Revista de Direiro Mauricio de Nassau

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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 3 – n. 3 – 2008 REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MAURÍCIO DE NASSAU

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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –Recife – ano 3 – n. 3 – 2008

REVISTA DA FACULDADE DE

DIREITOMAURÍCIO DE NASSAU

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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –Recife – ano 3 – n. 3 – 2008

REVISTA DA FACULDADE DE

DIREITOMAURÍCIO DE NASSAU

Recife, 2008

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© 2008 Faculdade Maurício de Nassau

Conselho Editorial da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau

João Maurício Adeodato (editor responsável)

Geraldo de Oliveira Santos NevesGeorge Browne RegoRoque de Brito Alves

Larissa Leal (Universidade Federal de Pernambuco)Alexandre Freire Pimentel (Universidade Católica de Pernambuco)Raymundo Juliano do Rêgo Feitosa (Universidade Federal de Pernambuco e Faculdade de Direito de Caruaru)

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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MAURÍCIO DE NASSAURecife: Faculdade de Nassau, a.3, n.3, 2008. 375p.

1. DIREITO. 2. DIREITO ROMANO. 3. DIREITO – BRASIL. 4. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – BRASIL. 5. RESPONSABILIDADE CIVIL – BRASIL. 6. ESTADO E INDÍVIDUO. 7. DIREITO – FILOSOFIA. 8. DIREITO DO TRABALHO – BRASIL. 9. JUIZES – PRÁTICA PROFISSIONAL. 10. IMPOSTO SOBRE CIRCU-LAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS. 11. BRASIL – CONSTITUIÇÃO.

CDU 34 CDD 340

PeR – BPE 09-105

ISSN: 1809-9424

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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –Recife – ano 3 – n. 3 – 2008

EDITORIAL

A Faculdade de Direito Maurício de Nassau publica agora o terceiro exemplar anual de sua Revista da Faculdade de Direito, com artigos oriundos dos grupos de pesquisa de seus professores, animada pela perspectiva de mudanças significativas. Isso porque parecem finalmente estar se delineando os parâmetros para inserção de uma publicação universitária no sistema Qualis da CAPES/MEC, o qual objetiva ser um indicador de excelência acadêmica e indexação científica.

Claro que este exemplar ainda não está totalmente ad-equado a esses parâmetros, mesmo porque não se encontram definitivamente decididos. Um exemplo é conter a Revista exclusivamente artigos produzidos pelos próprios professores da Instituição. Tudo indica que um parâmetro de excelência, por polêmico que seja, vai ser que quanto mais artigos de pesquisadores externos uma revista contiver, mais alta será sua classificação no Qualis, dentro desse item. Outro critério a ser perseguido é a semestralidade, pois a Revista da Facul-dade de Direito Maurício de Nassau tem sido anual.

Muitos desses parâmetros sinalizados pela CAPES, porém, sobretudo aqueles que têm mais tradição na academia brasileira, já estão satisfeitos aqui, tais como a rigorosa uni-formização no formato, a presença obrigatória de resumo, de abstract e de sumário etc.

Mas não somente critérios formais mais exigentes foram acrescidos a este terceiro número. Além dos cuidados com o conteúdo dos artigos, procurando ir além dos meros relatos descritivos do direito positivo que tanto prejudicam a área de direito no Brasil, a tarefa mais árdua foi certamente con-

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seguir um Conselho Editorial qualificado e comprometido, distribuído por instituições de prestígio em diversas regiões do Brasil, da América Latina, Estados Unidos e Europa, sem esquecer instituições do próprio Recife. Esse Conselho de avaliadoras e avaliadores, formado por 20 membros, trabalhará pelo sistema twofold blind review, isto é, com avaliação anônima de ambas as partes.

Vários outros parâmetros de excelência continuarão sendo perseguidos, do que são exemplos uma melhor dis-tribuição e envio a instituições nacionais e estrangeiras, a indexação nas melhores bases de dados (Ulrich’s Periodicals Directory e RVBI-Periódicos do Senado Federal) e inclusão no Catálogo Coletivo Nacional do IBCT.

Como a Instituição de Ensino Superior que mais cres-ceu no Brasil nos últimos cinco anos, hoje presente em sete estados do Norte e do Nordeste, a Faculdade Maurício de Nassau não vai descuidar da qualidade de seus projetos de pesquisa na área de direito. Esta Revista pretende dar uma amostra disso.

Recife, dezembro de 2008

José Janguiê Bezerra Diniz (Diretor Geral)João Maurício Adeodato (Editor Responsável)

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SUMÁRIO

Direito e argumentação: uma abordagem pragmáticaEnoque Feitosa ..........................................................................9

O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássicoFernando Joaquim Ferreira Maia ...........................................27

Judicialização da política no Brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate Flávia Danielle Santiago Lima ...............................................85

Formação universitária, exercício profissional e especialização em direitoJoão Maurício Adeodato .......................................................113

Considerações filosóficas sobre a prova José Arlindo de Aguiar Filho ................................................135

O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídicaKatsuzo Koike........................................................................151

Uma crítica à ideologia jusnaturalista nos princípios constitucionais do direito do trabalhoLorena Freitas .......................................................................191

A PEC 233/08 e a pretensão de modificação dos “Grilhões de Hermes”: A tentativa de alocação, imprópria, do IVA no lugar do ICMSLuiz Edmundo Celso Borba ..................................................209

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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão e agente políticoMarcílio Florencio Mota .......................................................245

Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminalMauro Alencar de BarrosRenata Cortez Vieira Severino ..............................................279

O embate entre as teses biologista e socioafetiva: qual o melhor interesse do filho?Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade ........................309

Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da Lei Maria da PenhaRenata Ribeiro Rolim ............................................................329

Da prescrição do “fundo de direito”Sérgio Paulo Ribeiro da Silva ...............................................355

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1 Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Advogado, Doutorando em Direito e em Filosofia pela UFPE e Professor da Faculdade Maurício de Nassau

DIREITO E ARGUMENTAçãO: UMA ABORDAGEM PRAGMáTICA

Enoque Feitosa1

REsumO

Este artigo debate questões atuais acerca da discussão sobre a argumentação no direito. É baseado nas idéias de Manuel Atienza no seu mais famoso livro: “As razões do direito”. Destaca enfaticamente os momentos onde podemos identificar como se argumenta no processo de decisão, na fase legislativa e na doutrina. Por fim, objetiva trabalhar a questão de como a argumentação é uma necessidade ontológica no direito, logo presente tanto nos chamados casos difíceis, bem como nos casos “fáceis”.

AbsTRAcT

This essay discusses the most recent manifestations of the debate of the legal argumentation. It was based on Ma-

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nuel Atienza`s ideas, according to his most famous book: “As razões do direito”. It emphasizes in detail the moments where we can identify how argue for decide, for produce norms and for study of Law. At last, it aims to work how the argumentation is an ontological necessity on, so-called, hard and “easy” cases.

sumário: Introdução: Por que um ensaio sobre a teoria da argumentação a partir de Manuel Atienza? 1. A argumen-tação e o seu papel na produção de normas jurídicas. 2. A argumentação na aplicação do Direito. 3. A argumentação e o âmbito doutrinário da dogmática jurídica. 4. Conclusão: Argumentação como necessidade ontológica do âmbito ju-rídico. (Referências).

1 – INTRODUÇÃO: POR QUE UM ENSAIO SOBRE A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO A PARTIR DE mANuEL ATIENZA?

Este artigo, muito mais um ensaio, no sentido que Adorno confere ao termo2, envolve um objetivo bastante delimitado visto que não procura instituir um marco de debate através de “idéias originais”, muito menos polemizar com o pensamento de vários autores ou de determinada corrente jurídica.

Trata-se, menos pretensiosamente, de refletir, de forma ao máximo especificada e num campo bem definido, acerca

2 Para Adorno, o ensaio não compartilha a regra do jogo da ciência e da teoria organizada, segundo as quais, como apontara Espinosa, a ordem das coisas seria a mesma das idéias. O ensaio não almeja uma construção fechada na medida em que não captar o eterno, preferindo o transitório. Naquilo em que é enfaticamente ensaio, o pensamento se libera da idéia tradicional de verdade (ADORNO, 1986, p. 174-176).

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3 Para efeitos deste artigo / ensaio, usa-se a edição brasileira de 2002. Houve posteriormente reimpressões (erradamente chamadas de “novas edições” visto que erros graves de tradução perduraram, por exemplo, na página 43, segunda linha, se fala em “argumentos químicos” - sic!). Acerca desses e de outros erros na tradução, o autor do presente artigo manteve, à época em que cursava o Mestrado em Direito, correspondência com o Professor Atienza, o qual confirmou que a tradução em questão era apenas “raciocínio jurídico”.

de uma questão levantada por alguns teóricos da argumen-tação jurídica e de forma particular a um dentre eles.

Trata-se, especificamente, do jurista espanhol Manuel Atienza que, em seu livro intitulado “As razões do direito: teorias da argumentação judicial”, procura discutir os âm-bitos do direito em que ocorrem as práticas argumentativas (ATIENZA, 2002).3

Para tal autor, a prática da atividade jurídica concentra-se principalmente em lidar com argumentos e “todos costu-mamos convir que a qualidade que melhor define um bom jurista talvez seja sua capacidade de construir argumentos e manejá-los com habilidade” (ATIENZA, 2002, p. 11 e 17).

Trata-se então, como questão central deste texto res-ponder ao seguinte problema: em que consiste e como se argumenta juridicamente?

Para tanto, a tarefa aqui proposta é, num primeiro mo-mento, acompanhar e reconstruir o desenvolvimento da reflexão desse autor para, em seguida, tratar de algumas limitações oriundas do que chamaríamos de “senso comum dos juristas” o qual, entre outras crenças, se expressa na afirmação de que só se argumenta (ou, só é necessário argu-mentar) nos chamados casos difíceis.

Na construção de uma teoria própria da argumentação jurídica o autor em exame busca delimitar desde logo o pro-blema de se saber quais os campos jurídicos onde ocorrem argumentações.

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Estes campos seriam: (a) na produção de normas ju-rídicas, o que configura aquele campo genérico chamado de direito objetivo; (b) na aplicação dessas normas, o que ocorre por agentes públicos ou ainda por particulares, quando tal atribuição lhe é conferido por norma positiva; e, (c) naquilo que, na nossa cultura jurídica, convencionamos chamar de doutrina ou ainda, para lhe conferir dignidade teórica, o que alguns chamam de Ciência do Direito, mas que Atienza chama prefere chamar simplesmente de “dog-mática jurídica” (ATIENZA, 2000, p. 18-20).

Abordar cada um destes campos passa a ser, a partir de agora, o desiderato do presente trabalho, reconstruindo as idéias de Atienza e pondo-as em confronto com outros autores a fim de, desse modo, discutir suas insuficiências e suas contribuições para uma teorização da argumentação jurídica, bem como os limites da idéia pela qual tal modelo consegue algo mais que justificar o direito e racionalizar as práticas decisórias, como se coubesse a uma teoria da argumentação o milagre de revelar um suposto caráter essencial do direito por fora dos conflitos que cabe a ele mesmo dirimir.

2 – A ARGUMENTAÇÃO E O SEU PAPEL NA PRO-DUÇÃO DE NORMAS JURÍDICAS

Para o autor em questão, na produção das normas jurídi-cas a argumentação se subdividiria em duas fases: a primeira delas chamada de fase pré-legislativa e a outra entendida como fase legislativa propriamente dita.

A primeira fase desta etapa, isto é, a fase pré-legisla-tiva, tem para o autor em exame um caráter duplo – político

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e moral e é uma decorrência, segundo ele, da existência de problemas cuja solução se crê pode se atribuir à produção de uma dada norma jurídica. E, neste sentido, só secunda-riamente tais questões podem ser vistas como de natureza técnico-jurídicas. (ATIENZA, 2000, p. 19)

Antes de examinar do que trata essa fase pré-legisla-tiva é importante que se diga que ao distinguir o caráter jurídico da argumentação de seu caráter moral o referen-cial tomado é o sentido em que Ronald Dworkin faz tal diferenciação. Para ele, deve-se separar a afirmação que alguém “deve fazer algo” daquelas situações onde se afir-ma que alguém “tem obrigação de fazê-lo”. Isto porque o Direito não enuncia simplesmente o que se deve fazer ou deixar de fazer: ele impõe obrigações (DWORKIN, 2002, p. 76-78).

Essa fase pré-legislativa envolve, dependendo das cir-cunstâncias, um debate de caráter mais ou menos intenso daquilo que alguns autores chamam de esfera pública4, outros chamam de sociedade civil5, e também a atuação – ainda que em nosso país de caráter não-legalizado – de grupos de pres-são e / ou lobbies6 (estes, numa característica que mereceria

4 Para o conceito de “esfera pública”, conceito, aliás, bastante problemático ver Habermas que a reconhece como “esfera pública politicamente ativa”. (HABERMAS, 2003, p. 259, 268 e 273).

5 Sobre o conceito de “sociedade civil”, em Marx fica evidente que ele não atribui – como o fez Gramsci – um caráter supostamente progressista à sociedade civil. Para ele, “onde o Estado político já atingiu seu desenvolvimento, o indivíduo leva uma dupla vida, a vida na comunidade política na qual ele se considera um ser coletivo, e a vida na sociedade civil, em que atua como ser particularizado e considera a si e aos outros como meios, como seres degradados, joguete de poderes estranhos” (sic). (MARX, 1991, p. 26; GRAMSCI, 1980, p. 149-150; BOBBIO, 2002, p. 43-72; ANDERSON, 1986, p. 7-74).

6 A regularização dos lobbies é matéria de projeto em debate, já algum tempo, no Congresso Nacional, de iniciativa do Senador Marco Maciel (DEM-PE).

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um exame em outro artigo, atuando na fase pré-legislativa quanto na legislativa).

A segunda fase desta etapa é a legislativa propria-mente dita. Nela, um problema só passa a ser considerado relevante quando adentra ao âmbito daqueles dotados de capacidade jurídica de produzir normas enquanto sua com-petência principal (pois é primacial que há os que detêm competência, ainda que secundária, derivada, para produzir norma e sem que sua atividade primordial seja propriamente legiferante).

Note-se desde já que esta segunda fase, embora muitas vezes resultante de contextos e de influências do debate público, pode ocorrer, a rigor, de forma independentemente de ter sido fruto dos mesmos.

Diga-se ainda que nesta segunda etapa o prioritário sejam as questões jurídicas, com a argumentação de per-fil estritamente moral ocupando plano de menor monta. Embora ocorram – e não raramente – contextos onde, mesmo na fase legislativa, seus atores se valham de ar-gumentos morais, com finalidades puramente retóricas, descurando completamente do que seria de se esperar, ou seja, do trato dogmático, jurídico, técnico enfim, do problema.

Mas é de se ressaltar, desde logo, que o uso de argu-mentos moralizantes com efeitos meramente retóricos antes poderia desqualificar quem dele se vale – numa estratégia de mera obtenção de resultados – do que a própria retórica que, para os que andam em busca de culpados pelos males da pequena política, tornou-se a causa de todas as mazelas resultantes da hipocrisia que perpassa aquela atividade no mundo dito globalizado.

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A retórica é bem mais que isso, pois como assinala Gar-cia Amado ela própria seria competente para constituir-se em teoria da argumentação jurídica dado que em sua consecução, a argumentação transcorre em forma de diálogo, isto é, de um intercâmbio comunicativo (GARCIA AMADO, 1988, p. 323).

2 – A ARGUMENTAÇÃO NA APLICAÇÃO DAS NOR-MAS JURÍDICAS

Trata-se aqui da atividade levada a cabo por juízes, órgãos da administração e por particulares, na qual cabe também a distinção quanto aos argumentos relacionados aos fatos, daqueles argumentos relacionados ao direito, implicando estes segundos, num sentido mais amplo da expressão, em problemas de interpretação e, por con-seqüência de persuasão e argumentação, visto que se a controvérsia não passa nem por questões de fato e nem por problemas de sua qualificação podemos dizer que se está diante de uma controvérsia eminentemente de direito (CATãO, 2007, p. 75).

É o caso, verbi gratia, da determinação legal pela qual:

Art. 515 – A apelação devolverá ao Tribunal o conhecimento da matéria impugnada [...].§3º - Nos casos de extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267), o Tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito [...].

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Em complemento a esse comando o Artigo 517 do mes-mo diploma legal determina que:

Art. 517 - As questões de fato, não propostas no Juízo inferior, poderão ser suscitadas na apelação, se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo de força maior.

Tal distinção quanto a argumentos relacionados aos fatos e argumentos relacionados ao direito pode, aparen-temente, conter uma dupla contradição, na medida em, que: (a) se fato é algo dado pela experiência, ele seria indiscutível em virtude de uma objetividade prévia que lhe dispensaria de ser interpretado e, por outro lado, (b) ao se falar em interpretar fatos em direito poderíamos es-tar introduzindo uma segunda antinomia visto que somos treinados no sentido de distinguir, ao menos no mundo jurídico, as questões de fato das questões de direito e que só estas podem ser objeto de interpretação? (RABE-NHORST, 2003, p. 8-18)

Em direito, tanto na noção de fato bruto quanto nas teorias tradicionais da interpretação, tal tese permeia claramente o que se chamou, logo no início, de “senso co-mum dos juristas”. Para este senso comum, como aponta um estudioso da questão, a tese central é de que antes da valoração conferida pela norma, nada há a interpretar, pois que estaríamos diante de um “fato puro” (CATãO, 2007, p. 71-72) e esses fatos, dado a sua objetividade intrínseca não podem ser objeto de interpretação, tudo como se fossem evidentes de per si.

Assim, a segunda hipótese, além da questão levantada no início deste texto, de que se argumenta, inclusive, no

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contexto dos casos fáceis, é a de que também argumentamos no contexto das chamadas questões de fato.

Note-se, portanto, que, por exemplo, os fatos trazidos pelas testemunhas e pelas partes ao processo nada mais são do que uma narrativa, relatos e frutos da interpretação de quem narra. Todo processo se desenvolve em cima dessas interpretações dos fatos que são trazidos à apreciação dos tri-bunais, estes incumbidos legalmente de fazer a interpretação autêntica, isto é, aquela dotada de força obrigatória.

Aqui, note-se que, mesmo do ponto de vista dogmático, como assinala Rabenhorst, a separação entre factual e nor-mativo nem sempre é muito óbvia, já que no âmbito das lides jurídicas sucede de as questões de direito virem imbricadas com questões de fato (RABENHORST, 2003, 17), do que é exemplo o Código Penal Brasileiro que, ao examinar os tipos imprudência, negligência e imperícia produz asserções mistas, na medida em que funde questões normativas com questões factuais:

Art. 18 – Diz-se o crime:[...]Crime culposo:II – Culposo - quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

O texto da norma evidencia que o Juiz só pode, no artigo em questão, examinar a questão de direito suscitada pela fi-gura do inciso II – isto é, houve culpa – se preliminarmente se posicionar sobre uma questão que é, tipicamente de fato, qual seja, se houve imprudência, negligência ou imperícia do agente.

Atienza considera que a teoria da argumentação jurídica dominante, isto é aquela que é majoritária nos círculos ju-

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rídicos, concentra-se nas questões relativas à interpretação do direito e que são propostas nos tribunais superiores, ou seja, os chamados hard cases – que ele denomina de casos dramáticos, mas complementa lembrando que a maioria dos problemas que os tribunais decidem – no exercício de funções não-jurisdicionais - concernem aos fatos e que, nestes casos, os argumentos de que se valem correm ao largo do campo de estudo da teoria da argumentação jurídica.(ATIENZA, 2002, p. 19)

Esta é outra tese não suficientemente justificada e tam-bém da qual trata a última parte deste artigo, onde se abordará o que são e quais as características dos “casos difíceis” e por que eles só são resolvíveis a partir de um contexto argumen-tativo, que, no entanto, não se restringe aos casos difíceis e nem às argumentações em matéria de direito.

Isto pelo motivo de que a idéia de que só se argumenta num contexto de casos difíceis e nos quais mais de uma de-cisão se apresenta ao julgador reflete apenas um aspecto do problema, qual seja: os operadores de direito estão sempre a argumentar porque sua atividade é focada na persuasão. O que ocorre é que os casos difíceis demandam maior atividade persuasiva, mobilizam mais argumentos, o que não se quer dizer que só em tal contexto os juristas se valham da atividade de convencimento.

O próprio Dworkin, ao qual Atienza dedica algumas páginas, caracteriza o caso difícil, de maneira bastante con-cisa, como aquela situação onde o julgador deve reconhecer que está, em certa medida, incerto quanto às possibilidades que deve aplicar ao caso e, nesta hipótese, decide com base na argumentação que lhe parece mais convincente ou mais forte (DWORKIN, 2002, p. 111).

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3 – A ARGUMENTAÇÃO E O ÂMBITO DOUTRINÁ-RIO DA DOGMÁTICA JURÍDICA

Nesta parte cumpre, desde logo, assinalar o ponto

de vista de Atienza acerca das funções da dogmática ju-rídica: (a) fornecer critérios para a produção do direito; (b) fornecer critérios para a aplicação do direito e, (c) ordenar e sistematizar o ordenamento jurídico (ATIEN-ZA, 2002, p. 19).

Notemos, no entanto, que o foco onde, dentre os três acima, mais se ocupa a teoria da argumentação jurídica, é aquele concernente à produção de razões e argumentos para cumprimento da segunda função supramencionada da dogmática jurídica.

Os procedimentos adotados na objetivação dessa fun-ção “b” não são diferentes dos procedimentos dos órgãos aplicadores uma vez que se trata de oferecer a estes mesmos órgãos aplicadores os critérios para a tomada de decisões (ATIENZA, 2002, p. 20).

Ora, visto de tal forma, não pode restar a menor dúvida que tal atividade definida em “b” e no sentido de “fornecer razões” aos que “dizem o direito”, nada é mais que senão aquelas que, em nossa cultura jurídica, ligamos à função de doutrina.

A diferença entre essas três funções supramencionadas, conforme reconhece e assinala o próprio Atienza, consiste em que: a) Quando se trata de um órgão aplicador, a ele incumbe resolver casos concretos; e, b) Já a dogmática – enquanto o campo específico doutrina – se ocupará de casos abstratos.

Mas é de se lembrar que tal distinção não é taxativa: basta observar a hipótese onde tribunais superiores decidem acerca de consultas que lhes são feitas (por exemplo, na de-

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claração de inconstitucionalidade), e também a de formação de jurisprudência onde se estabelece uma posição “em tese” a ser aplicada caso os pressupostos sejam adequados.

E aqui, como Atienza reconhece não se trata de subes-timar a distinção – fundamental para o discurso prático – entre chegar a uma conclusão (que se situa num contexto de descoberta / explicação) e fornecer razões acerca de porque se chegou a ela (que se situa num contexto de justificação / compreensão) (ATIENZA, 2002, p. 21-26).

O que os órgãos judiciais têm de lidar é com a necessi-dade de justificar suas decisões. Assim, a questão essencial não se situa no campo de explicar o que se decidiu e sim fornecer razões, isto é, justificar a decisão. Se tal questão é a mesma para o leigo não o pode ser para quem, como um operador de direito preparado, aprendeu minimamente o que é teoria do conhecimento e que lida com tal tipo de problemática em disciplinas como hermenêutica jurídica, entre outras.

É preciso que se diga que a própria idéia de justificação / fundamentação é bipartida visto que, num contexto argumen-tativo pode se falar tanto de justificativas internas como de justificativas externas (ALEXY, 2005, p. 217-218, 226-227; WRÓBLEWSKI, 1985, p. 57-68).

A primeira cuida de saber se a decisão decorre logi-camente das premissas, com o que se terá um problema de compatibilidade formal (algo similar a uma adequa-ção silogística) o que a torna uma questão jurídico-dogmática; enquanto que a justificação externa cuida da correção dessas mesmas premissas, o que lhe dá um caráter material, o que configura muito mais questões de justiça política.

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O problema que uma teorização sobre os âmbitos da justificação deixa em aberto (mesmo que se preocupe na justificação, se a conclusão deriva dos pontos de partida e se os mesmos são corretos), é o de só tratar a correção da afirmação segundo a qual apenas se argumenta ou (a) em casos difíceis, ou (b) em questões de direito.

É é disto que se passará a tratar agora, já em sede de conclusão, ainda que provisória, o que como se viu na in-trodução, é plenamente compatível com a forma de ensaio com a qual se reveste o presente trabalho.

4 – CONCLUSÃO: ARGUMENTAÇÃO COMO NE-CESSIDADE ONTOLÓGICA DO ÂMBITO JURÍ-DIcO

É preciso, por todo exposto, tentar se chegar a um entendimento, mesmo que pontual: antes de se afirmar que se argumenta apenas em casos difíceis – afirmação no mínimo que deve ser cercada de cautelas e que depende de um conceito prévio acerca do que se entende por “caso difícil”.

Um bom ponto de partida para a discussão do caso difícil é a formulação de Dworkin, na qual ele critica a teorização do positivismo para os hard cases.

Dworkin afirma que o positivismo reconhece como tal toda situação na qual uma ação judicial dada não pode ser submetida a uma regra de direito clara, previamente estabe-lecida por uma instituição.

Ele considera essa formulação insuficiente e se propõe a desenvolver outra, cujo pressuposto é a crítica ao modelo do que chama “Juiz Hércules” e ao qual apresenta como alter-

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nativa – depois de alongada análise onde atribui as mazelas desse modelo de Juiz todo-poderoso, quase um deus, ao positivismo jurídico – que juizes se valham sempre da pru-dência e ponderação na aplicação do saber jurisprudencial, (DWORKIN, 2002, p. 127 e 203) conselho vago e genérico na medida em que deve ser guia de ação para qualquer juiz diante de qualquer caso, fácil ou difícil.

Que em tal contexto o juiz não apenas se veja obri-gado a argumentar em torno da decisão que tomará como também que tenha ou mais de uma decisão aplicável ao caso ou, mais radicalmente, tenha que criar direito novo, não é – de certo modo – novidade.

O que é de se notar é que juízes argumentam sempre. Assim, portanto, a hipótese a qual aqui se trata é a de que a teoria da argumentação jurídica não pode ser tomada com um modelo de justificação só em hard cases, mas apenas que – de forma mais restrita – num caso fácil o esforço ar-gumentativo é menor.

O que se dá no caso fácil é que sua aparência óbvia decorre de sua estrutura silogística. Não percebem os que adotam sem ressalvas esse modelo óbvio é que o silogismo é muito mais uma forma de apresentação das razões do direito do que mesmo forma de decisão.

Aristóteles, o primeiro a perceber essa peculiaridade do discurso – e mais especificamente da argumentação jurídica – as-sinala que o silogismo é característico da dialética ao passo que o entimema é próprio da retórica, e ambos têm em comum o fato de que aqueles que necessitam de lidar com argumentos têm-nos em mente quando falam dos topoi, isto é dos lugares-comuns típicos do direito (ARISTÓTELES, 1998, p. 54, I, 2, 1358a).

Não perceber tal particularidade da argumentação judi-cial faz com que passemos ao largo do motivo pelo qual a

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forma entimemática, ou seja, a ocultação de alguma premissa com finalidades persuasivas (SOBOTA, 1996, 251-273), é tão cara ao âmbito jurídico ainda que, nem sempre, os juristas se dêem conta disso. E isto ocorre pelo fato de que se alguma dessas premissas for bem conhecida, nem sequer é necessário enunciá-la, pois o próprio ouvinte a supre, sendo por isso mais adequado ao discurso judicial (ARISTÓTELES, 1998, p. 52, I, 2, 1357a; p. 80, I, 9, 1368a).

E tal se compreende a partir de dados teóricos – os casos fáceis são de solução mais óbvia – até respostas mais pragmáti-cas, dentre as quais a de que casos fáceis dão menos repercussão, ganhos materiais e notoriedade aos que neles se debruçam.

Por fim, também é de pouca sustentação a tese pelo quais questões de fato não pode ser objeto de argumentação.

E ainda que tal concepção pretenda se sustentar, no campo da dogmática processual em uma atitude gnosioló-gica pelo qual fatos são objetivos por si mesmo e, em assim sendo, dispensam interpretação, ela é desmentida exatamente por suas próprias premissas, isto é, pelos fatos, quando sa-bemos que no âmbito jurídico um mesmo fato pode resultar em várias percepções, portanto em múltiplas interpretações, todas elas carentes de justificação a fim de que se convençam aqueles a quem o operador de direito pretende persuadir, o que – e para concluir – não põe em xeque nem sua objetivi-dade nem a existência de um mundo externo e independente dos indivíduos.

5 – REFERÊNCIAS

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O SISTEMA FORMULÁRIO DE COGNIÇÃO DE LIDES CÍVEIS À BASE DO

PROCESSO CIVIL ROMANO CLÁSSICO

Fernando Joaquim Ferreira Maia1

REsumO

O processo civil romano, particularmente a sua forma clássica, revestiu-se de originalidade, com princípios, valores e institutos próprios. Neste artigo, o leitor vai encontrar uma análise do sistema processual formulário, através de uma visão dialética, contextualizada e ancorada em fontes respeitadas. Distinguem-se a processualística do sistema formulário romano, ao tempo do Principado, quanto às suas funções cognitivas e executórias. Outros-sim, considerou-se a relação do sistema formulário com os princípios jurídicos romanos, o Estado aristocrático e os condicionantes históricos em que a civilização romana

1 Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernam-buco, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE, Advogado e Professor da Faculdade Maurício de Nassau.

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estava inserida, bem como com a organização judiciária de Roma e o escravismo. Por fim, o maior mérito deste artigo reside no fato de que ele não é somente uma obra sobre processo civil, mas, antes de tudo, referente à História do Direito. Desta forma, o estudioso do direito vai encontrar valiosos aspectos do direito romano clássico, tendo por base a construção do modo-de-produção escravista na Roma antiga.

Palavras chaves: processo formulário, Roma, procedi-mento.

AbsTRAcT

The “formular issue” starts on Republic, 149 B.C., and ends on III a.C., with a “extraordinary cognition system”. The Roman wars resulted in growth of territory, of people control by romans and increase in wealth production. In this time, the before issue, by law action, doesn’t offer answers for new reality, it was necessary a new way to re-solve conflicts. Thus, when the Republic ends, the Roman aristocracy promotes development of laws with rational inspiration, practical organization, the goals were repro-duction of slavery and establishment of Roma as universal unity, what only was possible with new ways of seizure, handling and creation of forms of social interaction. The “formular issue” was its expression juridical, a abstract model that together oral procedure, provided to sue by writ-ing, it fixes a exact object impugned and gives the judge power to condemn or acquit.

Keywords: formular issue, Roma, procedure

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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico29

sumário: 1. A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL ROMANO CLáSSICO. 2. A ESTRU-TURA SÓCIO-POLÍTICO-ECONÔMICA ROMANA AO TEMPO DA FÓRMULA. 2.1. O primórdio do sistema for-mular: a República. 2.2. A consolidação do ordenamento processual formular: o Principado. 2.2.1. Gênese e de-senvolvimento do Principado. 2.2.2. Organização política do Principado. 2.2.3. Decadência e queda do Principado. 3. O PROCESSO FORMULáRIO. 3.1. O ordenamento processual anterior ao sistema formulário: as ações da lei. 3.2. Gênese e desenvolvimento do sistema formulário. 3.3. As instâncias procedimentais do ordenamento processual formular. 3.3.1. O procedimento formulário na instância in iure. 3.3.2. O procedimento formulário na instância apud iudicem. 4. O DIREITO HONORáRIO COMPLEMEN-TAR. 4.1. Os editos dos magistrados. 4.2. As diversas modalidades de editos. 5. DO APOGEU AO OCASO DO ORDENAMENTO PROCESSUAL FORMULAR NA ROMA CLáSSICA. REFERÊNCIAS.

1 – A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL ROMANO CLÁSSICO

Este artigo tem por fundamento monografia intitulada O processo civil romano ao tempo da ascensão e apogeu da civilização romana, de minha autoria, apresentada para a disciplina de direito processual de conhecimento, como exigência parcial para a obtenção do grau de es-pecialista em direito processual civil pela Faculdade de Direito do Recife-UFPE, obtido pelo autor em fevereiro de 2002.

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A grande diferença entre a civilização romana e as de-mais da sua época é que ela conseguiu sedimentar estruturas fundamentais no seu mundo que, motivadas pelo enraiza-mento do cristianismo nas fronteiras do Estado romano, com seus princípios helenísticos, conseguiram transmitir a herança romana ao longo das civilizações subseqüentes até os dias atuais. Daí a importância do estudo do direito romano, sobretudo para os países cujo sistema jurídico se enquadre na família civil law, como é o caso do Brasil, visto que, na raiz do ordenamento jurídico destes países está, sob certa medida, a herança romana.

Desta forma, neste trabalho, analisaremos, brevemente, o sistema formulário do processo civil romano clássico, através de uma análise dialética, ancorada no processo de evolução das leis objetivas de desenvolvimento do modo-de-produção escravista romano, bem como nos condicionantes históricos e materiais em que a civilização romana estava inserida, compreendendo o período histórico correspondente ao Principado.

2 – A ESTRUTURA SÓCIO-POLÍTICO-ECONÔMI-CA ROMANA AO TEMPO DA FÓRMULA

2.1. O primórdio do sistema formular: a República

Em 510 a.C., o Estado romano passa a adquirir uma nova forma, esta decorrente da vitória da aristoc-racia, no período da Realeza, contra as outras camadas sociais. Era a República, que durou de 510 a 27 a.C. A República constitui a segunda forma do Estado aris-tocrático romano.

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O grande excedente de produção gerado nesta fase de expansão do escravismo romano sustentou o desenvolvi-mento social e amenizou, em certa medida, as contradições sociais em Roma. Porém, ao mesmo tempo em que a aris-tocracia enriquece, a plebe continua com poucos direitos, começando a enfrentar os reflexos da concorrência entre o trabalho livre e o escravo; de outra parte, os médios e pequenos proprietários de terras e escravos começam a desaparecer, devido à expansão do Estado romano e ao fato de que a produção agrária, para que fosse rentável, tendo em vista que todos pagavam tributos e que as técnicas de produção naquela época eram pouco desenvolvidas, exigia grande número de escravos, o que os médios e pequenos proprietários de terras e escravos não tinham condições de adquirir, sendo, portanto, obrigados a vender as suas ter-ras aos grandes latifundiários, engrossando, nas cidades, a plebe (CHILDE, 1973, p. 216-217).

Esta situação impunha por um lado uma guerra de conquista, visando ampliar o número de riquezas minerais, agrícolas e manufatureiras disponíveis à Roma, sobretudo terras e escravos, bem como o número de povos submissos e a tributação sobre eles incidente (GUARINELLO, 1987, p. 11). Ademais, por outro lado, impunha modificações na estrutura jurídica da sociedade, sobretudo no que diz respeito à com-posição de conflitos, permitindo e incentivando a escravidão hereditária, a escravidão decorrente da subjugação imposta pelo Estado romano a outros povos e a escravidão por delitos civis ou penais. Em relação à guerra de conquistas, vale res-saltar que esta produzia o efeito colateral de trazer para o seio da sociedade romana a questão das nacionalidades. De certo, à medida que o Estado romano consolidava seu domínio sobre os novos territórios conquistados, integrando-os ao

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sistema escravista romano, as nacionalidades dominadas não só empreendiam uma luta de libertação nacional, mas, também, exigiam que a elas fossem estendidas a cidadania romana como forma de se integrarem à sociedade, numa tentativa de preservarem direitos seus.

Tal situação leva a uma progressiva radicalização da luta de classes em Roma, levando a plebe (e em menor medida, os escravos e os médios e pequenos proprietários de terras e escravos) a obter algumas conquistas sociais, ampliando, as-sim, progressivamente, os seus direitos. A Lei das XII Tábuas e o próprio sistema processual das ações da lei surgiram como forma de pressão da plebe sobre a aristocracia para que esta concedesse àquela mais direitos (BLOCH, 1974, p. 32-35), pressão esta que foi fortalecida em decorrência das contradições interescravistas que conduziam Roma a uma disputa por riquezas com outros Estados (ALFÖLDY, 1989, p. 28-35). Foi através da referida lei que a plebe conseguiu codificar o direito vigente, fixando-o de forma escrita, bem como permitir o seu conhecimento a todos os cidadãos ro-manos (ALFÖLDY, 1989, p. 28-35).

A expansão romana que se seguiu às guerras púnicas e gregas, com a derrota de Cartago e a ocupação da Macedônia, entre 264 a 146 a.C., possibilitou um aumento e fluxo da produção de riqueza nas fronteiras do Estado romano. Esta nova evolução do escravismo de Roma foi acompanhada por contradições no processo de produção. A concorrência do tra-balho livre com o escravo, acabou por prejudicar o primeiro (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS, 1961, p. 36), os gastos com a plebe, a tendência à queda da produtividade do escravo, apesar de tudo, começavam a germinar. Outrossim, o êxodo rural e a desvalorização monetária assinalavam a pauperização da plebe e dos pequenos e médios proprietários

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de terras e escravos (GONçALVES, 2002, p. 126-127). Ade-mais, o quadro acima aprofunda a divisão da produção e do trabalho na sociedade, operando a divisão da aristocracia em diversos estratos. O novo estágio de desenvolvimento do es-cravismo romano, o acirramento das contradições sociais e a progressão das outras classes sociais rumo ao poder político, no quadro da crise da República, geram antagonismos obje-tivos entre os interesses dos diversos estratos da aristocracia romana, opondo-os relativamente.

Para a plebe, por outro lado, os novos direitos alcançados eram efêmeros, pois representavam tudo, menos a conquista do poder político. A plebe queria o poder estatal concentrado nos seus comícios, a repartição das terras e a extensão da cidadania romana a outros povos, esta última como ma-terialização da pressão das outras nacionalidades por mais direitos. As reformas de Tibério e Caio Graco, Tribunos da Plebe, já apontavam neste sentido ao objetivarem a redis-tribuição das terras, concentração do poder nos Comícios da Plebe e extensão da cidadania romana aos povos conquistados (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 149-151). A plebe queria o poder do Estado para romper com o escravismo. Para a aristocracia isto era inaceitável, pois transferir o poder para os Comícios da Plebe significava mudar a forma do Estado, entregando o poder político à plebe, que progredia rumo ao poder estatal, tendo já a hegemonia no Senado. Distribuir as terras à plebe significava desmantelar o sistema produtivo, visto que a produção agrária ainda era a principal atividade econômica da época e o grosso do trabalho escravo era ali empregado. Estender a cidadania romana aos povos conquistados era renunciar à política de conquista, fundamental ao escravismo. O que estava em jogo era a própria ordem estatal escravista e a existência da aristocracia (MAIA, 2004, p. 16).

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Aqui, a aristocracia romana deu grande importância ao sistema jurídico, registrando-se grande proliferação de normas jurídicas, bem como intensa atividade jurídica, sobretudo nos fins da República, objetivando comentar as leis existentes através da justificação das relações sociais escravistas (GONçALVES, 2002, p. 128-129). Desta forma, o direito romano, ao procurar legitimar o poder político aristocrata, regular o modo-de-produção escravista, bem como disseminar a ideologia dominante no seio das outras classes, revelava o seu caráter aristocrático e de superestru-tura ideológica do Estado.

A República, nascida para garantir o interesse da aris-tocracia, não conseguia mais cumprir sua função, visto que o consenso do Estado falhara e sua forma estava esgotada.

Ademais, já a partir do último século antes da era cristã, a luta de classes se acirra, desta vez com a pressão dos escravos e dos antigos camponeses despojados de suas terras.

Por fim, em 27 a.C., depois de um período de uso exces-sivo do instituto da ditadura (três triunviratos), a República é desmontada pela aristocracia, utilizando o Estado, com sua coerção, através de sua vanguarda política (os setores em torno de Otávio Augusto), instituindo o Principado.

2.2. A consolidação do ordenamento processual for-mular: o Principado

2.2.1. Gênese e desenvolvimento do Principado

Em 27 a.C. tem início uma nova forma do Estado ro-mano, estendendo-se aproximadamente estende até o século III da nossa era: o Principado. O Principado se caracterizava por uma diarquia de poder, cabendo ao Príncipe os mais amplos poderes

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possíveis e ao Senado funções legislativas e eleitorais. As outras instituições da República vão perdendo gra-dativamente as suas funções ou as tendo distorcidas (FUNARI, 1999, p. 29-30). As Magistraturas passam a ser subordinadas ao Príncipe e os Comícios passam a sofrer contínua restrição até a sua completa extin-ção (NÓBREGA, 1959, p. 81-87). Aqui, destaca-se a figura de Marcus Tulius Cícero. Este foi o principal ideólogo do Principado, advogando uma forma de Estado calcada num pacto aristocrático, à base de uma composição de interesses entre os nobilitas e os eqüestres como condição para a continuação do escra-vismo romano, devendo esta composição, preservando as instituições vigentes, ser conduzida por alguém com habilidades suficientes para mediar este pacto, funcionando como um moderador (CÍCERO, 1996, p. 48-50, 89) (RIBEIRO, 1977, p. 141-142).

É no Principado que Roma encontra o seu apogeu e começa a conhecer seu declínio. Neste período, todas as regiões em torno do Mediterrâneo (a Europa, até os rios Reno e Danúbio, da Turquia até o sul do Cáucaso e à foz dos rios Tigre e Eufrates, totalizando cinco milhões de quilômetros quadrados) pertencem a Roma. Com o Principado, Roma experimenta grande crescimento demográfico, possuindo a cidade de Roma um milhão e duzentos mil habitantes. Ademais, o enorme desen-volvimento da produção de recursos agrícolas, minerais e manufatureiros, propicia acúmulo e fluxo de riquezas constantes, assegurando prosperidade ímpar em toda a história romana. Nesta época, o Estado romano já man-tém contatos com outras civilizações mais ao oriente (Índia, entre outras) e a expansão das fronteiras romanas, bem como a permanente guerra de conquista, obrigam o

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Estado a sustentar um exército com trezentos e sessenta mil membros (MELLO, 1995, p. 158-161).

Como já foi dito, o fato de a economia romana estar alicerçada no trabalho escravo, este empregado princi-palmente sobre a produção agrária a qual dependiam todas as outras atividades, gerava, por um lado, uma concorrência com o trabalho livre, levando os médios e pequenos proprietários de terras e escravos à falência e a maioria da população, constituída pela plebe, que não tinha escravos ou os tinha em poucas unidades, à desocupação, à queda do seu poder aquisitivo, já que a maior parte das atividades laborais humanas estavam destinadas aos escravos. Por outro lado, para que se aumentasse a produção de bens, exigia-se um constante aumento do número de escravos e de terras, o que, dada as condições materiais da época, só poderia ser obtido através de uma contínua expansão das fronteiras romanas e da subjugação de outros povos. A guerra de conquista significava isto.

Outrossim, a guerra de conquista e as alterações na ordem legal permitiam a escravidão hereditária e a escravidão por delitos civis ou penais, podendo haver, ainda, escravidão temporária. Esta guerra de conquista, se por um lado ampliava o número de escravos, de ter-ras e a arrecadação de tributos dos povos dominados, acrescentava alguns problemas:

1 - A mantença de uma poderosa força armada, desti-nada não só a ampliar os territórios conquistados, mas a mantê-los, aumentando os gastos do Estado (CHILDE, 1973, p. 287).

2 - A luta de libertação nacional dos povos dominados por Roma como um componente a mais para luta de

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classes entre a aristocracia, os pequenos e médios pro-prietários de terras e escravos, a plebe e os escravos.

3 – A questão das nacionalidades como um problema sócio-político, também componente da luta de classes, pois, como anteriormente dito, desde a República, à medida que o Estado romano estendia suas fronteiras, havia pressão por parte das nacionalidades conquistadas para que elas fossem integradas à sociedade romana. Esta integração plena, com base na igualdade de direitos, só podia ser assegurada com a extensão da cidadania romana aos povos conquistados (CHILDE, 1973, p. 287).

Outrossim, a existência de grande população deso-cupada e/ou empobrecida, implicava ao Estado, não só mantê-la (MICHULIN, 1992, p. 200), mas, também, ocupá-la. Daí a preocupação, verificada sobretudo na gestão de Vespasiano (69-79 d.C.), em se estabelecer feriados, grandes espetáculos e festividades para distrair esta população. Tudo, na esteira dos contínuos embates entre as classes sociais romanas, pois apesar da vitória da aristocracia sobre as outras camadas sociais em Roma, verificada em meados do período republicano, as con-tradições do modo-de-produção escravista, na medida em que este se desenvolvia, cresciam na mesma propor-ção. Desta forma, impunha-se amenizar as contradições na sociedade, objetivando a contenção da radicalização do confronto social (HADAS, 1969, p. 49).

Um outro fator que surge, já a partir de Otávio Augusto, é uma diminuição do ritmo de territórios conquistados por Roma. Ora, a guerra de conquista era o principal meio de se obter escravos e ampliar a economia. Sem uma contínua reposição e aumento no número de escravos, o escravismo romano corria sério

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risco de estagnação, seguido de falência, pois era sobre o trabalho escravo que todo processo de produção estava assentado. A partir do século III da nossa era, Roma não conseguiria mais conquistar territórios. Ademais, em relação ao trabalho escravo, este passa a apresentar uma tendência à queda de produtividade, o que será tratado mais adiante (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS, 1961, p. 35-36).

Já nos fins do Principado, a diminuição do cresci-mento da população e a extensa exploração das minas assinalavam, para o futuro, um aumento do custo de vida e dificuldades com a reposição dos efetivos do exército. Isto, decididamente, criava empecilhos para expansão de Roma e a conseqüente dificuldade de se obter escravos, além, é claro, de desestabilizar o tesouro do Estado romano, visto que a arrecadação de tributos diminuía. De fato, eram enormes os gas-tos, ameaçando o desenvolvimento das atividades econômicas. A contratação de soldados mercenários e a permissão para que pessoas não romanas servissem ao exército (já que a queda da população tornava es-casso o número de soldados romanos), em meados do Principado, só agravou esta situação (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 259).

Por outro lado, mesmo considerando a expansão do sistema viário, que interligava todas as partes do território romano, a extensão do Estado romano, em virtude dos precários meios de comunicação da época, tornavam as distâncias longas, comprometendo a eficácia da administração e criando condições para a ocorrência de disputas internas no território, sobretudo entre os estratos da aristocracia e os pequenos e médios proprietários de terras e escravos.

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Por último, a lógica do escravismo, bem como suas contradições, impediam que se utilizasse a maior parte do capital excedente produzido para se reinvestir na economia, buscando uma diversificação das fontes de riqueza.

Todos os fatores levantados acima germinaram no Principado, sendo determinantes para o desmorona-mento da civilização romana, já na etapa seguinte: o Dominato.

2.2.3. Organização política do Principado

No Principado, as fontes do direito presentes na República permanecem, sendo acrescidas de outras, porém redimensionadas consoante as exigências do de-senvolvimento do modo de produção escravista romano. Assim, o direito romano, sob a égide do Principado, passa a ter as seguintes fontes: 1 – costumes; 2 – leis comiciais; 3 – editos dos magistrados; 4 – senatus con-sultos; 5 – constituições imperiais; 6 – respostas dos jurisconsultos.

O costume era o consentimento tácito do povo em oposição à lei, desde que manifestado explicitamente por longo tempo. Quando o costume preenchesse lacuna de lei (costume praeter legem), era obrigatória sua aplica-ção. Quando o costume traduzisse um comportamento positivo contrário à lei (costume contra legem), ele não revogava a lei. Já se traduzisse um comportamento ne-gativo de não observância da lei (desuetudo), sem ter o costume contra legem, revogaria a lei.

O fato é que, em virtude do advento do Principado, por ação da aristocracia e do caráter do Estado como meio de escravização de uma classe social por outra,

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bem como das conseqüências que isto implicava, do ponto de vista de se conter as outras camadas sociais, principalmente a plebe, e se aumentar as medidas re-pressoras aos escravos, o costume, pouco a pouco, perde sua importância, sendo, ao longo do tempo, positivado através do direito honorário (ALVES, 1995, p. 34-35).

Outrossim, a expansão territorial de Roma exigia um aprimoramento dos órgãos do Estado, o que só poderia ser efetivado com a maior positivação possível de todas as normas existentes nos territórios romanos.

As leis comiciais, em função da restrição imposta aos Comícios, decorrentes dos fatores acima levantados, embora continuassem a existir, com o tempo deixaram de aparecer, por desuso dos próprios Comícios, evi-denciando a sua decadência, principalmente depois da gestão do Príncipe Otávio Augusto.

Pelos Comícios, entretanto, até o século I d.C., passa-ram algumas leis importantes: Leges Iuliae Iudiciariae, Lex Iulia de Maritandis Ordinibus, Lex Fufia Caninia, entre outras (ALVES, 1995, p. 35).

Os editos dos magistrados, dos quais emanava o direito honorário, embora continuassem a existir no Principado, em função de o Príncipe gozar de amplas competências funcionais, subordinando a ele todas as Magistraturas, foram perdendo com o tempo toda a sua atividade criadora. Já com o Príncipe Adriano (117 a 138 de nossa era), o direito honorário sofreu engessamento total, mediante a fixação definitiva dos editos, com a sistematização de todo o direito honorário existente no território romano, criando-se, assim, o edito perpétuo. Através do edito perpétuo, o Magistrado só podia criar novo meio processual por solicitação ou do Príncipe ou do Senado (ALVES, 1995, p. 35-36). Vale ressaltar que

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no processo de surgimento do edito perpétuo o juriscon-sulto Sálvio Juliano teve participação destacada, visto que coube principalmente a ele a fixação definitiva dos editos dos magistrados.

Em relação aos senatus consultos, estes eram de-liberações do Senado. Na República, não constituíam fontes do direito.

Com a derrota da plebe, dos escravos, médios e pe-quenos proprietários de terras e escravos pela aristocra-cia e com a reformulação de todas as frações do poder político, o Senado, agora livre da influência plebéia e majoritariamente aristocrático, passou a absorver as funções legislativas e eleitorais dos Comícios, manten-do certa posição de destaque, ante os outros órgãos do Estado, à exceção do Príncipe.

Com isto os senatus consultos passam a ter força constituidora de lei. Os senatus consultos eram criados por força de proposta do Príncipe ao Senado, que a vo-tava. Em meados do Principado, a proposta do Príncipe passou a ter mais força que a deliberação do Senado, senatus consultos, visto que este sempre a aprovava. A partir daí, o senatus consultos transformou-se em oratio, sendo designado pelo nome do Príncipe (CRETELLA JÚNIOR, 1991, p. 55).

Os senatus consultos eram, inicialmente, designados pelo nome do Magistrado que o propunha, depois pelo do Príncipe. Excepcionalmente, era designado pelo nome da pessoa que o provocou.

As constituições imperiais eram atos emanados do Príncipe contendo novo preceito jurídico. Obviamente, não era o Príncipe que diretamente elaborava estas constituições, mas sim um colégio formado por juris-consultos que auxiliava o Príncipe na elaboração destas

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normas (CRETELLA JÚNIOR, 1991, p. 56). No final do século III d.C., com o fim do Principado e o surgimento de uma nova forma de manifestação do poder político em Roma, o Dominato, as já existentes constituições imperiais tomam o lugar dos senatus consultos.

As constituições imperiais eram de quatro tipos: 1 – Editos; 2 – mandatos; 3 – restritos; 4 – decretos.

Os editos eram normas gerais proferidas pelo Prínc-ipe a qualquer tempo, assemelhado-se aos editos dos magistrados.

Em relação aos mandatos, estes eram instruções transmitidas pelo Príncipe aos funcionários do Estado e aos Governadores das Províncias sobre qualquer as-sunto.

Os restritos, eram respostas dadas a particulares ou a Magistrados e a Juizes populares, pelo Príncipe ou por funcionários de suas chancelaria, versando sobre questões jurídicas. Em relação aos particulares, eram escritas abaixo das perguntas; em relação aos Magistra-dos e Juizes populares, eram enviadas por carta.

Por fim, os decretos eram decisões, definitivas ou interlocutórias, dadas pelo Príncipe e a ele submetidas em primeiro grau ou em grau de recursos. Pelo decreto, o Príncipe podia, inclusive, mudar o sentido de interpreta-ção de determinada lei (NÓBREGA, 1959, p. 89-90).

As constituições imperiais mais importantes eram o decreto e o restrito.

Outra fonte do direito no Principado eram as respos-tas dos jurisconsultos. Estas eram opiniões dadas por sábios do direito, denominados jurisconsultos, com a autoridade dada pelo Príncipe, que tinham o direito de responder oficialmente às consultas que lhes fossem formuladas, fixando a regra de direito aplicável a um

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determinado caso (CRETELLA JÚNIOR, 1991, p. 58-59).

