Revista do Ministério Público do Estado de Goiás · Universitário de Marília - Univem. ......

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Ministério Público do Estado de Goiás Procuradoria-Geral de Justiça Revista do Ministério Público do Estado de Goiás Goiânia 2016

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Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria-Geral de Justiça

Revista

do Ministério Público

do Estado de Goiás

Goiânia2016

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apresentação................................................................

Direito pÚBLiCo

o acesso pela polícia a conversas gravadas no whatsappe as gerações probatórias decorrentes das limitações àatuação estatal.....................................................................João BiFFe JUnior / JoaQUiM Leitão JUnior

Constitucionalismo no século XiX...........................................eDUarDo aLVares De oLiVeira / DanieL aDJaFre Da Costa Matos

Direito CoLetiVo

parques nacionais: o caminho entre o turismo e a preservaçãoambiental................................................................................ÂnGeLa Maria LaUrinDo Da siLVa / MÁrCia HeLena Lopes /

Mariane Morato stiVaL

Direito CriMinaL

psicopatia: um breve estudo........................................anDrÉ WaGner MeLGaço reis

a execução simultânea de condenações penais sujeitasa regimes jurídicos diversos ........................................LUCas CÉsar Costa Ferreira

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SUMÁRIO

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Direito CiViL

Usucapião coletiva: instrumento para soluções sociais eambientais nas favelas?.......................................................riVaLDo JesUs roDriGUes / JosÉ paULo pietraFesa /FranCisCo itaMi CaMpos

assUntos Gerais

o iCMs e o delito previsto no artigo 2º, ii, da Lei n.8.137/1990.....................................................................................GioVanni anDrei FranZoni GiL

Gestão de pessoas por competências na administraçãopública.........................................................................priCiLa CUrCino riBeiro Dos santos

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Caros leitores,

a escola superior compartilha com todos os leitores a 32ªedição impressa e 11ª eletrônica da revista do Ministério públicode Goiás, completando o ciclo de publicações do ano de 2016.

nessa edição, registramos uma expressiva participação demembros do Ministério público brasileiro, com uma produção qua-lificada de artigos, enriquecida por publicações de outros operadoresde Direito e representatividade da comunidade acadêmica.

a publicação traz novas e importantes reflexões a cada ediçãoe a partir de 2017 se tornará ferramenta essencial para a perspectivaque se anuncia em função dos cursos de pós-graduação previstos parao próximo ano e das incursões da escola superior do Ministério públicode Goiás, agora escola de Governo, pela academia.

a revista fortalece a esMp por meio do compartilhamentoe disseminação do conhecimento e, em uma simbiose perfeita, trilhaum caminho para a melhoria de sua qualificação a partir das parce-rias da escola superior com a academia, que se espera sejam in-tensificadas com o início das atividades de pós-graduação.

as edições impressa e eletrônica ora lançadas apresentamartigos com ricas análises jurídicas das áreas de Direito público,Direito Criminal, Difusos e Coletivos, Civil e temáticas gerais.

ressaltamos novamente a excelência do processo de ava-liação dos artigos pelo Conselho editorial da escola superior deGoiás, chancelando com mestria o conteúdo da publicação.

APRESENTAÇÃO

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aos colaboradores dos anos de 2013 a 2016 nossa gratidãoe homenagens extensivas aos participantes da revista do Mp-Godesde sua primeira edição.

a todos uma ótima leitura!

Ana Paula Antunes Vieira Nery

promotora de Justiça

e Diretora da esMp-Go

Goiânia, Brasil, dezembro de 2016.

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João Biffe Junior*

Joaquim Leitão Junior**

O ACESSO PELA POLÍCIA A CONVERSAS GRAVADAS NO WHATSAPP E AS GERAÇÕES PROBATÓRIAS

DECORRENTES DAS LIMITAÇÕES À ATUAÇÃO ESTATAL

THE ACCESS BY POLICE RECORDED CONVERSATIONS IN WHATSAPPAND GENERATIONS EVIDENTIARY TRIGGERED BY LIMITATIONS ON

ACTING STATE

EL ACCESO POR LA POLICÍA EN CONVERSACIONES GRABADASWHATSAPP Y LAS GENERACIONES PROBATORIAS DESENCADENADA

POR LAS LIMITACIONES EN LA ACCIÓN DEL ESTADO

Resumo:

O presente artigo tem como propósito o estudo das gerações do di-reito probatório e os limites impostos à ação dos agentes estatais nabusca exploratória em aparelhos de telefonia celular apreendidos.Partindo de estudo documental e bibliográfico, pretende revisar osprecedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal deJustiça, estabelecendo a distinção entre as diversas hipóteses leva-das à apreciação dos tribunais superiores, bem como interpretá-losà luz dos precedentes da Suprema Corte norte-americana. O desafioà execução do presente trabalho consiste em apresentar de formacrítica e detalhada as hipóteses que legitimam a busca exploratórianos aparelhos apreendidos e as cautelas para não contaminação dasprovas coligidas.

* Especializado em Direito Civil e Processual Civil e graduado em Direito pelo CentroUniversitário de Marília - Univem. Promotor de Justiça do MP-GO. Membro da Associaçãodos Promotores do Júri.** Especializado em Ciências Penais pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes emparceria com a Universidade de Santa Catarina. Especializado em Gestão Municipalpela Universidade do Estado de Mato Grosso e pela Universidade Aberta do Brasil.Graduado em Direito pela Centro de Ensino Superior de Jataí - Cesut. Curso de ex-tensão de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária comUsuários e Dependentes de Drogas pela Universidade de São Paulo. Delegado dePolícia no Estado de Mato Grosso.

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Abstract:

This article aims to study the generation of evidence law and the limits

to action by state agents in the exploratory search on mobile devices

seized. From the documentary and bibliographical study aims to re-

view the precedents of the Supreme Court and the Superior Court of

Justice, distinguishing between the various hypotheses taken the ap-

preciation of the Superior Courts, and interpret them in the light of the

precedents of the Supreme Court US American. The challenge to the

execution of this work is to present critically and detailed hypotheses

that warrant exploratory search of seized equipment and precautions

to avoid contamination of evidence collected.

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo estudiar la generación de evidencia

y la ley los límites de la acción por parte de agentes estatales en la

búsqueda exploratoria en los dispositivos móviles incautados. Desde

el documental y el estudio bibliográfico tiene como objetivo revisar los

precedentes del Tribunal Supremo y el Tribunal Superior de Justicia,

distinguiendo entre las diferentes hipótesis tomadas de la apreciación

de los tribunales superiores, e interpretarlos a la luz de los precedentes

de la Corte Suprema de EE.UU. Americana. El reto para la ejecución

de este trabajo es presentar hipótesis crítica y detalladas que justifican

la búsqueda exploratoria de los equipos incautados y las precauciones

para evitar la contaminación de las pruebas presentadas.

Palavras-chave:

Proteção constitucional, privacidade, busca exploratória, acesso a

dados, interceptação.

Keywords:

Constitutional protection, privacy, exploratory search, data access;

interception.

Palabras clave:

Protección constitucional, privacidad, buscar exploratoria, acceso

a los datos, interceptación.

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INTRODUÇÃO Efetivada a prisão em flagrante de uma pessoa, questiona-se a licitude do comportamento dos policiais ao realizar busca ex-ploratória em eventual aparelho de telefonia celular apreendido,consultando imagens, registros de ligações efetuadas e recebidas,bem como o acesso a aplicativos de comunicação, tais como What-sApp, Telegram, Kik, Skype, SnapChat, Facebook Messenger,GoSMS Pro, Im+, WeChat, BBM, Viber, entre outros. A questão é altamente complexa, uma vez que as mensa-gens armazenadas nesses aplicativos podem ser apagadas de ma-neira remota. Dessa forma, a necessidade de prévia ordem judicialpara legitimar o acesso a referidos aplicativos poderá conduzir àperda dos elementos informativos que os órgãos de persecuçãopenal necessitavam para repressão de práticas delitivas. Imaginemos o caso de um traficante que tem seu celularapreendido por policiais no momento de sua prisão em flagrante.As informações armazenadas em seu aparelho poderão comprovara prática da traficância, além de identificar fornecedores, compra-dores e até mesmo a localização do restante da droga. Certamente, transcorridos poucos minutos da prisão, essasmensagens serão apagadas de maneira remota, bem como cessa-rão todos os contatos com o interlocutor preso. Considerando queas mensagens são criptografadas e não são armazenadas pelosservidores, não haverá meios tecnológicos para recuperá-las. Salienta-se, novamente, que se trata de questão complexa,envolvendo a discussão quanto aos limites da atuação estatal emvirtude da proteção da intimidade e do sigilo das comunicações. O debate quanto aos limites impostos pela ordem consti-tucional à obtenção das provas em respeito à expectativa de pri-vacidade é pautado pela análise do uso da tecnologia e seu poderde penetração na intimidade do indivíduo. Esses questionamentos estão ligados ao denominado di-reito probatório de terceira geração. Por essas razões, a terceirageração do direito probatório foi ventilada pelo Ministro RogérioSchietti no julgamento do HC n. 51.531, ao tratar do acesso diretopor policiais aos aplicativos instalados em aparelhos de telefoniacelular apreendidos.

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No referido voto, o Ministro promoveu a distinção entre ocaso subjacente ao habeas corpus e o precedente do STF (HC n.91.867/PA, de 20/09/2012), reputando lícita a análise, logo após aprisão em flagrante, dos últimos registros telefônicos armazenadosnos aparelhos de telefonia celular apreendidos, sem a necessidadede autorização judicial. No HC n. 51.531, de 09/05/2016, a 6ª Turma do STJ enten-deu ser ilícita a “a devassa de dados, bem como das conversasde WhatsApp, obtidas diretamente pela polícia em celularapreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial”. O Min. Rogério Schietti apontou o distinguishing 1 em rela-ção ao HC n. 91.867, afastando o precedente do STF. A decisão do STF (HC n. 91.867/PA) versava sobre o acessoao registro de chamadas telefônicas efetuadas e recebidas. De talforma, no precedente da Suprema Corte, as autoridades policiais nãotiveram acesso às conversas mantidas entre os investigados. Eis o trecho do HC n. 91.867, que sintetiza o objeto do writ:

Suposta ilegalidade decorrente do fato de os policiais, após a prisão emflagrante do corréu, terem realizado a análise dos últimos registros te-lefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos. Não ocorrência. 2.2Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos,que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode in-terpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aosdados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucionalé da comunicação de dados e não dos dados. 2.3 Art. 6º do CPP:dever da autoridade policial de proceder à coleta do material compro-batório da prática da infração penal. Ao proceder à pesquisa naagenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meiomaterial indireto de prova, a autoridade policial, cumprindo o seumister, buscou, unicamente, colher elementos de informação há-beis a esclarecer a autoria e a materialidade do delito.

Conforme esclarecem Vinícius Marçal e Cleber Masson,

fixadas estas distinções, considerou-se que os atuais smartphonessão dotados de aplicativos de comunicação em tempo real, razão pelaqual a invasão direta ao aparelho de telefonia celular de pessoa presa

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1 O distinguishing é a distinção do caso fático concreto, em vista do precedente fixadopara a não incidência deste último, com a permissão de fixação de entendimentodiverso do precedente paradigma.

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em flagrante possibilitaria à autoridade policial o acesso a inúmerosaplicativos de comunicação on-line, todos com as mesmas funciona-lidades de envio e recebimento de mensagens, fotos, vídeos e docu-mentos em tempo real (MARÇAL; MASSON, 2015, p. 240).

O Min. Nefi Cordeiro salientou que nas

conversas mantidas pelo programa WhatsApp, que é forma de comu-nicação escrita, imediata, entre interlocutores, tem-se efetiva intercep-tação inautorizada de comunicações. É situação similar às conversasmantidas por e-mail, onde para o acesso tem-se igualmente exigido aprévia ordem judicial.

Por fim, o Min. Rogério Schietti salientou que a

doutrina nomeia o chamado direito probatório de terceira geração,que trata de ‘provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitemalcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelastécnicas tradicionais.

Para corroborar a argumentação, o Min. Schietti citou tre-cho da obra de autoria de Danilo Knijnik:

A menção a elementos tangíveis tendeu, por longa data, a condicionar ateoria e prática jurídicas. Contudo, a penetração do mundo virtual comonova realidade demonstra claramente que tais elementos vinculados àpropriedade longe está de abarcar todo o âmbito de incidência de buscase apreensões, que, de ordinário, exigiriam mandado judicial, impondo rein-terpretar o que são "coisas" ou "qualquer elemento de convicção", paraabranger todos os elementos que hoje contém dados informacionais.Nesse sentido, tome-se o exemplo de um smartphone: ali, estão e-mails, mensagens, informações sobre usos e costumes do usuário,enfim, um conjunto extenso de informações que extrapolam em muitoo conceito de coisa ou de telefone.Supondo-se que a polícia encontre incidentalmente a uma busca umsmartphone, poderá apreendê-lo e acessá-lo sem ordem judicial paratanto? Suponha-se, de outra parte, que se pretenda utilizar um sistemade captação de calor de uma residência, para, assim, levantar indíciossuficientes à obtenção de um mandado de busca e apreensão: se estaráa restringir algum direito fundamento do interessado, a demandar a ob-tenção de um mandado expedido por magistrado imparcial de equidis-tante, sob pena de inutilizabilidade? O e-mail, incidentalmente alcançadopor via da apreensão de um notebook, é uma "carta aberta ou não"?Enfim, o conceito de coisa, enquanto res tangível e sujeita a uma relação

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de pertencimento, persiste como referencial constitucionalmente aindaaplicável à tutela dos direitos fundamentais ou, caso concreto, deveriaser substituído por outro paradigma? Esse é um dos questionamentosbásicos da aqui denominada de prova de terceira geração: "chega-se aoproblema com o qual as Cortes interminavelmente se deparam, quandoconsideram os novos avanços tecnológicos: como aplicar a regra ba-seada em tecnologias passadas às presentes e aos futuros avanços tec-nológicos". Trata-se, pois, de um questionamento bem mais amplo, queconvém, todavia, melhor examinar. [...] (apud KNIJNIK, 2014, p. 179)

Concluindo assim que, diante do direito probatório de ter-ceira geração, “o precedente do HC n. 91.867/PA não é mais ade-quado para analisar a vulnerabilidade da intimidade dos cidadãosna hipótese da apreensão de um aparelho de telefonia celular emuma prisão em flagrante”. Salienta-se, ainda, como bem destacado por Marçal eMasson, que:

Conquanto tenha sido essa a tônica da decisão, a Corte não descartou,peremptoriamente, que a depender do caso concreto, ficando evidenciadoque a demora na obtenção de um mandado judicial pudesse trazer prejuí-zos concretos à investigação ou especialmente à vítima do delito, mostre-se possível admitir a validade da prova colhida através do acesso imediatoaos dados do aparelho celular (MARÇAL; MASSON, 2015, p. 240).

No entanto, da leitura do acórdão exsurge uma perguntainevitável: se existe um direito probatório de terceira geração, quaisseriam os direitos probatórios de primeira e segunda geração?

Das gerações probatórias

Após análise dos precedentes Olmstead (1928), Katz(1967), Kyllo (2001) e Riley (2014), classificamos as provas emgerações, a partir da evolução da interpretação constitucio-nal quanto às limitações da atuação estatal em razão da pro-teção à intimidade. A divisão das gerações de direito probatório encontra seunascedouro nos precedentes Olmstead (1928), Katz (1967) eKyllo (2001), nos quais a Suprema Corte norte-americana decidiuem quais casos incidiria a proteção conferida pela 4ª Emenda à

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Constituição dos Estados Unidos da América, tornando-se assimnecessária a expedição prévia de ordem judicial de busca eapreensão para a obtenção lícita das provas. Preconiza a 4ª Emenda que o

direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e ha-veres contra busca e apreensão arbitrárias não poderá ser infringido;e nenhum mandado será expedido a não ser mediante indícios deculpabilidade confirmados por juramento ou declaração, e particular-mente com a descrição do local da busca e a indicação das pessoasou coisas a serem apreendidas.

A trilogia dos precedentes Olmstead (1928), Katz (1967)e Kyllo (2001) representa a mutação constitucional quanto aosobjetos que poderiam ser objetos de apreensão pelos agentesdo Estado, sem ordem judicial previamente expedida. Passemos a análise de cada geração do direito probató-rio à luz dos referidos precedentes.

Direito probatório de 1ª geração: teoria proprietária outrespass theory

O precedente Olmstead é apontado como o precursorda teoria que ainda hoje condiciona, em grande parte, a teoria eprática do direito brasileiro. No caso levado a julgamento em1928 perante a Suprema Corte, a polícia instalara um equipa-mento para interceptar as conversas telefônicas, fazendo-o di-retamente na fiação da empresa telefônica, em via pública(KNIJNIK, 2016, p. 85). Ocorre que a polícia descobrira a existência de umaconspiração para violar a Lei de Proibição, visando importar, pos-suir e vender bebidas alcoólicas ilegalmente. Olmstead era o líderda conspiração e gerente geral do negócio utilizado para viabili-zar a prática ilícita. Os investigados foram condenados no Tribunal Distritalpor conspiração para violar a proibição estabelecida pela LeiNacional que proibia a posse, o transporte e a importação debebidas intoxicantes. Além de Olmstead, setenta e dois outros

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investigados foram indiciados2. No entanto, a informação que levou à descoberta daconspiração, sua natureza e extensão foi obtida por meio da in-terceptação de mensagens nos telefones dos conspiradores porquatro oficiais federais de proibição. A interceptação foi realizada por pequenos fios de tele-fone instalados nas residências dos investigados, sem que hou-vesse qualquer violação às propriedades, uma vez que foramrealizadas no porão de um prédio e nas ruas perto das casas3. Os investigadores não invadiram a casa de Olmstead,tampouco apreenderam objetos. Ademais, o sinal acústico (voz)que era transmitido pelos fios da companhia telefônica não po-deria ser tido como uma coisa. A interpretação constitucional foi no sentido de que aEmenda determina que seja descrito no mandado o local a serpesquisado e a pessoa ou coisas a serem apreendidas4. Como no caso em vertente não houve busca ou apreen-são no interior de casas ou escritórios, a Suprema Corte decidiuque não houve violação à 4ª Emenda5.

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2 The petitioners were convicted in the District Court for the Western District of Was-hington of a conspiracy to violate the National Prohibition Act by unlawfully posses-sing, transporting and importing intoxicating liquors and maintaining nuisances, andby selling intoxicating liquors. Seventy-two others in addition to the petitioners wereindicted. Some were not apprehended, some were acquitted, and others pleadedguilty (precedente Olmstead v. United States. Disponível em: <https://www.law.cor-nell.edu/supremecourt/text/277/438)>.3The information which led to the discovery of the conspiracy and its nature and extentwas largely obtained by intercepting messages on the telephones of the conspiratorsby four federal prohibition officers. Small [p457] wires were inserted along the ordinarytelephone wires from the residences of four of the petitioners and those leading fromthe chief office. The insertions were made without trespass upon any property of thedefendants. They were made in the basement of the large office building. The tapsfrom house lines were made in the streets near the houses (precedente Olmstead v.United States. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/277/438).4The Amendment itself shows that the search is to be of material things -- the person,the house, his papers, or his effects. The description of the warrant necessary tomake the proceeding lawful is that it must specify the place to be searched and theperson or things to be seized (precedente Olmstead v. United States. Disponívelem: https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/277/438>).5The United States takes no such care of telegraph or telephone messages as ofmailed sealed letters. The Amendment does not forbid what was done here. Therewas no searching. There was no seizure. The evidence was secured by the use ofthe sense of hearing, and that only. There was no entry of the houses or offices of

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No histórico julgamento, a Suprema Corte

concluiu que a ação policial não havia ‘penetrado em qualquer proprie-dade do acusado’, e que a correta interpretação da 4ª Emenda não po-deria dar-se de forma a ‘alargá-la para além do conceito prático depessoas, casas, papéis e pertences” ou “para aplicar buscas e apreen-sões de forma a proibir escutar ou observar” (KNIJNIK, 2016, p. 85).

Nessa primeira etapa de evolução da interpretação cons-titucional, entendia-se que a proteção conferida pela 4ª Emendadestinava-se apenas a coisas, objetos e lugares.

Esse precedente consagrou o que a doutrina convencionou chamarde “trespass theory” ou “teoria proprietária”: a proteção constitu-cional estender-se-ia apenas para áreas tangíveis e demarcáveis,exigindo a entrada, o ingresso e a violação de um espaço privado ouparticular, o que, na espécie, efetivamente não havia ocorrido, dadoque nenhuma propriedade de Olmstead fora devassada pela autori-dade (KNIJNIK, 2016, p. 85).

Em suma, a proteção constitucional aplicava-se apenasa áreas tangíveis e demarcáveis, exigindo a entrada, o ingressoe a violação de um espaço privado ou particular, ou seja, a pro-teção constitucional abrangia apenas coisas, objetos e lugares(Precedente Olmstead v. United States de 1928).

Direito probatório de 2ª geração: teoria da proteção consti-tucional integral (estendeu a proteção de coisas, lugares epertences para pessoas e suas expectativas de privacidade)

Após quase quarenta anos do precedente Olmstead, aSuprema Corte alterou sua posição e passou a entender que a4ª Emenda regulava não apenas a busca de itens tangíveis, masestendia-se também à gravação de declarações orais (caso Katzv. United States, em 1967). No caso Katz v. United States, o investigado foi condenado

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the defendants (precedente Katz v. United States. Disponível em:<https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/389/347).

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por tribunal da Califórnia por transmitir informações de apostaspor telefone, de Los Angeles para Miami e Boston, conduta estaproibida por lei federal. A prova da prática delitiva foi obtida pelos agentes do FBIpor meio da instalação de um dispositivo de gravação externa-mente a uma cabine de telefone público, utilizada pelo investi-gado. Como a cabine telefônica era pública, não haveria invasãoou ingresso em propriedade privada e tampouco apreensão decoisas, portanto, aplicável o precedente Olmstead v. United Sta-tes, o que tornava a prova lícita. A Corte de Apelação rejeitou a alegação de que as gra-vações foram obtidas em violação da 4ª Emenda, pois não houveentrada física em área ocupada pelo requerente, aplicando a teo-ria proprietária, sedimentada no precedente Olmstead. No entanto, a Suprema Corte firmou o entendimento deque o meio pelo qual o Governo obteve a prova violou a privaci-dade do investigado, no momento em que ele utilizou a cabinede telefone, pois ainda que o investigado pudesse ser visto pelosagentes (cabine de vidro), ao fechar a porta atrás de si e pagaro valor que lhe permitia realizar a chamada, tinha o direito desupor que as palavras que pronunciaria ao telefone não seriamtransmitidas para o mundo6, tratando-se assim de uma busca eapreensão, na acepção da 4ª Emenda. Ou seja, a 4ª Emenda regula não só a apreensão deitens tangíveis, mas estende-se também ao registo de declara-ções orais. Considerando que a 4ª Emenda protege pessoas em vezde lugares, o seu alcance não pode girar sobre a presença ou au-sência de uma intrusão física em um determinado lugar. Assim o ob-jetivo da norma constitucional não pode ser frustrado pela presençaou ausência de intrusão física em qualquer compartimento fechado. Salientou-se ainda que, embora a vigilância pudesse ter

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6 One who occupies it, shuts the door behind him, and pays the toll that permits himto place a call is surely entitled to assume that the words he utters into the mouthpiecewill not be broadcast to the world. To read the Constitution more narrowly is to ignorethe vital role that the public telephone has come to play in private communication(precedente Katz v. United States. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/su-premecourt/text/389/347>).

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sido previamente autorizada constitucionalmente, não havia apossibilidade de se excepcionar a regra da necessidade de au-torização prévia por um juiz, uma vez que o mandado judicial erauma pré-condição constitucional para a realização da vigilânciaeletrônica7. Em síntese, a Suprema Corte entendeu que a prova eranula, pois, nesse caso, seria necessária ordem judicial para arealização da diligência policial, sedimentando o entendimentode que a 4ª Emenda estende sua proteção à gravação de decla-rações orais8. A teoria proprietária, estabelecida no precedente Olms-tead v. United States, foi superada, ampliando-se o âmbito deproteção constitucional de coisas, lugares e pertences parapessoas e suas expectativas de privacidade, conforme constado julgado: “The ‘trespass’ doctrine of Olmstead v. United States,277 U.S. 438, and Goldman v. United States, 316 U.S. 129, is nolonger controlling”. A evolução introduzida pelo precedente Katz v. UnitedStates ocasionou a migração da teoria proprietária para a teoria

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7 Although the surveillance in this case may have been so narrowly circumscribedthat it could constitutionally have been authorized in advance, it was not in fact con-ducted pursuant to the warrant procedure which is a constitutional precondition ofsuch electronic surveillance (precedente Katz v. United States. Disponível em:<https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/389/347>).8 1. The Government's eavesdropping activities violated the privacy upon which peti-tioner justifiably relied while using the telephone booth, and thus constituted a "searchand seizure" within the meaning of the Fourth Amendment (precedente Katz v. UnitedStates. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/389/347>).(a) The Fourth Amendment governs not only the seizure of tangible items, but extendsas well to the recording of oral statements. Silverman v. United States (precedenteKatz v. United States. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/389/347>). (b) Because the Fourth Amendment protects people, rather than places, its reachcannot turn on the presence or absence of a physical intrusion into any given enclo-sure. The "trespass" doctrine of Olmstead v. United States, 277 U.S. 438, and Gold-man v. United States, 316 U.S. 129, is no longer controlling. (precedente Katz v.United States. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/389/347>).2. Although the surveillance in this case may have been so narrowly circumscribedthat it could constitutionally have been authorized in advance, it was not in fact con-ducted pursuant to the warrant procedure which is a constitutional precondition ofsuch electronic surveillance. (precedente Katz v. United States. Disponível em:<https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/389/347>).

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da proteção constitucional integral, com a introdução de duaspremissas para a aplicação da proteção conferida pela 4ªEmenda:

a)a existência de uma expectativa real e efetiva de privacidade; eb)se a sociedade reconhece essa expectativa como razoável (se estádisposta a confirmar a pretensão do sujeito).

Direito probatório de 3ª geração: provas tecnológicas invasivas

A Suprema Corte dos Estados Unidos, em 2001, fixou oentendimento de que o avanço da tecnologia sobre a materiali-dade das coisas “não pode limitar o escopo e a abrangência daproteção constitucional outorgada às pessoas”. Assim, a inter-pretação da 4ª Emenda, ao aludir a coisas, pertences, papéis elugares, deveria sofrer uma atualização interpretativa, para alémda doutrina Katz (KNIJNIK, 2016, p. 89). O caso subjacente ao precedente remonta a 1991, pe-ríodo em que o agente de polícia, Willian Elliot, desconfiava queDanny Kyllo, morador de um tríplex situado no RhododendronDrive, em Florença, Oregon, cultivava maconha no interior desua residência. No entanto, não possuía elementos para pleiteara expedição de um mandado de busca. Sabendo que, para o cultivo da maconha, são utilizadaslâmpadas de alta intensidade, os agentes Elliot e Dan Haas uti-lizaram o equipamento “Agema Thermovision 210”, promovendouma captação térmica da residência (thermal imaging). No dia 16 de janeiro de 1992, os agentes pararam umveículo em via pública e em poucos minutos constataram que otelhado em cima da garagem e uma parede lateral da casa deKyllo eram mais quentes em comparação com o resto da casae, substancialmente, mais quentes do que os tríplex vizinhos. Com base nisso, a polícia conseguiu o elemento que fal-tava para o mandado de busca. Durante a busca realizada na casa do investigado, osagentes encontraram mais de cem plantas de cannabis sativacultivadas. Kyllo, então, foi acusado de fabricação de drogas.

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Em juízo, Kyllo tentou o reconhecimento da nulidade daprova sob a alegação de que esta era invasiva, pois o equipa-mento utilizado era ofensivo à sua privacidade e que, portanto,sua utilização dependeria de uma prévia autorização judicial. O Tribunal de Apelação não acolheu a tese da defesa,pois, de acordo com o precedente Katz, não ocorreu uma buscae tampouco violação de expectativa de privacidade, já que nãohouve por parte do acusado nenhuma tentativa de conter o calorque emanava de sua residência. Além disso, não havia nenhumaexpectativa razoável de privacidade, pois o equipamento utilizadonão poderia expor detalhes íntimos de sua vida, captando apenaso calor proveniente da residência. No entanto, a Suprema Corte acolheu o argumento de-fensivo, promovendo um avanço em relação ao precedente Katze estabelecendo mecanismos de proteção contra o poder pene-trante dos novos aparatos tecnológicos.

A ideia fundamental que preside essa importante decisão é a de que“retirar da proteção sua mínima expectativa garantida seria per-mitir à tecnologia policial erodir a privacidade garantida pela 4ªEmenda”, o que poderia ser feito, obviamente, sem nenhum tipo deintrusão física. Porém, nem todo uso de tecnologia para além dosolhos nus converteria uma diligência policial em uma busca a recla-mar autorização judicial, mas “somente quando a tecnologia nãoestá no uso geral do público. Isto assegura a preservação da-quele grau mínimo de privacidade que já existia quando a 4ªEmenda foi adotada” (KNIJNIK, 2016, p. 92).

Segundo a decisão da Suprema Corte, se o Governo uti-liza um dispositivo que não é de uso público geral para exploraros detalhes de uma casa que antes seriam desconhecidos semintrusão física, tal atividade constitui numa busca desarrazoadase não for precedida por um mandado judicial. Nesse contexto, se uma autoridade policial almeja utilizardeterminada tecnologia que ainda não está disseminada no usogeral do público, segundo o precedente Kyllo, deverá obter au-torização judicial. Dessa forma, concluiu-se que as informações captadaspela câmara termográfica são resultado de uma busca e que a 4ªEmenda não poderia ser interpretada de forma restritiva, deixando

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o cidadão à mercê do avanço da tecnologia. O precedente Kyllo revela que devido ao avanço tecno-lógico, com suas imprevisíveis e incontroláveis aplicações, capa-zes de penetrar e devassar a intimidade de qualquer pessoa, énecessário que haja uma análise prévia por uma autoridade im-parcial (Juiz)9. No HC n. 51.531, o Min. Schietti citou ainda o precedenteRiley v. California, no qual a Suprema Corte norte-americana con-cluiu ser necessário um mandado judicial para permitir o acessoao telefone celular de um cidadão durante uma prisão em fla-grante, haja vista que “telefones celulares modernos não sãoapenas mais conveniência tecnológica, porque o seu conteúdorevela a intimidade da vida. O fato de a tecnologia agora permitirque um indivíduo transporte essas informações em sua mão nãotorna a informação menos digna de proteção”. No caso que deu origem ao precedente, David LeonRiley foi abordado pela polícia em San Diego, no dia 22 de agostode 2009, constatando-se que estava com sua carteira de moto-rista vencida. Ao proceder a busca veicular, foram localizadasduas pistolas sob o capô do automóvel. Em seguida, a políciaacessou o telefone celular de Riley e descobriu que ele era mem-bro de uma gangue envolvida em diversos assassinatos. Riley foi condenado e recorreu à Corte de Apelação,tendo o Tribunal entendido que a 4ª Emenda permitiria à políciaa realização da busca exploratória no aparelho celular, sempreque localizado perto do suspeito no momento da prisão. Três precedentes foram utilizados para amparar referidoentendimento Chimel v. California, United States v. Robinson eArizona v. Gant. A Suprema Corte da Califórnia ratificou o entendimentodas instâncias inferiores, aplicando precedentes da SupremaCorte norte-americana, que permitiam aos funcionários aprovei-tar objetos sob o controle de um detido e realizar buscas sem

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9 “O uso de recursos e artefatos tecnológicos, para além dos sentidos ou do empregode técnicas de domínio público, permite ver o que àqueles seria inviável, represen-tando, assim, ao contrário das aparências, um fenômeno de “intrusão virtual” navida das pessoas e, como tal, uma restrição de seu direito fundamental, que so-mente a um juiz é dado autorizar, sob pena de ilicitude” (op. cit., p. 93).

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mandado para fins de preservação de provas (People v. Diaz). Entretanto, a Suprema Corte norte-americana concluiuque o mandado era necessário para acessar o telefone celular. Nesse cenário, a citação pelo Min. Rogério Schietti dodireito probatório de terceira geração, ao apreciar o HC n.51.531, de 09/05/2016, é extremamente oportuna, pois o casosubjacente aos autos versava justamente acerca da discussãodos limites da atuação estatal no que tange às provas obtidaspor mecanismos tecnológicos que transcendem os resultadosque seriam alcançados pelos meios tradicionais. Segundo a doutrina, as provas de terceira geraçãoabrangem os seguintes meios probatórios: testes genéticos(DNA), exames biológicos, químicos e toxicológicos, exames psi-cológicos com fulcro em estudos epidemiológicos e de experi-mentação, reconstrução dos fatos por meio de dinâmicasrealizadas por avançados softwares; reconhecimento vocal(voice-print), cálculos estatísticos, estilometria (individualizaçãode estilos literários de uma pessoa), reconhecimento por GPS dalocalização de alguém, leitura labial, thermal imaging (análise tér-mica de um ambiente), sobrevoo com câmeras de alta precisão,utilização de cães farejadores, utilização de equipamentos deraios x para leitura de ambientes ou localização de objetos inse-ridos no corpo humano, interceptação de sinais ambientais, infil-tração de agentes, key logger (programa espião que registra tudoo que é digitado no computador – registrador do teclado), entrediversas outras possibilidades de obtenção de provas pelo usoda tecnologia (KNIJNIK, 2016, p. 81). Cumpre ressaltar que, de acordo com a doutrina e a ju-risprudência nacional, nem todas essas hipóteses descritas ne-cessitam de autorização judicial. De acordo com aspeculiaridades do caso concreto, deverão ser ponderados opoder de penetração dos aparatos tecnológicos e a expectativade intimidade dos indivíduos, impondo-se aos agentes estatais odever de obtenção de prévia ordem judicial quando o recurso uti-lizado violar a expectativa de intimidade do indivíduo. Por fim, ressalta-se que Gabriella Di Paolo (2008) clas-sifica os novos instrumentos de investigação em três categorias:

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a)buscas superintrusivas (hyper-intrusive searches);b)observações virtuais (virtual surveillance);c)organização de grandes volumes de informações, que se en-contram no nível mais alto da escala de mitigação dos direitos funda-mentais (high volume collection).

As buscas superintrusivas (hyper-intrusive searches)compreendem os meios de investigação que dão acesso a infor-mações extremamente confidenciais, permitindo adentrar na-quele mínimo espaço de sigilo que deve ser garantido a todapessoa, para que possa existir e se desenvolver em harmoniacom o postulado da dignidade humana. Em razão dessa aptidãointrusiva na esfera privada, tais instrumentos investigativos per-mitem controlar os aspectos mais íntimos da vida das pessoas.Cita-se, como exemplo, as interceptações telefônicas e o sistemaKey Logger (programa espião que registra tudo o que é digitadono computador - registrador do teclado ) (DI PAOLO, 2008)10. As observações virtuais (virtual surveillance) com-preendem as tecnologias que são dotadas de uma menor capa-cidade de intrusão da categoria anterior, devido à naturezadiferente dos dados captados, pois, apesar de permitir que os ór-gãos de investigação adquiram informações não acessíveis sem

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10Al livello più alto di questa scala ideale si collocano le c.d. hyper-intrusive searches,categoria da intendersi come compreensiva di tutti quei mezzi di indagine che dannoacesso a informazioni estremamante riservate, poiché permettono di insinuarsi inquello spazio mínimo di segretezza che deve essere garantito attorno alle personeaffinché possano esistere e svilupparsi in armonia con i postulati della dignitá umana,nel rispetto dela libertá d’autodeterminazione. Per tale spiccata attitudine intrusivaall’interno della esfera privata, gli strumenti in esame consentono di controllare gliaspetti più intimi della vita delle persone, per di più all’insaputa degli interessati e intempo reale. Il caso paradigmatico di impiego di hyper intrusive technologies è rap-presentato dalle intercettazioni di comunicazioni, da tempo ricondotte tra le attivitàqualificabili come search ai sensi del IV Emendamento, e oggetto anche di specificadisciplina legislativa, che le ha circondate di um aparato di garanzie che va ben oltrequello desumibile dal precetto costituzionale. Ma negli ultimi anni sono venute allaribalta anche le c.d. video-intercettazioni e congegni come la Lanterna Magica e iKey Logger Systems. In mancanza di una specifica disciplina legislativa, rispetto atali inediti mezzi di indagine ci si chiede se il loro impiego sia legitimo, se e da qualigaranzie debba essere assistito. In sostanza, la questione che si pone è se sia suf-ficiente applicare il sistema di garanzie desumibile dal IV Emendamento o se vice-versa occorra assicurare uno standard di tutela più elevato, como quello previsto dalTitolo III per l’esecuzione di intercettazioni (DI PAOLO, Gabriella, 2008).

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a ajuda tecnológica, tais dispositivos permitem apreender infor-mações menos sensíveis das anteriores. Os exemplos citadossão o thermal imagers (mapeamento de calor emanado de pré-dios, veículos ou objetos), pen registers & trap and trace devices(armadilha e dispositivo de rastreamento: dispositivo que reco-nhece o número de origem, a discagem, o roteamento, o ende-reçamento e outras informações, identificando a origem de umterminal de comunicação telefônico, sem incluir informaçõesquanto ao conteúdo de qualquer comunicação) e see-through de-vices (tecnologia que permite enxergar através de barreiras físi-cas) (DI PAOLO, 2008)11. Por fim, a organização de grandes volumes de infor-mações se encontra no nível mais alto da escala de mitigação dosdireitos fundamentais (high volume collection) e compreende a co-leta de informação em massa, provenientes de diversas fontes.Abrange os programas de reconhecimento facial instalados emáreas públicas que permitem controlar o movimento das pessoas,

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11 La seconda categoria (virtual survellance) compreende quelle tecnologie che sonodotade di una minore capacità intrusiva rispetto a quelle poc’anzi considerate in ra-gione della diversa natura del dato captato: benché permettano agli organi investigatividi acquisire conoscenze non accessibili senza l’ausilio tecnologico, simili dispositiviconsentono infatti di apprendere informazioni meno sensibili delle precedenti. È il casodei pen registers & trap and trace devices, che rivelano non il contenuto della comu-nicazione telefonica o telematica, ma solo i dati esterni della medesima. Si potrebbeanche pensare ai thermal imagers, che si limitano ad una sorta di mappatura del ca-lore emanato dall’edificio, per evidenziare la differenza di temperature tra le varie zonedel medesimo, senza svelare alcunché su ciò che vi accade. Un ulteriore esempiopotrebbe essere costituito dai c.d. see-through devices, tecnologie binarie che puressendo in grado di scrutare attraverso barriere come indumenti o borse, possono ri-velare soltanto la presenza o l’assenza dell’oggetto ricercato (armi o sostanze stupe-facenti), senza dire nulla circa gli altri effetti personali contenuti sotto o all’interno ditali involucri. In assenza di una specifica disciplina legislativa, anche per questi stru-menti investigativi il nodo problematico da sciogliere è se il loro impiego possa esserequalificato come search, vale a dire se possa essere riconosciuta in capo ai soggettimonitorati una legittima aspettativa alla privacy. La questione non è di poco momento,perché a seconda del responso muta sensibilmente il regime giuridico di riferimento.In caso di risposta affermativa l’attivittà degli inquirenti dovrebbe espletarsi quanto-meno nel rispetto delle garanzie disegnate dal IV Emendamento, che notoriamentesancisce una vera e propria exclusionary rule nei confronti delle prove illegittimamenteottenute. Nell’ipotesi contraria si dovrebbe invece ritenere che gli inquirenti non sianosoggetti a particolari restrizioni, se non a quelle eventualmente imposte dalla statutelaw, che peraltro non sempre presidia l’osservanza dei propri precetti mediante sup-pression remedies (DI PAOLO, 2008).

