas de saúde iniciadas no começo do
século passado e que causaram a Revolta da Vacina merece cuidado.
As políticas adotadas pelo governo federal tiveram grande efetividade, embora em
determinadas doenças tenha representado apenas o início de uma batalha longa,
aparentemente ainda não terminada, dado o retorno da febre amarela para as grandes
cidades, ainda que por meio de um outro vetor.
Sua efetividade pode mesmo ser confrontada com o que estudos recentes mostram sobre
as políticas públicas de Vargas em diversos dos temas de direitos sociais, em que a
existência das normas não representou seu cumprimento, justamente porque o governo
se eximia de fiscalização, caso de uma parte muito significativa das normas trabalhistas.
É fato que os métodos usados na Primeira República são reprováveis aos olhos do
presente, e também aos olhos de muitos no passado, mas como mostra o referencial
teórico que fundamentou este texto, tais práticas estavam de acordo com uma forma de
pensar própria daquele tempo, vistas as formas de implantação das novidades científicas
médicas em vários países.
A eclosão dos direitos sociais seria um processo longo, e movido por lutas ideológicas e
confrontos sociais de maior ou menor porte por todo o ocidente, e sempre parece ter
implicado na necessidade de constante reafirmação. Os governos seguem precisando ir
além de seus próprios projetos, e enfrentando desafios, da mesma maneira que os
cidadãos seguem precisando resistir aos abusos bem como insistir na efetivação de seu
bem-estar.
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