As respostas dos jurisconsultos já existiam na Re-pública, mas foi por meio de um restrito do Príncipe Adriano que elas foram elevadas à fonte de direito.

Como já dito, a prosperidade alcançada nos tempos áureos do Principado se assentava nas relações de pro-dução e leis econômicas escravistas, pela qual o escravo era a força de trabalho fundamental em qualquer meio de produção, sendo o produto suplementar do trabalho deste o “motor” fundamental da economia escravista ro-mana. Entretanto, esta prosperidade alcançada sucumbe face ao acirramento das já mencionadas contradições do escravismo romano durante o Principado.

2.2.4. Decadência e queda do Principado

Já nos fins do Principado a pouca produtividade do trabalho escravo e o esgotamento da guerra de conquis-tas geram profunda crise e acentuada estagnação no paradigma dominante de produção agrária. De certo, o sistema produtivo escravista, como um todo, apesar do grande acúmulo de capital proporcionado pelo de-senvolvimento pleno de suas forças produtivas, ainda se comportava extensivamente, pelo qual a geração de riqueza estava direta e proporcionalmente ligada à reposição/ampliação do número de escravos e terras. Essa estagnação econômica se materializava, justa-mente, pela incapacidade de se alavancar a produção de riquezas pelo modelo agrícola extensivo de produção (dificuldade cada vez maior de reposição/aumento do número de escravos e terras) e pela conseqüente queda da produção do campo, impedindo a dinamização do

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processo produtivo em larga escala. O esgotamento da guerra de conquistas contribui decisivamente para a crise em curso, visto que resulta na passagem à guerra defensiva, face ao aumento da luta de libertação nacio-nal dentro das fronteiras de Roma e da ocorrência das primeiras invasões bárbaras, comprometendo a prin-cipal fonte de reposição/aumento de escravos e terras (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 260-261). Logo, a produção agrícola entra em rápido processo de desorganização, com a multiplicação da pequena agropecuária.

Entretanto, a manutenção do espólio do Estado romano e a lógica do sistema escravista, exigiam a expansão/espoliação permanente do território romano sobre os outros territórios, conduzindo a gastos estatais expressivos, forçando a um aumento de tributos, princi-palmente sobre os pequenos e médios proprietários de terras e escravos, mas também sobre a indispensável e cada vez mais exigida atividade manufatureira, com pre-juízo para os artesãos (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 260-261). Isto, somando-se à mantença, cada vez maior, de grande população desocupada nas cidades, representada pela plebe, impulsionando a concorrência do trabalho livre com o escravo, aguçava a crise no campo, empo-brecendo principalmente os pequenos proprietários, começando a fazer surgir o fenômeno do colonato, mediante o qual os pequenos proprietários agrícolas e escravagistas arrendavam suas terras à aristocracia, recebendo em troca o direito de nelas lavorar como se fossem acessórios dessas terras, transformando-se em servos (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 244, 258-259).

Outrossim, a permanência prolongada de tal situação era insuportável para os pequenos e médios propri-etários de terras e escravos, bem como para a plebe, os

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comerciantes e artesãos manufatureiros, pois o ritmo da produção não acompanhava mais o constante aumento das despesas do Estado aristocrático, movida pela ne-cessidade de proteger/ampliar as fronteiras, manter as forças armadas e assegurar a reprodução da prosperidade alcançada pela civilização romana nos séculos I e II de nossa era.

Outrossim, a queda de produtividade do trabalho es-cravo, por razões óbvias, atingiu não só a agropecuária, mas, com a mesma intensidade, a mineração e a manu-fatura, o que vai se verificar com mais intensidade no Dominato, aumentando o influxo de riquezas. Ademais, na tentativa de se superar a crise, começou a surgir outro fenômeno: a emissão excessiva de moeda. Este, por sua vez, conduziu a um aumento demasiado da circu-lação mercantil, provocando desvalorização monetária. Tal situação levou progressivamente ao colapso da manufatura, mas também à queda acentuada do poder aquisitivo da plebe e à falência dos pequenos e médios proprietários de terras e escravos (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 247-250, 262).

No contexto acima descrito, estava claro que a não correspondência obrigatória das relações de produção do escravismo com o caráter das forças produtivas deste regime impedia um salto de qualidade nas técnicas de produção, passando para um modelo intensivo de desenvolvimento da produção, pelo qual o aumento da produção de riquezas passaria pelo aumento qualitativo da eficácia das técnicas produtivas. De fato, tal salto tec-nológico só seria possível com grande aporte de recur-sos na economia, multiplicando as fontes geradoras de capital. Na verdade, a crise do Estado romano era a crise global do modo de produção escravista, representada na

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impossibilidade deste sistema político-econômico em assegurar a contínua realocação da riqueza auferida, no processo produtivo, garantindo a revolução tecnológica, exigência indispensável do contexto da época para a passagem para uma economia intensiva que, por sua vez, assegurasse um acúmulo de capital necessário para atender às demandas, já mencionadas, da sociedade romana.

O quadro descrito acima conduz a uma nova radi-calização da luta de classes na sociedade romana entre os escravos, plebeus, pequenos e médios proprietários de terras e escravos e a aristocracia, tendo como fundo o acirramento das contradições sociais geradas pelo escravismo, mas também os fenômenos explícitos de agonia e colapso da sociedade decorrentes dessas con-tradições.

De certo, era evidente para as camadas dominadas, principalmente para os pequenos e médios proprietários de terras e escravos, que se quisessem fazer preva-lecer seus interesses, tinham que ir além de questões meramente efêmeras, pois a estagnação do escravismo era sistêmica, historicamente construída pela longa evolução das suas leis de desenvolvimento, indo muito além de fatores meramente conjunturais, como os que caracterizaram as crises durante a Realeza e a República. Dava-se necessário se apossar do poder político e romp-er, de uma forma ou de outra, com os pilares econômicos escravistas que entravavam o livre desenvolvimento das forças produtivas. De fato, a progressão da luta social atingia todas as instituições do Principado, sobretudo as forças armadas, onde os pequenos e médios proprietários tinham bastante influência, e o Senado, onde em menor medida a plebe influenciava, provocando constantes

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guerras civis e desorganização da forma de manifes-tação do poder central, ameaçando o poder político e econômico da aristocracia.

Por outro lado, à aristocracia não restava alternativa ao escravismo, pois era a classe dominante nesta socie-dade, detentora dos principais meios de produção, bem como a grande apropriadora do produto suplementar produzido pelo trabalho escravo. Era justamente na prevalência das relações de produção e leis econômicas escravistas na sociedade romana, assegurada pelo uso do Estado como órgão de dominação e reprodução da divisão da sociedade em classes, que a aristocracia legiti-mava seu poder político, transformando sua vontade, não só na vontade do Estado, mas, principalmente na vontade das outras classes sociais, assegurando a sua hegemonia econômica e social. Agora, com a falência do modelo político-econômico, aumento dos antagonismos sociais e da luta social, o quadro de correlação de forças passava a ser desfavorável aos grandes proprietários de terras e escravos, comprometendo a hegemonia aristocrata.

Aos fins do Principado, a sorte da aristocracia, e da própria Roma, resumia-se basicamente em impedir o esgotamento da economia escravista, viabilizando-a. De fato, várias foram as medidas adotadas pelo Estado para superar a situação de colapso sócio-econômico. Pode-se citar, como exemplo, o incentivo ao arrenda-mento de terras, profissionalização das forças arma-das (com a contratação de mercenários), extensão da cidadania romana a todos os homens livres, aumento da circulação mercantil, alterações no sistema jurídico processual formulário, aumento de tributos, estímulo à indústria manufatureira e à mineração, etc. Entretanto, tais medidas, a partir do momento em que não ataca-

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vam os fundamentos do escravismo e face ao fato de só terem sentido pelo reforço desses mesmos fundamentos, acabaram por ampliar a níveis dantescos a espoliação da aristocracia sobre as outras parcelas da sociedade, transferindo o ônus da crise para estas, criando ainda mais distorções.

Já em 212 d.C., na gestão do Príncipe Caracala, a extensão da cidadania romana a todos os homens livres no território de Roma, muito embora tenha objetivado o fortalecimento da teologia politeísta romana, a ampliação do sistema tributário romano aos peregrinos e a simplificação das normas de resolução de conflitos, representou uma tentativa de amenizar os pleitos das camadas subalternas de Roma. Entretanto, acabou por constituir um dos vários fatores que evidenciavam o exaurimento do Principado como forma do Estado romano. Este não conseguia mais conter, através dos mecanismos de consenso estatais, a progressão dos outros grupos sociais romanos rumo ao poder político. Impunha-se a coerção estatal para a defesa da ordem escravista e dos interesses da aristocracia.

Afastada definitivamente a plebe, com o esvazia-mento das competências do Senado, enquanto órgão do Estado, e a concentração das competências estatais no Príncipe, os diversos seguimentos da aristocracia se lançam numa luta pelo poder político com os médios e pequenos proprietários de terras e escravos, que con-tamina todas as instituições romanas. Esta disputa, na qual as forças armadas tem papel de destaque, culmina na chamada anarquia militar (período de 50 anos – 235 a 285 d.C.), caracterizado por guerra civil interna, durante

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a qual se sucedem 26 Príncipes (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 261-262), resultando no fim do Principado.

A ascensão reformadora de Diocleciano inaugura uma nova forma de manifestação de poder, o Domi-nato (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 263), caracterizada pela centralização absoluta das competências estatais na figura do, agora, Imperador e o surgimento de um novo sistema de composição de conflitos, dotado de uma única instância de decisão, a cognição extraordinária.

O Dominato não teve a propriedade de salvar o Estado romano. Aos fins do Principado, a falência do paradigma escravista era irremediável. O Dominato apenas repre-sentou uma sobrevida do sistema político-econômico, adotado e desenvolvido em Roma por séculos, até o seu fim definitivo com a queda de Roma em 476 d.C.

3 – O PROCESSO FORMULÁRIO

3.1. O ordenamento processual anterior ao sistema formulário: as ações da lei

O sistema das ações da lei era a processualística domi-nante em Roma anterior ao advento do sistema formulário. Predominou, como sistema hegemônico, durante o período da Realeza e da República. Aqui, faz-se necessário tecer brevíssimas linhas sobre o tema, objetivando uma melhor compreensão do surgimento do sistema formulário.

As ações da lei, ou legis actiones, eram regras proces-suais civis positivadas, destinadas aos cidadãos romanos, chefes de famílias, para o reconhecimento de um direito ou para a execução de um julgamento (NEVES, 1990, jus

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privatum sub), tendo por característica principal a oralidade, pela qual todos os atos processuais eram necessariamente orais, e o seu excessivo formalismo e complexidade de atos, bem como a substituição ou incorporação do direito consuetudinário.

No direito romano, havia uma íntima relação entre o direito material e o processual, de forma que não existia, pelo menos formalmente, sequer esta divisão, sendo todos um direito só e exercido a um só tempo. Desta maneira, só existiria um direito se existisse uma ação para tutelá-lo, pelo qual a ação era mero exercício de direitos subjetivos asse-gurados pelo direito material. É por isso que no período das ações da lei o ato processual era considerado um negócio entre as partes, sendo ato de qualquer gênero (DINAMA-RCO, 2000, p. 17-18).

A ação seria instrumento e petição do direito, dirigida ao adversário e tendo por objeto o bem questionado em juízo, pela qual para cada direito a ser tutelado corresponderia uma ação. Assim sendo, as ações da lei dividiam-se entre aquelas com funções de conhecimento e com funções executivas.

As ações da lei com função de conhecimento eram as seguintes: actio per sacramentum, actio per condictionem, actio per iudicis arbitrive postulationem. A actio per sac-ramentum era uma ação obrigacional geral, podendo ser de natureza pessoal ou real, destinada à cobrança de créditos nos contratos verbais ou literais e de créditos resultantes de delitos ou à prevalência de direitos sobre coisas móveis ou imóveis (MEIRA, 1988, p. 261). Já a actio per condic-tionem aplicava-se às obrigações que tivessem por objeto coisa certa, seja ou não em dinheiro. Em relação à actio per iudicis arbitrive postulationem, esta era utilizada para a divisão de herança, para a cobrança de crédito decorrente

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de uma promessa e para a divisão de bens comuns (ALVES, 1995, p. 200).

As ações da lei com funções executivas eram as seguintes: actio per manus iniectionem e actio per pignoris capionem. A primeira só ser usada para execução de quantia certa, destinando-se contra aquele que foi condenado a pagar certa importância e contra o réu confesso. A segunda era um procedimento extrajudicial, solene, pela qual o credor, dispensando a intervenção dos Tribunais, fazia a apreensão de qualquer objeto pertencente ao devedor e o conservava, como garantia, até que a dívida fosse paga.

As ações da lei processavam-se primeiramente in iure, diante do magistrado, e, posteriormente, apud iudicium, diante do juiz popular, este escolhido pelas partes ou pelo magistrado ou, ainda, por sorteio (ALVES, 1995, p. 193-194).

Uma vez presente as partes em juízo, abria-se a fase in iure, pela qual as partes debatiam a controvérsia entre si. Ocorreria, aí, duas situações: a) se o réu negasse o pedido do autor, seria mantido o estado atual do objeto do litígio (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 57); b) se o réu confes-sasse ou a sua defesa não fosse correta, em se tratando de ação real, o objeto do litígio era adjudicado ao autor pelo magistrado, em se tratando de ação pessoal, caso o réu se recusasse a cumprir a obrigação, o autor poderia executar o réu através da ação manus iniectio (ALVES, 1995, p. 194-195).

Ultrapassados esses incidentes, as partes ou o magistrado escolheriam um juiz popular, na presença de testemunhas, instaurando-se, aí, a litis contestatio. Neste mesmo ato era estabelecido os limites da lide, sendo fundamental a presença das partes (ALVES, 1995, p. 195).

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Tem-se, aqui, o início da fase apud iudicem. As partes deveriam comparecer ao juiz popular três dias depois de sua nomeação. Nesta fase, as partes expunham o litígio sem formalidades. Após isso, iniciavam-se os debates entre as partes, seguidos das provas que, pelo fato de prevalecer o livre convencimento do juiz popular, eram todas permitidas (ALVES, 1995, p. 195). Segue-se a sentença, condenando ou absolvendo o réu. Em função do caráter privado do juiz popular, este poderia não dá-la, sob a alegação de falta de elementos para isso. Neste caso, mandaria as partes volta-rem ao magistrado para que este nomeasse um novo iudex (MAIA, 2004, p. 19).

A sentença era irrecorrível, visto que a instância era plana e o duplo grau de jurisdição não existia; entretanto, se o réu não cumprisse a sentença, o autor deveria se valer de outra ação, a manus iniectio (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 59-60).

O sistema das ações da lei, embora caracterizado pela oralidade pura, era por demais bastante complicado e formal. Todos os atos eram revestidos de uma rígida solenidade e o simples descumprimento de alguma destas solenidades era o suficiente para que a parte descumpridora perdesse a ação. É no período das ações da lei que se origina alguns dos institutos e idéias que o direito ocidental absorveu, como a fiança, a representação judicial, a idéia de processo e ação e a limitação progressiva da autotutela.

Com o falecimento da República Romana, já em 27 a.C., alimentada, entre outros fatores, pela crescente luta de classes entre os grandes proprietários de escravos e de terras, pequenos e médios proprietários de terras e escravos, plebeus e escravos, tencionava-se, ainda mais, o sistema jurídico, no sentido de que este, pelo fato de se formar à luz do processo

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histórico de evolução das leis objetivas de desenvolvimento do modo-de-produção, passava a absorver as contradições do sistema escravista, bem como o reflexo disto na luta entre as classes sociais de Roma. Ademais, foi durante a República que as relações de produção em Roma, calcadas no escravismo, se desenvolveram plenamente, gerando grande aumento de produção e forçando o Estado Romano à guerra de conquista como forma de ampliar o número de escravos e, conseqüentemente, manter e aumentar a geração de riqueza. Isto, sem sombra de dúvida, influía diretamente nos valores sociais da época, visto que estes eram gerados pelo convívio social em que o indivíduo estava inserido, refletindo, assim, a ideologia da classe social que detinha o poder político e econômico na sociedade. Esta expansão da civilização romana, acelerada pela derrota definitiva da civilização cartaginense por Roma, na última guerra púnica, em 146 a.C., possibilitou um maior desenvolvimento das relações de troca entre os territórios conquistados, bem como garantiu o caminho para que Roma impusesse sua pax ao mundo (FARIA; MARQUES; BERUTTI, 1988, p. 81-86; 94-103).

Por fim, o excessivo formalismo do sistema das ações da lei (calcado na oralidade plena e solene, na horizontali-dade da instância judicial, na ausência de força executiva da sentença e na obrigação de comparecimento das partes em juízo) (SANTOS, 2007, p. 39-40), diante do novo quadro que se colocava, esgotava este sistema e exigia um sistema de composição de conflitos menos formal, mais célere, flexível e de boa compreensão, que pudesse integrar e se ramificar pelos vastos territórios que iam se conquistando, institucionalizando, assim, o modo-de-produção escravagista romano e disseminando a ideologia da aristocracia romana

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no seio das outras classes sociais e dos povos conquistados. Esta nova processualística cível era o sistema formulário, o qual será agora tratado.

3.2 – GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA FORMULÁRIO

O período formulário tem início durante a República, com a Lei Ebúcia (aproximadamente 149 a.C.), se consolida com o advento da Lex Julia indiciorum privatorum, que aboliu as ações da lei, em 17 a.C. (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 74) e tem seu ocaso no século III d.C., como processualística predominante, com a consolidação do ordenamento processual cível da cognição extraordinária (MACHADO, 2004).

Entretanto, há divergência quanto ao início da sua for-mação, visto que alguns autores, como Ludwig von Keller, sustentam que a fórmula já existia com a Lei Calpúrnia. Já Huschke sustenta que a fórmula já tinha aparecido com os editos dos Pretores Pelegrinos a partir do ano 242 a.C. Esta tese é reforçada por Manuel Girard ao completar que tais editos foram copiados dos costumes existentes nas provín-cias romanas conquistadas. A própria data da Lei Ebúcia é controversa, havendo estudiosos, como o próprio Girard, que afirmam que ela veio à tona entre 149 e 126 a.C. (NÓBRE-GA, 1959, p. 614-617). De certo, apenas com a Lei Júlia é que o processo formulário se consolida em Roma, visto que, até então, coexistia com a Lei Ebúcia o procedimento das ações da lei. Será no Principado que o processo formulário se desenvolverá plenamente (FARIA; MARQUES; BERUTTI, 1988, p. 97).

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O surgimento do sistema da fórmula tem como pano de fundo o afirmamento da civilização romana no mundo da época e o acirramento da luta de classes na Roma escravagis-ta, verificado nos séculos II e I a.C. De fato, a progressão das outras classes sociais em Roma, rumo à conquista do poder político (especialmente a plebe) da aristocracia, verificada naquela época, se materializou, sobretudo, na perda por par-te da aristocracia da hegemonia no Senado principalmente para a plebe (mas também, em menor parte, para os médios e pequenos proprietários de terras e escravos) e, conseqüen-temente, na inclinação do Senado aos interesses plebeus (reformas de Tibério e Caio Graco) (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 149-151) e em rebeliões desta classe e dos escravos (re-volta espartaquista em 74-72 a.C.) (STAERMAN, 1978, p. 196-203) na defesa de seus interesses. O consenso do Estado (representado por todo aquele conjunto de mecanismos que visam garantir pacificamente a proteção dos interesses da classe dominadora e do seu poder político e econômico, bem como a reprodução da ideologia da classe social dominante na sociedade, mascarando, assim, o caráter totalitário do Estado e garantindo o próprio poder político e econômico da classe social dominante) e a atual forma do Estado romano, a República, já estavam esgotados e não mais conseguiam envolver as outras classes sociais romanas.

Decididamente, para a aristocracia romana era necessário dar um salto de qualidade na luta de classes, era a exigência do contexto da época: a coerção estatal, como meio legítimo da expressão do poder político estatal, deveria ser empregada para modificar a forma do Estado romano, assegurar a domi-nação sobre a plebe, os escravos e os médios e pequenos proprietários de terras e escravos, bem como garantir a ma-nutenção dos interesses e do poder econômico e político da

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aristocracia, além dos fundamentos do modo de produção escravista em que a ordem estatal estava alicerçada.

É com esta compreensão que os grandes escravagistas de Roma, tendo como vanguarda política os setores que giravam em torno de Otaviano Augusto, golpeiam a Repú-blica e instituem o Principado, em 27 a.C. O Principado não foi fruto da vontade de uns poucos generais, mas fruto do esgotamento da República romana, expressão da dominação estatal da aristocracia sobre as outras camadas sociais, e da necessidade da aristocracia em preservar seus interesses e o escravismo romano.

Ademais, como já foi dito, as guerras de conquista le-vadas a cabo por Roma resultaram num aumento dos terri-tórios e povos controlados pelos romanos (abrangendo todo o mediterrâneo, toda a Europa ocidental e parte da Europa oriental), na expansão das trocas comerciais (inclusive o comércio privado entre cidadãos romanos e não-romanos), bem como do seu volume, com outros povos, num aumento da população sob a jurisdição do Estado e num grande au-mento da produção de riqueza. Outrossim, paralelamente ao ius civile, desenvolvia-se o ius gentium. Nestas circuns-tâncias, o procedimento das ações da lei, com seu excessivo formalismo (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 203), não con-seguia dar as respostas exigidas pela nova dinâmica que o sistema escravista começava a apresentar. Dava-se necessário construir um novo sistema de composição de conflitos que traduzisse os atuais condicionantes históricos e materiais em que Roma estava inserida. O sistema formulário significava precisamente esta nova construção.

De fato, já nos fins da República, a aristocracia romana procurou redesenhar o direito vigente, desenvolvendo um ordenamento jurídico prático, positivo e de inspiração ra-

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cional, objetivando a melhor reprodução das relações sociais escravistas (BRITO, 1967, p. 19). Aqui, o ius gentium, ou seja, aquele conjunto de leis que compunham os conflitos e disciplinavam os fatos da vida social entre os peregrinos, os cidadãos romanos e os estrangeiros, adquiria importância.

Muito embora o positivismo imperasse no direito roma-no clássico (AFTALIÓN; VILANOVA, 1994, p. 190), pelo qual o direito era visto como regra normativa, revelando-se como experiência humana e tendo como fontes os fatos produzidos pelo homem no espaço-tempo (REALE, 1969, p. 445-446), o certo é que a aristocracia romana se valeu de concepções do direito natural para preservar e garantir o funcionamento das instituições sociais, bem como o próprio ordenamento jurídico positivo. Assim sendo, o sistema ju-rídico passou a ser apresentado não como uma convenção, mas como uma exigência natural, pela qual agir de acordo com a lei, era agir de acordo com as divindades, vendo-se o mundo como uma grande comunidade, civilização, onde deveria reinar a fraternidade (CÍCERO, 1967a, p. 6-7). Por tal concepção, a civilização só seria compatível com uma ordem jurídica que assegurasse a razão e a força da natureza. Outrossim, aqui, estava imbuído o pensamento central da aristocracia no Principado em relação à questão das nacionalidades incorporadas ao território romano: o homem poderia pertencer ao mesmo tempo à pátria onde nasceu e à que o adotou, assim, todos os habitantes dos ter-ritórios conquistados teriam duas pátrias e deveriam morrer por Roma, dedicando-se inteiramente a ela, pondo-se a seu serviço e consagrando-lhe todos os seus bens (CÍCERO, 1967b, p. 2). Desta forma, o Estado romano buscava justifi-car ideologicamente, não só perante os povos conquistados, mas também perante seus cidadãos, a dominação e a guerra

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de conquistas, visto que conquistar significava civilizar e levar lei e ordem ao mundo.

Outrossim, objetivava-se a unidade universal de Roma, integrando administrativamente o vasto território que se ia conquistando, bem como os vários modos de funcionamento dessa mesma unidade, organizando Roma unitariamente de forma racional e científica, o que só seria possível através de vinculações jurídicas que se pusessem como requisitos fundamentais para a gerência administra-tiva (JOB, 1984, p. 39, 43). O processo formulário foi a expressão jurídica disto na nova composição de conflitos que passou a predominar com o Principado, pelo qual os grandes proprietários de terras e escravos levaram para a ação prática a racionalização do pensar e do dizer para apreender, manusear e criar formas de interação social articuladas pelo emaranhado jurídico (JOB, 1984, p. 43), possibilitando, assim, o envolvimento de todo o território romano, através de um ordenamento processual civil prático, ágil e universal.

Feitas essas ponderações imprescindíveis para a com-preensão da gênese do sistema formular, entende-se que a fórmula é um modelo abstrato pelo qual se propicia litigar por escrito, em conformidade com os esquemas jurisdicionais do direito honorário (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 74). Este escrito era o iudicium que, por sua vez, era elaborado com base no fato, tendo a fórmula como modelo (ALVES, 1995, p. 209), pela qual se fixava o ponto litigioso e se outorgava ao juiz popular o poder para condenar ou absolver o réu (CORRÊA, 1988, p. 80), conforme ficasse, ou não, provada a pretensão do autor. Vale salientar que, em relação aos referi-dos esquemas jurisdicionais do direito honorário, antes de ser apresentada a fórmula, no edito, o magistrado colocava uma

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cláusula, denominada edito estrictu sensu, onde determinava as condições em que concederia ou denegaria a fórmula a ser apresentada (ALVES, 1995, p. 209).

Neste novo processo permanecia a instância plana, in iure e apud iudicem. A idéia de oralidade foi redimensionada: o procedimento ainda era oral, mas a fórmula, necessaria-mente, revestia-se de forma escrita. A sentença passou a ter caráter condenatório, pela qual a condenação era sempre pecuniária.

O iudex, embora tivesse autonomia para decidir li-vremente conforme a sua convicção, deveria se limitar ao disposto na fórmula. As partes, em audiência, podiam ser orientadas por procuradores que eram admitidos só se as partes estivessem pessoalmente e arcariam sozinhos com a condenação (SANTOS, 2007, p. 43). O sistema de citação alterou-se, visto que, embora se mantivesse privado, aboliu-se o uso da força para tal. Para tanto, manteve-se o instituto do vadimonium. O vadimonium era uma prerrogativa do réu para o caso de não se estabelecer os limites da lide, litis contestatio. Neste caso, o réu oferecia, perante o juiz popular, iudex, uma promessa feita pelos vades para o comparecimento dele na data marcada para o estabelecimento dos limites da litis contestatio, sob pena dos vades serem multados (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 57). Outrossim, criou-se a ação de edição. Esta, era uma ação que o autor, antes de chamar o réu em juízo, notificava-o das suas intenções e dos fatos com a finalidade de tentar fazer com que o réu cumprisse a obri-gação, dispensando a via judicial. Se o réu fugisse, o autor se valia de uma ordem de imissão sobre os bens do devedor (NÓBREGA, 1959, p. 618). Outrossim, o prazo de 30 dias para a nomeação do iudex estabelecido pela Lei Pinária foi extinto. Eis os traços do novo sistema.

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Pelo exposto, apesar de uma maior intervenção estatal no procedimento, o sistema formular continuava inserido no ordo iudiciorum privatorum.

Nesta época é que se delineia, mais fortemente, o dire-ito honorário (editos redigidos pelos pretores) ao lado do direito civil, constituindo um momento histórico de Roma, pois através da Pretura a jurisdição estatal se rejuvenesce, agora livre das formalidades e estendida aos estrangeiros.

3.3. As instâncias procedimentais do ordenamento processual formular

3.3.1. O procedimento formulário na instância in iure

Como já dito, no sistema formulário permanecia a instância plana, in iure e apud iudicem. Apenas que, agora, surgia a fórmula, esta obrigatoriamente revestida de forma escrita.

O desenrolar da instância in iure era assim dividido, senão vejamos: 1 - Introdução da causa; 2 – postulação; 3 - nomeação do juiz popular e montagem da fórmula; 4 - Litis contestatio.

A introdução da causa se dava com a citação. O pro-cedimento da citação era idêntico ao das ações da lei. A exceção era que o uso da força para que o réu viesse a juízo não era permitido e se introduziu, como já foi dito, a editio actio, como condição prévia para a citação, e a figura do vadimonium, uma espécie de fiador da época. Esta edictio actio servia, também, para comunicar a pretensão ao magistrado e para se ter como base para a composição da fórmula. O procedimento formulário, na

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citação, ampliou o campo das pessoas que não poderiam sofrê-la: cônsul, prefeito, pretor, pontífice, magistrado e funcionário público (no exercício das suas funções), procônsul e aqueles que estivessem nos templos ou acompanhando funeral. Todos eles e outros mais não poderiam, ali, serem citados (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 81).

Foi no processo formulário que a figura da repre-sentação em juízo e do litisconsórcio passivo, ativo e misto foram admitidas. Em relação à representação, ela podia ser por cognitor (procurador constituído perante o magistrado) e por procurador (mandatário para a lide) (ALVES, 1995, p. 217).

Já na postulação, a editio actio era formalmente apresentada pelo autor, descrevendo a ação correspon-dente ao direito, ao magistrado e ao réu. Se a ação esti-vesse inadequada ou não estivesse no edito pretoriano a ação era negada e o autor não mais poderia acionar o réu pelo mesmo direito. Se o autor não tivesse idéia da real posição do réu poderia interrogá-lo para que a lide corresse com a maior exatidão possível (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 81-84), mudando o tipo de ação (MEIRA, 1988, p. 272). Nesta altura, já era admitida a figura do advogado defendendo a parte. Vale ressaltar que até o século II d.C. o advogado não era remunerado e após esta data só de forma muito restrita (NÓBREGA, 1959, p. 277).

Após isso, era passada a defesa ao réu. O réu, na sua defesa, poderia apresentar exceções, inclusive impugnar a ação, sob o argumento de que não era a ação adequada, e apresentar reconvenção (pedido autônomo, com base no mesmo negócio jurídico) (MEIRA, 1988, p. 272). O réu poderia, também, confessar, encerrando o litígio, ou

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não comparecer ao chamamento a juízo, o que equivalia à confissão. No primeiro caso, se se tratasse de quantia certa a confissão seria igual a um julgamento, podendo o autor passar à execução do réu. Entretanto, se se tratasse de quantia incerta, se passaria à fase apud iudicem (AL-VES, 1995, p. 217-218). No último caso, o magistrado ou imitiria o autor na posse dos bens do réu (tratando-se de quantia incerta) ou imitiria o autor na posse do imóvel do devedor (tratando-se de ação real). Se se tratasse de quantia certa, o réu seria executado sobre sua pessoa ou seus bens (ALVES, 1995, p. 218).

Já na nomeação do iudex e montagem da fórmula, a nomeação do iudex, tal qual no tempo das ações da lei, era feita pelas partes em conjunto com o magistrado e recaía sobre um particular qualquer, este, apesar das pressões em contrário da plebe romana, um membro da aristocracia, podendo ser até estrangeiro, desde que fosse aristocrata (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 86-87). Havendo recusa, ou por parte do magistrado ou por parte de uma das partes, nomeava-se outro iudex.

Outrossim, a fórmula era elaborada pelo magistrado em comum acordo com as partes, devendo estas litiga-rem nos limites da fórmula.

Após a nomeação do iudex e montagem da fórmula vinha a Litis contestatio. Esta era uma espécie de contra-to judicial pela qual as partes firmavam o compromisso de subordinar o litígio, nos termos da fórmula, à decisão de um iudex, culminando com o aceite pelo réu e com a fixação das linhas e limites da questão, obrigando, assim, todos a respeitarem o julgamento. A litis contestatio, neste sentido, provocava efeitos reguladores, criadores e extintivos (MACHADO, 2004).

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O efeito regulador consistia em que, uma vez fi-xado os elementos pessoais e materiais do processo, o iudex era obrigado a se conduzir nos limites da fórmula. Porém, o magistrado podia permitir, tanto ao réu como ao autor, que introduzisse alguma ex-ceção na fórmula (NÓBREGA, 1959, p. 620). Já o efeito criador decorria de um princípio do processo formular de que a condenação do réu, seja qual for a natureza da ação, seria sempre pecuniária. Ou seja, uma vez condenado o réu, desta condenação surgia nova obrigação: a de ressarcir o autor em dinheiro (ALVES, 1995, p. 220-221).

Em relação ao efeito extintivo, em se tratando de ação pessoal, a litis contestatio põe fim ao pedido, impedindo o autor de acionar o mesmo réu sobre a mesma contro-vérsia. Já em se tratando de ações reais, estas podem ser novamente apresentadas, visto que, em razão do objeto da lide, não há identidade estrutural entre os fatos da vida na sociedade tutelados pelo direito material e o vínculo que surgia da subordinação à fórmula. Estes eram efeitos de pleno direito (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 101-102).

Porém, a extinção produzia efeitos por meio da exceção, se o réu inserisse-a na fórmula, sendo, poste-riormente, ao se constatar o fato alegado, absolvido pelo iudex. Para a extinção produzir efeito de pleno direito era necessário que se tratasse de iudicium legitimum e que o objeto da obrigação fosse de direito civil. Vale ressaltar que o iudicium legitimum era o processo que se instaurava em Roma, abrangendo até a distância de uma milha da cidade, no qual as partes eram cidadãos romanos e a lide era julgada por um iudex romano. Outrossim, a extinção também produzia efeito por meio

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de exceção, se a obrigação dissesse respeito a direito honorário ou real (ALVES, 1995, p. 220).

A fórmula era composta pela parte principal e pela parte acessória. Cada parte desta, por sua vez, se frag-mentava, respectivamente, em quatro e cinco subdi-visões, conforme o seguinte esquema: 1 - Parte principal (intentio, demonstratio, adiudicatio, condemnatio); 2 – Parte acessória (praescriptio, exceptio, replicatio, duplicati, triplicatio)

A intentio era a própria pretensão do autor, sendo indispensável em todas as fórmulas. Devia ser, por isso, certa e objetiva. Havia várias formas de intentio: in rem e in personam (de acordo com a natureza da ação), in ius concepta e in factum conceptae (de acordo com o ius), certa e incerta (de acordo com a obrigação), abs-trata ou causal (de acordo com a causa da obrigação) e a ficta (nesta o magistrado não encontrando a ação prevista em lei, deveria conceder a fórmula por meio de uma ficção, como se o caso fosse previsto por lei) (NÓBREGA, 1959, p. 621).

A demonstratio consistia em se delimitar o objeto da lide. Esta parte da fórmula só existia nas ações in-certas.

A adiudicatio era a parte da fórmula que permitia ao iudex adjudicar a coisa do devedor ao credor. Só existia nas ações divisórias.

Em relação à condemnatio, esta era a parte da fór-mula pela qual o iudex tinha o poder de condenar ou absolver. A condenação no sistema formular era sempre pecuniária. Se o réu tivesse contestado uma provável condenação, esta seria dupla sobre o valor em questão. Quando a intentio fosse coisa que não dinheiro, o iudex deveria avaliá-la para condenar o réu. Em se tratando de

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coisa certa, o iudex observava se a fórmula estabelecia se a condenação deveria recair sobre o tempo da con-denação do réu. Nestas ações poderia se permitir que o réu, para não pagar em dinheiro, devolvesse a coisa ao autor (era a chamada cláusula arbitrária), garantindo a este fixar o seu valor, para o caso do réu não devolvê-la (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 93-95).

Já a praescriptio era uma cláusula acessória colocada no início da fórmula, antes da demonstratio e da inten-tio, após a indicação do iudex, no interesse do autor, pro actore, ou do réu, pro reo, visando, por um lado, impedir que a ação ultrapasse o direito do autor, bem como delimitar a qualidade com que este agia em juízo e, de outro lado, impedir que a decisão do iudex não prejulgasse questão mais importante do que a litigada (ALVES, 1995, p. 213-214). O autor, com base na pra-escriptio, podia, assim, ajuizar nova demanda relativa a direito correlato. Ressalte-se que a praescriptio pro reo com o tempo deu lugar às exceções.

A exceptio era uma ação própria do réu, sendo a parte acessória da fórmula, pela qual o réu, não negando o direito do autor, alegava que este não tinha observado o seu direito, com base em direito próprio ou pela existência de determinados fatos extintivos, oposição esta que se vitoriosa anulava os efeitos da pretensão do autor (NÓBREGA, 1959, p. 622-623). Sua finalidade era oferecer condição ao iudex para a decisão final.

A exceptio não existia ao tempo das ações da lei, sendo própria do processo formulário. Dividia-se em: perpétua (quando podia ser alegada a qualquer tempo), temporária (quando se sujeitava a determinado prazo), rei cohaerente (quando podia ser invocada por qualquer interessado) e personae cohaerente (quando podia ser

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invocada por determinada pessoa) (ALVES, 1995, p. 215). A exceptio tinha natureza material.

Já em relação à replicatio, duplicatio e a triplicatio, a primeira era nada mais que a exceptio do autor contra o réu. Este podia responder ao autor da mesma forma, por meio da duplicatio (também exceptio do réu contra o autor) e o autor em seguida pela triplicatio.

3.3.2. O procedimento formulário na instância apud iudicem

A instância apud iudicem iniciava-se logo após a litis contestatio. Os textos da época sobre este procedimento quase não existem, o que impede uma análise mais fiel e clara desta etapa.

O procedimento apud iudicem era composto pelas fases inicial, probatória e sentencial.

Em relação à fase inicial, no dia estipulado, as partes deveriam comparecer, representadas ou não, perante o iudex, apresentando-lhe a fórmula. Ademais, o resto do procedimento era igual ao das ações da lei. Após, o iudex mandava produzir as provas (ALVES, 1995, p. 222).

Já na fase probatória, a produção de provas e os debates eram meio desordenados, admitindo-se todo tipo de prova (sentenças passadas, testemunhas, jura-mento, costumes, documentos, tortura, opinião pública) (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 124-125) e não se esta-belecendo prazo para os debates que, de uma maneira geral, tinham que ser concluídos no primeiro compare-cimento perante o iudex, facultando a este prorrogá-los para outra audiência. Quanto aos advogados, estes de-veriam falar ou no momento de apresentação das provas

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ou em debates com o réu, apresentando e interrogando testemunhas, além de ler documentos (NÓBREGA, 1959, p. 623-624). As partes deveriam se ater a provar os fatos alegados e o ônus da prova da alegação caberia ao autor desta.

Os documentos deveriam ser apresentados, não só ao iudex, mas, antes, na instância in iure, no momento da elaboração da fórmula, perante o réu.

O comparecimento da testemunha, uma vez arrolada, não era obrigatório, sendo que seu testemunho poderia ser enviado por escrito.

Em relação à fase sentencial, o iudex, se não chegasse à conclusão alguma, poderia deixar de dar a sentença. Neste caso, as partes voltariam ao magistrado para que este nomeasse outro iudex.

Ao sentenciar, o iudex estava adstrito à fórmula, tendo, entretanto, liberdade para formar convicção a respeito dos fatos envoltos na lide. Não havia forma es-pecífica para redigir a sentença, podendo esta ser dada oralmente. As limitações do iudex ao sentenciar eram as seguintes: 1 - Só podia condenar ou absolver o réu; 2 - não podia condenar o autor; 3 - se a pretensão con-tida na intentio não fosse exata o iudex devia absolver o réu; 4 - o iudex devia se limitar aos fatos no momento da litis contestatio, considerando os fatos ocorridos antes da sentença (ALVES, 1995, p. 223-224).

A condenação do autor só era admitida se houvesse a cláusula iudicium contrarium na fórmula.

Sendo condenatória, a sentença possuía a propriedade de constituição de nova relação jurídica entre as partes, denominada res iudicata, servindo de fundamento para que o vencedor exigisse o cumprimento da sentença, através da actio iudicati. Era justamente pela actio iudi-

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cati que se atribuía força executiva à sentença (NEVES, 1971, p. 25-26).

Assim sendo, a sentença produzia os seguintes efeitos:

a) Se condenatória, daria ao vencedor o direito de exigir que o vencido cumprisse a obrigação, valendo-se da actio iudicati (ação que possibilitava ao autor a execução do réu quando este se recusava a cumprir a sentença) em caso de resistência do réu ao cumprimento da sentença.

b) A sentença produziria de qualquer modo coisa julgada, impedindo que a mesma controvérsia fosse, posteriormente, suscitada contra o mesmo réu. Desde que houvesse identidade de questões e identidade jurídica de pessoas, podia-se inserir uma exceção na fórmula versando sobre a coisa julgada (ALVES, 1995, p. 225-226). Aqui, a fórmula tinha a propriedade de delimitar o objeto da controvérsia e os limites da coisa julgada, possibilitando que a sentença final tivesse poder de comando, o que lhe conferia caráter publicístico, cri-ando uma nova obrigação entre os litigantes, a obligatio iudicati (MACHADO, 2004).

O processo formular admitia a nulidade da sentença em caso de desonestidade do magistrado ou do iudex, falsificação de prova, incompetência do iudex, etc., que podia ser alegada a qualquer tempo.

A execução da sentença no processo formulário era feita através da actio iudicati (que passaria de novo pela instância in iure e apud iudicem), substituindo a actio manus iniectio do tempo das ações da lei. A execução podia recair sobre a pessoa ou os bens do devedor. O réu que não cumprisse a sentença ficaria numa prisão privada trabalhando como escravo para

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o autor até que quitasse a dívida com o valor do seu trabalho. O réu poderia se livrar desde que cedesse todos os seus bens (MEIRA, 1988, p. 280). Aqui, o sistema processual formular revela o caráter aristocrático do processo civil romano. De fato, o Estado, ao disciplinar os bens da vida na sociedade, assentando-os sobre as leis econômicas e relações de produção escravistas, colocava os sistemas de composição de conflitos na perspectiva da regulação do modo-de-produção escravista, na legitimação do poder político da aristocracia, bem como na disseminação da ideologia desta classe dominante, enfim, na perspectiva da proteção-reprodução das relações sociais escravistas como um todo, de forma mais vantajosa aos grandes proprietários de terras e escravos. Verifica-se, aqui, a absolutização do relativo no procedimento executório do sistema formulário, pelo qual as pretensões normativas, que traduzem os interesses da camada social dominante, a aristocracia, são colocadas como regras e valores aceitos por todos, independentemente das diferenciações existentes na sociedade, na perspectiva desta proteção-reprodução das relações sociais (FERRAZ JÚNIOR, 1998, p. 30-33).

Outrossim, era também no processo executório, através da actio iudicati, que o direito das gentes, o direito quiritário e o direito natural romanos procuravam expressar em formas jurídicas as condições econômicas de vida da sociedade escravista, repercutindo na tutela jurisdicional das relações jurídicas cíveis, do qual o sistema formulário era uma espécie. Desta forma, o direito das gentes, ius gentium, formado pelas normas consuetudinárias romanas, comuns a todos os povos e

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por isso aplicáveis não só aos cidadãos romanos, como também aos estrangeiros em Roma, garantia a escravidão universal, por delito penal, baseada na razão natural. Já o direito quiritário, destinado exclusivamente, aos ci-dadãos romanos, garantia a escravidão obrigacional. Por fim, o direito natural impunha o escravismo hereditário (MONTESQUIEU, 2002, p. 250).

A execução dos bens do devedor consistia na venda em bloco de todos os bens deste. Era a venditio bono-rum. Esta foi criada em 118 a.C., em princípio apenas contra o réu, mais tarde contra o réu confesso e o que não se defendesse (ALVES, 1995, p. 227). Compunha-se de três fases: 1 – Missio in bona; 2 – preliminares da venda; 3 – venditio bonorum.

A missio in bona iniciava, propriamente, a execução dos bens do devedor. Era introduzida por uma missio in possessionem, sendo requerida por um dos credores ao magistrado que iria determinar um curador para guardar os bens provisoriamente. Eram publicados editais para que todos tomassem conhecimento do fato, seja para se habilitarem como credores, seja para pagarem a dívida do réu, salvando o patrimônio deste (NÓBREGA, 1959, p. 626-627).

Já na fase de preliminares de venda, passados 30 dias, se o devedor fosse vivo, ou 15 dias, se o devedor fosse morto, este era considerado infame e se nomearia um síndico para efetivar a venda dos bens. O devedor ainda poderia fazer uma cessão total dos bens, em favor do credor, para escapar de ser considerado infame. O sín-dico publicaria em edital o inventário geral do devedor. Após 10 dias, se o executado fosse vivo, e 5 dias se o executado fosse morto, se realizaria a venda (MEIRA, 1988, p. 280-281).

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Em relação à venditio bonorum, a venda seria feita em leilão a quem desse o preço mais alto. Este ficaria com todo o ativo. O produto da venda seria dividido entre os credores da seguinte forma: em primeiro lugar os privilegiados e depois os quirografários. Se o produ-to da venda não extinguisse a dívida, o executado não se eximiria de pagar o restante, podendo haver nova venditio bonorum sobre os futuros bens do executado (ALVES, 1995, p. 227-229).

4 – O DIREITO HONORÁRIO COMPLEMENTAR

4.1. Os editos dos magistrados

O direito honorário era aquele baseado nos editos dos magistrados que tinham força de imperium. Este direito co-existia ao lado do ius civile romano (NÓBREGA, 1959, p. 633). Os editos dos magistrados eram a fonte principal do direito honorário, embora já existissem ao tempo das ações da lei.

A partir de 367 a.C. se permitiu aos magistrados, que exercessem funções judiciárias, a faculdade de publicar edi-tos. Assim, Pretores, Edis Curis, Governadores e Questores podiam criar editos. Estes editos eram um programa de ação do magistrado em que se comunicavam ao povo as normas que o Magistrado iria aplicar durante a sua administração (geralmente de um ano). Esses editos eram feitos durante a posse do Magistrado e não podiam contrariar o ius civile. Inicialmente eram orais, com o tempo passaram a ser escritos formando uma espécie de álbum, visto que eram escritos em uma tábua de madeira revestida de gesso branco. Com o

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tempo se permitiu ao magistrado criar editos para preencher lacunas no edito publicado.

Ao conjunto destes editos dos magistrados que tinham o direito de fazer editos, o chamado ius edicendi, chamava-se direito honorário. Este era verdadeira atividade criadora de direito, visto que visava corrigir, suprir e esclarecer, de acordo com o interesse público e baseado na eqüidade, o direito civil (NÓBREGA, 1959, p. 116-118).

No sistema das ações da lei, o direito honorário só podia ser aplicado a não cidadãos. Foi com a Lei Ebúcia, esta instituindo o sistema formulário, que se permitiu a sua complementaridade ao direito civil, ainda junto com as ações da lei.

Uma característica do direito honorário é que ele se estendia apenas até a jurisdição do magistrado que elaborou o edito, sem atingir a lei que se aplicava a todo o território romano. Posteriormente, várias normas honorárias foram positivadas no direito civil.

O ápice da aplicação do direito honorário, e ao mesmo tempo o início de sua decadência, se dá com o edito per-pétuo, introduzido em 117 d.C., com o Príncipe Adriano, que compilou todos os editos já anteriormente publicados, imutando-os, ao mesmo tempo subordinando o Magistrado ao edito perpétuo, não podendo mais publicar novos editos. Desta forma, o edito perpétuo acabou engessando as normas honorárias.

No período das ações da lei, o edito dos magistrados, como já dito, só podia ser aplicado aos não cidadãos, sendo o ius civile aplicado aos cidadãos romanos. Já no período formulário, os editos dos magistrados complementavam o direito civil, sendo aplicado a cidadãos romanos, e podendo, inclusive, negar casos sobre a proteção do ius civile.

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4.2. As diversas modalidades de editos

No processo formulário os magistrados podiam intervir nos conflitos entre particulares. Essa intervenção processava-se sobre quatro modalidades seguintes: 1 - Stipulationes praetoriae;2 - missiones in possessions;3 – interdicta;4 - restitutiones in integrum.

Em relação à modalidade stipulationes praetoriae, estas eram promessas verbais impostas pelo magistrado que deseja fazer nascer um vínculo de obrigação entre duas pessoas, num certo número de hipóteses prevista pelo edito (CRETELLA JÚNIOR, 1991, p. 433).

Se o estipulante não comparecesse, o magistrado poderia obrigá-lo a comparecer. As estipulações poderiam ser: preto-rianas (fundadas no imperium do magistrado, geralmente de natureza cautelar), judiciais (ocorriam na fase apud iudicem, tendo por objeto o cumprimento da sentença ou outra ordem judicial), comuns (quando ocorressem os pressupostos pre-vistos nas estipulações pretorianas e judiciais).

Já a missiones in possessiones era uma autorização, a requerimento do interessado, para este tomar posse dos bens do devedor, em caráter conservatório e, geralmente, provisório (NÓBREGA, 1959, p. 628).

Há vários tipos de missiones in possessiones: missio in rem (tratando-se de bem particular, sendo empregada no caso de damnum infectum e no caso do réu estar ausente ou não quiser se defender), missio in bona (tratando-se de um conjunto de bens, sendo empregada para resguardo do direito de credores e destes em relação ao insolvável ou ao que se recusa a se defender) (NÓBREGA, 1959, p. 628), missio ventris nomine (concedida a favor de mulher grávida), missio furiosi nomine (concedida ao curador para a guarda

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do patrimônio dos dementes) e outras mais (TUCCI; AZE-VEDO, 1996, p. 117).

Em relação à interdicta, esta era uma ordem oral dada pelo magistrado ou governador de província, a pedido de um dos litigantes, para por fim a divergência entre eles, seja para preservar atos positivos ou impedir a prática de determinados atos. Em relação à primeira categoria, chamavam-se decreta e compreendiam os interditos exibitórios e restitutórios. Em relação à segunda categoria, chamavam-se interdicta e com-preendiam os interditos proibitórios. O procedimento era rápido, tendo o magistrado apenas que conceder ou negar o pedido, examinando os fatos (ALVES, 1995, p. 235-237).

Os interditos restitutórios ou exibitórios davam-se quando o magistrado ordenava a restituição ou exibição de alguma coisa. Eram proibitórios quando o magistrado deter-minava uma abstenção.

De uma maneira geral, os interditos tinham natureza tutelar, pois o magistrado os concedia baseado em que os fatos alegados fossem verdadeiros. Se a ordem fosse acatada pelo réu, o processo se encerraria. Se a ordem não fosse acatada, em se tratando de interdito proibitório, procedia-se per sponsionem. Neste caso, antes de completar um ano da concessão do interdito, as partes voltariam ao magistrado e aí o réu prometia pagar certa quantia ao autor se provado que os fatos baseados para a concessão do interdito eram verda-deiros e, por sua vez, o autor prometia o mesmo ao réu se aqueles fatos fossem falsos. Redigia-se uma terceira fórmula facultando ao réu cumprir o interdito se o autor provasse que o réu o descumpriu (ALVES, 1995, p. 235-237).

Feito isto, as três fórmulas seguiam para o iudex que condenaria ou absolveria o réu. Se o interdito fosse destinado tanto ao autor quanto ao réu, o mesmo procedimento seria

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repetido duas vezes. O iudex, então, proferiria uma sentença para cada fórmula.

Em se tratando de interditos restitutórios ou exibitórios, o procedimento aplicável era o per formulam arbitrariam. Este era mais simples. Uma vez concedido o interdito, uma das partes ou ambas, desde que imediatamente, podiam requerer a designação de um árbitro para apurar se os fatos eram verdadeiros ou não. Seria, então, redigida uma fórmula in factum concepta, em que seriam colocados os fatos que serviriam de base para o interdito e após se introduziria uma cláusula arbitrária.

Na fase apud iudicem o iudex, se assim, entendesse, mandava o réu cumprir o interdito. Se este se recusasse, o iudex condenaria-o a pagar uma quantia estimada pelo autor em juramento (ALVES, 1995, p. 237).

Por fim, a modalidade restitutiones in integrum era uma providência extraordinária tomada pelo magistrado contra ato regularmente realizado, restabelecendo o ato de direito anterior, para não contrariar a eqüidade (NÓBREGA, 1959, p. 630). Era uma criação pretoriana, visando conter os ex-cessos do direito quiritário. Pela restitutiones in integrum os negócios jurídicos celebrados, ou formalidades processuais regularmente observadas, eram tidos por não realizados, retornando-se à situação anterior à realização destes.

Assim sendo, a restitutiones in integrum podia ser apli-cada para a proteção dos menores de 25 anos, em negócios jurídicos prejudiciais, nas obrigações feitas por coação, ou havendo dolo, erro, ausência da parte interessada por estar a serviço do Estado, incapacidade da parte, venda dolosa, bem como em todos os casos em que o juiz entendesse correta a restituição ao estado anterior das coisas (MEIRA, 1988, p. 279).