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bem como identificar pessoas procuradas ou que adotem com-portamento suspeito. A referida autora cita também o softwaredo FBI que controla a comunicação via internet (Carnivore Sys-tem) (DI PAOLO, 2008)12. Em apertada síntese, quanto às limitações da atuaçãoestatal em razão da proteção à intimidade, as gerações probató-rias, à luz dos precedentes da Suprema Corte dos Estados Uni-dos, estabelecemos a seguinte classificação: Direito probatório de 1ª geração: a proteção consti-tucional aplicava-se apenas a áreas tangíveis e demarcáveis,exigindo a entrada, o ingresso e a violação de um espaçoprivado ou particular, com abrangência apenas de coisas,objetos e lugares. Segundo a Suprema Corte dos EUA, a cor-reta interpretação constitucional não permitiria alargá-la além doconceito de pessoas, casas, papéis e pertences, para proibir es-cutar ou observar. Na primeira geração a captação da imageme da voz, incluindo-se a realizada por meio da interceptaçãotelefônica, não era protegida constitucionalmente - Teoriaproprietária ou trespass theory (Precedente Olmstead v. UnitedStates de 1928). Direito probatório de 2ª geração: o âmbito de proteçãoconstitucional foi ampliado de coisas, lugares e pertencespara pessoas e suas expectativas de privacidade. A teoriaproprietária, estabelecida no precedente Olmstead v. United Sta-tes, foi superada, e o âmbito de proteção constitucional foi mi-grado de coisas, lugares e pertences para pessoas e suasexpectativas de privacidade, sedimentando o entendimento de quea 4ª Emenda estende sua proteção à gravação de declarações

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12 La terza e ultima categoria (high volume collection technologies) compreende queiritrovati che procedono alla raccolta di massa di informazioni provienienti da variefonti, e successivamente passano al setaccio i dai coi raccolti per individuarequell’esigua percentuale che potrebbe essere rilevante per la indagini. Simili dispo-sitivi vengono impiegati per lo più in aree pubbliche o aperte al pubblico, dove tran-sitano o stazionano una gran quantità di soggetti al fine di controllarne gli spostamentioppure per identificare persone ricercate o sospettate. Un recente esempio di highvolume collection technologies è il sistema de identificazione biometrico noto comefacial recognition technology, che si basa sull’intreccio delle immagini raccolte dagliinquirenti con i dati biometrici della persona ricercata. Presenta caratteristiche omo-loghe anche il c.d. Carnivore System utilizzato dall’ FBI per il controllo delle comuni-cazioni via internet (DI PAOLO, 2008).

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orais - Teoria da proteção constitucional integral (Precedente Katzv. United States de 1967). Direito probatório de 3ª geração: abrange as provastecnológicas, altamente invasivas, que permitem ao governoalcançar conhecimentos e resultados que transcendemàqueles que seriam obtidos pelos sentidos e técnicas tradi-cionais. A partir do precedente Kyllo v. United States, fixou-se oentendimento de que o avanço da tecnologia sobre a materiali-dade das coisas não pode limitar o escopo e a abrangência daproteção constitucional outorgada às pessoas. Assim, a interpre-tação da 4ª Emenda, ao aludir a coisas, pertences, papéis e lu-gares, deveria sofrer uma atualização interpretativa, para alémda doutrina Katz. O precedente Kyllo alerta que, devido aopoder devassador, imprevisível e penetrante da tecnologia,sua utilização, se ainda não pertencer ao uso geral do pú-blico, dependerá da análise de uma autoridade judiciária(Precedente Kyllo v. United States de 2001).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise da evolução da matéria perante a Su-prema Corte norte-americana e à luz das decisões do SupremoTribunal Federal (HC n. 91.867/PA, de 20/09/2012) e do SuperiorTribunal de Justiça (HC n. 51.531, de 09/05/2016), apresentamosa seguinte solução quanto à realização da busca exploratória noaparelho celular apreendido pela polícia.

Em regra, os policiais não poderão, sem prévia auto-rização judicial, realizar a busca exploratória no telefone ce-lular apreendido, em virtude da expectativa de privacidadequanto aos arquivos armazenados.

Em situações excepcionais, nas quais as peculiarida-des do caso concreto demonstrem, de forma inequívoca, aurgência na obtenção das informações e/ou o risco concretode perecimento dessas, justificada a excepcionalidade porescrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penaldo agente ou autoridade policial, poderão os policiais proceder

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ao acesso dos arquivos e registros existentes no referidoaparelho, inclusive com a consulta a aplicativos de comuni-cação, vez que a expectativa de privacidade não pode servirpara amparar crimes que estão em plena consumação (ex.: ex-torsão mediante sequestro e tráfico de drogas) e tampouco serutilizada para salvaguardar associações e organizações crimino-sas, legitimando a impunidade.

Nesses casos excepcionais, ressalva-se que deverá apolícia desabilitar a conexão do celular à rede mundial decomputadores, limitando-se assim a consulta à troca de men-sagens pretéritas e demais dados armazenados no aparelho13,

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13 No que concerne à eventual proteção aos dados cadastrais ou dados contidos noartigo 5º, XII, da Constituição (art. 5º, XII – é inviolável o sigilo da correspondênciae das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas,salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei es-tabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;), que tra-ria a obrigatoriedade de ordem judicial para seu acesso, o STF já se posicionousobre o assunto, no sentido da proteção do mencionado dispositivo ser referente àcomunicação de dados e não aos dados em si, conforme extensa ementa abaixoparcialmente transcrita. Além disso, o conceito de "dados" contido no preceito cons-titucional é diverso do conceito de dados cadastrais. Parece um jogo de palavras,mas não é. Nesse sentido, veja o aresto do Supremo Tribunal Federal sobre osdados e sua possibilidade de acesso: EMENTA: (...) IV – Proteção constitucionalao sigilo das comunicações de dados – art. 5º, XVII, da CF: ausência de viola-ção, no caso. 1. Impertinência à hipótese da invocação da AP 307 (Pleno, 13.12.94,Galvão, DJU 13.10.95), em que a tese da inviolabilidade absoluta de dados decomputador não pode ser tomada como consagrada pelo Colegiado, dada ainterferência, naquele caso, de outra razão suficiente para a exclusão da provaquestionada – ter sido o microcomputador apreendido sem ordem judicial ea consequente ofensa da garantia da inviolabilidade do domicílio da empresa – estesegundo fundamento bastante, sim, aceito por votação unânime, à luz do art. 5º, XI,da Lei Fundamental. 2. Na espécie, ao contrário, não se questiona que a apreensãodos computadores da empresa do recorrente se fez regularmente, na conformidadee em cumprimento de mandado judicial. 3. Não há violação do art. 5º, XII, da Cons-tituição que, conforme se acentuou na sentença, não se aplica ao caso, poisnão houve "quebra de sigilo das comunicações de dados (interceptação dascomunicações), mas sim apreensão de base física na qual se encontravam osdados, mediante prévia e fundamentada decisão judicial". 4. A proteção a que serefere o art. 5º, XII, da Constituição, é da comunicação ''de dados'' e não dos''dados em si mesmos'', ainda quando armazenados em computador. (cf. votono MS 21.729, Pleno, 5.10.95, red. Néri da Silveira – RTJ 179/225, 270). V – Pres-crição pela pena concretizada: declaração, de ofício, da prescrição da pretensãopunitiva do fato quanto ao delito de frustração de direito assegurado por lei trabalhista(C. Penal, arts. 203; 107, IV; 109, VI; 110, § 2º e 114, II; e Súmula 497 do SupremoTribunal). (STF. Pleno. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. DJ 19-12-2006 PP-00037).

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o que evitará a interceptação da comunicação em tempo real coma consequente nulidade das provas obtidas em virtude da cláusulade reserva de jurisdição, imposta pela ordem constitucional nocaso de interceptação de dados ou comunicações.

Por fim, salienta-se que, havendo autorização, ex-pressa e inequívoca, do usuário do celular (proprietário oupossuidor), não será necessária ordem judicial, haja vistaque àquele que abdica da sua intimidade, não poderá, pos-teriormente, pleitear a nulidade da prova14.

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14 Não se pode presumir que as autorizações dadas na esfera policial sejam obtidaspor meios escusos como se propalam em defesas a todo e qualquer preço, já queisto é inverter a presunção da legitimidade e veracidade dos atos policiais (atos ad-ministrativos) imantados com tais efeitos de lícitos.

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REFERÊNCIAS

DI PAOLO, Gabriella. Tecnologie del controllo e prova penale:

l’esperienza statunitense e spunti per la comparazione. Padova:Cedam, 2008.

KNIJNIK, Danilo. A trilogia Olmstead-Katz-Kyllo: o art. 5º da Cons-tituição Federal do século XXI. Revista da Escola da Magistratura

do TRF da 4ª Região, ano 2, número 4. Porto Alegre/RS, 2016.

KNIJNIK, Danilo. Prova Judiciária: estudos sobre o novo direitoprobatório. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

KNIJNIK, Danilo. Temas de direito penal, criminologia e processopenal. A trilogia Olmstead-Katz-Kyllo: o art. 5º da ConstituiçãoFederal do Século XXI. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime Organizado. SãoPaulo: Método, 2015.

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Eduardo Alvares de Oliveira*

Daniel Adjafre da Costa Matos**

CONSTITUCIONALISMO NO SÉCULO XIX

CONSTITUTIONALISM IN THE 19TH CENTURY

CONSTITUCIONALISMO EM EL SIGLO XIX

Resumo:

O constitucionalismo no século XIX, pós-revolução francesa, é ca-

racterizado por mudanças intensas nas relações de poder entre as

classes sociais existentes à época, além de marcar o surgimento de

novos modelos de organização social e estatal e de novas formas de

Constituição.

Abstract:

Constitutionalism in the nineteenth century, French post- revolution,

is characterized by intense changes in power relations between social

classes existing at the time, and mark the emergence of new models

of social organization and state and new forms of Constitution.

Resumen: El constitucionalismo en el siglo XIX, después de la revolución fran-

cesa se caracteriza por intensos cambios en las relaciones de poder

entre las clases sociales existentes en el momento, y marca la apa-

rición de nuevos modelos de organización social y el estado y las

nuevas formas de Constitución.

* Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público -IDP. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Anhanguera. Graduadoem Direito pela Universidade Salgado de Oliveira. Professor convidado da Univer-sidade de Rio Verde. Juiz de Direito do TJ-GO.** Especialista em Direito Empresarial pelo Instituto Processus. Graduado em Direitopelo Instituto Processus. Servidor do Tribunal Superior Eleitoral.

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Palavras-chave:

Revolução, constitucionalismo, liberalismo, democratização.

Keywords:

Revolution, constitutionalism, liberalism, democratization.

Palabras clave:

Revolución, constitucionalismo, liberalismo, democratización.

INTRODUÇÃO

O constitucionalismo como conhecemos hoje é fruto de umlongo processo evolutivo histórico, social, político e jurídico. Não sepode dizer que ele se deve a determinados acontecimentos isoladosda história, tendo em vista tratar-se de um processo evolutivo. Exis-tem alguns marcos históricos que influenciaram fortemente para al-cance do constitucionalismo como enxergamos hoje, tais como aMagna Carta inglesa, a Revolução Gloriosa, a Independência dosEstados Unidos da América (EUA) e a criação de sua Constituição,a Revolução Francesa, entre outros. O século XIX é marcado por profundas mudanças no cons-titucionalismo, concretizando uma nova era, definida por diversosautores como constitucionalismo moderno, que vem questionar osesquemas tradicionais de domínio político, sugerindo novas formasde ordenação do poder político. Diante desse contexto, surgem limi-tações ao poder real e a positivação da Constituição, alicerçadas naideia de democratização do poder e no crescimento de novas de-mandas sociais. A análise do constitucionalismo no século XIX é relevantepara compreendermos o ciclo evolutivo pelo qual está sujeito o cons-titucionalismo, que vem desde os primeiros textos constitucionais atéos dias atuais, em que nos deparamos com Constituições rígidas,com conceitos de supremacia constitucional e judicial review, dentreoutros elementos de suma importância.

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Portanto, é possível perceber que o constitucionalismo con-temporâneo é fruto da evolução do seu sistema, de muitas lutasentre classes e da infindável busca pelo aperfeiçoamento do ser hu-mano e de suas instituições. Primeiramente, é preciso pontuar que iremos realizar umabreve abordagem descritiva do contexto histórico do século XIX, par-tindo da origem da Revolução Francesa até o que restou do AntigoRegime. Na sequência será analisada a consolidação dos ideaisliberais, pós-revolução, em que a burguesia ganha papel de destaquena condução da política na França, afastando princípios democráticose de soberania popular das Constituições. E continuando o desenvol-vimento, abordaremos, ainda, a resistência popular a essa forma degovernar e decidir politicamente, oportunidade em que foram travadasverdadeiras lutas entre as classes, fato que ao final do século XIX co-meça a render algumas conquistas às classes trabalhadoras. Após essa contextualização histórica, iremos nos ater àanálise do constitucionalismo propriamente dito, com suas caracte-rísticas e natureza, com ênfase em um modelo predominante na pri-meira metade do século XIX e outro que ganha espaço na segundametade do século, a fim de destacar a passagem de um modelo deEstado liberal para uma espécie de Estado social. É importante ressaltar, ainda, que a presente pesquisa tem

cunho histórico e dogmático, e que utilizamos métodos descritivos eanalíticos para o seu desenvolvimento.

ASPECTOS HISTÓRICOS QUE INFLUENCIARAM O CONSTI-TUCIONALISMO DO SÉCULO XIX

O constitucionalismo do século XIX é marcado pela lutaentre classes e pela disputa pelo poder inerente a um períodoconturbado e de grandes transformações sociais e econômicas.

Primeiramente, temos que, com diferentes matizes nos vá-rios países, um conjunto de direito público europeu, no fim do séculoXIX, era o que se afirmava em oposição ao princípio democrático eda soberania popular. As Constituições não eram democráticas enenhuma aceitava o poder constituinte e o princípio democráticocomo fonte de legitimação (PISARELLO, 2011, p. 114).

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Isso porque a consolidação de um modelo de Estado li-beral foi alcançado com a Revolução Francesa, em que a bur-guesia revolucionária utilizou-a para estreitar os poderes daCoroa e destruir os privilégios feudais, colocando fim ao AntigoRegime. A burguesia, antes dominada, passa a ser classe domi-nante, formulando os princípios filosóficos de sua revolta social(BONAVIDES, 2004, p. 42).

Assim, resta evidente que, a partir do momento em quese apodera do controle político da sociedade, a burguesia já nãose interessa pela universalidade dos princípios democráticos ede legitimação do poder na soberania popular.

E, para compensar essas limitações de democratizaçãopolítica, as elites da época aceitaram colocar em marcha algu-mas tímidas reformas no âmbito social e econômico. Na Ingla-terra, conservadores e liberais avançaram timidamente nasreformas sociais iniciadas com a vitoriosa limitação da jornadade trabalho. Também na França os republicanos modernos im-pulsionaram algumas reformas sociais importantes (PISARELLO,2011, p. 114). Essas leituras democratizantes e socializantes che-garam também a países como a Alemanha e Áustria e encontra-ram eco em posições de diferentes expoentes do chamado“socialismo jurídico” (PISARELLO, 2011, p. 116).

Como será demonstrado, surge a necessidade de umnovo curso de ideias, da liberdade do homem perante o Estado- do liberalismo -, avança-se para a ideia democrática na partici-pação total e indiscriminada desse mesmo homem na formaçãoda vontade estatal (BONAVIDES, 2004, p. 43). Do princípio libe-ral passa-se ao princípio democrático, do governo de uma classepara o governo de todas as classes.

A primeira fase da Revolução Industrial - ocorrida no Oci-dente - evidencia que a liberdade contratual, a espoliação do tra-balho, o emprego de métodos brutais de exploração econômica,expunha os problemas do domínio econômico e a necessidadede revisar o conceito de liberdade construído pelo Estado liberal,com o fito de se firmar um compromisso ideológico que paulati-namente vem sendo enxertado nas Constituições democráticas(BONAVIDES, 2004, p. 59).

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Por isso a importância de revisitar alguns pressupostoshistóricos ocorridos no decorrer do século XIX para que possa-mos subsidiar as características do constitucionalismo naqueleperíodo, sobretudo com foco na institucionalização do liberalismojurídico e econômico e, posteriormente, na ideia de democratiza-ção - e legitimação do poder - e socialização do Estado e das re-lações jurídicas.

O “fim” da Revolução Francesa

O primeiro pressuposto histórico importante para a com-preensão do constitucionalismo na primeira metade do século XIXé justamente o que restou do Antigo Regime após a RevoluçãoFrancesa; como a sociedade se organizou pós-revolução; e qual otipo de Estado que se formou com a acomodação do novo sistema.

A França antes da revolução constituía-se numa sociedadeestruturada no Antigo Regime, sendo o Estado absolutista e monár-quico, com economia consistente em práticas mercantilistas e so-cialmente regidas por relações de servidão (PASSOS, 2015, p. 2).

O Antigo Regime pode ser denominado como aquele for-mado pelo poder monárquico absoluto, em que o rei governavaos seus súditos sem ser responsabilizado pelos seus atos de go-verno ou de gestão, sendo o detentor de toda a soberania epoder estatal. Nesse regime não havia limites impostos ao poderdo soberano-rei, que prestava contas, tão somente, ao ser supe-rior, divindade que legitimara a investidura de seu poder.

Esse absolutismo monárquico era marcado pela centra-lização do poder estatal na realeza, que, entretanto, buscava,eventualmente, o apoio de camadas da sociedade, formadapelas tradicionais “ordens sociais”, qual seja, o clero, a nobrezae a burguesia (GRESPAN, p. 22).

Segundo Lenio Streck (apud PASSOS, 2015, p. 3),

O Estado, em sua primeira versão absolutista, foi essencial aos inte-resses burgueses, quando por motivos econômicos, estes abrirammão do poder político, delegando-o ao soberano, contudo, na viradado século XVIII, esta classe, não se contentava mais com o podereconômico, desejava poder político só alcançado pela aristocracia.

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A Revolução Francesa, dentre outros méritos, pôs fim aoEstado absolutista, abolindo as instituições políticas do AntigoRegime e instituindo uma nova ordem social e política, caracte-rizada pela igualdade formal e pela liberdade do povo (TOCQUE-VILLE apud PASSOS, 2015, p. 7).

É imperioso observar que a desigualdade entre as clas-ses na França do século XVIII foi fator preponderante para a eclo-são da revolução. Essa desigualdade pode ser ilustrada naseguinte passagem da obra de George Lefebvre (1989, p. 52):

A separação das ‘ordens’, ‘Estados’ ou ‘Stande’ não esgotava a hie-rarquia social. Por interesse financeiro ou político, o Estado jamaisdificultou a concessão de ‘franquias’ ou liberdades, isto é, privilégios,não apenas às províncias ou cidades, mas também a grupos consti-tuídos no seio de cada ordem: repartindo para reinar, mantinha umaorganização corporativa cujo princípio, de alto a baixo, repousavasobre a desigualdade dos direitos.

Vitoriosa a Revolução, busca-se instalar uma monarquiaconstitucional, que é derrubada com a dissolução da AssembleiaConstituinte e com o estabelecimento da Convenção Nacional deum Novo Parlamento, período marcado pelo crescimento de po-sições revolucionárias radicais, oriundas dos jacobinos, tendocomo líderes nomes como Robespierre, Saint-Just e Danton, his-toricamente conhecido como a Fase do Terror (FERNANDESapud PASSOS, 2015, p. 5).

Segundo Fernandes (apud PASSOS, 2015, p. 6),

a crise econômica e o temor com o radicalismo jacobino se intensifi-cam. Napoleão Bonaparte, jovem e destemido general da Revolução,era o nome esperado pela burguesia para promover a ordem políticafrancesa. Em 1799, ao regressar do Egito, o general se deparou comum cenário de conspiração contra o governo do Diretório, valendo-se desta oportunidade, para tomar o poder, golpe de 18 Brumário.

Essa superação do Antigo Regime com a tomada depoder pela burguesa e a derrubada da monarquia é o que marcaa consolidação das ideias liberais, supremacia do Legislativo elimitações dos poderes do Estado.

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A consolidação das ideias liberais

Com a restauração da dinastia borbônica em 1814 (res-tauração dos Bourbon na França), representada pela ascensão deLuís XVIII ao poder, intenta-se a combinação do princípio de legiti-mação tradicional real com alguns critérios liberais. Com a outorgade uma nova Constituição, o conteúdo da Declaração de Direitosdo Homem e do Cidadão desaparece do texto constitucional,retornando, somente, no pós-guerra do século XX. O Código Civilde 1804 consagra uma ficção de igualdade contratual entre oshomens, independentemente da situação material em que se en-contrassem, sendo um marco jurídico da autonomia da vontade(PISARELLO, 2011, p. 92).

Com a Revolução de 1830, a dinastia borbônica foi de-posta cedendo espaço para Luis Felipe de Orleans – consideradoa encarnação da monarquia burguesa -, que logo promulgounova Constituição, dando-lhe um caráter de pacto entre a Coroae as câmaras. Nessa Carta, suprimiu o princípio de legitimaçãodivina e histórica do rei, para reconhecer o papel legitimador dascâmaras censitárias, que era a representante da nação. No en-tanto, esse princípio legitimador, que ganhava peso em relaçãoà Constituição de 1814, não passava de um artifício antidemo-crático, já que o governo e as câmaras eram conduzidos por umareduzida oligarquia (PISARELLO, 2011, p. 93).

Ainda durante a revolução (1830) houve uma tentativa deneutralizar o poder constituinte popular e de impor uma políticade restrições às intervenções públicas, as quais seriam reserva-das ao mínimo necessário, garantindo a reprodução de uma novaordem político-econômica liberal na primeira metade do séculoXIX. Assim, o liberalismo monárquico prestaria inestimáveis ser-viços às novas relações capitalistas. O próprio Marqués de La-fayette, ao responder a petição de trabalhadores que requererama intervenção do Poder Público nas relações laborais respondeu,em síntese, que não seria admitida nenhuma petição que fossedirigida para intervenção na relação entre patrão e obreiro no quetocasse à fixação de salários, à duração da jornada de trabalho eao contrato de trabalho (PISARELLO, 2011, p. 95).

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Com isso, consolidava-se uma hegemonia burguesa li-beral ascendente que não poderia admitir o regresso ao AntigoRegime, ao passo que a monarquia prestava-lhe um inestimávelserviço a fim de afastar a “desordem democrática”. Assim, aclasse burguesa inseria o liberalismo político, econômico e jurí-dico como característica do Estado na primeira metade do séculoXIX, impedia o retorno do absolutismo monárquico e, ao mesmotempo, neutralizava as forças democráticas, consolidando suahegemonia sobre o Estado e o povo.

Com isso, resta evidente que o povo estava sendo alijadode participar das decisões políticas de seu Estado, e que o poderagora passava a emanar não mais de um homem (o monarca),mas de um grupo de homens que se diziam legítimos a decidir osrumos do Estado e o futuro de todo o resto da nação.

E, para contrapor-se a esses ideais liberais surge na Eu-ropa, sobretudo na França e Inglaterra, movimentos democratase sociais, que a seguir serão descritos.

Democracia social: cartismo britânico

Segundo Wolfgang Abendroth (1986, p. 15-16), a fórmulade Estado democrático e social apareceu pela primeira vez naRevolução de Paris de 1848, em um compromisso firmado entreos pequenos partidos democráticos-liberais e as primeiras asso-ciações do movimento trabalhista da França. A fórmula do “Es-tado de Direito Democrático e Social” apareceu nas publicaçõesde Louis Blanc e tinha um conteúdo concreto, que seria o reco-nhecimento do direito ao trabalho como um direito fundamental.

Na medida em que as relações capitalistas foram se es-tendendo, a cisão entre a burguesia e o proletariado se tornoupatente. Revoltas populares se espalharam pela Europa entre1820 e 1830, e em 1848 estourou a grande revolta, que apostouem um ideal democrático, identificado como o governo dos pe-quenos proprietários e produtores independentes, federadosentre si em unidades autônomas. O movimento cartista inglês ea insurreição francesa de 1848 conceberam o ideal de democracia

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social1, reivindicando o sufrágio universal e a solução para a ex-clusão e exploração econômica (PISARELLO, 2011, p. 95-96).Insta pontuar, ainda, que a Revolução de 1848 marca a emanci-pação das classes populares em relação ao modelo posto pelaburguesia, de forma que, a partir desse momento, a monarquiadecadente e a burguesia ascendente passam a lutar contra uminimigo comum, qual seja, o povo.

O movimento cartista, impulsionado pela Associação dosTrabalhadores de Londres e por ativistas como Willian Lovett(1800-1877), obteve seu nome na Carta Del Pueblo, documentoenviado ao parlamento britânico pelos trabalhadores em 1838,contendo seis petições: a) sufrágio universal masculino paramaiores de vinte e um anos; b) caráter secreto do voto; c) umsoldo anual para os deputados; d) a renovação anual do parla-mento; e) a abolição dos requisitos de propriedade para ascenderao parlamento; f) estabelecimento de circunscrições legais queassegurassem a representação do mesmo número de votantes(PISARELLO, 2011, p. 96).

Para o movimento cartista, a democracia era necessáriaporque, uma vez que a maioria pobre fosse politicamente decisiva,poderia aprovar leis que veiculassem seus programas sociais. Se-gundo Lovett, o objetivo do cartismo era conseguir a união dos se-tores mais inteligentes e influentes das classes trabalhadorasurbanas e rurais, garantindo a todos os membros da sociedade osmesmos direitos políticos e sociais (PISARELLO, 2011, p. 97).

Observa-se que, nessa fase, democracia se aproxima daideia de defesa e reconhecimento dos direitos de uma classe quefoi excluída da participação da tomada de decisões políticas, ouseja, o conceito de democracia impõe maior participação popularna tomada de decisões e legitimação do poder.

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1 É preciso registrar que democracia até metade do século XIX possuía o significadode constituição e manutenção do Estado de Direito e limitação do poder político, ouseja, Estado Democrático seria aquele regido pelo império da lei, contrapondo-secom a vontade do governante, e consequentemente com a limitação do poder po-lítico. Já na segunda metade do século XIX democracia passa a funcionar comomaior participação social nas decisões políticas do Estado; já não basta um Estadogovernado pela legalidade, exigindo que essa legislação seja fruto da vontade damaioria do povo.

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Proclamação da república na França

Em 1848, trabalhadores, artesãos, estudantes e membrosda pequena burguesia levantaram 1.500 barricadas em Paris,protestando contra as reformas liberais de François Guizot e con-tra a monarquia orleanista, a qual Karl Marx (apud PISARELLO,2011, p. 98) havia definido como uma grande sociedade porações para a exploração da riqueza nacional da França, cujosdividendos eram repartidos entre os ministros, as câmaras e240.000 eleitores. A indignação das classes excluídas refletiu emuma inundação de panfletos em Paris, que concentrava todo oódio e desprezo contra os setores dominantes em uma só pala-vra: corrupção. Em três dias, a revolução – que desde o princípiose apresentou como democrática e social – levou abaixo a mo-narquia, proclamando a república e colocando em marcha umnovo processo constitucional (PISARELLO, 2011, p. 98).

Instalado o governo provisório, e iniciadas as discussõesno projeto de Constituição, Louis Blanc (1811-1882) propôs que segarantisse um direito de existência dos trabalhadores por meio dotrabalho e que se criasse um Ministério do Trabalho. Outros socia-listas, de maneira mais direta, teorizaram o papel central do direitodo trabalho e os direitos sociais. Para Blanc, o direito ao trabalhoteria seu fundamento no direito de viver produtivamente e, atravésdele, de conservar a sua vida (PISARELLO, 2011, p. 99).

No entanto, a ala conservadora da Assembleia Consti-tuinte resistia ao projeto de se institucionalizar o direito ao traba-lho. Republicanos radicais e socialistas, como Felix Pyat,tentaram convencer a maioria conservadora de que o direito aotrabalho não supunha a extinção do direito à propriedade e nemlevaria ao comunismo, pois simplesmente exigiria que o Estadopromovesse o pleno emprego através de medidas de intervençãofiscal, laboral e financeira (PISARELLO, 2011, p. 101).

Para Marx, o novo capitalismo industrial exigia uma atua-lização do programa e da luta por uma sociedade civil que nãose fundasse na apropriação privada das bases da existência,senão em um “sistema republicano de associação fraterna dosprodutores livres e iguais” (PISARELLO, 2011, p. 102).

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Com isso percebemos uma forte investida social-demo-crática, acompanhada de um contundente reação conservadora-liberal, que levaram a respostas sociais e preventivas, as quaisvisavam controlar o avanço dos anseios da classetrabalhadora/popular, como a seguir será demonstrado.

Das respostas social-preventivas: democratização do Estadoe socialização do direito

O avanço do movimento democrático, vinculado à apariçãode organizações de trabalhadores socialistas, comunistas e anarquis-tas, gerou diversas reações das classes dominantes. A organizaçãodos trabalhadores, a luta em favor da expansão do sufrágio e o intentode democratização do feudalismo industrial capitalista, colocaram emguarda as classes conservadoras. Em meados do século XIX, todosos partidos invocavam a democracia em seus discursos, uns a “mo-narquia democrática”, outros a “democracia republicana” e outros uma“democracia pura” (PISARELLO, 2011, p. 105-106).

A política social preventiva mais audaz levada adiante naEuropa foi a dirigida por Otto Von Bismarck (1815-1898), na Prús-sia, entre 1862 e 1890. O projeto de Bismarck foi o primeiro modelode “Estado Social” da Europa moderna. Seu objetivo era desativarde maneira preventiva a “ameaça revolucionária” que havia se es-tendido na Europa e, desse modo, “ganhar os obreiros para o Im-pério”. Seu programa político era inspirado em pensadores comoG. W. F. Hegel, Lorenz Von Stein, Ferdinand Lassalle2, que eram

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2 Ferdinand Lassalle (1825-1864) sustentava que a Constituição deveria refletir ascondições históricas reais e não ser uma mera abstração desvinculada da realidade.Lassalle, em 1862, pronunciou em Berlin uma célebre conferência sobre a essênciada Constituição, argumentando que os problemas constitucionais não eram, primor-dialmente, problemas de Direito, mas sim problemas de poder. Isso porque, na ver-dade, a Constituição de um país residia nos fatores reais e efetivos de poder queregiam o país, de maneira que, quando não refletida na realidade era reduzida apouco mais que uma simples folha de papel. Portanto, Lassalle acreditava que o mo-vimento obreiro poderia encarnar esse “fragmento de Constituição” capaz de obrigara institucionalização de políticas que conduzissem progressivamente ao socialismo.(in FERDINAND, Lasalle. ?Qué es la Constituciôn?, trad. Prólogo de W. Roces, Ariel,Barcelona, 1976, p. 101-102, apud PISARELLO, Gerardo. Un Largo Termidor. Laofensiva del constitucionalismo antidemocrático. Madrid: Trotta, 2011, p. 108).

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chamados de “socialistas da cátedra” (PISARELLO, 2011, p. 106-107). Bismarck, entre 1883 e 1889, colocou em marcha uma

nova legislação laboral - após impor uma nova Constituição, a de1871, e instituir um Estado social paternalista -, que compreendiauma lei de seguro maternidade, uma lei sobre acidentes de tra-balho e a primeira lei sobre seguros por invalidez e pensões fi-nanciadas mediante cotas mistas entre empregadores etrabalhadores (PISARELLO, 2011, p. 109).

Por outro lado, o avanço do sufrágio universal foi um pro-cesso árduo e lento. Na Inglaterra, em 1885, se admitia o direito avoto de todos os cidadãos maiores de idade que tivessem, duranteum certo tempo, residência própria e a todos que possuíssem pro-priedade e tivessem uma renda de dez libras, um sufrágio, por-tanto, distante do universal (PISARELLO, 2011, p. 113).

A EVOLUÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO NO SÉCULO XIX

Como dito alhures, para compreender a evolução doconstitucionalismo no século XIX, é fundamental entender astransformações ocorridas na sociedade e nas relações de poderà época. A Revolução Francesa é um marco histórico para a evo-lução do constitucionalismo naquele período.

A partir do século XVIII, a Europa - cansada do modelodenominado Antigo Regime -, é influenciada pelos movimentosliberais que desenvolveram ideias políticas e jurídicas que inspi-raram o constitucionalismo. De acordo com Streck, é diante dessacircunstância, no momento revolucionário francês, que a doutrinado contrato social tornou-se componente teórico fundamentalpara os revolucionários, posto que o desejo por uma Constituiçãose embasava na tese de que o contrato social encontra sua ex-plicitação na Constituição (apud PASSOS, 2015, p. 10).

É preciso ressaltar que, segundo Bercovici (2013, p. 158-177), em 1789, Constituição e revolução coincidem. A concreti-zação da revolução é a Constituição. No entanto, a perpetuaçãodo estado revolucionário, acaba por evidenciar a incompatibili-dade entre eles. Isso porque a Constituição passa a ser exigida

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por aqueles preocupados em terminar a revolução, vista agoracomo geradora de desordem, não de ordem. Laboulaye chega aafirmar categoricamente que liberdade e revolução são duas coi-sas distintas e opostas. Na passagem do Estado revolucionáriopara o Estado ordinário, fez-se necessária a função ordenadorae estabilizadora da Constituição. O ato constitucional vai, assim,bloquear a revolução (apud BERCOVICI, 2013, p. 158). Nessesentido, Domenico Losurdo destaca que a aguda crise social daépoca revolucionária, tanto na França como nos Estados Unidos,vai ocasionar a tomada do poder por um general vitorioso. En-cerrar a revolução, em ambos os países, era fundamental para atranquilidade e ordem públicas, contra os excessos irracionais eincontroláveis da democracia (apud BERCOVICI, 2013, p. 158).Isso evidencia que, no início do século XIX, os franceses acredi-tavam que a Constituição, a qual organizaria o Estado e limitariao poder estatal, seria o instrumento apto a reestabelecer a paz eharmonia sociais, estabilizando as relações e acomodando asforças conflitantes à época.

Deve-se observar, ainda, que após o golpe 18 de Brumá-rio, em 1799, a soberania popular volta a ser deixada de lado. Anova Constituição não chegou a fazer nenhuma menção ao poderconstituinte do povo, retornando o poder às mãos de um “impe-rador”. Alguns autores chegam a afirmar que o bonapartismo nãopassou de uma ditadura militar constitucionalizada ou de um cons-titucionalismo monárquico, que, de acordo com Martin Kirsch, omodelo se manifestou no início do século XIX na França, Itália,Suíça, Holanda e Polônia (apud BERCOVICI, 2013, p. 159).

Na França, a contrarrevolução vai defender a existência deuma suposta "constituição tradicional" francesa, que a revoluçãoteria vindo destruir. Bonald, por exemplo, entende a Constituiçãocomo a forma de ser da sociedade. A soberania reside em Deus eem seu representante, o monarca. O povo é só uma fração da so-ciedade, não existindo politicamente. A Constituição é a atualizaçãoprogressiva de uma ordem natural fundada em Deus, exprimindo fi-sicamente a vontade divina. Com base nesse entendimento, o di-reito constitucional pós-revolucionário é uma aberração contra asleis divinas. Para ele, o projeto de republicanizar a Europa é um pro-jeto para implementar o ateísmo (apud BERCOVICI, 2013, p. 159).

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O ideal constitucional das revoluções do século XVIII, se-gundo Stolleis, pode ser resumido na pretensão de racionaliza-ção do poder, o fim dos privilégios, garantia dos direitos deliberdade, com a nação representando-se a si mesma, gerandoa identidade ou quase-identidade entre governantes e governados(apud BERCOVICI, 2013, p. 164-165). Com o Período do Terror,no entanto, o entusiasmo constitucional revolucionário se encerra,sendo substituído pela reação conservadora e pelo romantismopolítico. O medo da revolução fortalece o princípio monárquico.O novo ideal constitucional é o de uma monarquia constitucional,com bicameralismo, voto censitário, separação de poderes, direi-tos individuais e as garantias do Rechtsstaat (Estado de Direito)3.

Complementa Bercovici (2013, p. 170) que o desejo de"terminar a revolução" limitando o poder do soberano torna-semarcante nas constituições liberais do século XIX. A questão dasoberania é excluída, está oculta, em tese, resolvida. Ao equili-brarem-se entre rei e parlamento, as constituições liberais redu-ziram o seu espaço de abrangência, buscando sistematizar asrelações entre os órgãos constitucionais e garantir os direitos in-dividuais dos cidadãos.

No século XIX, as constituições perderam seu caráter re-volucionário originário de direção fundamental para a construçãode uma nova sociedade. O modelo constitucional liberal, inspi-rado em Montesquieu, buscava garantir uma forma de governomoderada e balanceada, com tendência de equilíbrio dualistaentre o monarca e o parlamento. Cabia ao Estado garantir a paze a segurança jurídica das leis, como o código civil que previa aliberdade e igualdade almejada pela burguesia e, principalmente,a garantia da propriedade.

O receio do terror jacobino acaba marginalizando a teoriado poder constituinte e, por isso, o pensamento político jurídicoeuropeu do século XIX tende a se pronunciar contra o poderconstituinte do povo. Os pensadores mais conservadores não ad-mitem uma Constituição que não seja proveniente da tradição, eos teóricos liberais posicionam-se contra qualquer ideia de poderilimitado e revolucionário, o despotismo democrático é inimigo da

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3 Na primeira metade do século XIX, o Estado de Direito representava democracia.

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segurança jurídica. Portanto, o inimigo comum da monarquia eda burguesia são os princípios democráticos.

Surgem assim, os teóricos ingleses contrarrevolucionáriosdos quais destaca-se Edmund Burke, que se opôs à RevoluçãoFrancesa, por considerar que se estabeleceu com ela um regimeerguido sobre mentiras e violência e a democracia era capaz deexpressar as mais cruéis opressões sobre a minoria. Negava queconstituições poderiam ser dogmáticas, escritas num momentoespecífico da história por intelectuais reunidos para tal fim. Apre-ciava a Constituição britânica por não residir num universo de re-gras e princípios gerais, mas numa harmonização entrecostumes, história e tradição. Para Burke (1992, p. 16)4, a mu-dança faz parte da história, mas a moderação é uma virtude de-sejada e poderosa, por isso, deve ser invocada nesses casos.Qualquer mudança que não venha acompanhada de moderação,não será sábia, mas sim crua, precipitada e de pouca duração.

Diante desse contexto, predomina na Europa, na primeirametade do século XIX, a linha de pensamento dos contrarrevo-lucionários como o inglês Edmund Burke, que repudiava o poderconstituinte e defendia que as instituições são frutos da tradição,da história e da experiência de cada nação. Nesse cenário, surgena Alemanha a Escola Histórica de Savigny, que vai buscar a sis-tematização do direito, com o objetivo de garantir a legitimidadehistórica, desvinculando as instituições jurídicas e políticas davontade dos indivíduos. O direito, para Savigny, não pode serfruto da legislação acidental e variável do Estado, mas da vida edo espírito do povo, em sua evolução histórica e na sua comple-xidade social (apud BERCOVICI, 2013, p. 169-170).

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4 “Believe me, sir, in all changes in the state, moderation is a virtue, not only amiablebut powerful. It is a disposing, arranging, conciliating, cementing virtue. In the formationof new constitutions, it is in its province. Great powers reside in those who can makegreat changes. Their own moderation is their only check; and if this virtue is not para-mount in their minds, their acts will taste more of their power than of their wisdom, ortheir benevolence. Whatever they do will be in extremes; it will be crude, harsh, preci-pitate. It will be submitted to with grudging and reluctance. Revenge will be smotheredand hoarded, and the duration of schemes marked in that temper, will be as precariousas their establishment was odious”, in BURKE, Edmund. Further reflections on the re-volution in France. Edited by Daniel E. Ritchie. Liberty Fund, Inc. 1992 (p. 16).

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De acordo com os ensinamentos trazido por Bercovici(2013, p. 171), a partir de Savigny, surgem três grandes correntesna teoria do Estado alemã do Vormãrz: a) os conservadores de-fensores do princípio monárquico (como Friedrich Julius Stahl);b) os defensores do Rechtsstaat liberal (como Robert von Mohl);e, c) os organicistas (como Johann Kaspar Bluntschli). Essa fasesó se encerra em 1852, com o trabalho de aplicação do métodoexclusivamente jurídico ao direito público iniciado por Carl Frie-drich von Gerber, iniciando, então, uma nova fase do direito pú-blico alemão, com as ideias de poder do Estado (Staatsgewalt)e dominação (Herrschaft) no centro do debate científico. O de-senvolvimento do direito constitucional escrito e do positivismolegalista não são causas, mas momentos da revolução metodo-lógica iniciada por Gerber.