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A restitutiones in integrum devia ser formulada até um ano do conhecimento da ocorrência do prejuízo. Uma vez formulada, o magistrado, examinando os fatos, concedia ou não a rescisão. Concedendo, passava-se à instância rescisória que teria a finalidade de esmiuçar as conseqüências da re-scisão, operando-a

De certo, o fato de o processo formulário restringir as partes litigantes à fórmula e o crescente emprego da cognição extraordinária (procedimento inicialmente administrativo, mas que vai aos poucos penetrando em toda sociedade, pela qual o príncipe concentrava a competência judiciária), mo-tivada pela mutação do Principado à monarquia absoluta, o Dominato, acabou por sepultar este sistema processual.

5 – DO APOGEU AO OCASO DO ORDENAMENTO PROCESSUAL FORMULAR NA ROMA CLÁSSICA

Por tudo o que se expôs, nota-se que o período que se estende da fundação de Roma à ascensão de Diocleciano, foi a época de ouro da civilização romana. Foi neste inter-regno de mil anos que os romanos construíram um Estado Nacional, ampliaram suas fronteiras, desenvolveram sua cultura e a impuseram-na, enriqueceram, exploraram todas as possibilidades que o sistema escravista poderia oferecer, sofreram e enfrentaram as contradições deste sistema.

Mas foi da preocupação em se garantir a unidade de seu território e dos territórios que iam sendo conquistados, bem como com a disseminação da ideologia da aristocra-cia perante as outras classes sociais em Roma e perante os povos dominados e, ainda, com a institucionalização do

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escravismo no território romano, que se deu grande preo-cupação ao problema do direito e, neste, ao da composição de conflitos: o sistema jurídico tinha que ser único, envolver todo território e legitimar a jurisdição, esta como expressão do poder estatal, neste território, sobre tudo e sobre todos, visando a legitimação, a manutenção e o desenvolvimento do modo-de-produção escravista.

A evolução dos sistemas de composição dos conflitos em Roma, as ações da lei e o processo formulário, marcados pelo direito civil e pelo direito honorário, bem como a mutação verificada nas instituições políticas e nas fontes do direito, em Roma, foram determinados pela evolução do contexto em que o processo de produção escravista estava inserido dentro do quadro de correlação de forças e pelas contradições na ordem sócio-econômica. Este quadro opunha as diversas camadas sociais na Roma antiga: a aristocracia, a plebe, os escravos e os pequenos e médios proprietários de terras e escravos. Assim, é, à luz das relações sociais de produção e das leis econômicas escravistas, dentro de uma visão dialética, que se deve entender o processo civil romano clássico. Até porque, não se deve procurar entender o processo civil romano com base nos seus comentadores da era contemporânea, visto que os romanos entendiam as suas instituições à luz dos seus valores e da realidade da sua época.

Assim, pode-se, seguramente, com base no que foi exposto, dizer que o sistema formulário foi uma continu-ação aprimorada do sistema das ações da lei. Abandonou-se o sistema totalmente oral das ações da lei e sua rigidez procedimental e se introduziu uma fórmula escrita que servia de base para continuação do processo, mantendo, porém, certa oralidade e instância plana, característica das ações da lei.

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As ações da lei, na prática, traduziram uma tentativa de se positivar os costumes romanos empregados para solução de conflitos. Traduziram, também, a pressão da plebe em garantir seus direitos escritos em lei. Porém, pecou pelo rigor excessivo do procedimento que, embora oral, acabou por dificultar as partes, sobretudo aqueles que não eram aristocratas, em litigar em juízo. Outrossim, o fato de que o Estado romano estava sobre a égide da aristocracia, fazia, conseqüentemente, as suas instituições favorecerem a aristocracia, visto que esta controlava as magistraturas, contrariando, assim, os interesses da plebe.

O que se observa, é que durante certo desenvolvimento do sistema escravista, face o crescimento do Estado romano, a partir da última guerra púnica, as ações da lei começaram a não corresponder às exigências da nova realidade: o fato de a produção de riqueza ter se desenvolvido, o aumento das trocas comerciais entre Roma e outros Estados, a expansão do ter-ritório romano, o aumento da tributação dos povos conquistados e da produção do trabalho escravo, este usado em larga escala em todas as atividades econômicas (principalmente a agrária), além do aumento da população sobre o controle do Estado romano. O rigor formalístico das ações da lei era incompatível com este novo contexto e a adoção de um novo sistema processual era mais que uma necessidade, era uma exigência.

A grande vantagem do sistema formulário é que ele reduziu a rigidez formal oral do sistema das ações da lei, possibilitando ao magistrado intensa atividade criadora, a qual já se verificava no sistema anterior, mas teve no pro-cesso formulário pleno desenvolvimento através dos editos dos magistrados. Porém, face o fato do processo formulário restringir as partes litigantes à fórmula e o crescente em-prego da cognição extraordinária (procedimento inicialmente administrativo, mas que vai aos poucos penetrando em toda

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sociedade, pela qual o príncipe concentrava a competên-cia judiciária), motivada pela mutação do Principado à Monarquia Absoluta (ou Dominato para alguns), acabou por sepultar este sistema processual.

Outrossim, as três fases que marcaram o nascimento, erguimento e apogeu do Estado romano (Realeza, República e Principado) são, além de períodos históricos propriamente ditos, formas de Estado. Ao lado da essência opressora es-tatal e ao lado do modo-de-produção em que o Estado e a sociedade estavam assentados e da classe social que exercia o poder do Estado, figuravam os mecanismos que faziam se manifestar na sociedade os fatores acima levantados, dando forma ao Estado. Todas as instituições do poder estatal que ora caracterizaram a Realeza, a República e o Principado correspoderam às diversas formas que o Estado aristocrático romano foi tendo ao longo do escravismo.

O Principado, na verdade, corresponde a uma transição entre a República e o Dominato, sendo uma fase de reversão de muitas conquistas sociais alcançadas pela plebe e escravos durante a República. É no Principado que Roma atinge sua expansão máxima e consolida sua hegemonia perante os outros povos conquistados, através da pax romana. A plebe e os escravos são totalmente derrotados, tendo a aristocra-cia afastado qualquer perigo ao sistema escravista. Nesta etapa, também, são germinados os fatores que iriam ser responsáveis pela decadência e fim da civilização romana em 565 a.C.

Por fim, vale aqui reafirmar que o processo formulário, bem como os diversos períodos históricos, não existiu ou surgiu de maneira uniforme ou abrupta, mas coexistiu com o sistema das ações da lei, ao longo do tempo, em períodos de transição.

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JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988:

LINHAS GERAIS SOBRE O DEBATE

Flávia Danielle Santiago Lima1

REsumO

O presente trabalho pretende explicar os fatores de transferência das decisões políticas para as agências judiciais, fenômeno conhecido sob o título de “judicialização da política”, e suas peculiaridades no Brasil. Para alcançar tal finalidade, serão analisadas as condições dos debates consti-tuintes e suas conseqüências na formulação do texto promul-gado em 1988, especialmente no que concerne às expectativas quanto a sua capacidade de intervenção nas relações sociais. Visualizar-se-ão suas decorrências no meio jurídico, com breves notas acerca do chamado ativismo judicial.

AbsTRAcT

The present paper intends to explain the factors of transference of the political decisions to the Judicial Power, phenomenon known as “Judicialization of the Politics”, and

1 Advogada da União, Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Professora da Pós-Graduação Sapere Aude (Faculdade Salesiana) e Professora da Faculdade Maurício de Nassau.

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its peculiarities in Brazil. To achieve this goal, the condi-tions of the constitutional discussions will be analyzed, as well their consequences for the formulation of the text promulgated in 1988, specially the topics about the expecta-tions before its capacity to interfere at the social relations. The consequences of these conditions will be studied in the legal environment, with brief notes about the so-called judicial activism.

SUMÁRIO

1. Notas introdutórias: abertura política e emancipação social no Brasil; 2. Diversidade de grupos políticos e soluções de compromisso na Carta de 1988; 3. A disputa por posições políticas e o empenho pela efetividade do caráter emanci-patório da Constituição; 4. Características gerais do conceito de judicialização da política na obra de Tate e Vallinder; 5. A juridificação do sistema político e das relações sociais no Brasil; 6. Das críticas à noção de judicialização: necessidade de avaliação das circunstâncias políticas e sociais para o estudo do fenômeno; 7. Referências

1 – NOTAS INTRODUTÓRIAS: ABERTURA POLÍ-TICA E EMANCIPAÇÃO SOCIAL NO BRASIL

O texto constitucional brasileiro de 1988 é caracterizado por seus dispositivos de caráter aberto, que prevêem a par-ticipação democrática na determinação dos seus conteúdos. A carta respalda-se teoricamente numa perspectiva social, dirigente e também compromissária da fórmula constitucio-

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nalista, que tem entre seus objetivos a redução das desigual-dades sociais (STRECK, 2002, p. 29).

No âmbito das instituições brasileiras, verifica-se a reorganização entre os poderes estatais, pois a função juris-dicional, tradicionalmente apartada das discussões de cunho político, converte-se no foco da mobilização de determinados grupos, para que responda às demandas para efetivação das conquistas democráticas. O Judiciário, desde então, consti-tuiu-se num dos mais importantes canais institucionais para obtenção de decisões que demandam negociação política (FARIA, 1996, p. 37). A execução do projeto constitucional demanda, por isso, a compatibilização de uma cidadania reivindicatória com uma magistratura apta a cumprir sua função (KRELL, 2002, p. 15).

Certamente que a possibilidade de que a atuação judicial controle as decisões dos poderes majoritários traz uma série de argumentos favoráveis e contrários à sua legitimação democrática. Todavia, a questão impõe aos juristas e cientis-tas políticos o dever de atribuir contornos mais precisos ao problema, com vistas à realidade política nacional, na análise das suas origens, e, ainda, na definição das suas conseqüên-cias no plano das relações sociais e políticas.

Ganhou notoriedade o conceito de judicialização da política, nos meios acadêmicos – tanto no ambiente jurídico quanto no âmbito das ciências sociais – e nos próprios veículos de comunicação, utilizado no estudo do fenômeno jurídico no momento da consolidação da Constituição de 1988. A expressão surgiu no trabalho de Neal Tate e Torb-jörn Vallinder, “The global expansion of judicial power”, de 1995, em que os autores traçam as características de um fenômeno ocidental de recrudescimento da interação entre judiciário e política.

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Flávia Danielle Santiago Lima88

O presente artigo pretende fornecer hipóteses para a carac-terização da judicialização da política em terras brasileiras, ao tratar dos elementos que definem o conceito, nos moldes originais, para explicar a transferência do poder político para as agências judiciais, que não implica – cabe advertir – no chamado ativismo judicial. Para a finalidade aqui intentada, serão expostas as condições dos debates constituintes, e suas conseqüências na formulação do texto promulgado, especialmente no que concerne às expectativas diante da sua capacidade de intervenção nas relações sociais. Visualizar-se-ão suas decorrências no meio jurídico, a fundamentar o movimento de direcionamento ao direito e suas instâncias, com breves notas acerca da receptividade dos juristas a estas idéias.

2 – DIVERSIDADE DE GRUPOS POLÍTICOS E SO-LUÇõES DE COMPROMISSO NA CARTA DE 1988

A Assembléia Nacional Constituinte de 1987 foi instau-rada durante o governo de José Sarney com o objetivo de debater a nova Constituição Brasileira. A carta vindoura seria o ápice da transição política iniciada no final da década de 70 e que permitiu, por quase toda a década de 80, a convivência de um processo gradativo de redemocratização, simultânea à vigência do Ato Institucional n.º 5, que respaldou juridi-camente a ditadura militar.

Embora tenha sido um processo comandado pelos mili-tares em resposta às pressões exercidas por parte das elites nacionais, a transição política para a democracia no Brasil decorreu da negociação entre diversos setores. Referidos grupos introduziram “novas condições e tendências na

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operação do sistema político, contrastantes com a tradição de centralização política no Executivo federal, que vinha acompanhando a adoção do modelo desenvolvimentista e do corporativismo desde os anos 30”, como relembram Castro e Carvalho (2002, p. 115).

Não houve uma ruptura institucional. Foram privi-legiados os acordos que favoreceram um processo lento e gradual, que encontrou resistência nas classes médias urbanas, como exemplificado no movimento de Diretas-Já. Optou-se por manter a governabilidade e as rotinas do processo decisório, sendo nítido um processo de transição negociada.

A redução dos custos institucionais de transição, porém, teve a contrapartida da diminuição dos campos das escolhas institucionais possíveis, especialmente as relacionadas com as regras dos processos deliberativos (MORAES FILHO, 2003, p. 191). O Poder Executivo manteve-se firme como o principal agente condutor das re-lações políticas, em detrimento das inúmeras forças sociais que participaram da transição à democracia (AVRITZER, 1995, p. 117).

Como toda negociação política, convivia-se, ao lado da comunhão acerca de determinados princípios, com a carência de “elementos de consenso sobre as políticas concretas e as soluções a serem implementadas pelo novo governo, tampou-co quanto à direção que se dará ao processo de mudança.” (ABRANCHES, 1988, p. 8). Por isso, a redemocratização institucional brasileira implicou em descontinuidades e de-sajustes entre as forças que a orientaram.

Foi num espírito de ampla coalizão de forças que os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte foram iniciados. Pela diversidade dos grupos envolvidos, não

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se sabia quais os rumos que os trabalhos teriam, pois não havia um grupo hegemônico que reunisse condições de impor seu projeto ao país. Existia, todavia, a responsabi-lidade de criar as condições jurídicas para a estabilização das instituições governamentais, de sorte que as demandas, nos termos da democracia representativa, fossem proces-sadas pelos meios institucionais, tanto legislativos quanto judiciais. Abria-se aos constituintes o desafio de assegurar instrumentos normativos para a promoção de mudanças sócio-econômicas, aptas a garantir a legitimidade do sistema político e jurídico.

A indecisão sobre os mais diversos temas perdurou durante todo o processo constituinte. Havia conflitos entre nacionalistas e os favoráveis à abertura ao capital estrangeiro; ruralistas e defensores da reforma agrária; desenvolvimentis-tas e os partidários do Estado Mínimo; e parlamentaristas e presidencialistas, dentre inúmeros outros grupos divergentes. Só restava a esses setores aceitarem soluções de compromis-so, com a positivação de princípios de conteúdo mais aberto, ou a remissão à posterior regulamentação em lei ordinária das questões constitucionais.

A divergência entre os interesses envolvidos originou um texto constitucional volumoso, mas que adiava para o futuro os debates sobre os temas mais controversos. Constatava-se, como lembra Faria, um claro descompasso entre as transformações políticas desejadas e as “deter-minantes sociais das transformações jurídicas possíveis” (FARIA, 1989, p. 15-17). E, neste contexto, a efetivação das promessas exprimidas na Carta Constitucional foi dele-gada para um momento posterior, na esperança de arranjos políticos que permitissem sua concretização (VIANNA, 1999, p. 39- 41).

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Igualmente, as expectativas em relação ao resultado dos embates a serem travados no futuro eram diversas, a depender do ponto de vista defendido. Como pontua Souza Junior,

“as forças emergentes viam no compromisso a proba-bilidade de complementação da obra redemocratizadora, especialmente no seu viés reditributivo, pelas mãos de um futuro parlamento mais inclinado a tais propostas; as forças tradicionais apostavam em um mero simbolismo nas con-quistas alardeadas, o que as tornava inofensivas para o status quo.” (2004, p. 119)

Foi possível impor uma ampla regulamentação, confe-rindo maior estabilidade a determinadas decisões tomadas (BONAVIDES, 1996, p. 74). Os grupos comprometidos com a transformação econômica e política, se não tiveram condições de impor suas diretrizes no texto, conseguiram recusar as soluções convencionais do constitucionalismo liberal. Foram determinados novos institutos relacionados à dimensão democrática da Constituição e vinculou-se o Estado a um maior envolvimento na regulação social, mediante extensa pauta de direitos sociais (FARIA, 1989, p. 17-8).

A Constituição de 1988 é uma obra em aberto às futuras gerações, que assegura as condições procedimentais para a discussão dos seus conteúdos (VIANNA, 1999, p. 41). Além da abertura dos seus preceitos, houve a ampliação dos sujei-tos políticos aptos a decidirem o futuro do Estado (SOUZA JUNIOR, 2004, p. 122). Os mecanismos de participação po-pular foram alargados, assim como os meios de canalização de expectativas populares às instâncias de poder, que devem constituir-se em arena para a discussão das normas.

Exprime, portanto, a tentativa de resgate, após décadas de regime autoritário, do compromisso da sociedade brasileira

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com o ideal democrático e redistributivo. Daí afirmar-se ainda hoje, decorridos quase vinte anos da sua promulgação, que o texto constitucional é uma “confissão de que as promessas de realização da função social do Estado ainda não foram cumpridas” (STRECK, 2002, p. 85).

3 – A DISPUTA POR POSIÇõES POLÍTICAS E O EMPENHO PELA EFETIVIDADE DO CARÁTER EMANCIPATÓRIO DA CONSTITUIÇÃO

A discussão sobre os conteúdos constitucionais, por-tanto, encontra amparo no texto constitucional, que adotou mecanismos da democracia representativa e participativa. A previsão dos meios de canalização das expectativas da “co-munidade de intérpretes”, como o amplo rol de legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade e os mecanismos de defesa popular dos direitos coletivos e difusos - ação civil pública e ação popular - ou ainda, as amplas possibilidades de reclamações aos poderes públicos, permitem dizer que a norma assenta os meios institucionais para os embates sobre as linhas concretas das suas diretrizes.

O constituinte, que não podia estabelecer um projeto pré-determinado de vida em comum, optou por ratificar suas condições de realização, ao adotar certo relativismo em alguns dos seus preceitos. A norma superior, assim, é vista como uma plataforma a garantir legitimidade para que cada um dos setores sociais inicie a competição para imprimir ao Estado uma orientação (ZAGREBELSY, 1999, p. 13-14).

A positivação de princípios de conteúdo mais aberto e a constante remissão à posterior regulamentação em lei ordiná-

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ria das questões constitucionais mais palpitantes delegaram a efetivação das promessas exprimidas na carta constitucional para um momento posterior, na expectativa de que os arranjos políticos permitissem sua concretização. E, como já afirmado neste trabalho, as esperanças em torno do resultado destes arranjos dependiam do ponto de vista defendido. Como se sabe, a aceitação do protagonismo das instituições jurídicas depende da capacidade de visão dos seus operadores quanto ao fenômeno (CAPPELLETTI, 1999, p. 113).

Para Feitosa, é um reflexo do constitucionalismo na América Latina, em que “as normas, ao lado de possuírem capacidade prescritiva e vinculante, são consideradas uma expressão de desejos, ou seja, o norte, o horizonte para onde se deseja conduzir o processo social” (2003, p, 253).

Trata-se, em escala global, de uma conseqüência natural da ampliação do âmbito jurídico sobre as demais esferas sociais. Consoante anota Galanter, um dos aspectos desta crescente interferência do direito é justamente a disposição dos atores políticos em se envolver estrategicamente no “jogo do direito”, que oferece uma constante oportunidade de discussão das questões morais, para o que denomina de combate simbólico – mas respaldado em objetivos mate-riais – entre interesses conflitantes. Neste sentido, o prota-gonismo jurídico é apoiado por estas finalidades pontuais, ancoradas em “advogados especializados e com iniciativa para os empreender” e que encontram, ao final, a receptivi-dade dos juízes para desempenhar tal papel (GALANTER, 1993, 126, 124).

E se, no âmbito das constituições pluralistas, cada setor representa uma determinada interpretação do direito, ali-nhada com seus interesses, no caso brasileiro, vislumbra-se dois caminhos interpretativos na experiência posterior à

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promulgação da Constituição. Há setores que discordam das suas diretrizes e outros que procuram retirar do texto toda a carga eficacial possível. Os primeiros recorrem às “teses e interpretações despistadoras” e, apoiados na tradição priva-tista, passam a supervalorizar os textos infraconstitucionais. Já os segundos partem em busca da efetividade e enfatizam os valores e princípios neles consagrados.

Desde 1988, os dois grupos destoantes capitanearam as interpretações sobre os conteúdos constitucionais. Defende-se até a existência de um “movimento político teórico” sem precedentes na história jurídica brasileira - o “constitucionalismo brasileiro da efetividade”. Seu objetivo é desenvolver mecanismos dogmáticos e pro-cessuais para efetivação do texto, com a aceitação do seu caráter emancipatório (SOUZA NETO, 2003, p. 14-17). Assume-se que a luta política pela eficácia constitucio-nal é também uma busca jurídica. A doutrina jurídica foi influenciada pelas discussões teóricas européias, que já discutiam a primazia constitucional desde o período de afirmação das suas cortes. Obviamente, o debate euro-peu sofreu adaptações frente à realidade nacional, com o reconhecimento e combate ao formalismo jurídico que ainda repercute na formação dos juristas. Por outro lado, o histórico de desigualdade social e política da sociedade brasileira converteu-se num fator de reforço do empenho pela normatividade constitucional.

Como afirma Streck, o direito deve ser visto como um “campo necessário de luta para implantação de promessas modernas”, embora o autor reconheça que este esforço teó-rico pela legalidade não significa o abandono das lutas polí-ticas nos Poderes Executivo e Legislativo e dos movimentos sociais (2002, p. 80).

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O interessante no direcionamento ao campo consti-tucional das esperanças progressistas é que a solução dos problemas brasileiros, até o inicio dos anos 90, era vista sob “um discurso mais alternativo, em alguns casos até anti-estatal”. Como bem observa Adeodato, “os aconteci-mentos posteriores os fizeram agarrar-se à Constituição, que se tornou uma espécie de âncora das novas esperanças bem-intencionadas”(2003, p. 88). No mesmo sentido, são criticados os exageros na visão transformadora e até mes-siânica do texto e da jurisdição constitucional (FEITOSA, 2003, p. 246-247).

4 – CARACTERÍSTICAS GERAIS DO CONCEITO DE JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NA OBRA DE TATE E VALLINDER

Em vista deste reconhecimento doutrinário, das po-tencialidades da Constituição de 1988, os juízes foram chamados para atender aos chamados para a consolidação das conquistas democráticas. A instituição, desde então, tornou-se o canal para a concretização do texto. As tensões do sistema político foram deslocadas para os procedimentos judiciais. Pode-se falar, assim, em judicialização da política, conceito das ciências políticas e sociais, trazido ao Brasil na análise do fenômeno jurídico no momento de consolidação constitucional, como visto.

O termo judicialização da política decorre da obra co-letiva organizada por Neal Tate e Torbjörn Vallinder, “The global expansion of judicial power”, de 1995, em que os autores, conjuntamente com outros pesquisadores, traçam as características de um fenômeno ocidental de recrudesci-

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mento da interação entre o poder judiciário e as instituições políticas, com referência ao estudo de casos.

Analisados os contextos jurídicos e políticos dos Estados Unidos, de países da Europa Ocidental, da Austrália, Esta-dos da zona de influência da extinta União Soviética e até países da áfrica e da América Latina, toma-se como ponto de partida a noção de que o encaminhamento das demandas políticas ao Poder Judiciário é uma tendência mundial, típica das democracias contemporâneas.

Para os autores, a expansão da arena judicial nos âmbitos tradicionalmente ocupados pela política é decorrência da maior visibilidade dos Estados Unidos, a pátria da revisão judicial, como modelo democrático, após a falência dos re-gimes políticos comunistas (TATE; VALLINDER, 1995, p. 2). Ainda que cientes da diversidade de causas a proporcionar o fenômeno, a depender de cada contexto político e social, Tate e Vallinder ponderam outros fatores, de ordem geral, que também contribuíram para a popularidade da esfera judicial, como a crise pós-guerras na Europa e as transformações no âmbito da teoria jurídica.

A judicialização da política tem dois aspectos. O primeiro decorre dos controles que os tribunais exercem da atividade legislativa e executiva quando provocados, com respaldo con-stitucional, conforme já fundamentado nos itens anteriores. Já o segundo refere-se à influência que o procedimento judicial – caracterizado pela existência de duas partes opostas, pela decisão de um terceiro imparcial e pelas garantias da ampla defesa e do contraditório – passou a ter hoje na formulação dos procedimentos da Administração e dos Parlamentos de forma geral. As duas citadas perspectivas de judicialização da política, ainda que diferenciadas, possuiriam as mesmas

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raízes políticas, mas não necessariamente ocorrem de forma conjunta num dado sistema (TATE, 1995, p. 18-23, 28).

Interessante notar que, desde o início do trabalho, avaliza-se a conveniência de pesquisar a expansão da arena judicial com assento nas condições institucionais e comportamentais que permitem sua existência. Além da disposição dos atores institucionais, determinadas condições políticas incentivam o processo de judicialização da política. Geralmente, esta se dá em sistemas que prevêem a democracia política, que é uma condição necessária, mas não suficiente para sua emergência. A determinação constitucional da separação entre os poderes também favorece o fenômeno, ao estabelecer a competição e o controle recíproco entre as esferas de poder – apesar da postura comum ser a não interferência judicial no espectro de competências já definido.

Faz-se necessário o reconhecimento de um rol de direitos fundamentais – com especial destaque para garantias de cunho político – que admita a participação dos cidadãos nos procedimentos institucionais. Referidos direitos não precisam ser expressos numa constituição formal2,3mas devem, por seu conteúdo, facultar aos excluídos do processo decisório o recurso às vias judiciais para efetivar os direitos previstos (TATE, 1995, p. 29).

Outrossim, constata-se que as condições institucionais devem ser acompanhadas pela disposição dos atores políticos em utilizar os procedimentos judiciais para firmar seus interes-ses. Observa-se na obra dos autores uma tênue distinção entre

2 O exemplo de Israel sempre é citado, uma vez que o país, que dispõe de uma Corte Constitucional, não conta com uma constituição nos moldes semelhantes a outros sistemas políticos. Em 1992, foram promulgadas leis com o intuito de garantir direitos frente ao sistema político, que não podem ser infringidas, a não ser que beneficiem os valores do estado de Israel, por um fim valioso e que não exceda o razoável (Basic Law – human dignity, Basic Law – freedom of occupation e Basic Law – The Government). (HIRSCHL, 2004, p. 124)

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a efetiva crença na existência do direito alegado ou o mero interesse político (CASTRO, 1997, p. 150). Talvez a dificul-dade em traçar tal diferença decorra, como visto ao longo do presente livro, na aproximação – ou até identificação, como sustentam alguns – entre direito e política, típica do movimento constitucionalista. A interpenetração entre o discurso legal e o político, para Stone, é uma característica que gera consenso entre os estudiosos do tema (STONE, 1995, p. 206).

Com atenção ao comportamento dos atores políticos, note-se que Tate assevera a relevância da disposição dos grupos de interesse e das oposições na utilização dos tribu-nais. Assim, a judicialização da política traz implícita a idéia de que o encaminhamento de expectativas às instituições judiciais é conseqüência primordial dos processos de des-consideração das minorias políticas nos procedimentos da democracia participativa. Privilegia-se a questão política, e não social, na caracterização do conceito.

Para que isso ocorra, os grupos políticos têm de entender ser vantajosa a busca do Judiciário, seja para obter o efetivo reconhecimento dos direitos que vislumbram defender, em detrimento da vontade da maioria, seja pela possibilidade de obstruir determinadas políticas governamentais.

Os tribunais tornam-se o meio de discussão das decisões políticas quando impossível o debate entre oposição e governo na arena pública ou nos momentos em que o desacordo entre Executivo e Legislativo impede a condução das atividades políticas. A judicialização seria decorrência da ineficiência dos mecanismos da democracia tradicional.

A crise das instituições majoritárias, de outra ponta, re-verbera na percepção que os cidadãos têm do sistema político, e reforça a confiança nas potencialidades do Poder Judiciário. É possível que, chamados a decidir sobre um determinado

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tema cuja solução mostre-se desvantajosa politicamente, os titulares dos poderes majoritários deixem a questão em aberto, na espera de uma decisão judicial que ponha termo ao problema (TATE, 1995, p. 28-36).

Na outra ponta, os operadores jurídicos devem aceitar, de alguma forma, estas incumbências. O novo papel da ju-risdição depende da disposição dos juízes em aumentar seu âmbito de atuação, partindo para a discussão das atividades dos outros poderes. Quando, em alguns momentos, o tribu-nal se exime de prolatar decisão sobre determinado tema, alegando questões procedimentais, há um interesse político em manter o atual status. Portanto, para que se afirme, no plano concreto, a judicialização deve-se contar com a atuação proativa dos magistrados, no sentido de uma efetiva inter-venção no sistema político, com a fixação de interpretação diferenciada frente aos poderes majoritários.

5 –A JURIDIFICAÇÃO DO SISTEMA POLÍTICO E DAS RELAÇõES SOCIAIS NO BRASIL

A publicação do texto “O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização da Política”, de Faro de Castro, de 1997, foi o marco desta discussão em terras brasileiras. No mes-mo período, Teixeira, em dissertação que analisa as Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas perante o Su-premo Tribunal Federal, de 1990 a 1996, também utilizou a categoria, para apreciar os impactos destas ações em nosso sistema político.

A discussão da judicialização da política – e poste-riormente, das relações sociais – aqui, a despeito da ampla divulgação do termo, é vista com reservas por alguns co-

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mentadores, tanto no que tange aos próprios pressupostos da teorização inaugural quanto à adaptação da pesquisa no exame da atuação dos atores institucionais.

Em linhas gerais, os estudiosos concordam que os pressupostos adotados por Tate no seu trabalho podem ser verificados aqui. A CF-88, ao estabelecer novos parâ-metros organizativos para o Estado brasileiro, trouxe as condições procedimentais inafastáveis para a ocorrência do fenômeno. A garantia de uma esfera de competência razoavelmente bem descrita a cada um dos poderes estatais possibilita a verificação – senão no seu plano ideal – de uma certa identidade com o princípio da separação de poderes, condição relevante para a canalização de expectativas ao Judiciário. E o extenso catálogo de direitos fundamentais – e seus instrumentos de garantia – consignados no texto constitucional finaliza os três requisitos normativos para a judicialização.

O comportamento dos atores políticos brasileiros também corresponde aos padrões gerais dos sistemas ju-dicializados. Com efeito, não bastava a mera previsão dos instrumentos, se estes não fossem incorporados à prática dos diversos setores. No Brasil pós-1988, afere-se que os grupos de interesse, juntamente com a oposição política, têm esperanças no caráter contramajoritário da jurisdição constitucional. Não é à toa que, com respaldo no universo das ADINs propostas até 06.2003, 26,31% tiveram no pólo ativo confederações sindicais ou entidades de classe – 740 das 2813 ações – e 20,97% foram intentadas pelos partidos políticos – 590 do total. Dentre as ADINS propostas pelos partidos, estas em sua maioria são de autoria das oposições, sendo inegável – ao menos no que se refere à busca dos atores políticos – um processo de judicialização.

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Os partidos minoritários, ao direcionar seus questiona-mentos ao Supremo Tribunal Federal (STF), buscam inte-gração na comunidade permanente de intérpretes do texto constitucional, em conformidade com os moldes previstos em seu texto. Os embates entre os grupos políticos opositores acerca da interpretação adequada dos preceitos constitucio-nais é conduzido às portas do Judiciário (VIANNA, 1999, p. 91-95). O encaminhamento de demandas às instituições judiciais seria favorecido, no Brasil, pela incapacidade das instituições majoritárias em dar provimento às demandas sociais.

Como pontua Sadek, o próprio modelo institucional combina judicialização da política e politização da justiça. No plano fático, a visibilidade dos tribunais pode ser creditada aos ajustes econômicos, políticos e sociais vivenciados nos últimos anos, que alteraram características primordiais da sociedade brasileira. A adaptação de toda a infra-estrutura estatal às exigências do mercado internacional certamente seria discutida nas vias judiciais (SADEK, 2004, p. 8).

Após a definição dos aspectos gerais da judicialização no Brasil, o termo ganhou notoriedade nos meios acadêmicos. Sem prejuízo das demais contribuições, trabalho dos mais influentes sobre o tema é a obra coletiva de Vianna et al, cuja abrangência e profundidade analítica trouxeram novas pers-pectivas a serem investigadas pela literatura política nacional. Os autores elegeram como ponto de partida as reações dos operadores políticos – sociedade e de agentes institucionais – após a promulgação da Constituição de 1988. Entendem que alguns dos grupos alijados dos processos deliberativos apropriaram-se discursivamente dos valores de igualdade referenciados no texto fundamental, com o fito de provocar os órgãos judiciais a assumir a agenda redistributiva em

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detrimento das escolhas do eleitorado, que admitem estar submetido às falhas do sistema representativo.

As peculiaridades nacionais trazem ao processo de dele-gação de perspectivas políticas ao Judiciário um tratamento positivo por parte dos autores. Afirma-se uma espécie de “conexão entre a democracia representativa e a participativa”, proporcionada por uma série de instrumentos normativos de questionamento popular da gestão governamental –ações civis públicas, por exemplo. O compartilhamento do objeto constitucional é uma maneira de assegurar a participação dos grupos minoritários na condução da agenda política.

Interessante notar que a heterogeneidade da sociedade brasileira encontra ressonância nas demandas propostas perante o STF, segundo os autores, que se referem aos mais distintos objetivos, tanto restritos quanto universalistas. O art. 103 da CF-88 abriga essa diversidade de interesses, ao facultar a propositura de ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) a uma ampla gama de legitimados.

O desempenho de todos estes legitimados foi avaliado na pesquisa de Vianna et al , a partir dos objetos das ações propostas, temas e demais fatores pertinentes. O trabalho dos atores institucionais, de modo geral, não causa grandes surpresas. A novidade é a utilização da Corte Constitucio-nal pelos Executivos estaduais e pela Procuradoria-Geral da República, num típico mecanismo da judicialização, para controlar as iniciativas dos legislativos estaduais. O controle dos parlamentares pelos outros titulares de poder – admitindo-se a inserção do Ministério Público nesta perspectiva – é uma singularidade brasileira frente ao consenso doutrinário acerca da difusão constituciona-lista como mecanismo de proteção das minorias sociais e políticas.

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Consigne-se que o papel dos Governadores de Estado e do chefe do Ministério Público Federal afigura-se fun-damental para o sucesso da jurisdição constitucional aqui. O objetivo destes legitimados, comumente, é questionar a legislação produzida na esfera estadual. Os governadores pretendem, na maioria dos casos, “defender a governabili-dade e racionalizar a Administração Pública”, das investidas parlamentares, especialmente no momento de promulgação das Constituições Estaduais – início dos anos 90.

Não se pode esquecer que a escolha dos temas pelos legitimados ativos é influenciada pelos julgados já proferi-dos pela Corte. Os autores, e os operadores jurídicos que os apóiam na busca dos tribunais, organizam-se em vista destas decisões, para assegurar a superação dos requisitos formais que poderiam impedir o seguimento das ações, e permitir uma sentença de mérito.

Mas são as matérias submetidas ao STF que delimitam a esfera de apreciação do tribunal. A predileção pela discussão da Administração Pública, como interpretam Vianna et al,

“repercute negativamente sobre as possibilidades de o STF se identificar mais claramente com a filosofia da Carta de 88, cuja intenção era a de favorecer a efetivação dos seus grandes princípios programáticos, e não a de criar uma instân-cia para as controvérsias das diferentes corporações sobre as questões de Direito Administrativo.” (1999, p. 150-151)

Vianna el al¸ na obra que avalia o problema da judicia-lização da política no Brasil, ainda traz a importante impli-cação do fenômeno de incorporação do direito ao cotidiano da vida brasileira – a judicialização das relações sociais.

Trata-se, em breves palavras, da constatação de que o direito exerce importante papel na regulação da sociabilidade e das práticas sociais. Alcança as questões de natureza pri-

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vada, estendendo-se ao terreno das relações pessoais e até das relações econômicas e de consumo – objeto dos direitos coletivos e difusos. A judicialização das relações sociais seria mais um produto da “agenda igualitária e da sua interpelação por grupos e indivíduos em suas demandas por direitos, por regulação de comportamentos e reconhecimento de identi-dades” (VIANNA et al; 1999, p. 22).

Ao lado da utilização das ações de cunho coletivo, veri-fica-se no Brasil um movimento razoavelmente consolidado de acesso à justiça, que permitiria a penetração dos proce-dimentos jurídicos na vida das camadas menos favorecidas, incrementando a busca pelo reconhecimento dos direitos. Foi a discussão do direito ao acesso à justiça que permitiu a con-solidação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, tentativas de aproximação com as questões cotidianas dos brasileiros.

6 – DAS CRÍTICAS À NOÇÃO DE JUDICIALIZA-ÇÃO: NECESSIDADE DE AVALIAÇÃO DAS CIR-CUNSTÂNCIAS POLÍTICAS E SOCIAIS PARA O ESTUDO DO FENÔMENO

A discussão da judicialização da política – e posterior-mente das relações sociais – no Brasil, a despeito da ampla divulgação do termo, é vista com reservas por alguns co-mentadores, tanto no que tange aos próprios pressupostos da teorização de Tate quanto à adaptação do tema na análise da atuação dos atores institucionais.

Inicialmente, as críticas são direcionadas à dimensão progressista da obra do autor, que supõe o fenômeno como uma espécie de evolução natural da afirmação das minorias nos contextos democráticos. O relacionamento entre o Ju-

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diciário e os demais atores políticos não resta bem esclarecido no conceito inicial. O autor estaria voltado a uma concepção formal das atribuições e relações dos poderes (KOERNER; MACIEL, 2002, p. 17-19). Para que ocorra a judicialização, contudo, não bastaria assentar os mecanismos de recurso ao direito, mas haver a possibilidade de censura aos órgãos majoritários, com expressos resultados nas decisões por eles tomadas. Segundo Oliveira, o “ciclo da judicialização” completa-se quando o Judiciário marca uma posição política e ideológica antagônica àquelas predominantes nas insti-tuições majoritárias, opondo-se, assim, às políticas por ela adotadas (OLIVEIRA, 2005, p. 564).

A verificação dos efeitos da interferência judicial faz-se, por conseguinte, indispensável. Para Stone, estes podem ser imediatos ou implicarem numa reorganização ulterior das atividades políticas, para amoldá-las às imposições ju-diciais, de forma a evitar prejuízos futuros. O autor advoga a necessidade de pesquisas aptas a “medir” os impactos das sentenças judiciais no âmbito político. A maior dificuldade, contudo, residiria na constatação empírica das conseqüências indiretas dessas imposições na organização da estrutura e funcionamento dos poderes públicos (1995, p. 207-8).

São inevitáveis, em dadas situações, tensões entre os tribunais e demais órgãos da vida pública. Para minimizar sua ingerência nos demais sistemas sociais e firmar-se como órgão relevante para o quadro institucional, as cortes se esmeram na formulação de mecanismos jurídicos de apa-ziguamento das tensões políticas, de modo a relativizar o impacto das suas resoluções.

Alguns juristas propugnam por uma atuação conjunta do “circuito” juízes-Corte-Parlamento para superar as questões de inconstitucionalidade, para não deixá-las sob exclusiva respon-

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sabilidade dos membros do tribunal constitucional (GROPPI, 1999, p. 8). Mais comum é que as cortes inclinem-se a exprimir meras admoestações ao legislador, para que este regulamente a situação analisada, sem qualquer efeito vinculante.

Ademais, a tentativa de imprimir contornos globais, homo-geneizantes e perenes ao fenômeno, como decorrência da análise de casos pontuais, olvida as especificidades de suas causas num dado contexto. O entendimento desta problemática hoje depende da avaliação da diversidade de causas que proporcionam a ex-pansão do Judiciário nos temas reservados à política, partindo-se de cada contexto social, a delimitar as conseqüências do tema naquela situação (CARVALHO, 2004, p. 16-17).

A partir destas censuras à utilização do conceito inicial de judicialização, Maciel e Koerner defendem que os estudos sobre o comportamento dos atores políticos brasileiros sejam comentados em vista das peculiaridades históricas e culturais da nossa sociedade. Com respaldo nestes dados seria possí-vel aferir o fenômeno sob o “enfoque das dimensões intra e inter-institucionais assim como a relação entre o conteúdo das decisões e as expectativas dos sujeitos”, obtendo-se uma visão mais adequada das suas causas e conseqüências (KOERNER; MACIEL, 2002, p. 10).

Em que pese o otimismo de parte da doutrina, também é indispensável, na análise da judicialização da política, discutir a receptividade da perspectiva substancialista nos quadros da própria magistratura, avaliando se, paralelamente ao direciona-mento de expectativas dos cidadãos e até dos agentes políticos às vias judiciais, verifica-se a aceitação pelo Judiciário deste papel, em suas instâncias ordinária e superior.

Desde já, pode-se adiantar que pesquisa que abordou, dentre outros, o tema da judicialização da política entre os magistrados, conclui que estes não atribuem importância à

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discussão no que concerne ao seu trabalho, no plano geral. Após a análise dos dados coletados, Pinheiro finaliza que “a visão predominante entre os magistrados é de que a ‘judi-cialização da política’ é provavelmente mais relevante para o sistema político do que para explicar os problemas com que se defronta o Judiciário” (2001, p. 20).

Todavia, não se pode desconhecer que a própria discussão des-tes temas, no Brasil, já é de todo modo um sinal de que o processo redemocratizador viabilizado pela Constituição de 1988 repercutiu na agenda da sociedade brasileira. É, como afirma Lobato, um “sinal da consolidação das nossas instituições democráticas” (LOBATO, 2001, p. 48). Porém, não se deve perder de vista o fato de que a “novidade” constituída pela atribuição deste importante papel ao direito não pode substituir a política e os seus instrumentos.

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FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA, ExERCÍCIO PROFISSIONAL

E ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO

João Maurício Adeodato

REsumO

Este artigo tem por objetivo ressaltar as discordâncias entre as entidades governamentais competentes no que con-cerne à política de educação jurídica no Brasil, levadas a efeito pelos Ministérios de Educação e Cultura e de Ciência e Tecnologia, procurando um distanciamento crítico ade-quado. Compara as políticas públicas e privadas, atentando para o problema da qualificação docente diante da expansão da área de direito.

Palavras-chave: Educação jurídica. Política governa-mental e ensino jurídico. OAB e formação profissional.

1 Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife, Pesquisador 1-A do CNPq, Ex-membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB (1995-2000 e 2006) e Coordenador do Curso de Direito das Faculdades Maurício de Nassau

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AbsTRAcT

This paper aims to put light to the very different policies applied by government agencies in what concerns juridical education in Brazil, specially the Ministries of Culture and Education and Science and Technology. It compares this public policy to the growth of private initiative, focusing the problem of docent qualification in face of the extraordinary expansion of law faculties in the last ten years.

Key words: Legal education. Govern policies and legal teaching. Ordem dos Advogados do Brasil and professionaliza-tion.

sumário: 1 – Introdução: O estado da arte no que diz respeito a discordâncias institucionais. 2 – As argumentações que fundamentam as discrepâncias. 3 – Os problemas espe-cíficos da área de direito. 4 – Aferição de qualidade docente e pós-graduação. 5 – Dois mundos a conciliar: o público e o privado diante da área de direito. 6 – Especialização e profissionalização do docente.

1 – INTRODUÇÃO: O ESTADO DA ARTE NO QUE DIZ RESPEITO A DISCORDÂNCIAS INSTITUCIO-NAIs.

Nos anos imediatamente posteriores à edição da Portaria 1886, em 1994, a Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil tinha seu trabalho facilitado por uma grande identidade entre seus membros e as Comissões competentes do Ministério da Educação. São

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exemplos disso a primeira Comissão do Exame Nacional de Cursos, antigo “Provão”, e as diversas Comissões da Secretaria de Ensino Superior, cujas composições incluíam membros da própria Comissão da OAB. Hoje, diversamente, nota-se disparidade de perspectivas entre as duas instituições. Um exemplo disso é a Comissão instituída pelo MEC em outubro de 2006, sem qualquer comunicação à Ordem, depois de a Comissão de Ensino Jurídico ter encaminhado várias sugestões, fruto de trabalhos imediatamente anteriores, realizados a convite do próprio MEC, os quais foram e permanecem simplesmente ignorados.

Há outra falta de unidade em relação ao trabalho desen-volvido pelas diferentes instituições que se ocupam do ensino jurídico no país, tais como o Conselho de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI), a Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi) e o Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito. Dentre outros aspectos, lamentam a falta de conexão entre si.

Dentro da própria OAB, por seu turno, também detecta-se falta de homogeneidade entre a CEJ e a Comissão de Exame de Ordem, sem contar aquela existente entre as mesmas duas comissões em seus âmbitos seccionais. A CEJ do Conselho Federal tem enfrentado dificuldades, por exemplo, porque algumas seccionais não enviam os pareceres e nem sequer os dados solicitados (estatísticas de Exame de Ordem, realização e relatórios de visita às faculdades etc.), seja no que concerne aos processos de autorização, seja de reconhecimento.

A principal discordância entre a CEJ e a Comissão de Exame de Ordem, em seu âmbito federal, parece dizer res-peito exatamente aos conteúdos que devem estar presentes no currículo das faculdades de direito. Claro que ambas as comissões têm suas próprias atribuições a cuidar, dentre as

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quais ressalta, no que concerne à Comissão de Exame de Ordem, o problema de sua unificação nacional, a qual, apesar de óbvia em um país no qual a licença para advogar não se restringe a âmbitos estaduais, enfrenta resistências tenazes.

No conteúdo, o Exame de Ordem permanece mnemônico, isto é, testa mais a memória do que qualquer outra atividade mental, e dogmático, no sentido de exigir conhecimentos baseados em meros relatos descritivos do direito positivo. Isso contrariamente às recomendações da própria Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal, que rejeita projetos de cursos de direito de cunho preparatório para esses tipos de exames e concursos e procura induzir ao ensino de disciplinas que despertem mais a crítica e a criatividade,

Do outro lado, na esfera interna do Ministério da Edu-cação, também percebem-se concepções díspares, quando não antagônicas. Aqui cabe registrar aquela existente entre as políticas de graduação, a cargo da Secretaria de Ensino Superior, SESu, e de pós-graduação stricto sensu, sob o comando da Fundação Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, a CAPES. Como é de conheci-mento geral e debatido na grande mídia, há uma política francamente expansionista da parte da primeira, inclusive ig-norando solenemente pareceres fundamentados em contrário da CEJ, conduzindo a uma expansão do ensino privado e à autorização e credenciamento de mais de mil faculdades de direito no momento no país. Do lado da CAPES, os pedidos para autorização de cursos de mestrado, para não falar nos de doutorado, encontram um índice de mais de noventa por cento de rejeição. Isso levando em conta a íntima relação entre os dois setores, propugnada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a qual exige um percentual de mestres e doutores nos cursos de graduação que jamais encontrará

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satisfação diante das políticas dos dois órgãos, ainda que submetidos ao mesmo Ministério, diametralmente opostas.

Nada disso sói estranhar neste país. Dois exemplos farão corar o leitor.

O primeiro deles é o caso do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Goiás. Não se quer aqui criticar os critérios da Comissão da área de Direito da CAPES, mas simplesmente chamar atenção, como diz o subtítulo acima, para as discordâncias institucionais. Esse Curso de Mestrado foi descredenciado pela CAPES, sob diversos argumentos técnicos, cuja propriedade, repita-se, não está aqui sob julgamento. Ocorre que cabe ao Governo Federal, e daí ao Ministério da Educação, prover condições para o bom fun-cionamento de instituições a seus cuidados. Um curso de mestrado tradicional, em instituição pública federal, único existente há 19 anos, em uma região reconhecidamente car-ente nesse ponto, há três anos tenta, debalde, voltar ao sistema nacional de pós-graduação em direito. E um órgão do próprio governo descredencia o que o governo não fez.

Outro exemplo vem da Universidade Federal de Pernam-buco. Com um Programa de Pós-Graduação em Direito con-solidado e tradicional, em uma região ainda hoje carente na área, foi incentivada por sua Reitoria e pela própria CAPES, ao credenciar seu Curso de Doutorado em 1996, a qualificar os corpos docentes de faculdades no seu entorno por meio dos mestrados e doutorados interinstitucionais, à época denominados “cursos fora de sede”. Com a extraordinária demanda reprimida, provocada pela expansão da graduação, além dos óbvios dividendos políticos, a Reitoria da UFPE houve por bem assinar convênios com diversas instituições, a certa altura, sem cuidar de avaliar se haveria condições institucionais para o devido atendimento dos pleitos.

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De repente o Programa da Faculdade de Direito do Recife se viu ameaçado de rebaixamento ou mesmo descredenciamento, abandonado pela própria Reitoria que o colocara nessa situação. Isso não chegou a ocorrer e o rasto desse trabalho foi dos mais auspiciosos: Universidades como a Federal de Alagoas, a Federal do Rio Grande do Norte, a Federal do Piauí, a de Fortaleza e muitas outras tiveram alavancados seus próprios programas de pós-graduação devido ao trabalho da Faculdade de Direito do Recife. Hoje é indicador de excelência ou “solidariedade”, na avaliação da CAPES, o fato de uma instituição promover cursos fora de sede. Ora, pois, tudo está bem quando acaba bem.

Uma última referência se faz útil, esta apenas para menção, quanto à superposição de funções entre a CAPES e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, vinculado ao Minis-tério da Ciência e Tecnologia, ministério mais infenso a pressões políticas, cujas competências e critérios para concessão de bolsas e fomento à pesquisa apresentam notória desconexão.

2 – AS ARGUMENTAÇõES QUE FUNDAMENTAM AS DISCREPÂNCIAS.

Da perspectiva da OAB, a preocupação central é com o mau desempenho da profissão, que pode provocar e vem de fato ensejando danos irreparáveis à sociedade. Causam espécie considerações ainda hoje persistentes sobre sua competência para o exercício das funções delegadas para a Comissão de Ensino Jurídico, teclas reiteradas desde sua criação, tema no qual cabe mera remissão dogmática às

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normas jurídicas pertinentes. A competência da CEJ parece indiscutível: embora não vinculante, ela é muito importante como indutora de qualidade. No fundo, e aí vai uma opinião pessoal, a qualidade dos cursos de direito depende de uma ampliação de sua carga horária, meta que se pode observar na política da CEJ desde sua criação. Um curso com seis anos de duração, porém, tem contra si interesses economicamente relevantes, em torno dos quais se unem alunos e empresários do ensino.

Certamente a burocracia do MEC não vê com bons olhos o que lhe parece um imiscuir-se indevido da OAB em atribuições constitucionais e legais específicas. As pressões para extinção do exame de ordem vêm ao encontro de uma política de inserção formal de jovens entre 18 e 24 anos no ensino superior, sob pressão dos critérios da comunidade internacional, aliada ao pouco investimento necessário à instituição de faculdades de direito.

Do ponto de vista do MEC, coincidência entre governos em outras áreas tão díspares, quanto os desses dois Presi-dentes da República que abarcarão 16 anos no comando do país, é ao mercado que cabe decidir a inserção profissional de enormes contingentes de formandos em direito, inde-pendentemente da necessidade, por parte da sociedade, de seus serviços, ou de critérios qualitativos que lhes parecem elitistas ou oriundos de reservas de mercado e temor de concorrência.

O argumento é a baixa proporção de jovens entre 18 e 24 anos no terceiro grau no Brasil, atrás de países supostamente mais atrasados da América Latina. A inserção desse público no ensino superior vem privilegiar o curso de direito, encar-regado de satisfazer as estatísticas oficiais que o governo vai

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apresentar perante a comunidade internacional, alegadamente devido a seu menor custo.

Por parte da OAB, o tema envolve complexas questões de política interna. A utilização de critérios rígidos sobre o con-hecimento das artes do direito no exame poderia configurar uma medida de alto custo político, eventualmente provocando perda de apoio no plano local e talvez até no nacional, o que, a experiência tem mostrado, forneceria combustível para eventuais oposições pregarem uma “abertura” de forte apelo eleitoral. Poderia também ser disfuncional, para as Seccio-nais, que já enfrentam problemas de inadimplência, provo-cados pela proletarização da profissão, diminuir as receitas provenientes do grande aumento no número de advogados inscritos. Advogados influentes, mais administradores de cursos preparatórios do que causídicos, constituem também grupos de pressão que não podem ser ignorados.

3 – OS PROBLEMAS ESPECÍFICOS DA ÁREA DE DIREITO.