Os conservadores defendiam como melhor forma de go-verno a monarquia constitucional, pois, quando se coloca o povoacima da Constituição, ela deixa de existir. A autoridade vem deDeus e a soberania é indivisível e exercida pelo monarca que podeaté ser orientado pelo parlamento, mas nunca obstaculizado. É amanutenção do status quo anterior à Revolução Francesa, em queo monarca detinha poderes absolutos e ilimitados. No entanto, osconservadores passam a admitir uma espécie de limites - que de-nominam orientação -, que seria exercida pelo parlamento. Essacorrente representa a resistência monárquica aos novos ideais re-volucionários, que buscam redistribuir o poder estatal.

Já os defensores do Rechtsstaat liberal rejeitam o autori-tarismo monárquico. Também não defendem a soberania popu-lar, mas sim a soberania da lei. Para Robert von Mohl (apudBERCOVICI, 2013, p. 172-173), o Rechtsstaat é muito mais umaredefinição do que propriamente uma ameaça de reviravolta daordem burguesa por causa da questão social, é como uma ga-rantia para bloquear a ascensão da plebe ao poder por uma re-volução. O governo parlamentar seria a última barreira contra ademocratização do Estado e a tomada do poder pelas massas.

Observa-se que tanto conservadores monárquicos quantoos defensores do Rechtsstaat liberal buscam instrumentos paraimpedir uma total democratização do Estado, vedando a partici-pação popular na tomada de decisões. Para ambas as correntes,

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a democratização - nos moldes pretendidos na segunda metadedo século XIX - é uma ameaça à segurança jurídica e social.

Já os organicistas estabelecem uma ligação entre o di-reito público e a política, já que acreditavam que não poderiamser vistos de forma separada, pois o Estado é um ser orgânicocom influências recíprocas de ambos (direito e política), assim,o direito público seria um instrumento do direito privado, assegu-rando os direitos individuais de cada indivíduo.

Nesse processo de consolidação do constitucionalismo,Giovanni Tarello (apud BERCOVICI, 2013, p. 174) destaca as si-milaridades entre a codificação do direito privado e a codificaçãoconstitucional. A concomitância de ambos os processos permitiriaque a atividade do jurista passasse a ser uma atividade técnico-cognitiva, não mais prático-valorativa. O jurista se tornou um téc-nico, muito mais do que um político. Essa tecnicização daprofissão jurídica, acabou desresponsabilizando o jurista politi-camente. É diante desse contexto que começa a surgir a expres-são "droit(s) constitutionnel(s)" em vários documentos dasegunda metade do século XVIII.

Portanto, é possível perceber que a própria revolução so-freu ataques e restrições, mesmo após sua vitória, com a reaçãodos conservadores que resistiam às ideias revolucionárias - e oconstitucionalismo a ela inerente -, como por exemplo a formaçãode um Rechtsstaat liberal, e que estes dois movimentos - conser-vadores e liberais - se uniram para resistir e afastar as ideias fun-dadas em princípios democráticos e de soberania popular comolegitimação do poder, identificando governantes e governados.

É importante registrar, ainda, que segundo Paolo Ridola(2011, p. 298), “nos ordenamentos liberais o constitucionalismoidentificou-se e confundiu-se com o parlamentarismo”. Ainda se-gundo o autor (2011, p. 298),

Os aparatos constitucionais do Estado liberal encontraram seu pró-prio fulcro nas assembleias representativas, autêntico lugar institu-cional da posição hegemônica da burguesia politicamente ativa. Apreeminência das assembleias parlamentares correspondia, portanto,à inclusão do processo político dentro de uma esfera pública homo-gênea. Disto decorre o caráter alargado e instável das alianças par-lamentares, as quais não encontravam correspondência, ao menos

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nos países da Europa continental, em forças políticas estavelmenteorganizadas na opinião pública.

Assim, o constitucionalismo no início do século XIX é mar-cado por essa disputa entre monarquia, burguesia e povo, res-tando vitorioso um modelo de constitucionalismo liberal-formalista,consolidando o poder de uma classe que não permitiria o regressoao Antigo Regime, ao passo que a monarquia se incumbia deafastar a “desordem democrática”. Assim, a classe burguesa in-seria o liberalismo político, econômico e jurídico como caracterís-tica do Estado na primeira metade do século XIX, impedia oretorno do absolutismo monárquico e, ao mesmo tempo, neutra-lizava as forças democráticas, consolidando sua hegemonia sobreo Estado e o povo.

Dessa forma, percebe-se que o povo estava alijado da to-mada de decisões políticas, vez que o sufrágio restrito e o “pacto”entre monarquia e burguesia, amparada pelo parlamento comolimitador do poder real, se encarregava de afastar a verdadeirasoberania popular.

Diante dessa realidade, ainda na segunda metade do sé-culo XIX, especialmente após 1848, o constitucionalismo passaa sofrer influências sociais-democráticas, sobretudo, em relaçãoao direitos dos obreiros. Como dito, os trabalhadores passam apleitear, dentre outros, um sufrágio menos restrito ou até univer-sal, o voto secreto, renovação e acesso universal ao parlamento. Nessa fase, a democracia se aproxima da ideia de defesa e re-conhecimento dos direitos de uma classe que foi extirpada daparticipação da tomada de decisões de Estado, ou seja, o con-ceito de democracia impõe maior participação popular na tomadade decisões e legitimação do poder.

Deve-se observar, ainda, que o socialismo marxista exigiauma atualização do programa e da luta por uma sociedade civilque não se fundasse na apropriação privada das bases da exis-tência, contribuindo para a socialização do direito e a democrati-zação do poder, marca do constitucionalismo da segunda metadedo século XIX.

Assim, é possível perceber que, na segunda metade doséculo XIX, o constitucionalismo sofre uma forte investida social-

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democrática, acompanhada de um contundente reação conser-vadora-liberal. É a passagem do Estado liberal para o Estado so-cial, como exposto acima.

O SURGIMENTO DO DIREITO CONSTITUCIONAL E OSTIPOS DE CONSTITUIÇÃO

Em 1834 foi criada a cadeira de "droit constitutionnel" naUniversidade de Paris, pela ordenança de Guizot de 22 de agostode 1834, sendo assumida pelo italiano Pellegrino Rossi. A partirde então, o uso da expressão "droit constitutionnel" se tornou maisfrequente e, aos poucos, substituiu a expressão "droit politique",em um esforço de "juridificação" da disciplina. A primeira lição dedireito constitucional na Sorbonne ocorreu em 1836. O direitoconstitucional, na concepção de Rossi (apud BERCOVICI, 2013,p. 175-176), é o ramo do direito público interno, atualmente emvigor, cujo objeto é tratar da estrutura das formas particulares docorpo político independente, a partir do direito positivo.

Conclui Bercovici (2013, p. 176) que o constitucionalismo,e o direito constitucional estão estreitamente vinculados com oliberalismo. O Estado misto vai ser visto como a melhor forma degoverno. O governo constitucional representativo, ao misturarelementos democráticos com elementos não democráticos, con-figura uma constituição mista dos tempos modernos. O constitu-cionalismo do século XIX se coloca em confronto com arevolução e seus corolários: poder constituinte, soberania populare expansão da democracia. A valorização da Constituição comonorma é utilizada para fazer frente ao discurso revolucionário dasoberania popular. O constitucionalismo busca a estabilidadeameaçada pela interpretação radical e democrática da revolução.Mais do que isso, o ciclo polibiano das formas de governo vai serimobilizado pela pretensão de eternidade do liberalismo. O cons-titucionalismo e sua pretensão de permanência, caracterizadapela rigidez constitucional, tenta evitar a degenerescência daforma política liberal, buscando encerrar a contingência e o di-namismo da política expostos por Maquiavel. De acordo com

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Matteucci (apud BERCOVICI, 2013, p. 177), o governo constitu-cional é entendido como o governo de um Estado misto, que ga-rante espaços de liberdade em relação à nova tirania descobertapor Tocqueville: a tirania da maioria.

A partir das revoluções do século XVIII, estabelecem-se,segundo a análise de Maurizio Fioravanti (apud BERCOVICI,2013, p. 169-170), dois tipos fundamentais de Constituição: a"costituzione indirizzo", que chama todos os poderes públicos eos cidadãos para cumprirem uma tarefa coletiva de realizaçãode uma sociedade mais justa, e a "costituzione garanzia", queinstitui um governo limitado, deixando aos cidadãos e aos gover-nantes o poder de definir livremente seus próprios fins a partir dedeterminada estrutura institucional mínima. A "costituzione indi-rizzo" era ameaçadora para os liberais, pois invocava o jacobi-nismo da soberania popular, da democracia direta, do sufrágiouniversal e do poder constituinte permanente. O Estado de direitoliberal busca a estabilidade, entendendo a liberdade como segu-rança, fundamental para a sociedade de mercado. Não poracaso, para combater as ameaças do poder constituinte, do su-frágio universal e da democracia, os liberais vão utilizar a "costi-tuzione garanzia" e sua compreensão do constitucionalismocomo limitação do poder.

E com isso, mais uma vez fica evidenciado que a lutaentre as classes durante o século XIX influenciou o constitucio-nalismo daquele período.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que o início do século XIX é marcadopela ascensão da burguesia, pela instauração de uma liberdadee de uma igualdade formal entre os homens, mas também porum constitucionalismo notadamente liberal, em que não há preo-cupação em se intervir nas relações jurídicas para reequilibrar asdesigualdades sociais fáticas que se instauraram na sociedadeapós a queda do Antigo Regime.

No entanto, não podemos nos descurar da resistência

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conservadora-monárquica que pretendia combater a ideia de umRechtsstaat liberal e também das ideias democráticas e sociais,tentando manter o sistema empregado pelo Antigo Regime.

Os homens livres e formalmente iguais passaram a esta-belecer suas relações sem nenhum tipo de intervenção do Es-tado, onde os direitos fundamentais cumpriam a funçãoprimordial de proteger o indivíduo dos abusos estatais, mas nãocontra os abusos de seus semelhantes.

Assim, o constitucionalismo da primeira metade do séculoXIX funda-se em um liberalismo econômico e social, consistentee uma monarquia constitucional, distante de princípios democrá-ticos e da soberania popular, onde o monarca encontra-se compoderes limitados pelo parlamento, o qual aprova as leis que irãoreger as relações dos cidadãos. No entanto, o processo de es-colha dos parlamentares é restrita, fazendo com que as decisõespolíticas sejam tomadas por uma pequena oligarquia.

Já a segunda metade do século XIX é marcada peloavanço dos ideias sociais-democráticos, os quais acendem a rea-ção conservadora que vê a necessidade de adotar medidas so-ciais preventivas a fim de evitar o total acesso democrático. Comisso, no fim do século XIX, temos um breve e tímido reconheci-mento de alguns direitos sociais e também uma pequena amplia-ção da participação popular na tomada de decisões e napossibilidade de eleição de verdadeiros representantes do povo.

REFERÊNCIAS

ABENDROTH, Wolfgang; FORSTHOFF, Ernst; DOEHRING, Karl. El

Estado Social. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986.

BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição. Para uma crítica doconstitucionalismo. Porto Alegre: Quartier Latin, 2013.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed.São Paulo: Malheiros, 2004.

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BURKE, Edmund. Further reflections on the revolution in France.

Edited by Daniel E. Ritchie. Liberty Fund, Inc. 1992.

GRESPAN, Jorge. Revolução Francesa e Iluminismo. 2 ed. SãoPaulo: Contexto, 2014.

LEFEBVRE, Georges. A revolução francesa. Trad.: Ely Bloem deMelo Pati. 2 ed. São Paulo: IBRASA, 1989.

PASSOS, Hugo Assis. França: Teoria Constitucional da Revolu-

ção Francesa. Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público,2015.

PISARELLO, Gerardo. Un Largo Termidor. La ofensiva del cons-titucionalismo antidemocrático. Madrid: Trotta, 2011.

RIDOLA, Paolo. O constitucionalismo: itinerários históricos e percur-sos conceituais. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande

do Sul. Porto Alegre: Ajuris, ano 38, n. 121, mar. 2011.

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Ângela Maria Laurindo da Silva*

Marcia Helena Lopes**

Mariane Morato Stival***

PARQUES NACIONAIS: O CAMINHO ENTRE O TURISMO E A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL

NATIONAL PARKS: THE PATH BETWEEN TOURISM AND ENVIRONMENTAL PRESERVATION

PARQUES NACIONALES: ENTRE EL CAMINO TURISMO Y LA PRESERVACIÓN AMBIENTAL

Resumo:

As unidades de conservação dizem respeito às áreas naturais legal-

mente protegidas em razão de sua importância para a proteção e

manutenção da diversidade biológica. A ideia de se preservar espa-

ços naturais associando-a à visitação orienta o conceito de parques

nacionais. Esses se constituem por unidades cuja função se correla-

ciona aos interesses do turismo em espaços naturais e de preferência

selvagens. Essa estratégia de conservação adota a perspectiva pre-

servacionista, onde não cabe a exploração econômica dos recursos

ambientais, mesmo que de maneira sustentada, visto que objetiva a

integridade da vida selvagem e sua garantia como patrimônio a ser

contemplado pelas gerações futuras. O objetivo deste artigo se divide

em investigar a história do surgimento das atividades turísticas e a

maneira como ela se relaciona com as práticas de preservação do

* Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Anápolis - UniEvangélica e alunado Núcleo de Pesquisa do Núcleo de Pesquisa em Direito - NPDU.** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável e Gestãoda Biodiversidade do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Bra-sília. Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela L'Université ParisVII. Especialista em Direito Ambiental pela PUC Goiás. Graduada em Direito pela PUCGoiás. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis. Advogada.*** Doutoranda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCeub. Mestre em Direitopelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Especialista em Direito Público pela UCG.Professora do Curso de Direito da UniEvangélica e de cursos de pós-graduação. Super-visora do Núcleo de Atividades Simuladas - NAS, pesquisadora do Núcleo de Pesquisaem Direito - NPUD e membro do Núcleo Docente Estruturante - NDE do curso de Direitoda UNiEvangélica. Coordenadora de projeto de Iniciação Científica - PIBIC. Advogada.

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patrimônio natural. A metodologia adotada se baseia na pesquisa bi-

bliográfica a respeito do tema.

Abstract:

Conservation units relates to natural areas legally protected because

of its importance to the protection and maintenance of biological di-

versity. The idea of preserving natural spaces associating it to visitors

guides the concept of national parks. These are constituted by units

whose function correlates to the interests of tourism in natural spaces

and preferably wild. This conservation strategy adopts a preservatio-

nist perspective where it doesn't fit the economic exploitation of envi-

ronmental resources, albeit sustained way, once the goal is the

integrity of wildlife and its guarantee as patrimony of future genera-

tions. The purpose of this article is divided into investigating the history

of the emergence of the tourist activities and the way she relates to

the natural patrimony preservation practices. The adopted methodo-

logy is based on the bibliographical research on the subject.

Resumen: Las áreas protegidas se refieren a las áreas naturales protegidas le-

galmente, debido a su importancia para la protección y el manteni-

miento de la diversidad biológica. La idea de preservar los espacios

naturales vinculándola a los visitantes guía el concepto de parques

nacionales. Estos están constituidos por unidades cuya función se

correlaciona con los intereses del turismo en espacios naturales y de

preferencia salvaje. Esta estrategia de conservación adopta la pers-

pectiva preservacionista, que no encaja en la explotación económica

de los recursos incluso que el medio ambiente de manera sostenible,

como objetivo de la integridad de la vida silvestre y sus garantías

como activos a ser cubiertos por las generaciones futuras. El propó-

sito de este artículo se divide en la investigación de la historia de la

aparición de la actividad turística y la forma en que se relaciona con

las prácticas de la conservación del patrimonio natural. La metodolo-

gía se basa en la literatura sobre el tema.

Palavras-chave:

Turismo, parques nacionais, direito ambiental, unidades de conservação.

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Keywords:

Tourism, national parks, environmental law, protected areas.

Palabras clave:

Turismo, parques nacionales, el derecho ambiental, áreas protegidas.

INTRODUÇÃO A relação entre o homem e seu meio ambiente naturalestá na origem dos debates sobre a conservação da natureza. Aforma como paisagens naturais têm sido sucessiva e acelerada-mente transformadas em paisagens culturais destaca a importân-cia de se destinarem áreas naturais, ainda relativamentepreservadas, à conservação. O homem, como a força motriz da civilização do mundo,naturalizou seu poder concebendo a natureza como bem, coisa,propriedade sobre a qual sempre arrogou o seu direito de uso embenefício próprio. No entanto, os resultados de suas ações têmsido dramáticos para as demais espécies, com relato cada vezmais crescente de extinção em massa. Paradoxalmente, essesefeitos começam a se voltar contra o seu próprio criador, represen-tando uma ameaça concreta a seu estilo de vida moderno emesmo à viabilidade de um futuro. A concepção meramente utilitarista do mundo natural foi cri-ticada por grupos da sociedade civil, que começaram a perceber osimpactos negativos do modus operandi do projeto de desenvolvi-mento em curso, demandando por uma proteção efetiva de espaçosnaturais, como garantia de segurança e melhor qualidade de vida.Diferentes setores da sociedade se mobilizaram para operar trans-formações na forma de se relacionar com a natureza. Os parquesnacionais surgem nesse contexto de insatisfação como produto deuma urbanização irreversível. As primeiras propostas para a criaçãode reservas naturais e parques nacionais surgiram em resposta ademandas por estratégias de preservação da vida selvagem. O homem, ao compreender o que de fato compunha omeio ambiente, teve uma visão diferente de seu lugar e do papel

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que deveria exercer perante a sociedade, papel este que refletiriaincidentalmente na relação homem-natureza. Entretanto, antes de tal compreensão, foi necessário quea sociedade sofresse certos impactos e transformações para seconscientizar sobre a importância do movimento ambiental. A ques-tão da preservação e conservação do meio ambiente passou entãoa ser difundida em grande escala, já que, aos poucos, os indivíduosatribuem à natureza a importância que ela, de fato, merece ter,dada a inviabilidade da vida humana em sua ausência. O primeiro grupo ambientalista privado do mundo - a Com-mons, Open Spaces, and Footpaths Preservation Society (fundadaem 1865) - promoveu campanhas de sucesso pela preservação deespaços para amenidades, particularmente as áreas verdes urba-nas, que eram, frequentemente, o "ambiente campestre" mais dis-ponível para os trabalhadores urbanos (MCCORMICK, 1992). Taliniciativa manifesta pela primeira vez a preocupação não só do Es-tado, mas também dos particulares, de comunicar à sociedade arelevância e os benefícios de tais espaços à qualidade de vida dosindivíduos. A partir daí, vários foram os movimentos em prol da de-fesa da fauna e da flora; porém, apenas no ano de 1882, houve acriação do primeiro parque nacional do mundo, o Parque Nacionalde Yellowstone, em Wyoming, Estados Unidos das Américas, comuma área de 800 mil hectares. No Brasil, a primeira proposta registrada de parques na-cionais surgiu em 1876, quando o engenheiro André Rebouças(1838-1898) sugeriu que fossem criados parques nacionais em doislocais: um na Ilha do Bananal, rio Araguaia, e outro em Sete Que-das, rio Paraná (DEAN, 1996; PÁDUA, 2002). Entretanto, os pri-meiros parques nacionais brasileiros surgiram apenas na décadade 1930, 60 anos depois das propostas de Rebouças: Itatiaia,criado em 1937, Iguaçu e Serra dos Órgãos, criados em 1939. Noentanto, o primeiro parque criado no Brasil com o objetivo explícitode proteção da natureza teve caráter estadual: o Parque Estadualda Cidade, atualmente Parque Estadual da Capital, criado em 10de fevereiro de 1896, pelo Decreto n. 335, na cidade de São Paulo(PÁDUA, 1997). Desse modo, o Brasil motivado pelas constantes pressõespolíticas oriundas dos demais países, sobretudo, dos Estados Unidos,

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instituiu algumas unidades de conservação, transferindo aos Esta-dos membros da Federação a missão de difundir e incentivar taismedidas. O estado de Goiás, por sua vez, criou seu primeiro par-que, o Parque Estadual da Serra de Caldas Novas (PESCaN), lo-calizado nos municípios de Caldas Novas e Rio Quente, apenasno ano de 1970, graças à Lei n. 7.282. Este texto pretende explanar, baseado nesse contexto, adiscussão no tocante ao papel dos estados brasileiros, principal-mente, o estado de Goiás, na maneira como este gerencia suasunidades de conservação.

OS PARQUES NACIONAIS NO CONTEXTO HISTÓRICO

O Parque Nacional de Yellowstone nos Estados Unidosé emblemático por ser reconhecido como o primeiro modelo deparque nacional criado no mundo. No entanto, o conceito de par-que nacional é anterior e foi elaborado por George Catlin, apro-ximadamente em 1830 (MCCORMIC, 1992). Sem dúvida, osEstados Unidos saíram na frente na elaboração e implementaçãodesse modelo de preservação da natureza, que acabou por sepropagar no mundo todo. O Brasil se inseriu no campo da con-servação a partir de 1937, com a criação do Parque Nacional deItatiaia, no estado do Rio de Janeiro. A criação de parques nacionais tem como objetivo a pre-servação dos recursos naturais importantes para a sobrevivênciadas espécies. A lógica das áreas protegidas é resguardar os várioshabitats da diversidade de espécies de um ou vários ecossistemas.Mas os parques, além de serem locais de preservação da natu-reza, respondem aos objetivos de lazer e contemplação, sendoabertos para a visitação do público em geral. Funcionam como ummeio de sensibilização e contemplação dos espaços selvagens. Apossibilidade do indivíduo de visitação da natureza orientou a con-cepção do conceito de parque nacional. A motivação da preserva-ção é conceitualmente associada à reserva de amostras doambiente como patrimônio natural, para contemplação e admira-ção das gerações futuras. Pode-se afirmar que, originalmente, a

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criação dos primeiros parques nacionais no mundo contemplavatambém a valorização da natureza per si, ou seja, desprovida devalor econômico ou de utilidade ao homem. A União Internacional para Conservação da Natureza(UICN), fundada em 1948, definiu parque nacional como sendo:

Área natural extensa de terra ou mar de grande relevância para aconservação da natureza e da biodiversidade, destinada a: protegera integridade ecológica de um ou mais ecossistemas para as gera-ções presentes e futuras; excluir a exploração ou ocupação não liga-das à proteção da área; e prover as bases para que os visitantespossam fazer uso educacional, lúdico, ou científico de forma compa-tível com a conservação da natureza e dos bens culturais existentes.(O ECO, 2014, online)

A UICN define as áreas de proteção ambiental de acordocom o modelo de gestão a ser praticado. A definição adotada pelaentidade serve como um padrão a ser adotado internacionalmente.A mais recente lei brasileira que regulamentou o Sistema Nacionalde Unidades de Conservação (SNUC), Lei n. 9.985, de 18 de julhode 2000, adota como referência as determinações da IUCN. Os parques são tipo de área protegida cuja categoria demanejo descarta a possibilidade de uso direto dos recursos am-bientais e ocupação humana, visando à proteção integral da bio-diversidade, das paisagens e elementos de grande beleza cênicano seu interior. A visitação deve proporcionar a educação am-biental por meio da sensibilização do visitante para o aspecto in-trínseco da conservação, por meio da vivência e contemplaçãoda vida em suas mais variadas formas. O controle da entrada esaída dos visitantes do parque é imperativo para a manutençãoda integridade ambiental do parque. A produção do conhecimentocientífico acerca dos ecossistemas presentes é outro objetivo dapreservação da área, produzindo novas e inovadoras possibili-dades de preservação da natureza. O SNUC se constitui em um instrumento de gestão dopatrimônio ambiental nacional. Compõe o rol de instrumentos dosquais o Poder Público pode utilizar-se para garantir o direito fun-damental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (BRASIL,CF, 1988 BRASIL, Lei n. 6.938, 1981). Não regulamenta exclusivamente

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os parques nacionais, e sim o conjunto de unidades de conser-vações (UC) federais, municipais e estaduais, em suas várias ca-tegorias de manejo. Essa lei veio para potencializar a atividadeadministrativa do governo, a ser exercida e concebida de formasistemática, visando assegurar a integridade da biodiversidadeno território nacional, tarefa extremamente ambiciosa no contextonacional. Responde aos princípios e objetivos atuais da PolíticaInternacional da Diversidade Biológica. No entanto, os parques nacionais brasileiros já eram re-gulamentados precariamente pelo Código Florestal de 1965, Lein. 4.771. O grande avanço proporcionado pela Lei do SNUC foio estabelecimento de critérios objetivos para a criação e, princi-palmente, para a gestão das áreas protegidas nacionais, pormeio de seus planos de manejo e conselhos gestores (para al-gumas categorias). Partindo da premissa de que no Brasil os par-ques nacionais são áreas protegidas abertas à visitação pública,estabelecer critérios objetivos, claros e realizáveis para sua ges-tão é essencial para garantir que conservação e turismo sejamefetivamente compatíveis.

O NATURALISMO COMO BERÇO DO TURISMO NA NATUREZA

As práticas de deslocamento humano e exploração doambiente atravessaram a história das civilizações, sendo repre-sentadas por modos particulares e diversos, tanto de realizaçãoquanto de motivação. Para além dos interesses econômicos eimperialistas do Estado e de negociantes, as grandes excursõeseuropeias pelo Novo Mundo alimentaram a curiosidade científicaou aventureira de alguns poucos homens, que se embrenharamna tarefa de descrever as características naturais dessas terras. Os naturalistas tinham como fundamento o desejo de co-nhecer novos lugares, tal como andarilhos que partiam para umdestino e buscavam vivenciar as singularidades de cada lugar ede alguma forma estudar aquilo que apreendiam da natureza etudo que sua percepção conseguia capturar. Além disso, havia aintenção de cartografar as potencialidades de determinado lugar e

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conhecê-lo através da sua geografia e antropologia, como se podenotar nas expedições realizadas no Brasil (CAMARGO, 2014). A exuberância da beleza natural do Brasil, já descrita nasprimeiras cartas ao Reino de Portugal, motivou a vinda dessesnaturalistas, que passaram a investigar intelectualmente o vastoterritório brasileiro. Os que chegavam aqui ficavam deslumbradoscom a grande diversidade da fauna e da flora.

A realidade brasileira deslumbrou e atraiu a curiosidade de todos osque aqui chegaram e sobre ela escreveram, desde o escrivão da ar-mada descobridora - Pero Vaz de Caminha - até os geógrafos quenos visitaram no séc. XX. (ANDRADE, 1977, p. 17)

Graças a essas grandes descrições tem-se um materialde extrema relevância, que conta um pouco desse momento his-tórico, ao mostrar sempre o desejo de estudar, descrever e clas-sificar as várias características dessa terra, sem deixar de lado aimportância da vinda dos jesuítas e missionários, homens de umsaber diferenciado e curiosos pela observação do lugar, mos-trando-se deslumbrados com as características únicas da região(MELO LEITÃO, 1942). A motivação dos homens que empreendiam essas expe-dições não era constituída por um caráter econômico, tratava-semuito mais do fascínio despertado por aquilo que era desconhe-cido e um impulso de desenvolver um saber sobre novas terras,que ainda não haviam sido exploradas. Nesse primeiro momento,todo um conhecimento é desenvolvido para classificar toda a di-versidade dos novos lugares, seja com a pesquisa em campo,observando os seres e objetos em seu ambiente natural, ou nogabinete, através do exame dos dados coletados. Os naturalistas compartilhavam do interesse de entrarem contato com diferentes lugares. Pode-se considerar que osnaturalistas, de maneira indireta, foram os primeiros a explorar avisitação na natureza, embora com objetivos muito diferentes doturismo, tal como este é praticado na atualidade.

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TURISMO NA NATUREZA E CONSERVAÇÃO: UMA RELA-ÇÃO POSSÍVEL?

O desejo de conhecer novas culturas, a busca por des-canso longe dos centros urbanos e a vivência de novas expe-riências através de viagens para diferentes lugares persiste,apesar das grandes inovações tecnológicas que propiciam o con-tato com outras sociedades, sem que seja preciso sair de casa.A realização dessa vontade é um direito de qualquer indivíduoassegurado pela Constituição Federal de 1988, que no seu se-gundo capítulo, art. 6º, trata dos direitos sociais: “São direitos so-ciais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à materni-dade e à infância, a assistência aos desamparados, na formadesta Constituição”. O turismo pode ser categorizado como umdos meios para realização do direito ao lazer. O turismo em áreas naturais tem sido identificado a partirde uma variedade de tipologias, tais como: ecoturismo, turismode aventura, turismo na natureza. Uma das principais tipologiasé o ecoturismo, pois se entende que esse tipo de turismo esti-mula a visitação de espaços naturais, protegidos ou não, asso-ciando-a à conservação ambiental e ao desenvolvimento dassociedades locais. Teoricamente se constitui em uma ação con-junta do homem em aliança com a natureza que vise à harmoni-zação do patrimônio natural (WESTERN, 1999). O primeiro a utilizar o termo "ecoturismo" foi o arquitetoHector Ceballos-Lascurain, que anteriormente usava o termo tu-rismo ecológico, mas, somente em 1983, foi posto como ecotu-rismo. Segundo ele, essa mudança poderia se tornar umaimportante ferramenta para a conservação (SOUSA; MENESES;COSTA, 2005, p. 178). Com o acontecimento da Conferência das Nações Uni-das sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizado noRio de Janeiro, em junho de 1992, chamado de Rio 92, o ecotu-rismo começa a ser bastante difundido na sociedade brasileira,seguindo os passos do que já vinha ocorrendo em outros países.O conceito de ecoturismo surgiu com uma visão preservacionistade harmonização do homem com a natureza. No entanto, essa

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prática deve ser acompanhada de perto, sendo necessário o es-clarecimento da população e daqueles que a promovem. Apesarda sua característica de conservação, o ecoturismo quando feitode forma indevida, torna-se mais um agente do desmatamentodesenfreado. Há um ponto problemático quando se aborda o turismonos parques nacionais, pois a natureza aqui pode ser vista so-mente como um produto a ser comercializado, uma fonte ines-gotável de renda. Essa percepção acarreta um retrocesso noavanço da conservação ambiental, pois os parques ficam des-protegidos. Em muitos deles não há estrutura alguma para a vi-sitação, os indivíduos, movidos pela curiosidade que a matavirgem desperta, entram em contato direto com a natureza sel-vagem e ficam expostos a riscos, tanto para si quanto para a na-tureza até então inexplorada. Portanto, pode-se observar que o ecoturismo é contrárioà ideia do turismo promovido para fins privados, contrário ao tu-rismo feito para as massas, que tem de ser controlado e inspe-cionado. É possível observar a ideia dos parques nacionaisadvindos dos Estados Unidos da América (EUA) e entender oquanto uma boa administração e conscientização dos visitantese utilizadores desse tipo de turismo elevam a problematizaçãodas políticas conservacionistas. A partir do momento em que oindivíduo apreende o quão inestimável é aquele território, com-preende o seu valor não só para vida humana, mas para todoseu ecossistema, visto que tudo está relacionado. Dentre outras estratégias de preservação bem sucedi-das, é possível usar o exemplo do turismo nos parques da Áfricado Sul. Cada parque destina-se a um tipo de lazer, resguardadopor um aparato que garante a visitação de pessoas de todo omundo. Com a imensa fauna e flora africana, pôde-se catalogaro que cada turista iria encontrar em determinada área, desde asmais variadas espécies de animais no Parque Nacional do Kru-ger, até áreas de deserto e lagoas, além de outros contrastes doParque Nacional de Augrabies Falls. Já o tipo de turismo praticado nos parques brasileiros écontemplativo de visitação, com a atividade de trilha em área na-tural. Através da pesquisa se concluiu que os parques são uma

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necessidade e possui uma importância social, cultural, política eeconômica local quando são criados, tal como as atividades tu-rísticas realizadas no seu interior. Não há um modelo único deparque, bem como não há um modelo único de visitação em par-ques nacionais. O ecoturismo em seus princípios básicos correlaciona asatividades turísticas com políticas socioambientais, que procuramestimular as condutas dos cidadãos, com o desejo de ter umequilíbrio do ecossistema e construir melhorias para todos os se-tores envolvidos (MTUR, 2010). O grande atrativo que representaa diversidade da fauna e flora silvestre brasileira faz com queesse segmento seja promissor no território nacional, exigindomaior atenção por parte do Estado. No entanto, precisa-se primeiro compreender a ideia nor-teadora desses segmentos. A Organização Mundial do Turismodefine turismo sustentável da seguinte maneira:

Turismo Sustentável é o que relaciona as necessidades dos turistase das regiões receptoras, protegendo e fortalecendo oportunidadespara o futuro. Contempla a gestão dos recursos econômicos, sociaise necessidades estéticas, mantendo a integridade cultural, os pro-cessos ecológicos essenciais, a diversidade biológica e os sistemasde suporte à vida. (OMT, 1999)

As premissas do turismo sustentável correlacionam aconservação do meio ambiente com o desenvolvimento social.Utilizam-se dela com o mesmo intuito de proteção e desenvolvi-mento das comunidades que sobrevivem dessa prática. A partir disso, é necessário o conhecimento, mesmo quebreve, das variadas tipologias do turismo ecológico, para que setorne possível promover o planejamento de políticas públicas ade-quadas para as áreas em questão, seguindo o exemplo de outrospaíses, de modo que elas incluam a precaução diante da cultura edas sociedades, com o intuito de proteger o patrimônio brasileiro. Ao se abordar o turismo de natureza, pode-se definir estesegmento como sendo movido pelo sentimento de integraçãoque o indivíduo procura encontrar na natureza selvagem, longedos centros urbanos e em contato com ambientes naturais. Essecontato é puramente recreativo, de reconhecimento e admiração.

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Já o turismo de aventura propicia sensações de liber-dade, que estimulam o desafio e a quebra de barreiras que o pró-prio indivíduo carrega. É praticado por pessoas em busca desatisfação física e pode ser feito tanto na natureza quanto noscentros urbanos. Sendo assim, pode-se concluir que as múltiplas possibi-lidades de intervenção do homem na natureza através da práticado turismo podem acontecer de diversos modos, os quais sãotema dos órgãos responsáveis por legislar sobre essas questõese definir quais são legais e podem se efetivar. Garantir o modo de vida existente nas comunidades jun-tamente com a preservação do meio ambiente, promover a edu-cação ambiental nas escolas, fazer propagandas deconscientização para o grande público, são algumas maneirasde promover uma mudança nas atitudes de toda uma geração,que começa a vivenciar os impactos das atividades predatóriasda natureza pelo homem. Tendo em vista o que foi dito, nota-se que muitas vezesessas demandas não são atendidas, é algo que precisa de umtrabalho constante e de estudos que possam mapear os efeitosdas ações humanas no meio ambiente, para que se possa, a par-tir disso, desenvolver métodos que tenham como finalidade pro-mover a manutenção de um relacionamento equilibrado entrehomem e natureza. Essa questão provoca um desafio constante,que ainda está em construção e se encontra na ordem do dia.

Entrevista qualitativa sobre Pirenópolis com Marcelo Sáfadie Fábio Martinelli

Pirenópolis, localizada aproximadamente a 128 km da ca-pital Goiânia, é um dos 65 destinos indutores do desenvolvi-mento regional no Brasil, título ganho devido aos seus atrativosturísticos tais como belezas naturais, peculiaridades da gastro-nomia e sua forte tradição cultural. Outro fato importante da re-gião são as suas unidades de conservação, o Parque Estadualdos Pireneus (PEP) e a Área de Proteção Ambiental dos Pire-neus (APA), criadas respectivamente pelas Leis n. 10.321, de 20

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de novembro de 1987, e n. 13.121, de 16 de julho de 1997, queampliou sua área, e o Decreto n. 5.174, de 17 de fevereiro de2000. Tais medidas jurídicas vieram com enfoque de preservar obioma relativo ao cerrado brasileiro, o qual devido à ação humanasofreu uma redução da extensão de sua área.

Parte-se da hipótese de que o constante fluxo de visitan-tes, proporcionado pelo modelo de turismo em vigor, altera pro-porcionalmente as condições ideais de subsistência das espéciesno território, aumentando os riscos de impactos negativos nasunidades de conservação. Para entender essa problemáticaforam entrevistados Marcelo Sáfadi, ex-Secretário Estadual deTurismo e importante empresário no ramo de hospedagem emPirenópolis, e Fábio Martinelli, que, junto de Safádi, foi um dosresponsáveis pela fundação da ONG Grupo Nativa, a qual surgiua partir da preocupação em preservar o rio Araguaia, após teste-munhar a sua constante degradação.

Como o turismo é uma característica predominante da ci-dade, ele impulsiona a economia e traz melhorias para a região.Segundo Sáfadi, a atividade turística hoje é a que melhor distribuirenda no município de Pirenópolis, além de ser o ramo que em-prega uma maior quantidade de pessoas, alcançando um im-pacto significativo na economia, que se observa na quantidadede obras e no percentual de serviços que estão sendo implemen-tados na região.

No entanto, o turismo trouxe adversidades que Sáfadi sa-biamente pontua:

Toda atividade econômica traz impactos ambientais, que pode ser ne-gativos ou positivos. Em Pirenópolis a atividade de mineração e pe-cuária sempre ameaçou os cursos das águas. O ecoturismo fez comque várias fazendas mudassem de atividade. A Bonsucesso deixoude explorar pedra e passou a explorar a visitação das cachoeiras, omesmo acontecendo com outras que diminuíram o uso das terraspara pastagem e investiram em turismo de cachoeira. Diria resumindoque o impacto foi positivo em relação ao que ocorria nas terras. Masreitero que sempre devemos aprimorar a atividade em busca demenor impacto. É um processo continuo.

Na tentativa de conciliação entre o apelo turístico da ci-dade e a importância da preservação ambiental, algumas medidas

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jurídicas foram tomadas para proteger o meio ambiente, contudohá dificuldade em pô-las em prática, como relata Marcelo Safádi:“na minha visão, os principais problemas de Pirenópolis estãoconcentrados no poder municipal, que não atuou de forma con-sistente na gestão de resíduos, sejam eles o lixo caseiro, entulhoou lixo de pedreiras”. Para ele isso se deve a uma “visão estreita”sobre o assunto, ao deixar claro que não há um devido cumpri-mento da legislação vigente.

Não somente cabe ao Poder Público a preservação, mastambém a todas as forças que atuam na região, sejam eles públicasou privadas. Ainda são observadas ações discriminatórias por partede alguns grupos de mineradoras, como fica evidente na fala deSafádi: “também considero que as pedreiras não atuam na explo-ração de corte dentro do limite legal”. No que diz respeito aos donosde pousadas, o entrevistado aponta como ainda é comum a práticade esgoto a céu aberto. Há muitas causas para que uma lei de pre-servação não seja executada, nas palavras de Marcelo Sáfadi: “adificuldade de cumprimento será sempre o fato de não se percebero valor que isto tem para uma cidade como Pirenópolis”.

Quando perguntado sobre a existência de setores con-trários à preservação ambiental em Pirenópolis, o entrevistadoFábio Martinelli argumenta que

desmatam muito a área rural para a criação de gado, utilizam muitoveneno para matar o capim - tanto no campo como na cidade e ferti-lizantes e venenos para combater pragas nas plantações. Além disso,existem os loteamentos irregulares que desmatam as matas ciliarese vendem lotes pequenos nas áreas rurais.

Na visão de Fábio Martinelli, mesmo com aspectos posi-tivos, o turismo trouxe como principais problemas a especulaçãoimobiliária e os loteamentos ilegais. Para agravar a situação, emsuas palavras, “a legislação local é quase inexistente e inope-rante”, não havendo a aplicação das leis. Até mesmo o maneja-mento das unidades de preservação fora levantado de modoenfático pelo entrevistado:

A unidade de conservação estadual está praticamente abandonada -nem o prefeito, nem o governador nem a maioria da população

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goiana estão preocupados com ações reais de preservação e colo-cam a economia sempre na frente do meio ambiente.

Nas palavras de Martinelli, existem problemas na gestãoda unidade de preservação, pois a Semarh (Secretaria do MeioAmbiente e dos Recursos Hídricos), que é o conselho responsá-vel pela manutenção do parque, é ineficaz quando se trata dasquestões de defesa da unidade. O Parque Estadual dos Pireneus(PEP) se encontra sem cercamento, possibilitando a entrada deescaladores que, indiscriminadamente, abrem novas vias, entrame saem do parque sem que ninguém os impeçam. Ele concluiafirmando que “a realidade do parque estadual é quase de aban-dono total”.