Parece fora de dúvida, a crer nos indicadores, que a área de direito encontra-se em desvantagem diante de outros cam-pos do conhecimento no Brasil, sejam as ciências “duras”, sociais, teóricas ou aplicadas. Se procede a afirmação de que as ciências biológicas e as matemáticas estariam acima da ciência do direito, dentro de um “ranking” dos diversos saberes, o ensino e a pesquisa em direito enfrentam o pior dos mundos possíveis. As aulas-conferência não são um mal em si, mas exigem professores altamente qualificados e, mesmo assim, não podem ser exclusivas. O problema do direito com os relatos descritivos do direito positivo que caracterizam

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aulas, cursos e produção bibliográfica. A própria qualidade do exame de ordem e dos concursos públicos vai na mesma direção. Não se problematiza, não se ensina a pensar. Não consideram o currículo do candidato, sua história pregressa... Vários motivos levaram a esse estado de coisas.

Como a demanda por professores é muito grande e de caráter recente na história do país, não houve tempo para preparar esses profissionais. O resultado é um amadorismo atroz, em geral fruto de um recrutamento de profissionais do direito para os quais o ensino é diletante e a pesquisa que o alimentaria é inteiramente desconhecida. O exame vestibu-lar para o nível superior, na área de direito, praticamente desapareceu devido ao crescimento da atividade privada e ao número de vagas superior à demanda. Nas instituições públicas, nas quais ainda persiste unicamente pelo caráter gratuito das mesmas, o exame vestibular cai num pragma-tismo dirigido pelos cursos secundários preparatórios, nos quais as disciplinas importantes para o estudo do direito são suplantadas por um tecnicismo dominado por disciplinas inúteis. O corpo discente é assim selecionado ignorando as necessidades específicas do aluno para o curso de direito: são bons alunos, pelo menos no início, mas nem sempre são os melhores.

Dentro da faculdade de direito, a situação torna-se ainda mais complicada: professores descompromissados, ausentes ou atrasados contumazes, excesso de turmas e de alunos, além das querelas internas que atazanam a vida da universidade pública. A penúria financeira das federais, aliada a uma partidarização política do alunado e até do professorado, nefasta diante do demagogismo eleitoral para escolha de seus dirigentes, tudo isso leva a um crescente e progressivo desinteresse dos alunos ao longo do curso. É impressionante

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a decadência geral que a faculdade de direito pública lhes causa.

A piorar a penúria, toda e qualquer iniciativa para angariar recursos e melhorar os parcos ganhos dos profes-sores é tachada de “privatização da universidade pública”, atravancada com ações na justiça e temperada com mais demagogia política. As fundações das universidades são expostas como as grandes vilãs, os governos simplesmente ignoram as necessidades de manutenção e aprimoramento e o caos prossegue.

Mesmo que as ações do ministério público e de líderes estudantis para impedir as especializações tenham sido venci-das em alguns juízos, e vencedora em outros, os professores sem dedicação exclusiva, a grande maioria do corpo docente qualificado na área de direito, simplesmente desistiram de organizar e participar desses cursos; foram trabalhar na iniciativa privada e nas parcerias público-privadas, como as escolas ligadas aos tribunais e procuradorias, hoje muito à frente das especializações públicas. Assim, os mesmos cursos que tinham servido para complementar o financiamento da faculdade pública, foram para o âmbito privado.

Do lado das faculdades privadas, a situação é inteira-mente diferente. Embora isso não seja válido para todos os cursos, certamente no curso de direito os alunos da univer-sidade pública são os egressos das escolas privadas de nível médio, pois sua muito melhor condição financeira lhes per-mitiu escapar da baixa qualidade da escola pública de nível fundamental e médio. Isso causa uma das maiores injustiças sociais no Brasil, fazendo com que o aluno com melhores condições financeiras estude gratuitamente na faculdade de direito pública e que o aluno mais sacrificado vá para a facul-dade privada, sem condições de estudar e esfalfado por um

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longo dia de trabalho. Claro que o ensino chamado público não é gratuito a não ser para as famílias dos alunos; ele é pago por esse povo pobre, que pelo menos nas faculdades de direito não consegue entrar.

A pesquisa jurídica nas instituições privadas, porém, ainda é aspiração distante, ressalvadas muito poucas ex-ceções. Se criar um corpo docente além de horistas já se afigura tarefa muito difícil, imagine-se viabilizar condições de iniciação científica e dedicação ao estudo fora da sala. O investimento alto e o insignificante retorno financeiro assusta os empresários e a falta de pressão das entidades governa-mentais lhes dá o devido respaldo.

4 – AFERIÇÃO DE QUALIDADE DOCENTE E PÓS-GRADUAÇÃO.

Mas a situação do ensino e da pesquisa em direito no Brasil também apresenta horizonte mais esperançosos, pois a discussão sobre o profissional de direito que se quer no Brasil não se esgota no terceiro grau. Deixando de lado a educação fundamental, que também exige a experiência dos especialistas, cada vez mais passa a pós-graduação a ocupar lugar de destaque, seguindo, aliás, tendência mundial. A demanda revela-se no grande número de novos cursos de es-pecialização (lato sensu) surgidos no país, incluindo aqueles promovidos no ministério público, na magistratura estadual, na justiça federal. Quanto à pós-graduação em sentido estrito, já estão credenciados mais de sessenta cursos de mestrado em direito, enquanto que, dos vinte cursos de doutorado, só três têm mais de quinze anos de atividade. O número de mestrados, por seu turno, era muitas vezes menor há dez

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anos, o que dá uma dimensão da demanda, mesmo levando em conta a extrema rigidez da CAPES no credenciamento de novos cursos. Essa expansão parece ser inexorável.

Mesmo as instituições privadas de ensino jurídico conscientizam-se da importância, qualitativa e empresarial, da pós-graduação, nesse mundo de serviços especializados. Se o ensino do direito pode ser visto pelos empresários como um negócio, aos poucos já surge a consciência de que qualidade e lucro não se opõem; muito ao contrário, complementam-se. Por outro lado, sistemas de apoio ao estudante menos abastado, concedendo-lhe créditos educativos e bolsas, vêm cooperando para um acesso mais democrático a essas escolas.

Já é antiga a discussão sobre se deve prevalecer uma perspectiva generalista ou especializante na educação escolar. Se esse problema já é crucial nos três anos que antecedem a opção profissional do aluno, ingresse ele ou não no ensino superior, do ponto de vista do ensino jurídico a preparação fornecida pelo nível médio e o correspondente vestibular parecem definitivamente inadequados. Não se trata de con-cepções pedagógicas excessivamente interdisciplinares, pois não é esse o caso, mas sim de uma exagerada concentração em conhecimentos específicos que muito pouco têm a ver com as profissões jurídicas, enquanto que, por limitações até de tempo, são bem menos numerosas e, em existindo, mais negligenciadas, disciplinas fundamentais para o estudo do direito como lógica, ética, retórica, história, línguas es-trangeiras, noções gerais de política e cidadania etc.

Causa espécie o fato de tantos jovens desejarem ingressar nos cursos jurídicos e as matérias essenciais a esses estudos serem inteiramente negligenciadas nos exames vestibulares e no seu corolário, no ensino de segundo grau. Se a demanda

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pelas profissões de físicos, engenheiros, químicos e biólo-gos, espelhando o mercado de trabalho, é tão reduzida, não se compreende a insistência de conteúdos programáticos sobre mitoses, meioses, moles e vetores. Uma reforma que já começa a se delinear em algumas poucas escolas deve ampliar matérias mais úteis aos futuros juristas. Para que a mudança não cause o prejuízo ao contrário para os estudantes com inclinações mais técnicas e tecnológicas, os currículos seriam opcionais, como os antigos clássico e científico.

Claro que a grande necessidade é por escolas e cursos profissionalizantes, toda essa discussão só tem sentido porque a preocupação aqui é com a educação jurídica universitária, o terceiro grau. Essas opções pedagógicas continuam a con-stituir problemas também no curso de graduação em direito, o qual necessita fornecer ao aluno uma educação humanís-tica mais geral, uma formação técnica nos fundamentos do direito positivo e as habilitações específicas para a prática profissional.

Esses muitos problemas discentes não podem ser separa-dos de sua contraparte principal, qual seja, um corpo docente que jamais se submeteu a qualquer modalidade de aferição acadêmica, cujo currículo reduz-se a uma manipulação dos colegas e das lideranças estudantis. Na melhor das hipóteses, um concurso na juventude distante, bem sucedido para uma carreira jurídica burocrática, pouco ajuda nas habilidades acadêmicas de um professor. Claro que há advogados e juizes com dimensão universitária, dependendo de sua historia de vida, mas a grande maioria é de diletantes. Isso para não falar dos professores que invectivam contra pesquisas, cursos e titulações e que sequer concursos ou experiência profissional naquelas áreas dogmáticas possuem, além das sinecuras públicas que lhes foram porventura presenteadas.

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Ajudando a superar todas as dificuldades enfrentadas pelos juristas, porém, os programas de estudo e pesquisa em seus diversos níveis têm crescido mais e mais em todo o país.

5 – DOIS MUNDOS A CONCILIAR: O PúBLICO E O PRIVADO DIANTE DA ÁREA DE DIREITO.

Apesar da argumentação pretensamente objetiva e geral, as ações opostas à pós-graduação parecem ter um fundamento nitidamente pragmático e, por motivo deste caráter existen-cial de sobrevivência, esses críticos atuam denodadamente em defesa de seus interesses, sobretudo no que concerne aos ambientes no serviço público. Ultrapassados em todos os sentidos, eles temem a pós-graduação, como um mundo desconhecido, um mundo no qual não viveram e cuja im-portância não querem compreender.

Nas universidades públicas, por exemplo, não cor-responde à verdade a afirmação de que os critérios para pro-gressão na carreira de magistério dependem exclusivamente da pós-graduação. Por um lado, é certo que, em universidades de qualidade, o entendimento é que ter defendido uma tese de doutorado simboliza simplesmente o fim da carreira de aluno; não é preciso ir ao exterior para encontrar esta perspectiva, pela qual o bom professor precisa apresentar muito, muito mais do que isto. Hoje, até acabar com a tese no concurso público para professor titular acabaram.

Por outro lado, contudo, em universidades menos qualificadas, é perfeitamente possível progredir na carreira se o docente, mesmo sem experiência profissional em pesquisa, até sem ter realizado qualquer trabalho de maior fôlego, vem produzindo trabalhos outros, como artigos, pareceres e inclu-

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sive decisões em revistas especializadas, tem publicado em congressos, é convidado para ministrar cursos e palestras em outras universidades, vem compondo bancas examinadoras de concursos públicos jurídicos, ainda que não-acadêmicos, vem cooperando junto a órgãos de pesquisa sérios, em suma, “tem currículo”. O que não se pode é nivelar por baixo e aceitar como título acadêmico uma banca de advocacia bem ou mal sucedida ou a escolha política para participação em tribunais superiores, conquistas sem dúvida admiráveis, mas que nada têm a ver com ensino, pesquisa ou extensão universitárias.

Se pode haver advogados, procuradores, ministros e desembargadores com dimensão universitária, basta olhar para ver os muitos a quem a ciência do direito é inteiramente estranha, o que não é nenhum demérito, desde que se per-ceba a diferença. A atividade dogmática é um dos objetos dela, mas é ignorante e falaz confundi-la com a atividade científica. O profissional em formação não se deve deixar enganar pela mágoa impotente que subjaz aos últimos cantos de cisne que combatem os critérios de excelência acadêmica, sobretudo a pós-graduação, estertores já extintos em todas as universidades decentes do mundo e prestes a calarem-se mesmo aqui na periferia.

Como estratégia bem sucedida de preparação para a pós-graduação e ao mesmo tempo de integração entre graduação e pós-graduação aparece o Programa Integrado de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), fomentado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em cooperação com as universidades, sobretudo as federais. A área de direito tem participado, ainda que timidamente. Mesmo diante dos dados quantitativos referentes à progressiva privatização do ensino superior, sobretudo na área jurídica, a absoluta predominância das

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universidades públicas em relação ao PIBIC demonstra uma relação qualitativa inteiramente diferente, na qual estas levam grande dianteira. Inobstante a queda no ensino público superior, seu alunado ainda é, sem dúvida, o melhor. Para atrair uma clientela mais capacitada, dentre outras estratégias, as universidades privadas que perseguem a qualidade têm procurado instituir seus próprios programas de iniciação científica, com ou sem apoio do governo, muitas com sucesso.

Nas faculdades de direito públicas, a exigência de dedi-cação exclusiva, regime de trabalho que impede o professor de exercer outras atividades, incluindo ensino e pesquisa em outra instituição, tem provocado êxodo de professores e funcionários, diminuição de regime de trabalho e de dedi-cação por parte de profissionais qualificados, atraídos pelo mercado, mas também menos interesse de pessoas melhor preparadas em trabalhar nelas.

No âmbito privado, o aumento de faculdades de direito tem muitas causas e facetas: o governo não tem o ensino superior nem a pesquisa como prioridades, o empresariado viu que alguns cursos podem ser lucrativos, a profusão e a confusão legislativas facilitam as coisas, além de conflitos de competência (os conselhos estaduais autorizam faculdades de direito pertencentes a autarquias, por exemplo, sem passar por qualquer manifestação da OAB).

O ponto bom é o aumento do mercado e vagas de trabalho para os professores de direito. Não vêm à toa as disputas internas na magistratura ou no ministério público, que chegaram até o Supremo Tribunal Federal, a respeito de quantas aulas semanais seus membros po-dem assumir.

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6 – ESPECIALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DO DOcENTE.

A pós-graduação em direito no Brasil começa na primeira metade do século passado, com a implantação dos cursos de doutorado no Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte. Esses cursos tinham perfis relativamente simples, pode-se dizer mais correspondentes aos mestrados ou mesmo às especializações de hoje. A pós-graduação da Faculdade de Direito do Recife, por exemplo, instituída em 1938, como curso de doutorado, apresentava apenas oito disciplinas de trinta horas em sua grade curricular, sem exigências de língua estrangeira ou produção científica substancial. Tal qual em outros países como a Itália, por exemplo, não havia nível de mestrado na pós-graduação em direito. Tampouco eram padronizadas as estruturas acadêmicas.

Na passagem para a década de 1970, com uma maior cen-tralização e fiscalização por parte do governo, as exigências doutorais passaram a ser maiores e mais unificadas, fazendo com que se expandisse no país a criação de cursos jurídicos de mestrado, em detrimento dos doutorados, muitos dos quais foram, por assim dizer, rebaixados à condição de mestrados, como no o caso do mestrado em direito na Faculdade de Direito do Recife. A tradição anterior desses doutorados, porém, parece ter feito com que os primeiros mestrados e os demais que a eles se seguiram se encaminhassem para uma excessiva complexidade: os poucos mestrados em direito consolidaram-se como cursos longos, dispersos em seus conteúdos, calcados em estudos que não se dirigiam às dis-sertações, fazendo com que a média de tempo de conclusão se colocasse entre as mais altas e menos desejáveis das áreas

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de conhecimento classificadas pela Fundação Capes e pelo MEC.

Implantou-se assim, no Brasil, uma cultura de mestra-dos em direito com carga horária exagerada, consistindo de disciplinas desconexas entre si e de corpos docentes isolados em suas linhas de pesquisa e excessivamente burocráticos em suas exigências curriculares. Não se deve esquecer, porém, a importância desses primeiros mestrados na formação da pesquisa jurídica e maturação científica da área. Este perfil acadêmico começa a mudar com rapidez nos últimos anos e aí a OAB, por meio de sua Comissão de Ensino Jurídico, tem tido um papel importante na criação e apoio de exigên-cias prévias para criação e manutenção de cursos jurídicos, mesmo sendo um órgão de classe, na opinião de alguns des-vinculado dessa sorte de problemas. Dentre elas, a exigência de titulação que incentiva a demanda por pós-graduações em direito.

A tendência parece ser a de simplificar e expandir os mestrados, reservando às instituições mais sólidas a respon-sabilidade pelos cursos de doutoramento. O problema é que, para consolidar um curso de mestrado, a instituição precisa de doutores e não de mestres, problema que só pode ser so-lucionado enviando professores para cursar doutorados fora do Brasil, opção cada vez mais difícil, diante da escassez de bolsas para a área de direito, ou realizando doutorados interinstitucionais ou itinerantes, dentro do país. Isso porque, segundo cálculos da ABED; (Associação Brasileira de Ensino do Direito), do outro lado, mais na base da pirâmide da edu-cação jurídica no Brasil de hoje, está aparentemente consoli-dado um processo de aumento de possibilidades de acesso à Universidade por parte da população, processo esse que já há várias décadas teve início. Nesse sentido, continua sendo

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crescente o número de cursos de graduação, aumentam-se vagas em cursos já instituídos e mesmo novos centros uni-versitários e universidades despontam a todo momento.

O nível de crescimento dos cursos de pós-graduação, contudo, longe de acompanhar este ritmo, sequer tem feito frente à demanda e às expectativas dos egressos do ensino do terceiro grau, clientela em potencial para programas de especialização, mestrado ou doutorado. Evidentemente, pelo seu grau de aprofundamento e por suas exigências peculiares, os cursos de pós-graduação não podem oferecer o mesmo índice de crescimento em relação aos bacharelados. Mas essa e outras discrepâncias parecem exageradas no que concerne à área jurídica.

É sabido que investimento em educação é uma das vias mais eficientes para possibilitar a mobilidade social. No Brasil de hoje, entra na escola pública superior quem fez escola básica privada e vice-versa. Excluindo-se estratégias complicadas e de resultado duvidoso, na direção de “ações afirmativas” que reservariam quinhão de vagas especifi-camente para os economicamente menos favorecidos ou outros critérios, chega-se então a uma encruzilhada lógica e, enquanto tal, muito simples: só há duas maneiras, as quais não são excludentes, mas muito ao contrário conciliáveis, para enfrentar o problema.

Uma delas é melhorar a qualidade do ensino público fundamental, possibilitando aos mais pobres concorrência leal pelas melhores faculdades de direito. A outra, melhorar a qualidade da escola privada superior. Claro que sem deixar cair o nível da escola superior pública, patrimônio ímpar dentre países subdesenvolvidos como o nosso, asneira que o governo já vem há muito praticando, infelizmente. A primeira solução está realmente nas mãos do governo, é um problema social. A segunda tem como estratégia básica incrementar a

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pós-graduação em direito nas instituições privadas, nas quais investir na qualidade da infra-estrutura física (de informática, biblioteca, instalações etc.) é relativamente simples; seu grande problema é a qualificação docente.

Salta aos olhos a enorme desproporção quantitativa entre graduação e pós-graduação em direito, a qual não tem paralelo em qualquer das áreas do conhecimento em que se tem estruturado o sistema educacional brasileiro. Observe-se ainda, dentre as numerosas peculiaridades do curso e do campo profissional jurídico, que a pós-graduação não se dirige especialmente à formação de novos docentes, notando-se uma demanda diversificada também da parte de bacharéis sem especial interesse no magistério, mas com pretensões de titulação e aprofundamento para inserção e progresso em suas respectivas carreiras profissionais, demanda a que a pós-graduação lato sensu não tem conseguido responder em termos qualitativos. Que os juristas precisam constantemente atualizar-se parece ser um truísmo no mundo moderno. Os dados coletados e analisados pela CEJ, nas pesquisas levadas a efeito pela OAB, mostram que há uma grande demanda, também por parte de agentes jurídicos desvinculados de atividades acadêmicas, pelos cursos de pós-graduação, sejam cursos curtos de atualização, sejam especializações, mestrados ou doutorados. Todos os indicadores apontam na direção de um mercado de trabalho cada vez mais dirigido à prestação de serviços, ambiente do operador jurídico, mas sobretudo a serviços especializados. Para setores mais complexos, em suma, uma formação de quarto grau é primordial.

Tentem-se listar alguns entraves que encontra a especialização e inserção profissional do advogado no mo-mento:

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a) As dificuldades encontradas pelas instituições de ensino jurídico para qualificar seus docentes em nível de Mestrado e Doutorado;

b) Os índices efetivos insuficientes de titulação dos atuais professores, prejudicando a qualidade e a produtividade do ensino e da pesquisa em direito, posto ser a titulação uma condição prévia exigida pelas agências de fomento nacionais e internacionais, daí as pouquíssimas bolsas;

c) A necessidade de desenvolver uma política de capaci-tação para todo o Sistema de Educação das IES, sobretudo diante das exigências de titulação e produção científica co-locadas aos cursos de graduação em direito pelo Ministério da Educação;

d) A demanda no sentido de criar mecanismos de inte-gração entre a Universidade e a comunidade profissional, representada pelas diversas categorias de operadores jurídi-cos, visando aprimorar as práticas jurídicas forenses e não forenses;

e) As dificuldades encontradas para publicação da produção acadêmica e científica na área jurídica, pois há poucos veículos com controle de qualidade e sua longevi-dade é ainda menor. O catálogo Qualis da CAPES, além de problemas de informação sobre publicações estrangeiras, pode ter uma maior divulgação e transparência de critérios, tais como qualidade intrínseca dos trabalhos, curricula dos autores, vinculação a uma instituição de prestígio, longevi-dade, dentre outros.

Implantam-se assim novas relações entre o ensino su-perior e a sociedade, procurando fazer do professor também um pesquisador que atualiza o saber que transmite, pois uma instituição de ensino superior deve ser caracterizada, principalmente, pelo nível de seu corpo docente.

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Face à função da universidade, no sentido de responder aos desafios colocados pelas mudanças, o sistema de pós-graduação stricto sensu precisa ser colocado como maior es-timulador ao progresso do conhecimento jurídico. No entanto, em termos nacionais, apesar de algum apoio às instituições promotoras desses cursos, mediante as agências de fomento, a situação da pós-graduação, em especial a da área de direito, não tem se desenvolvido da melhor forma, com muita política e pouca sensibilidade para com as desigualdades regionais e as parcerias institucionais.

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CONSIDERAÇõES FILOSÓFICAS SOBRE A PROVA

José Arlindo de Aguiar Filho

REsumO

O artigo procura desenvolver aspectos filosóficos da concepção jurídica de prova no processo de conhecimento. Em detalhe, retoma-se a concepção metafísica subentendida de verdade como adequação e procura-se relacioná-la às melhores definições e princípios do direito processual. No desenvolvimento deste intercâmbio chegaremos à necessi-dade de superar a concepção correspondentista de verdade no âmbito filosófico e jurídico, e por fim apontaremos uma sugestão para ultrapassar este problema: uma noção mais pragmática da verdade. Conceito já presente em casos como a sociologia jurídica de Luhmann, exemplo que reposiciona a problemática da prova no processo de conhecimento em nova perspectiva e definição.

Palavras-chave: Verdade, Prova, Luhmann, Pragmatis-mo, Ceticismo.

1 Bacharel, Mestre e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Filosofia do Direito, Lógica e Argumentação Jurídica na Faculdade Maurício de Nassau.

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AbsTRAcT

This article seeks to develop a philosophical approach on legal process evidence liability. The legal procedures design always incorporates an adequatio metaphysics of truth. Here we try to relate it to procedural law’s best definitions and principles. In developing this connection we need to overcome the traditional truth concept, both in philosophical and legal understanding, and finally point out a suggestion to solve the problem: a more pragmatic truth notion. Concept already present in cases such as Luhmann’s law sociology, main example of the possibility for a new perspective and definition for the evidence problem concerning procedural law.

Key words: Truth. Proof. Luhmann. Pragmatism. Skep-ticism.

sumário: Introdução: investigar o mistério do óbvio. 1. Entre a prova e a verdade. 2. A verdade e os limites da comunicação. 2.1. Acerca da possibilidade de comunicar a certeza sobre algo. 2.2. A prova e o ceticismo. 2.3. O conhecimento sobre os próprios limites e o progresso da ciência. 2.4. Superação pelo pragmatismo. 3. Conclusão: a função da prova e sua verdade pragmática. (Referências).

1– INTRODUÇÃO: INVESTIGAR O MISTéRIO DO ÓBVIO

Um bom caminho para entender um gênio é confrontá-lo com outro. Dostoievski apresenta através de seu personagem Ivan nos “Irmãos Karamazov” a polêmica tese que “Se Deus

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não existe, tudo é permitido”. Antes do russo, um francês conhecido por seu ceticismo declarava que “Se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo.”.

Estaria o autor de Crime e Castigo complementando a afirmação de Voltaire? Ora se precisamos inventar Deus deve haver algum problema muito grave na possibilidade de sua inexistência. Precisamos inventar Deus, mesmo que não exista, porque sem Ele tudo seria permitido. Estaríamos condenados a nós mesmos como únicos juízes e guias da nossa liberdade.

Mas que Deus inventado é este? Mais que uma moderna e duvidosa teologia, o pensamento de Voltaire pode suscitar questionamentos profundos sobre os limites do homem e, por que não, do direito. O direito hoje compartilha, em sua fundamentação cada vez mais atacada, a mesma necessidade de invenção, a mesma natureza pragmática, com a idéia de Deus do iluminismo.

Todos os dias, nós lidamos em nossos afazeres, com práticas socialmente aceitas. Compartilhamos de instru-mentos culturais tão enraizados que passam sorrateiramente despercebidos como obviedades, manifestações indubitáveis da natureza que logo revelam um abismo de perplexidade ao mais breve questionamento. É comum a pergunta “Você acredita em Deus?”, sem surpresas também a unanimidade da resposta. Dada tão fácil percepção estranho é o fato de não encontrarmos neste mar de unanimidades uma definição razoável do que se deveria entender por Deus. Qualquer tentativa de definição que ultrapasse duas linhas irá excluir a unanimidade e entraremos num pântano de divergências pouco visitado.

Não apenas Deus, mas uma série de conceitos absolutamente fundamentais de nossa cultura permanece nesta situação. Cada um

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de nós possui uma compreensão do que é a felicidade, a verdade, a justiça, a beleza e do que significa existir. Até o momento em que somos perguntados sobre estas mesmas certezas! Neste mo-mento somos lançados na perplexidade, o que era óbvio se torna obscuro. A camada protetora que a cultura humana desenvolveu para velar estes abismos sobre os quais vivemos nossas vidas é muito mais fina do que gostaríamos de admitir.

Apesar disto não confundamos fragilidade com ineficiên-cia. Nossos instrumentos para perceber o mundo podem estar a poucos passos da obscuridade da qual nos retiraram, mas são extremamente bem sucedidos em nos manter fora dela. A unanimidade do óbvio é sua manifestação mais concreta.

De mesmo padrão, mutatis mutandis, é formado o direito. Seus princípios e bases nos sustentam sobre obscuridades com o mesmo frágil, mas eficiente, suporte do óbvio. Suporte construído em nossa cultura através de séculos de experiência jurídica pelos mais eminentes teóricos da justiça. Um exem-plo pode esclarecer a dimensão do problema: a questão da prova em direito processual.

Pergunto: Que significa provar alguma coisa? Mais além, é possível provar alguma coisa?

2 – ENTRE A PROVA E A VERDADE

A grande maioria da população compreende o que sig-nifica provar alguma coisa. E mesmo que não expressem com grande uniformidade este entendimento, muito intuitivo, sua formulação deve se aproximar da definição usual de prova. Quando intimamos alguém a provar algo temos em mente que esta pessoa precisa demonstrar a verdade sobre algo. Exemplos deste entendimento estão dispersos nos di-

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cionários e manuais jurídicos. (THEODORO, 2007, p. 472; MARQUES, 2003, p. 185), ainda seguindo nosso afamado dicionário: “aquilo que atesta a veracidade ou autenticidade de uma coisa.” (HOLANDA, 1997, p. 1408).

Esta concepção não foge ao esquema referido anterior-mente. Também esta compreensão do homem médio, fun-cional, óbvia e aparentemente irretocável, esconde, e assim diminui, a complexa operação que se realiza na atividade de “provar alguma coisa”.

Primeira observação a ser feita: A prova tem um campo de operação próprio, um objeto específico sobre o qual pode atuar. Provar sempre se direciona para uma alegação. Não se provam fatos, provam-se alegações. Existem alegações verdadeiras e falsas, já os fatos são todos verdadeiros, não há fato falso. Tudo que acontece, todo fato corresponde à verdade que ele mesmo é. Não podemos provar coisas. Estas existem ou não, o conhecimento desta existência é que pode ser verdadeiro ou falso. E esta veracidade ou falsidade é que pode ser provada.

Afirmo que a bola é vermelha. Provo que a bola é de tal cor apresentando a bola. Completo então, provado está que a bola é vermelha. As sensações visuais que indicam ao homem que a bola é vermelha são uma forma de comunicação. O mundo se comunica, manifesta-se ao homem de inúmeras formas. O resultado desta comunicação é o conhecimento. Quando vejo a bola se forma uma certeza sobre sua cor, esta certeza é o resultado que caracteriza a prova. Sem obter uma certeza, a prova não prova. Esta certeza se refere à bola de modo indireto. Eu, que vejo a bola, tenho certeza de que é vermelha. O meu conhecimento sobre a bola, sobre a cor da bola, foi provado através da observação. A comunicação sobre alguma característica de um ente foi realizada e causou um grau de certeza. Prova.

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O próprio ente sofreu alguma modificação? Não. O ente antes e depois de ser provado continua o mesmo, indiferente e idêntico a si mesmo. A atividade de provar não o afeta, pois a prova não diz respeito a ele diretamente. Esta atividade afeta o convencimento subjetivo das pessoas, não os objetos acerca dos quais este mesmo convencimento se refere. Aquilo que provo é a alegação, a afirmação, o conhecimento. Só alegação, conhecimento ou informação pode ser verdadeiro ou falso. Coisas, objetos, são alheios à certeza ou verdade. Coisas existem e se manifestam, comunicam-se, com o homem. Daí para frente nós trabalhamos, certeza e verdade pertencem ao homem não ao mundo. Encontramos a primeira perplexidade sobre a qual se sustentam as provas e fundamentações em geral.

O núcleo deste detalhe está na natureza de nossa compreen-são da verdade. Verdadeiro e falso são qualidades do discurso em nossa compreensão tradicional. Verdade é a correspondência entre a idéia e a coisa, é a adequação. “adequatio intellectus et rei”. A antiga idéia medieval traduzida em Tomás de Aquino (1996, p.71) “Com efeito, o conceito de verdade consiste na concordância entre a coisa e o conhecimento”, tem origem no pensamento grego: “Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade” (ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 ss.).

3 – A VERDADE E OS LIMITES DA COMUNICAÇÃO

3.1. Acerca da possibilidade de comunicar a certeza sobre algo

Conformidade entre o dito e o manifesto, entre o que se pensa e o que é. Provar então significa comunicar para outrem

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a evidência da adequação entre sua alegação e o fato. Há sérios questionamentos sobre a capacidade de esta definição de verdade mostrar-se coerente com a vida humana e sua transcendência fora de um modelo metafísico determinado e cientificista, aparentemente superado como sistema filosófico. A pós-modernidade parece ser a testemunha atônita desta incapacidade com seus pensadores desconstrutivistas. Nietzsche, Kierkegaard, Heidegger, Deleuze e Derrida são seus mais gritantes exemplos. Mesmo sem entrar nesta discussão que sem dúvida tornaria inviável a compreensão de qualquer fundamentação, judicial ou não, sobre termos de verdade do discurso, aceitemos a adequatio por ser o parâmetro usual de nossa cultura.

Segundo ponto que deve ser explorado é corolário do primeiro. Se toda prova opera sobre a comunicação de uma evidência de alegações, a própria possibilidade de comu-nicação, este fenômeno complexo ao extremo, está sendo afirmada e precisa ser detalhada. A transmissão de uma pessoa para outra de um conhecimento é um fato que traz dificuldades, e maiores ainda trará a transmissão de uma certeza, de uma evidência.

A capacidade do homem em compreender o mundo já implica em problemas, a comunicação que o mundo parece ter com o sujeito em sua manifestação é característica da transcendência do homem. Esta transcendência desafia a dicotomia sujeito objeto numa afronta indireta ao princípio da identidade, base de nossa lógica formal. Ainda mais, num segundo nível, esta transcendência é comunicada ao outro, o homem transmite para seu semelhante o mundo que se manifesta para ele. Somos atingidos pelo mundo de um modo tal que podemos fazer esta manifestação atingir outras pessoas. Guardamos o mundo e sua manifestação em

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nós e podemos ser esta manifestação para outros, o mundo pode literalmente falar através de nós. Esta fala secundária do mundo através do homem para outro homem é a lingua-gem, é o discurso.

Nesta fala refletimos a manifestação dos fenômenos objetivos. Digo a alguém que a bola é vermelha, na verdade digo a bola se manifesta para mim como vermelha. O outro compreende o que é bola segundo aquilo que o mundo mani-festa para ele como bola e o mesmo para vermelho ou outros conceitos. Provar aqui é uma tentativa de igualar manifesta-ções singulares, absolutamente fora do âmbito de operação das certezas. A noção subjetiva do mundo formada em sua manifestação não se compartilha de modo uniforme, senão seríamos todos indivíduos idênticos. Somos em nossa comu-nicação aquilo que o mundo comunica através de nós, e esta mensagem, que é diversa, é misteriosamente compartilhada em muitos aspectos. Este é o indizível milagre da linguagem, também desafiador do referido princípio da identidade, mas nunca idêntica em suas manifestações.

O que entendo por bola e por vermelho é diverso do que meu interlocutor entende, e incrivelmente esta diferença não interfere na possibilidade de comunicar. Acrescente-se: parece que comunicar é exatamente a tarefa de igualar coisas diferentes num conjunto de signos, aceitos, mas não uni-formes que permitem ao homem ver através dos olhos uns dos outros aquilo que o mundo manifesta para cada um. Como provar que uma bola é vermelha se não há um vermelho idêntico para todos, se não compartilhamos de uma idéia de bola semelhante? Estarei comunicando minha certeza sobre um fenômeno que é percebido pelos outros de modo diverso, mas a certeza provém exatamente do modo como o fenômeno se manifesta, daí não poder ser comunicado.

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3.2. A prova e o ceticismo

A Verdade e linguagem são pré-requisitos para qualquer compreensão de uma prova. Percebemos pelo brevemente exposto que nem um destes dois conceitos se apresenta do modo como tradicionalmente são aplicados no processo de produção de evidência judicial. Aqui mais um milagre, mesmo sem estar de modo algum fundamen-tada a possibilidade de transmissão de evidências entre duas pessoas, reside nesta premissa a base do processo de conhecimento.

Sem a prova não há possibilidade de jurisdição. A prova é elemento indispensável no ordenamento jurídico na forma como este se desenvolveu em nossa sociedade. A prova, no entanto, como toda instrumentalidade cultural, é uma ficção insustentável frente ao questionamento metódico, mas ao mesmo tempo eficiente e imprescindível meio de realização de sua função: manter a ilusão da possibilidade do fundamento.

Avizinha-se o secular fantasma do ceticismo. Górgias de Leontino, cético que viveu na Sicília em finais do século quinto a.C. cujo pensamento levou Platão a escrever um diálogo inteiro a ele dedicado (PLATãO, 1989, p. 20), declarou que: (I) nada existe; (II) ainda que algo existisse não se poderia conhecer; e, (III) ainda que se pudesse conhecer algo, não se poderia comunicar esse algo a out-rem. É impossível comunicar ao outro uma evidência da verdade, se o fosse ainda assim seria impossível ter alguma certeza quanto à verdade de seu próprio conhecimento, e por fim, mesmo que pudéssemos conhecer a verdade e comunicá-la, ela teria que existir, o que não é de modo algum uma evidência.

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3.3. O conhecimento sobre os próprios limites e o progresso da ciência

Aqui e acolá a realidade nos dá um lembrete de nossos limites e aquilo que tínhamos como provado e seguro se mostra obscuro e equivocado. Teorias científicas com séculos de idade se revelaram mal fundamentadas, que dirá nossas sentenças que, apesar dos alguns anos que levam para serem expedidas, são rápidas olhadelas nos fatos comparadas com a observação científica da natureza.

A história do conhecimento humano parece levar esta lição de humildade em sua trajetória. No início ousavam os antigos dizer quem era Deus e qual a sua vontade. Voltados os olhos para a natureza queríamos conhecer as essências ideais, a substância dos anjos, a verdade solipsista do eu, conhecer a razão e conhecer a experiência.

Sabíamos cada vez mais quem é o homem e qual o seu mundo. Incrivelmente, e paradoxalmente também, cada vez sabíamos mais como é impossível conhecer estes entes. Que melhor definição para os tempos atuais que a de uma crise de fundamentos? O pensamento con-temporâneo parece estar acordando, e sempre acordamos despreparados, para a ficção que sustentamos durante a modernidade de um fundamento racional para o conhe-cimento. Precisamos de duas guerras mundiais e uma revolução socialista para nos acordar do sonho letárgico do humanismo liberal em que viemos embalados desde a França revolucionária.

Aponto alguns culpados em retirar o véu da realidade em que nos encontramos hoje:

Medievais místicos proibiram o conhecimento racional sobre o divino, supra-racional (ECKHART, 2006; SCHLAF-

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FER, 1996). Deus estava afastado de nosso alcance, e compreendê-lo jamais configuraria uma ciência.

Kant vedou a metafísica, conhecimento do ser, à razão pura (KANT, 1997). Estamos tolhidos de nossos mais caros objetos de articulação com o mundo: Deus, a alma imortal e o mundo são idéias transcendentais e não objetos de nossa experiência. Ciência se tornou, pelas mãos dos neokantianos, um modelo de conhecimento exato fundado em parâmetros lógico-matemáticos.

Freud mostrou que o eu que conhecemos é uma ponta consciente num iceberg de inconsciente. Nem mesmo nossa própria mente, da qual estamos sempre próximos, pode ser captada pela razão científica.

Heisenberg comparou a física a um jogo de dados, no es-curo. Os próprios fenômenos naturais não mais se descrevem como numa imagem espelhada da natureza. Sua descrição da incapacidade do modelo de realidade utilizado pela física antes da mecânica quântica:

“Nesses campos da física atômica boa parte da antiga física intuitiva fica por certo perdida. Não apenas a aplica-bilidade dos conceitos e leis da mencionada física, mas toda representação da realidade que serviu de base às ciências naturais exatas até a época atual da física atômica.” (HEISEN-BERG, 1990, p. 18)

Ou “As leis da natureza formuladas em termos matemáticos

não mais determinam os próprios fenômenos, mas a possi-bilidade de ocorrência, a probabilidade de que algo ocorrerá.” (HEISENBERG, 1990, p. 16)

Em recente estudo sobre a completude e consistência de sistemas aritméticos, conforme narra Nagel (2003), Kurt Göedel abalou as certezas em nosso último reduto, a matemática.

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Acompanhando o espírito da época, o direito, com o positivismo jurídico, vem negar qualquer chance de funda-mentação racional de um direito natural. Testemunha neste sentido o esvaziamento dos conceitos de justiça e identifica-ção do Estado com o Direito. (KELSEN, 2003, p. 140).

O estranho destas considerações é que quanto mais limitado percebemos que é nosso saber maior o acúmulo e desenvolvimento de instrumentos que pragmaticamente re-solvem nossas necessidades e questões em relação às nossas limitações. A falta de fundamento mais que um problema se mostra uma fonte de inovação e superação para o homem. Neste ciclo de crises e superações estará o progresso da ciên-cia, ou talvez algo mais profundo: uma marcha constante da própria humanidade. Mas em que direção? O eterno retorno de que os filósofos tanto falam, quem sabe.

Kant nos deu a razão prática, os místicos o salto da fé, Freud a psicanálise, Heisenberg a probabilidade, o positivis-mo a dogmática jurídica.

A funcionalidade dos princípios é sua única justificativa, não são verdades descobertas. A base do direito está em respostas pragmáticas para a percepção contemporânea da impossibilidade de fundamentação do direito.

4 – CONCLUSÃO: A FUNÇÃO DA PROVA E SUA VERDADE PRAGMÁTICA

Esta é a riqueza e contribuição do jus positivismo e seus sucedâneos, como o realismo jurídico, para nossa era de crise nos fundamentos: a humildade do pragmatismo! Nada se ganha em termos de legitimidade afirmando ser o direito uma ciência. Hoje também as ciências não mais podem se

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dizer “naturais”, não mais temos reflexos exatos de um mundo perfeitamente acessível às teorias da ciência. O direi-to não é ciência natural e por isso pode ser positivo, posto, funcional. Percebamos o pragmatismo com que o realismo jurídico de Alf Ross se coloca na tentativa de suprir a atestada insuficiência de fundamentação do direito evidenciada pelo positivismo:

“Podemos comparar essas normas positivistas a cristais que se depositaram numa solução saturada que se conservam graças a essa solução, mas que se destruiriam se fossem co-locadas num líquido diferente; ou podemos compará-las a plantas que morrem quando são arrancadas do solo nutriente no qual cresceram. As normas jurídicas, tal como toda outra manifestação objetiva da cultura são incompreensíveis se as isolarmos do meio cultural que lhe deu origem. O direito está unido à linguagem como veículo de transmissão de significado, e o significado atribuído aos termos jurídicos é condicionado de mil maneiras por tácitas pressuposições sob forma de credos e preconceitos, aspirações, padrões e valorações, que existem na tradição cultural que circunda igualmente o legislador e o juiz.” (ROSS, 2003, p. 126)

Decisivo neste ponto do amadurecimento do direito a contribuição de Luhmann: “Aquilo que a verdade realiza no convívio social é a transmissão de reduzida complexidade.” (LUHMANN, 1980 p. 25). Verdade é uma função de di-minuição na complexidade de conceitos na sociedade. Este é um razoável conceito para a verdade em nossos tempos de pragmatismo. Ele pode ser aplicado ao instituto da prova e teremos uma definição mais apropriada ao momento históri-co: Provas são os instrumentos que simplificam a aceitação de uma alegação. Nada mais.

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Como já estava em Ockham (GILSON, 1998, p. 798) quanto mais humilde a versão, mais próxima ela está da verdade. Sejamos homens, não deuses, este parece um bom caminho para nossa humilde verdade. Parodiando os grandes, se não existe o Direito, tudo é permitido? Tudo permitido. Este é um bom (e pragmático) motivo para, caso não haja Direito, inventar-mos um.

5 – REFERÊNCIAS

AQUINO, São Tomás de. Questões discutidas sobre a verdade. Coleção Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1996.

ECKHART, Mestre. sermões Alemães. Petrópolis: Vozes, 2006.

GILSON, Etiene. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

HEISENBERG, Werner. Problemas da Física Mod-erna. São Paulo: Perspectiva, 1990.

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1997.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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LUHMANN, Niklas. A Legitimação pelo Procedi-mento. Brasília: editora Universidade de Brasília, 1980.

MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Proces-sual civil. Campinas: Millennium, 2003.

NAGEL, Ernest. A Prova de Gödel. São Paulo: Per-spectiva, 2003.

PLATãO. Górgias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003.

SCHLAFFER, Johannes. O Peregrino Querubínico. São Paulo: Loyola, 1996.

THEODORO Júnior, Humberto. Curso de Direito Pro-cessual civil. 47.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

WAMBIER, Luis Rodrigues. Curso Avançado de Pro-cesso civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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O LEGADO GREGO NAs mODERNAs TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Katsuzo Koike

REsumO

O principal objetivo deste trabalho é apresentar uma análise sobre os possíveis vínculos entre o antigo pensamento helênico e os conceitos centrais tratados pelas modernas teorias da argumentação jurídica, no intuito de distinguir e reconhecer alguns elementos teórico-filosóficos legados pela tradição clássica grega ao estudo do direito. Nesse sentido, são estudados os seguintes autores da moderna argumentação jurídica: Luis Recaséns Siches, Theodor Viehweg, Chaim Perelman e Robert Alexy.

AbsTRAcT

The aim of this study is to analyse the possible links between the early Greek thought and the main concepts

1 Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, Professor da Faculdade Integrada do Recife e Professor da Faculdade Maurício de Nassau

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treated by the modern theories of legal argumentation, and to consider and recognize the classical Greek tradition as a theoretical legacy to the study of law. In this sense the text deals with some of the modern authors of legal argumenta-tion, like Luis Recasens Siches, Theodor Viehweg, Chaim Perelman and Robert Alexy.

sumário: Introdução. 1. A filosofia e o legado grego. 2. Os gregos e a argumentação geral e jurídica. 3. Luis Recaséns Siches. 4. Theodor Viehweg. 5. Chaim Perelman. 6. Robert Alexy. 7. Conclusão.

INTRODUÇÃO

A linguagem argumentativa não pertence nem é exclusivi-dade do direito, mas mantém laços estreitos com os grandes temas sociais, éticos, políticos, filosóficos e jurídicos que afetam de algum modo os problemas da existência humana. E não por acaso, o estudo sobre a argumentação jurídica nos remete ao antigo mundo grego, quando se demonstrou, pela primeira vez no ocidente, o especial interesse pelo entendi-mento e aprimoramento das técnicas de argumentação, de raciocínio e expressão; na verdade um interesse em dominar cada vez mais o que os gregos chamavam logos – o verbo.

A teoria da argumentação jurídica é um campo de estudo relativamente recente nos meios acadêmicos do mundo oci-dental e mais precisamente do Brasil. Surgiu no Pós-Segunda Guerra pela preocupação de alguns filósofos do direito acerca de questões pragmático-linguísticas decorrentes da atividade judicial, principalmente daquelas referentes às justificativas levantadas pelos juristas nos contextos interpretativos e

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decisórios do direito. Essa abordagem teórica veio romper com uma postura dominante de forte tendência formal-posi-tivista do saber jurídico, firmando um caminho realmente fecundo para a promoção de uma concepção humanamente crítica, por parte dos operadores do direito, acerca de seu saber e papel na sociedade.

Por tudo isso, o estudo atual do direito não pode pres-cindir nem deve ignorar os resultados teóricos das modernas teorias da argumentação jurídica. Que se fale em racionali-dade jurídica, dogmática de decisão, neoconstitucionalismo ou no futuro do positivismo jurídico e da hermenêutica: tudo parece convergir ao paradigma argumentativo, ao espaço dialético dos discursos judiciais, bem como aos raciocínios utilizados pelos juristas em sua atividade. Seguramente, a filosofia do direito encontra-se atualmente diante de questões que precisam de aprofundamento reflexivo, questões que se não são totalmente “novas”, pelo menos têm servido para aquecer o debate filosófico em nossos dias.

1 – A FILOSOFIA E O LEGADO GREGO

Voltar o olhar sobre os velhos gregos significa voltar-se sobre a própria existência do pensamento filosófico ociden-tal, sobre a matriz européia da tradição crítica do saber. E seria injusto subestimar a força renovadora que emana das antigas reflexões, que quando dispostas diante de questões atuais, nem parecem tão antigas assim. Não errou Ortega y Gasset (1989, p. 179) quando afirmou que “a filosofia inteira é apenas uma imensa tradição”.

É reconhecido que o legado filosófico grego na Eu-ropa seguiu por caminhos tortuosos, da Antiguidade até

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hoje; acumulou dívidas importantes para com os latinos, bizantinos, escolásticos, humanistas e mesmo com o mundo árabe. O problema do legado grego no pensamento atual é genético, e não uma mera coincidência, nem um vestígio da produção intelectual de um povo cujo saber ainda des-perta interesse. Até hoje a cultura grega continua fecunda e capaz de enriquecer o debate filosófico (DE LA TORRE, 1962, p. 10). Pelo menos é o que ela tem feito nos últimos dois milênios.

Para o helenista da Universidade de Cambridge Mo-ses Finley, morto em 1986, um “legado” não se restringe à mera cópia, mas é uma forma de difusão de idéias e ins-tituições, mesmo sem negar que isso também im-plique em seleção, rejeição, adaptação ou modificação (FINLEY, 1998, p. 30). Já o historiador italiano Arnaldo Momigliano (1984, p. 09) prefere não falar em legado quando se trata de qualquer feito da cultura grega, pois segundo ele, desde que os humanistas dos séculos XIV e XV retomaram muitos dos modelos antigos, a questão não deveria ser tomada no sentido de legado ou herança, mas de “eleição consciente”. De modo que, as formas de presença, utilização e alusão de antigos conceitos filosó-ficos dentro do pensamento jurídico atual demonstram claramente um interesse não simplesmente “histórico”, já que não se limitam à tentativa de reconstituir originari-amente qualquer pensamento antigo. Em vez disso, existiu e ainda existe um interesse teórico de buscar no passado algumas respostas, alguns instrumentos conceituais váli-dos que ajudem a amenizar as inquietações e necessidades das investigações modernas.

O conhecimento da antiga filosofia grega firmou-se como condição necessária a uma sólida formação

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humanística, desde o período romano e durante toda a Idade Média e Moderna. Entre os contemporâneos, foi significativo o interesse sobre a época clássica por parte de autores como Hegel, Nietzsche e Heidegger, para não falar em outros nomes como Rodolfo Mondolfo e Werner Jaeger, que difundiram a concepção de que os gregos foram os verdadeiros mestres do saber ocidental em filosofia, ciência, educação, ética ou política. Tam-pouco os grandes juristas do Novo e do Velho Mundo puderam ignorar os antigos conceitos gregos, germens dos mais importantes problemas filosóficos do ocidente, por exemplo, o da idéia de justiça, que tem uma longa história, ou o do conhecimento da verdade, questão cen-tral de todo saber crítico.

Para o âmbito deste trabalho, relacionamos em primeiro lugar os três aspectos gerais do legado filosófico dos anti-gos gregos, aspectos que extrapolam o campo da filosofia jurídica, já que configuram as bases teóricas de todo o pen-samento ocidental:

A crença na certeza do pensamento racional: a razão é uma faculdade segura e correta, capaz de alcançar a verdade; nas ciências essa crença foi altamente produtiva, mas ao monopolizar o saber, tornou-se prejudicial em muitos aspectos. A certeza na razão surge nos racionalis-mos jurídicos modernos de maneira muito consistente e influente. (PERELMAN, 1996, p. 361-558; TAMAYO Y SALMORáN, 2007, p. 21-88).

O reconhecimento da diferença entre ser e parecer, entre essência e aparência: as idéias diferem das coisas, e as ilusões estão longe do verdadeiro ser; essa visão se conecta à antiga oposição entre Heráclito e Parmênides diante do imutável /mutável, o que levou à discussão sobre

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a relação entre percepção sensível e realidade, nos sofistas, em Platão e Aristóteles. Inaugurou-se na história ocidental o debate sobre o conhecimento e a ontologia (POPPER; Petersen, 1998).

A identificação das relações entre teoria e prática: o conhecimento empírico ou sensível difere, mas mantém ligação estreita, com o conhecimento intelectual ou especu-lativo (SNELL, 2001, p. 331; MONDOLFO, 1968, p. 453). A vida e o pensar práticos, para um grego do século IV a.C., por exemplo, não se limitaria à técnica ou à produção, mas envolveria o mundo político, ético e jurídico (MAS TORRES, 1995).

2 – OS GREGOS E A ARGUMENTAÇÃO GERAL E JURÍDICA

O legado espiritual grego em termos de argumentação surgiu entre os séculos VI e V a.C., dentro de um contexto político de participação cidadã, de razoável liberdade de expressão de idéias, de democratização político-jurídica, de debates éticos e filosóficos, enfim, em um ambiente que favoreceu a prática da retórica, da dialética, da filosofia e da própria lógica enquanto expressões de racionalidade. De modo que nossa identificação com os antigos gregos repre-senta nada menos que o reconhecimento de uma herança histórica, o interesse confesso pelo conteúdo tradicional do humanismo clássico, como um thesaurus de saberes e de modos de expressão que vem sendo preservado até hoje.

Após o predomínio das doutrinas positivistas sobre o conhecimento jurídico no ocidente, cujo caráter formalista e normativista de interpretação e aplicação do direito marcou

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toda uma geração de juristas, inclusive no Brasil, surge no século XX, em muitos países, um tipo de reação intelectual, em alguns autores fundada sobre ares humanistas, que tentou abrir o direito ao debate ético e axiológico. Expressivo em todo esse movimento foi o crescimento da valorização do problema humano, em suas questões políticas e éticas, que acabaria por tornar insatisfatórias as formalidades do posi-tivismo jurídico (FARALLI, 2006, p. 11). Foi dado destaque cada vez maior a outras formas de racionalidade que não a dos raciocínios puros, o que alimentou o crescimento das abordagens pragmáticas sobre os velhos ares analíticos da dogmática normativista do direito. Enrico Berti (1997, p. 229) fala em termos de uma retomada ou renascimento no curso dos anos 60 e 70 da antiga filosofia prática, ou seja, da práxis.

Podemos citar entre os autores que mais se destacaram nesse contexto os professores Luis Recaséns Siches (1903-1977), Theodor Viehweg (1907-1988), Chaim Perelman (1912-1984) e o alemão Robert Alexy, ainda em atividade. Outros nomes de expressão poderiam ser lembrados e que são ativos hoje em dia, como o inglês Stephen Toulmin, o filandês Aulis Aarnio, o escocês Neil MacCormick e o profes-sor espanhol da Universidade de Alicante Manuel Atienza. Cada um deles contribuiu a seu modo para o desenvolvimento dos estudos jurídicos, e que apesar de manterem algumas diferenças teóricas entre si, fazem parte daquela tendência filosófica do Pós-Segunda Guerra que tratou de realizar uma revisão do paradigma positivista do direito, ao mesmo tempo fundando uma abordagem na qual fosse repensado o papel da razão e dos valores no discurso jurídico de interpretação e aplicação do direito. É oportuno lembrar que esses autores em geral, não trabalharam nem criaram suas teorias isola-

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damente, já que a sua relativa contemporaneidade permitiu e ainda permite um trabalho consciente e ao mesmo tempo recíproco no campo da argumentação jurídica3.

Em termos da argumentação, vale à pena lembrar que também surge da experiência clássica grega um conjunto de práticas e preceitos que se tornaram orientações fundadoras do pensamento discursivo-argumentativo do ocidente (LLOYD, 1993, p. 59 a 125 e 226 a 267 e 1992, p. 421-440):

Garantia de espaço livre e igualitário de comunicação e expressão dentro de uma ordem política: a polis torna-se o locus legítimo do debate, sendo criada uma autoridade cidadã baseada no conhecimento e no papel cívico de cada um, diferentemente do que ocorria dentro dos regimes arbi-trários e divinamente instituídos do oriente; de certa forma, delineou-se uma democratização da palavra.

O ser humano, em sua condição ético-política, torna-se o centro do debate filosófico; os atores pioneiros dessa tradição foram os sofistas, já no século V a.C. (LLANOS, 1969). Estamos falando do início do humanismo europeu

3 Já em um artigo de 1963, Luis Recaséns Siches fez uma avaliação da obra Tópica e Jurisprudência de Viehweg (Cf. Dianoia: Anuário de Filosofia, México, 1963; pp.291-311) bem como tratou da Nova Retórica de Perelman em outro artigo de 1974 na mesma revista (“La Nueva Retórica”, Dianoia, 1974; pp. 202-224) e escreveu a introdução da tradução espanhola do livro De la Justice (pela UNAM, 1964), de Perelman, cujo original em francês é de 1945. Theodor Viehweg, por sua vez, no prefácio da 2ª edição de sua Tópica, de 1963, reconhece a importância da idéia de razoável de Siches e da Nova Retórica de Perelman; Chaim Perelman em sua Nova Retórica, de 1958, utilizou elementos sobre o razoável e a tópica, mas apenas cita Viehweg na bibliografia de seu livro. Robert Alexy em seu livro Teoria da Argumentação Jurídica, cuja primeira edição é de 1978, faz uma revisão do pensamento de Toulmin, Viehweg e Perelman. Na atualidade, Manuel Atienza, catedrático de filosofia do Direito na Espanha, investigador das teorias da argumentação no direito (Cf. Las Razones del Derecho, Madri, 1991), realizou importantes entrevistas com estudiosos de argumentação jurídica para a revista espanhola Doxa de filosofia, da qual é presidente: em 1993 entrevistou Toulmin; em 1998, Aarnio; em 1999, Peczenik; em 2001 Robert Alexy, entre outros.

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que será o cerne de vários outros tipos de “humanismo” em épocas posteriores, incluindo no direito.

Importância do logos para a formação do cidadão e para sua relação com o poder, tanto em termos da vida prática quanto pelo interesse em estudar e aperfeiçoar tudo o que dissesse respeito à comunicação e linguagem; tal importân-cia é visível pelo valor social dado pelos gregos à retórica, gramática, ortoépia, dialética e ao discurso em geral. (KER-FERD, 2003, p. 119-142).

Predomínio da palavra, do diálogo e não da violência ou ameaça na resolução de controvérsias. A argumentação e a retórica surgem nesse processo como expressões saudáveis de pessoas livres e conscientes de seus direitos e deveres cívicos; lembremo-nos de Platão quando este afirma que o debate filosófico é “uma atividade própria de uma sociedade de educação livre” (Leis, VII, 344b).

Uso da argumentação como um instrumento dialético de raciocínio, mesmo antes da criação da lógica formal; o cultivo da dialética como método para o tratamento de questões conflituosas é o marco desse fenômeno; a prática judicial grega, dentro do sistema políade, demonstra bem a importância da dialética nesse contexto;

Necessidade de fornecer razões para a política ou o direito, para a ética ou a justiça, da mesma forma que para os fenôme-nos naturais; esse foi outro aspecto da racionalidade grega, a qual nunca se limitou ao rigor da lógica pura, mas que buscou sempre fornecer sentido aos fenômenos, inclusive os humanos (BOAS, 1961, p. 56-128; VAZ, 2000, p. 36-134)

Portanto, a razão grega não se resumia ao plano formal, mas esteve sempre implicada em um modo de vida, de partici-pação política e eticamente fundamentada, onde a filosofia, a retórica e a dialética foram os expoentes máximos de uma

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tradição de pensamento. O helenista Jean-Pierre Vernant (2001, p. 41) chega a concluir que a racionalidade grega foi de fato filha da cidade. Em um pequeno texto chamado Les origines de la pensée grecque, de 1962, ele resumiu a questão afirmando que “é no plano político que a razão na Grécia primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formou-se” (VERNANT, 1986, p. 94).

A partir deste ponto, será possível tirar algumas con-clusões sobre o legado antigo nas atuais teorias da argumenta-ção jurídica, pelo estudo de cada sistema teórico dos autores em questão, pelo interesse de cada um diante do saber grego, bem como pela análise de suas fontes intelectuais e dos prin-cipais conceitos por eles utilizados em sua obra cujo sentido possa ser vinculado às raízes gregas de pensamento.

3 – LUIS RECASéNS SICHES

O primeiro teórico em pauta é o professor espanhol Luis Recaséns Siches, advogado, sociólogo e jusfilósofo, pouco conhecido no Brasil, mas muito respeitado na literatura jurídica latino-americana. É um autor de vasta obra, embora pouco dela tenha sido traduzida ao português. Nasceu em 1903 na Guatemala, de pais espanhóis, mas seguiu com dois anos de idade para a Espanha, onde recebeu uma formação jurídica primorosa. Nos anos 20 o jovem Siches já presenciara aulas de mestres do quilate de José Ortega y Gasset em Madrid, Giorgio del Vecchio em Roma, Rudolf Stammler em Berlin e Hans Kelsen em Viena. Nos anos 30, esteve entre os intelec-tuais que foram exilados da Espanha durante a Guerra Civil. Em 1937 foi recebido pelo governo mexicano para ensinar filosofia na Universidad Nacional Autónoma de México

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(UNAM), sendo esse acontecimento considerado um grande marco para o pensamento jurídico latino-americano e motivo de orgulho para os mexicanos. Siches morreu no México em julho de 1977.

O esforço desse autor na filosofia do direito consistiu em propor uma nova crítica da razão, como ele próprio afirmou, que não vertesse nem por uma razão puramente teorética, nem simplesmente por uma razão prática, mas por uma razão dos problemas humanos, a qual chamou-se “logos do razoável”, uma racionalidade acima de tudo deliberativa ou argumentativa (SIChES, 1976, p. 334). Ele fala em um “fracasso da lógica tradicional” no âmbito da interpretação do direito, pelos “estragos teóricos e práticos” que ela produz, lembran-do que tais prejuízos são decor-rentes da postura de não se considerar os valores sociais, a realidade da vida histórica e nem a conexão entre meios e fins dentro da atividade jurídica (Siches, 1956, p. 209). O autor voltava-se contra o predomínio do pensamento formalista no direito ocidental e a favor de um dado prag-matismo baseado na experiência vital e histórica (SIChES, 1976, p. 349). Desse modo, a interpretação jurídica deveria procurar raciocínios que não prescindissem do lado prático das questões judiciais, pois o direito lida com a vida humana real, com seus conflitos, valores e problemas. Para Siches, o “logos del razonable”, como ele próprio chamou, é um tipo de tratamento de certas questões que não significa um abandono da lógica, mas que considera uma forma difer-ente de racionalidade, já que usa de critérios axiológicos e sociais, em que o importante não é a aplicação lógica do direito, nem o simples resultado (os fins) obtidos. O ponto marcante dessa concepção de racionalidade tem suas raízes no contexto da sociedade grega, quando os velhos mestres

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sofistas levaram a reflexão filosófica para os assuntos huma-nos, éticos e políticos (SIChES 1971, p. 336).

Inspirado no humanismo de Ortega y Gasset, Siches encontrou nos gregos alguns elementos fundamentais para a construção de seu pensamento. Reconheceu neles a responsabilidade pela introdução do gérmen da tradição racionalista formal na filosofia, sobretudo pelas autorias de Platão, Aristóteles e dos estóicos (idem, p.145), muito embora, tenha encontrado na própria filosofia helena alguns pontos cruciais para fomentar uma crítica ao for-malismo lógico cristalizado pelos modernos. O logos é um termo grego, e seu conceito é muito amplo. Mantém em sua essência o uso correto de pensar e falar, calcular e agir bem. Indica ordem e equilíbrio, clareza e bom juízo. Em Aristóteles, Siches (1971, p. 343) considerou duas vertentes da razão: a silogístico-matemática, e uma outra não rigorosamente lógica chamada de dialética, voltada ao mundo prático do humano, baseada na boa delibera-ção, nas opiniões aceitas e nos raciocínios prováveis; se-gundo ele próprio acrescenta, “é esta razão que inspira a virtude da prudência” (SIChES, 1976, p. 210). Assim, o mestre espanhol vai atentar para a importância da noção de phronesis em Aristóteles, um tema em suas palavras, “actualísimo” (SIChES, 1971b, p. 183-185), pois se trata de um conceito que enfrenta as situações específicas da vida prática, como o sentido ético que orienta as ações humanas diante de problemas práticos, sociais, políticos, jurídicos, o que superaria em muito o limitado plano da lógica formal. Embora o termo “prudência” no sentido antigo não contemple plenamente o logos do razoável no âmbito jurisprudencial – no momento em que serve apenas de diretriz aos enfoques dos problemas, sem os resolver

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– pelo menos é um estímulo para prosseguir os futuros estudos daquilo que o termo engendra (SIChES,1976, p. 348).

No capítulo VI de sua Nueva Filosofia de la Interpre-tación del Derecho, de 1956, o autor procurou expandir a concepção da antiga “equidade” presente nos escritos aristotélicos, que segundo afirma, ainda conservam “un perenne valor” para o direito nos finais do século XX. Na sua visão, o mestre estagirita não explorara em sua Ética a Nicômaco, todas as implicações que o termo sugeria, muito embora oferecesse uma feliz contribuição à teoria da justiça, que poderia auxiliar os juízes em seu trabalho decisório e interpretativo das normas. Nas palavras de Siches (1956, p. 04), Aristóteles havia oferecido “caminhos largos e flexíveis, bem como fértil inspiração ao desenvolvimento posterior do direito”.

Da vida e obra do professor Luis Recaséns Siches, resta a imagem de um homem muito culto e perspicaz, ao mesmo tempo humano, que soube colher os frutos intelectuais de sua própria época sem ignorar os antigos clássicos, e cuja intenção, entre outras, foi tentar abrir novos horizontes aos operadores do direito, segundo uma postura mais razoável que racional dentro da prática judicial.

O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que por vezes o encontrara pessoalmente em alguns congressos, o descreveu deste modo: “É assim um mestre com alguma coisa dos antigos mestres gregos. Um hispano com um tanto de helênico. Um intelectual complexo dentro de uma pessoa singularmente simples” (FREYRE, 1980, p. 356).

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4 – THEODOR VIEHwEG

Outro autor, contemporâneo de Siches, também impor-tante para a evolução da argumentação jurídica e do mesmo modo herdeiro do pensamento clássico chama-se Theodor Viehweg. Nascido em Leipzig em 1907, estudara direito nesta cidade, mas chegando depois a Berlim, compareceu como ouvinte nos seminários de filosofia de Nicolai Hartmann (FERRAZ JÚNIOR, 1979:06). Tornou-se juiz de Direito até a Segunda Guerra Mundial, quando enfrentou um período de dificuldade por ter ficado desempregado. Depois da guerra, volta a estudar e obtém a livre-docência na Universidade de Munique, indo em seguida ensinar filosofia na Universidade Gutenberg, em Mainz, pequena cidade do lado esquerdo do Reno. Viehweg faleceu octogenário nessa mesma cidade, em 1988, como professor emérito. No entanto, deixou ali um grupo de colaboradores e discípulos reunidos na chamada Escola de Mainz, cujos estudos prosseguem até hoje dentro da retórica e semiótica do direito, argumentação e comunica-ção jurídicas, ainda exercendo alguma influência nos estudos da tópica (SOBOTA, 1991, p. 275-282).

Viehweg é um tipo raro de intelectual que deixou apenas um único livro escrito, sendo o restante de sua obra pequenos textos em periódicos de filosofia ou direito, sempre em torno da Tópica, o tema central de sua vida. O seu livro foi intitu-lado Topik und Jurisprudenz, editado em 1953, aliás, trabalho com o qual defendeu sua tese de livre docência em Munique, no mesmo ano. Apesar de não ser uma obra extensa, o livro terminou causando certo impacto na reflexão filosófica do direito na Europa, a ponto de provocar o início do debate sobre a argumentação jurídica em sentido específico. Foi tra-duzido ao português como “Tópica e Jurisprudência” apenas

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em 1979, pelo professor de Direito Tércio Sampaio Ferraz Júnior que fora aluno de Viehweg na Alemanha entre 1965 e 1968. O livro que hoje existe em quase todas as línguas da Europa chamou a atenção dos filósofos do direito para as questões jurídicas práticas, para o problema da dialética e do modo tópico de raciocinar no direito. O autor pensou em retomar para o direito a antiga função retórica da tópica, sobretudo aquela apresentada nas obras de Aristóteles e Cícero. Manuel Atienza (2002, p. 59) fala em uma “ressur-reição do modo de pensar tópico ou retórico” que segundo Viehweg (1979: 75-77), havia perdido espaço para as formas dedutivas e sistemáticas do pensamento moderno.

“Tópicos” é o nome de uma obra de Aristóteles presente no Órganon e trata basicamente dos argumentos dialéticos. A raiz do termo vem do grego topos (pl. tópoi) que significa “lugar”. Logo no início do texto, o mestre grego explica que seu intuito foi encontrar um método de investigação que partindo de opiniões geralmente aceitas (êndoxa), consiga raciocinar “sobre qualquer problema que nos seja proposto” (Top. I, 1, 100a, 18-20). A noção grega de topos, chamado em latim locus, não foi bem esclarecida por Aristóteles em suas obras. Em sua Arte Retórica (1403 a 17) ele explica que “lugar” indica aquilo que inclui uma variedade de entime-mas, ou seja, de raciocínios dialéticos. Isso quer dizer que Aristóteles considerou topos um tipo de “lugar comum”, o ponto de onde surgem os argumentos, lugar onde se guarda e busca argumentos. Conhecer tais lugares tinha o efeito prático de criar ou dispor de argumentos úteis segundo cada situa-ção ou questão. A “tópica” é justamente a arte ou o estudo de lidar com essa classe de argumentos diante da atividade discursiva de raciocinar dialeticamente. Apesar de racional, a tópica não é rigorosamente lógica, pois se integra ao mundo

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das opiniões discutíveis ou das coisas verossímeis. Por esse motivo, pertence ao domínio da dialética, campo apropriado para se tratar assuntos controversos, e não da analítica, que lida com os raciocínios perfeitos. A tópica era uma arte já praticada pelos sofistas, que tinham o hábito de guardar consigo argumentos prontos sobre qualquer tema. O sofista Górgias, por exemplo, declarava que para ele nunca faltava argumento (Arist. Ret. III, 1418a 32). Mas foi Aristóteles quem proclamou o termo “tópica” como uma disciplina de estudo, um método de investigação de problemas, que de-pois Cícero vai utilizar em sua obra Tópica, no ano 44 a.C., como função retórica de descobrir e buscar premissas úteis para uma argumentação, a ars inveniendi, muito valorizada pelos juristas romanos e pela posteridade medieval. Afirma Viehweg: “a tópica mostra como se acham as premissas, a lógica recebe-as e as elabora” (VIEHWEG, 1953, p. 40).

O intuito da obra de Viehweg foi apresentar um método para tratar as dificuldades práticas que o Direito enfrentava, e fornecer uma alternativa às tendências normativistas do positivismo que predominavam nos estudos jurídicos de seu tempo. Por isso, reconsiderou a antiga noção aristotélica de “aporia” para adaptá-la às novas exigências do Direito, tendo a tópica como ponto de partida metodológico. “Aporia” em grego significa literalmente “o que não tem saída” ou “im-passe”; Aristóteles define dialeticamente aporia como uma “igualdade de conclusões contraditórias” (Tóp. VI, 145b, 16-20). Assim, Viehweg vai opor o tipo de pensamento aporético ou problemático ao modo sistemático de pensar, aliás, como já havia feito Nicolai Hartmann inspirado no próprio Aristóteles (GARCÍA AMADO, 1987, p. 164), e que depois Recaséns Siches também vai propagar. Mas Viehweg não se limitou, como fez o estagirita, à análise de

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pensamentos contraditórios e sem solução, mas introduziu no direito um método de resolver questões problemáticas com uso da razão prática e não por mero raciocínio lógico formal. Ele notou que tanto na aporética filosófica quanto na jurisprudência romana predominava o modo tópico de pensar, e que isto também seria útil para tratar as questões jurídicas (VIEHWEG, 1953, p. 56). Quer dizer que a tópica aproxima o direito das questões discutíveis, as mais variadas, sobre o homem, seus valores, fins, interesses, circunstâncias, coisa que Aristóteles não havia cogitado nem em sua dialética, nem em sua metafísica.

A visão sistemática de direito, com seus próprios con-ceitos e formalidades, visa chegar a conclusões segundo a coerência e unidade racional do discurso, enquanto a tópica pretende discutir as premissas para os casos concretos, se-gundo os valores previamente aceitos e os fins socialmente válidos. No fundo, Viehweg pretendeu um direito aplicado em um ambiente argumentativo e socialmente útil. Apenas por isso, a tópica jurídica não se torna incompatível com a Lei positiva, nem é geradora de insegurança jurídica, mas torna a aplicação do direito dependente da dialética e dos valores pregados pelo direito e pela comunidade. A tópica de Viehweg não chega a ser considerada uma teoria da ar-gumentação jurídica, muito embora tenha surgido como um método fértil para o tratamento “retórico” do direito, como disse Viehweg (1979: 102), que considerava o lado prag-mático das situações a base para qualquer discurso. Apesar das limitações da tópica quanto às suas categorias e critérios de aplicação (infelizmente não desenvolvidos por Viehweg), sem dúvida que ela constitui atualmente uma referência conceitual importante para os teóricos da argumentação e a própria filosofia do Direito. (ATIENZA, 2002, p. 70-72 e GARCÍA AMADO, 1987, p. 161-2)

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É crucial destacar que Viehweg não restaurou simples-mente em seus antigos moldes o pensamento tópico de Aristóteles ou Cícero, mas viu nisso um modelo de raciocínio que, dadas as devidas circunstâncias e adaptações segundo dados interesses, seria consideravelmente proveitoso para os seus atuais projetos jurídicos de renovar metodologicamente a prática judicial. Basta notar que seus esforços teóricos no campo da retórica até hoje alimentam o debate filosófico do direito.

Tércio Sampaio Ferraz, que se tornou discípulo e amigo pessoal de Viehweg na Alemanha relata traços de sua personalidade: “Lia muito, sobretudo os clássicos, e tinha grande sensi-bilidade para a inovação. Daí seu gosto pela retórica antiga, que ajudou a dignificar, e a moderna semiótica, que soube valorizar” (ROESLER, 2004, p. IX).

5 – CHAIM PERELMAN

Outro autor de grande expressão, talvez aquele de maior influência para a formação teórica das modernas teorias da argumentação chama-se Chaim Perelman. Polonês de origem judaica, Perelman nasceu em 1912 em Varsóvia, mas aos 13 anos mudou-se com toda família para Bruxelas, Bélgica, onde estudou, trabalhou e formou família. Tornou-se um dos mais reputados mestres da Universitè Libre de Bruxelles (ULB), onde concluiu um doutorado em direito em 1934 e outro de filosofia em 1938, quando fez um estudo sobre a lógica de Gottlob Frege. O jovem Perelman iniciou seus estudos baseando-se na lógica e no positivismo, inclusive tendo re-tornado à Polônia em 1936 para um curso de lógica junto ao professor Theodore Kotarbiski e de outros eminentes lógicos poloneses (FRANK, 2003, p. 254).

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Já no final da Segunda Guerra, após assistir aos hor-rores do conflito e participar da resistência belga contra os nazistas, seu interesse voltou-se contra todo tipo de absolutismo, inclusive o filosófico. Assim, o autor inicia nas ciências humanas e sociais um movimento que priori-zou a importância da moral, dos valores e da justiça diante do formalismo lógico e da ditadura da verdade científica. Integrou a chamada Escola de Bruxelas, em conjunto com seus mestres, os filósofos belgas Eugène Dupréel e Marcel Barzin, e a partir de então realizou pesquisas importantes dentro da filosofia da linguagem em geral e da argumenta-ção jurídica em particular. A obra perelmaniana é extensa, entre livros e artigos, bem como é grande a bibliografia sobre suas idéias. O autor propõe uma postura argumen-tativa contra o predomínio do formalismo cartesiano no pensamento europeu, que segundo ele, marcara a filosofia nos último três séculos ao impor uma concepção de ver-dade em moldes objetivos, universais e demonstrativos. Ele chama a atenção para a razão prática, ao esboçar um pragmatismo lingüístico que terá na retórica o elemento metodológico essencial para sua teoria, e no humanismo o ideal político de justiça social e individual (MANELI, 2004, p. 191ss.). Seus escritos foram traduzidos para uma dezena de idiomas, entre os quais o inglês, chinês, japonês, hebraico, polonês, português, espanhol, alemão, italiano, entre outros (FRANK, 2003, p. 253).

Sem dúvida, sua obra mais expressiva dentro da teoria da argumentação data de 1958, quando editou, em conjunto com a pesquisadora licenciada em ciências sociais e econômicas da própria ULB, Lucie Olbrechts-Tyteca, o trabalho intitu-lado Traité de l´argumentation. La nouvelle rhétorique, em português traduzido como “Tratado da Argumentação. A

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Nova Retórica”. Nele, os autores procuraram reabilitar a retórica – há séculos marginalizada como um saber aparente e inferior – tornando-a uma disciplina fundamental para a compreensão dos processos de raciocínio e da comunicação, em sentido prático, que relaciona ação, discurso, valores e interesses humanos. Em termos lingüísticos, a obra busca estudar os recursos discursivos que permitem aumentar ou provocar a adesão dos espíritos. O Tratado não é uma obra de direito, mas suas idéias tornaram-se um campo promissor para o estudo da argumentação e lógica jurídicas.

Em muitos outros escritos, Perelman demonstra seu interesse sobre a práxis jurídica, a idéia de justiça, a lógica jurídica e o discurso do direito. E com o crescimento da demanda por parte dos juristas pelos estudos lingüísticos entre os anos 60 e 90, e até os nossos dias, suas obras já se tornaram referência na filosofia do direito, bem como têm contribuído solidamente para o surgimento de outras teorias da argumentação.

Seu ponto de partida, reconhecidamente, seguiu pela antiga discussão entre retórica, filosofia e dialética, so-bretudo a partir das contribuições da sofística e dos diálogos de Platão, bem como do relevante legado de Aristóteles nessa área. Logo na introdução do Tratado, afirma-se que constitui um estudo consagrado à argumentação, vinculado a “uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas”, em ruptura com a racionalidade propagada por Descartes (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 01). Como os outros autores da argumentação, Perelman não se limitou a visitar ou reconstituir o pensamento antigo. Disso ele tem consciência quando afirma: “é evidente que nosso tratado de argumentação ultrapassará, em certos aspectos – e amplamente – os limites da retórica antiga” (PERELMAN, 1996, p. 6). No entanto, são bastante claras

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as dívidas de Perelman para com o pensamento antigo, e o próprio autor o admite em algumas passagens de sua obra. É evidente que ele estudou os livros de Aristóteles e Platão, interou-se da obra dos sofistas, dos discursos dos oradores Isócrates e Demóstenes, e do biógrafo historiador Plutarco, sem falar dos livros dos oradores Cícero e Quintiliano, entre os latinos. Pelo menos são esses os autores antigos presentes nas referên-cias bibliográficas de seu principal trabalho, o Tratado da Argumentação. Vale à pena, porém, procurar conhecer até que ponto Chaim Perelman se serviu das anti-gas concepções e experiências no campo lingüístico para a estruturação de sua teoria.

Uma pista que sugere o interesse de Perelman no antigo pensamento grego talvez esteja na influência que recebeu de seu mestre Eugène Dupréel (1879-1967), um admirador do pensamento grego, que sem dúvidas passou esse gosto para seu discípulo, mesmo que este não tenha se tornado um es-pecialista em grego ou filosofia clássica. O próprio Perelman se admira que Dupréel, sendo um homem “que tanto conhecia a filosofia grega, não tenha percebido a importância da retórica para sua própria filosofia”. (MANELI, 2004, p. 48)

A principal figura clássica dentro da obra de Perelman é com certeza Aristóteles, com os escritos dedicados à lin-guagem e ao raciocínio, mais precisamente os Tópicos, os Analíticos e a Arte Retórica, de onde Perelman e Olbrechts-Tyteca descobriram a pertinência da retórica e da dialética para seu projeto:

Tendo, pois, empreendido essa análise da argumenta-ção em certo número de obras em especial filosóficas, e em certos discursos de nossos contemporâneos, demo-nos conta, no decorrer do trabalho, de que os procedimentos que encontrávamos eram, em grande

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parte, os da retórica de Aristóteles; de todo modo, as preocupações deste se aproximavam estranhamente das nossas. (PERELMAN, 1997, p. 64)

Ao reabilitar o universo retórico sem a tradicional con-denação ético-epistêmica pregada por Platão sobre a arte retórica, Perelman põe em evidência – em pleno século XX – a importância do estudo da retórica aristotélica, ou pelo menos, a necessidade de sua reavaliação. Para Maneli (2004, p. 185), o “ressurgimento criativo” da retórica de Aristóteles foi a “conquista mais importante e abrangente de Perelman”.

Mas não é preciso expor toda a construção teórica do mestre de Estagira em retórica para reconhecer a presença de suas idéias no trabalho de Perelman, em seus aspectos essen-ciais. A distinção entre demonstração e argumentação, ponto crucial dentro da Nova Retórica, não representa um problema inédito dentro da filosofia. O autor havia prosseguido com a distinção de Hartman, Viehweg e Siches entre o pensar sistemático ou logicamente científico, e o problemático ou dialético. Como dissemos, Aristóteles havia cogitado e ex-plicado a separação entre raciocínios apodíticos – aqueles acerca das coisas necessárias, próprias das provas científicas – e os dialéticos ou retóricos, próprios do contingente, do mundo prático da ética e da política. Os primeiros lidam com a verdade das coisas, a segurança total no que é necessaria-mente certo, pois seria esse o seu objetivo; já os raciocínios dialéticos – em Perelman chamados argumentativos, por sua vez, existem no mundo das controvérsias, naquele universo do que é apenas aceitável ou verossímil, ou seja, justamente o terreno das contingências, daquilo que pode ou não ser. Nesse contexto, a tópica exerceu um papel fundamental nas

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teorias de Perelman, tanto em sua lógica jurídica, quanto na formulação do conceito de “acordo”, na argumentação.

A Nova Retórica não significou simplesmente um renas-cimento da retórica, que conforme disse Perelman (1997, p. 89), havia sido reduzida pelo racionalismo a mero estudo das figuras de linguagem. Pelo contrário, seu plano foi au-dacioso ao configurar uma lógica dos juízos de valor, por ele chamada “lógica do preferível” (PERELMAN, 1997, p. 69), que trouxe resultados relevantes ao paradigma das ciências humanas.

Foi com a discreta figura de Lucie Olbrechts-Tyteca que Perelman partilhou, a partir de 1947, o interesse sobre a antiga arte retórica como ponto de partida para o projeto da Nova Retórica. A pesquisa os levou para além do pensamento retórico antigo, ingressou no estudo de uma lógica social com conseqüências éticas, epistêmicas, jurídicas e lingüísticas. O importante é notar que as idéias centrais de Perelman e Olbrechts-Tyteca podem ser encontradas no antigo debate entre Sócrates e os sofistas, e nas questões filosófico-retóricas levantadas por Aristóteles, muito embora haja diferenças fun-damentais entre a antiga e esta “nova retórica”, conforme bem apresentou a professora argentina Maria de los Angeles Ma-nassero (2005, p. 13-69). O interesse dos autores não recaiu sobre os aspectos oratórios da linguagem, nem na sedução do discurso, nas paixões do auditório, ou nas performances e elocuções do orador em público, pois “tais problemas são da competência dos conservatórios e das escolas de arte dramática; dispensamo-nos de seu exame” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 06). Em vez disso, seu objeto foram as formas argumentativas do raciocínio, ou seja, os aspecto lógicos vinculados à filosofia e dialética (Manassero, op.cit., 27). Nesse sentido, pode-se afirmar que

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a retórica de Perelman é mais próxima da dialética do que da oratória, mais voltada à retórica do que à lógica formal. “A retórica difere da lógica”, diz Perelman (1997, p. 70) “pelo fato de se ocupar não com a verdade abstrata ou categórica, ou hipotética, mas com a adesão”. Na avaliação de Robert Alexy (2001, p. 130), Perelman não estava tentando substituir a lógica formal, mas seu esforço foi de acrescentar a ela um tipo de argumentação prática, muito difícil de racionalizar.

Perelman postou-se ao lado dos sofistas em referência a muitas das antigas concepções retóricas e dialéticas, mesmo que isso não tenha sido afirmado expressamente pelo autor em seus textos. É claro, no entanto, o interesse demonstrado por ele pela sofística. Não por acaso, seu mestre e amigo Eugène Dupréel havia escrito em 1948 o livro Les Sophistes, no qual apresentara uma introdução sobre o movimento sofista e os fragmentos relativos a Protágoras, Górgias, Pródico e Hí-pias. Essa obra também é citada na bibliografia do Tratado.

Os sofistas merecem, apesar da condenação histórica sobre sua imagem, um reconhecimento de que representaram um movimento crucial para afirmação do pensamento crítico e do estudo da linguagem. No século XIX, Eduard Zeller (1955, p. 88), autoridade no antigo pensamento grego, conside-rou a sofística o fruto da revolução mais radical em termos de modo de vida e pensamento que o povo grego jamais produziu. Alguns aspectos do movimento sofista são claramente reconhecíveis na filosofia de Perelman: primeiro, o sentido antidogmático da sofística (PINTO, 2002, p. 25-26), mostrado por uma postura crítica diante dos absolutos, da verdade, do bem ou da justiça. O pluralismo de Perelman não se afasta, na prática, do relativismo pregado por alguns sofistas. Quando Perelman identifica a retórica com o que ele chama de “lógica do preferível”, de certa forma está

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compactuando com o relativismo pragmático dos velhos sofistas, que consideravam o “melhor” mais importante que o verdadeiro ou falso, conforme ensinava Protágoras (GUTHRIE, 1995, p. 177), e que concediam mais atenção aos argumentos verossímeis que aos verdadeiros, como pregaram Górgias e Tísias (PLATãO, Fedro, 267). A verdade, tanto em Perelman quanto nos sofistas, vai dividir o interesse reflexivo da filosofia com outros valores, como o útil, o melhor, o bom, o certo, o justo. O trabalho da persuasão retórica não é descobrir a realidade, mas sim fazer o público aceitar e acreditar naquilo que o discurso se propõe, justamente um dos objetivos centrais do Tratado, muito embora Perelman não tenha partilhado do ceticismo sofista, no caso de Górgias, nem do radical subjetivismo, como em Protágoras, por exemplo. Mas como não lembrar de Protágoras quando lemos Perelman discutir sobre força e eficácia dos argumentos, em relação ao assentimento e consenso do auditório sobre uma tese? Para o autor belga, a eficácia de uma argumentação é medida pelo grau de adesão provocado pelo discurso sobre os auditórios (particular ou universal). Pelo que se sabe, Protágoras foi um dos primeiros sofistas gregos a lidar com a questão de argumentos fortes e fracos, e seu critério também era a aceitação do público. Na interpretação de Romeyer-Dherbey (1999, p. 26) sobre esta idéia de Protágoras, um discurso pessoal não partilhado é fraco; mas quando este discurso “encontra a adesão de ou-tros discursos pessoais, este discurso, reforçando-se com os outros, torna-se discurso forte (krêiton logos), e constitui a verdade”.

O interesse da filosofia jurídica pela linguagem e pela argumentação no século XX aproximou ou conduziu os pensadores modernos a voltar os olhos sobre a sofística. Basta reconhecer que foi Protágoras, no século V a.C., quem

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iniciou “o discurso sobre o discurso”, quando tornou o lo-gos um objeto de estudo (SCHIAPPA, 2003, p. 197). Zeller (SCHIAPPA, 2003, p. 81) chega a afirmar que Protágoras e Pródico foram os fundadores de uma investigação científica da linguagem.

A dialética vista como técnica de tratar opiniões con-trárias sobre algum assunto também é um legado sofístico, e hoje em dia constitui um elemento básico para as teorias da argumentação. Desde a época antiga, a dialética foi uma atividade de fundo prático identificada não apenas com a filosofia, mas vinculada à vida política e jurídica da pólis.

Em outro terreno, o humanismo presente no pensamento perelmaniano, embora diferente do antigo, também é es-sencialmente um legado da época clássica. Os sofistas, além de seu antropocentrismo filosófico, propagaram um tipo de humanismo preocupado com as necessidades práticas dos cidadãos, em sua postura ética e pública. A palavra grega “philantropia” indicava o amor à humanidade ou a boa von-tade para com as pessoas, algo louvável tanto para indivíduos quanto para o próprio Estado, conforme a concepção do orador Isócrates ainda no século IV a.C. O filólogo alemão Werner Jaeger, no livro Paidéia, de 1934, alimentou a idéia de que os sofistas foram os fundadores do humanismo oci-dental, de fato os divulgadores de um ideal educacional de formação cidadã. O grande expoente desse antigo humanismo foi Isócrates, sofista e orador contemporâneo e adversário de Platão em Atenas. Não por acaso, Isócrates foi um dos autores gregos prediletos de Perelman, estando citado no Tratado em mais de vinte passagens. Segundo Maneli (2004. p.07), o esforço de Perelman diante das causas da razão e do humanismo levou-o a “superar certos axiomas e regras, às vezes considerados sagrados”. Como não lembrar da

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época sofista, quando se fala em quebra de paradigmas ou revolução cultural?

A contribuição dos estudos de Perelman para as moder-nas teorias da argumentação dificilmente poderia ser men-surada com exatidão. O seu principal trabalho, o Tratado da Argumentação, nos seus quase cinquenta anos de existência, tornou-se um marco sólido dentro dos estudos lingüísticos da filosofia contemporânea.

Mieczyslaw Maneli, professor na Universidade de Nova Iorque, aluno e amigo pessoal de Perelman, assim o descreveu: “Ele era profundo, mas escrevia para pessoas comuns. Nunca deixava transparecer sua erudição; falava e escrevia para persuadir, convencer e estimular o pensamento”(MANELI, 2004, p. 07). Perelman faleceu em janeiro de 1984, em Bruxelas, mas deixou muitos seguidores e admiradores em todos os continentes, que ainda prosseguem na sua trilha de estudo e aprofundamento das análises teóricas e filosóficas envolvendo a retórica, a racionalidade jurídica e a argumentação.

6 – ROBERT ALExy

Outro renomado pensador contemporâneo na área da argumentação jurídica é o alemão Robert Alexy, professor de direito público e filosofia do direito da Universidade Christian-Albrechts, de Kiel. A importância do autor verifica-se pelo prestígio acadêmico que sua obra conquistou nos últimos anos, e por ter ele transformado a argumentação jurídica em um campo teórico-metodológico do direito, na realidade, tornou-a uma disciplina filosófica no campo jurídico.

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Nascido em 1945 em Oldenburg, Robert Alexy estudou direito na Faculdade de Direito da Universidade Georg-August em Gottingen. Um detalhe em sua formação é que durante anos ele também esteve matriculado na Faculdade de Filosofia da mesma universidade, o que resultou em seu grande interesse pela filosofia jurídica (ATIENZA, 2001, p. 671). Sua tese de doutorado defendida na mesma universidade em 1976 intitulou-se Theorie der Juristischen Argumentation, e foi editada como livro dois anos depois, com o mesmo título. É uma das mais influentes obras atuais de argumentação no direito; em pouco tempo ganhou tradução em várias línguas européias, o que sem dúvida tornou Alexy bastante conhecido no campo da filosofia do direito. Em português o livro foi chamado “Teoria da Argumentação Jurídica”. Segundo Atienza (2002, p. 170), a obra de Alexy, por sua importância e difusão, junto com o livro de Neil MacCormick Legal reasoning and legal theory (1978), estabelecem o que pode ser chamado de teoria “padrão” (standard) da atual argumentação jurídica.

Alexy propõe uma sofisticada teoria da argumentação jurídica que pretende retratar o discurso racional como teoria da fundamentação jurídica para as decisões judiciais. Ele oferece uma abordagem analítica acerca das fundamentações no campo jurídico (SEOANE, 2005, p. 106), utilizando em sua tarefa as noções de razão prática, com base em Kant, e de verdade consensual que teve em Jurgen Habermas sua principal inspiração. Alexy não alimentará mais o prisma “retórico” da argumentação, como o fez Perelman, já que a retórica não seria um terreno propício ou confiável para a racionalização do discurso prático. O próprio Perelman não havia conseguido demarcar o papel da lógica diante da

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adesão dos auditórios, fator que é essencial para o estudo dos argumentos (ALEXY, 2002, p. 137-138).

O subtítulo de sua obra principal é “a teoria do discurso racional como teoria da argumentação jurídica”. Na ex-pressão “discurso racional”, tanto o termo “racional” quanto “discurso” são provenientes da palavra grega “logos”. Alexy procurou desenvolver uma teoria da argumentação jurídica revisando e analisando teorias anteriores e contemporâneas, como as de Perelman, Viehweg, Esser e Toulmin, partindo da concepção pós-positivista de direito, como um discurso voltado para problemas práticos. Muito se tem falado no racionalismo alimentado por Alexy no estudo do discurso jurídico, mas esse autor, embora longe de uma abordagem histórica, termina por perpetuar uma tradição iniciada com os gregos, a de legitimar a ciência jurídica e as próprias decisões judiciais segundo os critérios da razão. Porém, em seus escritos, não se oferece uma clara concepção de racio-nalidade, conforme bem lembra Seoane (2005, p.110). Sua concepção geral de direito não é positivista, sobretudo pelo papel que a moral e os princípios exercem em sua teoria, mas é fortemente inspirada pela filosofia analítica. A lei, por si só, nada resolve, como ele próprio defende: “a lei escrita não cumpre a tarefa de prover uma justa resolução dos problemas legais” (ALEXY, 2001, p. 34). Tanto a lei, quanto a dogmática e os precedentes apenas demonstram o caráter institucional do direito. É preciso então um aspecto argumentativo prático para ligar o direito a uma dimensão crítica e ideal (Atienza, 2001, p. 672).

Alexy (2001, p.36) concebe a argumentação jurídica como um caso especial da argumentação prática geral. Para o autor, a racionalidade prática envolve questões de procedi-mentos orientados por regras e limites. No caso do direito, o

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discurso trata de problemas práticos que obedecem a limites da ordem jurídica vigente (ALEXY, 2001, p.213). Assim, ele busca oferecer uma “teoria geral do discurso prático” e con-clui que o direito trabalha com uma “pretensão de correção”, o que significa estar baseado na idéia de que seu discurso possa ser racionalmente fundamentado segundo o contexto legal. Na sua concepção, a própria justiça é um critério de correção, vinculado à possibilidade de fundamentação ou justificação, mediante razões (ALEXY, 2003, p. 163).

Não é exagero afirmar que assim ele também seguiria a tendência tradicional da scientia grega, qual seja, a da racionalização do discurso, na crença de que desse modo, as resoluções práticas do direito se tornassem “legítimas, certas ou seguras”; sobretudo, passíveis de serem fundamentadas. O pensar bem e com clareza foi uma marca essencial do desejo grego de buscar a verdade com inteligência, e do mesmo modo, uma marca expressiva das idéias de Alexy. Nas palavras de José Seoane (ALEXY, 2003, p.186): “a teoria da argumentação jurídica de Alexy recorre a um afã de certeza e segurança”.

Alexy não precisou se aprofundar no pensamento grego para estruturar a sua teoria. Muitos dos elementos teóricos por ele tratados tocam em problemas fundamentais do pen-samento antigo. Mas esse autor reconheceu, em entrevista a Atienza, que Aristóteles fora um dos três grandes pensadores da história da filosofia do Direito, junto com Hobbes e Kant; segundo ele próprio: “Aristóteles, com sua análise teleológica da ação humana, estabeleceu uma pedra fundamental pra toda investigação do comportamento social e por isto, do direito” (ATIENZA, 2001, p. 679). Ele admite que um dos momen-tos importantes do discurso prático judicial é o prudencial, aquele baseado do pensamento ético aristotélico, quando a

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razão prática trabalha de modo a considerar dado contexto para decidir o que é correto (SEOANE, 2005, p. 186).

As regras do discurso racional, que Alexy tanto priorizou em sua teoria, já eram bem conhecidas e exigidas na dialética grega. Por exemplo, ele cita como regras básicas da raciona-lidade do discurso: igualdade entre os que discursam; possi-bilidade de todos tomarem parte do discurso; todos poderem problematizar qualquer asserção, bem como expressar suas opiniões; (ALEXY, 2001, p. 294). Outras regras, que também considera são a proibição de contradição no discurso, clareza lingüística, seguir a verdade empírica, etc. (ALEXY, 1993, p. 48). Tais regras, entre várias, são no mínimo compatíveis com o ambiente político inaugurado nos tempos da democracia grega, quando a política tornou-se uma atividade participa-tiva, mais do que uma disciplina teórica a respeito do poder, quando a retórica tornou-se um instrumento de poder, e o livre debate surgia como uma possibilidade cidadã legítima e uma prática civilizada e racional.

Em 1986, Alexy lança o livro Theorie der Grundrechte (Teoria dos Direitos Fundamentais), através do qual buscou trazer ao campo jurídico argumentativo as relações entre o Estado democrático de direito e os direitos fundamentais. Sua intenção inclinou-se sobre a institucionalização de certos valores e princípios, ou seja, ele tentou estabelecer que os direitos fundamentais devam ser positivados dentro do ordenamento e exigíveis legalmente (DUARTE, 2003, p. 121-135). Essa obra é uma das mais representativas para os estudos constitucionais da atualidade sobre os direitos fundamentais. O discurso sobre a razão prática em Alexy é inseparável do discurso ético e do problema da vida política dos homens, questões cuja estrutura, nas devidas proporções, não é nem um pouco recente. Mesmo que autores como

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Alexy, MacCormick e Aarnio não estivessem pensando nos antigos quando construíram suas teorias argumentativas de justificação racional do discurso e das decisões judiciais, eles estavam seguindo outra tradição iniciada com os gregos: refletir criticamente sobre problemas humanos de modo não apartado das questões políticas e jurídicas, e acreditar que os saberes válidos decorrem da avaliação racional. O fato de os gregos terem se ocupado e escrito sobre lógica (incluindo a informal), dialética e retórica já é suficiente para afirmar a dependência e dívida das idéias dos modernos autores de argumentação ao pensamento clássico.

7 – CONCLUSÃO

Um direito mais aberto aos interesses e valores comuns, um direito mais humano em termos éticos, e não arbitrário, tornou-se ultimamente uma exigência primordial das socie-dades democráticas contemporâneas. A flexibilização das leis em casos específicos, dentro de critérios interpretativos racionalmente determinados também vem se tornando uma tendência recorrente de muitas situações legais. Não por acaso, os operadores da lei que hoje seguem essa linha reencon-traram no modelo antigo de prudência e equidade um caminho frutífero, socialmente vantajoso e teoricamente viável.

Agora se pode falar em método da razão prática e do discurso racional, que considera nas decisões o caso con-creto especificamente, que seja sensível ao humano, ao contingente, ao bem comum, ao justo, em seus meios e fins. Não sem motivos, o ponto crucial das atuais teorias da argumentação é a capacidade de justificação racional das decisões judiciais.

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Os gregos estudaram e inauguraram o tratamento racio-nal e argumentativo para solucionar as questões conflituosas que se apresentavam diante do pensamento e diante da vida prática. Eles também mostraram preocupação com a arte de bem deliberar com prudência e sabedoria, sem se desvincu-lar do correto funcionamento do logos. Isócrates, o grande mestre de oratória ateniense, elogiava seus concidadãos dizendo que eles, mais dos que os outros, eram educados na arte da prudência e do verbo. Isso exigiu um maior de-senvolvimento das técnicas lingüísticas e chamou a atenção para uma investigação mais apurada sobre o fenômeno da linguagem humana em seu prisma prático e politicamente concreto. Desse modo foi que surgiu a arte retórica como uma prática discursiva, política e ao mesmo tempo judicial, pela necessidade de legitimação social dos interesses, pela defesa de idéias nas praças, nos tribunais públicos e assembléias populares. A dialética, por seu turno, configura a arte dis-cursiva de gerir as diferenças de opinião e de trabalhar teses controversas com habilidade verbal. Tal arte é imprescindí-vel em muitas ocasiões da vida jurídica atual. No entanto, a maior contribuição dos gregos para o pensamento jurídico ocidental não está nem nas leis que eles formularam, nem no brilhantismo de seus oradores e filósofos, mas na divulgação de sua experiência política e na abertura da discussão ética sobre a justiça.

Tentou-se, neste trabalho, demonstrar que os pontos de partida epistemológicos e pragmáticos das atuais teorias da argumentação jurídica provêm da experiência grega em torno da linguagem, bem como de suas reflexões sobre o tema. O contexto histórico das póleis possibilitou a livre expressão, a contestação de opiniões, o confronto de idéias sobre assuntos diversos. Aqui, o movimento educacional sofista representa

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um aspecto crucial de afirmação da dialética e da retórica no mundo ocidental, no momento em que ele questionou a noção de discurso verdadeiro, considerou o peso do veros-símil e da conquista persuasiva, refletiu sobre a moral, o ensino das virtudes, a política, a justiça. A herança grega se faz presente quando a dialética e a retórica ressurgem como métodos renovadores para o pensamento crítico no direito. O trabalho epistemológico de Aristóteles, com seu intuito sistemático, também favoreceu essencialmente a estrutura teórica que possibilitou o surgimento das argumentações jurídicas.

A argumentação jurídica nada mais é que a postura discursiva de conferir ou confirmar validade às decisões ju-diciais, mormente com o crivo da razão. Todo o esforço dos divulgadores da abordagem argumentativa do direito diz res-peito ao objetivo de imprimir racionalidade à realização dos procedimentos decisórios legais. Os conceitos, os problemas dialéticos e retóricos desenvolvidos pelos antigos gregos têm exercido um papel fundamental na renovação metodológica empreendida pelas atuais teorias da argumentação jurídica. As lições dos antigos, em sua densidade reflexiva, continuam a alimentar e fornecer respostas a muitas indagações, e o seu legado continua uma fonte viva de pesquisa.

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UMA CRÍTICA À IDEOLOGIA JUSNATURALISTA NOS PRINCÍPIOS

cONsTITucIONAIs DO DIREITO DO TRABALHO

Lorena Freitas

REsumO

O objetivo deste artigo se insere num campo interdis-ciplinar entre filosofia e direito do trabalho. O propósito é identificar um possível referencial ideológico nos princípios constitucionais do trabalho, quais sejam o valor do trabalho e a dignidade da pessoa humana. O artigo explicita a preferên-cia da dogmática do direito do trabalho pelo direito individual ao direito coletivo. Nossa tese aqui desenvolvida é a de que tais princípios refletem o paradigma jusnaturalista na proble-mática do direito do trabalho.

Palavras chave: Direito do trabalho. Princípios. Ideo-logia. Jusnaturalismo.

AbsTRAcT

The aim of this article is inserted in a common field between Philosophy and Labour Law. The purpose is to

1 Mestra e Doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Professora da Faculdade Maurício de Nassau

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identify a possible ideological reference on the constitutional principles as value of work an dignity of human being. It explains how the dogmatic theory of labour law prefers the individual than collective perspective. Our thesis developed here is that principles reflect the natural law paradigm on labour law debates.

Keywords: Labour Law. Principle. Ideology. Natural law.

sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Acerca dos princí-pios do valor do trabalho e da dignidade da pessoa humana; 3. O realismo jurídico como fundamento teórico para uma crítica da ideologia no direito; 4. A preferência ideológica pelo direito individual do trabalho ao direito coletivo; 5. A tese de que os princípios refletem a prevalência do paradigma individualista e que não seriam mais que herança de um referencial jusnaturalista.

1 – CONSIDERAÇõES INICIAIS

O propósito do estudo consiste em identificar como os princípios do valor do trabalho e da dignidade da pessoa humana, princípios constitucionais do trabalho, refletem um paradigma individualista que privilegia o direito individual do trabalho ao direito coletivo do trabalho, quando este último é a própria fonte do Direito do Trabalho.

Ou seja, o direito do trabalho resultante do welfare state, cujo objetivo era, inicialmente de contrabalançar o prestí-gio do socialismo e conduzir os trabalhadores pela via das reformas não conseguiu (e não consegue, por sua própria gênese e fundamentos) superar o seu caráter individualista

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e parcial, enfim de mantenedor do estado de coisas exis-tentes. Ele não desaliena o trabalhador não porque faça a apologia do trabalho, mas porque não supera a separação entre quem produz e seu produto, cujo fundamento é a propriedade privada.

Nesse sentido o Professor Everaldo Gaspar (2008, p.121, 122) diz que

O Estado Liberal tinha consciência de que seria impossível evitar, abortar, eliminar os antagonismos entre classes – capitalista e proletariado - bem como a organização coletiva dos operários. Por isso, tratou primeiro de tolerá-los para, em seguida, reconhecê-los. Mas, é preciso assinalar que tal reconhecimento deu-se nos estritos limites da concepção jurídica por ele traçada. [...]O ápice desta tendência aconteceu a partir da década de quarenta do século passado, sobretudo, com o nascimento do Estado Providência. Este projeto político - Estado do Bem-Estar Social – estruturou-se a partir de uma arquitetura jurídica, que combinava desenvolvimento econômico e políticas públicas voltadas para a seguridade social e para o pleno emprego. Daí consolida definitivamente a glorificação do trabalho subordinado [...].Enquanto não for superada essa cisão, essa alienação, as discussões sobre o próprio valor do não-trabalho, do ócio etc, serão nada mais do que manifestação do trabalho pois, ainda que o tra-balho se torne (pelo avanço tecnológico) residual na sociedade futura - ou na de hoje – ainda assim restará o problema pelo qual aquele que produziu a tecnologia que nos liberta do trabalho e nos ofereceria o ócio, esse também estaria alienado (cindido, separado) do que produziu.

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A tese se desenvolve discutindo como esta questão do individualismo, de uma concepção de homem egoísta - cuja esfera, Marx apontou, é a sociedade civil, espaço onde o indivíduo atua como proprietário privado, ainda que o seja apenas de sua força de trabalho cujo lugar de venda é o mercado – expressa a própria ideologia capitalista. Nesse sentido o realismo jurídico serve de fundamento teórico para enfrentar a problemática da ideologia no direito.

Por isso, metodologicamente optamos pela forma de en-saio, no sentido que Adorno confere ao termo3, por ser mais adequada à feitura de um paper, que tem um caráter sobre-maneira mais criativo e livre de trazer hipóteses e não uma tese, logo as apresentando de forma aberta, sem pretensões de chegar a uma resposta fechada, mas principalmente por encar-nar a sensação de desbravamento que de forma literária o poeta espanhol Antonio Machado expressou nos versos “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”.

Assim, preferimos pela forma de ensaio para ressaltar não tão só dúvidas e o caráter problemático do tema, mas propriamente como estamos enfrentando-as. Aproveitando-nos desta justificativa da forma como o trabalho se apresen-tará para também trazer à colação a linguagem fluida que por ora optamos no uso da primeira pessoa do plural, mais representativa para tratar de inquietações teóricas como aqui se fará.