O encontro com ambos os entrevistados pôde mostrar oconflito entre turismo e meio ambiente pelas palavras de quem ovivenciou. As visões sobre o turismo, como impulsor da economiae gerador de empregos e renda, apareceu nas duas falas. Aindaassim, pareceu haver uma incongruência entre as leis e sua apli-cação, até mesmo nas unidades que deveriam servir para a pre-servação e que sofrem com a falta de fiscalização. Esse cenárioexige mudanças, tanto por parte dos governantes quanto da po-pulação e dos setores privados, que poluem o ambiente, nãoapenas pela falta de informação e consciência, mas seria precisouma mudança de percepção, que fizesse o Poder Público, os se-tores privados e a opinião pública sentirem na pele os efeitos ne-gativos do descaso com o meio ambiente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os parques nacionais são modelos já consolidados deáreas protegidas de grande propagação mundial. O turismonessas áreas pode contribuir para a ressignificação do relacio-namento entre o homem e a natureza. Tal qual a motivação dosnaturalistas de outras épocas, o contato com a natureza poderesgatar a capacidade de espanto e admiração pelo mundo sel-vagem. Acredita-se ser possível criar novos territórios e traçar

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novas linhas que tirem o ser humano de uma estrutura destrui-dora e o coloque em equilíbrio com uma nova sensibilidadeecológica, e, nesse aspecto, os parques nacionais podem ter umpapel importante.

Quando se pensa o turismo no contexto atual e nas pos-sibilidades de exercício da atividade em áreas protegidas, deve-se considerar o desafio da compatibilização entre visitação econservação. Os parâmetros para o desenvolvimento de um tu-rismo sustentável estão estabelecidos nas diretrizes do SNUC,que no seu artigo 5º, inciso XIII, Lei n. 9985/00, traz:

Art. 5º omissis[...]XIII - busquem proteger grandes áreas por meio de um conjunto in-tegrado de unidades de conservação de diferentes categorias, próxi-mas ou contíguas, e suas respectivas zonas de amortecimento ecorredores ecológicos, integrando as diferentes atividades de preser-vação da natureza, uso sustentável dos recursos naturais e restau-ração e recuperação dos ecossistemas.

O SNUC deve ser visto como algo maior que apenas umaferramenta para proteger o ambiente, mas também como forma deeducar a população. Foi criado não só para regular e proteger osparque nacionais, mas também toda a biodiversidade brasileira, es-tabelecendo parâmetros e formas de manejos a serem seguidos.

Resguardado o seu objetivo de proteção das áreas natu-rais e desenvolvimento econômico das sociedades, tal finalidadese relaciona à conceituação de turismo sustentável, a qual colocaessas atividades como uma forma de combater os excessos jásofridos pela natureza em busca do equilíbrio.

Em virtude do que foi mencionado, entende-se que, as-sociados aos estudos sobre metodologias para mensurar a ca-pacidade de suporte dos atrativos e mecanismos de câmbio eaos critérios para a gestão dos parques nacionais estabelecidospelo SNUC, este estudo pode indicar uma via segura no desen-volvimento de estratégias e dispositivos jurídicos que acabemcom a exploração da natureza, para que se possa construir umasociedade com maior consciência das suas riquezas naturais ea necessidade de preservá-las.

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Assim, diante da temática abordada, é possível com-preender que o processo de criação das unidades de conserva-ção ainda necessita de grandes transformações para alcançar aideia e objetivo primordial, que levaram a sua implantação aindaem um momento crucial de sua existência.

Há que se falar em uma falta de estrutura por parte dosgovernos no que tange ao gerenciamento e monitoramento dasunidades de conservação, uma vez que os esforços aplicadosna fiscalização não se comparam ao descaso com a segurançae real utilidade dessas áreas.

A população, principal beneficiária desses projetos deproteção à fauna e à flora, também carece de instrução à medidaque não usufrui das belezas encontradas em nossas reservas,onde é constante a presença de espécies até então ameaçadasde extinção, como é o caso do lobo-guará.

Por fim, a questão da preservação e, sobretudo, da valo-rização das nossas riquezas, muitas até então ainda desconhe-cidas pelos cientistas e biólogos, merece uma atenção especial,referente a sua maneira de contribuir para o crescimento, apren-dizado e melhor qualidade de vida das gerações vindouras.

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André Wagner Melgaço Reis*

PSICOPATIA: UM BREVE ESTUDO

PSYCHOPATHY: A BRIEF STUDY

PSICOPATÍA: UN BREVE ESTUDIO

Resumo:

O presente artigo pretende fazer considerações gerais a respeito da

psicopatia. O tema é introduzido por meio de um caso fictício, o qual

revela a personalidade anormal do protagonista. Este, ainda que seja

um psicopata, não é um doente mental. Logo, por ser imputável,

deve, a priori, responder criminalmente como qualquer outra pessoa.

Em seguida, discorre a respeito da origem da psicopatia, sendo pre-

ponderante a corrente que sustenta que ela é inata, isto é, o sujeito

nasce psicopata, muito embora fatores externos – em especial, aqueles

relacionados à educação, à família e ao meio social onde se vive -, pos-

sam potencializar tal transtorno de personalidade. São mencionados

casos reais para ilustrar e contextualizar o poder das circunstâncias

e a psicopatia adquirida. O trabalho discorre, também, sobre as ca-

racterísticas típicas do psicopata, bem como sobre a questão da ine-

ficácia dos tratamentos tradicionais.

Abstract:

This article aims to make general considerations about psychopathy.

The theme is introduced by means of a fictitious case which reveals

abnormal personality of the protagonist. Although he is a psychopath,

he is not mentally ill. Therefore, by being attributable he must, a priori,

respond criminally as anyone else. Then it discusses about the origin

of psychopathy, in which the leading current of thought is the one that

underpins it as innate, this is, the subject is born psychopath, although

external factors - in particular those related to education, family and

social environment where one lives -, may leverage this personality

* Graduado pela Faculdade de Direito de Curitiba-PR. Promotor de Justiça do MP-GO.

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disorder. Real cases are mentioned to illustrate and contextualize the

power of circumstances and acquired psychopathy. The work expa-

tiates also on the typical characteristics of the psychopath, as well as

on the issue of ineffectiveness of traditional treatments.

Resumen:

El presente artículo tiene como objectivo hacer consideraciones

generales sobre la psicopatía. El tema se introduce por medio de

un caso ficticio que revela la personalidad anormal del protagonista.

Este, sin embargo sea un psicópata, no es, todavía, un enfermo

mental. Por lo tanto, al ser imputable él debe responder, a priori,

criminalmente como cualquier otra persona. A continuación, se dis-

cute sobre el origen de la psicopatía, donde la principal corriente

de pensamiento es la que susténtala como innata, es decir, la per-

sona nace psicópata, aunque los factores externos - en particular

los relacionados con la educación, la familia y el entorno social

donde se vive -, pueden potencializar este trastorno de personali-

dad. Se mencionan, también, casos reales para ilustrar y contex-

tualizar el poder de las circunstancias y la psicopatía adquirida. El

trabajo contempla, también, las características típicas del psicó-

pata, así como la cuestión de la falta de efectividad de los trata-

mientos tradicionales.

Palavras-chave:

Psicopata, transtorno de personalidade, ausência de doença mental,

imputabilidade.

Keywords:

Psychopath, personality disorder, mental illness absence, imputability.

Palabras clave:

Psicopatía, trastorno de personalidad, ausencia de enfermedad

mental, imputabilidad.

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INTRODUÇÃO AO TEMA POR MEIO DE UM CASO NARRADOPOR MAX AUB

Max Aub (2015, p. 46-47), em seu livro “Crimes exemplares”,conta o seguinte caso:

Fazia um frio dos diabos. Ele marcou às sete e quinze na esquina daVenustiano Carranza com a San Juan de Letrán. Não sou desses ho-mens absurdos que adoram o relógio e o reverenciam como uma di-vindade inalterável. Entendo que o tempo é elástico e que, quando semarca às sete e quinze, pode valer como sete e meia. Tenho um critérioflexível para tudo. Sempre fui um homem muito tolerante: um liberal daboa escola. Mas certas coisas são inaceitáveis, por mais liberal que apessoa seja. O fato de eu ser pontual não obriga os outros a fazer omesmo, até certo ponto; mas vocês hão de concordar comigo que esseponto existe. Já disse que estava um frio terrível. E aquela maldita es-quina estava aberta a todos os ventos. Sete e meia, vinte para as oito,dez para as oito. Oito horas. Naturalmente vocês me perguntarão porque eu não fui embora. Simples: sou um homem respeitador da palavradada, um pouco antiquado, vocês dirão, mas, quando eu digo umacoisa, eu cumpro. Héctor tinha marcado às sete e quinze, e nunca mepassaria pela cabeça faltar a um encontro. Oito e quinze, oito e vinte,oito e vinte e cinco, oito e meia, e nada de Héctor aparecer. Eu estavaabsolutamente gelado: sentia dor nos pés, nas mãos, no peito, no ca-belo. Na verdade, se tivesse ido com meu casaco marrom, é bem pro-vável que nada tivesse acontecido. Mas são coisas do destino, egaranto que às três da tarde, hora em que saí de casa, ninguém podiaprever aquela ventania. Vinte e cinco para as nove, vinte para as nove,quinze para as nove. Transido, roxo. Chegou às dez para as nove: sos-segado, sorridente e satisfeito. Com seu grosso casaco cinza e suasluvas forradas.– Salve, irmão!Assim, como se nada. Não pude evitar: eu o empurrei na frente do tremque justamente ia passando. Triste coincidência.

O crime acima narrado, evidentemente, choca e causa im-pacto às pessoas ditas “normais”, que são aquelas que se enqua-dram no conceito de homo medius (ou “arquétipo social”, para usara terminologia de Luis Jiménez de Asúa. O protagonista da referidaestória certamente padece de algum transtorno de personalidade(p. ex., psicopatia), que predispõe o indivíduo a formas de com-portamento incompatíveis com as conveniências ou exigências so-ciais e com os padrões da normalidade.

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Nesse contexto é que se inserem as pessoas com “per-sonalidades psicopáticas”1, que, na famosa e conhecida fórmulade Kurt Schneider (apud MOLINA, 2014, p. 657), destacado psi-quiatra alemão, são “aquelas que sofrem por sua anormalidade oufazem sofrer a sociedade por culpa de sua inadaptação”. Dessa definição, extrai-se que os psicopatas são “perso-nalidades anormais”. Todavia, como bem ressaltado por AlbrechtLangelüddeke (1972, p. 508), professor de psiquiatria forense e cri-minologia na Universidade de Marburgo/Alemanha, a expressão“anormal” não tem a conotação de “patológico”. Significa, apenas,que alguém, em algum aspecto de sua mentalidade, desvia-se deum termo médio imaginário de comportamento. Cita, como exem-plo, um caso de uma pessoa com cabelos negros que vive numpovoado onde as pessoas têm cabelos ruivos. Aquela pessoa des-via do termo médio dessa pequena sociedade e, nesse sentido, éconsiderada verdadeiramente anormal. No entanto, de modo algumse pode dizer que tal pessoa, de cabelos negros, seja enferma. Esse, portanto, é o primeiro ponto que deve ficar claroa respeito do psicopata. Ele não é um doente mental, mas simsofre de um “transtorno de personalidade” (conforme, inclusive,o Manual da Sociedade Americana de Psquiatria – DSM-IV). Essaconstatação tem especial relevância, pois interfere diretamente nasua responsabilidade criminal. Vale dizer, como o psicopata nãoé um alienado, conservando, portanto, sua plena capacidade dediscernimento, podendo perfeitamente distinguir o certo do errado,o bem do mal e de compreender as consequências de suas ações,enfim, por não ser doente mental, é ele imputável, isto é, deve serjulgado e condenado como qualquer outra pessoa2. Nesse sentido é o entendimento de Robert D. Hare (2013,p. 150-151; 2009), destacado psicólogo canadense, uma das maiores

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1 A expressão “personalidade psicopática” foi utilizada pela primeira vez por E.KRAEPELIN, em 1896. Assim, por todos, GARCIA, J. Alves. Psicopatologia Fo-rense. 2. ed., Rio de Janeiro: Irmãos Poguetti Editores, 1958, p. 177.2 Todavia, cabe registrar que há quem defenda que, diante das peculiaridades docaso concreto, onde se evidencie efetivamente uma grande dificuldade em se con-terem os impulsos instintivos primários e, também, caso se revele uma extrema vul-nerabilidade aos abalos emocionais, poderá o psicopata, excepcionalmente, ter suapena atenuada, nos termos do art. 26, parágrafo único, do Código Penal.

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autoridades sobre o tema e mundialmente famoso por ter criado aHare’s Psychopath Checklist, principal instrumento utilizado para odiagnóstico dos portadores de psicopatia, com aceitação interna-cional e utilizado por diversos países.

ORIGEM DA PSICOPATIA

Outro ponto bastante debatido e que oferece grandecomplexidade refere-se à causa da psicopatia. Qual é sua ori-gem? Ela é inata, orgânica, fruto de herança genética ou de-corre de causas sociais e ambientais? Genival Veloso de França (2015, p. 516), professor titularde Medicina Legal da Universidade Federal da Paraíba, men-ciona três tendências para explicar a origem dos transtornos depersonalidade, onde se insere a psicopatia. A primeira, de ca-ráter constitucionalista, afirma que ela se origina de forma in-trínseca e orgânica (biológica), por determinação genética, ecomo tal pouco ou nada pode se fazer (psicopatia como fator danatureza). A segunda teoria sustenta que a causa é social, de modoque a sociedade cria seus próprios psicopatas, a partir de seuestilo econômico, social e educativo (psicopatia como fator decriação e social). A terceira corrente tem seus fundamentos napsicanálise, que a vê por meio das perversões cujas raízes estãona sexualidade (psicopatia como fator da sexualidade). A teoria que prepondera é a de natureza constituciona-lista, vale dizer, a pessoa nasce psicopata, trazendo em sua cargagenética, portanto, esse transtorno de personalidade. Todavia,sobre esse terreno da predisposição orgânica e biológica,atuam concausas que potencializam a psicopatia que, repita-se, é inata. Dentre elas, pode-se mencionar, primordialmente, fa-tores ambientais diversos, em especial, aqueles relacionados àeducação, à família e ao meio social onde se vive. Nesse sentido, por todos, é o magistério de Garrido Geno-vés, professor titular da Universidade de Valência/Espanha, na ca-deira de Psicologia Criminal, e uma das maiores autoridades emcriminologia violenta, ao afirmar que a psicopatia remete a um

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transtorno de origem biológica, influenciada e potencializadapor fatores culturais e sociais. Esse autor, portanto, sustenta ummodelo biossocial explicativo da psicopatia, que contempla, con-juntamente, a vulnerabilidade biológica individual de certos sujeitose o singular processo de aprendizagem e socialização (apud MO-LINA, 2014, p. 664-665)3. Considerando, portanto, a grande influência de fatores ex-ternos sociais na potencialização da psicopatia, o meio social, a edu-cação e o bom convívio familiar assumem destacada relevância, aomenos para reduzir os efeitos desse transtorno de personalidade. No âmbito familiar, devem os pais ter em mente que seusfilhos, ainda mais quando crianças, são movidos pelo “instinto daimitação”. Consoante Hans von Hentig (1972, p. 158-159), profes-sor de Criminologia na Universidade de Bonn/Alemanha, é por meioda imitação que a criança se torna semelhante a seus pais. Dito deoutro modo, os modelos de conduta de qualquer pessoa estão cons-tituídos, em primeiro lugar, pelo comportamento dos próprios pais. Ademais, o meio social e as circunstâncias de um deter-minado contexto também influenciam no comportamento de qual-quer pessoa, em especial de um psicopata, que já padece de umtranstorno de personalidade, como se verá no próximo tópico.

EXPERIMENTO DA PRISÃO REALIZADO NA UNIVERSIDADEDE STANFORD/EUA

Em 1971, o renomado psicólogo Philip Zimbardo ideali-zou o famoso e polêmico experimento da prisão, realizado naUniversidade de Stanford/EUA (ZIMBARDO, 2015)4.

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3 Em sentido semelhante: TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica. 7. ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 188 e BONFIM, Edílson Mougenot. O julgamentode um serial killer: o caso do maníaco do parque. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 84-85.Este último autor- Promotor de Justiça que atuou no caso do Maníaco do Parque - afirmaque a psicopatia já se evidencia desde cedo (é “um mal que se anuncia na infância”) e so-mente pode incrementar-se no contato com o meio em que vive, integrando fatores exó-genos com eventuais fatores endógenos já preexistentes.4 Vide também, o filme “O experimento de aprisionamento em Stanford”, Diretor KylePatrick Alvarez, Universal, 2015.

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Na experiência, um grupo de estudantes universitáriosvoluntários foi dividido aleatoriamente em guardas e prisioneiros,num ambiente de prisão simulada, que se tornou demasiado real.Quando vestem os respectivos uniformes, recebem a instruçãode que dali em diante devem se esquecer de que se trata de umexperimento, devendo viver na plenitude cada um dos papéis. Aexperiência deveria ter durado duas semanas. Ocorre que, apósseis dias, foi interrompida em razão da grande despersonalizaçãoe desumanização dos prisioneiros, de um lado, e do outro, peloalto nível de abuso verbal e psicológico infligido pelos guardas,que se tornaram violentos e sádicos. Ao final da experiência, Zimbardo concluiu que as forçasdas circunstâncias são mais poderosas em modelar nossocomportamento do que se pode imaginar, podendo, assim,dominar a vontade de resistir de um indivíduo. É o triunfo dopoder das circunstâncias sobre o poder individual. A esse fe-nômeno, notadamente no contexto em que pessoas boas ou co-muns fazem coisas nocivas ou más, o referido psicólogoamericano denominou de “efeito Lúcifer”, em evidente alusãoà metamorfose de Lúcifer em Satã5. No âmbito da filosofia, José Ortega y Gasset já havia formu-lado, em 1914, a tese de que “o homem é ele e suas circunstâncias”.

PSICOPATIA ADQUIRIDA: O CASO DO ACIDENTE OCORRIDOCOM PHINEAS CAGE NOS EUA

Por outro lado, além dos fatores biológicos (genéticos) esociais (estes como potencializadores), é possível, como bemressalta Hermann Mannheim (1984, p. 390), que em algunscasos, em virtude de traumatismos crânio-encefálicos ou en-cefalite epidérmica, surjam sequelas neurológicas capazesde gerar o quadro psicopático (ZACHARIAS; ZACHARIAS,

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5 Lúcifer - que significa o “portador da luz” - era o anjo predileto de Deus, até que,por desafiá-lo, foi expulso do Paraíso e exilado no Inferno, juntamente com um grupode “anjos caídos”.

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1991, p. 392). É o que se chama de “psicopatia adquirida”,conforme expressão de Mezger (1950, p. 61). Nesse ponto, para ilustrar, mostra-se interessante o casodo acidente ocorrido com Phineas Cage nos Estados Unidos,exemplo este mencionado por Jorge Trindade (2014, p. 184-186). O fato ocorreu em 1848 na Nova Inglaterra/EUA. Cagetrabalhava para uma estrada de ferro e sua função era bastanteperigosa. Além de coordenar uma equipe com vários funcionários,Cage era responsável por preparar as detonações das rochaspara abrir caminho para uma estrada de ferro. Num determinadodia, por acidente de trabalho, houve uma grande explosão quefez com que uma barra de ferro entrasse em sua face esquerdae atravessasse seu crânio, saindo no topo da cabeça, caindo amais de trinta metros de distância. Para surpresa e espanto detodos, Cage, embora muito ferido, manteve-se consciente, con-seguindo andar e falar até a chegada do atendimento médico. Arecuperação física de Cage impressionou a todos, tendo voltadoa andar e a se movimentar como antes. A linguagem e a fala tam-bém não apresentaram alterações. Todavia, pouco tempo após,houve uma surpreendente mudança na personalidade de Cage.Antes descrito como responsável, eficiente e educado, passou ase comportar de forma irreverente, impaciente e grosseira. Emrazão de seu novo comportamento, acabou sendo dispensadodo trabalho e, como não conseguiu se estabelecer em nenhumoutro emprego, foi trabalhar no circo. Morreu aos 38 anos, vítimade ataques epilépticos (TRINDADE, 2014, p. 184-186). Diversas foram as consequências do caso de Cage. Adramática mudança de comportamento, ocorrida após o acidente,chamou a atenção para a relação entre as lesões da regiãofrontal do cérebro e o comportamento disfuncional, apresen-tado posteriormente (TRINDADE, 2014, p. 184-186), o que evi-dencia a possibilidade do surgimento da psicopatia em casoscomo este, onde houve um grave traumatismo crânio-ence-fálico (“psicopatia adquirida”).

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CARACTERÍSTICAS MAIS COMUNS DE UM PSICOPATA

Hervey Cleckley (apud TRINDADE, 2014, p. 184; MIRA YLÓPEZ, 1956, p. 342), que estudou detidamente a vida e a con-duta de inúmeros psicopatas, lista as seguintes características:

1. Charme superficial e boa inteligência; 2. Ausência de delírios e ou-tros sinais de pensamento irracional; 3. Ausência de manifestaçõespsiconeuróticas; 4. Falta de confiabilidade; 5. Insinceridade; 6. Faltade remorso ou vergonha; 7. Comportamento antissocial e inadequa-damente motivado; 8. Julgamento pobre e dificuldade para aprendercom a experiência; 9. Egocentricidade patológica e incapacidade paraamar; 10. Pobreza geral nas relações afetivas; 11. Específica falta deinsight; 12. Falta de responsividade na interpretação geral das rela-ções interpessoais; 13. Comportamento fantástico com o uso de be-bidas; 14. Raramente suscetível ao suicídio; 15. Interpessoal, trivial epobre integração da vida sexual; e 16. Incapacidade de seguir umplano de vida.

Trindade (2014, p. 189-190), por sua vez, afirma que asprincipais características da psicopatia giram em torno detrês eixos da personalidade, quais sejam:

a.) Relacionamento com os outros (interpessoal): são arrogantes,presunçosos, egoístas, dominantes, insensíveis, superficiais e mani-puladores;b.) No âmbito da afetividade: são incapazes de estabelecer vínculosafetivos profundos e duradouros com os outros, não possuem empa-tia, remorso ou sentimento de culpa; ec.) Comportamento: são agressivos, impulsivos, irresponsáveis evioladores das convenções e das leis, agindo com desrespeito pelosdireitos dos outros.

É interessante mencionar, também, a PsychopathyChecklist de Hare (2013, p. 48-83), ferramenta clínica destinadaa diagnosticar um psicopata, com base em traços e comporta-mentos-chave, e que foi desenvolvida a partir das evidênciasentre crime e psicopatia. Atualmente, em edição revisada (Hare´sPsycopathy Checklist-Revised, PCL-R), constam da Escala Hareos seguintes sintomas-chave da psicopatia:

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1. Loquacidade e charme superficial; 2. Superestima; 3. Mentirapatológica; 4. Vigarice/manipulação; 5. Ausência de remorso ouculpa; 6. Insensibilidade afetivo-emocional; 7. Indiferença de empa-tia; 8. Incapacidade de aceitar responsabilidade dos próprios atos; 9.Promiscuidade sexual; 10. Necessidade de estimulação/tendência aotédio; 11. Estilo de vida parasitário; 12. Descontroles comportamen-tais; 13. Transtornos de conduta na infância; 14. Ausência de metasrealistas e de longo prazo; 15. Impulsividade; 16. Irresponsabilidade;17. Delinquência juvenil; 18. Revogação da liberdade condicional; 19.Muitas relações sexuais de curta duração; e, 20. Versatilidade criminal(TRINDADE, 2014, p. 192-193).

Cada item da escala é pontuado da seguinte forma: 0 para“não”, 1 para “talvez/em alguns aspectos” e 2 para “sim”. O pontode corte para identificar a psicopatia é tradicionalmente 30 pontos,isto é, um resultado igual ou acima a 30 pontos traduziria um psico-pata típico. Índices menores - entre 15 e 29 - indicam traços suges-tivos de personalidade psicopática (TRINDADE, 2014, p. 192-193).

Todavia, o próprio Hare (2013, p. 49) alerta que pessoasque não são psicopatas podem apresentar alguns dos sintomasdescritos na referida checklist.

No mesmo sentido é a advertência de Myra y López(1956, p. 342), ao afirmar que

tão difícil é encontrar uma pessoa que não apresente nenhum traçopsicopático como encontrar um corpo ou uma face de proporções per-feitas do ponto de vista estético.

Por isso, conclui o ex-professor de Psiquiatria da Univer-sidade de Barcelona/Espanha que não se incorre em exagero aodizer que a imensa maioria dos indivíduos normais pode apre-sentar algumas das característica típicas, mas apenas umaminoria é que atingirá uma precisa superposição com eles.

EXISTE TRATAMENTO PARA O PSICOPATA?

Em relação ao tratamento da psicopatia, pode-se dizer,em linhas gerais, que, lamentalvemente, os tratamentos tradi-cionais não têm dado o resultado esperado, até porque ospsicopatas são praticamente imunes às terapias cognitivas,

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tendo em vista que são grandes manipuladores incapazes de de-senvolver a intimidade emocional e de fazer as buscas profundasao “eu” que a maioria das terapias se empenha em estimular(HARE, 2013, p. 49; 2009). Aliás, por incrível que pareça, a tera-pia pode, inclusive, piorar a personalidade psicopática. Isso podeparecer “bizarro”, como diz Hare. No entanto, esclarece o psicó-logo canadense que

infelizmente programas desse tipo sugerem ao psicopata melhoresformas para manipular, enganar e usar as pessoas. Como disse umpsicopata: ‘esses programas são como o último ano da escola. Ensi-nam como pressionar as pessoas (HARE, 2013, p. 204).

No mesmo sentido é o entendimento de Ana Beatriz Bar-bosa Silva, ao afirmar que,

com “raras exceções, as terapias biológicas (medicamentos) eas psicoterapias em geral se mostram, até o presente mo-mento, ineficazes para a psicopatia. (...) É lamentável dizer que,por enquanto, tratar um deles costuma ser uma luta inglória”(SILVA, 2014, p. 186)6.

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6 É de se ressaltar que há quem recomende um tratamento farmacológico – à basede substâncias capazes de inibir o comportamento impulsivo e agressivo – asso-ciado, sempre que possível, a alguma forma de psicoterapia. Nesse sentido: TRIN-DADE. Jorge. Manual de Psicologia Jurídica. 7. ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2014, p. 196.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi dito, extraem-se as seguintes conclusões:a) O psicopata não é um doente mental, mas sim

sofre de um “transtorno de personalidade”. Essa constataçãoé relevante, pois interfere diretamente na sua responsabilidadecriminal. Vale dizer, como o psicopata conserva sua plena capa-cidade de discernimento, é ele imputável, isto é, deve ser jul-gado e condenado como qualquer outra pessoa;

b) A respeito da origem da psicopatia, a teoria que prepon-dera é a de natureza constitucionalista, vale dizer, a pessoa nascepsicopata, trazendo em sua carga genética esse transtorno depersonalidade. Todavia, sobre esse terreno da predisposiçãoorgânica e biológica, atuam concausas que potencializam apsicopatia. Dentre elas, pode-se mencionar, primordialmente, fa-tores ambientais diversos, em especial, aqueles relacionados àeducação, à família e ao meio social onde se vive;

c) Além dos fatores biológicos (genéticos) e sociais (estescomo potencializadores), é possível que em alguns casos, emvirtude de traumatismos crânio-encefálicos ou encefalite epidér-mica, surjam sequelas neurológicas capazes de gerar o quadropsicopático (“psicopatia adquirida”);

d) as principais características da psicopatia giram emtorno de três eixos da personalidade, a saber: no relaciona-mento com os outros (são arrogantes, presunçosos, egoístas, do-minantes, insensíveis, superficiais e manipuladores), no âmbitoda afetividade (são incapazes de estabelecer vínculos afetivosprofundos e duradouros com os outros, não possuem empatia,remorso ou sentimento de culpa) e no comportamento (são agres-sivos, impulsivos, irresponsáveis e violadores das convenções edas leis, agindo com desrespeito pelos direitos dos outros) (TRIN-DADE, 2014, p. 189-190);

e) os tratamentos tradicionais (medicamentos e tera-pias cognitivas) têm se mostrado ineficazes para a psicopatia.

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REFERÊNCIAS

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Lucas César Costa Ferreira*

A EXECUÇÃO SIMULTÂNEA DE CONDENAÇÕES PENAISSUJEITAS A REGIMES JURÍDICOS DIVERSOS

THE SIMULTANEOUS ENFORCEMENT OF SENTENCES SUBJECT TO DIFFERENT REGIMES

LA EJECUCIÓN SIMULTÁNEA DE CONDENAS PENALES SUJETAS A DIFERENTES REGÍMENES JURÍDICOS

Resumo:

Este trabalho científico tem por objetivo analisar, no contexto da exe-

cução penal, a repercussão da existência de condenações pela prática

de crimes hediondos e assemelhados, sobretudo quando verificado o

concurso com condenações por crimes comuns. Nesse sentido, cons-

tata-se a existência de um regime jurídico diferenciado que regula e

informa a execução da pena de delitos hediondos e equiparados. A

partir dessa constatação, na hipótese de execução simultânea de con-

denações penais sujeitas a regimes jurídicos diversos, a elaboração

particularizada e diferenciada dos cálculos emerge como solução acer-

tada para análise dos benefícios da progressão de regime e do livra-

mento condicional. De outra parte, tendo em vista a vedação

constitucional da concessão de indulto a condenados por crimes he-

diondos e equiparados, faz-se necessário o cumprimento da integra-

lidade da pena referente a crimes hediondos e equiparados, o que

sugere uma interpretação conforme o disposto no artigo 8º, parágrafo

único, do Decreto Presidencial n. 8.615, de 23 de dezembro de 2015.

Abstract:

This scientific work aims to analyze in the context of criminal enforce-

ment the impact of the convictions for heinous crimes and the like, es-

pecially when also verified simultaneous convictions for common

crimes. In this regard, it is noted the existence of a different regime

* Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Pós-graduado emMinistério Público e Ordem Jurídica pela Fundação Escola Superior do MP-DFT.Promotor de Justiça do MP-GO.

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that regulates and informs the enforcement of the penalty for heinous

and similar offenses. Based on such statement, in the event of simul-

taneous enforcement of sentences subject to different regimes, the

individualized and distinguished calculation emerges as the right

solution for analysis of the benefits of regime progression and parole.

On the other hand, considering the constitutional prohibition of cle-

mency for heinous and similar crimes,the sentence relating to heinous

and similar crimes should be fully enforced, which suggests an inter-

pretation according to the Constitution of Article 8, sole paragraph,

Presidential Decree n. 8.615, of December 23, 2015.

Resumen:

El objectivo deste trabajo científico es analizar, en el contexto de la

ejecución penal, el impacto de la existencia de condenas por críme-

nes atroces y similares, especialmente cuando se comprobó el con-

curso con condenas por delitos comunes. En este sentido,

observamos la existencia de un régimen jurídico distinto que regula e

informa la ejecución de la sentencia de delitos atroces y similares. A

partir de esta observación, en el supuesto de ejecución simultánea

de condenas penales sujetas a diferentes regímenes jurídicos, los

cálculos individualizados y diferenciados surgen como una solución

adecuada para el análisis de los beneficios de la progresión de régi-

men y la libertad condicional. Por otro lado, en vista de la prohibición

constitucional a concesión de indulto a condenado por crímenes atro-

ces y similares, es necesario cumplir con la totalidad de la sentencia

relativa a crímenes atroces y similares, lo que sugiere una interpreta-

ción conforme a la Constitución del artículo 8 , párrafo unico, del De-

creto Presidencial n. 8615, de 23 de diciembre de 2015.

Palavras-chave:

Hediondez, progressão, livramento, indulto.

Keywords:

Constitutional protection, privacy, exploratory search, data access,

interception.

Palabras clave:

Hideousness, progression, parole, pardon.

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O REGIME JURÍDICO COMUM DE EXECUÇÃO DA PENAPRIVATIVA DE LIBERDADE O artigo 33, §2º1, do Código Penal, estabelece que a pena pri-vativa de liberdade será cumprida em sistema progressivo, conformeo mérito do sentenciado. Para tanto, será necessário o preenchimentode determinadas condições e requisitos que, uma vez verificados, au-torizarão o cumprimento da pena em regime mais benéfico. Regra geral, para a obtenção do benefício, exige-se queo sentenciado cumpra 1⁄6 da reprimenda no regime inicialmente fi-xado na sentença condenatória (requisito objetivo), bem como de-monstre possuir bom comportamento carcerário (requisitosubjetivo). Esse regime jurídico comum de cumprimento progres-sivo da pena está estabelecido no artigo 1122 da Lei de ExecuçõesPenais e compreende regra no sistema de execução penal. Ademais, ainda no regime jurídico comum, tem-se que olivramento condicional, como estágio último de cumprimento dapena, é concedido nas hipóteses preconizadas no artigo 83, incisosI a IV, do Código Penal, a saber:

Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenadoa pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desdeque: I - cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reinci-dente em crime doloso e tiver bons antecedentes;II - cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crimedoloso;

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¹ § 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progres-siva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressal-vadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em re-gime fechado;b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e nãoexceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos,poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.² Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com atransferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando opreso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bomcomportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadasas normas que vedam a progressão.

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III - comprovado comportamento satisfatório durante a execução dapena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão paraprover à própria subsistência mediante trabalho honesto; IV - tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o danocausado pela infração;

Por fim, cabe mencionar, ainda no âmbito da execuçãopenal sujeita ao regime jurídico comum, que o sentenciado poderáfazer jus ao indulto total ou parcial da pena, nos termos em que dis-põe o artigo 84, inciso XII, do texto constitucional. Mais recente-mente, o Decreto Presidencial n. 8.172, de 24 de dezembro de 2013,o Decreto Presidencial n. 8.380, de 24 de dezembro de 2014, e oDecreto Presidencial n. 8.615, de 23 de dezembro de 2015, con-templam hipóteses diversas de concessão da benesse indultória. Sucede que o legislador ordinário, inspirado pela discrimi-nação estabelecida no texto constitucional (artigo 5º, XLIII3, daConstituição Federal) e em atenção ao princípio da vedação à pro-teção insuficiente (untermassverbot), estabelece disciplina especí-fica no tocante ao sistema progressivo atinente aos delitoshediondos e equiparados, senão vejamos.

O REGIME JURÍDICO DIFERENCIADO DE EXECUÇÃO DAPENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

O artigo 2º, §2º4, da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990,com redação determinada pela Lei n. 11.464, de 28 de março de2007, estabeleceu que, em caso de condenações por crimes he-diondos e equiparados, a progressão ao regime mais benéficode cumprimento de pena dar-se-á com o cumprimento de 2/5 dareprimenda, se o apenado for primário, ou de 3/5, se reincidente.

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3 XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia aprática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e osdefinidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os execu-tores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;4 § 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos nesteartigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenadofor primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

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Somado ao requisito objetivo, foi mantida a exigência de demons-tração de bom comportamento carcerário (requisito subjetivo). Do mesmo modo, com relação ao benefício do livra-mento condicional, o legislador infraconstitucional, por intermédioda Lei n. 8.072/90, inseriu disciplina diferenciada no artigo 83, in-ciso V, do Código Penal, no tocante às condenações por crimeshediondos e equiparados, ao exigir - como requisito objetivo -, ocumprimento de 2/3 da pena, sendo vedada a concessão da be-nesse ao reincidente específico. Ainda nesse contexto diferenciado, outra discriminaçãoque merece destaque diz respeito à vedação constitucional deconcessão de indulto a crimes hediondos e equiparados. O artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal, ao estabelecerque a prática de delitos definidos como hediondos e equiparados éinsuscetível de graça, veda, em interpretação extensiva, a conces-são de indulto – espécie do gênero graça – na mesma hipótese,porquanto ambos os institutos revelam espécies de clemência so-berana (Cf. STF, HC n. 90364, Min. Relator Ricardo Lewandowski,Tribunal Pleno, julgado em 31/10/2007, DJe 30.11.2007). A propósito, valem ser destacados os ensinamentos es-posados pelo professor Juarez Cirino dos Santos, confira-se:

A graça constitui ato de competência do Presidente da República,tem por objeto crimes comuns com sentença condenatória transitadaem julgado, e por objetivo beneficiar pessoa determinada mediantea extinção ou a comutação da pena aplicada, corrigindo injustiças ouo rigor excessivo na aplicação da lei. O indulto constitui igualmenteato de competência do Presidente da República, tem por objeto cri-mes comuns e por objetivos beneficiar uma coletividade de conde-nados, selecionados pela natureza do crime realizado ou pelaquantidade da pena aplicada, com exigências complementares facul-tativas, geralmente relacionadas ao cumprimento parcial da pena; fi-nalmente, também tem por efeito extinguir ou comutar a penaaplicada – exceto no indulto sob condições, que possam ser recusa-das pelo indultado (SANTOS, 2008, p.692).

Ainda nessa ordem de ideias, cumpre enaltecer a dou-trina do professor Guilherme de Souza Nucci, senão vejamos:

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A graça e o indulto não diferem, na essência: são formas de clemên-cia, concedidas pelo Poder Executivo, a condenados criminalmente.Logo, ao proibir a graça, por um lapso, deixou o constituinte de se re-ferir ao indulto, mas cabe, neste caso, a aplicação da interpretaçãoextensiva. Onde se lê indulto, leia-se igualmente graça. (...) De todaforma, preferimos sustentar que tanto o indulto quanto a graça são,na essência, o mesmo instituto. Proibida a aplicação de um aos cri-mes hediondos e equiparados, automaticamente está vedada a apli-cação do outro (NUCCI, 2006, p.306).

No mesmo sentido, o artigo 2º, inciso I5, da Lei n.8.072/90, e o artigo 446 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de2006, afastam, expressamente, o cabimento da benesse emseus respectivos âmbitos de incidência. Assim sendo, considerando esse conjunto/bloco de nor-mas legais e infraconstitucionais que estabelece disciplina dis-criminatória afeta ao cumprimento da pena aplicada pela práticade crimes hediondos e equiparados, pode-se falar que há um re-gime jurídico diferenciado, excepcional e específico de progres-são da pena em tais casos, que não se confunde com o regimecomum e geral progressivo da pena.

A EXECUÇÃO SIMULTÂNEA DE CONDENAÇÕES PENAISSUJEITAS A REGIMES JURÍDICOS DIVERSOS

Delineados os regimes jurídicos de cumprimento dapena privativa de liberdade, torna-se tormentoso o tema do con-curso de infrações, sobretudo quando cumuladas execuções pe-nais relativas a crimes hediondos e equiparados e a delitoscomuns, já que, conforme já ressaltado, submetem-se as respec-tivas execuções penais a regimes progressivos diversos.

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5 Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentese drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto;6Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são ina-fiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, ve-dada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

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Como é cediço, o artigo 1117 da Lei n. 7.210, de 11 dejulho de 1984, preconiza que será efetuada a unificação de penasquando o sentenciado sofrer mais de uma condenação, a fim deque seja estabelecido o regime inicial de cumprimento de pena.Quando se tratar de condenações sujeitas ao mesmo regime ju-rídico, realiza-se a unificação da pena pela simples soma das re-primendas, computada eventual remição e detração. De outra parte, quando referentes a regimes jurídicos di-versos, tem-se que a análise da percepção de eventuais benefí-cios afetos à execução penal não se realiza por mera somaaritmética, de modo que, a depender da benesse, a verificaçãoserá particularizada, conforme o regime jurídico aplicável. No contexto do benefício da progressão de regime, queexige o cumprimento de parcela da pena (requisito objetivo) es-tabelecido pelo legislador infraconstitucional, as condenações re-ferentes aos delitos comuns serão submetidas ao implemento de1/6, ao passo em que as condenações atinentes a delitos hedion-dos e equiparados serão sujeitas ao cumprimento de 2/5 ou 3/5,a depender se reincidente ou não. A propósito, torna-se oportuno destacar a doutrina minis-trada por Rodrigo Duque Estrada Roig e Daniel Scharth, in verbis:

Em outras palavras, a exigência do cumprimento de uma fração dapena correspondente a um crime hediondo jamais pode incidir sobreuma pena (ou acréscimo dela) decorrente de delitos não hediondos,sob pena de grave violação aos princípios da legalidade e proporcio-nalidade. O primeiro restaria vilipendiado pela exigência de cumpri-mento de uma fração de pena mais elevada do que a legalmenteprevista. O segundo pela equiparação indevida de delitos normativa-mente díspares (ROIG; SCHARTH, 2014).