3 Para Adorno, o ensaio não trabalha com a regra do jogo da ciência e da teoria organizada, mas com a premissa de que a ordem das coisas seria a mesma das idéias, daí esta forma não perseguir uma construção fechada na medida em que não quer captar o eterno, preferindo o transitório. Naquilo em que é enfaticamente ensaio, o pensamento se libera da idéia tradicional de verdade (ADORNO, 1986, p. 174-176).

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Assim, o trabalho arvora-se a enfrentar algumas problemáticas que reforçam sua característica ensaís-tica, e que se resumem no afastamento que optamos da discussão nos marcos da dogmática jurídica tradi-cional. Daí, o texto adquire um caráter mais reflexivo e zetético4 que doutrinário e manualesco para tratar destes princípios do direito constitucional do trabalho. Estes fatores indicam a provisoriedade das hipóteses a serem trabalhadas no texto como nossa tese/ proposta de análise crítica.

2 – ACERCA DOS PRINCÍPIOS DO VALOR DO TRA-BALHO E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A Constituição Federal de 1988 traz como princípios fundantes da República Federativa do Brasil, aqueles que o servem de esteio e que traçam as suas diretrizes. Tal carac-terística de fundamento enfatiza o caráter e natureza de valor que estes princípios representam.

Os princípios “são a síntese dos valores mais signifi-cativos para um ordenamento jurídico”, o que nos leva a concluir que sempre que estivermos frente a um princípio, teremos também encontrado um valor reconhecido pelo respectivo sistema legal (BARBOSA, 2008). Estes estão dispostos no artigo 1º. da Constituição Federal, quais sejam: princípios federativo, republicano e democrático

4 Os enfoques zetético e dogmático são dois entre os diferentes ângulos pelos quais o direito como objeto pode ser estudado. A perspectiva zetética, de zetein, perguntar, perquirir, tem sua característica principal na abertura constante para o questionamento dos objetos, sua função especulativa há um descomprometi-mento com a solução de conflitos, oposta à perspectiva dogmática, de dokein, doutrinar, responder. (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 39 ss).

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de direito, fundamentados da soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, no pluralismo político (in-cisos I a V), além do princípio da tripartição dos poderes (artigo 2º.).

O valor do trabalho não foi inscrito apenas na edição de 88, as constituições anteriores já o traziam: Constituição Federal de 1937, Art. 113. “A todos cabe o direito de prover à própria subsistência e à de sua famí-lia, mediante trabalho honesto. O poder público deve amparar, na forma da lei, os que estejam na indigência”; Constituição Federal de 1967: “Título III. Da Ordem Econômica e Social. Art. 160: A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: ... II. valorização do trabalho como condição da dignidade humana”.

Na atual Constituição, além do já citado art. 1º. temos também: “Da Ordem Econômica e Financeira – Capítulo I - Dos princípios gerais da atividade econômica. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ... VIII - busca do pleno emprego...”.

Para fins deste ensaio o objetivo é destacar os princípios do valor do trabalho e a dignidade da pessoa humana e a primeira questão que colocamos está na perspectiva idílica que tantos doutrinadores tratam do tema, visão esta que preferimos chamar de ideológica no sentido de que se mostra como uma consciência in-vertida, na conceituação de Marx (MARX; ENGELS, 2005, p.11-12).

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O princípio do valor do trabalho5 é apresentado pela doutrina predominante6 como meio de identificar e exaltar o objeto trabalho subordinado que passou a ser a forma predominante; o trabalho livre, em decor-rência encarnou-se como sinônimo de preguiça, sendo inclusive em algumas situações juridicamente punível por leis penais, ou seja, incide um qualificativo nega-tivo sobre trabalho livre. É o caso, por exemplo, da lei das contravenções penais, que pune a vadiagem no seu art. 59:

Art. 59 - Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria sub-sistência mediante ocupação ilícita.

Pena: Prisão simples de 15 dias a 3 mesesO paradigma do direito do trabalho, seu objeto, ainda é

o trabalho subordinado. A ideologia do trabalho subordinado se fortalece na crença e exaltação das virtudes do trabalho, do qual a expressão mais incisiva é analisada em Max Weber na Ética protestante e o espírito do capitalismo onde a moral calvinista exaltava o trabalho como forma de louvor a deus e

5 Não estamos com isso dizendo que o trabalho não tem valor, tem papel funda-mental na integração das pessoas, além de uma função psíquica na constituiçao do sujeito e de sua rede de significados (PINTO, 2007, p. 11).

6 Um exemplo desta visão ideológica do trabalho está em: “Sabiamente, detec-tou a CF que o trabalho em, em especial o trabalho regulado, assecuratóriode certo patamar de garantias ao obreiro, é o mais importante veículo (senão o único) de afirmação comunitária da grande maioria dos seres humanos que compõem a atual sociedade capitalista, sendo desse modo, um dos mais rel-evantes (senão o maior deles) instrumentos de afirmação da democracia na vida social” (DELGADO, 2004, p. 169).

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não mais como mero castigo7 pela prática do pecado original8 e sim como louvor – de forma que nossa compreensão do trabalho é impregnada dessa milenar visão de mundo.9

Uma questão que podemos analisar sobre elemento ideológico da norma está, por exemplo, na identificação de princípios, a priori e ontologicamente diversos, mas que se apresentam juntos no inciso IV, art.1º., “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”.

A livre iniciativa expressa de forma mais clara como um pilar do liberalismo econômico e os valores sociais do tra-balho antes deveriam não se resumir ao trabalho subordinado, pelo que a redação, numa forma mais explícita, poderia ser assim dita: os valores do trabalho subordinado, interesse das classes dominantes e ideologicamente compartilhados como sociais”. Desta forma é que temos uma congruência de va-lores entre os dois princípios. Vale lembrar que a norma não é redigida de forma tão clara porque a tornaria disfuncional (SOBOTA, 1996, p. 251-273).

Assim, os interesses dominantes são apresentados como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade.

7 Em nossa opinião, o calvinismo, cujo foco central é a idéia da “predestina-ção”, se não foi a principal vertente, seguramente está entre elas, no sentido de religiosidade do capitalismo ascendente, em oposição à vocação feudal do catolicismo. Para eles – e é neste sentido que fala Weber – “o mundo existe para servir à glorificação de deus (...) e este caráter é partilhado pelo trabalho (...)” (WEBER, 2002, p. 75-95, 82-83).

8 Ver o Gênesis, capítulo 3º , versículo 19, que afirma claramente: “Por teres pecado, comerás o pão com o suor de teu rosto” (BÍBLIA SAGRADA, 2002, p. 127).

9 No mesmo sentido – e Weber foi um leitor atento de Marx – este lembra que “Lutero venceu a servidão pela devoção porque a substituiu pela servidão da convicção. Acabou com a fé na autoridade na medida em que restaurou a autoridade da fé. Converteu os sacerdotes em leigos porque já tinha convertido os leigos em sacerdotes e libertou o homem da religiosidade externa porque erigiu a religiosidade em seu coração. Emancipou o corpo das cadeias porque subjugou com cadeias os corações.” (MARX, 1992, p. 118).

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Pois, como diz Marx, as idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; ou seja, a classe que é o poder material dominante da socie-dade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante (MARX; ENGELS, 2005, p. 63).

Conforme Professor Everaldo Gaspar (2008, p. 84), foi a classe capitalista quem inventou o Estado Liberal e reivin-dicou para si a edição das leis, inclusive das leis trabalhistas, centradas no tal princípio protetor do contrato individual de trabalho. E todo conteúdo normativo veio para benefício dessa classe dominante, não o contrário.

Acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, resta também uma crítica por a expressão ter um caráter mais retórico que preocupação efetiva, pois se torna inócua tal fundamentação principiológica do nosso Estado quando se verifica que a realidade desprestigia o ideal da democracia. Os níveis de exclusão e diferenciação de classes atestam para uma compreensão restritiva da dignidade da pessoa humana, ou seja, como se humanos apenas existissem nas classes dominantes, visto os humanos dominados não serem percebidos pelo sistema; a dignidade da pessoa humana que a norma consagra só se efetiva num espaço pequeno e economi-camente limitado. Por isso que Marx, em A questão judaica critica severamente a concepção burguesa dos direitos hu-manos mostrando-a como exaltação dos direitos privados do indivíduo egoísta, isto é do proprietário e os opõe aos direitos do cidadão, estes direitos políticos par excelence (MARX, 1991, p. 41-42), muito embora, como reconhece o próprio Marx, a emancipação política não implica em emancipação humana (MARX, 1991, p. 37) visto que tal atividade pres-supõe a existência do Estado e do Direito, formações sociais

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que existem pelo simples fato de que reina na sociedade uma cisão a ser superada.

Tal individualismo no sistema capitalista se reflete nesse homem egoísta, esfera onde “as mais importantes operações do trabalho são reguladas e dirigidas segundo os planos e as especulações daqueles que aplicam os capitais” (MARX, 2004, p. 46).

Para aprofundar tal perspectiva crítica que aqui esboça-mos sobre estes princípios constitucionais do direito do trabalho, passamos a expor o referencial que esteia nosso ponto de vista sobre a ideologia no direito do trabalho.

3 – O REALISMO JURÍDICO COMO FUNDAMEN-TO TEÓRICO PARA UMA CRÍTICA DA IDEOLO-GIA NO DIREITO

Por realismo jurídico temos um movimento doutrinário de cunho anti-metafísico que se desenvolveu nos EUA e países escandinavos e situa-se na linha de concepções que rechaçam a jurisprudência mecanicista da escola da exegese e se caracteriza por um ceticismo frente às normas e conceitos jurídicos. Esse ceticismo é uma forma de reação contra a atitude de um legalismo normativista. Assim o realismo não se limitou apenas em dizer que as normas jurídicas não são dotadas de virtudes prévias assinaladas pelo formalismo jurídico. E quanto à sua a atitude anti-metafísica, acima mencionada, tal postura o leva a buscar constituir uma ciência empírica do direito voltada a descrever a realidade jurídica (FERREIRA, 2006, p. 700).

Os realistas compartilham da perspectiva de que a lei não seria um processo de deduções de decisões corretas dos

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princípios jurídicos estabelecidos, mas, antes, um contínuo processo ou adaptação experimental de tomada de decisão em determinados casos, numa tentativa de chegar a soluções que sejam corretas apenas no sentido de que realmente funcionaram no contexto social em que agiram. (LLOYDE, 1998, p. 267).

A principal corrente no realismo jurídico é a que tem origem nos EUA na década de 1920, e é esta que se utiliza de uma concepção pragmática no trato do fenômeno jurídico, pois concebem o direito como aquilo que é aplicado nos tribunais.

A realidade jurídica assim se fundaria na conduta efetiva dos juízes, sendo decisivo o estudo de como agem, independentemente do que declaram. A escolha da norma jurídica assume uma característica de justifi-cação a posteriori, ou seja, “da conclusão tomada com fundamento na íntima convicção do magistrado. Daí que para o realismo americano a certeza do direito só existiria plenamente se os juízes fossem seres estereotipados” (FERREIRA, 2006, p. 700). Focando no tema de como os juízes decidem, temos as idéias de Cardozo, que em A Natureza do Processo Judicial, o seu mais importante livro, o autor liga a teoria jurídica à prática dos tribunais, deixando claro que o juiz é um criador de direito, logo, capaz de dirigi-lo no sentido da maior utilidade social (CARDOZO, 1978, p. 17).

O livro é o resultado de quatro conferências que proferiu na Universidade de Yale em 1920. Discursando sobre como o juiz decidia, ele mostra a figura do magistrado como agente ativo, criador do direito, que interpreta a consciência social e lhe dá efeito jurídico, e que é exatamente nesta tarefa que auxilia a formação e modificação própria consciência que

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interpreta, onde descoberta e criação reagem uma sobre a outra.

Uma série de indagações sobre o que faz o juiz quando decide uma causa inaugura sua fala, tais como: a que fontes de informação o juiz recorre como guia, em que proporção permite que estas influenciem no resultado, em que propor-ção deveriam contribuir. Por meio de uma metáfora, diz que o dia-dia nos tribunais é como preparar um estranho com-posto onde todos estes ingredientes entram em proporções variáveis e que não lhe cabe dizer se o juiz deveria ou não prepará-lo, o fato é que diante de todos está o preparo, assim toma a construção do direito pelo juiz como uma realidade da vida e expõe da maneira mais realista, logo distante de tendências moralizantes se deve ou não ser assim, mas tão somente diz que é assim a natureza, no sentido da essência do processo judicial.

Mas o fundamental é que em tal “infusão” entra alguns princípios, mesmo que indeclarados, inarticulados e subcons-cientes. É por aqui que também ideologias são transmitidas, assim não nega que o processo de decisão é ideológico, e alerta que distinguir entre o consciente e subconsciente é tarefa difícil, pois “não poucas vezes eles flutuam perto da superfície” (CARDOZO, 1978, p. 52).

Conclui, citando James Harvey ao dizer que “as nos-sas crenças e opiniões, assim como os nossos padrões de procedimento, vêm-nos insensivelmente como produto de nossa convivência com outros homens”. (CARDOZO, 1978, p. 156).

Constituem elementos subconscientes: instintos herda-dos, crenças tradicionais, convicções adquiridas, e a resul-tante é uma visão da vida, é essa resultante ou um sentido que pode dizer onde cairá a escolha (CARDOZO, 1978, p. 53).

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São, portanto, as ideologias, partes inerentes ao processo decisório, e antes ainda, a própria maneira de perceber o direito. Quando nos reportamos ao direito do trabalho, assim como qualquer outro ramo do direito poderia ser trabalhado numa perspectiva crítica, percebemos de antemão como o próprio conceito de trabalho é carregado de pré-compreen-sões.

Especificamente como objeto deste ensaio, tra-balhamos a hipótese de que a preferência ideológica pelo direito individual do trabalho ao direito coletivo é fruto dessas ilusões referenciais dos juristas, que se esteiam, por seu turno, como reflexos no direito da ideologia capitalista. A própria crise no mundo do trabalho pode ser vista como tendo sua gênese nessa própria crise da ideologia individualista que norteia o próprio direito em geral e também o direito do trabalho entendido como direito burguês porque visa “proteger” o trabalhador, mas também protege o pilar sagrado do mundo do trabalho que é a propriedade privada.

4 – A PREFERÊNCIA IDEOLÓGICA PELO DIREI-TO INDIVIDUAL DO TRABALHO AO DIREITO COLETIVO

A origem do direito do trabalho está associada às lutas de classe: proletário x capitalistas, de forma que a fonte deste ramo do direito está no que a doutrina identi-fica como o direito coletivo do trabalho. Contudo, a teoria dogmática jurídico-trabalhista não reconhece essa prima-zia, o estudo do trabalho quase exclusivamente se reduz aos institutos do direito individual do trabalho e assim

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na figura do operário, trabalhador subordinado, assim ao formular os princípios deste ramo do direito, deu pouca importância ao Direito Sindical (ANDRADE, 2008, p. 99, 102).

Esta percepção equívoca ratifica a concepção que toma como preguiça qualquer sinal ou ato de desestímulo, diga-mos, ao trabalho subordinado (ANDRADE, 2008, p. 113). Sentimento consagrado por Gonzaguinha na música Guer-reiro Menino: “e sem o seu trabalho/ um homem não tem honra/ e sem a sua honra/ se morre, se mata/ não dá pra ser feliz”.

Uma das justificativas para tal consciência teórica invertida está na supremacia ideológica do trabalho alienado10 sobre o trabalho livre em face do racionalismo instrumental a serviço da produção e do desenvolvimento econômico. Isso tudo se dá pelo papel ideológico que cumpre o direito: controle social e discurso de justifica-ção. O fato de juristas democratas poderem atuar dentro desse espaço não nega tal caráter do direito, antes pelo contrário.

Ainda apontamos como conseqüências desta visão cen-trada no trabalho alienado, e, também, por se tratarem de particularismos do Direito Individual e não, de fundamento de validade desse ramo do direito. a impossibilidade de considerar-se como princípios do Direito do Trabalho as variantes apresentadas pela sua clássica teoria geral (AN-DRADE, 2008, p.189).

10 Sobre tal alienação diz Marx que “o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupaçoes. A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital” (MARX, 2004, p. 81).

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5 – A TESE DE QUE OS PRINCÍPIOS REFLETEM A PREVALÊNCIA DO PARADIGMA INDIVIDUALIS-TA E QUE NÃO SERIAM MAIS QUE HERANÇA DE UM REFERENCIAL JUSNATURALISTA

A preponderância do paradigma individualista no direito do trabalho, como tratamos, tem uma íntima ligação como discutimos em torno da ideologia capitalista, que vai se de-senhar no enaltecimento do trabalho subordinado e alienado em detrimento do trabalho livre.

Tal visão de mundo deturpada e deturpadora tem identi-dade com as idéias jusnaturalistas, visto esta ser igualmente uma forma ideológica de evidenciar a tese de que o trabalho é sagrado e a propriedade é direito inerente.

Partimos da noção de que direito natural, tanto no sentido de princípios inatos ou a priori, da própria na-tureza, como se identificava na physis na antiguidade clássica, ou na natureza divina, com o jusnaturalismo teológico da idade média, ou ainda no sentido de direito inerente à razão como no jusnaturalismo antropológico ou racionalista, este direito natural estaria em todos os tempos e lugares, assim assumindo valores transcen-dentes e imutáveis.

Com a positivação crescente dos direitos, em especial pe-las Declarações de Direitos do século XVIII e da Declaração Universal dos Direitos Humanos do século XX, e em seguida, estes sendo positivados no âmbito interno dos respectivos ordenamentos jurídicos das sociedades, o juspositivismo promoveu uma positivação de valores fundamentais, de forma que “positivou o direito natural”, promovendo então o próprio enfraquecimento da dicotomia direito positivo x direito natural (FERRAZ JR, 2003, 171).

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Dessa forma, os princípios expressam alguns valores jusnaturalistas, com sua inerente vagueza, e caracteri-zados pela transcendência e imutabilidades de seus postulados, de modo que é valor “sagrado” o trabalho e a propriedade privada direito ontológico à natureza humana, como se sempre houvera existido. Aqui lem-bramos, para concluir, Rousseau que no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens diz que “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, cercando um terreno, teve a idéia de dizer, ‘este é meu’, e encontrou pessoas bastante ingênuas para acreditarem”(ROUSSEAU, 2002, p. 7). Neste mesmo sentido que a propriedade foi “criada”, também se criaram idéias para falar de trabalho, para legitimar concepções individualistas, para se exaltar princípios como o valor do trabalho e a dignidade da pes-soa humana que insertos no texto constitucional figuram como normas programáticas no sentido de prometerem um ideal que se perfaz na retórica.

6 – REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. “O ensaio como forma”. In: Cohn, Gabriel (org). Theodor Adorno. São Paulo: ática, 1986.

ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Princípios do direito do trabalho e seus fundamentos teórico-filosóficos: problematizando, refutando e deslocando o seu objeto. Recife, 2008, Prelo. (texto disponibilizado pelo autor em primeira mão para estudo e discussão na disciplina oferecida em 2007.2, PPGD/ UFPE).

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Uma crítica à ideologia jusnaturalista nos princípios constitucionais do direito do trabalho207

BARBOSA, Maria da Graça Bonança. O princípio fundamental do valor social do trabalho frente à livre iniciativa e sua possível concretização pelas decisões da justiça do trabalho. Disponível em < http://www.anamatra.org.br/hotsite/conamat06/trab_cientificos/teses/tese%20maria%20da%20gra%C3%A7a%20barbosa.doc>. Acesso em 09 fev. 2008.

CARDOZO, Benjamin. A Natureza do Processo Ju-dicial e A Evolução no Direito. Trad. Leda Boechat. 3.ed. Porto Alegre: AJURIS, 1978.

DELGADO, Maurício Godinho. Princípios constitucio-nais do trabalho. In: MANNRICH, Nelson (coord.). Revista do Direito do Trabalho. Ano 30. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr – jun, 2004.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. manual de in-trodução ao estudo do direito. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2003.

FERREIRA, Fernando Galvão de A. Realismo jurídico. In: Dicionário de filosofia do direito. Vicente de Paulo Barretto (org). São Leopoldo/ Rio de janeiro: Unisinos / Renovar, 2006.

LLOYD, Dennis. A idéia de lei. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Moraes, 1992.

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______. manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

______; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Centauro, 2005.

PINTO, Geraldo Augusto. A organização do trabalho no século 20: taylorismo, fordismo e toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

ROUSSEAU, Jean- Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: textos filosóficos. São Paulo: Paz e terra, 2002.

SOBOTA, Katharina. Não mencione a norma! Tradução João Maurício Adeodato. In: Anuário do Mestrado da Facul-dade de Direito do Recife. N. 7, Recife: UFPE, 1996.

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A PEC 233/08 E A PRETENSÃO DE MODIFICAÇÃO DOS “GRILHÕES DE

HERMES”1: A TENTATIVA DE ALOCAÇÃO, IMPRÓPRIA, DO IVA NO

LuGAR DO Icms1.

Luiz Edmundo Celso Borba2

REsumO

O presente texto objetiva a discussão acerca da natureza jurídica do ICMS, com base na Constituição Federal de 1988 e na Lei Complementar de No: 87/1996; no sentido de apre-sentar as características normativas deste tributo e de concei-tos a ele atrelados, como circulação, mercadoria, serviços, e as características próprias do federalismo fiscal, neste que é o imposto de maior incidência econômica no Brasil. Após

1 Quando me refiro aos “Grilhões de Hermes”, uso essa metáfora para demonstrar que, tanto o ICMS, quanto o seu, pretenso, substituto, o IVA, são tributos incidentes sobre o comércio e as comunicações; portanto seus limitadores, ao acarretarem custos, de ordem fiscal, a tais atividades. Vale a lembrança que, na Mitologia Grega, Hermes é o Deus protetor do comércio e das comunicações, portanto, tais tributos “de certa forma” estariam “limitando” os seus “poderes”, quase como se adotassem a forma de grilhões. Mais informações sobre a mitologia grega, dentre as inúmeras fontes existentes, estão disponibilizadas em: <http://www.suapesquisa.com/musi-cacultura/deuses_gregos.htm>, texto coletado em 16 de Julho de 2008.

2 Advogado; mestre e doutorando em Direito pela UFPE; professor-pesquisador membro dos grupos de pesquisa (Análise Retórica do Direito; e Pragmatismo) da Pós-Graduação em Direito – CNPQ/UFPE; professor da graduação e pós-graduação do Curso de Direito da FMN. Com Curriculum Lattes na página: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4736638U2>.

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a fixação destas bases, será debatida as alterações propostas pela PEC 233/88, diante da natureza e preceitos deste tribu-to, instituídas pela Magna Carta, em relação à validade das disposições da Reforma Tributária proposta.

Palavras-chave: PEC 233/08, IVA, ICMS, Reforma Tributária, e inconstitucionalidade.

AbsTRAcT

This paper aims to discuss the legal nature of the ICMS based on the Federal Constitution of 1988 and the Supple-mental Law No: 87/1996, to be characteristic of this normati-ve tribute to him and concepts coupled, as movement, goods, services, and the characteristics of the fiscal federalism, in that it is the duty of greater economic impact in Brazil. After the establishment of these bases, the proposed amendments will be debated by the PEC 233/88, given the nature and li-mits of this tax, imposed by the Constitution, in relation to the validity of the provisions of the Tax’s Reform Proposal.

Key words: PEC 233/08, IVA, ICMS, Tax’s Reform and inconstitutionality.

sumário: Introdução. 1. Bases constitucionais para a criação do ICMS e suas características formais. 2. A merca-doria. 3. Os serviços. 4. A proposta do, federal, IVA trazida pela PEC 233/08. Considerações finais. (Referências.)

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INTRODUÇÃO

A intenção do Autor, no presente texto, reside na caracte-rização da natureza jurídica do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ressalvando que os últimos são exclu-sivamente concernentes ao transporte interestadual, intermuni-cipal e para o setor de comunicações) como a fonte principal de aquisição de receita para os estados membros da República Federativa Brasileira e do Distrito Federal, conforme previsão do Texto Maior em sua regra de conduta de tombo 155, II; bem como o bojo da Lei Complementar de nº. 87/1996, nos seus artigos 1º, 2º, e sucessivos (BALEEI-RO, 1996, p. 218).

Ressalte-se o fato do Icms viabilizar a autonomia e independência financeira dos estados membros e do Distrito Federal, inclusive com suporte nos princípios da autonomia e do federalismo instituídos como “certos” pelo Artigo 3º da Lex Mater (SILVA, 1998, p. 479-483, 589-687), algo que torna difícil, senão impossível, com base na Carta Magna, a criação do IVA (Imposto sobre o valor adicionado ou agre-gado) pretendido pelo Poder Executivo Federal, diante das propostas da mini reforma tributária.3

O Icms gera a necessidade de entendimento da sua materialidade e características dispostas no texto constitu-cional, diante da sua importância, como mencionado, para a autonomia político-administrativa dos estados membros da Federação Brasileira e o Distrito Federal garantindo o prin-

3 Dentre as propostas para alteração do Sistema de Tributação Nacional, através da “famigerada” (em termos de inconstitucional) reforma tributária, a principal modificação reside na mudança da competência e titularidade tributárias sobre a circulação de mercadorias dos Estados e do DF para a União, porém tal pos-tura termina por quebrar o pacto federativo e a inegável autonomia financeira que cada Pessoa Jurídica de Direito Público Interno necessita. Portanto, a justificativa de tentar se evitar a “guerra fiscal” entre os estados membros da federação não deve prosperar, caso contrário a base de nossa administração pública e sua estrutura seriam dilaceradas.

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cípio constitucional da isonomia das pessoas constitucionais (BORGES, 1975).

E como o Icms tem um grande impacto na economia e nas finanças brasileiras, o legislador constitucional, pru-dentemente, dedicou-lhe especial atenção, a ponto de ser o imposto com maior número de disposições sobre a sua instituição (mais de 25 regras); tal característica, por si só, habilita-nos a um estudo mais próximo da Carta Magna (GRECO e LORENZO, 2001, p. 529).

Há, contudo, outros veículos normativos lidando com o Icms, no âmbito federal, com destaque à Lei Complementar de nº: 87/1996, assim como as leis complementares: 92/1997, 99/1999 e 102/2000 por trazerem inovações à primeira e estas serão analisadas, quando oportuno, com o intuito de demonstrar a efetivação, infraconstitucional, dos preceitos da Magna Carta.

Será ponderada, em sucessivo, a viabilidade da mini-reforma tributária, tramitando no Congresso Nacional, por iniciativa do Executivo Federal Brasileiro, com o afã de evi-tar guerras fiscais e a instabilidade política e administrativa decorrentes.

A opção do trabalho se restringir ao estudo cons-titucional do Icms, dá-se por questões óbvias, pois o cerne da presente pesquisa está em discutir as bases e princípios deste imposto e a sua conseqüente aplicabili-dade ao comércio; sendo, o Texto Constitucional, mais do que satisfatório para tal intento, sem, no entanto, não estar descartada a possibilidade de uso destas normas, emendando o texto da Carta Magna, quando viável, já que tais alterações se tornarão a própria Carta Política, após aprovação.

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1. BASES CONSTITUCIONAIS PARA A CRIAÇÃO DO ICMS E SUAS CARACTERÍSTICAS FORMAIS

O Icms é o antigo Icm, porém bastante modificado e alterado pela Constituição Federal de 1988, após o acrésci-mo, principalmente, dos serviços (transporte interestadual, intermunicipal e comunicações), mesmo quando tais fatos geradores se iniciam no exterior, ainda que sejam bens des-tinados a integralizar o ativo fixo de uma pessoa jurídica (HARADA, 2002, p384).

E esta previsão genérica do Icms é encontrada no artigo 155, II da Constituição Federal de 1988, quando se dispõe:

“[…] compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: … operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal de comunicação, ainda que as operações se iniciem no exterior […]”

Estas operações, segundo Geraldo Ataliba e Cléber Giardino podem ser entendidas assim:

“[…] Operações são atos jurídicos; atos regulados pelo direito como produtores de determinada eficácia jurídica; são atos juridicamente relevantes; circulação e mercadorias são, nesse sentido, adjetivos que res-tringem o conceito substantivo de operações […][…] Os autores que vêm no ICM um imposto sobre circulação ou sobre mercadorias estão ignorando a Constituição; estão deslocando o cerne da hipótese de incidência do tributo, da operação […]” (ATALIBA e GIARDINO, s/d, p. 105 e 106)

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Desta maneira os autores tentam alertar para o imperioso cuidado à expressão operação, pois ela envolve a negociação devida4 entre duas ou mais partes, podendo se apresentar em diversos ciclos obrigacionais autônomos, gerando a produção de efeitos jurídicos entre o(s) sujeito(s) passivo(s) e o ativo de uma obrigação tributária; e caso não se verifique tais pressupostos haverá desatenção à hipótese de incidência do Icms, e consoante ao princípio da tipologia tributária, inexistirá subsunção e, consecutivamente, o fato gerador de uma admissível obrigação tributária.

Neste sentido, ponderem-se os seguintes apontamentos de José Souto Maior Borges: 5

“[…] O ICM incide sobre a circulação de mercado-rias e as tributa, conforme ensinou Rubens Gomes de Sousa, como um fato econômico unitário, embora complexo, porque desenvolvido por estágios suces-sivos desde o produtor originário até o consumidor final.Todavia, o fato econômico bruto da circulação de mercadorias não é tributado pelo ICM senão como a “deformação” operada pela regra jurídica, que incide não sobre a circulação em si, mas sobre as ‘operações’ a ela relativas e mediante as quais essa circulação econômica se processa […]” (1975, p. 157)

4 No sentido de adequadas às disposições do ordenamento jurídico, portanto incidentes sobre condutas empresariais, envolvendo a atividade de fornece-dores/produtores de bens e serviços e os seus compradores ou consumidores, estes últimos tratados e definidos pelo CDC.

5 Meu orientador no mestrado em Direito da UFPE, responsável pela “ruptura” das minhas perspectivas puramente dogmáticas, diante da necessidade de não tornar o Direito um círculo fechado, pois o conhecimento deve ser holístico, algo que propicia a filosofia e outras áreas cognoscitivas, em seus mais variados ramos.

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Assim, a operação mencionada não implica na mera existência da circulação de mercadorias ou prestação de serviços, há o imperativo tratamento e tipificação legal de quais produtos ou atividades serão tributados, até por que o Icms é caracteristicamente seletivo, ante os ditames do inciso III, do parágrafo 2º do Artigo 155 da Constituição Federal vigente, conforme será mais bem explanado adiante.

Complementando o raciocínio aqui exponsado:

“[…] Operações, no contexto, exprime o sentido de atos ou negócios hábeis para provocar a circulação de mercadorias. Adquire, neste momento, a acepção de toda e qualquer atividade, regulada pelo Direito, e que tenha a virtude de realizar aquele evento […][…] soa estranho, por isso mesmo, que muitos con-tinuem a negar ao vocábulo ‘operações’ a largueza semântica peculiar das ‘operações jurídicas’ para entende-lo como qualquer ato material que anime a circulação de mercadorias. Eis aqui o efeito jurídico sem a correspondente causa jurídica, a eficácia do Di-reito desvinculada de algo investido de juridicidade.” (CARVALHO apud MELO, 2003, p. 14)

Entendida a necessidade de observar os parâmetros do termo “operação”, passemos à análise dos demais elementos essenciais do ICMS. Roque Antônio Carraza, ao se mani-festar sobre a capacidade tributária ativa relacionada a este imposto, leciona:

“[…] Percebemos, assim, com facilidade, que o ICMS é um imposto de competência estadual e dis-

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trital. Os Estados e o Distrito Federal, mediante lei ordinária podem instituí-lo (ou sobre ele dispor).

Mas, é sempre bom, lembrarmos que a União tam-bém está credenciada a criar o imposto, por força do que estabelecem os artigos 147 e 154, II, ambos da Constituição Federal. De fato, é esta pessoa política que poderá fazer nascer, ‘in abstracto’ (no plano le-gislativo), o ICMS, seja nos Territórios (se voltarem a ser citados, já que, no momento, inexistem), seja em todo o território nacional, ‘na iminência ou no caso de guerra externa’. São duas hipóteses excepciona-líssimas, é certo, mas que não infirmam a assertiva de que a União também desfruta de competência legislativa para criar o ICMS.” (CARVALHO apud MELO, 2003, p. 14)

Como dito por ele, a titularidade ativa da União só se justifica em casos raríssimos e que demandem celeridade na instituição do Icms, ante a inarredável urgência e cogência desta situação de guerra, de ameaça à soberania nacional ou de um país aliado. Restando claro o fato destas hipóteses específicas de incidência ficarem ao largo do presente tra-balho, por restrições limitativas (metodológicas) claras, não se duvidando de um tratamento em outro trabalho de cunho mais direcionado, diante da especificidade da matéria.

Passando para o próximo passo, a circulação de merca-dorias compreende na tradição de um bem de uma pessoa para outrem, havendo neste decurso a previsão legal deste comportamento em uma hipótese de incidência legítima, e tipificada de forma clara e harmoniosa com o ordenamento jurídico em vigor, no sentido de demonstrar a mudança de titularidade patrimonial entre as partes envolvidas.

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Essa circulação poderá se dar de forma reiterada, caso em que deverá ser afastada a cumulatividade do Icms, com o fito de evitar a bitributação e/ou o bis in idem (este no caso do sujeito ativo tributar em duplicidade o mesmo bem, ainda que em etapas diversas e sobre valores já lançados).

A mercadoria, outro importante aspecto para o Icms, tem sua conceituação no direito mercantil, e será melhor es-miuçada no próximo item, significando um produto, serviço ou bem, ao qual um indivíduo venha a vender ou revender com o objetivo de lucro.

Então, o aspecto temporal é de sumária relevância, havendo a necessidade de fixação do momento da saída da mercadoria do estabelecimento de um determinado sujeito passivo, observando a seguinte lição de José Eduardo Soares de Melo:

“A ‘saída’ – eleita pelo legislador como elemento do fato gerador (Lei Complementar nº 87/96 – art. 12, I) – compreende o aspecto de tempo previsto na norma, uma vez que os fatos imponíveis ocorrem em um determinado momento, porque, nesse instante, nasce o direito subjetivo para a pessoa de direito pú-blico e, correlatamente, uma obrigação para o sujeito passivo.” (2003, p. 21)

Em outras palavras, a saída é o elemento temporal do fato gerador, havendo a correta apuração dos fatos e adequação à hipótese de incidência prevista, deslanchando no fenômeno conhecido como subsunção. Assim, a hipótese de incidência tem aspecto fundamental e para tanto o operador jurídico ha-verá de se vincular ao tipo previsto pela norma e os ponderar de acordo com cada situação, concomitantemente, com os princípios da anterioridade e irretroatividade.

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O exato momento da saída deverá estar, destarte, pre-visto na hipótese legal de incidência, inclusive de forma a tentar afastar interpretações extensivas, com impossível ocorrência na seara tributária por ficarem fora das bases principiológicas constitucionais, ao diferirem das garan-tias pétreas da vinculabilidade (afastamento de posturas interpretativas discricionárias em razão tributária) e da tipologia (as características aplicáveis ao caso concreto são aquelas descritas no tipo tributário, na norma, em coordenação com o princípio da estrita legalidade), não se deve olvidar.

Neste sentido leciona Paulo de Barros Carvalho:

“Compreendemos o critério temporal da hipótese tributária como o grupo de indicações, contidas no suposto da regras, e que nos oferecem elementos para saber, com exatidão, em que preciso instante acontece o fato descrito, passando a existir o liame jurídico que amarra devedor e credor, em função de um objeto – o pagamento certo da prestação pecuniária […][…] O marco de tempo deve assinalar o surgimento de um direito subjetivo para o Estado (no sentido amplo) e de um dever jurídico para o sujeito passivo. Exacerbando a observação desse fenômeno, porém, os estudiosos, os legisladores e os jurisprudentes passaram a dar o nome de fato gerador dos impostos justamente ao critério temporal estabelecido na lei para cada um, o que muito contribui para o desalinho teórico formado em derredor de gravames como o IPI e o ICMS, cuja consistência material sempre experimentou profundas divergências conceptuais.” (2002, p. 257 e 258.)

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Assim a saída é o marco temporal necessário para a geração da obrigação tributária, envolvendo o responsável pelo pagamento do Icms, razão de ser desta, e o sujeito ativo de tal enlace obrigacional, dotado do poder-dever de arrecadar o tributo, por força do princípio da vinculabilidade aos ditames normativos, razão de ser de todo este complexo e intrincado ciclo intersubjetivo. E tais ponderações revelam, claramente, uma ação econômica.

A saída, destarte, implica na “retirada” do bem de dentro dos limites físicos do estabelecimento, mas sempre devendo haver o fenômeno econômico, existindo a clara evidência da prática mercantil. Sim, pois é característica de todo e qual-quer tributo, a ser cobrado sobre o patrimônio, a conseqüente riqueza implicada ao devedor tributário, ao sujeito passivo de uma obrigação tributária; caso contrário não haveria conduta tributária típica. Muito embora, os Fiscos estaduais venham trabalhando com “suposições” de circulação e até mesmo dos valores envolvidos, a exemplo das antecipações e das pautas tributárias. Condutas manifestamente ilídimas e inconstitucionais, mas costumeiras.

Não seria correto, como explicita Roque Antônio Carraza (2003, p. 44), cobrar o Icms quando a mercadoria “sair” do estabelecimento por causa de um roubo, de um incêndio, uma enchente, etc. Assim, a saída da mercadoria, efetivamente, passa ao largo de um conceito simplório de movimentação geográfica do bem, por ter de se correlacionar com fatores econômicos, patrimoniais, atrelados ao trato mercantil e por tal motivo o controle da produção deve ser estadual e não federal, dando melhores condições de fomento tributário-econômico (incentivos) ou o contrário, sem se ferir o artigo 151, I da Constituição Federal de 1988.6

6 Esse é o conhecido princípio constitucional-tributário da uniformidade geográfica, um dos corolários da isonomia tributária.

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Observados os ditames do artigo 155 e o inciso II da Car-ta Magna vigente, não há como não mencionar o parágrafo segundo e incisos desta mesma pauta de conduta, pois estes dispositivos continuam a demonstrar as bases e caracteres do Icms. Por isto passo a analisar cada um destes incisos, com o intuito, não de encerrar a matéria e seus extensos vieses, mas de municiar os conhecimentos mínimos e imperiosos, todavia sendo subsídios aptos, ao entendimento das características e natureza jurídica do Icms; bem como e a viabilidade de sua aplicação prática.

O inciso I traz uma das mais importantes características do Icms, a não-cumulatividade, possibilitando a com-pensação dos valores já pagos em relação a este imposto, em suas fases anteriores de produção, venda e revenda, de forma a se preservar a capacidade contributiva do sujeito passivo e evitar a bitributação e o bis in idem, sobre um fato gerador que já havia ocasionado uma obrigação tributária, com seu respectivo crédito tributário já liquidado através de lançamento (BORGES, 1975, p. 158 e 159).

Faz-se oportuna a menção do seguinte excerto, produ-zido por Marco Aurélio Greco e por Anna Paola Zonari de Lorenzo (2001, p. 547):

Para controle do atendimento à não-cumulatividade, isto é, para se saber se houve a violação de tal exigên-cia, o modo mais simples é aplicar a regra segundo a qual o imposto total (somados os recolhimentos efetuados em todas as etapas do ciclo) não pode ser maior que a multiplicação da alíquota aplicável pelo valor da última operação do ciclo econômico (ao consumidor final). Se o resultado apurado ultrapassar aquele valor, em alguma etapa do ciclo houve cumu-lação do imposto, vale dizer, foi recolhido imposto maior que o devido.

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O inciso II, continuando no método retrotranscrito para este trabalho, aparece de forma suplementar ao inciso an-terior, impondo a inviabilidade da compensação de valores, para a extinção parcial do crédito tributário, em casos onde a mercadoria, em fases anteriores de produção e/ou bene-ficiamento, tenha sido agraciada com a isenção ou a não-incidência, acarretando, inclusive, na anulação do crédito a ser compensado em operações antecessoras e não isentas, ou seja créditos anteriores.

Ora, tal inciso se apresenta como um contra-senso ao disposto no primeiro inciso, até por que foge a característica maior do Icms que é a não-cumulatividade. E sobre este conteúdo Kiyoshi Harada dispõe:

Este inciso é uma reprodução do texto da EC nº 23, de 1º-12-1983, que foi aprovada com o fito de esvaziar as decisões da Corte Suprema em sentido contrário, isto é, permitindo o crédito nestas situações: RTJ, 99:661 e 1208, 100:197, 102:195 e 868, 117:767. Entretanto, esse inciso deverá ser interpretado com restrição. A legislação ordinária, ao implementar esse dispositivo constitucional, não poderá ferir o princípio maior e basilar do ICMS que é o da não-cumulatividade. Havendo isenção ou não-incidência legalmente qua-lificada, de permeio, na quarta etapa de circulação da mercadoria, por exemplo, poderá a lei exigir o estorno de créditos correspondentes à terceira etapa, bem como coibir o crédito na etapa posterior, ou seja, na quinta etapa. Não poderá abranger todas as etapas anteriores à isenção, nem todas as etapas subseqüentes à isenção ou não-incidência, sob pena de se produzirem cumu-latividades por comportas e barragens, aumentando a arrecadação do imposto, pelo emprego do instituto da

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isenção, invertendo o efeito que lhe é próprio. (2002, p. 384 e 385)

Passando ao inciso III, do parágrafo 2º do Artigo 155 da Carta Política Nacional, traz-se a característica da seletivi-dade ao Icms, conferindo ao legislador a possibilidade de selecionar as mercadorias e os serviços previstos na hipótese de incidência deste imposto, de acordo com a sua essencia-lidade, conferindo-lhes diferentes alíquotas.

É graças à seletividade que os Estados e o Distrito Fede-ral, obedecendo aos limites impositivos da Lei Complementar de nº: 87/96, podem ter um determinado controle sobre a economia, onerando ou desonerando uma determinada espé-cie de bem ou serviço. Assim, o Icms é um tributo que não possui, via de regra, alíquotas uniformes ao se possibilitar, salvo as exceções do inciso IV do parágrafo 2º do Artigo 155 da Constituição Federal, a graduação de alíquotas.

Assim, o inciso IV é uma complementação ao inciso III, por falar da necessidade de haver resoluções do Senado Federal para o estabelecimento de alíquotas aplicáveis às operações e prestações interestaduais e de exportação, com o fito maior de evitar a “guerra fiscal” entre os estados mem-bros da federação, bem como o Distrito Federal, garantindo a, mencionada, isonomia entre as pessoas constitucionais.

Tenta-se uma uniformização de alíquotas garantindo uma “certa” isonomia entre os sujeitos ativos do Icms, assim como o faz o inciso V, neste caso, para valores mínimos e máximos das alíquotas instituídas para as operações internas. Isto porque o Icms, mesmo sendo um imposto estadual e do Distrito Federal, desencadeia seus efeitos em todo o terri-tório nacional, por ser, indiscutivelmente, o tributo de maior incidência no Brasil. Daí a tentativa de implementação do

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IVA, até justificável “na prática”, mas dificilmente aceitável pelo Texto Constitucional e suas cláusulas pétreas.

Por seu turno, o inciso VI trata, ainda, sobre a questão de preservação do equilíbrio fiscal entre os possíveis sujeitos ativos do Icms, através da estipulação da inviabilidade da instituição de alíquotas internas superiores àquelas previstas para as operações interestaduais.

O inciso VII guarda especial relevância ao presente tra-balho, no tangente ao comércio eletrônico-digital, ao dispor que nas relações onde as mercadorias ou serviços tenham consumidor final localizado em outros estados membros da federação, portanto envolvendo um outro sujeito ativo.

Deve-se observar, contudo, a caracterização dos elemen-tos de uma obrigação tributária, como: sujeito ativo, sujeito passivo (estes dois pólos subjetivos, de forma indubitável, devem estar identificados e qualificados), causa (lei) e o objeto (prestação positiva ou negativa fruto de uma hipótese de incidência prevista em lei). (MARTINS, 2003, pp. 149 e 150)

Nestes casos, obedecendo-se ao inciso VIII, o valor re-lativo à diferença entre os estados ou o Distrito Federal, com alíquotas dessemelhantes, caberá ao sujeito ativo que adote a alíquota maior, obviamente, o destinatário da mercadoria ou serviço. Bem lembra Kiyoshi Harada (2002, pp. 383 e 384): “A distinção havia sido julgada inconstitucional pelo STF. Para mantê-la, foi promulgada a EC nº: 23/83 que foi incorporada ao texto na Constituição de 1988.”

Continuando na caracterização deste importante tribu-to para os estados e o Distrito Federal, o inciso IX, na sua alínea “a”, instituía a incidência do Icms sobre a entrada de mercadoria importada, mesmo esta tendo sido adquirida

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para integralizar o ativo fixo da empresa destinatária final do bem.

A alínea “b” deste inciso atesta a incidência do Icms sobre o valor total da operação, quando as mercadorias fossem fornecidas concomitantemente com serviços não previstos pela legislação tributária municipal, o que se revela controverso por haver um alargamento da hipótese de incidência deste tributo, contrariando os princípios da vinculabilidade, tipologia e estrita-legalidade, além de que há o ingresso do Estado em uma competência tribu-tária que não pode ser delegada, ante a inviabilidade de tal procedimento, por força do Artigo 7º do CTN e dos artigos (145 a 162) da Constituição Federal de 1988, que compõem o título II do capítulo VI: Sistema Tributário Nacional.

Voltando à questão da importação de mercadorias pre-vista no inciso IX, há de se repassar os seguintes excertos laborados por Kiyoshi Harada:

Segundo a jurisprudência pacífica de nossos tribu-nais, o fato gerador ocorre na entrada da mercadoria no estabelecimento do importador e não no desem-baraço aduaneiro, como prescrevem as legislações estaduais. Ver Súmula 577 do STF.Bem de consumo ou aquele integrante do ativo fixo não caracteriza mercadoria, pelo que a Suprema Corte havia decidido pela inconstitucionalidade da exigência do imposto, o que resultou na EC nº: 23/83, incorporada ao texto da Constituição atual. Todavia, o STF decidiu que esse inciso IX não se aplica às operações de importação de bens realizadas por pessoa jurídica, para utilização em exames radiológicos. (RE 185.789-SP, Rel. Min,

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Ilmar Galvão, Boletim Informativo STF, nº: 176. No mesmo sentido: RE 203.075, DJU de 29-10-99). (2002, p. 385)

Não bastando tais incongruências e despautérios, os pro-blemas foram, ainda mais, alargados pela Emenda Constitu-cional de nº: 33/2001, tendo o inciso IX, alínea “a”, recebido a atual redação:7

a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço.

Prosseguindo, no inciso X fica instituída a imunidade do Icms para a exportação de produtos industrializados, ex-cluídos os semi-elaborados definidos por lei complementar, no caso a de nº: 65/1991, bem como para as operações que destinem a outros estados: petróleo (inclusive lubrificantes), combustíveis líquidos e gasosos deles derivados; e energia elétrica, embora os estados venham tentando burlar tal dis-positivo, através da celebração de convênios, mesmo que inconstitucionais e ferindo aos princípios da vinculabilidade, tipologia e estrita-legalidade.

7 Este é um sério problema acometendo o ordenamento brasileiro, pois quando normas são consideradas inconstitucionais, há fortes pressões políticas para se alterar a Carta Magna, mesmo quando tal tarefa é impossível e municia a paulatina destruição da ordem jurídica posta, provocando perigosas máculas à segurança jurídica do cidadão no Estado, que sequer cumpre as pautas de conduta por ele criadas.

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Vinculabilidade, posto que a conduta do sujeito ativo de uma obrigação tributária tem de estar atrelada ao orde-namento jurídico, não se visualizando isso em tais casos. Tipologia, ou tipicidade, tributária, por se ferir o comando normativo maior, a Carta Política Brasileira, ao se aumentar o espectro das hipóteses de incidência, através de convênios, vilipendiando o princípio maior da estrita-legalidade, por ser, só a lei, o instrumento inovador no âmbito tributário, devendo provir do legislativo, salvo raras exceções previstas na Carta Magna, nas quais não se adequam os convênios.

Voltando ao assunto a medida normativa conferindo imunidade para o Icms de bens a serem exportados, tem a louvável visão de facilitar a exploração e evitar a bitributa-ção, pois certamente o país destinatário de tais bens tributará esta mercadoria, bem ou serviço, com o intuito de proteger o seu mercado nacional, ás vezes com carga superior à casual naquele país, internamente, em um exercício próprio do Direito Econômico.

Não seria correto adotar outra postura senão a da alínea “a” do inciso X do parágrafo 2º do Artigo 155 da Carta Magna, alterada pela Emenda Constitucional nº: 42/2003, para evitar o problema e assegurar a devida compensação do montante já pago anteriormente.

Há também o acréscimo da alínea “d” a este inciso, atra-vés da Emenda Constitucional de nº: 42/2003, no que tange às prestações de serviços de comunicações nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita.

O inciso XI trabalha na exclusão da base de cálculo do Icms do valor do imposto sobre produtos industrializados, quando uma operação for realizada e esta for suficiente para caracterizar o fato gerador para estes dois impostos. Claro,

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pois caso contrário o sujeito passivo seria ainda mais onerado, bitributado acima de sua capacidade contributiva, arcando com um cálculo do Icms acima do valor do IPI, ou seja, pagando tributo sobre tributo, algo inadmissível.

Por fim, o último inciso do parágrafo 2º do Artigo 155 da Carta Magna, institui o comando de ser da competência legislativa de uma Lei complementar: a) definir os contri-buintes do Icms (neste caso diria ser mais conveniente o uso do sujeito passivo, por haver a responsabilidade tributária indireta, na maioria dos casos incidentes); b) dispor sobre a substituição tributária; c) disciplinar a forma adequada para a compensação deste imposto;8 d) fixar para efeito de cons-tituição e arrecadação do crédito tributário, a definição de estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços;9 e) afastar a incidência do Icms, nas exportações de produtos e serviços além dos citados no inciso X alínea “a”; f) a previsão nas hipóteses de incidência de casos para a manutenção do

8 Sobre este assunto, Kiyoshi Harada (2002, p. 386), na nota de Rodapé de nº: 130, informa: “Atribui-se ao legislador eqüidistante a tarefa de instituir o regime de compensação de impostos entre os Estados que, se implementado, poderá minimizar os inúmeros problemas decorrentes de efeitos econômico-financeiros deste imposto,que ultrapassam as fronteiras estaduais. Em razão do princípio da não-cumulatividade, este imposto ficaria melhor se inserido no âmbito da competência da União.”

9 Elemento, também, essencial à presente pesquisa, pois inexiste uma previ-são em Lei Complementar de “fixação do lugar” do início da operação no ambiente virtual, algo que é impossível em termos práticos, por que os meios eletromagnéticos são extremamente cinéticos, mas deveria, ao menos, ser convencionado, mas, ainda infelizmente, não o foi, tornando inconstitucional a incidência do Icms. Ressalto que abordei esta matéria em artigo específico no volume anterior desta revista.

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crédito tributário, relativamente à remessa para outro Estado e exportação de serviços e mercadoria; g) regular a forma como, mediante deliberações dos estados e do Distrito Fede-ral, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e/ou revogados, segundo os princípios da estrita-legalidade, vinculabilidade e tipologia; h) esta alínea foi trazida ao texto constitucional pela Emenda de nº: 33/2001, fazendo necessá-ria a definição, em Lei Complementar, de quais combustíveis e lubrificantes incidirá o Icms, uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, independente dos postulados do inciso X, alínea “b”;10 i) a Emenda Constitucional de nº: 33/2001, por fim, a fixação da base de cálculo de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de um bem, mercadoria ou serviço.

Por estas e outras razões o ICMS desempenha o papel de um dos tributos mais complexos do Sistema Tributário Nacional, pois na prática os titulares deste imposto, seus sujeitos ativos, tendem a desrespeitar o texto constitucional com o objetivo de aumentar a sua incidência, gerando uma série de impropérios do tipo dos aqui apresentados, e que se repetem, agora, no comércio eletrônico-digital, como será visto no 11º capítulo do presente trabalho.

A sua operacionalização é complicada porque não en-volve apenas os interesses dos estados e do Distrito Federal, mas também da União, responsabilizada pelo equilíbrio fiscal entre os possíveis sujeitos ativos do Icms, através

10 Este inciso, em várias alíneas, revela um desconcertante contra-senso e a Emenda Constitucional, por si só, ante ao choque evidente ao texto da Magna Carta, mostra-se inconstitucional, ainda que existam alterações nela através do mecanismo “adequado”, não há como se aquilatar modificações relativas às cláusulas pétreas, como as que definem e especificam a natureza e caracterís-ticas do Icms, por ser este um acordo que assegura a autonomia e indepen-dência dos Estados e do D.F., bem como compõe os direitos fundamentais do contribuinte, intocáveis.

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da elaboração de Lei Complementar, quando necessário, e as pressões políticas são tremendas, por tal conta, pondo o direito muitas vezes de lado.

Sobre o tema se manifesta, em igual sentido, Kiyoshi Harada:

O ICMS, atualmente, é um dos tributos mais com-plexos, complicados e de difícil operacionalização. Com o advento da Lei Complementar referida no art. 155, § 2º, inciso XII, da CF, era de esperar que fosse regulamentada ‘a forma como, mediante deli-beração dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados’, como manda a Carta Magna. (Art. 155, § 2º, XII, g.)Todavia, Lei Complementar nº: 87, de 13-9-1996, editada com fulcro na disposição constitucional retro apontada omitiu-se completamente sobre o assunto em razão dos vetos opostos pelo Executivo, talvez, por pressões de governo estaduais. Dessa forma, continua regendo a matéria a Lei Complementar nº 24, de 7-1-1975, que permite aos Estados integrantes da mesma região geoeconômica, sob os discutíveis auspícios do Confaz – poderoso órgão da União – celebrar convênios através de seus Secretários, para serem ratificados por decretos do Executivo e não pelo Legislativo, como deveria ser.Além de não disciplinar matéria de sua competência, essa Lei Complementar nº 87/96 veio promover a federalização do ICMS como que antecipando a Reforma Tributária, em tramitação no Congresso Nacional. Tanto é que, em troca da desoneração fis-cal nas operações e serviços destinados ao exterior,

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o art. 31 prevê pela União, até o ano 2002, [Não sabemos a razão desse limite com possibilidade de se estender até o ano de 2006 (§ 4º do art. 31). É provável que os legisladores tenham previsto, até lá a elaboração de um novo pacto federativo em matéria de discriminação de rendas tributárias.], recursos esses a serem apurados com base na efetiva arrecadação do ICMS no período de julho de 1995 a julho de 1996.Por conta dessas transferências, a União ficou auto-rizada a emitir títulos da dívida pública, sem maio-res restrições que não sejam aquelas referentes às condições e aos limites globais fixados pelo Senado Federal, além de buscar outras fontes de recursos. Isso é bastante preocupante. Emissão de títulos vinculados, entre nós, é sinônimo de desvio e novas fontes de recursos, normalmente, acaba implicando criação de novo tributo.Essa Lei Complementar, aprovada de afogadilho, embora necessária do ponto de vista econômico, contém inúmeras inconstitucionalidades. (2002, pp. 387 e 388)

Infelizmente, muitas vezes, procedimentos temerários são tomados no sentido de aumentar o alcance das hipóteses de incidência existentes, e o mais preocupante é quando se tornam regra no nosso País, ainda que se revelem inconsti-tucionais ou abusivos em relação aos direitos fundamentais dos contribuintes. Tal procedimento vem se avolumando, execravelmente, em especial quando observada a postura dos fiscos estaduais e distrital em correlação com o comércio eletrônico-digital.

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Trazidos ao presente texto os elementos necessários à com-preensão do Icms, faz-se oportuna, ainda que em um breve estudo, a análise dos termos: mercadoria e prestação de serviços, em decorrência da aplicação do Icms no mercado pátrio.

2 – A MERCADORIA

A mercadoria desempenha um relevante papel para a aplicação do Icms, por conta da operação relativa à sua circulação, sem haver o esquecimento dos serviços, que não serão alvo da presente abordagem, por uma questão metodológica, mas não se descarta o seu tratamento futuro, em outros trabalhos. Para tanto será conceituada a mercadoria, assim como haverá a definição de suas características, e um escorço da viabilidade, ou não, da aplicação de tais preceitos no âmbito do comércio eletrônico-digital.

A mercadoria é um bem móvel sujeito à prática mercan-til cíclica, constituindo seu maior objeto; para sua análise e estudo há o dever de obediência aos ditames da legislação mercantil, observando a destinação do móvel, relativa à ven-da e revenda com o objetivo de auferir lucros (CARRAZA, 2003, pp. 40 e 41). Só após se estar ciente da destinação do bem, será possível determinar se o mesmo é, ou não, mercadoria.

Há a necessidade de atenção a tais comandos, para se evitar a confusão dos bens considerados como mercadorias, em relação aos demais. Para tanto o operador do direito haverá de utilizar as definições próprias do direito civil e do direito comercial, diante dos desígnios do Artigo 110 do CTN, marco impeditivo de possíveis alterações ao conteúdo

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e alcance de institutos próprios de outros ramos do direito, em especial de direito privado. (GRECO e LORENZO, 2001, p. 535)

Desta maneira, o conceito de mercadoria se atrela, por força do tipo previsto no regime jurídico em vigor, à inar-redável finalidade de compra e venda, sendo mais restrito o seu conceito, do que o dos demais bens, por ser apenas uma espécie deste gênero. O Icms, então, foi pensado pelo constituinte, indubitavelmente, como tendo um fato gerador haurido por uma transmissão mercantil, hipoteticamente prevista.

Para o Icms o termo mercadoria terminará se atrelando aos conceitos de: operação, circulação, prática mercantil e lucro (como fenômeno econômico), tendo por base a revenda, tanto que saindo da circulação, não mais poderá ser conside-rado com mercadoria (MELO, 2003, p. 19). Corroborando com as afirmações acima:

A confirmação de que um bem integrado ao ativo deixa de ser mercadoria para fins de incidência do ICMS está no art. 21 da Lei Complementar n. 87/96, que na sua redação original determinava o estorno parcial do crédito utilizado quando da sua aquisição, se, em determinado prazo, ele vier a ser objeto de um dos eventos ali enumerados, e na redação dada pela Lei Complementar 102/2000, prevê o creditamento paralelo à razão de 1/48 avos ao mês. Se há obrigação de estorno do crédito fracionado, é porque a operação subseqüente (p. ex. alienação do bem do ativo) não está sujeita ao ICMS, pois, se estivesse, o creditamen-to integral e a sua manutenção plena seriam de rigor por força da regra da não-cumulatividade. (GRECO e LORENZO, 2001, p. 536)

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Carvalho de Mendonça traz uma diferenciação e con-ceituação das várias fases pelas quais passa o bem móvel (quando considerado mercadoria):

as coisas quando objeto de atividade mercantil, por outra quando objeto de troca de ‘circulação econô-mica’ tomam o nome de mercadorias. Commercium quasi commutatio mercium. A coisa, enquanto se acha na disponibilidade do industrial, que a produz, chama-se produto, manufato ou artefato; passa a ser mercadoria logo que é objeto de comércio do produ-tor ou do comerciante por grosso ou a retalho, que a adquire para revender a outro comerciante ou ao consumidor, deixa de ser mercadoria logo que sai da circulação comercial e se acha no poder ou proprie-dade do consumidor. (MELO, 2003, p. 17)

Há, então, a problemática de se adequar o conceito de mercadoria às novas vertentes comerciais existentes, entre elas o comércio eletrônico-digital, até porque elas não foram pensadas pelo legislador constituinte de 1988, por não existir no País, tal prática comercial à época, como elucida José Eduardo Soares de Melo:

O download (transporte de arquivos da Internet para outro computador, ou transferência de dados de um micro para outro micro, como é o caso de forneci-mento de produtos, bens e serviços de diversificada natureza – passagens aéreas, publicidade, leilões, banco-eletrônico, consultorias, files revistas, músicas, etc.) também não caracteriza ‘mercadoria’. Na web (área multimídia da internet) é possível a realização de serviços centralizadores (as informações são bai-

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xadas pelo provedor para o usuário), ou possibilitar que o usuário obtenha os elementos diretamente dos micros onde estejam os produtos (filmes, músicas, etc.), de seu interesse.

No primeiro caso o computador solicita serviços de um servidor, que dispara pesquisa em outros servidores, vindo (o mesmo computador) a receber as respostas que o servidor obteve. Na segunda situação (sistema peer–to–peer- colega a colega, ou ‘entre partes’), o computador envia pesquisa para a rede; as máquinas ligadas à rede respondem se podem atendê-lo; o usuário escolhe uma conexão e recebe resposta.

Este bem ‘digital’ não consubstancia as características de âmbito legal (art. 191 do Código Comercial), e constitu-cional (art. 155, §3º) de mercadoria,além de que o respectivo ‘software’ representa um produto intelectual, objeto de ces-são de direitos, de distinta natureza jurídica, o que tornaria imprescindível alteração normativa.”(2003, pp. 19 e 20)

Estes argumentos são suscetíveis de um merecido de-bate já propiciado no número 02 da presente revista, por agora ressalto a relevância e vulto tomado pelo comércio eletrônico-digital e a discussão, muitas vezes, motivada por um bem tributado como mercadoria, mas que poderia ser serviço e vice-versa.

Fato igualmente necessário de ser ponderado, nas infor-mações trazidas por José Eduardo Soares de Melo, reside na afirmação das hipóteses de incidência atuais serem inaptas para alcançar a prática mercantil, em ambiente cujo plano de fundo sejam os meios eletrônicos-digitais.

Coaduno, perfeitamente com tais pensamentos, os quais sempre dediquei defesa, não querendo com isto afastar a inci-dência do Icms, jamais! Apenas há de se lutar pela correta aplicação imposto, após sejam tomadas as necessárias medi-

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das legislativas, no sentido de inovar o ordenamento patrício e se respeitar os princípios ligados aos direitos fundamentais do contribuinte.

3 – OS SERVIÇOS

A Constituição Federal também prevê a incidência do Icms sobre serviços não alcançados pelo imposto, muni-cipal, sobre os serviços de qualquer natureza – Iss (ou nem todas, pois ficam excluídos, além dos serviços passíveis ao Icms, os não constantes na restritiva lista de incidência deste tributo municipal). Tais serviços são os de comunicações, transportes intermunicipais e interestaduais.

Em relação a estes serviços, há a clara e necessária ex-plicitação de uma maior intenção dos esforços da presente pesquisa, no tangente às comunicações, posto que em relação aos transporte, o comércio eletrônico-digital poderá marcar, tão somente, o início da operação e não outras fases a serem constatadas e dadas em meio físico.

A questão, como já mencionado, reside no Icms ser oriundo do antigo Icm e a inserção dos serviços, vem com uma adaptação deste imposto, propiciando a tributação de serviços não alcançados pelo Iss, relativos às municipali-dades, assim como os prestados juntamente com a venda, ou revenda, de mercadorias de forma una. (GRECO e LO-RENZO, 2001, p. 538)

A prestação de serviços, seguindo o caminho trilhado por Júlio Maria de Oliveira (2001, p. 76 e 77), surge da junção de dois vocábulos: a) prestação – indicando o efeito de prestar, dar ou fazer algo, em suma; e b) serviço – a ação ou o efeito

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de servir, exercer uma função ou desempenho de préstimos úteis, proveitosos. (FERREIRA, 2001, p. 592 e 672)

Assim, a prestação se origina do latim praestatio, do pra-estare, exprimindo a ação de dar ou satisfazer algo a ser cumprido. A prestação é, via de regra, o objeto maior da obrigação, sendo mútua entre as partes, assim como nas obrigações tributárias. Atualmente a prestação se vincula mais proximamente às obrigações de dar (prestação de coi-sas), obrigações de não-fazer ou fazer (prestações de fato). (OLIVEIRA, 2001, p. 76 e 77)

Os serviços, analisando-os individualizadamente como feito com a prestação, vem do latim servitium, exprimindo o estado de ser servo, escravo ou de quem trabalha para um amo. Atualmente implica em um acúmulo ou complexo de atividades exercidas em favor de uma entidade jurídica, pessoa ou corporação para outrem (Idem, p. 77).

O serviço, nos moldes do Direito Civil, é a atividade lucrativa efetuada em favor de outrem, através de atividades físicas e intelectuais. Júlio Maria de Oliveira traz uma gama de possíveis acepções para a prestação de serviços, nos se-guintes termos:

Considerados os vocábulos prestação e serviços em conjunto, ter-se-á expressão prestação de serviços, que, segundo entendemos, caracterizar-se-á pelos seguintes elementos:

(i) o fornecimento de um objeto, no caso de um fazer de um prestador de serviços, em prol de um outro sujeito de direito;(ii) o fazer referido possui nítido caráter econô-mico, na medida em que sua realização faz nascer

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um dever de contraprestação pelo contratante da prestação em face do prestador;(iii) daí que se mostra impossível uma prestação de serviços que não envolva dois ou mais sujei-tos de direito, algum(ns) no pólo das prestação e outro(s) no pólo da contratação (relação jurídica, portanto irreflexiva);(iv) o serviço se caracterizará pelo desempenho de atividade ou trabalho intelectual em prol de ou-trem, que resulte numa obra (utilidade) tangível ou intangível (material ou imaterial). (2001, p. 78)

4 – A PROPOSTA DO, FEDERAL, IVA TRAZIDA PELA PEC 233/08.11

A proposta de emenda constitucional (doravante, PEC) de número 233/08, trata da proposta de reforma tribu-tária de iniciativa do Poder Executivo Federal, ao Congresso, mostra que o Imposto sobre Valor Adicionado (doravante, IVA) “pretende” ser um super-imposto federal. A base sobre a qual incidirá será mais ampla que a de todos os demais tributos do País e equivalerá às bases somadas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do

11 Por questões metodológicas, pelo espaço disponível par apresentação do presente texto, apenas abordarei os aspectos mais viscerais da Proposta de Emenda Constitucional 233/08, a respeito do ISS e do ICMS (este último cerne do presente artigo), não abordando outros tributos incidentes sobre o sistema produtivo.

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Imposto sobre Serviços (ISS); ou seja, será cobrado sobre, praticamente, todas as atividades econômicas.12

Inclusive, o próprio Governo lança uma cartilha para explicar a natureza e “benefícios” do IVA,13 no intuito de tentar demonstrar que a reforma tributária terminaria por desburocratizar e alavancar o crescimento do País, evitando embates fisciais entre os municípios e estados membros da federação brasileira, além do Distrito Federal; ao mitigar distorções entre as cargas tributárias destes diferentes entes federativos, procurando garantir uma “certa” igualdade de tratamento.

Principalmente, segundo posição exarada por este órgão ministerial, quando o País se encontra em uma fase de crescimento econômico, carente de uma maior “desbu-rocratização fiscal”, para mover seu crescimento de forma satisfatória. Acontece que a defesa de tal posicionamento, embora lógica e salutar, representa uma realidade um tanto quanto complicada, pois a CF de 88, diante do apresentado nos capítulos anteriores, veda a quebra do federalismo, da territorialidade, até porque se contraria a adoção de políti-cas econômicas regionais, além do vilipêndio, inevitável, da soberania e autonomia política e financeira das pessoas jurídicas de Direito Público, em especial o DF, os estados-membros e os municípios.

Este aspecto precisa ser visualizado, pois como querer que posturas “uniformizadas” gerem um desenvolvimento, 12 O texto que serve de base de pesquisa, para tais afirmações, resulta da leitura

da própria PEC 233/08, que, entre outros sítios, está disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/540729.pdf>, coletado em: 16 de Junho de 2008.

13 A cartilha explicativa, elaborada pelo Ministério da Fazenda, da PEC 233/08, pode ser visualizada em: <http://www.estadao.com.br/ext/especiais/2008/02/Cartilha-Reforma-Tributaria.pdf>, texto coletado em: 16 de Junho de 2008.

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“igual”, para as diferentes regiões de um País com caracterís-ticas continentais? Não é sem razão, que a CF de 1988 institui as competências tributárias, dividindo a carga tributária entre os entes federativos, de forma a assegurar meios hábeis de receita às várias esferas da administração pública, como se observa nos seus artigos 145 a 169, quando trata do Sistema Tributário Nacional e as regras Financeiras, orçamentárias, aplicáveis.

Tentando “resolver” este, inquebrantável, embate, o go-verno trabalha com a hipótese de utilizar a menor alíquota do IVA para o setor de serviços, para que sua carga não aumente de forma a obstaculizar o crescimento econômico; mas essa definição terá de ser feita por lei complementar, já que a emenda não estabelece o número de alíquotas do imposto. Mas e até a formulação, complicada, de tais normas, qual seria o cenário fiscal?

A proposta de reforma prevê ainda que o IVA será regido pelo princípio da noventena, ou seja, mudanças de alíquotas passam a valer 90 dias depois de aprovadas pelo Congresso, e não no ano seguinte. Outro sério problema, pois, ao meu ver, o princípio da anteriroridade é ferido mortalmente com estas “soluções” práticas, mas impossíveis sob a égide Cons-titucional (art. ISO, III, “a” e “c”).

Desta forma o Executivo Federal vende a imagem de querer descomplicar o cenário tributário nacional, até mesmo de minoração da carga tributária, medidas que são plenamente louváveis, mas não da forma que está sendo pro-posta, até porque há manifesta inconstitucionalidade, diante do retromencionado; e o, suposto, benefício se tornará um problema grandioso de ordem política, em primeiro plano, e posteriormente de ordem judicial, diante da inevitável enxur-rada de ações movidas contra tais medidas, não só por parte

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dos contribuintes, mas, até mesmo, pelos entes federativos prejudicados.

CONSIDERAÇõES FINAIS.

Vistas tais hipóteses há a constatação do incrível al-cance do ICMS e suas implicações em relação à economia, ponderando-se as mercadorias e os serviços passíveis à operação de circulação, prescrita na Magna Carta e nas normas infraconstitucionais federais (leis complementares) e estaduais (leis ordinárias).

Assim, é clara a demonstração da total improcedência de modificação da ordem tributária, no sentido de criar o IVA em substituição ao Icms; posto que a Carta Magna, e seu inafastável federalismo; jamais14 suportariam tal estrutura tributária, pois ela vai de encontro à personalidade jurídica do Estado Brasileiro e seus limites de atuação política sobre a propriedade privada.

Além do mais, a União Federal teria sérios problemas para viabilizar tratamentos tributários de acordo com as ca-racterísticas produtivas de cada estado-membro da federação, pois o ICMS atua como incentivador, ou desencentivador, de atividades de circulação de bens e serviços, diante do princípio da uniformidade da tributação, consagrado pela Magna Carta Brasileira em seu artigo 151, inciso I.

Daí outro forte motivo para não o federelalizar, pois o controle e incentivo dos mercados estaduais estaria extre-mamente obstaculizado, em razão de um motivo menor e

14 Salvo com a quebra da atual ordem jurídica e instituição de uma nova, com base em outras políticas do Estado para com a Sociedade e outros Estados Soberanos.

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contornável através de convênios entre estados, uma “pos-sível” “guerra fiscal”.

“Provavelmente” a União não opta por tal caminho, diante do desgaste político e das implicações normais de aprovação, cada vez que necessário, de normas estaduais que atuem de forma uníssona no território nacional, ao envolver vários entes políticos, com diferentes anseios e prioridades. A discussão e o convencimento seriam de extrema complexidade.

É claramente mais “fácil” (sic) resolver a questão de uma só vez, mesmo que isso acarrete em sério gravame jurídico, político e social. A história nos mostra que tais atalhos têm um alto custo social e geram o consecutivo descrédito na ordem jurídica, pois criam uma falsa impressão de que o Executivo “pode” tudo.

E isso “é” o IVA (na prática): a sonegação das bases e princípios cogentes ao Sistema Tributário Nacional, diante da adoção de medidas assecuratórias para a eficiência do Mercado Brasileiro em um mundo globalizado, usando-se de uma, injustificada, “celeridade”, para se fazer o “melhor” para a Sociedade Brasileira (sic); ou seja é a busca por so-luções sem guarida legal. O IVA é uma forma de unificar as regras sobre circulação de mercadorias, para o fortale-cimento e segurança ao mERcOsuL, ou qualquer outra zona de mercado comum. Tenta-se justificar a ilegalidade e inconstitucionalidade com a utilitarista operacionalidade econômico-jurídica (fatores que nem sempre servem aos anseios sociais mais lídimos).

A Carta Magna já traz os mecanismos viáveis e estes implicam na fixação de resoluções do Senado Federal, pois a competência tributária, sobre a circulação de mercadorias e os “serviços de massa”, deve ficar a cargo dos Estados e seus representantes; jamais da União, caso contrário, também

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devemos pensar no fim do federalismo e da autonomia ad-ministrativa das pessoas jurídicas de Direito Público, sempre que isso obstaculizar a iniciativa econômica.

Não podemos nos esquecer, dando ênfase às probabilida-des, do que poderia acontecer de “pior”: a União Federal re-tendo recursos que devem ser repassados, só por alguns dias, dois ou até mesmo três (apenas), para os estados–membros da federação. O caos seria tremendo e as implicações as mais catastróficas; portanto, não há autonomia sem independência financeira e o Icms é a mais alta fonte de receita tributária em nosso País.

Mais uma vez, a história nos mostra que o excessivo contro-le e poder da União tendem a gerar políticas que não atendem aos anseios da maioria, tão somente fortalecem o Executivo Federal e subordina as instâncias inferiores da administração pública. Diante disso, a nossa “luta” contra a PEC 233/08 é necessária companheiros, caso contrário os malefícios serão insanáveis, assim como a interferência na autonomia administrativa e na própria integridade política e jurídica do Texto Maior.

REFERÊNCIAS

ATALIBA, Geraldo e GIARDINO, Cléber. Núcleo da definição constitucional do Icm. Revista de Direito Tri-butário, volumes 25 e 26. São Paulo: RT.

BALEEIRO, Aliomar: Direito tributário brasileiro. 10ª ed. revista e atualizada por NOVELLI, Flávio Bauer. Rio de Janeiro, Forense, 1996.

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CARRAZA, Roque Antônio. Icms. São Paulo: Ma-lheiros, 2003.

CARTILHA sobre Reforma Tributária (PEC 233/08). Mi-nistério da Fazenda, Brasília, 28 de Fevereiro, 2008. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/ext/especiais/2008/02/Cartilha-Reforma-ributaria.pdf>.Acesso em: 16 de julho de 2008.

CARVALHO, Paulo de Barros. curso de Direito Tri-butário. São Paulo: Saraiva, 2002.

_______. Regra matriz do Icm. Tese apresentada para a obtenção de Título de Livre Docente da Faculdade de Direito da PUC/SP, 1981, Inédito. p.170. apud: MELO, José Eduardo Soares de. ICMS Teoria e Prática. São Paulo: Dialética, 2003. p. 14.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. miniaurélio século XXI. O minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2001. pp.592 e 672.

GRECO, Marco Aurélio e LORENZO, Ana Paola Zonari de. Icms: materialidade e características constitucionais. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2001.

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O PAPEL DO JUIZ NA PRODUÇÃO DA CONSCIÊNCIA INCLUSIVA E PARA A EFETIVAÇÃO DA INCLUSÃO: O JUIZ

CIDADÃO E AGENTE POLÍTICO

Marcílio Florencio Mota1

sumário : Introdução. 1. A consciência inclusiva: for-mação, informação e políticas para promover a inclusão. 1.1. A maioria dos brasileiros como excluídos. 1.2. As minorias discriminadas. 2. O juiz, sua atuação cidadã e como agente político para a inclusão. 2.1. O juiz em atuação cidadã. 2.2. O juiz como agente político para a inclusão. 3. A consciência inclusiva do juiz e a linguagem jurídica. 4. A hermenêutica a favor da inclusão. 4. Considerações finais. (Referências).

INTRODUÇÃO

As linhas que seguem são motivadas pela discussão sobre a efetivação dos direitos trabalhistas, principalmente encam-pada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA – ainda que não as vinculemos a específica efetivação dos direitos dos trabalhadores.

1 Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Católica de Pernam-buco, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Juiz Titular da 1a Vara do Trabalho do Paulista e Professor da Faculdade Maurício de Nassau.

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O tempo é deveras oportuno, ao menos por dois aspectos fundamentais: inicialmente, em vista da constatação de que o Direito do Trabalho deve seguir a onda que preconiza a efetivação dos direitos mais que a importante fixação deles num diploma legal qualquer. Em segundo lugar, pela cres-cente atenção que os juízes têm recebido dos demais atores sociais no que respeita ao seu trabalho para a efetivação de direitos.

Num primeiro instante, discorreremos sobre a consciên-cia inclusiva, sua formação e informação, sobretudo a partir da constatação da exclusão, da avaliação de alguns dos fatores que a promovem e a partir da perspectiva de substancial alte-ração no status quo a partir da difusão de políticas inclusivas e da atuação jurisdicional inclusiva.

Na seqüência, trataremos da importância do trabalho do juiz na formação da consciência inclusiva e também na efetivação da inclusão. Aqui abordaremos a atuação do juiz pela ótica de uma postura cidadã, em cooperação com outros agentes sociais para a transformação pela educação e, num segundo momento, tendo em vista seu papel no conjunto dos operadores jurídicos, a partir do qual exerce importância fundamental para a efetivação de direitos.

Como conseqüência da proposta de trabalho, cuidaremos mais particularmente de dois aspectos da atuação do juiz: a linguagem e a hermenêutica.

É certo que precisávamos delimitar o objeto de nosso trabalho, afinal são praticamente inesgotáveis os temas relacionados ao labor do juiz, pelos quais ele pode revelar uma atuação cidadã e também para a efetivação de direitos. Temos, contudo, visão maior, a de que os aspectos eleitos são fundamentais, basilares, através dos quais se dá, mais

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expressivamente, a percepção da importância social do juiz.

Por último, oferecemos as considerações finais e as referências.

1 – A CONSCIÊNCIA INCLUSIVA: FORMAÇÃO, INFORMAÇÃO E POLÍTICAS PARA PROMOVER A INCLUSÃO

Os dias atuais, em grande parte das sociedades, têm sido caracterizados pela inquietação promovida pelo reco-nhecimento de que nós não temos conseguido promover a igualdade material entre todas as pessoas, pressuposto do bem-estar geral para o qual os estados e as organizações sociais foram pensados pelos seres humanos3.

Mais. Aflige-nos, ainda, a constatação de que grande parte do problema foi criada justamente por falhas em nossas organizações. Porque nós e nossos predecessores não tivemos a formação necessária para o fomento da inclusão e, antes, assumimos a exclusão.

Porém, de que estamos falando especificamente ao tratar de inclusão? A inclusão é, no seu sentido etimológico, a ação de pôr para dentro. Nesse caso, pôr para dentro as pessoas que estão fora, os periféricos ou marginais. Mas, pôr para dentro de onde? Não para dentro de um lugar específico, por óbvio, todavia, para permitir que todas as pessoas participem em igualdade de condições dos bens sociais e, o deles mais

3 A revelação dessa perplexidade são os inúmeros organismos vinculados à Organização das Nações Unidas – ONU - para a promoção de melhoria nas condições das pessoas, de que são exemplos o PMA (Programa Mundial da Alimentação), o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimen-to), e o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

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fundamental, o de atuar com percepção de poder para a rea-lização pessoal e para as transformações do mundo.

Assim, chegamos ao que pretendemos tratar neste traba-lho por “excluídos”. Os excluídos são aqueles aos quais se nega a formação e a informação para a transformação pessoal e do grupo social a que pertence. Esses são aqueles que, mui-tas vezes como conseqüência da falta da percepção de poder, são alijados do gozo dos bens produzidos por todos.

Excluídos são também aqueles que sofrem restrições ou impedimentos quanto a um agir transformador ou gozo de bens em vista de alguma condição peculiar, embora possuam, eventualmente, consciência de que detêm parcela do poder4.

1.1 A maioria dos brasileiros como excluídos

À maioria da população brasileira se nega a formação e as informações necessárias à compreensão do status de pessoa com todas as implicações dele decorrentes. Falamos aqui, principalmente, do contingente populacional atingido pela falta de escolas e pela precariedade das que existem (SOLARI, 1984).

Parte significativa da população brasileira não tem acesso à escola simplesmente porque não há escolas que comporte todos. Não menos lamentável e triste, porém, é o caso dos milhões que não vêem na escola, porque precária, uma ins-tância capaz de alterar a sua sorte na vida. A escola pública no Brasil perdeu, há pelo menos três décadas, a condição de instituição suficiente à promoção de ascensão social (SA-LOMãO, 2006).

4 A formulação da idéia de excluídos considera, primordialmente, o Brasil, porém é igualmente aplicável à maioria das nações.

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O descrédito na escola pública, por sua vez, é o resultado de políticas de desvalorização do ensino público, das esco-las, suas estruturas, seus equipamentos e, principalmente, do desrespeito dos governos aos profissionais da educação (SOLARI, 1984).

Há que se dizer, por outro lado, que o estado de aban-dono a que chegou a escola pública no Brasil não foi obra do acaso. Foi opção dos vários governos que se sucederam, nas três esferas de poder (federal, estadual e municipal), em vista de uma visão inconseqüente do papel do Estado nas sociedades atuais e, sobretudo, pela submissão impensada das políticas de governo e de Estado aos ditames do poder econômico, o qual não tem compromisso com as pessoas, nem com as nações, nem com o futuro das gerações (SO-LARI, 1984).

Não é sem razão que temos uma absurda concentração de riqueza e um estado de verdadeira guerra civil em vista da violência urbana. Ambos são os resultados mais visíveis do desastroso caminho político trilhado desde a ditadura militar (décadas de 60 e 70) até o governo Lula, inclusive.

No Brasil, resta a infeliz constatação de que milhões são alfabetizados apenas formalmente, de que não inten-cionamos arregimentar professores vocacionados para as nossas escolas públicas e que continuamos a permitir que nossas crianças se sintam mais atraídas pelo mundo mar-ginal das drogas ou do trabalho precoce incompatível com a escola do que pela vida regular, capaz de lhes conferir a dignidade de pessoa.

Quanto ao primeiro aspecto, falamos dos chamados analfabetos funcionais. Pessoas alfabetizadas, que sabem ler e escrever, mas que não são capazes de compreender o mundo e a importância do saber, do refletir, para a sua pró-

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pria transformação e realização e para o bem estar de todas as pessoas5.

Os professores vocacionados e melhor preparados, por sua vez, são atraídos para a escola privada, que remuneram em condição mais digna o nobre trabalho a que se dedicam. O serviço público já não é atrativo por assegurar alguma estabilidade no trabalho, apenas.

O trabalho precoce, muitas vezes fundamental à sobrevi-vência da criança e dos adultos de uma família, não é opção, mas imposição da vida, quando não o é a vida marginal desde cedo. Nos grandes centros urbanos mais e mais crianças são atraídas para o “exército” do tráfico (MV BILL; ATHAYDE, 2006), para uma obtenção imediata de recursos em troca de um fim de vida demasiadamente antecipado.

Nesse quadro, a inclusão da maioria da população brasi-leira passa, necessariamente, como amplamente diagnostica-do por todos os estudiosos da matéria, por uma “revolução” na educação.

É urgente que se reverta, o quanto antes, o tratamento dado pelos governos à escola pública e gratuita. Ela tem de ser de tal modo universal e eficaz ao ponto de competir com as melhores escolas privadas e de permitir, em seu seio, o encontro das diferentes classes sociais para, por fim, ajudar a produzir a igualdade necessária na distribuição de renda, a qual é pressuposto da paz interna nas sociedades contem-porâneas.

5 Alexa Salomão relata na Revista Exame de 27/09/2006: “Em 2003, o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico identificou que 55% dos alunos matri-culados na 4ª série do ensino fundamental eram praticamente analfabetos e mal sabiam calcular. Na 8ª série, menos de 10% dos estudantes haviam adquirido competência para elaborar textos mais complexos. Como conseqüência, cerca de 75% dos adultos têm alguma deficiência para escrever, ler e fazer contas, o que acarreta um efeito devastador sobre sua capacidade de se expressar”.

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Para a revolução na educação, por óbvio, os governos, em especial o governo federal, grande concentrador de poder no nosso regime, terão de rever a política produzida pela “teoria do estado mínimo”. Terão de impor o interesse nacional, nas pessoas e no futuro das gerações brasileiras aos organismos internacionais gerentes do capital especu-lativo.

Nesse contexto, fica reservado aos professores o papel de principais agentes promotores da transformação social. Para isso precisam ser estimulados com salários dignos, proporcionais a sua importância para a sociedade, com uma carreira que permita atualização de conhecimentos e pro-gressão funcional e com um sistema de aposentadoria que lhes permita segurança quanto ao futuro.

As famílias precisarão ser estimuladas a levarem suas crianças à escola. A situação de momento, que se alterará so-mente a partir de cinqüenta anos da “revolução” na educação, exigirá a adoção de políticas governamentais de incentivo financeiro às famílias que dirijam seus filhos à escola. O certo é que a escola pública capaz de competir com a escola privada será, por esse status, por si só, por ser instrumento de ascensão social, capaz de despertar o interesse de todas as crianças e famílias (MACEDO, 2004).

1.2 As minorias Discriminadas

As minorias discriminadas e, destarte, excluídas, são contingentes populacionais, grupos, que sofrem restrições ou impedimentos quanto a um agir transformador ou gozo de bens em vista de alguma condição peculiar, embora pos-suam, eventualmente, consciência de que detêm parcela do

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poder. Podemos arrolar, como tais, os grupos de deficientes físicos, os negros, os homossexuais e os índios.

Aos deficientes físicos são impostas restrições e impedi-mentos os mais variados. Uma primeira grande dificuldade vivenciada por eles é a da ordem de relações sociais (LINS, 1979). As escolas no Brasil, com suas estruturas e pedago-gia, não foram preparadas e ainda resistem ao recebimento de pessoas portadoras de deficiência entre as pessoas não portadoras6.

Nesse quadro, gerações foram formadas com a cultura de que os deficientes físicos não podiam ser incluídos, que deveriam figurar num grupo apartado do convívio com as pessoas ditas “normais”. Ao menos dois grandes problemas foram criados por esse modo distorcido de ver as relações entre as pessoas: a exclusão passou a ser tida com algo nor-mal; e as pessoas “normais” e os deficientes foram privados de uma convivência capaz de promover o conhecimento mútuo, pelo qual é possível o descobrimento das diferenças e das habilidades recíprocas, tudo pressuposto ao respeito e ao fomento dos relacionamentos entre as pessoas.

Outro relevante problema para os portadores de defici-ência são as chamadas barreiras arquitetônicas (LINS,1979). As cidades, os prédios, as construções públicas de um modo geral não foram projetadas em se pensando nas necessidades dos portadores de deficiência. O acesso deles, então, aos bens públicos, educação, cultura, lazer etc. são obstados por essa arquitetura excludente.

6 A novela “Páginas da Vida”, exibida na Rede Globo de Televisão, tratou desse problema. Em alguns de seus capítulos abordou o tratamento discriminatório de uma professora a uma criança portadora da Síndrome de Dawn. Citamos a novela pela relevante contribuição, nesse ponto, para o diagnóstico do problema e para a educação inclusiva, conforme bem observa Artur da Távora em “A Telenovela Brasileira”.

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Por sua vez, os negros no Brasil passam por um tipo peculiar de discriminação, de tipo disfarçado, o qual, porém, é forte gerador de exclusão. Não são tratados com discrimi-nação ostensiva, no mais das vezes, mas subliminar, da qual toda a cultura nacional está impregnada.

Aos negros a sociedade brasileira tem negado papel social relevante. Poucos, em percentual insignificante, são os que chegam à universidade pública, gratuita entre nós, e menos ainda os que exercem cargo que revela poder, seja no serviço público ou na iniciativa privada. Aos negros o Brasil também impõe a pobreza como conseqüência da cor da pele.

No que respeita aos deficientes físicos, em boa hora a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – os elegeu como alvo de “Campanha da Fraternidade”. A abor-dagem escolhida também não poderia ser mais feliz, o “vir para o meio”, conforme o Evangelho de São Marcos capítulo 3, versículo 3, revela a preocupação com os dois principais problemas enfrentados pelos deficientes físicos na nossa ótica, o relacional humano e o físico-arquitetônico.

Numa primeira perspectiva, o convite de Jesus, o perfei-to, no sentido de chamar para o meio um deficiente físico, ensina aos não portadores de deficiência a necessidade e a possibilidade do relacionamento entre pessoas diferentes, o que, como vimos acima, foi ensino que nos foi negado na escola, nossa primeira comunidade. Veja-se, a propósito, que o homem da mão ressequida (Marcos, 3,1) estava, fisicamen-te, no interior da sinagoga, estava fisicamente incluído, mas não estava relacionalmente incluído.

Diz a pedagogia de Jesus, igualmente, que é preciso permitir que os deficientes físicos ingressem no mundo particular, hermético, criado pelos não portadores de de-

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ficiência, para o qual são convidados apenas aqueles com os quais os “normais” se identificam imediatamente. Aliás, essa identificação meramente física, superficial, não espiri-tual, acaba sendo obstáculo a que se pratique o ensinamento fundamental da doutrina cristã, o “amar ao próximo como a si mesmo”, na medida em que o deficiente não é o próximo nesse mundo particular.

Por outro lado, esse convite para o meio também nos impõe reflexão sobre as barreiras físico-arquitetônicas que criamos, eventualmente sem a percepção disso, a que pessoas diferentes possam acessar nosso mundo. Mais que a refle-xão, porém, o ensinamento de Jesus nos diz da necessidade de que todas as pessoas, organizações e governos derrubem os obstáculos postos à inclusão física, moral e espiritual dos deficientes a partir da construção de caminhos plurais, acessíveis a todos.

Porém, se é certo que a lição de Jesus em Marcos 3:3 é dirigida, num primeiro sentir, aos que excluem, ou seja, para aqueles que integram a maioria, os não portadores de deficiência, como um exemplo pessoal de que é necessário convidar os deficientes para o mundo dos não deficientes, não é menos relevante perceber nela um estímulo à ação dos próprios excluídos.

Vem para o meio, disse Jesus a um portador de deficiência. Nesse convite, há a lição para os excluídos quanto a ser possível ingressar no mundo criado pelos não deficientes, de que eles podem atuar decisivamente para a inclusão. Jesus, vendo o homem da mão ressequida, convidou-o a que se aproximasse a fim de receber a cura. Sem a efetiva cooperação dele, Jesus não teria operado o milagre, a cura, a inclusão.

Com a sua ação, aquele homem nos ensina que para a inclusão é preciso que os deficientes atuem com coragem e

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procurem, a partir da educação, da atuação reivindicatória e da política, vencer os obstáculos à inclusão.

Em relação aos negros, mais recentemente temos discu-tido e começado a praticar no Brasil as chamadas políticas de discriminação positiva. Por elas, reservamos tratamento diferenciado aos negros com o objetivo de melhorar as con-dições do conjunto das pessoas excluídas em razão da cor de sua pele. Uma das significativas políticas, nesse sentido, é o da reserva de cotas para o acesso dos negros às universidades, mundo fechado dos brancos.

Embora essas políticas sejam objeto de controvér-sia, inclusive entre os próprios integrantes dos diversos movimentos negros, que argumentam que políticas dessa ordem só produzem mais preconceito e discriminação, experiências bem-sucedidas noutros países nos apontam para a necessidade de sua ampla adoção neste país, ao menos para que da prática delas tiremos lições quanto à sua real importância para a inclusão dos negros (GOMES, 2003).

2 – O JUIZ, SUA ATUAÇÃO CIDADÃ E COMO AGENTE POLÍTICO PARA A INCLUSÃO

Nesse ponto nos ocupamos das formas possíveis de atuação do juiz na sociedade de modo a que ele coopere com os demais agentes sociais para a educação inclusiva e para a efetivação da inclusão das pessoas e dos grupos marginalizados.

Destacamos, nesse primeiro momento que, no nosso sen-tir, todas as pessoas são chamadas pela vida à compreensão do mundo, de suas circunstâncias e para as transformações

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necessárias à sua própria realização e das demais pessoas no mundo.

Por outro lado, essa realização como pessoa, no mundo, se dá pelo exercício da cooperação com as outras pessoas para a obtenção das condições mínimas de vida digna para todos7.

A pessoa se realiza, então, quando vive dignamente, quando obtém pelo trabalho as condições mínimas para a sua sobrevivência, e quando percebe que atuou eficazmente para que o conjunto das pessoas também se realize a partir da própria experiência de trabalho e em cooperação com outras pessoas.

Aliás, a percepção de que a vida chama à compreensão do mundo e de seus desafios distingue a pessoa formada da pessoa alienada, sendo que a alienação também é produto desejado da dominação. Noutro dizer, os alienados são, no mais das vezes, vítimas do poder que pretende negar a reali-zação do outro em virtude de uma visão equivocada de que a realização do outro é contra a sua própria realização. O poder exercido na perspectiva de que a realização do outro é contra a realização pessoal é poder alienado, inclusive8.

Então, a vida desafia as pessoas para que com sua atuação educativa e com seu trabalho ajudem outras pessoas a se compreenderem construtoras da realização pessoal e das demais. A essas duas formas de atuação,

7 Alberto Rodríguez, especialista em educação do Banco Mundial e coordenador de um estudo sobre as condições da educação nos países emergentes, disse, em entrevista a Alexa Salomão, publicada na Revista Exame de 27/09/2006: “Há muito tempo, sabemos que as deficiências do Brasil na educação afetam a distribuição de renda e o crescimento pessoal dos indivíduos”.

8 Grande parte do sucesso de expressivas corporações é justificada pela capa-cidade que os administradores têm de perceberem que necessitam fazer os demais integrantes da corporação compreender que são responsáveis pelo êxito da instituição e partícipes dos resultados obtidos.

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no caso do juiz, chamamos atuação cidadã e como agente político.

2.1 O juiz em atuação cidadã

Como é possível perceber das linhas que traçamos su-pra, entendemos como atuação cidadã aquela em difusão da educação para a informação e a formação da pessoa. O cidadão atua em cooperação com a outra pessoa para que ela possa se realizar pelo próprio trabalho e a partir da ajuda que ministrar às outras pessoas para o descobrimento do papel delas no mundo.

Ganha relevo em nossos dias, nesse sentido, o chamado “trabalho voluntário” (PEREIRA, 2003). Por esse instrumen-to, organizações da sociedade civil cooptam pessoas que têm consciência da necessidade de sua atuação cidadã e a partir dessas instituições atuam para as necessárias transformações que as pessoas reclamam.

As diversas associações de magistrados no Brasil têm ar-regimentado juízes e atuado efetivamente em campanhas que difundem a educação transformadora e inclusiva. Podemos, nesse contexto, citar ao menos três programas de relevante importância social: o da educação em torno de direitos das pessoas, a campanha pela ética na política e a campanha pela utilização de linguagem que permita a compreensão, pelo homem médio, das coisas que se passam na Justiça.

Quanto ao primeiro programa, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA – edita a “Cartilha do Trabalhador”, publicação em qua-drinhos dirigida principalmente aos estudantes do ensino fundamental maior e ensino médio, que instrui quanto aos direitos dos trabalhadores e à forma de sua efetivação. O

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programa é denominado de “Trabalho, Justiça e Cidadania” e equipes de juízes do trabalho agendam visitas a escolas para a entrega do material informativo e debate com os estudantes sobre os temas, trabalho, justiça e cidadania (ANAMATRA, 2006).

A AMATRA 6 – Associação dos Magistrados do Traba-lho da 6ª Região –, que congrega os juízes do trabalho que atuam em Pernambuco, divulga, periodicamente, ajuste de visitas a escolas, dentre elas a que previa, na cidade de Cabo de Santo Agostinho, a promoção da educação em torno de direitos de cerca de 2,5 mil estudantes da rede pública do município (ISTO POSTO, 2006, p. 7).

A campanha por eleições limpas é da Associação dos Magistrados Brasileiros. A AMB diz que a “vigilância dos juízes e da população resultará em eleições mais éticas” e que sua intenção é quanto “a fornecer subsídios para que os cidadãos denunciem ao Ministério Público Eleitoral quais-quer indícios de fraude” (AMB1, 2006).

A campanha em torno de eleições éticas se afigurou extremamente oportuna naquele quadrante da vida nacional, quando perto de findar a legislatura que mais foi objeto de investigações na história do Brasil. Os escândalos se suce-diam, inclusive no período eleitoral, e era fundamental que todos os juízes e a população em geral colaborassem para a construção de uma democracia isenta das mazelas que com-prometem a legitimidade dos que exercem o poder político (AMB2, 2006).

A utilização de uma linguagem que permita que as pessoas em geral compreendam as coisas que se passam na Justiça é o objeto da campanha, também da AMB, pela sim-plificação da linguagem dos operadores do direito. Através dela a Associação dos Magistrados Brasileiros patrocinou

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palestras de afamado lingüista brasileiro, divulgou carti-lha e promoveu concurso de monografias entre estudantes universitários.

Identificamos ser relevante a iniciativa da representação dos magistrados brasileiros no sentido de tentar diminuir o fosso que separa o Poder Judiciário do povo (CALDAS, 1998) a partir da mudança na forma dos operadores jurídicos expressarem suas petições, manifestações orais e decisões.

O Judiciário brasileiro ainda está distante do povo, mas é alvissareiro notar que há um movimento e uma prática crescentes na sociedade e na magistratura, ao menos desde a Constituição de 1988, no sentido de tornar esse Poder mais próximo do povo, de onde verdadeiramente o poder emana e para o qual ele deve ser exercido.

Nesse contexto, a reflexão sobre a linguagem utilizada na prática forense, a constatação de que ela é elemento de inibição e fechamento e a busca da solução de sua simplifi-cação como mecanismo de aproximação do Poder Judiciário e o povo merecem todo o nosso aplauso.

2.2 O juiz como agente político para a inclusão

No tópico anterior abordamos a atuação cidadã do juiz, perspectiva substancialmente do agir na informação e para a formação da consciência inclusiva. Neste item trataremos da ação do juiz na condição de agente político, em razão do cargo que ocupa, como quem exerce poder, ou seja, como quem decide com repercussão sobre a vida das pessoas.

A legitimidade do poder político é diretamente propor-cional ao bem que ele promove ao conjunto das pessoas destinatárias de suas ações. Nas democracias, então, a orga-nização estatal é toda erigida sobre o pressuposto de que o

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poder emana do povo, é exercido por concessão do povo e para ele deve destinar as suas melhores ações.

O mundo nos revela, contudo, que, por razões as mais diversas, porém principalmente geradas por formação de-ficiente das pessoas, aqueles que estão investidos do poder político, inclusive nas democracias, exerce o poder, muitas vezes, para o bem estar próprio, de familiares e de amigos, em evidente desvirtuamento da finalidade da investidura9.

Embora esse tipo de distorção seja o mais grave no exercício do poder, ele não é o único, e as falhas acabam por promover uma baixa legitimidade dos poderes cons-tituídos. As pessoas não confiam naqueles que exercem o poder político, simplesmente porque não identifica nas ações respectivas a promoção do bem estar geral de todas as pessoas.

No sentido do que acima expusemos foi o resultado de pesquisa de opinião promovida pelo IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. Em maio de 2005, o Poder Judiciário ficou em 11º lugar na confiança dos entrevistados entre 18 instituições. Foi o melhor classificado entre os poderes. Os que exercem mandato eletivo foram os piores avaliados, vindo depois deles os partidos, a Câmara e o Senado (IBOPE, 2006).

No Brasil, com muita evidência, as coisas se passam assim, e o Poder Judiciário, sendo uma das expressões de poder na República, lamentavelmente, também padece de falta de legitimidade.

No nosso entender, o grande problema do Judiciário no Brasil é o de não ser de eficácia universal.

9 Neste exato momento, por exemplo, estamos às voltas com o escândalo em torno de gastos inexplicáveis de ministros do governo Lula com cartões cor-porativos.

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Não falamos aqui dos graves problemas de corrupção entre os magistrados ou do nepotismo (ALBERTO JR, 2002), sendo esse último, até bem pouco tempo atrás, uma grande mancha a envergonhar grande parte dos que integram a Justiça.

Compreendemos que a ausência de eficácia universal do Poder Judiciário no Brasil se manifesta por três aspectos primordiais: a justiça não é acessível à maioria das pessoas; as decisões são comprometidas pela perspectiva de manutenção do “status quo”; e os que buscam a prestação jurisdicional são frustrados pela morosidade ou pela falta de efetividade das decisões que lhes são favoráveis (AMB, 2004).

O acesso das pessoas ao Poder Judiciário é comprome-tido, primordialmente, pelo custo econômico da provocação da atividade jurisdicional (PASETTI, 2002). Demandar requer adiantamento de custas processuais, contratação de advogado e despesas eventuais com autenticação de documentos e auxiliares da justiça (perito, intérpretes, tradutores etc.). Sabidamente, os organismos que minis-tram assistência judiciária gratuita não são em número e em locais necessários ao atendimento da demanda real da população.

Tem mais. A nossa experiência no foro nos proporciona o conhecimento de que até o gasto com transporte é obstáculo à ida das pessoas à justiça, o que é de compreensão quando se sabe que 42,6 milhões de pessoas no país estão abaixo da linha da pobreza10, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (SPITZ, 2006).

10 Tivemos inúmeros contatos com pessoas, não apenas das cidades do interior do Estado de Pernambuco, mas também da capital e da região metropolitana, que manifestaram a dificuldade de procurar os órgãos da Justiça por falta de dinheiro para o transporte. Alguns narraram caminhadas de quilômetros desde sua casa até o órgão jurisdicional.

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Juntem-se a esse fator econômico razões de ordem moral. As pessoas, pela experiência das que acessam o Poder Judi-ciário, receiam, justificadamente, que não serão atendidas no seu pleito de justiça ou que o seu caso se eternizará ou que, ainda, a decisão que lhe é favorável não será efetivada.

A evidência mais dramática de que os juízes atuam negando justiça ao povo é extraída da falta de punição dos poderosos, o que tem ajudado a fomentar a corrupção na política e a apropriação do dinheiro público pelos políticos, por exemplo.11

O Poder Judiciário está afastado das pessoas, ainda, em razão da demora nos julgamentos das causas ou da falta de efetividade das decisões. Embora fatores externos ao Judiciário contribuam para a demora na prestação jurisdicional e para a falta de efetividade das decisões12, identificamos também certa má vontade na atuação de alguns juízes, o que é forma delibe-rada, na maioria dos casos, de negar justiça às pessoas13.

No que respeita ao fator econômico como obstáculo ao acesso à Justiça, estamos diante de um problema que não diz respeito diretamente aos juízes enquanto agentes públi-cos. A atuação do juiz, no sentido de afastar as dificuldades

11 Felizmente, por uma série de fatores, desde o início da década de 90, em especial pela prática da democracia de direito, ainda que em alguns pontos desvirtuada, percebemos uma mudança no Poder Judiciário. Essa mudança será certamente mais sentida quando as novas gerações de juízes, recrutados por certames públicos efetivamente fiscalizados, chegarem aos Tribunais.

12 Pensamos como fatores externos, aqui, por exemplo, a questão orçamentária, decidida pelos outros poderes, que repercute no número de servidores e no material de trabalho, a deficiência da legislação e a má formação ética dos advogados, muitos dos quais atuam intencionalmente para retardar e para frustrar a efetividade das decisões.

13 Essa má vontade fica evidente, por exemplo, quando o juiz nega, injusti-ficadamente, medidas de prevenção ou de antecipação do direito, ou ainda quando produz muito menos do que é lícito esperar que produza em forma de audiências e de decisões.

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econômicas de acesso, será muito mais na forma de atuação cidadã.

Relativamente àqueles aspectos que enumeramos como fatores morais que inibem o acesso das pessoas ao Poder Judiciário, por óbvio, só a atuação do juiz na condição de agente político para a inclusão poderá afastá-los.

Fundamental será, então, que a sociedade, cons-ciente da importância da formação integral das pessoas, decida ministrar, a partir das famílias, a cada um, a formação integral de que necessitam. Os magistrados filhos dessa sociedade compreenderão a importância do seu papel.

O certo, porém, é que nossas famílias e nossas escolas (todos os níveis) revelam não mais terem com-promisso com esse tipo de formação. A família está desagregada, reproduzindo (des)valores, e as escolas demasiadamente preocupadas com o sucesso profissio-nal do seu cliente14. O acolhimento do profissional pelo mercado é o fim único, cujos meios de obtenção não sofrem qualquer tipo de investigação no que respeita ao conteúdo ético15.

Nesse contexto, a chegada de pessoas das classes menos favorecidas ao Poder, por si só, não será elemento indicador de novos tempos. A essência está na necessidade de que formemos bem as pessoas, quaisquer que sejam as classes de onde emanem. É preciso que encontremos no bem-estar de

14 A privatização do ensino em muito contribui para que nossas escolas atuem como empresas ruins, apenas fazendo negócios, tendo os seus alunos como clientes não merecedores de atenção enquanto pessoas que são.