Desse modo, o benefício da progressão para regime maisbenéfico de cumprimento de pena, no caso de concurso de exe-cuções penais simultâneas e referentes a condenações sujeitasa regimes jurídicos diversos, é analisado de forma particularizada

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7 Art. 111. Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processoou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento será feitapelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, adetração ou remição.

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e diferenciada. Outro não é o entendimento do Superior Tribunalde Justiça, verbis:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO AO RECURSO APROPRIADO.DESCABIMENTO. EXECUÇÃO DA PENA. CONTINUIDADE DELI-TIVA. INSTITUTO QUE VISA A BENEFICIAR O RÉU. TOTAL DAPENA. BASE DE CÁLCULO PARA A CONCESSÃO DE BENEFÍ-CIOS. CRIME HEDIONDO E CRIME COMUM. CÁLCULO DIFEREN-CIADO PARA FINS DE LIVRAMENTO CONDICIONAL EPROGRESSÃO DE REGIME MAIS BENÉFICO AO PACIENTE SECONSIDERADAS AS PENAS PARA O CRIME HEDIONDO ECOMUM ISOLADAMENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVI-DENCIADO.1. Os Tribunais Superiores restringiram o uso do habeas corpus enão mais o admitem como substitutivo de recursos, e nem sequerpara as revisões criminais.2. Esta Corte possui orientação no sentido de que "na execução si-multânea de condenação por delito comum e outro hediondo, aindaque reconhecido o concurso material, formal ou mesmo a continui-dade delitiva, é legítima a pretensão de elaboração de cálculo dife-renciado para fins de verificação dos benefícios penais, não devendoser aplicada qualquer outra interpretação que possa ser desfavorávelao paciente" (HC n. 134.868/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIOBELLIZZE, DJe 4.5.12).3. Habeas corpus concedido de ofício para restabelecer a decisão doJuízo das Execuções Criminais, mais benéfica para o paciente.(HC 272.405/RJ, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA,julgado em 20/05/2014, DJe 23/05/2014, destacou-se).HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. CONCESSÃO DE LIVRA-MENTO CONDICIONAL. CONDENAÇÃO A CRIMES HEDIONDOSE COMUNS. CONTINUIDADE DELITIVA. ELABORAÇÃO DE CÁL-CULO DIFERENCIADO. PRETENSÃO LEGÍTIMA. CONSTRANGI-MENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO NO CASO CONCRETO.ORDEM DENEGADA.1. Na execução simultânea de condenação por delito comum eoutro hediondo, ainda que reconhecido o concurso material, for-mal ou mesmo a continuidade delitiva, é legítima a pretensão deelaboração de cálculo diferenciado para fins de verificação dosbenefícios penais, não devendo ser aplicada qualquer outra in-terpretação que possa ser desfavorável ao paciente.2. No caso concreto, embora legítima a pretensão do impetrante, nãose verifica o alegado constrangimento ilegal na elaboração do cálculoda pena sem a devida diferenciação das sanções aplicadas, por seresta a situação mais favorável ao paciente.3. Habeas corpus denegado.

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(HC 134.868/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTATURMA, julgado em 15/03/2012, DJe 04/05/2012, destacou-se).

Essa mesma solução jurisprudencial, que sugere o cál-culo diferenciado para a obtenção de benefícios executórios,conforme se observa nos precedentes esposados, aplica-se àanálise do livramento condicional. Com efeito, não havendoreincidência específica em crime hediondo e equiparado e ob-servados os demais requisitos legais, serão exigidos o cumpri-mento de 2⁄3 da pena referente aos crimes hediondos eequiparados, bem assim de 1⁄3 ou 1⁄2 da reprimenda relacio-nada a delitos comuns. Essa solução, contudo, não deve ser aplicada à hipótesede concurso de condenações por delitos hediondos e comuns naanálise de concessão do benefício do indulto parcial ou total dapena.

CONCURSO DE INFRAÇÕES E INDULTO

Não obstante a edição do decreto indultório revele o exer-cício de competência discricionária do Presidente da República(artigo 84, XII8, da Constituição Federal), tem-se que o cumpri-mento dessa competência constitucional encontra limites no ar-tigo 5º, XLIII, da Constituição Federal. Nessa senda, não pode odecreto indultório estabelecer disciplina distinta e agraciar oscondenados por crimes hediondos e equiparados.

Ocorre que, no âmbito do concurso de condenações pelaprática de delitos impeditivos (hediondos e equiparados) e nãoimpeditivos, as sucessivas edições de decretos de indulto têmautorizado a concessão do benefício mediante cálculo diferen-ciado, conforme se extrai do artigo 8º, parágrafo único, do De-creto Presidencial n. 8.615/15, verbis:

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8 XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãosinstituídos em lei;

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Art. 8º As penas correspondentes a infrações diversas devem somar-se, para efeito da declaração do indulto e da comutação de penas,até 25 de dezembro de 2015.

Parágrafo único. Na hipótese de haver concurso com crime descritono art. 9º, não será declarado o indulto ou a comutação da pena cor-respondente ao crime não impeditivo enquanto a pessoa condenadanão cumprir dois terços da pena correspondente ao crime impeditivodos benefícios.

Assim, observa-se que o decreto indultório autoriza a con-cessão da benesse à reprimenda referente ao crime comum,conquanto em concurso com execução por crime impeditivo, oque se afigura compatível, em tese, com a vedação estabelecidano texto constitucional.

De outro lado, faz-se imperioso advertir que, mesmo emconcurso com condenação por crime não impeditivo, a repri-menda fixada a partir de condenação por crime obstativo jamaisadmite a concessão de indulto, nos termos do que estabelece oartigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, que veda, em ca-ráter absoluto, a concessão da benesse a execuções por crimeshediondos e equiparados.

Sucede que o artigo 76 do Código Penal preconiza que“no concurso de infrações, executar-se-á primeiramente a penamais grave”. Assim sendo, é preciso obtemperar que, em atençãoà referida disposição, não se pode tolerar, no âmbito de análisedo benefício do indulto, o cômputo simultâneo de execuções.

Com efeito, o indulto/comutação de pena compreende,em verdade, perdão do todo ou de parte da reprimenda. De outraparte, os benefícios da progressão de regime ou do livramentocondicional referem-se à concessão de regimes mais favoráveisde cumprimento de pena, de modo que o legislador infraconsti-tucional, ao estabelecer o requisito objetivo, faz uma conjecturaem relação à aptidão do sentenciado, na perspectiva de resso-cialização, de se amoldar a regime mais benéfico.

Assim, iniciada a execução atinente ao delito hediondo,eventual comutação ou concessão de indulto total em favor do ree-ducando, mesmo sob o argumento de se relacionar à parcela nãoimpeditiva, poderá ensejar indevida computação de cumprimento

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de pena e concessão de benefícios da execução penal relacio-nadas ao delito impeditivo, o que revelaria ofensa à vedação pe-remptória estabelecida no texto constitucional.

Nesse sentido, a execução referente ao crime impeditivo,se mais remota que a referente ao delito não impeditivo, deveser contínua até atingir o seu termo final. Cumprida a integrali-dade daquela, procede-se à execução da reprimenda relacio-nada ao delito não impeditivo, quando será possível que oreeducando se beneficie pelo indulto, total ou parcial.

Portanto, em uma interpretação conforme a ConstituiçãoFederal, tem-se que a disciplina do artigo 8º, parágrafo único, doDecreto n. 8.615/15, apenas alcança as hipóteses em que o sen-tenciado tenha iniciado o cumprimento da pena referente a umdelito não impeditivo (comum) e lhe sobrevenha condenação porcrime impeditivo. Nesse caso, preenchidas as demais condiçõesestabelecidas no decreto indultório, o reeducando poderá ser be-neficiado pelo indulto se cumprir a fração de 2/3 da reprimendaatinente ao delito hediondo impeditivo.

No entanto, se superveniente a execução referente a de-lito não impeditivo a reeducando que já cumpre pena atinente acrime impeditivo, a referida disposição infralegal não se aplica.Nessa hipótese, para fazer jus à benesse do indulto, faz-se ne-cessário que o reeducando cumpra a integralidade da repri-menda referente ao delito impeditivo, que deve ser executado emprimeiro lugar e em sua integralidade, nos termos do que dispõeo artigo 76 do Código Penal e, ainda, a fração necessária docrime não impeditivo.

Contudo, não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, emrecentes julgamentos9, tem veiculado o entendimento de que o ar-tigo 76 do Código Penal impõe somente uma ordem cronológicapara a execução das penas nas hipóteses de concurso de crimes,não possuindo o condão de disciplinar os critérios estabelecidos

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9 Cf. STJ, AgRg no AREsp 721.412/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ,SEXTA TURMA, julgado em 05/11/2015, DJe 23/11/2015; STJ, AgRg no AgRg noREsp 1396053/DF, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgadoem 01/09/2015, DJe 18/09/2015; AgRg no REsp 1459395/DF, Rel. Ministro LEO-POLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE),QUINTA TURMA, julgado em 20/08/2015, DJe 01/09/2015.

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no decreto presidencial. Assim, a colenda Corte Superior de Jus-tiça tem admitido a aplicação da benesse indultória aos conde-nados concomitantemente por delitos comuns e hediondos.

No ponto, cumpre advertir que o entendimento esposadopelo Superior Tribunal de Justiça permite formular a ilação deque é indiferente, para fins de comutação ou indulto da pena,que o condenado por crime hediondo ou equiparado tenha pra-ticado ou não cumulativamente crime comum.

Com efeito, por ser insuscetível de indulto, a pena refe-rente ao delito hediondo - executada em primeiro lugar por forçado disposto no artigo 76 do Código Penal -, deve ser cumpridaaté o seu termo final, quando certamente a pena do delito comumeventualmente aplicada em cumulação, segundo o raciocínio daCorte Superior, já terá sido alcançada pelo indulto.

Ao assim tolerar o gozo do benefício do indulto, o Supe-rior Tribunal de Justiça agracia o sentenciado que nem sequercomeçou o cumprimento da pena privativa de liberdade relativaao delito comum. Com efeito, o cumprimento da pena referenteao delito hediondo irá repercutir sobre a reprimenda que não teveo seu cumprimento iniciado, o que inegavelmente compreendeofensa ao princípio da proibição da proteção penal deficiente.

Outro ponto que merece crítica diz respeito à afirmaçãode que os critérios estabelecidos pelo decreto indultório se sobre-põem à disciplina estabelecida pelo artigo 76 do Código Penal. Aprevalecer esse entendimento, tem-se que a ordem cronológicade cumprimento da pena resta disciplinada, em verdade, pelo pa-rágrafo único do artigo 8º do decreto indultório, na medida em quea reprimenda seria cumprida concomitantemente à proporção de2/3 da pena de crimes hediondos e de 1/4, 1/3 ou 1/2, a dependerdo caso concreto, da pena relativa aos crimes comuns.

As questões afetas à ordem cronológica de cumprimentode pena e à concessão do benefício do indulto não são indife-rentes. Decerto, o indulto compreende espécie de perdão dapena, extinguindo-a, de modo que, na proporção em que o de-creto exige parcela de cumprimento da reprimenda afeta ao de-lito hediondo em concomitância com o cumprimento da pena dedelito comum, torna-se relevante se afigurar qual pena estásendo executada, o que viabilizaria, nos termos do decreto, a

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concessão do benefício do indulto.Sucede que, nesse contexto, como se destacou, há dis-

ciplina expressa no artigo 76 do Código Penal, que regula a cro-nologia de cumprimento de pena, de modo que há como se aferir,em dado instante -, mesmo em caso de concurso de condena-ções sujeitas a regimes jurídicos diversos -, qual parcela da re-primenda está sendo cumprida pelo sentenciado. Não há comose tolerar que um ato normativo infralegal se sobreponha à le-gislação federal, contrariando-a.

Para fins de progressão de regime de cumprimento depena e de concessão de livramento condicional, consoante já re-gistrado, faz-se possível o cálculo diferenciado quando se tratarde execução penal referente a condenações sujeitas a regimesjurídicos diversos.

Isso porque, procedida a unificação (artigo 111 da Lei deExecução Penal), a fixação do regime inicial de cumprimento depena já contempla as condenações sofridas pelo apenado comoum todo, de modo que, ainda que não esgotado o cumprimentoda condenação mais grave, torna-se possível a concessão dobenefício da progressão de regime, já que semelhante benessecompreende a verificação de aptidão para cumprimento da penaem regime mais favorável. Não há perdão ou extinção de pena,como ocorre no gozo do indulto.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Definido o regime jurídico diferenciado que regula a execu-ção da pena referente a delitos hediondos e equiparados, verifica-se que, em caso de concurso de condenações afetas a regimesjurídicos diversos, torna-se impositiva que a análise dos benefíciosda progressão de regime e do livramento condicional seja realizadade forma particularizada a partir de cálculo diferenciado.

De outra parte, contudo, à luz da vedação constitucionalde concessão de indulto a delitos hediondos e equiparados e dodisposto no artigo 76 do Código Penal, que estabelece a execu-ção prioritária da pena mais grave, sugere-se que, em caso deconcurso de condenações relativas a delitos impeditivos e nãoimpeditivos, seja realizada uma interpretação conforme o dis-posto no artigo 8º, parágrafo único, do Decreto n. 8.615/15, a fimde que a disciplina estabelecida apenas alcance as hipóteses emque o sentenciado tenha iniciado o cumprimento da pena refe-rente a um delito não impeditivo (comum) e lhe sobrevenha con-denação por crime impeditivo.

Nessa hipótese, preenchidas as demais condições esta-belecidas no decreto indultório, o sentenciado poderá ser bene-ficiado pelo indulto se cumprir a fração de 2⁄3 da reprimendaatinente ao delito hediondo impeditivo.

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Rivaldo Jesus Rodrigues*

José Paulo Pietrafesa**

Francisco Itami Campos***

USUCAPIÃO COLETIVA: INSTRUMENTO PARA SOLUÇÕES SOCIAIS E AMBIENTAIS NAS FAVELAS?

COLLECTIVE ADVERSE POSSESSION: AN INSTRUMENT FOR SOCIAL AND ENVIRONMENTAL SOLUTIONS IN THE FAVELAS?

USUCAPIÓN COLECTIVA: UM INSTRUMENTO PARA SOLUCIONES SOCIALES Y AMBIENTALES EM LOS BARRIONS POBRES?

Resumo:

Este artigo apresenta uma reflexão sobre a usucapião coletiva, criada

como forma especial do instituto, no início do século XXI, como parte

do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), com o objetivo de regularizar

áreas urbanas de posses desordenadas e sem possibilidade de identi-

ficação dos limites e divisas do terreno de cada morador de baixa renda,

normalmente, de favelas. Este trabalho faz uma abordagem sobre a

função social da posse e da propriedade, absorvendo modernas con-

cepções, com novos conceitos e novas perspectivas na legislação bra-

sileira, face às mudanças demográficas e aos problemas

socioeconômicos, a partir da segunda metade do século XX no Brasil.

Além da abordagem jurídica, discutindo conceitos e caracterização de

baixa renda e sobre o uso do solo urbano, as reflexões sobre o posicio-

namento dos autores mencionados neste artigo registram, do ponto de

vista social, opiniões divergentes sobre a positividade e eficiência da

* Mestre em Ciências Ambientais do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Tec-nologia e Meio Ambiente. Especialista em Direito Processual Penal e em em DireitoCivil pela UFG. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Anápolis - Fada.Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Anápolis.** Pós-doutor em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais - IESA. Doutorem Sociologia pela UnB. Mestre em Educação pela UFG. Graduado em CiênciasSociais pela UFG. Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFG.*** Doutor em Ciência Política pela USP. Mestre em Ciência Política pela UFMG. Gra-duado em Ciências Sociais pela UFG. Professor do Programa de Pós-Graduaçãoem Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente do Centro Universitário de Anápolis.

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usucapião coletiva, usada como instrumento jurídico, regulamentando

as favelas, mas que, normalmente, continuam como áreas de risco.

Abstract:

The present paper presents a reflection on the Collective Adverse

Possession, created as a special form of the Institute in the early

twenty-first century, as part of the City Statute (Law n. 10.257/2001),

in order to regularize urban areas of disordered possessions and wit-

hout possibilities to identify the limits and currency terrain of each low-

income residents usually slum. This work is approach to the social

function of ownership and property, absorbing modern ideas, with new

concepts and new perspectives in the Brazilian legislation, given the

demographic changes and socio-economic problems from the second

half of the twentieth century in Brazil. In addition to the legal approach,

discussing concepts and characterization of low-income and urban

land use, the reflections on the positions of the authors mentioned in

this article, from the social point of view, record divergent views on the

positive and efficiency of collective adverse possession, regulating fa-

velas that normally remain as risk areas.

Resumen:

Este artículo presenta una reflexión sobre la Usucapión Colectiva,

creada como una forma especial del Instituto a principios del siglo

XXI, como parte del Estatuto de la Ciudad (Ley n. 10.257 / 2001), con

el fin de regularizar zonas urbanas de posesiones desordenados y

sin posibilidades de identificar los límites y la moneda de la tierra de

cada uno de los residentes de bajos ingresos, por lo general barrios

pobres. Este trabajo es el enfoque de la función social de la posse y

la propiedad, absorbiendo las ideas modernas, con nuevos conceptos

y nuevas perspectivas en la legislación brasileña, debido a los cam-

bios demográficos y los problemas socioeconómicos de la segunda

mitad del siglo XX en Brasil. Además del enfoque legal, discutiendo

conceptos y caracterización de bajos ingresos y el uso del suelo ur-

bano, las reflexiones sobre las posiciones de los autores menciona-

dos en este artículo, se registra, desde el punto de vista social, las

diferentes opiniones sobre lo positivo y la eficiencia de la Usucapión

Colectiva, utilizada como un instrumento legal que regula los barrios

pobres, pero por lo general todavía como zonas de riesgo.

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Palavras-chave:

Usucapião, propriedade, posse, função social.

Keywords:

Adverse prescription, property, possession, social function.

Palabras clave:

Posesión adversa, propiedad, posse, función social.

INTRODUÇÃO O milenar instituto da usucapião, criado para sanar ques-tões quanto à posse e à propriedade, tem a sua gênese a partir dacriação de Roma (753 a. C.). Adequando-se aos fatos sociais vin-culados à evolução do Império Romano e do próprio direito, o ins-tituto alcançou o século XXI nas civilizações ocidentais comoimportante instrumento jurídico do direito moderno e, de forma es-pecial, no Brasil, inserido em programas sociais governamentais. Na história da usucapião, desde as suas origens (por voltado ano 300 a.C.), passando pelas expansões territoriais do ImpérioRomano, até 1453 d.C. (queda de Constantinopla), e na coloniza-ção do Brasil (a partir de 1500) - o instituto, no ordenamento jurídicobrasileiro, chegou no século XXI -, sempre estiveram presentes,além do interesse público e social, a posse, a propriedade e, con-sequentemente, a preocupação com o meio ambiente, percebidanas legislações pertinentes. No Brasil, em razão da distribuição da população no es-paço geográfico, desde a segunda metade do século XX, comacentuado movimento migratório, resultando em êxodo do campopara as cidades, a política urbana passou a ter novos focos e ob-jetivos, exigindo reexames da legislação sobre a vida nas cidades. Em virtude do fenômeno da urbanização acelerada, as ci-dades modernas têm passado por grandes transformações, resul-tando em vários problemas sociais e estruturais, pois, de maneirageral, o crescimento econômico não consegue, na mesma propor-ção, acompanhar o crescimento demográfico, surgindo, assim, a

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necessidade de novas concepções sobre o direito de propriedade.(CORDEIRO, 2011). O ordenamento jurídico brasileiro, por muitas gerações e,até as duas últimas décadas do século XX, caracterizava-se pelapredominância de tendências individualistas, com seus privilégios.Todavia, discussões legislativas com sentido social já ocupavamespaços no Congresso Nacional desde o início dos anos oitenta,culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988. A nova perspectiva constitucional, a partir de 1988, conso-lidou diretrizes e princípios básicos para sustentabilidade e surgi-mento de normas ordinárias, com visão e inspiração nos interessessociais. Assim, o instituto da usucapião, criado há mais de dois milanos para resolver conflitos sobre posse e propriedade e, histori-camente, acompanhando as evoluções sociais da humanidade, notempo e nos espaços, recebe, no limiar do século XXI, novos con-tornos na legislação brasileira.

A FUNÇÃO SOCIAL NA POSSE E NA PROPRIEDADE

No estudo da posse, são inúmeras as dificuldades quese apresentam; muitos tratados já foram escritos, mas o temacontinua sendo altamente discutido. Segundo Venosa (2012), aposse é o instituto mais controvertido de todo o direito, motivandodivergências doutrinárias quanto às suas origens, natureza jurí-dica, elementos e conceitos, por influência em parte dos própriostextos romanos, na maioria das vezes contraditórios. Observa-se,também, que o conceito de posse, na história romana, foi sendoalterado nas diversas épocas, recebendo influências do direitonatural, direito canônico e direito germânico. Gonçalves (2013) observou que o estudo da posse é re-pleto de teorias que procuram explicar o seu conceito, lembrandoa redução desses estudos em dois grupos: o das teorias subjeti-vas, no qual se integra a de Savigny (1779-1861), que foi quemprimeiro tratou da questão nos tempos modernos; e o das teoriasobjetivas, cujo principal propugnador foi Ihering (1818-1892).Além dessas, surgiram outras teorias intermediárias ou ecléticas,

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mas com pouca repercussão. Segundo Diniz (2012), a natureza da posse é um temabastante controvertido, dividindo-se a doutrina em três correntes:a primeira afirma que a posse é um fato; a segunda entende quea posse é um fato e um direito; e a terceira corrente sustenta quea posse é um direito. Os civilistas brasileiros, em sua grandemaioria, reconhecem a posse como um direito, divergindo as opi-niões somente quanto à sua natureza: se real ou pessoal. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, a posse apre-senta-se como um todo unitário, mas o seu caráter é traçado comnormas a respeito de variadas modalidades, pelas quais a rela-ção possessória se apresenta com uma classificação de possedireta ou indireta, coexistindo duas posses paralelas: a do pos-suidor indireto, que cede o uso do bem; e a do possuidor direto,que o recebe, temporariamente, em virtude de direito real, oupessoal, ou de contrato, tais como: o locatário, o usufrutuário, ocomodatário, o depositário, e outros casos. Há, necessariamente,uma relação jurídica entre o possuidor direto e o indireto. A dualidade da posse, a direta e a indireta, não pode serconfundida com a denominada composse, quando duas ou maispessoas, com vontades comuns e ao mesmo tempo, têm direitosde posse sobre a mesma coisa. Essa simultaneidade admitida noexercício da posse é prevista e assegurada no Código Civil (2002),art. 1.199, dispondo que: “Se duas ou mais pessoas possuíremcoisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessó-rios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores”. Dois pressupostos são necessários para a caracteriza-ção da composse, também designada compossessão ou possecomum: pluralidade de sujeitos e coisa indivisa ou em estado deindivisão. A coisa indivisa pode ser possuída em comum desdeque o direito de um não prejudique o igual direito do outro, comonos seguintes casos:

[...] a) entre cônjuges, consorciados pelo regime da comunhão uni-versal de bens, e entre conviventes havendo união estável; b) entreherdeiros, antes da partilha; c) entre consórcios, nas coisas comuns,salvo se se tratar de pessoa jurídica, e d) em todos os casos em quecouber a ação communi dividundo (DINIZ, 2012, p. 73).

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A posse tem como principal consequência jurídica, emfavor do possuidor, o direito de aquisição da propriedade de bensimóveis e móveis, conforme normatização prevista no CódigoCivil (2002); e a principal forma prevista no ordenamento jurídicobrasileiro para garantir a posse, ou por ela adquirir o direito depropriedade, é o instituto da usucapião. A função social da posse, nos moldes da nova concepçãodo direito de propriedade que exerce uma função social, foi abor-dada por Gonçalves (2013), observando que, a partir do início doséculo XX, alterações nas estruturas sociais têm trazido tambémaos estudos possessórios a contribuição de juristas sociólogoscom novas teorias. Assim, novos conceitos, assegurados naConstituição Federal de 1988, deram novos rumos à posse, pormeio de formas especiais de usucapião, entre elas, a coletiva. Ao contrário da posse, a propriedade não oferece amesma facilidade intuitiva de percepção. Enquanto a posse,como fato natural preexistente ao direito, converte-se em fato ju-rídico e assim é protegida, a propriedade, por seu lado, já espelhaum direito; e a compreensão e extensão do conceito de proprie-dade dependem do momento histórico de cada povo, ou seja,são variáveis no tempo e no espaço (VENOSA, 2012). Propriedade, em sentido amplíssimo, é o domínio ouqualquer direito patrimonial. Para Miranda (2001), tal conceito ul-trapassa o direito das coisas, considerando, por exemplo, que ocrédito é propriedade. Já no sentido amplo, propriedade consisteem direito irradiado e incidente de regras de direito das coisas. Em sentido quase coincidente, segundo Miranda (2001,p.37), propriedade é todo o direito sobre coisas corpóreas e tambémsobre obras literárias, artísticas, industriais e científicas, observandoque, em sentido estrito, costuma-se distinguir domínio, que é o maisamplo direito sobre a coisa, e os direitos reais limitados.

[...] isso não significa que o domínio não tenha limites; apenas signi-fica que os seus contornos não cabem dentro dos contornos de outrodireito. O próprio domínio tem o seu conteúdo normal, que as leisdeterminam.

A propriedade, como eixo importante dos direitos reais,cerne do direito das coisas, constitui-se em verdadeira espinha dorsal

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do direito privado, ante o sistema de apropriação de riquezas emque vivemos. Entre os seres humanos, a maior parte dos conflitosde interesses manifesta-se na disputa sobre bens, havendo, por-tanto, necessidade de um ordenamento jurídico disciplinador a res-peito, para uma melhor convivência social (RODRIGUES, 2009). Lima (2009, p. 64-65), considerando que o direito de pro-priedade, como enorme pilar do direito privado, não pôde resistirà força do pensamento de socialização do direito, observou que:

Fatos sociais e históricos levaram o Século XX a assistir a uma inter-venção estatal nas atividades econômicas, com a consequente redu-ção da liberdade e da autonomia privada, vistas, de repente, sob aslimitações impostas pro normas de ordem pública.

Assim, o caminho seguido pelo direito de propriedade acom-panhou o caminho desenvolvido pela política, com a passagem deuma democracia que, no mundo antigo, “a cidadania se restringiaàqueles titulares de bens patrimoniais para uma democracia modernana qual a cidadania é assegurada a todos” (LIMA, 2009, p. 65). O atendimento à exigência da função social da proprie-dade, segundo Diniz (2012), requer que não só o uso do bemseja compatível à sua destinação socioeconômica, mas tambémque sua utilização respeite o meio ambiente, as relações de tra-balho, o bem-estar coletivo e a utilidade do uso. Portanto, busca-se equilibrar o uso efetivo do direito in-

dividual da propriedade com a sua função social, visando atenderao interesse público e ao cumprimento de deveres para com asociedade. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípioda socialidade e o interesse público, indiretamente, limitam o di-reito da propriedade particular.

CÓDIGO CIVIL DE 2002: NOVA PERSPECTIVA DE PROPRIEDADE

Com o objetivo de promover ampla reforma no direitocivil brasileiro, em 1965, enviado pelo Poder Executivo, chegouao Congresso Nacional um projeto para um novo Código Civil,produzido pelos juristas Orlando Gomes, Orosimbo Nonato e

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Caio Mário da Silva Pereira. Em seguida, o projeto foi retiradopelo próprio governo, em 1966. Com o mesmo objetivo, uma novatentativa aconteceu em 1972, com um anteprojeto colocado emapreciação no Congresso, e, após várias propostas de emendas,transformou-se em projeto de lei, em 1975 (PEREIRA, 2005). Assim, depois de prolongadas discussões e várias propos-tas de emendas, o projeto, após aprovado como novo Código Civil,não foi promulgado, em razão da então iminente Assembleia Cons-tituinte, que resultou na Constituição Federal de 1988, com novosprincípios jurídicos e sociais. Finalmente, após outro longo períodode discussão parlamentar, já no século XXI, em 10 de janeiro de2002, foi publicada a Lei n. 10.406, com período de vacatio legis(vacância da lei) de um ano após a sua publicação. Assim, em 11de janeiro de 2003, entrava em vigor o novo Código Civil Brasileiro. Uma nova perspectiva sobre a propriedade é percebidano atual Código Civil brasileiro (2002), vinculando-a a um sentidosocial. Cordeiro (2011, p. 92) asseverou que:

o Usucapião (sic) deve ser visto sob uma ótica mais dinâmica, dadaà natureza social da posse, o que define o exercício do direito de pro-priedade, assim como reduz o prazo prescricional, conforme se de-preende dos Arts. 1.228 e 1.238 a 1.244.

Nas disposições preliminares sobre a propriedade, o CódigoCivil de 2002, ao assegurar direitos ao proprietário, também dispõesobre o dever de preservação do meio ambiente, além da observân-cia da função social no uso da propriedade, da seguinte forma:

Art. 1.228 [...] § 1º. O direito de propriedade deve ser exercido emconsonância com as suas finalidades econômicas e sociais e demodo que sejam preservados, de conformidade com o estabeleci-mento em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equi-líbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem comoevitada a poluição do ar e das águas. (Grifos nossos).

Venosa (2012), concordando com Cordeiro (2011), lem-brou que, doravante, com o Código Civil de 2002, uma nova pers-pectiva mais dinâmica sobre a usucapião foi acrescida a algunsdos princípios básicos recebidos do Código Civil de 1916, consi-derando ainda que, como instrumento originário mais eficaz para

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atribuir moradia ou dinamizar a utilização da terra, o institutoapresenta-se com um novo enfoque, seguindo orientação daConstituição de 1988, que alberga também outras modalidadesmais singelas de usucapião. O Código Civil de 2002, a exemplo do anterior, de 1916,manteve as formas tradicionais da usucapião: a ordinária, a extraor-dinária e a especial, urbana ou rural, também chamada de constitu-cional, por ser também prevista na Constituição Federal/1988. A usucapião ordinária, no novo Código Civil (2002), se-gundo Fiuza (2010), como era no direito romano, tem como pré-requisitos: 1) a posse, 2) o justo título, e 3) a boa-fé, visandoproteger quem supostamente adquiriu o imóvel, mas com títulodefeituoso, não se tornando, por isso, proprietário legal. Alémdisso, a posse tem que ser pacífica, ininterrupta, e o possuidortem que estar com a intenção e convicção de dono, ou seja, háde ser ad usucapionem. Pereira (2005), no mesmo sentido, já havia indicado quea aquisição da propriedade pela usucapião ordinária tem comoprincípio em vigor o caput do artigo 1.242 do Código Civil/2002,prevendo lapso temporal de 10 anos, contínuo e incontestado,além de justo título e boa-fé. O parágrafo único desse mesmo ar-tigo prevê prazo de apenas 5 anos, se o imóvel houver sido ad-quirido onerosamente, baseado em certidão de registroaparentemente correta, passada em cartório, mas posteriormentecancelado, desde que o possuidor tenha nele a sua moradia, ourealizado qualquer investimento de interesse social e econômico. Sobre o segundo pré-requisito da usucapião ordinária,Fiuza (2010) lembrou que justo título, em tese, é toda causa queseria hábil para transferência da propriedade, mas, por defeito,não o faz. Observou também que não se pode confundir justo títulocom título justo, considerando que este é a causa justa de proprie-dade, como, por exemplo, a escritura de compra e venda devida-mente registrada que se constitui em título justo de propriedade. Em relação ao terceiro pré-requisito, Fiuza (2010, p 803),considerando que a boa-fé é caracterizada pela crença do pos-suidor de que a coisa sobre a qual tem a posse, legitimamentelhe pertence, lembrou que esta “[...] deve estar presente em todoo decurso da posse. Se começou de boa-fé, mas se tornou de

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má-fé, fica destruída a pretensão aquisitiva por via de usucapiãoordinária”. Quanto à redução do prazo, de dez para cinco anos, pre-vista no Código Civil, na usucapião ordinária, Donizetti e Quintella(2013) consideram como requisitos do benefício: a posse comjusto título e de boa-fé; o registro do título e o estabelecimentode moradia ou a realização de atividade econômica no imóvel.Lembraram que essas exigências estão em clara consonânciacom a função social da posse, pois o indivíduo que reside ou tra-balha em um imóvel por cinco anos ininterruptos, convicto de sero dono, merece, como prêmio, que o ordenamento jurídico lheconceda a propriedade verdadeira. A usucapião extraordinária, com antecedente históricona praescriptio longissimi temporis, tem como pré-requisitos, so-mente a posse ad usucapionem e o prazo de 15 anos. Esseprazo pode ser reduzido para 10 anos, se no imóvel o usuca-piente houver instalado sua moradia ou realizado nele obras ouserviços de caráter produtivo (FIUZA, 2010). Gonçalves (2013, p. 260), concordando com Fiuza(2010), de que a usucapião extraordinária tem como anteceden-tes históricos a praescriptio longissimi temporis do direito romanoe corresponde à espécie mais comum e conhecida de usucapião,afirmou que:

[...] O conceito de ‘posse-trabalho’, quer se corporifique na construçãode uma residência, quer se concretize em investimentos de caráterprodutivo ou cultural, levou o legislador a reduzir para dez anos a usu-capião extraordinária.

O Código Civil de 2002 preservou também, como já pre-vistas no Código de 1916, inseridas pela Lei n. 6.969, de 10 dedezembro de 1981, duas outras formas de usucapião, chamadasde especiais: uma rural e outra urbana, com prazos de cincoanos de posse ininterrupta. Na zona rural, de acordo com o art.1.139, a área de terra não pode ultrapassar cinquenta hectares,exigindo-se que seja produtiva, pelo trabalho do possuidor ou desua família e, na zona urbana, como previsto no art.1.240, o limiteé de duzentos e cinquenta metros quadrados de área.

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O CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO E NOVAS CONCEPÇÕESSOBRE PROPRIEDADE

Em virtude do fenômeno da urbanização, as cidades mo-dernas têm passado por grandes transformações, resultando emvários problemas sociais e estruturais. De maneira geral, o cres-cimento econômico não consegue acompanhar o crescimentodemográfico na mesma proporção, surgindo, assim, a necessi-dade de novas concepções sobre o direito de propriedade (COR-DEIRO, 2011). O ordenamento jurídico brasileiro, por muitas geraçõese até às duas últimas décadas do século XX, caracterizava-sepela predominância de tendências individualistas do homem,com seus privilégios. Entretanto, discussões legislativas, comsentido social, que já ocupavam espaços no Congresso Nacionaldesde o início dos anos 80, culminaram com a promulgação daConstituição Federal de 1988, trazendo bases normativas de in-tegração sustentável do homem na sociedade. A nova perspectiva constitucional, a partir de 1988, con-solidou diretrizes e princípios básicos para o surgimento de nor-mas ordinárias, com visão e inspiração nos interesses sociais.Assim, o instituto da usucapião, criado há mais de dois mil anospara resolver conflitos sobre posse e propriedade e, historica-mente, acompanhando as evoluções sociais da humanidade, notempo e nos espaços, recebe, no limiar do século XXI, novoscontornos na legislação brasileira, com inéditas formas especiais,carecedoras de análise e reflexões. Segundo Cordeiro (2011), nas últimas cinco décadas, noBrasil, o crescimento urbano, além de transformar, inverteu a dis-tribuição da população no espaço geográfico. Nos anos 1950, opaís era eminentemente agrícola, com 80% da população vi-vendo no campo. No início do século XXI, percebe-se que a si-tuação inverteu-se, com mais de 80% do povo brasileiro vivendonas cidades. Daí, há a necessidade de observância mais atentasobre a concepção da função social do direito de propriedade,em razão de assentamentos precários nas cidades, de maneirainteiramente desordenada, sem qualquer planejamento. A ocupação nas cidades brasileiras, de maneira geral,

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segundo observações de urbanistas, antropólogos e sociólogos,normalmente, faz-se pelo denominado princípio da segregaçãoresidencial, com famílias carentes e de baixa renda ocupandoas periferias, ficando sujeitas a condições de vida das mais pre-cárias, enquanto aquelas de rendimento mais alto, ocupando asáreas centrais do espaço urbano, beneficiam-se com os maioresbenefícios das ações do Estado (CORDEIRO, 2011). No mesmo sentido, Dallari (1992) já havia observadoque uma das características do fenômeno da urbanização davida social, na segunda metade do século XX, consiste na trans-ferência de grandes contingentes de população do campo paraa cidade. Assim, o movimento migratório no Brasil marcou a dé-cada de 1960, pois, no seu início, a maior parte da populaçãobrasileira vivia na zona rural e, no término, a maioria já estavavivendo nas cidades, acarretando consequências sociais, políti-cas e jurídicas muito sérias, exigindo reexames da legislação re-lacionada com a vida nas cidades, como também de tradicionaisconceitos jurídicos, inadequados ou insuficientes para a novarealidade social.

USUCAPIÃO URBANA COLETIVA

A figura da usucapião especial, especificamente, surgiuna Constituição Federal de 1988 (art.183), introduzindo, inicial-mente, a modalidade individual (usucapião especial urbana) nosistema jurídico brasileiro, possibilitando a prescrição aquisitivade imóveis urbanos de até duzentos e cinquenta metros quadra-dos, para servir de moradia ao usucapiente ou à sua família(CORDEIRO, 2011). No início do século XXI, em razão dessa possibilidadeconstitucional (1988), a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001(Estatuto da Cidade), regulamentou as diretrizes gerais da polí-tica urbana, previstas nos artigos 182 e 183 da Constituição Fe-deral, complementando os institutos já concebidos, nos quais seenquadra a usucapião urbana.

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Segundo Cordeiro (2011, p.134), o Estatuto da Cidadeao ratificar, com algumas inovações, os termos da usucapião es-pecial urbana individual, criou a espécie coletiva, possibilitando

a prescrição aquisitiva de imóveis urbanos de mais de 250 m² paraservir de moradia aos ocupantes da área [...], viabilizando-se, outros-sim, a regularização fundiária e a urbanização de áreas de favelas oude aglomerados de habitações precárias de diminutas dimensões [...].

A novidade da usucapião especial urbana coletiva foicriada em 2001, como parte do Estatuto da Cidade, antes do Có-digo Civil de 2002, que não fez nenhuma menção a ela. Entretanto,a sua vigência não ficou prejudicada, pois o Código Civil (2002),embora posterior, é lei geral e o Estatuto é lei especial, subsistindoparalelamente, não se aplicando, portanto, em face da existênciade duas leis regulando a mesma matéria, o princípio cronológico,como critério de revogação indireta da lei anterior pela posterior. Gonçalves (2013) também lembrou que o Estatuto da Ci-dade, como lei especial, regula dispositivo constitucional e, poressa razão, não sofreu alteração com a superveniência de leigeral (novo Código Civil), uma vez que a lei geral não derroga aespecial, segundo disposição expressa do art. 2º, § 2º, da Lei deIntrodução às Normas do Direito Brasileiro. Para Araújo (2013), a usucapião coletiva, introduzida peloEstatuto da Cidade na legislação brasileira, rompe com a tradiçãomilenar do instituto, ao permitir a consolidação da prescrição aqui-sitiva na composse simples, assumindo nitidamente marca socialcomo meio de promoção de desenvolvimento urbanístico dos mu-nicípios, fomentando a regularização das ocupações coletivas.Entretanto, observou que sua aplicação prática é extremamentedelicada, em vista da necessidade de compatibilizar o uso da pro-priedade com o meio ambiente e com as políticas públicas. A inovação trazida pela usucapião coletiva, segundoGonçalves (2013), visa regularizar áreas de favelas, ou de aglo-merados residenciais sem condição de legalização da proprie-dade, em áreas com mais de duzentos e cinquenta metrosquadrados, onde não seja possível identificar o terreno ocupadopor cada um. A área deve ser de propriedade particular, conside-rando a proibição legal de usucapir terras públicas, e que também

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não seja terra bruta, mas sim ocupada por pessoas que vivemem barracos ou habitações precárias. Nesse sentido, Donizetti e Quintella (2013, p. 758), lem-brando que o objetivo da criação da usucapião urbana coletivafoi regularizar a situação das favelas, fizeram ressalvas, obser-vando que a hipótese merece aplausos, do ponto de vista jurí-dico, mas, no entanto, do ponto de vista social, a regulamentaçãodas favelas não é a melhor solução para o problema da ocupaçãourbana no Brasil. Afirmaram que:

[...] a manutenção das favelas traz mais prejuízos a seus moradoresdo que benefícios, sobretudo em razão de as áreas ocupadas, namaior parte das vezes, serem áreas de risco.

A paz social, para Cordeiro (2011), sempre foi o objetivodo instituto da usucapião, desde a sua remota origem no direitoromano, como agora, início do século XXI, no ordenamento jurídicobrasileiro. Assim, uma situação de fato do possuidor, transforma-se em situação de direito, evitando ou resolvendo uma instabili-dade social. Na usucapião especial coletiva, agregando valoresque transcendem ao interesse individual do usucapiente, observa-se essa finalidade, objetivando solução de problemas de váriaspessoas envolvidas e ligadas pelas mesmas circunstâncias.

BAIXA RENDA: INDEFINIÇÃO

O objetivo da Lei n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade),segundo Venosa (2012), é beneficiar populações de baixa renda,mas sem dizer o que se deve entender por baixa renda. Na ocu-pação coletiva em área acima de duzentos e cinquenta metrosquadrados, podem acontecer duas situações diferentes na buscapela usucapião coletiva: na primeira, os habitantes da áreatomam a iniciativa e pedem a declaração de propriedade; na se-gunda, quando demandados na justiça pelo proprietário, apre-sentam a comprovação de posse como matéria de defesa,pedindo o domínio da área.

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No mesmo sentido, Cordeiro (2011) também lembrou queo legislador do Estatuto da Cidade não cuidou de definir o que seria“baixa renda”, prevista na legislação, deixando a interpretação daexpressão para conceitos vagos, indeterminados e incertos.

Venosa (2012) lembrou ainda que, antes de ser exclusiva-mente um problema jurídico, a luta pela terra sempre foi um pro-blema social. Entretanto, apesar da boa intenção do legislador aoinstituir a usucapião coletiva, o Poder Judiciário terá que lidar compossíveis fraudes aos dispositivos legais e, com os costumeirosatravessadores que procuram, aproveitando-se da massa coletiva,levar vantagens econômicas, além de dividendos políticos.

Ainda que a propositura da ação de usucapião coletiva sejapor iniciativa de uma associação de moradores, como menciona a lei,há necessidade de identificar os beneficiários, pois de outro modo nãohá como se constituir o condomínio. Entretanto, é interessante obser-var que a sentença que declarar a usucapião instituirá um condomínioindivisível, não identificando a área de cada possuidor, porém, em setratando de região urbanizada, é conveniente que sejam descritos oslogradouros e as vias públicas (VENOSA, 2012, p. 217).

Quanto à baixa renda, Gonçalves (2013) lembrou que,embora o conteúdo da expressão não esteja explicitado na lei emquestão, população de baixa renda pode ser entendida e identifi-cada como a camada da população sem condições financeirasde adquirir, onerosamente, imóvel para moradia. Economistas eestudiosos de ciências sociais costumam classificar, como debaixa renda, as pessoas que ganham menos de três salários mí-nimos mensais. Como esse conceito pode variar conforme a re-gião, resta ao juiz examinar caso a caso, mas sem confundir como conceito jurídico de pobre, adotado para a concessão de justiçagratuita, e nem com o de população de renda ínfima.

Cordeiro (2011) também observou que, em razão da va-riedade das condições econômicas da população nas diversasregiões do Brasil, caberá ao Juiz, pela lógica da razoabilidade,decidir sobre a questão; e, se dentro do grupo de favelados hou-ver um integrante que não se enquadra na classe de populaçãode baixa renda, a ação de usucapião terá seu curso normal, comsentença favorável aos demais membros que formam o polo ativoda relação processual, com direitos materiais individualizados.

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USUCAPIÃO E O MEIO AMBIENTE

Os grandes problemas enfrentados pela humanidade naantiguidade, fundamentalmente, são identificados nos diasatuais. A história registra a evolução das sociedades, no respec-tivo tempo e espaço, formando uma herança cultural para cadaindivíduo nascido na civilização do mundo moderno. Assim, co-nhecendo o passado, as sociedades contemporâneas poderãoganhar melhor compreensão para o enfrentamento de problemasatuais, como é o caso de danos causados ao meio ambiente(SAVELLE et al., 1971).

A usucapião, já na antiga Roma, surgiu para resolver pro-blemas entre possuidores e proprietários de terras. Ou seja, a pen-dência tinha como ponto central a propriedade. Esta, por natureza,tanto na antiguidade como nos dias atuais, está sempre envolvida,direta ou indiretamente, nos problemas do meio ambiente.

As causas de alterações ambientais, no mundo antigo,segundo Monaco (2012), eram diferentes das atuais, pois nassociedades pré-industriais não eram produzidos compostos quí-micos, lixo radiativo, resíduos não biodegradáveis, ondas eletro-magnéticas e outros agentes poluidores. Esses tipos de poluição,nas civilizações contemporâneas, são frutos da Revolução Cien-tífica (que possibilitou manipulações na natureza), da RevoluçãoIndustrial dos séculos XVIII e XIX (que incrementaram descober-tas científicas), do desenvolvimento do capitalismo e da aplicaçãodas inovações tecnológicas adquiridas no âmbito bélico, durantea Segunda Guerra Mundial, assim como no âmbito civil, ou seja,agrícola, industrial e comercial.

No Brasil, além das reflexões sobre o uso do solo urbanoe rural a partir dos anos 1960 e no início dos anos 2001, mor-mente com a aprovação do Estatuto da Cidade, no qual foi insti-tuída a usucapião coletiva, percebe-se uma nova ordem depreocupação vinculada ao meio ambiente.

No desenvolvimento das políticas urbanas e, principal-mente, no uso da propriedade, além da observância de sua fun-ção social, o meio ambiente é protegido no art. 2º da Lei n.10.257/2001, determinando que a política urbana tenha por ob-jetivo: evitar e corrigir distorções do crescimento urbano e seus

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efeitos negativos sobre o meio ambiente; controle do uso do solopara evitar a poluição e a degradação ambiental; promover pro-teção, preservação e recuperação do meio ambiente natural econstruído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagísticoe arqueológico.

Para Diniz (2012), o atendimento à exigência da funçãosocial da propriedade requer que não só o uso do bem seja com-patível à sua destinação socioeconômica, mas também que suautilização respeite o meio ambiente, as relações de trabalho, obem-estar, coletivamente, da sociedade e a utilidade do uso,buscando equilibrar o uso efetivo do direito individual da proprie-dade com a sua função social, que visa atender ao interesse pú-blico e ao cumprimento de deveres para com a sociedade.Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da socia-lidade e o interesse público, indiretamente, limitam o direito depropriedade particular.

Quanto aos vínculos entre propriedade, sociedade e meioambiente, o novo Código Civil (2002), especialmente no pará-grafo primeiro do art. 1.228, em síntese, determina que no exer-cício do direito de propriedade, em consonância com finalidadeseconômicas e sociais, devem ser preservados, a flora, a fauna,as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, o patrimônio históricoe artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Portanto, a preocupação com a preservação do meio am-biente, como se percebe, está sempre presente no ordenamentojurídico brasileiro do século XXI, seja na legislação oriunda doséculo passado, ainda em vigor, seja na legislação mais recente,como são os casos do Código Civil (2002) e do Estatuto da Ci-dade (2001) e, em especial, quanto à função social do uso dapropriedade e, consequentemente, na aplicação do instituto dausucapião.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução jurídica e social da usucapião no Brasil, se-gundo as reflexões dos autores mencionados, registra importan-tes e profundas mudanças na conceituação de posse epropriedade, em fases distintas, passando pelos períodos impe-rial e republicano, até agora, na segunda década do século XXI.Mas, como no antigo direito romano, sempre houve o mesmo ob-jetivo: sanar dúvidas e discórdias sobre o direito ao domínio dapropriedade e a ausência de título do possuidor.

Percebe-se, portanto, que a posse e a propriedade têmelementos comuns, em face da submissão da coisa à vontadeda pessoa, mas, quando separadas, tornam-se causa e efeito,na caracterização da usucapião.

A posse, considerada por vários juristas como o institutomais controvertido de todo o direito, tem motivado divergênciasdoutrinárias na sua conceituação e, principalmente, quanto àclassificação (direta ou indireta, justa ou injusta, de boa ou demá-fé), por ser elemento decisivo na aplicação de seus efeitos.

Quanto à propriedade, de forma ampla e genérica, a suaconceituação e organização jurídica vêm evoluindo desde a an-tiguidade aos tempos modernos, com variações de país a país,recebendo influências de regimes políticos e formas de governo,pois a sua concepção continua a ser elemento essencial para de-terminar a estrutura econômica e social de cada Estado.

Até o final do século XX, no Brasil, quando preponderavaum sentido individualista, a propriedade era conceituada dogma-ticamente pelos juristas, seguindo, quase sempre, as teorias,subjetiva de Savigny, ou objetiva de Ihering. Atualmente, na se-gunda década do século XXI, o ordenamento jurídico brasileiro,acolhendo também pensamentos de cientistas sociais, com ten-dências modernas de socialização, democratização e de huma-nização, adotou também o princípio da socialidade, atribuindoobrigatoriedade à observância da “função social”, com relaçãoao uso da propriedade, como também da posse.

Ainda no decorrer do século XX, com predominância davigência do Código Civil de 1916, por mais de oito décadas, comcomplementação de leis extravagantes, a legislação brasileira

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previa a aplicação do instituto da usucapião (a palavra era gra-fada no gênero masculino), nas formas ordinária e extraordináriae, na segunda metade do século, mais duas especiais, a urbanae a rural. Todas as formas de usucapião passaram por alteraçõeslegislativas, acompanhando e adaptando-se às necessidades decada momento na evolução socioeconômica do país.

Logo no início do século XXI, a história do direito brasi-leiro foi marcada pela entrada em vigor do novo Código Civil, pu-blicado em 2002 e vigência a partir de 2003, calcado emprincípios básicos de uma nova perspectiva sobre a propriedade,vinculando-a a um sentido social e ao direito ambiental, conse-quentemente, com reflexos na usucapião.

Criada com o objetivo de regularizar áreas urbanas deposses desordenadas e sem possibilidade de identificação doterreno de cada um, a usucapião coletiva atende às funções so-ciais da propriedade e da posse, resultando em benefícios às po-pulações de baixa renda, ocupantes, normalmente, de favelas,cabendo ao Poder Judiciário evitar fraudes de atravessadoresbuscando vantagens econômicas, além de dividendos políticos.

Do ponto de vista jurídico, a proposta dessa nova formado instituto merece aplausos, porque possibilita soluções sobreas propriedades do solo. Entretanto, segundo argumentos dosdoutrinadores mencionados, do ponto de vista social, somente aregulamentação fundiária das favelas não seria a melhor soluçãopara o problema da ocupação urbana no Brasil, pois, na maioriadas vezes, essas áreas ocupadas são, e continuarão sendo,áreas de risco, carecendo de várias outras intervenções gover-namentais.

Assim, percebe-se que a usucapião coletiva é marco deum grande avanço social, merecendo, por isso, inclusão de maisalguns detalhamentos na legislação, principalmente quanto à de-finição do que seria “baixa renda” nesse contexto legal.

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Giovanni Andrei Franzoni Gil*

O ICMS e O delItO prevIStO nO artIgO 2º, II, da leI n. 8.137/1990:

Breve enSaIO à luz dO reCente pOSICIOnaMentO dO SuperIOr trIBunal

de JuStIça nO reSp n. 1.543.485-gO

IVA AnD The CrIMe DeSCrIbeD In The ArTICle 2, II, OF FeDerAl lAw 8.137/1990: brIeF eSSAy AFTer The SUPerIOr

COUrT OF JUSTICe DeCISIOn In reSP n. 1.543.485-GO

el IVA y el DelITO PreVISTO en el ArTíCUlO 2°, II, De lA ley n. 8.137/1990: breVe enSAyO A lAS lUCeS De lA reCIenTe

POSICIón Del TrIbUnAl SUPreMO en el reSP n.1.543.485-GO

Resumo:

O objeto deste artigo é analisar a conceituação do crime tipificado noart. 2º, II, da lei n. 8.137/1990 e sua configuração na hipótese de nãorecolhimento do imposto sobre a circulação de mercadorias e servi-ços (ICMS), cobrado do contribuinte de fato do tributo. Analisados osefeitos da sonegação fiscal e a importância dos impostos sobre o con-sumo, faz-se um levantamento da conduta com hipóteses previstasno direito comparado para, então, a partir da verificação do processolegislativo da norma penal estudada, demonstrar o equívoco da in-terpretação realizada pelo Superior Tribunal de Justiça no resp n.1.543.485-GO e dos efeitos sociais e econômicos dela decorrentesobjetivando, ao fim, garantir a manutenção da proteção legal eficientedo sistema jurídico de tributação estadual.

Abstract:

The object of this essay turns to examine the concept of the crime typi-

fied in article 2, II, of National Law n. 8137/1990 and its configuration in

the event of failure to remit the sales taxes, paid by the de facto taxpayer.

Analyzed the effects of tax evasion and importance of consumption

taxes, through an examination of the similarity of the conduct in other's

* Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. Promotor de Justiça eCoordenador do Centro de Apoio Operacional da Ordem Tributária do MP-SC.

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countries laws, and from the analysis of the legislative process of the

criminal law studied is demonstrated the misunderstanding in the in-

terpretation by the Superior Court in REsp n. 1.543.485-GO and it’s

social and economic effects, aiming, at the end, ensure an effective

legal protection to the State tax system.

Resumen:

El objeto de este es analizar el concepto del delito tipificado en el

art. 2, II, de la Ley n. 8137/1990 y su configuración en caso de falta

de pago del impuesto del valor añadido (IVA), cobrado del contri-

buyente de fato del tributo. Analizados los efectos de la evasión de

impuestos y la importancia de los impuestos sobre el consumo, se

hace un análisis de la conducta con hipótesis previstas en el dere-

cho comparado para, entonces, desde la verificación del proceso

legislativo del estudio de derecho penal, demostrar la interpretación

errónea realizada por el Tribunal Supremo en el REsp n. 1.543.485-

GO y los efectos sociales y económicos derivados de la misma ob-

jetivando, al fin, garantizar la manutención de la protección legal

eficiente del sistema jurídico de tributación del estado.

Palavras-chave:

Sonegação fiscal, omissão de recolhimento, imposto sobre con-

sumo, ICMS, crime tributário.

Keywords:

Tax evasion, failure to remit, consumption tax, sales tax, tax crime.

Palabras clave:

Evasión de impuestos, falta de pago, impuestos sobre el consumo,

IVA, delito tributario.

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IntrOduçÃO

O imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços(ICMS) é a principal fonte de renda dos estados brasileiros (e, porforça do artigo 158, inc. IV, da lei Maior, também de grande parte dosmunicípios), e um dos impostos de maior movimentação financeirano país. no estado de Santa Catarina, tomando por referência a re-ceita corrente do ano de 2015 (r$ 27.990.962.488,97), o peso daarrecadação tributária referente ao ICMS foi de 56% do total (equi-valente a r$ 15.881.443.495,12) . Sendo imposto incidente sobre o consumo, seu ônus é im-pelido ao consumidor final, que é quem, de fato, promove o recolhi-mento do imposto, ao pagar pelas mercadorias e serviçosfornecidos, na expectativa de seu recolhimento ao ente arrecadador,para atingir a finalidade de sua instituição: a prestação dos serviçospúblicos essenciais ao cidadão. nessa dinâmica de indução de políticas públicas, o Minis-tério Público catarinense atua em todo o processo de arrecadaçãotributária, seja na fiscalização e transparência de benefícios fiscais,na garantia da justiça fiscal e na preservação da isonomia no trata-mento entre contribuintes, como, e principalmente, no efetivo com-bate à sonegação fiscal. Dentro da temática da sonegação fiscal, merece destaqueo crescimento vertiginoso da conduta típica de não recolhimento doICMS cobrado e declarado por contribuintes, afetando sobremaneiraas finanças dos entes federados (em especial estados e municípios),conduta esta que vem sendo combatida com firmeza em Santa Ca-tarina pelo Ministério Público estadual. Porém, recentemente, em 5 de abril de 2016, ao julgar oresp n. 1.543.485-GO, o Superior Tribunal de Justiça, em decisãoda sua sexta turma, sob relatoria da Ministra Maria Theresa de AssisMoura, acolheu tese de atipicidade da referida conduta, afastando aincidência, na hipótese, do delito descrito no art. 2º, II, da lei n.8.137/1990 (crimes contra a ordem tributária). O presente artigo, portanto, visa analisar a estrutura do ICMSe a análise típica da conduta prevista na lei de Crimes Contra aOrdem Tributária, com o escopo de instigar o debate e compreender

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o equívoco interpretativo constante na decisão indicada, a partir dolevantamento histórico da norma, do direito comparado e da inviabi-lidade de exegese que resulte em proteção deficiente a bem jurídicotão relevante.

eFeItOS da SOnegaçÃO FISCal

não há como se falar em interpretação de normas puni-tivas de crimes tributários sem considerar o impacto que a sone-gação fiscal tem causado no brasil e no mundo.

A economia de mercado global é duramente atingida pelaprática da sonegação fiscal. O mais importante estudo sobre im-pacto da sonegação fiscal na economia mundial foi divulgado em2011 pela Organização Internacional Tax Justice network (TJn),ou rede de Justiça Fiscal (tradução livre), e apontava para ummovimento estimado da sonegação fiscal mundial em 3,1 trilhõesde dólares1.

no estudo Cost of Tax Abuse - 2011 da TJn, o brasil fi-gurou em segundo lugar em duas categorias: 2º maior país pre-judicado pela sonegação, em valores (US$ 280,11 bilhões), atrásapenas dos estados Unidos (US$ 337,4 bilhões) - com a dife-rença de que a economia americana estava avaliada em 7 (sete)vezes a economia brasileira-; e 2º lugar no impacto percentualda sonegação fiscal em razão de sua cifra negra, equivalente àeconomia informal e às receitas não declaradas, com 39%, per-dendo apenas para a rússia, com 43,8%2.

A par desse impacto financeiro/econômico no brasil e nomundo, a sonegação fiscal resulta em diversos outros problemasque devem ser contextualizados na situação de nosso país, queainda se classifica como nação em desenvolvimento e, paratanto, necessita de recursos para implementação de importantesreformas estruturais e administrativas, de forma a garantir suaprópria sobrevivência econômica.

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1 Disponível em: <http://www.taxjustice.net/2014/04/01/cost-tax-abuse-2011/>.Acesso em: 11 jul. 2016.2 Disponível em: <http://www.taxjustice.net/wp-content/uploads/2014/04/Cost-of-Tax-Abuse-TJn-2011.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2016.

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A criminalidade macroeconômica tem efeitos abstratos,o que dificulta, muitas das vezes, sua avaliação concreta. em ex-tensa pesquisa criminológica sobre os "white collar crimes", o so-ciólogo americano James william Coleman (2005, p. 1) introduza questão:

Para a maioria das pessoas, os assaltantes, assassinos e traficantesque podem ser encontrados em uma rua escura da cidade são ocerne do problema criminal. Mas os danos que tais criminosos cau-sam são minúsculos quando comparados com os de criminosos res-peitáveis, que vestem colarinho branco e trabalham para asorganizações mais poderosas. estima-se que as perdas provocadaspor violação das leis antitruste - apenas um item de uma longa listados principais crimes do colarinho branco - sejam maiores do quetodas as perdas causadas pelos crimes notificados à polícia em maisde uma década, e as relativas a danos e mortes provocadas por essecrime apresentam índices ainda maiores.

Thadeu José Piragibe Afonso (2012), por sua vez, sintetiza:

A importância do estudo do Direito Penal econômico e, portanto, dacriminalidade econômica, está no fato de que os danos que os delitoseconômicos costumam causar, eminentemente financeiros, escapama todas as previsões de prejuízo. Como dito anteriormente, estima-se que os danos causados pela delinqüência econômica superam omontante total dos danos ocasionados pelo resto da delinqüência.no entanto, os danos dos crimes econômicos não são somente os fi-nanceiros. [...] Os delitos econômicos também costumam causardanos imateriais, como crises de confiança no mercado financeiro ea alteração em seu equilíbrio, comprometendo a livre concorrência.[...] exemplo de alteração prejudicial à livre concorrência pode servislumbrado quando determinada sociedade empresária importadorade produtos eletrônicos resolve sonegar tributo devido relativo ao im-posto sobre as importações, conseguindo, ilegalmente, baratear ocusto de suas mercadorias, tornando-as mais atrativas ao consumi-dor, se em comparação aos produtos comercializados pela concor-rência. este tipo de conduta, além de desequilibrar o mercado e retirardo estado instrumentos de custeio das políticas públicas, tambémcausa o chamado efeito em espiral (efecto de resaca o espiral), emque o primeiro delinquente, com sua conduta, pressiona o restode sua concorrência a fazer o mesmo com vistas a tornar suasrespectivas mercadorias mais competitivas, e assim por diante.(COleMAn, 2005, p. 1)

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Ou seja, os efeitos da sonegação não são apenas o nãorecebimento de recursos por parte do estado, interpretação vol-tada ao cunho patrimonialista do bem jurídico protegido pelanorma penal. Pelo contrário, numa visão moderna de direitopenal, deve se compreender o objeto jurídico da norma na acep-ção social dos tributos, vinculado, portanto, às funções que sãocusteadas por estes para que seja atingido o ideal de um estadosocial e democrático de direito, cumprindo-se, inclusive, os prin-cípios básicos do preâmbulo da Carta republicana:

[...] assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liber-dade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e ajustiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralistae sem preconceitos [...].

Assim, a sonegação fiscal tem que ser avaliada no vetorde prejudicialidade do atendimento ao bem comum, o qual, parasua consecução, pressupõe a existência de fontes de custeio viá-veis, não se podendo a retenção de patrimônio público para aten-dimento do interesse individual, conduta típica de quem se negaa recolher ao fisco os tributos que lhe são devidos, pagos peloconsumidor final.

há necessidade, portanto, no exercício da exegese, quese atente para o integral combate de delitos que afligem bens ju-rídicos coletivos para além de bens jurídicos individuais. nesseaspecto, lapidar e exemplificativa a doutrina de Mauro henriquerenner, segundo o qual

[...] a sociedade brasileira reluta em aceitar que autoridades e pes-soas bem situadas financeiramente possam cometer algum fato de-lituoso, simplesmente não acredita.Compreensível tal situação, pois a infração criminal sempre foi apon-tada como monopólio do pobre, segundo pesquisas realizadas coma clientela de nossos presídios. É hora de despertarmos para essanova realidade e conscientizarmos da gravidade dos crimes cometi-dos pelas organizações criminosas [...]. Com maior frequência, nosdias de hoje, acompanha-se, na mídia, notícias de desfalques incal-culáveis ao Poder Público, [...] lavagem de dinheiro [...] e corrupção[...] os crimes de colarinho branco formam uma categoria à parte,composta de pessoas bem nascidas e bem educadas em meio a boavizinhança, em lares regularmente constituídos. A semelhança entre

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os criminosos da alta sociedade e a microcriminalidade estaria, então,na aceitação normal da conduta que praticam. e isso é o que osiguala legalmente. Para o atual Direito Penal, aquele que desfalca opatrimônio de particular, com baixa lesividade, está em igual patamarque o criminoso componente de empresa criminosa. este, empreen-dedor, apropriando-se de milhões do erário, parece que crime algumcometeu. A vítima está pulverizada no desamparo dapopulação.(renner, 2005)

Compreendido, assim, o impacto da sonegação fiscal,torna-se necessário adentrar no mecanismo de incidência do im-posto sobre consumo.

O ICMS: IMpOStO SOBre O COnSuMO

Ainda que não seja ideal ao direito penal imiscuir-se nosconceitos normativos tributários, difícil dissociar a interpretaçãodo dispositivo legal estudado do conceito jurídico-constitucionaldo imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS).

Para tanto, antes de analisar a especificidade desse tri-buto, importa compreender sua existência econômica como im-posto incidente sobre o consumo.

O imposto sobre consumo é, sem sombra de dúvidas, oinstrumento de tributação mais eficaz e presente em toda a econo-mia mundial. A Organização para Cooperação e Desenvolvimentoeconômico - OCDe (Organization for economic Cooperation andDevelopment - OeCD), em seu estudo “Tópicos sobre os Impostosde Consumo 2014”, bem definiu sua abrangência e importância:

Consumption taxes account for approximately one third of the totaltaxes collected in OeCD countries. They have common forms: taxeson general consumption (value added taxes and retail sales taxes)and taxes on specific goods and services (mainly excise duties).Since the mid-1980s, VAT (also called Goods and Services Tax –GST) has become the main consumption tax in both terms of revenueand geographical coverage. VAT regimes are designed to be a tax onfinal consumption that is broadly neutral towards production processand international trade. It is widely seen as a relatively growth-friendlytax. As a result, many countries have sought to raise additional reve-nues from VAT (rather than other taxes) as part of their fiscal consoli-dation strategies. Many developing countries have introduced a VAT

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during the last two decades to replace lost revenues from trade taxesfollowing trade liberalization. Some 160 countries employ a VAT today(see Annex A), including 33 of the 34 OeCD member countries, theonly exception being the United States although most states withinthe US employ some form of retail sales tax. VAT now raises a fifth oftotal tax revenues in the OeCD and worldwide.3

A OCDe classifica os impostos em cinco categorias: im-posto sobre renda, receita e ganhos de capital; contribuições paraa seguridade social; impostos sobre a folha de pagamento e pes-soal; impostos sobre a propriedade e impostos sobre bens e ser-viços, incluindo neste último grupo os impostos sobre o consumo4.Ainda, segundo o mesmo estudo, destaca-se:

Consumption taxes such as VAT, sales taxes and excise duties areoften categorised as indirect taxes as they are not levied directly onthe person who is supposed to bear the burden of the tax. They arenot imposed on income or wealth but rather on expenditure that the in-come and wealth finance. Governments generally collect the tax fromthe producers and distributors in the value chain, while the burden of

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3 Disponível em: <http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/taxation/consumption-tax-trends-2014_ctt-2014-en#page16>. Acesso em: 11 jul. 2016. O brasilestá incluído no citado Anexo A como país tributado por VAT, reafirmando sua equivalênciaao ICMS. Tradução do autor: Os impostos sobre o consumo representam cerca de um terço do total dos impostoscobrados nos países membros da OCDe. eles têm formatação comum: impostos sobreo consumo geral (imposto sobre o valor acrescentado - IVA -e impostos sobre vendasa varejo) e impostos sobre bens e serviços específicos.Desde meados da década de 1980, o IVA (também chamado imposto sobre mercado-rias e serviços - GST) tornou-se o principal imposto sobre o consumo, tanto em termosde receitas quanto de cobertura geográfica. O regime do IVA é projetado para ser umimposto sobre o consumo final globalmente neutro processo de produção e no comérciointernacional. ele é amplamente visto como um imposto favorável ao crescimento. Comoresultado, muitos países têm buscado aumentar as receitas através do IVA (em vez deoutros impostos) como parte de suas estratégias de consolidação orçamentária. Muitospaíses em desenvolvimento introduziram o IVA durante as duas últimas décadas parasubstituir as receitas perdidas de impostos sobre o comércio, em razão da abertura docomércio internacional. Cerca de 160 países utilizam o IVA hoje (ver Anexo A), incluindo33 dos 34 países membros da OCDe, sendo a única exceção os estados Unidos, em-bora a maioria de seus estados membros utilizem o imposto sobre vendas no varejo.Atualmente, o IVA representa um quinto do total das receitas fiscais nos países membrosda OCDe e no mundo.4 Cf. <http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/taxation/consumption-tax-trends-2014_ctt-2014-en#page17>. Acesso em: 11 jul. 2016.

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the tax falls in principle on consumers as it will be passed on to themin the prices charged by suppliers.5

Finalizando a análise transnacional dessa espécie de tri-butação, destaca-se que a única diferença entre o sistema doVAT (ou GST) e o sales tax (imposto sobre a venda), cobrado emalguns lugares do mundo, como, por exemplo, os estados Uni-dos, é sobre a forma de sua incidência na cadeia produtiva.Assim como o ICMS, o VAT incide sobre cada etapa da cadeiaprodutiva, sob a sistemática de créditos (imposto pago na etapaanterior) e débitos (imposto recebido quando da venda); por suavez, o sistema do imposto sobre a venda realiza tributação única,ao final da cadeia produtiva.

essa cobrança, ressalta-se, não desnatura a identidadeentre esses tributos, mas tão somente demonstra razão de polí-tica econômica. enquanto no sistema do ICMS/IVA/VAT o im-posto entra gradativamente nos cofres públicos (minorando oimpacto da sonegação fiscal, que ocorrente no final da cadeiaprodutiva afetaria apenas a parcela final do valor do tributo), osistema do imposto sobre a venda admite sua coleta apenas nofinal da operação, diminuindo a periodicidade do ingresso e ma-jorando o impacto de uma eventual sonegação fiscal.

É imperioso destacar que a doutrina histórica brasileiraperfila do mesmo entendimento, não obstante tenha afastado aimportância da classificação dos tributos como diretos ou indire-tos, dada a natureza econômica dessa definição.

nesse sentido, bem ressalta Misabel Abreu MachadoDerzi, em suas notas de atualização à obra do mestre Aliomarbaleeiro (2015, p. 526-527):

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5 Disponível em: <http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/taxation/consumption-tax-trends-2014_ctt-2014-en#page17>.Acesso em: 11 jul. 2016. Traduçãodo autor:Os impostos sobre o consumo como o IVA, impostos sobre vendas e impostos sobrebens e serviços específicos são frequentemente classificados como impostos indiretos,pois não são incidentes diretamente sobre a pessoa que suporta a carga do imposto.eles não são impostos sobre o rendimento ou riqueza, mas sim sobre as despesas. Osgovernos recolhem geralmente o imposto dos produtores e distribuidores da cadeia pro-dutiva, enquanto a carga do imposto é, em princípio, dos consumidores, uma vez quelhes serão repassados os custos nos preços praticados pelos fornecedores.

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Como, economicamente, o tributo é transferido para o adquirente pelomecanismo dos preços, acaba sendo suportado, em definitivo, peloconsumidor final. Procura-se, então, propiciar ingressos à Fazendaem cada uma das etapas do processo econômico de produção, dis-tribuição, e comercialização, na proporção que cada uma delas in-corpora, agrega ou adiciona ao valor do produto. Daí a expressãovalor adicionado. [...]Como já destacamos ao comentarmos o art. 46 do CTn, tanto o ICMSquanto o IPI não podem onerar o contribuinte de iure. Destacamos,ainda, que essa afirmação [...] não é econômica, mas, ao contrário,encontra pleno apoio jurídico na Constituição brasileira.É que a Constituição brasileira assegura, como de resto o fazem ospaíses europeus e latino-americanos, que o contribuinte, nas opera-ções de venda que promova, transfira ao adquirente o ônus do im-posto que lhe foi transferido em suas aquisições pelo seu fornecedor(embora na posição de adquirente tenha sofrido a transferência enada tenha pessoalmente recolhido aos cofres públicos). esse me-canismo se repete até a última etapa, na venda ao consumidor finalque suporta, de fato e de direito, a carga do tributo. no brasil comonos demais países que adotam modelos similares, tal tributo, não cu-mulativo não onera, assim, a força econômica do empresário quecompra e vende ou industrializa, porém onera a força econômica doconsumidor, segundo ensina herTInG. a rigor, quer do ponto de vistajurídico – pois há expressa licença constitucional para isso -,quer do ponto de vista econômico, o imposto foi modelado paraser suportado pelo consumidor, jamais pelo contribuinte-comer-ciante. (o grifo não consta do original).

Verifica-se, pois, que o ônus fiscal do ICMS recai, sem-pre, sobre o consumidor final do produto. Independente do paísde tributação ou do nome jurídico do imposto - seja ICMS, IVA,GST, VAT ou imposto sobre vendas -, o tributo foi criado para in-cidir não sobre a renda do comerciante, mas sim sobre a despesado consumidor final. não fosse assim, destaca-se, haveria bitri-butação com o próprio imposto de renda, pois, considerada quea renda de um estabelecimento comercial é decorrente exclusi-vamente das mercadorias que comercializa, estariam o estado(ICMS) e a União (Ir) tributando o mesmo fato jurídico.

Adentrando na conceituação do tributo, nada mais clarodo que dizer que o contribuinte do ICMS é a pessoa que realizacom intuito comercial operações de circulação de mercadoriasou a prestação de serviço de transporte interestadual e intermu-nicipal e de comunicação. É o que está previsto no artigo 4º da

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lei Complementar n. 87/1996, também conhecida como lei Kan-dir, norma regulamentar do imposto, conforme determina o artigo155, XII, da CrFb/1988.

Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize,com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial,operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços detransporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda queas operações e as prestações se iniciem no exterior.Parágrafo único. É também contribuinte a pessoa física ou jurídicaque, mesmo sem habitualidade ou intuito comercial:I - importe mercadorias ou bens do exterior, qualquer que seja a suafinalidade;II - seja destinatária de serviço prestado no exterior ou cuja prestaçãose tenha iniciado no exterior;III - adquira em licitação mercadorias ou bens apreendidos ou aban-donados;IV - adquira lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivadosde petróleo e energia elétrica oriundos de outro estado, quando nãodestinados à comercialização ou à industrialização.

Sendo o imposto incidente sobre o consumo, poder-se-iaquestionar se o legislador não deveria ter optado, então, por atri-buir a condição de contribuinte ao consumidor final que, comodito alhures, é quem de fato paga o imposto. Adverte-se, porém,que tal medida é inviável, pois não haveria como se fiscalizartodos os consumidores de produtos sobre o pagamento do res-pectivo imposto, em valores que eventualmente não seriam sig-nificativos e cujo custo de fiscalização superaria, em muitos doscasos, o próprio valor do imposto a pagar.

nas lições de Alfredo becker,

Por medida de política fiscal, a regra jurídica, quase sempre, deixade vincular o consumidor à relação jurídica do imposto de consumo.A regra jurídica pode escolher, em substituição ao consumidor, qual-quer outra pessoa para o sujeito passivo desta relação jurídica, aqual, neste caso, recebe a denominação de substituto legal tributário.(beCKer, 2010, p. 441)

nessa semântica, pois, o papel do contribuinte legal doimposto é fazer, por dever de ofício, a sua cobrança do consumi-dor final e repassar o valor ao fisco, agindo o primeiro, portanto,

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como contribuinte de jure, e o segundo, como contribuinte de fatodo imposto, como bem define o saudoso mestre Alfredo becker:

Contribuinte de fato - A pessoa que suporta definitivamente o ônuseconômico do tributo (total ou parcial), por não poder repercuti-losobre outra pessoa, é o contribuinte “de fato”. em síntese, o contri-buinte “de fato” é a pessoa que sofre a incidência econômica do tri-buto acima conceituada.Contribuinte de jure - A relação jurídica tributária vincula o sujeito pas-sivo (situado no seu polo negativo) ao sujeito ativo (situado no polopositivo). A pessoa que a regra jurídica localizar no polo negativo darelação jurídica tributária é o contribuinte de jure. noutras palavras,o contribuinte de jure é o sujeito passivo da relação jurídica tributária.em síntese o contribuinte de jure é a pessoa que sofre a incidênciajurídica do tributo acima conceituada (beCKer, 2015, p. 570 / 596).

reitera-se, pois, a importância da compreensão do con-sumidor final como quem, de fato, possui o ônus tributário, o ver-dadeiro contribuinte do imposto, como definido não apenasquanto ao ICMS, mas com relação a todos os impostos inciden-tes sobre o consumo (VAT, GST, IVA, sales tax, etc.).

anÁlISe da COnduta nO dIreItO COMparadO: OCrIMe de retençÃO dO IMpOStO SOBre COnSuMO eMOutraS parteS dO MundO

A compreensão do real possuidor do ônus tributário nosimpostos sobre o consumo não é importante apenas no brasil,mas em todas as partes do mundo. Como dito alhures, a quasetotalidade dos países instituiu o imposto sobre o valor adicionado,tributando a compra de mercadoria pelo consumidor final a partirda cadeia integral de consumo, terminando pelo efetivo paga-mento do imposto devido pelo destinatário de fato do tributo (con-sumidor) ao varejista ou prestador do serviço tributável, queentão possuirá o encargo definitivo de realizar a compensaçãocom os valores que eventualmente tenha pago (imposto adiantadoao fisco nas operações anteriores) e recolher o restante ao fisco.

essa retenção dos valores do imposto sobre consumo épunida em inúmeras legislações penais.

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Começando pelos estados Unidos, verifica-se a existên-cia da sales tax, imposto sobre vendas que incide diretamentena última etapa da cadeia (não há, portanto, valor adicionado etributação intermediária nas etapas da produção e distribuição).Como os estados americanos, além de titulares do tributo, pos-suem competência legislativa penal, sua nomenclatura e puniçãovaria de estado para estado, sendo os mais comuns os delitosde theft of state funds e de failure to remit sales tax. exemplifica-tivamente, no estado da Flórida, tratam-se de delitos cuja gravi-dade depende do valor do tributo sonegado, como se pode verda seção 212.15 do Código da Flórida 6 *:

212.15 Taxes declared state funds; penalties for failure to remittaxes; due and delinquent dates; judicial review.(1) The taxes imposed by this chapter shall, except as provided in s.212.06(5)(a)2.e., become state funds at the moment of collection andshall for each month be due to the department on the first day of the

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6 Tradução do autor:* esclarecimento: as expressões misdemeanor e felony não possuem equivalente nodireito brasileiro, sendo referentes a crimes leves e crimes graves, não sendo adequadaa tradução dos primeiros como delito de menor potencial ofensivo, posto que a ambosé aplicável pena efetiva de prisão. Também não se referem ao regime de cumprimentode pena, como os conceitos de reclusão e detenção no brasil, devendo ser compreen-didas, assim, na sua acepção original, pelo que não serão traduzidas no texto.212.15 Impostos declarados como receitas do estado; sanções em caso de omissãona entrega de impostos; datas de vencimento e inadimplência; revisão judicial.-(1) Os impostos previstos neste capítulo devem, à exceção do previsto nas s. 212,06(5) (a) 2.e., tornar-se fundos do estado no momento de seu recebimento, devendo serrecolhidos ao departamento até o primeiro dia do mês subsequente, tornando-se crimi-nosa a conduta a partir do dia 21 de tal mês. Todos os repasses realizados após o dia20 do referido mês são considerados criminosos.(2) Qualquer pessoa que, dolosamente privar ilicitamente ou fraudar o estado de seusrecursos, ou usar ou beneficiar-se desse valor ou, de qualquer forma, omitir-se em re-colher os impostos coletados no âmbito do presente capítulo é culpado de apropriaçãode fundos do estado, punível como segue:(A) Se o montante total das receitas apropriado é inferior a US $ 300, o crime é um mis-demeanor de segundo grau, punível conforme previsto no s. 775,082 ou s. 775,083.em uma segunda condenação, o infrator é culpado de um misdemeanor de primeirograu, punível conforme previsto no s. 775,082 ou s. 775,083. em uma terceira ou sub-sequente condenação, o infrator é culpado de um felony de terceiro grau, punível con-forme previsto no s. 775,082, s. 775,083, ou s. 775,084.(b) Se o montante total das receitas apropriado é de US $ 300 ou mais, mas menos deUS $ 20.000, o crime é um felony de terceiro grau, punível conforme previsto no s.775,082, s. 775,083, ou s. 775,084.

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succeeding month and be delinquent on the 21st day of such month.All returns postmarked after the 20th day of such month are delinquent.(2) Any person who, with intent to unlawfully deprive or defraud the stateof its moneys or the use or benefit thereof, fails to remit taxes collectedunder this chapter is guilty of theft of state funds, punishable as follows:(a) If the total amount of stolen revenue is less than $300, the of-fense is a misdemeanor of the second degree, punishable as providedin s. 775.082 or s. 775.083. Upon a second conviction, the offender isguilty of a misdemeanor of the first degree, punishable as provided ins. 775.082 or s. 775.083. Upon a third or subsequent conviction, theoffender is guilty of a felony of the third degree, punishable as provi-ded in s. 775.082, s. 775.083, or s. 775.084.(b) If the total amount of stolen revenue is $300 or more, but lessthan $20,000, the offense is a felony of the third degree, punishableas provided in s. 775.082, s. 775.083, or s. 775.084.(c) If the total amount of stolen revenue is $20,000 or more, but lessthan $100,000, the offense is a felony of the second degree, punis-hable as provided in s. 775.082, s. 775.083, or s. 775.084.(d) If the total amount of stolen revenue is $100,000 or more, the of-fense is a felony of the first degree, punishable as provided in s.775.082, s. 775.083, or s. 775.084.

Para o delito mais grave, portanto, apropriação de valo-res superior a US $ 100.000,00, é possível que a punição atinja,dessa forma, 15 anos de prisão.

no estado de nova Iorque, da mesma forma, a conduta épunida criminalmente, com gradações variantes entre o montantedo valor por ano fiscal, na forma do Código de nova Iorque7:

new york Tax law - Article 37 - § 1801.Tax fraud acts(a) As used in this article, “tax fraud act” means willfully engaging inan act or acts or willfully causing another to engage in an act or actspursuant to which a person:

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(C) Se o montante total das receitas roubado é de r $ 20.000 ou mais, mas menos deUS $ 100.000, o crime é um felony de segundo grau, punível conforme previsto no s.775,082, s. 775,083, ou s. 775,084.(D) Se o montante total das receitas roubado é de US $ 100.000 ou mais, o crime é um felony de pri-meiro grau, punível conforme previsto no s. 775,082, s. 775,083, ou s. 775,084.7 Tradução do autor: Código Tributário de nova Iorque § 1801.Atos de Fraude Fiscal(A) Para os fins deste artigo, "ato de fraude fiscal" significa voluntariamente se en-gajar em um ato ou atos ou intencionalmente permitir que outro para se envolva emum ato ou aja nos termos do qual uma pessoa :[ ... ]

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[…](5) fails to remit any tax collected in the name of the state or on behalfof the state or any political subdivision of the state when such collec-tion is required under this chapter;

não por menos, o Departamento de Taxas e Finançasdo mencionado estado americano sugere, a todos os contribuin-tes, que realizem contabilidade separada e por conta bancáriaautônoma dos valores referentes a tributos, evitando que os re-cursos ingressem no caixa comum do comerciante8 e sejam uti-lizados de forma indevida.

em outros países, a realidade não é distinta. em Singa-pura, por exemplo, onde o imposto sobre consumo é denominadode GST (Good and Services Tax), o fato é punido com multa oumesmo prisão de até 3 anos (lei do Imposto sobre Mercadoriase Serviços)9. na Costa rica a retenção também é consideradacrime, de acordo com o art. 92 da lei nacional n. 4.755/71:

Artículo 92.- Fraude a la hacienda Públicael que, por acción u omisión, defraude a la hacienda Pública con elpropósito de obtener, para sí o para un tercero, un beneficio patrimo-nial, evadiendo el pago de tributos, cantidades retenidas o que sehayan debido retener, o ingresos a cuenta de retribuciones en especieu obteniendo indebidamente devoluciones o disfrutando beneficiosfiscales de la misma forma, siempre que la cuantía de la cuota de-fraudada, el importe no ingresado de las retenciones o los ingresos acuenta o de las devoluciones o los beneficios fiscales indebidamenteobtenidos o disfrutados exceda de quinientos salarios base, será cas-tigado con la pena de prisión de cinco a diez años. Para los efectos de lo dispuesto en el párrafo anterior debe enten-derse que:

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(5) omita-se em recolher qualquer imposto cobrado em nome do estado ou em peloestado ou qualquer subdivisão política do estado quando esse recolhimento é exi-gido nos termos do presente capítulo;8 Disponível em: <https://www.tax.ny.gov/bus/st/bank.htm>.9 Good and Services Tax Act

65. Any person who -(a) being a person appointed for the due administration of this Act or any assistantemployed in connection with the assessment and collection of tax -(i) withholds for his own use or otherwise any portion of the amount of tax collected;[…]shall be guilty of an offence and shall be liable on conviction to a fine not exceeding$10,000 or to imprisonment for a term not exceeding 3 years or to both.

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a) el monto de quinientos salarios base se considerará condición ob-jetiva de punibilidad.b) el monto no incluirá los intereses, las multas ni los recargos de ca-rácter sancionador.c) Para determinar la cuantía mencionada, si se trata de tributos, re-tenciones, ingresos a cuenta o devoluciones, periódicos o de decla-ración periódica, se estará a lo defraudado en cada período impositivoo de declaración y, si estos son inferiores a doce meses, el importede lo defraudado se referirá al año natural. en los demás supuestosla cuantía se entenderá referida a cada uno de los distintos conceptospor los que un hecho imponible sea susceptible de liquidación. Se considerará excusa legal absolutoria el hecho de que el sujeto re-pare su incumplimiento, sin que medie requerimiento ni actuación dela Administración Tributaria para obtener la reparación.Para los efectos del párrafo anterior, se entenderá como actuación de laAdministración toda acción realizada con la notificación al sujeto pasivo,conducente a verificar el cumplimiento de las obligaciones tributarias.

na legislação portuguesa (lei n. 15/2001), da mesmaforma, encontra-se tipo penal específico, com redação similar àbrasileira:

Artigo 105.ºAbuso de confiança1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcial-mente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzidanos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é pu-nido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se tam-bém prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bemcomo aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a li-quidar, nos casos em que a lei o preveja. 3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestaçãodeduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregueautonomamente. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legalde entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da corres-pondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e dovalor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5 - nos casos previstos nos números anteriores, quando a entreganão efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de uma cinco anos e de multa de240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.6 - (revogado pela lei n. 64-A/2008, de 31 de Dezembro).

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7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a con-siderar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constarde cada declaração a apresentar à administração tributária.

Por fim, a conduta de apropriação indébita do impostosobre consumo também é prevista como crime na Itália, origeminspiradora de boa parte do ordenamento jurídico brasileiro, comose vê do artigo 10-ter do Decreto legislativo n. 74, de 10 demarço de 2000 (com a redação alterada pelo artigo 8º do Decretolegislativo n. 158, de 24 de setembro de 2015, modificando o pa-tamar vigente para configuração do delito, que até então era deeU € 50.000,00 anuais):

Art. 10-ter Omesso versamento di IVA (30) (31) In vigore dal 22 ottobre20151. e' punito con la reclusione da sei mesi a due anni chiunque nonversa, entro il termine per il versamento dell'acconto relativo al periodod'imposta successivo, l'imposta sul valore aggiunto dovuta in basealla dichiarazione annuale, per un ammontare superiore a euro due-centocinquantamila per ciascun periodo d'imposta.10

Assim, é imperioso destacar que o sancionamento penalpara a retenção do imposto sobre consumo é matéria comum naslegislações penais tributárias mundo afora, justamente pela simi-litude de sua incidência - sobre o consumidor final - e a forma deseu pagamento - tendo por contribuinte responsável pelo recebi-mento, compensação e recolhimento o último ente da cadeia pro-dutiva (de regra o comerciante varejista).

Compreendido tal funcionamento, torna-se possível en-tender a real dimensão da lei n. 8137/1990, em especial do mo-mento histórico de seu surgimento.

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10 Tradução do autor: Art . 10 - Omissão no recolhimento do IVA:1. É punido com pena de reclusão de seis meses a dois anos quem não pagar, dentrodo prazo para o pagamento antecipado relacionado ao período de tributação seguinte,o imposto sobre o valor acrescentado devido de acordo com a declaração anual, desdeque em montante superior a 250.000 € para cada período fiscal.

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O naSCIMentO da leI n. 8.137/1990

A necessária compreensão do tipo penal de apropriaçãode ICMS passa pela integral análise de seus elementos nortea-dores, fazendo-se necessário retroagir à época de sua elabora-ção e aferir, concretamente, a essência da normativa.

no começo da década de 90 (entre 1990-1992), épocade consolidação do regime democrático e de fazer valer, enfim,os preceitos norteadores da nova ordem constitucional (Consti-tuição da república Federativa do brasil de 1988 – CrFb/1988),diversas foram as normativas jurídicas que surgiram com o es-copo de atender reclamos relevantes, em especial atinentes àdeterminada parcela social até então não detentora de deverese longe do alcance do direito penal.

Surgiram, assim, normas protetivas do direito do consu-midor quanto aos abusos dos fornecedores (lei n. 8.078/1990);normas de combate à corrupção (lei n. 8.429/1992); e, por meioda lei n. 8.137/1990 se tentou, de certa forma, atacar as verten-tes coletivas da relação de consumo, de atentados à economianacional e de delitos praticados contra a ordem tributária.

Saindo da terminologia adotada na lei n. 4.729/1965, queem seu artigo 1º trazia delitos de “sonegação fiscal”, o legisladorpós-constituinte inovou, denominando os delitos descritos nos ar-tigos 1º a 3º da lei n. 8.137/1990 de delitos “contra a ordem tri-butária”. Porém, mais do que inovar na nomenclatura do tipopenal, seu histórico legislativo demonstra a extensa preocupaçãodo Congresso nacional e os debates que induziram a formaçãode um tipo penal complexo e norteador do efetivo combate à so-negação fiscal no brasil.

Porém, a lei n. 8.137/1990 não foi a primeira norma re-guladora dos delitos fiscais no período pós-constituinte. Por vianão usual, o então Presidente Fernando Collor editou, em 15 demarço de 1990, a MP n. 156, disciplinando, como “crimes contraa Fazenda Pública”:

Art. 3° Igualmente são crimes contra a Fazenda Pública, puníveis compena de seis meses a dois anos de detenção e multa:[...]

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IV - deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguin-tes ao término do prazo legal ou regulamentar, tributo ou contribuiçãoque tenha retido na fonte;V - deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguin-tes ao término do prazo legal ou regulamentar, o tributo ou contribui-ção recebido de terceiros através de acréscimo ou inclusão no preçode produtos ou serviços e cobrado na fatura, nota fiscal ou documentoassemelhado;

De manifesta inconstitucionalidade pela sua total desco-nexão com os vetores de urgência e emergência, referida medidaprovisória vigorou por apenas 11 dias, sendo declarada nula pelaMP n. 175, de 27 de março de 1990. Conjuntamente com a revo-gação, o Poder executivo encaminhou ao Congresso nacional aMensagem n. 340, acompanhada do Projeto de lei n.4.788/1990, que foi apensada aos Projetos de lei n. 4.820 e4.821/1990, todos versando sobre o mesmo tema (Diário do Con-gresso nacional - DCn - de 29 de março de 1990, p. 2224).

A redação original proposta previa, porém, apesar de re-dação similar à medida provisória revogada, delitos “contra a ad-ministração tributária”, assim estabelecidos:

Art. 2º Constitui, ainda, crime contra a administração tributária:[...]IV - deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguintes aotérmino do prazo fixado, tributo ou contribuição que tenha retido na fonte;V - deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguin-tes ao término do prazo fixado, tributo ou contribuição recebida deterceiros mediante acréscimo ou inclusão no preço de produtos ouserviços e cobrado na fatura, nota fiscal ou documento assemelhado;

Ao projeto de lei do Poder executivo foram apresentadasdiversas emendas, cujas ressalvas são bem delineadas pelo re-lator da versão condensada, que apresentou o substitutivo globale resultou na lei n. 8.137/1990, o então Deputado nelson Jobim(DCn de 16 de maio de 1990, pp. 5013-5016):

[...] Todos sabem de raiz que o bem jurídico penal precisa despontarrestrito. Assim, limitar-se a certas condutas agressivas e a específicamaneiras de lesioná-lo, seja por dano, seja por perigo. O corretoapontamento do bem protegido, ou objeto jurídico penal, orienta olegislador no afeiçoamento dos tipos incriminadores; elucida-Ihes a

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substância; e em conseqüência, ajuda o aplicador, na interpretaçãodo direito, no caso concreto.Melhor, pois, se falar em crimes contra a ordem tributária, no sentidode ordem jurídica pertinente aos tributos. [...]buscou-se no substitutivo, portanto, aperfeiçoar o projeto n. 4.788/90,descrevendo melhor os tipos delitivos; procurando organizar os compor-tamentos ofensivos por meio de categorias jurídicas bem conhecidas.Com os olhos postos no Código Penal, nas leis penais vigentes e pro-jetadas modelou-se a sonegação e a fraude, bem assim a omissãode recolhimento de tributos, sem esquecer do necessário dever deinformação às autoridades fazendárias conhecidas. [...] (grifou-se)

O substitutivo aprovado pela Câmara restou assim ementado,quanto ao delito sob análise (DCn de 16 de maio de 1990, p. 5016):

Art. 2º Constitui crime da mesma natureza:[...]II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribui-ção social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivode obrigação e que deveria fazer entrar nos cofres públicos;

encaminhado ao Senado, o projeto recebeu substitutivocomplementar (DCn de 10 de outubro de 1990, p. 10220), quereunia a versão original e o substitutivo da Câmara, propondo,assim, nova redação a toda a norma, atingindo o tipo penal sobanálise nos seguintes termos:

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária qualquer das seguin-tes ações ou omissões, tendentes a elidir, parcial ou totalmente, ocumprimento de obrigação tributária:[...]§ 2º Constitui crime da mesma natureza:I - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo que seja obrigado areter na fonte;II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo recebido de ter-ceiros, incluso no preço de mercadorias ou serviços, constante de fa-tura, nota fiscal ou documento assemelhado;

retornado o projeto à Câmara dos Deputados, distribuídonovamente ao relator, Deputado nelson Jobim, a Casa mantevea redação original, destacando-se pertinentes observações sobreo porquê do não acolhimento do substitutivo do Senado Federal(DCn de 14 de novembro de 1990, p. 12084):

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retorna do Senado Federal, após o turno constitucional de revisãode feitura das leis, o presente projeto que “define crimes contra aordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dáoutras providências". na Câmara Alta, a matéria mereceu substitutivoque, em linhas gerais, pode assim ser apresentado:- os arts. 1º e 2º foram praticamente reunidos em um só artigo, comligeiras alterações quanto à tipificação; [...]

Desse complexo normativo que resultou na lei n.8.137/1990, é possível extrair desde a motivação que originou aprimeira alteração normativa (MP 156) até a final edição danorma, que sempre existiu com o intuito punitivo da conduta donão recolhimento de tributo cobrado do consumidor final, resul-tando, inclusive, na dicção final do tipo penal, que será melhoranalisado adiante.

anÁlISe dO tIpO penal BraSIleIrO: art. 2º, II, da leIn. 8.137/1990. a deCISÃO dO SuperIOr trIBunal deJuStIça nO reSp. n. 1.543.485-gO e SeuS eventuaISeFeItOS

Verificada toda a base histórica da legislação brasileira, hácomo se compreender, agora, a redação do tipo penal objeto deestudo, o artigo 2º, II, da lei n. 8.137/1990, que assim estabelece:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:[...]II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribui-ção social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivode obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

A primeira grande questão na avaliação conjunta dos ele-mentos integrantes dessa normativa é a compreensão necessá-ria de que tal tipo penal é resultante da consolidação em projetosubstitutivo realizada pelo ex-Deputado e ex-Ministro do Su-premo Tribunal Federal, nelson Jobim, quando da relatoria do Pln. 4.788/1990, cujo texto originário dividia o dispositivo indicadoem duas condutas distintas:

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Art. 3° Igualmente são crimes contra a Fazenda Pública, puníveis compena de seis meses a dois anos de detenção e multa:[...]IV - deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguin-tes ao término do prazo legal ou regulamentar, tributo ou contribuiçãoque tenha retido na fonte;V - deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguin-tes ao término do prazo legal ou regulamentar, o tributo ou contribui-ção recebido de terceiros através de acréscimo ou inclusão no preçode produtos ou serviços e cobrado na fatura, nota fiscal ou documentoassemelhado;

Veja-se que a norma, como consolidada (que resultou naredação vigente da lei n. 8.173/1990), é exatamente a integraçãodos conceitos trazidos em dois incisos do art. 3º projeto originário:o inciso IV, que se referia ao tributo “retido”, e o inciso V, que sereferia ao tributo “recebido” de terceiros e “cobrado na fatura,nota fiscal ou documento assemelhado”.

A fim de integrar a norma, verifica-se que os conceitosforam transladados ao substitutivo que resultou na lei n.8.137/1990, que unificou as condutas no uso das expressões“descontado” ou “cobrado” num único tipo penal.

Portanto, a primeira premissa a ser firmada é que, sim, aapropriação indébita do ICMS representa com exatidão a condutatípica analisada, por expressa literalidade da lei.

Trata-se de crime omissivo - deixar de recolher-, cuja con-sumação ocorre no término do “prazo legal”. Sua incidência sedá sobre qualquer tributo de consumo, na medida em que se re-fere o tipo a tributo ou contribuição social “descontado” ou “co-brado” na qualidade de sujeito passivo da obrigação. A norma ésuficientemente clara na coadunação desse conceito com o con-tribuinte do ICMS, sujeito passivo da obrigação tributária, e quejustamente “cobra” o imposto do adquirente nas demais etapasda cadeia produtiva ou mesmo do consumidor final.

Por isso, bem ressalta Andreas eisele:

O art. 2°, II, da lei n. 8.137/90, descreve a evasão tributária não frau-dulenta (inadimplência) de tributos indiretos ou devidos por agentesde retenção.Trata-se da situação vulgarmente conhecida por “apropriação indébitatributária”.

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essa denominação (que não possui rigor técnico) decorre da irregulardesignação indicada pela legislação que (de forma reiterada) regula-mentou (e ainda regulamenta, em parte) o tema no brasil.realmente, a análise superficial do comportamento que perfectibilizaa inadimplência de tributos indiretos ou devidos por agentes de re-tenção, pode acarretar a identificação de semelhanças entre essa si-tuação fática e a descrita no tipo veiculado pelo art. 168, caput, doCP, que possui a seguinte redação: “apropriar-se de coisa alheiamóvel, de que tem a posse ou a detenção”.Tal identificação decorre do fato de que, nos tributos indiretos (aque-les nos quais o contribuinte transfere sua repercussão financeira paraterceiro), o sujeito passivo da obrigação tributária pode cobrar (ou,eventualmente, receber) de terceiro, a carga econômica correspon-dente ao valor do tributo, motivo pelo qual não suporta (em tese) seucusto (mediante o mecanismo da repercussão).exemplo dessa situação ocorre no ICMS, eis que o contribuinte, aovender uma mercadoria, destaca na nota fiscal o valor correspon-dente ao imposto que integrará o preço que será pago pelo adqui-rente. nessa relação, o comprador é denominado (de formaalegórica) como “contribuinte de fato”, porque pagará ao vendedor ovalor representativo do ICMS contabilmente incluído no preço, em-bora não seja, efetivamente, contribuinte do tributo, pois o único su-jeito passivo da obrigação tributária é o vendedor, denominado(também de forma ilustrativa) como “contribuinte de direito”.Caso o contribuinte (vendedor) receba o preço da mercadoria (noqual se encontra inserido o valor correspondente ao ICMS) pago peloadquirente e não efetue o recolhimento do tributo no prazo legalmenteestabelecido, estaria, em tese, obtendo uma vantagem econômicailícita decorrente do recebimento de um valor que deveria repassaraos cofres públicos e que manteve em seu âmbito de disponibilidade.(eISele, 2002, p. 175)

em adesão à tese sufragada, Pedro roberto Decomaincomplementa, lembrando o histórico do Anteprojeto do CódigoPenal discutido na década de 80:

O mencionado anteprojeto não vingou, mas o atual inciso II do artigo2º da lei n. 8.137/90 abrange qualquer tributo que preencha a condi-ção de haver sido cobrado ou descontado previamente de outrempelo sujeito passivo da obrigação tributária, sendo posteriormente porele omitido o seu pagamento, exceto contribuições sociais previden-ciárias, a respeito das quais dispõe, atualmente, em termos de nãorecolhimento oportuno, o art. 168-A do Código penal, a ser analisadomais adiante. (DeCOMAIn, 2010, p. 357)

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e, mais adiante, ressalta o autor, quanto à incidência dotipo penal no ICMS:

O contribuinte efetivamente repassou ao adquirente da mercadoriatributada o ônus representado pelo ICMS. Cobrou-o, portanto, a ter-ceiro, devendo recolher aos cofres públicos o montante assim apu-rado. Se não o faz, comete o crime examinado.[...]O não pagamento, no vencimento, do ICMS, mesmo daquele inci-dente sobre operações próprias, configura, portanto, o crime previstopelo art. 2º, inciso II, da lei n. 8.137/90.esta conclusão fica ainda mais evidente quando se atenta para a si-tuação da prestação de serviços de comunicação telefônica. As con-cessionárias respectivas, após calcularem o valor do ICMS incidentesobre o preço do serviço prestado, acrescentam o valor do impostoao dos serviços cobrados e o incluem nas faturas que cobram dosusuários do serviço. A falta de pagamento importa em suspensão daprestação dos serviços. O valor do imposto, pois, sem nenhuma dú-vida, é por elas cobrado ao usuário dos serviços de comunicação.(DeCOMAIn, 2010, p. 361 e 370-371)

Também compreendendo a ocorrência do crime em questãoquanto a apropriação indébita do ICMS, william wanderley Jorgereitera:

exemplo de conduta típica seria, portanto, o Imposto sobre a Circu-lação de Mercadorias e Serviços, no qual o valor do imposto é in-cluído no preço do produto pago pelo consumidor final, mas tem queser repassado pelo comerciante ou prestador de serviço, que é o con-tribuinte substituto, à Fazenda estadual, e isso não é feito. (JOrGe,2007, p. 427)

Finalizando essa questão, Guilherme nucci esclarece:

A particularidade deste tipo penal é justamente o prévio desconto oucobrança de terceiro do mencionado valor, apropriando-se do quenão lhe pertence. ex.: o comerciante (sujeito passivo da obrigação,por imposição legal) cobra do comprador o ICMS referente à merca-doria vendida, mas não repassa a quantia ao tesouro.

A configuração delitiva ocorre, portanto, nas operações in-cidentes na cadeia produtiva até a venda ao consumidor final, peloelemento típico “cobrado”. A mesma hipótese se dá, destaca-se,

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no que se refere ao ICMS devido pela substituição tributária, poisse trata de imposto cobrado do adquirente para repasse ao Fisco.

nesse regime, o contribuinte acresce, para além do ICMSda operação própria de circulação, ou seja, do que incidiria coti-dianamente na sua operação de circulação de mercadoria, re-passado para o adquirente, o valor referente às etapas futurasda circulação, antecipando o ICMS incidente até a venda para oconsumidor final.

Isso se dá - com autorização constitucional, destaca-se,decorrente da eC n. 3/1993 - a fim de facilitar os controles fazen-dários, na medida em que seria inviável ao Fisco fiscalizar, porexemplo, milhares de estabelecimentos varejistas, optando-se,então, pela imposição do ônus de recebimento e recolhimentodo tributo ao distribuidor.

Por sua vez, necessário dizer que o crime pode ocorrer,da mesma forma, no elemento normativo “descontado”, quandoesse valor é recebido na qualidade de sujeito passivo da obriga-ção, na hipótese, exemplificativamente, das retenções previstasem lei, como no Imposto de renda retido na Fonte, daquele de-vido por servidores públicos, em que o valor é previamente des-contado pelo gestor do ente e posteriormente deveria (deveria,pois por expressa previsão constitucional esse imposto acabapor pertencer ao próprio ente responsável) ser repassado ao su-jeito ativo do tributo (a União).

Ao arremate, esclarece luiz régis Prado sobre referidoselementos normativos:

O termo desconto significa o “procedimento contábil mediante o qualo responsável tributário, que possui o dever instrumental de arrecadar(formalmente) o valor correspondente ao tributo devido pelo contri-buinte, abate uma parcela da quantia paga a este, por ocasião da en-trega de uma remuneração que configure um fato imponível tributário”.essa é uma situação fático-jurídica em que o tributo deve ser descon-tado e o responsável pela obrigação tem o dever de abater do valor apagar o quantum correspondente ao tributo. A reprovabilidade estáem que o responsável, ao não recolher a importância devida, agecomo se tivesse se apropriado do que não é seu, mas do estado.A cobrança consiste na exigência feita pelo credor ao devedor parao cumprimento da prestação que constitui o objeto da relação jurí-dica de caráter obrigacional estabelecida entre eles. É uma obrigação

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tributária acessória imposta ao contribuinte de tributos indiretos(aqueles cuja carga econômica o contribuinte pode repassar a tercei-ros, v.g., ICMS) e que deverá ser cumprida quando da realização dofato gerador, consistindo “no procedimento formal de destaque (emrelação ao preço que configura o valor global da operação), na notafiscal, do valor correspondente ao tributo”. (PrADO, 2004, p. 440)

Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, em recente de-cisão de sua sexta turma, definiu que a conduta de não recolhero ICMS ao Fisco seria inadimplemento tributário, fato atípico, emacórdão ementado nos seguintes termos:

reCUrSO eSPeCIAl. CrIMe COnTrA A OrDeM TrIbUTÁrIA.ArTIGO 2º, InCISO II, DA leI 8.137/1990. nÃO reCOlhIMenTODe ICMS PróPrIO. MerO InADIMPleMenTO. ATIPICIDADe DACOnDUTA. 1. O delito do artigo 2º, inciso II da lei n. 8.137/90 exigeque o sujeito passivo desconte ou cobre valores de terceiro e deixede recolher o tributo aos cofres públicos. 2. O comerciante que vendemercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente, nãorealiza o pagamento do tributo não deixa de repassar ao Fisco valorcobrado ou descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se ina-dimplente de obrigação tributária própria. 3. recurso desprovido. (re-curso especial n. 1.543.485/GO (2015/0170772-0), 6ª Turma do STJ,rel. Maria Thereza de Assis Moura. j. 05.04.2016, DJe 15.04.2016).

Do corpo do aresto se extrai a justificativa para essa in-terpretação:

Uma interpretação sistemática entre direito penal e direito tributário,de acordo com os fundamentos anteriormente expostos, leva à con-clusão de que o tipo penal está a se referir justamente à figura da res-ponsabilidade tributária, forma de sujeição passiva indireta em que osujeito passivo tributário se torna legalmente responsável pelo reco-lhimento de tributo de outrem.não é o caso do ICMS próprio, em que a sujeição passiva tributáriaé direta, ou seja, o contribuinte é o sujeito passivo da obrigação tri-butária, não havendo que se falar em responsável tributário ou emsujeição passiva indireta.

não se concorda, porém, com tal análise, pois não hácomo se distinguir, no tipo penal indicado, o fato de o ICMS sercobrado do consumidor final ou por via da substituição tributária.

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reitera-se: é necessário se compreender a origem histó-rica do tipo penal e sua relevância em se tratando de tributo inci-dente sobre o consumo. há evidente equívoco terminológicoquando se falar em impossibilidade de incidência do tipo penalsobre o “ICMS próprio”, pois tal categoria não possui a conotaçãofática que lhe é dada.

Como dito alhures, o ICMS é imposto sobre o consumo esua tributação se dá sobre a despesa (gasto) do consumidor, de-finindo a lei, na sujeição passiva, o responsável tributário pelaefetivação do fato gerador como o fornecedor (contribuinte legal).não há que se falar, porém, na incidência do imposto sobre oganho do fornecedor, pois em tal hipótese haveria bitributaçãodo ICMS com o Imposto de renda, já que seus fatos geradoresseriam similares. O que há, aqui, é a definição tributária de con-tribuinte – na acepção completa da sujeição passiva, ou seja,quem figurará na relação jurídico-tributária com o estado, titulardo tributo -, sem afastar, porém, a essência do imposto, como in-cidente sobre a relação de consumo, que se dá pela presençado destinatário final.

Assim, o ICMS próprio, não obstante comumente se refiraa doutrina ao ICMS devido pela operação de venda pelo comer-ciante é, em verdade, aquele pago pelo comerciante ao seu for-necedor, cujo ônus é daquele, porém o efetivo contribuinte (quedeverá apurar, cobrar e recolher o imposto) é este último, não ocomerciante. Tal ônus, pelo sistema de compensação, acaba porser transferido ao final da cadeia produtiva, ou seja, ao ICMS pró-prio do consumidor final, que arca, de fato, com o imposto emsua integralidade (não obstante o comerciante, na última etapada cadeia negocial, possa reter para si o valor que tenha pagoreferente ao tributo).

não fosse assim, qual seria o sentido da expressão “co-brado” no referido tipo penal? não se exige, para configuração dotipo, que haja relação direta do titular do tributo (estado) para como consumidor, pois o tipo é claro em permitir sua incidência paraa hipótese de ser o tributo cobrado de alguém. Assim, é evidenteque essa hipótese se refere, justamente, aos impostos indiretos,pouco importando se devido por substituição tributária ou por re-lação direta com o Fisco.

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nessa questão, imperioso se destacar que a substituiçãotributária para frente ressurgiu no ordenamento jurídico-constitu-cional apenas em 1993, com o advento da eC n. 3, que inseriu o§7º ao artigo 150 da Constituição11:

§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária acondição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição,cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediatae preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fatogerador presumido.

não haveria qualquer razão, assim, para que se editasse,em 1990, o tipo penal indicado, senão, justamente, para atingir otodo. e não se diga que o argumento é inválido porque a normatutelava tributos retidos (contribuição para InSS ou Ir retido nafonte), porque tais tributos estariam protegidos pela elementartípica “descontado”, e não pelo núcleo “cobrado”.

Assim, por essa corrente, pergunta-se: para que situaçãoseria aplicável, então, entre 1990 e 1993 (época em que nãohavia substituição tributária), o crime em comento, no elementonormativo “cobrado”? evidente, portanto, que o objeto da prote-ção legal sempre foi a tributação indireta, em especial os impos-tos sobre consumo, do qual dependem, em grande parte, osrecursos para subsistência de dois dos entes federados: os es-tados (ICMS) e os municípios (ICMS e ISS).

não há, portanto, conclusão diversa: adotar a tese de quea adequação típica dessa conduta somente se dá no ICMS de-vido por substituição tributária é negar qualquer existência do tipopenal indicado, na sua modalidade “cobrado”, entre os anos devigência da lei penal tributária e o surgimento da eC n. 3/1993,definindo tal expressão como inócua e desprovida de qualquersentido quando da elaboração da norma, em evidente afronta àmais basilar regra de hermenêutica jurídica: a lei não contém palavrasinúteis (verba cum effectu, sunt accipienda). e, pelo que já visto até

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11 Diz-se ressurgiu porque inobstante existisse previsão constitucional sobre a possibili-dade de regime da substituição tributária (art. 155, XII, b), adere-se a corrente que entendeque apenas a implementação do citado dispositivo teria permitido, na esfera constitucional,a tributação de fatos jurídicos hipotéticos, que se consumarão apenas no futuro.

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aqui, não parece ter sido esse o caso da norma, face o zelo de seurelator, o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, nelson Jobim.

Pode-se acrescer, ainda, argumentos de natureza tribu-tária, que demonstram a correção dessa interpretação, e que sãoignorados pelo estudo de roque Carraza, citado no acórdão in-dicado. Os valores recebidos pelo ICMS do adquirente de mer-cadoria não pertencem ao contribuinte, tanto que legalmenteexcluídos da base de cálculo do imposto de renda por lucro real,como determina o artigo 12, §4º do Decreto-lei n. 1.598/77(norma geral do IrPJ):

§ 4º na receita bruta não se incluem os tributos não cumulativos co-brados, destacadamente, do comprador ou contratante pelo vende-dor dos bens ou pelo prestador dos serviços na condição de merodepositário.

Diferentemente dos demais tributos, portanto, a próprialegislação federal demonstra sua não inclusão como renda, ouseja, que seu recebimento se dá na condição de mero depositá-rio, hipótese que se ajusta à situação prevista no artigo 2º, II, dalei n. 8.137/1990.

Da mesma forma, é pacífico no Superior Tribunal de Jus-tiça que o ICMS é pago pelo consumidor final e, portanto, cobradopelo fornecedor, tanto que este possui legitimidade para a resti-tuição de indébito ao Fisco (resp n. 1.299.303/SC), o que se evi-dencia da clara redação do artigo 166 do CTn, inclusive. Ambasas situações apontam, assim, para a mesma direção: o vendedoré mero detentor do ICMS pago pelo adquirente, figurando, paraefeitos tributários, como sujeito passivo da obrigação.

Destarte, resumidamente, pode-se bem delimitar a inci-dência do tipo penal:

a) deixar de recolher: não pagar;b) no prazo legal: prazo estabelecido pela lei tributária local;c) valor de tributo ou de contribuição social: no caso, im-

posto sobre o consumo, ICMS;d) descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo

de obrigação: o imposto é cobrado do consumidor pelo fornecedor,tanto que destacado em documento fiscal, agindo como contri-buinte na forma da lei; e

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e) que deveria recolher aos cofres públicos: existência daobrigação legal de recolhimento do tributo ao estado.

Assim, a única hipótese de sua não aplicação ao casosob comento seria apontar que não existiu tributo cobrado doconsumidor final, ou seja, que existiu venda em montante igualou inferior ao preço de aquisição da mercadoria. nesse caso,porém, questão se resolve de forma simples: não haverá tributoa se recolher e, portanto, a conduta será atípica.

Deve-se ressaltar, porém, que a Quinta Turma do Supe-rior Tribunal de Justiça, também com atribuição criminal, tem per-filado entendimento divergente do acórdão referido da SextaTurma, na esteira da tese defendida por este breve ensaio, comose verifica, exemplificativamente, dos julgados nos recursos emhabeas Corpus ns. 42.923/SC (rel. Min. Félix Fischer) e44.466/SC (rel. Min. Jorge Mussi).

Obviamente, o Superior Tribunal de Justiça, que tem entreseus fundamentos de existência a uniformização da jurisprudên-cia nacional (art. 105, III, “c” da CrFb/1988), deverá apreciar atese pela 3ª Sessão da Corte, a fim de dirimir os entendimentosdivergentes na matéria em suas turmas, eventualmente em inci-dente de uniformização da jurisprudência (art. 12, IX, do regi-mento Interno no STJ), o que atrai ainda mais a importância dadiscussão acadêmica da conduta e de seus reflexos futuros.

nesse diapasão, deve-se destacar que o Supremo Tribu-nal Federal já foi instado, por vias reflexas, a analisar a correla-ção entre o crime descrito no artigo 2º, inciso II, da lei n.8.137/1990, e a conduta de apropriação do ICMS. no corpo doacórdão (p. 4-5) do julgamento da extensão da extradição n.1.13912, de relatoria da Ministra rosa weber, restou delineadatal correspondência:

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12 eXTrADIÇÃO. PeDIDO De eXTenSÃO. CrIMeS De AbUSO De COnFIAnÇAFISCAl e De AbUSO De COnFIAnÇA COnTrA A SeGUrAnÇA SOCIAl. COn-COrDÂnCIA PelO DeMAnDADO. COnTrOle DA leGAlIDADe PelO SU-PreMO TrIbUnAl FeDerAl. DUPlA InCrIMInAÇÃO. AUSÊnCIA DePreSCrIÇÃO. 1. O Supremo Tribunal Federal admite a apresentação de pedidos deextensão em extradições, condicionando o seu deferimento ao devido processo legal.2. Concordância expressa do demandado, assistido por defensor, no País requerentecom o pedido de extensão da extradição que tornam desnecessária nova citação e in-terrogatório relativamente ao pedido de extensão, remanescendo ao Supremo Tribunal

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Ainda segundo o pedido de extensão de extradição, o demandado,na condição de dirigente da empresa, teria retido, liquidado, mas nãoentregue ao erário Português o tributo IVA (Imposto sobre Valor Agre-gado) nos meses de abril e de setembro a dezembro de 2001 e aindano mês de dezembro de 2002, no montante total de 60.746 euros (fl.439). Como se verifica na manifestação do Ministério Público Portu-guês e na decisão do Tribunal de bragança (fls. 456), foi reconhecida,posteriormente, quanto ao crime relativo à falta do recolhimento doIVA, a extinção da punibilidade, salvo em relação às prestações de-vidas em outubro e novembro de 2001. A extinção da punibilidadedecorre de preceito legal que descriminaliza “as condutas relativas ànão entrega das prestações tributárias de valor igual ou inferior a7.500,00 euros” (fl. 456). [...]Como se depreende da descrição fática e dos tipos penais, os crimesencontram correspondentes no art. 2º, II, da lei n. 8.137/1990, quantoà falta de recolhimento do tributo, e no art. 168-A do Código Penal,quanto à falta de recolhimento da contribuição previdenciária [...].

referido posicionamento agasalha a tese em questão,demonstrando o reconhecimento expresso da Suprema Cortecom a tipificação da conduta de omissão de recolhimento doICMS cobrado de terceiro.

O mesmo posicionamento já está pacífico no Tribunal deJustiça catarinense que, diga-se, é de vanguarda no combateaos crimes contra a ordem tributária, vislumbrando razões deordem econômica e social que norteiam a importância do objetojurídico tutelado e induzem à tipicidade da conduta. Isso porqueos reflexos penais do delito sob análise possuem profundas con-sequências econômicas que precisam ser ressaltadas como ele-mento adicional da exegese típica.

Para que se tenha noção do impacto econômico, emSanta Catarina, de janeiro a maio de 2016, segundo dados da Se-cretaria de estado da Fazenda, foram registradas 4722 inscriçõesem dívida ativa com valor total de r$ 393.846.350,79, em razãoda apropriação indébita do ICMS declarado. Por sua vez, com

Federal o controle da legalidade. 3. Crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso deconfiança contra a Segurança Social, previstos nos artigos 105, nº 1, e artigo 107, nº 1,da lei Portuguesa n. 15/2001, que correspondem, respectivamente, aos crimes do art.2º, II, da lei n. 8.137/1990, e do art. 168-A do Código Penal, da legislação brasileira. 4.Prescrição inocorrente pela legislação portuguesa ou brasileira. 5. Pedido de extensãodeferido. (extensão de extradição n. 1.139, república Portuguesa, julgado em 18 dedezembro de 2012, Primeira Turma do STF, relatora Ministra rosa weber).

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relação a notificações fiscais diversas (incluídas fraudes fiscaise condutas que eventualmente não sejam tipificadas como crime,como descumprimento de obrigações acessórias apenadas commulta administrativa), foram lançados, no mesmo período, r$202.291.526,24, em 1017 autos de infração.

essa migração das condutas de fraude fiscal para condu-tas de omissão de recolhimento tem sido uma premente no es-tado de Santa Catarina, seja por conta da persecução penal quetem sido desenvolvida há mais de década quanto, principal-mente, pela deficiência legislativa no apenamento da conduta(pena máxima de 2 anos), que invariavelmente leva os feitos àprescrição.

não são raros os casos em que empresas são constituí-das e não recolhem o ICMS desde sua constituição, esperandoa ação fiscal para sustentar suas dificuldades econômicas, pre-judicando todo o cenário econômico, na medida em que a sone-gação fiscal afeta não apenas o ente arrecadador do tributo, mastambém todas as demais empresas concorrentes que quitam re-gularmente seus impostos e, por conta disso, sofrem concorrên-cia desleal da empresa sonegadora (vide item 1).

nesses casos, empresas deixam um passivo tributário adescoberto significativo, e quando executadas no Juízo fiscal,não possuem bens a garantir o débito, que não pode ser direcio-nado aos seus sócios pois exerciam a atividade econômica comresponsabilidade limitida, apenas, às cotas do capital social.

Criam-se passivos tributários intermináveis (em SC es-tima-se a dívida ativa em 10 bilhões de reais) e que não podemser objeto de cobrança ou qualquer espécie de sanção.

em muitos desses casos, o único delito passível de serdescoberto pela via ordinária é a apropriação indébita do ICMS.Porém, a partir dessa conduta, com o exercício da investigaçãocriminal, é possível aferir a constituição de empresa de fachada,ou mesmo a dilapidação patrimonial empresarial com a aquisiçãode bens por meio de interpostas pessoas, em modalidade típicado crime de lavagem de capitais (lei n. 9.613/1998), tudo issopara ocultar o patrimônio e esvaziar a eficácia da cobrança fiscal.

nesses casos, a intervenção do Ministério Público no pro-cesso criminal tem permitido a importante recuperação de ativos,

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e a punição, a par de muitas vezes prescrita pelo delito descritono artigo 2º, II, da lei n. 8.137/1990, é possível de ser impingidapelo art. 1º da lei n. 9.613/1998. em caso diverso, porém, des-considerado o caráter criminoso da conduta original, nada maispoderá ser feito (ausência do crime antecedente à lavagem), re-sultando em evidente proteção penal deficiente de bem jurídicorelevante, a ordem tributária.

A tese imperativa de tutela de bens jurídicos relevantesjá foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (hC102.087/MG, rel. Min. Celso de Mello, e re 418.376-MS, no votodo Min. Gilmar Mendes), devendo se destacar que essa ponde-ração entre valores relevantes não se aplica apenas ao legisla-dor, mas a todos os envolvidos no processo de integração danorma, devendo ser sempre realizada pelo próprio intérprete afim de dar à norma sua máxima eficácia e realizar o necessárioequilíbrio, no direito penal, entre o interesse individual (limitaçãode intervenção do estado através do direito punitivo) e o inte-resse coletivo (necessidade de proteção do bem jurídico).

esse prejuízo econômico, decorrente do não reconheci-mento da conduta, é elemento importante ao intérprete, que deveconsiderar a extensão dos efeitos de determinada exegese e a even-tual falta de proteção a bem juridicamente relevante dela resultante.

Outra questão econômica e que pode resultar dessavisão é a possível transformação dos estados em agência de fo-mento empresarial. O Supremo Tribunal Federal vem definindo,como limite à multa moratória, o patamar de 20% do imposto de-vido (Agravo regimental em Agravo de Instrumento n.727.872/rS), patamar este idêntico ao fixado por lei em SantaCatarina, como multa aplicável a essa infração na seara tributária(art. 53 da lei estadual n. 10.297/1996).

Considerando que a grande maioria das legislações tri-butárias permitem o parcelamento do saldo devedor dos tributosem 5 anos (60 meses), a juros médios de 14,15% ao ano(SelIC), tem-se um custo mensal médio do “inadimplemento” tri-butário em 1,51%. Obviamente, qualquer empresa, ao invés debuscar financiamento bancário - com taxas muito mais elevadase burocracia de crédito-, terá como primeira alternativa deixar derecolher o ICMS, afetando diretamente estados e municípios e

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se apropriando, reitera-se, de recursos que não lhe pertencem,incentivados pela descriminalização da conduta. e isso não sedará apenas por dificuldades econômicas vivenciadas, mas paraformação de capital empresarial, investimentos, ou mesmo aqui-sição de bens pessoais, situação cotidianamente encontrada nocombate a essa espécie de delito.

Tais subsídios de natureza econômica, obviamente, nãojustificam, de per si, a responsabilização penal pelo delito estu-dado, porém, reforçam o núcleo protetivo desse tipo penal, ser-vindo de base à adequada compreensão da importância do bemjurídico tutelado.

Com base nessas premissas, portanto, pode-se afirmarque, por todos os aspectos envolvidos, desde a origem da normaaté os vetores que devem nortear sua interpretação, o não reco-lhimento do ICMS cobrado pelo vendedor ao adquirente de seusserviços e mercadorias configura o delito descrito no art. 2º, II,da lei n. 8.137/1990.

COnSIderaçÕeS FInaIS

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao decidiro recurso especial n. 1.543.485/GO, posicionando-se pela ati-picidade da conduta de não recolhimento do ICMS cobrado doconsumidor final, sufragando entendimento diverso do adotadopela Quinta Turma da Corte em inúmeros precedentes, deixoude considerar diversas premissas que circundam o tipo penaldescrito no art. 2º, II, da lei n. 8.137/1990.

O ICMS, como tributo incidente sobre o consumo, temseu ônus imposto ao consumidor final, verdadeiro destinatário dotributo, sendo delimitado o vendedor como contribuinte de direitopor razões de política tributária. essa incidência resta clara tantopela definição globalmente considerada dos impostos sobre oconsumo e seu efetivo destinatário - o consumidor -, como pelaimpossibilidade de bitributação sobre a renda do vendedor.

A legislação tributário-penal brasileira se assemelha à es-trangeira, sendo uniforme em diversos países o reconhecimento

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penal da conduta em questão, principalmente pela importância queos impostos sobre consumo adquiriram na economia globalizada.

na exegese histórica, através da análise do processo le-gislativo que culminou no advento da lei n. 8.137/1990, ressoaevidente o intuito do legislador na inclusão dessa conduta no tipopenal analisado, que resultou na unificação das condutas descri-tas em dois incisos constantes do projeto de lei originário doPoder executivo (Pl n. 4.788/1990, art. 2º, inc. IV e V).

Da mesma forma, numa interpretação literal, não há comose excluir do elemento normativo “cobrado”, incluso no tipo penaldo art. 2º, II, da lei n. 8.137/1990, a exegese do imposto cobradodo adquirente pelo vendedor, aplicando-o unicamente à substi-tuição tributária para frente, pois o conceito penal deve consideraro sentido sistemático da expressão, abrangendo conceitos tribu-tários e econômicos e sem se afastar do objeto da proteção penal– o sistema da arrecadação tributária.

Ainda, é importante ressaltar que o Supremo Tribunal Fe-deral, no julgamento da extensão da extradição n. 1.139, extra-ditou estrangeiro por reconhecer a tipicidade da conduta de nãorecolhimento do IVA como análoga a do crime descrito no artigo2º, II, da lei n. 8.137/1990.

Por fim, deve-se atentar que a negativa de incidência dotipo penal para essa espécie de conduta irá resultar em proteçãodeficiente ao núcleo base do sistema tributário estadual, incenti-vando-se a sonegação fiscal por meio da declaração de fatos ge-radores sem o recolhimento de tributos, resultando em evidenteconcorrência desleal e permitindo o fomento da atividade empre-sarial ou mesmo a aquisição de bens individuais com o uso dosrecursos públicos, em evidente prejuízo aos serviços coletivosque deveriam ser custeados por esses valores.

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Pricila Curcino Ribeiro dos Santos*

GESTÃO DE PESSOAS POR COMPETÊNCIAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

MANAGEMENT SKILLS TO PEOPLEIN PUBLIC ADMINISTRATION

GESTIÓN DE PERSONAS Y HABILIDADES PARA LA GERENCIA PÚBLICA

Resumo:

O modelo de gestão de pessoas por competências tem por foco o

desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes indis-

pensáveis ao desempenho das atribuições dos servidores com o

fim de alcançar os resultados institucionais. Ao colocar em prática

essa modalidade de gestão é fundamental que, primeiramente,

sejam detectadas as competências técnicas e humanas do quadro

de colaboradores da organização, para só depois dessa etapa,

fazer um mapeamento das competências essenciais ao órgão e

integrá-las às de que dispõem seus agentes. Para impulsionar

essas modificações, os gestores devem utilizar técnicas de coa-

ching a fim de promover as mudanças de comportamento neces-

sárias a esse processo transformador.

Abstract:

The personnel management model for skills is to focus on developing

knowledge, skills and attitudes necessary to carry out the tasks of ser-

vers in order to achieve institutional results. By putting in place this

type of management is vital that, first, the technical and human skills

of the organization's workforce are detected, and only after this step,

to map the competences essential to body and integrate them into

their disposal their agents. To drive these changes, managers should

* Especializada em Gestão Estratégica de Pessoas pela Universidade Estácio deSá e em Docência do Ensino Superior pela Universidade Católica Dom Bosco-MT.Especialista em Gestão Pública pela FABEC-GO e graduada em Direito pela PUCGoiás. Servidora do MP-GO.

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use coaching techniques to promote behavioral changes necessary

to this transformer process.

Resumen:

El modelo de gestión de personal para las habilidades es centrarse

en el desarrollo de conocimientos, habilidades y actitudes necesarias

para llevar a cabo las tareas de los servidores con el fin de lograr re-

sultados institucionales . Al poner en marcha este tipo de gestión es

fundamental que, en primer lugar, se detectan las capacidades técni-

cas y humanas de la fuerza de trabajo de la organización, y sólo des-

pués de este paso, para organizar las competencias esenciales para

el cuerpo y integrarlas en sus agentes de eliminación. Para impulsar

estos cambios, los gerentes deben utilizar técnicas de entrenamiento

para promover cambios de comportamiento necesarios para este pro-

ceso transformador.

Palavras-chave:

Administração de recursos humanos, carreira, coaching, compe-

tências, gestão pública.

Keywords:

Human resources management, career, coaching, skills, public

administration.

Palabras clave:

Gestión de recursos humanos, carrera, entrenamiento, habilidades,

gestión pública.

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INTRODUÇÃO No decorrer dos anos, diversas mudanças ocorreram a fimde propiciar melhorias na vida pessoal e profissional dos indivíduos.De igual modo, as instituições privadas e públicas sofreram influên-cia das transformações impostas pelo mundo globalizado. Clima ecultura organizacionais, de igual modo, tiveram adequações parase adaptarem às novas necessidades. Nesse contexto, o setor depessoal dessas organizações passaram a enfatizar e dar especialatenção às características técnicas e comportamentais dos cola-boradores, adotando, desde então, o modelo de gestão de pessoaspor competências. Mesmo detendo o conhecimento teórico a respeito dotema, a prática mostra que muitas organizações sequer evoluíramnesse aspecto, seja pelo desconhecimento do assunto, ou atémesmo pela inadequação das ferramentas corretas a serem utili-zadas nesse processo de transformação de pessoas. Nesse ínte-rim, o coaching se apresenta como uma técnica dedesenvolvimento pessoal e impulsionadora de resultados efetivos. O problema deste trabalho centra-se no modo pelo qual ocoaching pode aprimorar as habilidades laborais dos servidores pú-blicos, com o intuito de atender as necessidades da organização ede motivação desses profissionais. A implementação das ferramen-tas dessa metodologia possibilita a esses servidores melhor treina-mento, orientação, gestão de carreiras e liderança, a fim de quesejam exploradas suas competências e desenvolvidas habilidadesde modo contínuo e técnico, devolvendo à Administração Pública eaos cidadãos a prestação de um serviço realizado com excelência. Esta pesquisa pretende apontar os benefícios aos órgãospúblicos em aplicar o modelo de gestão de pessoas por compe-tências, verificar os desafios dessas instituições ao implantar essemodelo de gestão, identificar as ferramentas do coaching a seremutilizadas na gestão de pessoas por competências em instituiçõespúblicas e mostrar como as ferramentas de aplicação do coachingpodem ser utilizadas pelos gestores públicos. A nova gestão pública está enfrentando constantementemudanças e transformações que não mais se sustentam com o mo-delo burocrático. Diante disso, surgiu a necessidade de implantar

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um novo modo de gerir e desenvolver pessoas. O modelo de gestãopor competências visa reconhecer, formar e maximizar conhecimen-tos, habilidades e atitudes, a fim de agregar valor à organização eao indivíduo. E para potencializar o alcance desses objetivos, é im-prescindível que se utilizem as técnicas de coaching. O presente artigo foi dividido em cinco seções. A seção 2trata do tema gestão de pessoas mostrando sua evolução no Brasile sua utilização como estratégia organizacional. A seção 3 apre-senta a gestão por competências, tratando das competências or-ganizacionais e humanas, mapeamento de competências e seuconsequente sistema de gestão. A seção 4 traz à baila a aplicaçãodo coaching na gestão de pessoas, a importância da motivação eda liderança nesse processo, o uso do coaching como mudança,em uma gestão humanizada e como ferramenta do setor de gestãode pessoal. Por fim, a seção 5 encerra o artigo com as conclusõesda pesquisa.

GESTÃO DE PESSOAS

Evolução da área de gestão de pessoas no Brasil

A primeira denominação da área de recursos humanosno Brasil, a partir de 1930, foi chamada de ‘Seção de Pessoal’pelas empresas do setor industrial. Tal seção era responsável porburocratizar os aspectos jurídicos legais da relação empregatícia,tendo como principal atividade o controle do trabalhador, comdestaque à protocolização de documentos, legislação, arquivos,remuneração e demais atividades inerentes a essa área. Até adécada de 1950, a incumbência do setor de recursos humanosse reduziu às questões legais e contábeis. No final da década de 1950, o Governo JK permitiu aabertura do capital estrangeiro e, com a consequente instalaçãode empresas de capital multinacional, a área de recursos huma-nos sofreu modificações instantaneamente. As práticas de recur-sos humanos e de gestão administrativa tornaram-se maisorganizadas e formalizadas que as existentes até então. Assim,

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sob forte influência do molde de gestão norte-americano, foi via-bilizada uma grande estruturação na área de RH com o desen-volvimento de práticas e instrumentos gerenciais e a utilização deprincípios de organização, planejamento e controle de processos. Com a instalação do regime de exceção em 1964,

a modernização tecnológica e administrativa de certas áreas-chavedo aparelho institucional permitiu ampliar a esfera de atuação dopoder federal, principalmente no concernente ao planejamento e con-trole, visando viabilizar os projetos de crescimento dos governos mi-litares (TREFF, 2016, p. 9).

Nos anos de 1970 e 1980, a classe trabalhadora sofreuviolenta repressão política direcionada às organizações sindicaisem face de impedimentos direcionados aos trabalhadores. Deum lado, quanto à articulação e mobilização dos trabalhadoresna defesa de seus interesses; de outro, quanto à área de recur-sos humanos das empresas na capacitação gerencial e técnicadas relações de trabalho. O aumento do nível da educação formal, o grau de infor-mação do trabalhador e a adoção de novas tecnologias contri-buíram para alterar o cenário vigente na década de 1990,propiciando inúmeras mudanças no contexto das organizaçõesempresariais, fazendo com que empresas e gestores alterassemuma série de paradigmas e práticas organizacionais. Os traba-lhadores passaram a exigir novos modelos de gestão, e, ainda,se organizaram com o fito de obterem melhores condições detrabalho, melhor remuneração, perspectiva de carreira, etc. Nesse contexto, o Brasil passou a adotar políticas geren-ciais da esfera privada na gestão pública, tendência esta já ob-servada internacionalmente desde o final dos anos 1980. Comobem explanado por Ruas (2001 apud TREFF, 2016, p. 11), “alémde retardatárias na mudança, as empresas brasileiras viram-sediante de um novo contexto de competição global”. No ano de 2006, por meio do Decreto n. 5.707, de 23 defevereiro de 2006, foi instituído no Brasil a política e as diretrizespara o desenvolvimento de pessoal, voltadas às organizações daadministração pública federal direta, autárquica e fundacional. Essanova política de capacitação e de desenvolvimento de pessoas tem

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por finalidade a adequação das competências de cada servidoraos objetivos da instituição que serve. A partir de então, o modelo de administração burocráticaperdeu força por não ser mais suficiente para atender as novasdemandas sociais, além de conter padrões de rigidez formal.Assim, surgiu a administração pública gerencial que trouxe con-sigo descentralização e flexibilização administrativa e novas prá-xis gerenciais, destacando-se dentre estas, a metodologia dagestão de pessoas por competências.

GESTÃO POR COMPETÊNCIAS NAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS

Competência

O termo competência apresenta diversos significados, adepender do contexto empregado. No final da Idade Média, per-tencia apenas ao vocabulário jurídico. Referia-se à faculdade atri-buída a alguém ou a alguma instituição para apreciar e julgardeterminadas questões. Mais tarde, o vocábulo também passoua designar reconhecimento social sobre a capacidade de umapessoa pronunciar-se a respeito de determinado assunto. No início do século passado, a palavra competência in-tegrou-se à linguagem organizacional, sendo utilizada para qua-lificar a pessoa capaz de desempenhar eficientementedeterminado papel (CARBONE et al., 2009). A constante utiliza-ção do termo competência no campo da gestão organizacionalpermitiu que ele fosse empregado de diversas maneiras. Desde então, estudiosos e teóricos procuraram conceituarcompetência e sua aplicação no âmbito empresarial, sem, con-tudo, ao final, entrarem em consenso. Ferreira (2015, p. 20) apre-senta um conceito que, aliado à prática, mostra-se bem coerente:

Podemos dizer que competência é a capacidade de mobilizar um con-junto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.)para solucionar adequadamente uma série de problemas. Reflete osconhecimentos, as habilidades e as atitudes que precisam ser colo-cados em prática para se atingir um determinado objetivo.

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Depreende-se dessa definição três importantes expres-sões: conhecimento, habilidade e atitude. A primeira refere-se àbagagem de ideias, conceitos e informações que uma pessoadetém em sua memória, os quais impactam sobre seus compor-tamentos e julgamentos. A habilidade é a aplicação do conheci-mento em uma situação concreta, podendo ser intelectual, motoraou manipulativa. Por fim, a atitude está ligada a sentimentos oupredisposições orientadores da conduta em relação aos outros,a trabalhos e a situações. São aspectos sociais e afetivos. As competências são classificadas por diversos autoresem dois vértices: as organizacionais ou técnicas e as humanasou comportamentais.

Competências organizacionais (técnicas)

É todo conhecimento que o profissional precisa saberpara desempenhar suas atribuições, como, por exemplo, ferra-mentas, idiomas, termos técnicos, sistemas de computação,entre outros. Podem ser subdivididas em competências básicase essenciais. As primeiras “representam as condições necessárias,mas não suficientes, para que uma empresa possa alcançar li-derança e diferenciação no mercado. São importantes mas nãorepresentam um diferencial competitivo” (LEME, 2015, p. 32).Essas competências variam de acordo com o setor de atuação ese constituem em pré-requisitos para atuar em determinado seg-mento do mercado. As essenciais representam um diferencial de competiçãoem relação à concorrência, devem ser únicas e de difícil imitação.Ainda há que se ter um valor percebido pelos clientes como umdiferencial e capacidade de expansão da organização, represen-tando uma porta de entrada para mercados potenciais e gerandonovas oportunidades de produtos e serviços.

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Competências humanas (comportamentais)

Genericamente, representa uma característica funda-mental de um indivíduo, diretamente relacionada a um critério dedesempenho na execução de um trabalho ou diante de uma si-tuação. É o diferencial competitivo que o profissional precisa de-monstrar e que impacta diretamente em seus resultados. Sãocompetências humanas a criatividade, a flexibilidade, o planeja-mento, a organização, a liderança, entre outras diversas. Faz-se mister salientar que as competências comporta-mentais devem ser específicas por organização, área de conhe-cimento, processo ou cargo.

A aquisição e o desenvolvimento das competências individuais devemser compreendidos como um processo de aprendizagem, que evoluivisando ao alcance de um melhor desempenho, com base em obje-tivos pessoais e organizacionais, assumidos de forma compromis-sada (FERREIRA, 2015, p. 46).

Isso posto, entende-se que competência humana é a ca-pacidade física, individual e técnica de executar atividades, pro-fissionais ou não. É todo arcabouço de conhecimento que oservidor detém para realizar suas funções.

Gestão por competências

Há muito tem-se falado da gestão de pessoas por com-petências na iniciativa privada, todavia, essa tendência passoua se manifestar também no serviço público. Esse modelo de ges-tão objetiva a concentração de esforços com a finalidade de pla-nejar, captar, desenvolver e avaliar, nos diferentes níveis daorganização e das pessoas que dela participam, as competên-cias necessárias à consecução de seus objetivos. Ainda,

Esta prática de gestão pode ser considerada como um mecanismoque visa garantir a prevalência da racionalidade instrumental na ges-tão das organizações, fortalecendo seus fundamentos ao classificaras pessoas quanto à sua competência. Isto permite a hierarquizaçãodas qualidades e habilidades dos empregados, aumentando o poder

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e o controle exercidos pela organização sobre eles. Além disso, acabafuncionando como um meio de diferenciação destinado a reconheceras melhores competências e extinguir as piores, bem como interiorizarnas pessoas o código de conduta da organização. (DINIZ; VIEIRA apudHELAL; GARCIA; HONÓRIO, 2009, p. 256-257).

Diversos documentos jurídicos já publicados oficializama implantação da gestão por competências nas diversas esferasdo Poder Público, em todas as três instâncias: federal, estaduale municipal. A título exemplificativo podem ser citados o Decreton. 5.707/2006 do Governo Federal e a Resolução n. 111/2010,expedida pelo Conselho Nacional de Justiça. Do artigo 2º, II, do Decreto n. 5.707/2006, depreende-seo conceito de gestão de competências como a

gestão da capacitação orientada para o desenvolvimento do conjunto deconhecimentos, habilidades e atitudes necessárias ao desempenho dasfunções dos servidores, visando ao alcance dos objetivos da instituição.

Mesmo com a vigência desse decreto, as organizaçõesbrasileiras encontraram dificuldades na implementação da gestãopor competências, tais como: desconhecimento ou pouco conhe-cimento do tema, falta de pessoal com a devida qualificação, cul-tura desfavorável, complexidade na identificação de competências,ausência de envolvimento adequado da alta administração, difi-culdade de articulação das práticas desse modelo de gestão aossubsistemas de recursos humanos/gestão de pessoas. Apesar das mais variadas barreiras, esse modo de ad-ministrar por competências estimula a aprendizagem, a dissemi-nação do conhecimento e a descoberta e o desenvolvimento dehabilidades. Ainda, propicia inovação e melhorias da gestão pú-blica, valoriza o compartilhamento de informações, cria maior en-volvimento entre gestores e servidores públicos no ambientelaboral e, também, busca qualidade de vida no trabalho. É impe-rioso ressaltar que esse rol de benefícios desse novo regime degerenciamento não se exaure nos exemplos citados. Guimarães (apud BECKERT NARDUCCI, 2014, p. 44)declara que um programa de modernização que privilegie a ges-tão por competências traduz-se em um caminho “para flexibilizar

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a gestão e valorizar as pessoas como decisivas a um desempe-nho eficiente e eficaz na instituição”. Esse modelo de administrar permite que a instituição pú-blica atue lado a lado com seus servidores como um processocontínuo de troca de competências. Ou seja, enquanto a organi-zação transmite recursos para seus servidores com o objetivo deserem capacitados, de terem seus vencimentos valorizados como intuito de prepará-los para as novas situações profissionais epessoais, estes retribuem suas novas competências à instituição,transferindo seu aprendizado, propiciando o enfrentamento denovos desafios por todos integrantes do órgão. A gestão por competências é a combinação dos conheci-mento, do saber-fazer, da experiência e do comportamento em con-texto específico. Vale dizer, o foco da Administração Pública nãoestá mais direcionado apenas às atribuições formais da repartição.

A gestão por competência visa, acima de tudo, fazer com que as compe-tências humanas formem as equipes de excelência necessárias ao alcancedos objetivos organizacionais (BECKERT; NARDUCCI, 2014, p. 51).

Mapeamento de competências

A principal etapa de um projeto de implantação de gestãopor competências é a fase do mapeamento de competências ins-titucionais, o qual tem como propósito identificar as lacunas(gaps) de competências, ou o mesmo que dizer, a discrepânciaentre as competências essenciais para concretizar a estratégiacorporativa e as competências internas existentes na organiza-ção, como preceitua Carbone et al. (2009). É de fundamental importância que, para se obter um ma-peamento eficaz, haja precipuamente um alinhamento das com-petências individuais e organizacionais aos objetivos dainstituição pública, sendo preciso, para tanto, que as competên-cias dos servidores sejam mapeadas e identificadas. O processo de mapeamento das competências não é está-tico, por isso não existem fases previamente estabelecidas, isoladasou acabadas. Como o próprio nome significa, é um processo e

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este visa alcançar os resultados mais exatos possíveis para que,ao final, servidor e organização ganhem. A identificação das competências já existentes na orga-nização geralmente será realizada por meio de instrumentos deavaliação de desempenho, que consistirão em formulários de co-leta de dados, leitura das descrições da função atualizadas, en-trevistas com o superior imediato da função e com colaboradoresque executam a função, entre outros. Após, ocorrerá a verificação do nível de competênciastécnicas necessárias para a função e, somente depois, far-se-áa certificação, que é uma avaliação das competências dos servi-dores por meio da qual as organizações buscam reconhecer eatestar até que ponto pessoas e equipes de trabalho possuemdeterminadas competências profissionais. Fernandes (2013) sintetiza o processo de mapeamento e ava-liação das competências organizacionais em cinco passos, a saber:

i) análise do negócio e os fatores-chave de sucesso no setor;ii) verificação do nível de desempenho da empresa em relação a seusconcorrentes;iii) escolha dos fatores-chave de sucesso que serão utilizados comocompetências e descrevê-los;iv) avaliar a tríade de competência: valor, sustentabilidade e versati-lidade para a instituição; ev) decompor e avaliar os recursos competentes da competência.

É imprescindível ressaltar que o processo de mapea-mento de competências não se restringe somente ao setor degestão de pessoas. Muitas vezes, é preciso envolver colabora-dores/servidores de diversas áreas da instituição e também defora, como consultores, fornecedores, clientes, cidadãos, analis-tas de mercado, etc.

Sistema de gestão por competências

Para que haja a implantação do modelo de gestão decompetência, é preciso que a organização crie seu próprio sis-tema de gestão de competências que, em muito, difere de plano

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de cargos ou competências. Huczok e Ribeiro (2014, p. 107) con-ceituam sistema de gestão por competências como:

Sistema que visa mapear as competências técnicas e comportamen-tais necessárias para as funções de acordo com as características emissão, visão e valores do órgão, graduá-las e atribuir-lhes umaforma de aferi-las de maneira objetiva, identificar os gaps de cadaservidor avaliado e estabelecer um Plano de Desenvolvimento dasmesmas, fazendo o seu acompanhamento.

O sistema de gestão por competências é um instrumentoque serve para alocar as competências de que a instituição ne-cessita, a que seus servidores detêm e as exigidas para cadacargo (técnicas). Esse modelo de gestão exige constante adap-tação, melhorias e atualização. Diferente de um plano de cargos, esse programa de ges-tão por competências permite a existência de um sistema de ro-tação de funções, inclusive as de liderança, sem que infrinjaalguma legislação ou estatuto próprios dos servidores. Não hádesvio de função, pois não se alteram as atribuições do cargo. Com esse sistema, evita-se a rotina do servidor de sem-pre executar as mesmas atividades, melhora a motivação eretém talentos. Consequentemente, há ganhos na qualidade doserviço prestado, aumento da produtividade e um impacto posi-tivo no atendimento ao cidadão (HUCZOK; RIBEIRO, 2014). Rocha (2009) observou que, na tentativa de implantaresse modelo de gestão, muitas organizações privadas e públicasfracassaram. Resistências culturais, ação tímida ou incipiente daárea de recursos humanos/gestão de pessoas, implementaçãoparcial do modelo e, principalmente, desarticulação entre o mo-delo e as estratégias da organização, são alguns dos variadosmotivos pelos quais essas organizações não lograram êxito.

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APLICAÇÃO DO COACHING NA GESTÃO DE PESSOAS

Motivação

A motivação humana, notadamente no ambiente laboral, ésensível à influência de diversos fatores, entre os quais as limita-ções culturais, os objetivos individuais, os métodos de diagnósticoe intervenção. Soma-se a isso a utilização das bases teóricas, asquais utilizam variadas abordagens no sentido de estudar a moti-vação humana, seja com fundamentos de orientação mecanicista,humanista, comportamental, entre outros (BERGUE, 2010).

São esses fundamentos, em que pese suas limitações,que orientam os gestores a terem um melhor entendimento dessefenômeno que é a motivação. No contexto do serviço público, otratamento e a compreensão da motivação humana revestem-sede grande complexidade.

O estímulo dos servidores públicos quanto à sua ocupa-ção nos cargos públicos, em sua grande maioria, não decorre deuma motivação pessoal, geralmente o interesse recai no valor daremuneração ou a garantia de sua constância, a estabilidade, ostatus do cargo, etc.

Considerando que esses interesses nem sempre moti-vam o servidor público a executar um bom trabalho, recai sobreo gestor público a criação de mecanismos motivacionais que re-sultem em um estímulo para cada agente público, ainda que paraisso seja preciso acrescer a remuneração das pessoas que seesforçarem na realização do propósito.

Na mesma linha desse entendimento, Bergue (2010, p.418) complementa,

cabe ao gestor público compreender os mecanismos responsáveis pelaestimulação das pessoas, procurando empregá-los de forma a definiruma rota de convergência entre os objetivos institucionais e os individuais.

Liderança

Bergue (2010, p. 433) sinteticamente conceitua liderançacomo “a ação de conduzir a organização orientada pelos objetivos

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institucionais”. Genericamente, esse termo está associado à fun-ção administrativa de direção quando a ideia de liderar envolvepessoas ou grupos.

Ainda que o entendimento de liderança esteja interligadoao significado de direção, é importante ressaltar que os dois ter-mos possuem conceitos bem diferentes. O último refere-se à ca-pacidade de conduzir pessoas para a ação orientada por objetivosde gestão, enquanto o primeiro é a capacidade de fazer com queum grupo responda positivamente à indicação de um rumo deação, mesmo que sob condições adversas (BERGUE, 2010).

A teoria mostra-se muito distante ao que a prática da li-derança nas organizações públicas se apresenta. A grande maio-ria das instituições públicas não utilizam os fundamentos deliderança por motivos tais como a manutenção do poder e otemor de perdê-lo. Essa práxis é perceptível tanto no nível dasrelações no âmbito de equipes quanto no nível das relações entrechefes de Estado representando os interesses de suas naçõesno contexto internacional.

Para muitos, a ideia de liderança está ligada ao exercíciode poder.

É essencial no campo da gestão de pessoas e, em particular, nas or-ganizações do setor público; não pode ser reduzida em importânciaou omitida a dimensão das relações de poder (BERGUE, 2014, p. 86).

Dessa forma, percebe-se que o tema liderança não é en-xuto e pode ser analisado sob quatro perspectivas:

i) liderança como função gerencial;ii) liderança como pessoa (líder);iii) liderança na organização de modo geral; eiv) liderança como processo de aprendizagem e comunicação.

Por ser um assunto que vem ganhando espaço nos órgãospúblicos, a liderança é vista como elemento essencial de transfor-mação tanto dos ambientes de trabalho como nas equipes. Osgestores que utilizam a liderança como competência técnica e ge-rencial dão maior enfoque às estratégias da organização e deslo-cam a ideia da pessoa do líder para a estratégia organizacional.

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Paggi (apud MARQUES, 2015) ensina que a verdadeira li-derança nasce da autoliderança. Ainda, acrescenta que a liderançapor si só não faz sentido se não estiver relacionada a compro-misso, responsabilidade, planejamento e empowerment. E parase obter resultados positivos, é imprescindível que a liderançaesteja orientada para a ação.

Coaching na gestão por competências

Com a grande quantidade de recursos educacionais à dis-posição no mercado, a maior parte dos treinamentos nas organi-zações públicas acontece dentro dos próprios órgãos. E atendência indica que essa realidade deve perdurar por muitotempo. Mesmo com a gama de cursos ofertados, os gestores ve-rificam que o maior aprendizado provém das situações cotidianas.

Diante dessa realidade, o coaching surge como instru-mento de que os gestores devem utilizar para remodelar os con-ceitos e práticas existentes no setor de gestão de pessoas eadequá-los à realidade que se altera constantemente.

O coaching é um processo que possibilita

ajudar as pessoas a verem além do que são hoje para o que elasquerem tornar-se amanhã, expandindo suas competências, seu de-sempenho e suas crenças (SOUZA, 2013, p. 39).

Apesar das dificuldades com as quais lidarão os gestores, aprática mostra que há possibilidades em desenvolver mudanças dehábito, de mentalidade, de estrutura, de comportamento e de regrasvisando à melhoria objetiva do padrão de qualidade dos serviços.

Para promover tais transformações de comportamentoem todos os envolvidos na gestão pública, é preciso adotar es-tratégias que afetem os padrões comportamentais, modificando-os a fim de se adequarem à nova realidade. E é, nesse momento,que a metodologia de coaching se apresenta para que os fins al-mejados pelos envolvidos sejam efetivamente alcançados e to-talmente eficazes.

A utilização das ferramentas do coaching dentro das insti-tuições públicas apresenta vários proveitos. Servem para preparar

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os servidores públicos quando voltadas ao treinamento pessoale desenvolvimento de habilidades, para a orientação de pessoasquando ligadas a processos de tomada de decisão, como lide-rança renovadora na formação de líderes e difusores do conheci-mento, e, ainda, como impulsionadoras de talentos, ao incentivara aprendizagem e auxiliar os agentes públicos a reconheceremsuas competências comportamentais e competências organiza-cionais da instituição a que serve.

Isso posto, a utilização das ferramentas do coaching pro-picia aos servidores públicos um mecanismo eficaz para enfren-tar as mudanças comportamentais, aceitar as inovações,adaptarem-se às constantes transformações da nova política ge-rencial, além de satisfazerem suas necessidades motivacionais.

Coaching para mudanças

O maior desafio da gestão de pessoas é o de contribuircom o despertar humano no âmbito das organizações. Todo ser-vidor é, antes de tudo, um ser humano que precisa confiar em suacapacidade de gerar bons resultados (BERNARDO apud ROMA,2014). E não basta confiar apenas em suas competências. Paraque haja transformação de si mesmo, é imprescindível que a pes-soa desenvolva sua autoconfiança e conheça seus valores.

Esse processo de desenvolvimento pessoal interno ocorrenos sete níveis de consciência humana. Os primeiros quatro ní-veis correspondem à hierarquia das necessidades de Maslow: se-gurança, relacionamento, autoestima e autorrealização. São eles:

i) consciência da sobrevivência - a motivação básica é ade autopreservação;ii) consciência do relacionamento - a motivação é a deconstruir relações significativas com pessoas que partilhaminteresses comuns;iii) consciência da autoestima - motiva-se pelo sentimentode ser respeitado pelas pessoas com quem se partilhainteresses comuns, o excesso pode voltar a atenção dapessoa para riquezas, competitividade e arrogância;

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iv) autorrealização - a motivação ocorre pelo autoconhe-cimento e o crescimento pessoal.

Os demais níveis de consciência referem-se à unicidade dapessoa como um ser integral. Nesses níveis há o reconhecimentode que fazer para o outro é fazer para si mesmo. Seguem adiante:

v) consciência da alma - a motivação é cumprir o propósitoda vida, nesse nível as pessoas se tornam mais autênticasem seus relacionamentos, encontrando estabilidade emo-cional e mental;vi) consciência cósmica - motiva-se por realizar a missãode vida, encontram-se presentes nesse nível o entu-siasmo e a criatividade; evii) consciência divina - a motivação identifica-se com todahumanidade e o planeta, quer dizer, a atenção se volta aodesenvolvimento de um trabalho que faça diferença nomundo. O foco está no meio para realizar a missão de vida.

Por meio desse processo de autoconhecimento, há tam-bém a mudança de percepção da realidade. Os resultados dessemétodo são avultosos para o ambiente organizacional, permitindoque os colaboradores se tornem mais engajados, com maissaúde e bem-estar. As ferramentas do coaching promovem essatransformação cultural, contribuindo ainda com o empodera-mento humano.

Coaching para uma gestão humanizada

Durante muitos anos avultosos o cenário organizacionalconcentrou sua atenção na produção, indivíduos recebiam or-dens e as obedeciam e produziam como máquinas. Aos poucoso foco foi voltando às pessoas, até chegar aos dias atuais, emque é considerado a qualidade da relação líder-liderado.

“A promoção de um ambiente humanizado, que inspire aspessoas a potencializarem suas competências, e a geração de re-sultados sustentáveis” produz uma cultura organizacional mais hu-manizada, no entendimento de Miller (apud ROMA, 2014, p.167).

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A gestão humanizada valoriza o convívio, o respeito entreas pessoas e preocupa-se com o desenvolvimento da equipe.Para tanto, é de fundamental importância que os gestores promo-vam um ambiente saudável, o qual possa estimular os servidoresa criar, definir e planejar novos desafios da carreira e se compro-meterem com o fim esperado. Nesse aspecto, as ferramentas decoaching servem para potencializar e intensificar os resultados.

O processo dinâmico da globalização e o cenário hodiernode alta competitividade provocaram essas mudanças nas orga-nizações, sobretudo, nas públicas, propiciando que práticas ino-vadoras na gestão de pessoas sejam utilizadas sempre com ofim de alcançar continuamente excelentes resultados e agradaraos usuários internos e externos (cidadãos).

Coaching como ferramenta de gestão de pessoas

A utilização da metodologia de coaching como instru-mento da área de recursos humanos possibilita melhorias no de-sempenho do clima e da cultura organizacionais, tendo influênciasobre planejamento estratégico, treinamentos, definições demetas e objetivos, desenvolvimento de competências, cresci-mento da performance de líderes e liderados, melhoria na comu-nicação e relacionamentos com stakeholders, entre outros.

Para otimizar os processos de gestão de pessoas, o coa-ching instrumentaliza-se para alinhar metas e objetivos; fornecerfeedbacks construtivos e realistas; realizar treinamentos, avalia-ções de desempenho, avaliações 360º; gerir a carreira; desen-volver e orientar lideranças; aprimorar competências ehabilidades; mapear talentos, entre outros, conforme a necessi-dade da instituição (SOARES apud MARQUES, 2015).

Por todos os benefícios apontados, as técnicas do coachingsão consideradas benéficas tanto para a organização quanto paraseus servidores, elas tornam a gestão mais humana, nos níveis es-tratégico, tático e operacional. Soares (apud MARQUES, 2015, p.167) cita alguns benefícios resultantes da utilização do coachingna gestão de pessoas que promovem resultados satisfatórios paratodos os agentes envolvidos no processo, aos colaboradores

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(…) mantendo o bem-estar, qualidade de vida, autoconhecimento, respon-sabilização pelos próprios atos, despertar dos potenciais, identificação depontos de melhoria, desenvolvimento de competências, habilidades, mis-são, visão, propósito de vida e, em contrapartida, a empresa se beneficiacom aumento de produtividade, aumento do ROI (Return On Investiment– Retorno sobre o Investimento), colaboradores motivados e engajados,gestão do conhecimento, diminuição do absenteísmo e turnover.

Diante desses preceitos, pode-se inferir que o coachingaplicado na gestão de pessoas visa potencializar competênciascomportamentais, psicológicas e emocionais, direcionando o ser-vidor a alcançar seus objetivos junto aos da instituição, a fim dereceber o resultado esperado.

O processo de coaching facilita ao gestor encontrar o ca-minho almejado em menor espaço de tempo, evitando situaçõesde estresse. Ademais, os benefícios desta metodologia vão alémdos interesses institucionais e profissionais dos servidores, ser-vem para a vida pessoal deles e que, após sua aplicação, obter-se-ão reflexos também no desempenho das atividades exercidaspelo servidor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como propósito oferecer, sintética e ob-jetivamente, uma compreensão do novo modelo de gestão depessoas, que é o de gerir por competências. Para implementaresse modo de gerenciamento de pessoal, não basta simples-mente arrancá-lo da teoria e transpô-lo à prática.

É preciso que transcorra por meio de um processo de adap-tação dos integrantes institucionais a essa nova práxis gerencial,iniciando pela captação das competências técnicas, imprescindí-veis à organização, e as humanas, das quais são detentores seusservidores.

Ato contínuo, faz-se o mapeamento dessas competênciase, só após, ocorre a implantação do sistema de gerenciamento depessoas por competências. É somente nessa fase que se verificaa concretização do objetivo proposto. Havendo a integralização

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das competências organizacionais às comportamentais, deveráocorrer uma reorganização e adequação na alocação dos servi-dores às funções que mais se encaixam às suas competências.

Durante esse processo de implantação da gestão de com-petências, muitas instituições encontraram dificuldades para tanto.As maiores recorrências de entraves encontradas são o desco-nhecimento total ou parcial do tema, a ausência de qualificaçãosuficiente de seus gestores, as incongruências das ferramentas edo conhecimento utilizado pelos líderes, entre outros diversos.

Na tentativa de solucionar esses problemas e, ainda, dealavancar a aplicação dessa metodologia de gestão, é imperiosaa utilização das ferramentas de que o coaching dispõe. Essa téc-nica possibilita melhor preparação dos servidores, quando volta-das ao treinamento pessoal e desenvolvimento de habilidadesde liderança dos gestores, para difundirem conhecimento eserem impulsionadores de talentos ao incentivar a aprendizagem.

Do conteúdo apresentado, espera-se que entes organi-zacionais, mormente da esfera pública, possam utilizá-lo comoreferência quando da efetivação do sistema de gestão de pes-soas por competências. As informações aqui expostas servemcomo um roteiro norteador para instituições que, inclusive, des-conhecem o assunto apresentado.

REFERÊNCIAS

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