15A crise da pós-modernidade é, sobretudo, ética. Crise de perda de referências. De deliberado desapego a nortes, como se todos os paradigmas experimentados pelas gerações passadas fossem igualmente desprezíveis.

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todas as pessoas a finalidade de nosso ajuntamento e a partir daí nos apropriemos do conteúdo ético fundamental.16

De qualquer sorte, a geração de juízes do momento po-derá em muito contribuir para uma justiça inclusiva, o que se opõe a uma justiça mantenedora do “status quo”, seja pelo uso de uma linguagem acessível, que permita que o povo se aproxime da Justiça e compreenda as coisas que passam em seu interior, seja pela adoção de uma hermenêutica inclusiva, aspectos que abordaremos mais detidamente nos tópicos se-guintes, seja, ainda, pelo compromisso com a adoção de uma postura que imponha a celeridade do processo e a efetividade das decisões proferidas.

Nesse contexto, merecem louvor as alterações promovi-das no Código de Processo Civil, muito delas de iniciativa da corporação máxima dos juízes, com o objetivo de dotar o processo civil brasileiro de mecanismos que proporcionem celeridade e efetividade à atividade jurisdicional. Porém, os mecanismos postos aos juízes de nada valerão se os magis-trados não assumirem o compromisso pessoal de utilizá-los adequadamente.

A observação é necessária na medida em que percebemos que a magistratura é instância das mais resistentes ao novo, às mudanças, como bem destaca Barbosa Gomes (1999). Por incrível que pareça, em matéria de alterações do CPC de 73, aqui e ali surgem viúvos do velho sistema, arautos de “inconstitucionalidades” mil, vozes que põem em risco a eficácia das mudanças legislativas que são hábeis sim a que o processo civil sirva às transformações sociais que todos anseiam.

16 Pessoalmente, tenho que precisamos retornar ao primeiro relacionamento. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo é a perfeita junção do transcendente com o imanente, parcelas das quais todos nós somos compostos e das quais, destarte, não podemos nos afastar.

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3 – A CONSCIÊNCIA INCLUSIVA DO JUIZ E A LINGUAGEM JURÍDICA

A Bíblia Sagrada trás um curioso relato sobre quando surgiu a diversidade de línguas entre os homens. Está no Capítulo 11 do Livro de Gênesis. Deus provocou a diferença de idiomas para que os homens não mais se entendessem.

Segundo o relato, os homens, em vista do perfeito entendi-mento proporcionado por uma única língua, intentaram impe-dir o propósito de Deus de povoar o mundo (Gênesis, 1:27-28). Desejavam ficar numa única cidade e para isso construíram uma torre, que também seria um símbolo desse desejo.

A linguagem, então, é claramente apresentada como um instrumento capaz de proporcionar entendimento ou confusão entre as pessoas (GUSDORF, 1995).

Aparentemente, um falar uniforme surge unicamente para o entendimento entre pessoas que possuam vínculos culturais. O certo, porém, é que a uniformidade também serve para a exclusão dos que não mantenham o vínculo cultural, no mais das vezes com intenção deliberada para manter a cultura restrita aos integrantes do grupo (PAULUS, 1975).

A criação de uma linguagem peculiar por corporações profissionais não foge à regra. Os seus integrantes, vinculados culturalmente, buscam um maior entendimento entre si e, ao mesmo tempo, consciente ou inconscientemente, intentam privar os não integrantes do grupo do conhecimento que eles julgam que deve pertencer com exclusividade à corporação (GONçALVES, 2002).

Em se considerando a primeira pretensão, ou seja, da uti-lização de uma linguagem uniforme para maior entendimento entre os que integram o grupo específico, não há mal maior nessa construção. Pelo contrário, ela é necessária mesmo para

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o desenvolvimento das ciências. Nesse caso se enquadra a chamada “linguagem técnica” (GALVãO, 2004).

Assim é que a linguagem técnica dos médicos, dos psicó-logos, dos engenheiros, dos profissionais do direito etc. tem uma função positiva. Ela proporciona o desenvolvimento das ciências na medida em que os símbolos (palavras, no caso) utilizados, possuem, por convenção, o mesmo significado para todos os que integram a corporação. Essa convenção pode ser para aplicação num espaço geográfico mais ou menos restrito.

Vejamos o exemplo da expressão “competência”. Para as pessoas em geral ela tem o significado de capacidade ou habilidade para fazer algo. Entre nós, os profissionais do direito, ela é empregada com um sentido próprio, qual seja, o de medida da jurisdição. Destarte, quando falamos em competência, com apropriação regular do conteúdo técnico da expressão, estamos nos referindo à atribuição para o exer-cício da jurisdição num determinado território, em razão de alguma matéria etc.

Todavia, é reprovável, sob todos os aspectos, a utilização da linguagem corporativa para privar outras pessoas de co-nhecimentos no pressuposto de que eles devem permanecer restritos ao grupo. O conhecimento, o saber, as descobertas são patrimônio que não podem ser do domínio particular, de grupos, como regra.

Aliás, o tipo de comportamento que prima pelo uso da linguagem para cercear o conhecimento dos não integrantes do grupo revela imaturidade social e é problema de gravida-de proporcional ao poder que o profissional da corporação detenha sobre as pessoas.

Explico: repercute mais o uso de uma linguagem restrita entre os médicos e os juízes do que entre os mecânicos de

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automóveis, por exemplo. Os primeiros exercem um tipo de poder vital sobre as pessoas, sobre suas vidas, sobre o seu patrimônio e sobre sua liberdade.

Conscientes da importância da língua para a aproxi-mação entre as pessoas e para a inclusão dos excluídos, os juízes brasileiros desencadearam, há algum tempo, uma campanha visando que os profissionais do direito e os estudantes em formação superior na área despertem para a necessidade da utilização de uma linguagem em suas manifestações orais e escritas, inclusive no processo, de modo a que ela não seja obstáculo a que as pessoas não integrantes da “casta” compreendam as coisas que se pas-sam na Justiça.

Nesse contexto, porque exercem poder sobre as pessoas, que emana delas e que para elas deve ser exercido, é funda-mental a adoção, pelos juízes, de uma postura que, a partir da linguagem que usem, permita ao homem médio compre-ender seus atos, despachos, decisões e sentenças. É célebre a anedota em torno de uma sentença ditada oralmente por um juiz. Após a conclusão ele teria sido interpelado pela parte: “afinal, eu ganhei ou perdi?”.

Uma das razões pela qual o povo não se identifica com o Poder Judiciário é justamente a linguagem excludente utili-zada pelos que operam o direito. A falta de identificação com o poder, por outro lado, também é fato gerador da ausência de legitimidade dele, Poder.

Assim, trazer o povo para perto do Judiciário, permitir que o homem que não usa toga se identifique com o homem que usa a toga, porque ambos usam linguagem idêntica, proporcionará maior legitimidade ao Poder Judiciário e com ela credibilidade e, possivelmente, maior celeridade e eficácia.

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Nesse sentido, a linguagem é fator de inclusão. De convite para que os que estão à margem possam participar efetivamente do Poder.

4 – A HERMENÊUTICA A FAVOR DA INCLUSÃO

Os profissionais do Direito, denominados por alguns de “operadores do Direito”, entre eles os juízes, têm como incumbência principal, em seu trabalho, a interpretação (hermenêutica) das normas que integram o sistema jurí-dico.

A concepção de um sistema de normas, por sua vez, é no pressuposto de que regras são importantes para a disciplina da vida societária e para a obtenção dos fins eleitos pela comunidade. As regras do sistema, de produção estatal ou privada, ao tempo que expressam os valores sociais, também são mecanismos para a consecução dos objetivos traçados (FREITAS, 2004).

É certo que quanto menos culturalmente desenvolvida uma sociedade mais necessitará de prescrições coativas e de meios repressivos para que o bem comum, razão do ajunta-mento das pessoas, seja alcançado.

Tratamos por sociedades culturalmente atrasadas aqui aquelas nas quais o respeito à pessoa, ao seu patrimônio moral e econômico, não é praticado naturalmente, por educação, como reconhecimento dos limites do agir individual próprio e da dignidade do outro.

Nesse contexto, as sociedades periféricas, entre as quais estamos incluídos, culturalmente atrasadas, reclamam à existência de um sistema de normas que estatua com clareza os objetivos sociais, que preveja mecanismos de repressão

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às infrações legais e uma estrutura judicial apta à efetivação das normas e, por conseguinte, do bem comum.

É fácil notar, então, que os profissionais do Direito exer-cem papel de fundamental importância nas sociedades que têm no sistema jurídico um importante instrumento para a promoção do bem estar de todos. Eles são responsáveis pela tradução do sentir dos representantes do povo (legisladores), que não expressam através das normas a vontade pessoal, mas do grupo social.

Por outro lado, os juízes, de um modo especial, quando exercitam a interpretação das normas, podem ser responsáveis pela promoção, pela efetivação do bem estar. Nesse sentido, aliás, a regra do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-Lei n.4.657, de 04 de setembro de 1942.

O Poder Judiciário, assim, pode ser depositário de gran-des expectativas sociais e no Brasil há um sentimento assim, que é expresso pelo que se denomina na doutrina do Direito Constitucional de “Densificação da Jurisdição Constitucio-nal” (AGRA, 2005).

A sociedade brasileira, entre tantas contradições que vivencia, experimenta também uma curiosa contradição relativamente ao Judiciário.

Setores sociais, inclusive acadêmicos, vislumbram, no exercício do poder político pelo Judiciário, na assunção das funções que a Constituição lhe consagra, uma espécie de úl-tima instância a que as enormes desigualdades sociais sejam reduzidas, o que significa, também, que os desvios dos outros Poderes sejam por ele eficazmente corrigidos.

Setores outros vêem, na chamada “densificação da jurisdição”, riscos para a democracia, pelo que chamam de “governo dos juízes”. Acham um exagero que se atribua ao Poder Judiciário o papel de promotor de políticas públicas,

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atuação que reconhecem exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo.

O Poder Judiciário, por sua vez, por seus juízes, bem expressa e justifica os pensamentos em contradição. Embora reconheça o papel que lhe reserva a Constituição, não atua regularmente de modo a justificar as atribuições concedidas. É um Poder que, no mais das vezes, se nega a exercer poder em proveito da maioria.

O sepultamento do Mandado de Injunção na primeira oportunidade em que manejado não é exemplo isolado dessa negativa de exercício do Poder em proveito do povo. Quase todas as vezes que o Supremo Tribunal Federal é chamado a decidir sobre constitucionalidade, como no caso recente da análise da regra que impõe o regime do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras, os atores sociais mais efetivos “perdem o sono”. Temem que o órgão maior da Justiça decida contra o povo.17

Ora, a interpretação dos fatos sociais e do sistema jurí-dico, tarefa que se atribui aos juízes, é, destarte, fundamental à manutenção do status quo ou para as transformações sociais. Por outro lado, ser agente de manutenção ou de transforma-ção é escolha que se impõe ao juiz, e que, como sabemos, é também comprometida por sua formação e pela consciência que ele possua do relevante papel social que exerce.

É nesse sentido, destarte, que propomos, para uma her-menêutica inclusiva, a aplicação, pelos juízes, do princípio do “in dubio pro inclusão”, análogo aos que são praticados no Direito do Trabalho – in dubio pro operário – (PLá RODRIGUEZ, 1993) e no Direito Penal – in dubio pro réu – (MORAES FILHO, 2006).

17 Felizmente, no caso a que nos referimos, a decisão do STF foi de acordo com a melhor expectativa da sociedade.

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Com base no princípio do “in dubio pro inclusão”, toda vez que o magistrado tiver de optar, no caso concreto, por uma interpretação entre diversas possíveis, ele deverá es-colher aquela que, objetivamente, proporcione a inclusão. Entre transformação e petrificação das condições das pessoas, deverá optar por promover a transformação.

Demonstração significativa dessa opção transformadora restará evidente, por exemplo, quando os magistrados rece-berem as ações coletivas com menor resistência (BARBOSA GOMES, 1999).

Como sabemos, nosso processo, de caráter individualista, é utilizado por muitos juízes para uma postura resistente às transformações que podem ser obtidas através dele. Feliz-mente, a doutrina de agora tem sido insistente quanto ao caráter instrumental do processo.

Finalizamos esse tópico relembrando a máxima: “não existe lei boa para juiz ruim e não existe lei ruim para juiz bom”. Esperamos que muitos juízes sejam bons o suficiente para atenderem ao clamor dos milhões de excluídos neste país.

5 – CONSIDERAÇõES FINAIS

A promoção da igualdade material, efetiva, é uma das maiores preocupações do homem pós-moderno. Suas insti-tuições, a partir do Estado, são pensadas e utilizadas para a promoção do bem estar de todas as pessoas, pressupostos à paz interna e mundial.

O trabalho para a promoção da igualdade, pela inclu-são dos periféricos, destarte, é conseqüência, também, da constatação de que os problemas relativos à pobreza e às

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desigualdades de um modo geral, inclusive pela prática do racismo e de discriminações às mais diversas, foram gerados por defeito na formação das pessoas.

À maioria da população brasileira se nega a educação como bem mínimo, pelo qual a pessoa pode perceber sua dignidade e atuar eficazmente para as transformações pessoal e social. Nesse contexto, uma “revolução na educação”, pela qual a escola pública seja universal e eficaz, é fundamental a que a sorte de milhões de brasileiros seja efetivamente alterada.

Negros e deficientes físicos, entre outros grupos, con-tinuam marginalizados. Aos primeiros a sociedade brasi-leira outorga tratamento discriminatório dissimulado, cuja verdadeira compreensão se obtém da constatação do não acesso deles à formação de nível superior e a desempenho de papéis sociais de poder. A dignidade do negro brasileiro, no nosso sentir, só restará reconhecida a partir da prática de ações afirmativas, dentre as quais a reserva de cotas nas universidades é relevante exemplo.

Os deficientes físicos, por outro lado, ainda padecem no Brasil os problemas decorrentes da exclusão relacional e das barreiras arquitetônicas. Em boa hora veio, destarte, a Campanha da Fraternidade da CNBB, que provocou a re-flexão da sociedade brasileira quanto aos graves problemas por eles enfrentados.

Nesse quadrante da vida nacional, os juízes são cha-mados a uma firme atuação cidadã e como agente político. Quanto ao primeiro aspecto, são significativos os programas e campanhas desenvolvidos pelas Associações de Magistrados pelo Brasil.

A ANAMATRA (entidade nacional dos magistrados do trabalho) e as AMATRAS (entidades regionais) desenvol-

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vem o programa “Trabalho, Justiça e Cidadania”, pelo qual atuam para que estudantes do ensino fundamental e médio sejam instruídos quanto a direitos dos trabalhadores e sua efetivação.

A AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros –, por sua vez, promove relevantes campanhas em torno do uso da linguagem entre os profissionais do direito, para que permitam que as pessoas compreendam as coisas da Justiça, e por eleições éticas.

Por outro lado, o juiz agente político compreende que possui dois mecanismos fundamentais a uma atuação trans-formadora e inclusiva: a linguagem e a hermenêutica.

A linguagem acessível, técnica, porém livre dos jargões do “juridiquês” é para a identificação do homem que não veste a toga com o homem que veste a toga. Para aproximar o Poder do povo, razão e destino das ações políticas.

A interpretação é o instrumento de efetiva transformação. Ela pode revelar que não há lei ruim para juiz bem formado, consciente de seu papel social, o qual adotará, em situações extremas, o princípio do “in dubio pro inclusão”.

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ASPECTOS PROCESSUAIS E CONSTITUCIONAIS DA INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE REVISÃO CRIMINAL

Mauro Alencar de Barros*

Renata Cortez Vieira Severino**

REsumO

O presente artigo tem por objetivo analisar os aspec-tos processuais e constitucionais pertinentes ao disposto no art. 630 do Código de Processo Penal, que estabelece a possibilidade de o tribunal reconhecer o direito a uma indenização pelos prejuízos sofridos pelo condenado cuja ação de revisão criminal for julgada procedente. Para fins de harmonização entre o art. 630 do CPP e a Constitui-ção da República, entende-se que os tribunais criminais devem reconhecer, na revisão criminal, a existência ou não de erro judiciário e se este é ou não indenizável, restando a fixação da indenização correspondente para o juízo cível.

* Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Especialista em Processo Civil pela Faculdade Maurício de Nassau/ESMAPE e Professor da ESMAPE

** Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e Professora da Faculdade Maurício de Nassau.

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Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino280

Palavras-chave: 1. Revisão Criminal 2. Indenização 3. Procedimento

AbsTRAcT

The present article has for objective to analyze pertinent the procedural and constitutional aspects of art. 630 of the Code of Criminal Procedure, that establishes the possibility of the court to recognize the right to an indemnity for the damages suffered for the convict whose action of criminal revision will be judged originating. For ends of harmoniza-tion between art. 630 of the CCP and the Constitution, are understood that the criminal courts must recognize, in the criminal revision, the existence or of judiciary error and if this it is not or not subject to indemnification, remaining the setting of the corresponding indemnity for the civil judgment.

words-key: 1. Criminal Revision 2. Indemnity 3. Procedure

sumário: Notas introdutórias; Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente de revisão crimi-nal; Considerações finais; Referências.

NOTAS INTRODUTÓRIAS

É cediço que a revisão criminal constitui espécie de ação criminal de natureza constitutiva, prevista no artigo 621 e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), que pode ser

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Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal281

utilizada pelo condenado por sentença criminal transitada em julgado para pleitear ao Poder Judiciário, a qualquer tempo, o reexame de seu processo nas seguintes hipóteses: quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; quando a sentença se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; e, ainda, quando, após a sentença, forem descobertas novas provas de inocência do condenado ou de circunstâncias que determinem ou autorizem a diminuição especial da pena (art. 621, incisos I, II e III do CPP).

O objetivo do presente ensaio não é o de perquirir a respeito das hipóteses de cabimento ou mesmo do proces-samento da revisão criminal, mas o de analisar os aspectos processuais, de natureza cível, pertinentes ao disposto no art. 630 do Código de Processo Penal, que estabelece a possibilidade de o tribunal reconhecer, se o interessado o requerer, o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos pelo condenado cuja ação de revisão criminal for julgada procedente.

Trata-se, obviamente, de uma indenização cível por danos materiais e/ou morais concedida por órgão de juris-dição criminal, com reflexos na jurisdição cível, porquanto o parágrafo primeiro do mesmo art. 630 dispõe, in verbis, que: “Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível, responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça”.

O fato é que o Código de Processo Penal não estabelece qualquer regra, além da acima referida, concernente ao procedimento a ser adotado pelos tribunais criminais para o reconhecimento desse direito à indenização decorrente de revisão criminal, o que termina por acarretar orientações

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Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino282

extremamente diversificadas no âmbito dos Tribunais de Justiça brasileiros.

De uma leitura meramente perfunctória sobre o dis-posto no art. 630, §1° acima transcrito, é possível perceber que o Código de Processo Penal determina que o direito à indenização seja reconhecido pelo juízo criminal, restando apenas a fixação do quantum indenizatório pelo juízo cível, cujo montante deverá ser pago pelos cofres públicos, já que resultado de um erro judiciário.

Como se vê, a matéria envolve discussões de caráter pro-cessual e constitucional, na medida em que surge a questão relativa à imprescindibilidade ou não da participação da Fazenda Pública, em contraditório, no processo de revisão criminal, no qual será fixado o direito à indenização, já que será ela a responsável pelo pagamento do valor correspon-dente.

Para a maioria dos tribunais brasileiros, desnecessária se faz a citação da Fazenda Pública no processo de revisão criminal em que seja pleiteada a indenização decorrente do erro judiciário, a qual deverá participar apenas do processo de natureza cível em que ocorrerá a liquidação do valor da indenização.

A questão não é tão simples, entretanto. Reconhecer o direito do condenado a uma indenização decorrente da revisão criminal julgada procedente significa, sem sombra de dúvidas, condenar a Fazenda Pública em indenização por danos morais e/ou materiais, o que, em obediência aos princípios do contraditório e do devido processo legal conti-dos na Constituição da República de 1988, exigiria, a nosso ver, a citação do Estado ou da União para compor a lide e para responder aos termos do pedido indenizatório ou, no mínimo, encontrar uma solução alternativa que compatibi-

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lizasse o art. 630 do CPP com os princípios constitucionais processuais anteriormente referidos. Esse é, pois, o objeto deste ensaio.

O presente artigo foi resultado de um processo de Re-visão Criminal julgado pela Seção Criminal do Tribunal de Justiça de Pernambuco, de n° 152548-0, de Relatoria do Des. Gustavo Augusto Rodrigues de Lima, no qual, após o voto do Revisor, o Des. Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, o Des. Mauro Alencar de Barros (um dos autores deste ensaio), pediu vista dos autos e proferiu voto divergente do Relator e do Revisor, cujo posicionamento foi acompanhado pela maioria dos componentes da Seção Criminal, presentes à Sessão de julgamento.

Assim, por maioria de votos, no dia 21 de fevereiro do ano em curso, julgou-se procedente a sobredita revisão criminal, sendo que o voto de vista do Des. Mauro Alencar de Barros foi o vencedor no que concerne ao direito à in-denização decorrente do erro judiciário, o qual foi designado para lavrar o acórdão, que restou assim ementado:

PENAL E PROCESSO PENAL. CONSTITUCIO-NAL. REVISãO CRIMINAL. CONDENAçãO DO REQUERENTE POR CONDUTA ATÍPICA. DEFERIMENTO DO PEDIDO REVISIONAL À UNANIMIDADE DE VOTOS. PLEITO DE FIXA-çãO DE DIREITO À INDENIZAçãO DECOR-RENTE DE ERRO JUDICIáRIO. ART. 630 DO CPP. HARMONIZAçãO DO DISPOSITIVO COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO (CONTRADITÓRIO E DEVIDO PROCESSO LEGAL). RECONHECIMENTO DO ERRO JUDICIáRIO INDENIZáVEL. INDENI-ZAçãO A SER PLEITEADA NO JUÍZO CÍVEL

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COMPETENTE, COM A POSSIBILIDADE DE PARTICIPAçãO DA FAZENDA PÚBLICA, EM CONTRADITÓRIO. DECISãO POR MAIORIA DE VOTOS. 1. A conduta praticada pelo requeren-te, de dirigir veículo automotor sem habilitação, constitui apenas ilícito administrativo, não podendo, de per si, ser considerada como criminosa, exigindo o art. 309 do CTB a evidência de perigo concreto de dano, hipótese inocorrente no caso sub examine, motivo pelo qual merece acolhimento o pedido revi-sional. 2. Quanto ao pedido de fixação do direito a uma justa indenização em favor do requerente, em virtude do erro judiciário, com base no art. 630 do CPP, tem-se que diante dos inúmeros princípios e garantias processuais assegurados na Constituição democrática de 1988, não se vislumbra a possibili-dade de haver condenação de quem quer que seja à revelia, sem que lhe seja concedida a oportunidade de influenciar o convencimento do órgão julgador. Assim, o art. 630 do CPP, embora recepcionado pela Constituição de 1988, deve ser harmonizado com os princípios constitucionais do processo, notadamente o contraditório e o devido processo legal, sob pena de nulidade absoluta. 3. Em sede de revisão crimi-nal, fixar o direito do requerente a uma indenização, restando ao juízo cível tão somente a liquidação e execução do valor, equivale a condenar o Estado a uma indenização decorrente de responsabilidade civil por atos jurisdicionais. Nesse caso, forçoso seria promover a citação da Fazenda Pública para responder aos termos do pedido, em obediência aos ditames dos princípios do contraditório e do devido processo legal. Tal solução, no entanto, traria para o

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juízo criminal discussões que são inerentes ao juízo cível, relativas à responsabilidade civil do Estado, além de que seria necessário suspender o julgamento da revisão criminal, transformando-o em diligência, o que acarretaria um prolongamento do feito, em prejuízo de uma prestação jurisdicional efetiva. 4. Por isso, buscando-se uma solução intermediária, considera-se que, no juízo revisional, deverá ser reconhecida (ou não) a existência de erro judiciário e se este é indenizável, devendo toda a discussão relativa à caracterização ou não da responsabilidade civil do Estado, à existência ou não de danos e ao eventual valor da indenização ser levada a efeito no juízo cível. 5. No caso em apreciação, não há dúvidas de que houve erro judiciário, porquanto o requerente foi condenado por conduta considerada atípica, conduta esta que já era atípica quando de sua prática pelo requerente, em fevereiro de 2005. Ade-mais, não incide nenhuma das hipóteses previstas no art. 630, §2º do CPP, porquanto o erro não pode ser imputado ao requerente. 6. Destarte, pensa-se que há erro judiciário indenizável, sendo que a indeni-zação correspondente deverá ser pleiteada em ação própria pelo requerente, a ser interposta no juízo cível, ambiente próprio para as discussões relativas à responsabilidade civil do Estado e, notadamente, em respeito aos princípios do contraditório e do devido processo legal. 7. À unanimidade de votos, deferiu-se o pedido revisional, com a absolvição do requerente e, por maioria de votos, reconheceu-se a existência de erro judiciário indenizável, facultando ao requerente postular a indenização correspon-dente em ação própria, no juízo cível. ACÓRDãO

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Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de revisão criminal nº 152548-0, em que figuram, como requerente, Damião Pereira de Lima e, como requerido, o Ministério Público de Pernambuco, acordam os Desembargadores componentes da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, por unanimidade de votos, em deferir o pedido revisional, com a absolvição do requerente e, por maioria de votos, em reconhecer a existência de erro judiciário indenizável, facultando ao requerente postular a indenização correspondente em ação própria, no juízo cível, sendo que o Des. Marco Maggi indeferia o pedido de indenização, por considerar inexistente o erro judiciário na hipótese, tudo consoante consta do relatório e votos em anexo, que passam a fazer parte do julgado.

Em virtude da grande relevância do tema, transformamos o voto em artigo científico, no qual sugerimos uma solução de harmonização entre o art. 630 do CPP e os princípios consti-tucionais processuais do contraditório e do devido processo legal. Passamos, nesse ínterim, à sua exposição.

1 – ASPECTOS PROCESSUAIS E CONSTITU-CIONAIS DA INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE REVISÃO CRIMINAL

Na Revisão Criminal n° 152548-0, de Relatoria do Des. Gustavo Augusto Rodrigues de Lima, em tramitação na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de Pernambuco, o requerente formulou pedido revisional, em virtude de ter sido condenado pela prática do delito de direção de veículo automotor sem

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permissão ou habilitação para dirigir, nos termos do art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

Aduziu que o art. 309 do CTB, ao acrescentar ao tipo penal acima referido a expressão “gerando perigo de dano”, passou a exigir a ocorrência de perigo concreto de dano quando alguém venha a dirigir sem permissão ou habilitação, conforme a Súmula 720 do Supremo Tribunal Federal.

Nesses termos, não tendo havido o pré-falado perigo concreto, aduziu o requerente que praticou mera infração administrativa, conduta considerada atípica para o Direito Penal.

Quanto a esse aspecto do pedido, inexistiram maiores controvérsias no julgamento da Revisão pela Seção Criminal. À unanimidade de votos, reconheceu-se que a conduta do paciente era efetivamente atípica.

Isto porque, em momento algum nos autos, ficou demon-strada – sequer foi mencionada, nem mesmo na denúncia – a prática de direção perigosa por parte do requerente. Apesar de ter confirmado em juízo que estava dirigindo sem habili-tação, não houve o menor indício de que o requerente estava, além dessa atitude, oferecendo perigo concreto de dano aos demais motoristas ou aos transeuntes.

A conduta praticada pelo requerente tratava-se, portanto, de mero ilícito administrativo, não podendo, de per si, ser considerada como criminosa, exigindo o art. 309 do CTB a evidência de perigo concreto de dano, hipótese inocorrente no caso examinado.

Por isso é que, como dito alhures, à unanimidade de votos, julgou-se procedente o pedido de revisão criminal, desconstituindo-se, portanto, a sentença penal condenatória e se absolvendo o requerente.

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Acontece que o requerente formulou um outro pedido, com esteio no art. 630 do Código de Processo Penal, de fixa-ção do seu direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência dos fatos acima referidos, que, a seu ver, caracterizavam erro judiciário.

Embora o art. 630 tenha sido inserido no Código de Processo Penal desde a sua edição, em 1941, parece-nos que a matéria ainda se encontra no terreno da incerteza, notada-mente no que concerne ao procedimento para fixação dessa indenização, que é de natureza cível, embora reconhecida no âmbito da revisão criminal.

É certo que, com o pedido de indenização formulado na inicial, a revisão criminal passa a apresentar uma cumula-ção objetiva heterogênea de ações penais (ou de pedidos): uma constitutiva penal, de revisão da sentença e outra con-denatória cível, de indenização pelos prejuízos sofridos. E se diz cumulação heterogênea porque há um provimento de natureza penal e outro de natureza cível, cumulados, em uma única demanda.

A priori, o que nos chamou a atenção não foi o fato de se poder reconhecer, na revisão criminal, o direito a uma indenização de natureza cível contra o Estado em face da possibilidade de um erro judiciário, mas o de negar ou de não permitir ao Estado (Fazenda Pública) a possibilidade de participação nessa demanda, em obediência aos ditames do princípio do contraditório, já que será o sujeito passivo do eventual direito à indenização reconhecido.

Nas várias pesquisas empreendidas na doutrina e na jurisprudência pátria, quase nada há sobre o tema, repita-se, especificamente no que toca à possibilidade (ou não) de par-ticipação do Estado no processo de Revisão Criminal, quando houver pedido de fixação do direito à indenização.

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Uma das autoras que discorre sobre o assunto é Ada Pellegrini Grinover (1997, p. 333), a qual considera que:

Essa pretensão civil, feita valer no juízo criminal, tem peculiaridades no sistema brasileiro, porquanto a Fazenda Pública – sujeito passivo da pretensão: §1º do art. 630 – não é citada para se defender. Somente o Ministério Público é parte passiva na demanda revisional, de modo que se deve entender que o parquet representa no processo não apenas o interesse penal do Estado mas também o interesse civil da Fazenda.

José Frederico Marques (1997), por seu turno, entende que se o pedido é formulado diretamente na revisão criminal, não há possibilidade de participação do Estado. No entanto, se o pleito foi realizado ulteriormente, o Estado deve ser ouvido.

A nosso ver, com a devida vênia aos doutrinadores acima referidos, pensa-se que essa não é a solução que melhor se coaduna com os pilares principiológicos da Constituição da República de 1988. Explica-se.

Já ressaltamos acima que o Código de Processo Penal entrou em vigor em 1941, época em que vigia a Constitu-ição Federal de 1937, outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas em 10 de novembro do mesmo ano, mesmo dia em que foi implantada a ditadura do Estado Novo. Constituição pretensamente democrática, mas que evidenciava conteúdo fortemente centralizador de poderes nas mãos do Presidente e influenciado pelo fascismo.

A mencionada Carta Constitucional, segundo Sylvio Motta e Gustavo Barchet (2007, p. 53), apresentava as seguintes características: supressão do Congresso Nacional

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e dos partidos políticos; convergência de todo o poder para o Executivo; restrições ao Poder Judiciário; limitação da autonomia dos Estados-membros; e restauração da pena de morte.

Da leitura do texto constitucional referido, constata-se que não havia previsão de indenização a ser paga pelo Estado por erro judiciário, tampouco eram garantidos o contra-ditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

Justifica-se, então, a inexistência de norma no Código de Processo Penal estabelecendo, na época de sua edição, a possibilidade de participação do Estado (Fazenda Pública), em contraditório, no processo de revisão criminal, quando da formulação de pedido de fixação de direito indenizatório.

Hoje, diante dos inúmeros princípios e garantias proces-suais assegurados na Constituição democrática de 1988, não se vislumbra a possibilidade de haver condenação de quem quer que seja à revelia, sem que lhe seja concedida a oportu-nidade de influenciar o convencimento do órgão julgador.

O princípio do contraditório, erigido a norma constitucio-nal fundamental, não admite sequer exceções, posto que vem sendo considerado pela doutrina como absoluto, devendo ser sempre observado, sob pena de nulidade do processo.

Mesmo quando o contraditório é diferido, como nas hipó-teses de concessão de medidas liminares inaudita altera pars, o mencionado princípio tem aplicação, só que é postergado para depois da decisão, em virtude da urgência da medida evidenciada no caso concreto.

Assim é que, apesar da indenização por erro judiciário estar prevista na Constituição de 1988 como direito fun-damental, no art. 5º, inciso LXXV, é preciso interpretar a mencionada norma em consonância com os demais princí-pios e garantias de mesmo status constitucional, como são o

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contraditório e o devido processo legal, insertos no mesmo dispositivo, em seus incisos LV e LIV, respectivamente.

Em suma, o direito à indenização por erro judiciário não exclui, obviamente, a aplicação do princípio do contraditório e, via de conseqüência, do devido processo legal.

Assim é que, a nosso ver, o art. 630 do CPP, embora re-cepcionado pela Constituição de 1988, deve ser harmonizado com os princípios constitucionais do processo, notadamente o contraditório e o devido processo legal, sob pena de nuli-dade absoluta.

Por isso, entendemos que não há como distinguir, para fins de aplicação do princípio do contraditório, as hipóteses de pedido de indenização formulado no bojo da revisão criminal e pedido formulado ulteriormente, através de ação própria.

Não há razões para a diferenciação. O contraditório deve ser observado indistintamente, numa ou noutra situação, porquanto não se pode admitir, na atual realidade consti-tucional, a condenação de alguém que não participou do processo.

E tampouco se pode considerar o Ministério Público como defensor dos interesses de natureza cível do Estado, nem de modo excepcional.

Isto porque, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, o Ministério Público passou a não mais exercer a defesa dos interesses do Estado que, em inúmeras vezes, podem ser conflitantes com os reais interesses da sociedade.

Se o Ministério Público representa o interesse público primário, não pode representar o denominado interesse público secundário, das pessoas jurídicas de direito público, o que terminaria por acarretar uma contradição no que tange à colidência desses interesses.

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A defesa do Estado (lato sensu), obviamente, deve ser promovida pelas suas respectivas Procuradorias e pela Ad-vocacia da União, conforme o caso, nunca pelo Ministério Público.

Ressalte-se que a Constituição da República expressa-mente veda a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas pelo Ministério Público. É o que consta do art. 129, inciso IX da Constituição:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:Omissis.IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Do que se expôs, chega-se à conclusão de que, em sede de revisão criminal, fixar o direito do requerente a uma in-denização, tal como previsto no art. 630 do CPP, restando ao juízo cível tão somente a liquidação e execução do valor, equivale a condenar o Estado a uma indenização decorrente de responsabilidade civil por atos jurisdicionais.

Nesse caso, forçoso seria promover a citação da Fazenda Pública para responder aos termos do pedido, em obediên-cia aos ditames dos princípios do contraditório e do devido processo legal.

Embora não prevista no Código de Processo Penal, tal solução foi adotada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), conforme demonstra o seguinte julgado:

EMENTA: REVISãO CRIMINAL – PRELIMINAR – PEDIDO INDENIZATÓRIO CUMULATIVO

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– CITAçãO DA FAZENDA PÚBLICA – CON-VERSãO DO JULGAMENTO EM DILIGÊNCIA – NECESSIDADE. Havendo pretensão indenizatória em sede de revisão criminal, indispensável a citação da Fazenda Pública, para integrar a lide, sob pena de violação do contraditório. (Revisão Criminal nº 1.0000.05.422519-8/000, Relator para o Acórdão, Des. ELI LUCAS DE MENDONçA, j. 03.07.2007, DJ de 19.09.2007)

No inteiro teor do julgado acima, ressalta o Desembar-gador Eli Lucas de Mendonça o que se segue:

“(...) Vislumbro necessidade da conversão do julga-mento em diligência para citação da Fazenda Pública para responder ao pleito indenizatório cumulativo constante da inicial.

É que, havendo pretensão indenizatória em sede de revisão criminal, indispensável se torna a citação da Fa-zenda Pública para integrar a lide, sob pena de violação do contraditório. Na verdade, conquanto o Ministério Público represente os interesses de ordem penal do Estado, como su-jeito passivo, não está legitimado a fazê-lo relativamente aos interesses de ordem civil - atribuição afeta à outra entidade, in casu a Procuradoria-Geral do Estado - nos termos do art. 129, IX, da CF/88. (...)”

Ocorre que, na jurisprudência, não vislumbramos nenhu-ma outra decisão no mesmo sentido. Pesquisamos nos Tribu-nais de Justiça de Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Bahia.

Encontramos diversos posicionamentos sobre o tema da indenização, mas, com exceção do TJMG, nenhum outro tribunal se pronunciou acerca do princípio do contraditório e da necessidade de citação da Fazenda Pública quando

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da formulação de pedido indenizatório em sede de revisão criminal.

Na maior parte das decisões, o direito à indenização é reconhecido sem que haja qualquer pronunciamento acerca da posição da Fazenda Pública nesse cenário, qual seja, o da condenação sem contraditório.

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), há decisão re-conhecendo o direito à indenização sem qualquer referên-cia ao contraditório ou à participação da Fazenda Pública. Observe-se:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. REVISãO CRIMINAL. ERRO JUDICIáRIO. DIREITO À JUSTA INDENIZAçãO PELOS PRE-JUÍZOS SOFRIDOS.É devida indenização uma vez demonstrado erro judiciário ex vi art. 5º, inciso LXXV, da Constitui-ção Federal e art. 630 do CPP. In casu, restaram devidamente comprovados os prejuízos sofridos pelo recorrente, razão pela qual não há óbice a uma justa indenização.Recurso provido.(REsp 253674/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 04.03.2004, DJ 14.06.2004 p. 264)

No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, há decisão que extrapola os termos do art. 630 do Código de Processo Penal, porquanto não apenas reconhece o direito à indenização como também já fixa o valor correspondente. Senão vejamos:

“REVISãO CRIMINAL. ROUBO AGRAVADO. ARTIGO 157, §2º, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL.

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USO INDEVIDO DO NOME DO REQUERENTE PELO VERDADEIRO CRIMINOSO. REEXAME DA PROVA. PROVA NOVA. EXTINçãO DA PUNIBILIDADE PELA OCORRÊNCIA DE PRESCRIçãO DA PRETENSãO EXECUTÓRIA. RECONHECIMENTO DO DIREITO À INDENI-ZAçãO. ARTIGO 630, ‘CAPUT’, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E ARTIGOS 5º, LXXV E 37, §6º, AMBOS DA CONSTITUIçãO FEDERAL. PROCEDÊNCIA EM PARTE DO PEDIDO.(...)Sendo assim, dá-se procedência, em parte, a presente Revisão Criminal, para declarar extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão executória, na ação criminal – processo nº 1986.3926 (TB 7294/87-9) –, que tramitou perante o Juízo da 7ª Vara Criminal da Comarca da Capital e, declarar a inocência de André Luiz Marins, cujo nome foi indevidamente usado pelo verdadeiro criminoso e para reconhecer direito a inden-ização em valor equivalente a cem salários mínimos”. (TJRJ, Revisão Criminal nº 2004.053.00157, Des. Maria Raimunda T. Azevedo, j. 18.10.2006).

No mesmo sentido, há decisão proferida pela 4ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

“PROCESSO PENAL. REVISãO CRIMINAL. PROCEDÊNCIA.ABSOLVIçãO POR ATIPIA DA CONDUTA. INDENIZAçãO.O condenado que, em sede de revisão criminal, é absolvido por atipicidade dos fatos que lhe foram imputados na ação penal em que exarada a sentença revisanda, faz jus, nos moldes do art. 630 do CPP

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e do art. 5º, LXXV da CF, a uma justa indeniza-ção pelos danos materiais e morais decorrentes do erro judiciário”. (ED na Revisão Criminal nº 2005.04.01.006340-5/SC, j. 15.03.2007)

No inteiro teor do acórdão, pode-se vislumbrar a fixação do quantum indenizatório pelo Relator, o Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz:

“(...) Assim, reconheço o direito do ora embargante a uma justa indenização pelos danos materiais e morais. A primeira consistente na devolução dos valores por ele adimplidos a título de pena de multa e de prestação pecuniária, corrigidos monetariamente pelos índices oficiais e acrescidos de juros compensatórios de 6% (seis por cento) ao ano, e a segunda ao equivalente a 1/3 (um terço) do salário mínimo nacional vigente no momento do pagamento por mês de prestação de serviços à comunidade cumprida, valores estes a serem liquidados na forma do prescrito pelo §1º do artigo 630 da Lei Adjetiva Penal”.

Já no seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, considerou-se que o pedido de indenização deve ser formulado no juízo cível:

EMENTA: REVISãO CRIMINAL. CONDENA-çãO POR FURTO QUALIFICADO. ERRO DE PESSOA. PROVA. INDENIZAçãO. PRESCRIçãO. Não há nos autos elementos suficientes para análise do alegado erro de pessoa. Pedido indenizatório que poderá ser postulado em ação própria. Decorrido o prazo prescricional entre o recebimento da denúncia

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e a sentença condenatória, é de ser declarada extinta a punibilidade com fundamento nos arts. 109, V, e 110, ambos do CP. (Revisão Criminal Nº 70017439076, Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Eugênio Tedesco, Jul-gado em 09/03/2007)

A nosso ver, em nenhuma dessas decisões, com a devida vênia, evidencia-se a necessária harmonização entre as regras e princípios envolvidos no caso em apreciação.

Como já dito alhures, para que se pudesse, nos termos do art. 630 do CPP, reconhecer o direito do requerente a uma indenização, seria obrigatória a citação da Fazenda Pública para responder ao pleito indenizatório, sob pena de violação ao princípio do contraditório.

Tal solução, no entanto, traria para o juízo criminal discussões que são inerentes ao juízo cível, relativas à res-ponsabilidade civil do Estado, além de que seria necessário suspender o julgamento da revisão criminal, transformando-o em diligência, o que acarretaria um prolongamento do feito, em prejuízo de uma prestação jurisdicional efetiva.

Inobstante, não se pode condenar a Fazenda Pública sem que esta participe do processo. É preciso, pois, encontrar uma saída intermediária.

Por isso é que entendemos que a melhor solução para a questão foi dada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento da Revisão Criminal nº 00914141.3/3-0000-000, ocorrido em 22.11.2006, cujo Relator foi o Des. Guilherme G. Strenger, cujo voto, em sua parte final, relativa ao pedido indenizatório, foi proferido nos seguintes termos:

“Reconhecido, assim, o erro judiciário, ao Estado cumpre indenizar o revisionado, nos termos do artigo

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5º, inciso LXXV, da Constituição Federal, e artigo 630 do Código de Processo Penal, devendo tal pos-tulação ser formulada em ação própria”.

Na decisão acima, ficou reconhecido o erro judiciário e que este é indenizável, sendo que o requerente, para obter a indenização correspondente, deverá propor ação própria no juízo cível.

Tal solução não torna o juízo revisional inócuo em rela-ção ao pedido indenizatório e é a que melhor se coaduna com o princípio do contraditório e do devido processo legal, além de que não traz indevidamente para o juízo criminal discussões de natureza cível. Explica-se.

Primeiramente, deve-se dizer que, embora o erro ju-diciário dê ensejo à ação de revisão criminal, nem todo juízo revisional procedente considerará configurado o erro judiciário.

Há inúmeras situações em que não se evidencia o erro judiciário, mesmo quando o pedido é deferido. Há também as situações em que há erro, mas esse erro não é imputável ao Poder Judiciário e, portanto, não é indenizável, porquanto provocado pelo próprio réu.

Pode-se mencionar, a título de exemplificação, a hipótese de alegação de fatos novos na revisão, não existentes na época do juízo condenatório. Nesse sentido, já julgou o TJRJ:

“Revisão criminal. Crime de estupro. Condenado apresentando atrofia de membro superior em decor-rência de poliomielite. Impossibilidade da prática criminosa com a violência real descrita pela vítima. Prova nova demonstrativa de que a sentença revisanda contraria a evidência dos autos. Procedência do pe-dido revisional para absolver o requerente. Direito a

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indenização negado. Não possuindo o requerente, em decorrência de seqüelas deixadas pela poliomielite, força nem mobilidade em seus braços, necessárias a subjugar a vítima, ainda que menor, para com ela manter relações sexuais, notadamente em moradia onde também dormiam irmãos da vítima e que nada perceberam, havendo assim incompatibilidade entre o relato da vítima de que teria havido violência real e a condição física do apontado como autor do crime de estupro noticiado nos autos, e evidenciando a nova prova que a condenação está em dissonância com o apurado, merece ser julgada procedente a correspon-dente revisão criminal, todavia, sendo indevida a indenização pleiteada, por ter o Juízo julgado com as provas que então dispunha. (TJRJ, Revisão Criminal nº 1996.053.00035, Des. José Affonso Rondeau, j. 12.08.1998).

Nesse caso, não há erro judiciário. Há também as situações em que há apenas redução de pena ou mesmo modificação do regime de cumprimento da pena, em virtude de alterações legislativas posteriores, o que também não ensejaria erro judiciário.

Mesmo na hipótese de reconhecimento de atipicidade da conduta, não é sempre se que considera ocorrente o erro judiciário. Numa das decisões acima referidas, do TRF da 4ª Região, considerou-se que a atipicidade da conduta é fato gerador da indenização.

Há, no entanto, decisão em sentido contrário, como a pro-ferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível nº 319.897-5/1-00, Rel. Des. Marcio Franklin Nogueira, j. 08.05.2007), da qual chamamos a atenção para o seguinte excerto, em que referido órgão julgador aprecia a questão

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relativa ao direito à indenização e à responsabilidade civil do Estado, mas no juízo cível, considerando inexistente o erro judiciário em caso de atipicidade da conduta:

“Assim, especificamente no tocante ao caso dos au-tos, não se pode falar em erro judiciário. A absolvição em grau de revisão criminal deu-se por entender a Turma Julgadora ‘não constituir o fato infração penal’ (art. 386, III, do CP). Não se configurou qualquer erro substancial, inescusável, imputável a dolo ou culpa do juiz sentenciante. E sem isso, como visto, não há se falar mesmo em responsabilidade indenizatória do Estado”.

Esses exemplos demonstram que, uma vez deferido o pedido de revisão, não se considera, automaticamente, con-figurado o erro judiciário.

Destaque-se que o próprio Código de Processo Penal es-tabelece hipóteses em que o erro judiciário não é indenizável: a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder; b) se a acusação houver sido meramente privada (hipótese rechaçada pela doutrina e jurisprudência).

Assim é que se, na revisão criminal, considera-se que há erro judiciário indenizável, essa matéria não poderá ser rediscutida no juízo cível.

Desse modo, não poderá o Estado, na ação ordinária própria, alegar, por exemplo, que não há erro judiciário ou que estão presentes as hipóteses excludentes previstas no art. 630, §2º do CPP, posto que tal matéria já terá sido apreciada pelo juízo criminal.

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Destarte, ultrapassada a questão relativa à existência de erro judiciário indenizável, a discussão, no juízo cível, restringir-se-á à definição do direito à indenização.

E isso pode acontecer, a toda evidência.Primeiro porque há uma importante discussão, própria

do juízo cível, relativa à responsabilidade civil do Estado.Sabe-se que o art. 37, §6º da Constituição Federal esta-

belece a responsabilidade civil objetiva do Estado por atos de seus agentes.

Acontece que, em se tratando de atos jurisdicionais, não é pacífico o entendimento de que tal responsabilidade é também objetiva.

No Supremo Tribunal Federal, há julgado considerando objetiva a responsabilidade do Estado por erro judiciário, prescindindo de demonstração da culpa ou dolo por parte do agente público. Senão vejamos:

EMENTA: Erro judiciário. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Direito à indenização por danos morais decorrentes de condenação desconstituída em revisão criminal e de prisão preventiva. CF, art. 5º, LXXV. C.Pr.Penal, art. 630. 1. O direito à indeni-zação da vítima de erro judiciário e daquela presa além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV, da Constituição, já era previsto no art. 630 do C. Pr. Penal, com a exceção do caso de ação penal privada e só uma hipótese de exoneração, quando para a condenação tivesse contribuído o próprio réu. 2. A regra constitucional não veio para aditar pressupostos subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, conforme o art. 37, § 6º, da Lei Fundamental: a partir do entendimento consoli-dado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil

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do Estado por atos de jurisdição, estabelece que, naqueles casos, a indenização é uma garantia indi-vidual e, manifestamente, não a submete à exigência de dolo ou culpa do magistrado. 3. O art. 5º, LXXV, da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que nem impede a lei, nem impede eventuais construções doutrinárias que venham a reconhecer a responsa-bilidade do Estado em hipóteses que não a de erro judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva do serviço público da Justiça. (RE 505393/PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 26.06.2007)

Tal decisão, entretanto, foi proferida por maioria pela Primeira Turma, e há outras decisões da mesma Corte Supe-rior considerando a necessidade de comprovação da culpa ou dolo para fins de caracterização da responsabilidade estatal por atos jurisdicionais. Nesse sentido, veja-se o seguinte aresto:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRA-TIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: ATOS DOS JUÍZES. C.F., ART. 37, § 6º. I. – A responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. II. – Decreto judicial de prisão preventiva não se confunde com o erro judiciário ¾ C.F., art. 5º, LXXV ¾ mesmo que o réu, ao final da ação penal, venha a ser absolvido. III. – Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido.( RE-AgR 429518 / SC, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 05.10.2004)3

3 No mesmo sentido, vide RE 219117 / PR.

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A controvérsia não existe apenas no STF. No TJRS, por exemplo, considera-se a responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais subjetiva. Vide, a respeito, o teor da Apelação Criminal nº 70017761073.

Considerando-se a responsabilidade subjetiva, deverá o requerente comprovar a culpa ou dolo do agente público (juiz), além de ter que demonstrar a existência dos danos, morais ou materiais, decorrentes da ação estatal.

Ainda que se entenda ser a responsabilidade estatal por atos jurisdicionais objetiva, o requerente não fica isento de comprovar a existência desses danos, para que possa receber a indenização correspondente.

A Fazenda Pública, por seu turno, no exercício pleno do contraditório e da ampla defesa, poderá defender, na ação própria a tramitar no juízo cível, a tese da responsabilidade subjetiva ou mesmo alegar e demonstrar que não existiram prejuízos. Pode também comprovar a existência de causas excludentes da ilicitude – obviamente não as previstas no art. 630, §2º do CPP, porquanto estas já foram apreciadas no juízo da revisão criminal.

Por isso, entendemos que, no juízo criminal, deverá ser reconhecida (ou não) a existência de erro judiciário e se este é indenizável, devendo toda a discussão relativa à caracteriza-ção ou não da responsabilidade civil do Estado, à existência ou não de danos e ao eventual valor da indenização ser levada a efeito no juízo cível.

Nessa esteira e feitas tais considerações, tem-se que, no caso da Revisão Criminal n° 152548-0, não há a menor dúvida de que houve erro judiciário, porquanto o requerente foi condenado por conduta considerada atípica. Ressalte-se que a conduta já era atípica quando de sua prática pelo re-querente, em fevereiro de 2005.

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Ademais, não incide nenhuma das hipóteses previstas no art. 630, §2º do CPP, porquanto o erro não poderia ser imputado ao requerente.

Destarte, pensa-se que há erro judiciário indenizável, sendo que a indenização correspondente deverá ser pleiteada em ação própria pelo requerente, a ser interposta no juízo cível, ambiente próprio para as discussões relativas à respon-sabilidade civil do Estado e, notadamente, em respeito aos princípios do contraditório e do devido processo legal.

2 - CONSIDERAÇõES FINAIS

Embora o art. 630 do Código de Processo Penal esta-beleça que o tribunal pode, a requerimento do condenado, fixar direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência do erro judiciário, não se pode condenar a Fa-zenda Pública a uma indenização sem que lhe seja conferida a possibilidade de participação do processo em contraditório, nos termos do art. 5° , LV da Constituição da República.

Assim, para que se pudesse, nos termos do art. 630 do CPP, reconhecer o direito do condenado a uma indenização por erro judiciário no âmbito da revisão criminal, seria obrigatória a citação da Fazenda Pública para responder ao pleito indenizatório, sob pena de violação ao princípio do contraditório e, bem assim, do devido processo legal.

Tal solução, no entanto, traria para o juízo criminal discussões que são inerentes ao juízo cível, relativas à res-ponsabilidade civil do Estado, além de que seria necessário suspender o julgamento da revisão criminal, transformando-o em diligência, o que acarretaria um prolongamento do feito, em prejuízo de uma prestação jurisdicional efetiva.

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Nesses termos, tem-se que, na revisão criminal, deve o tribunal se limitar a reconhecer a existência ou não de erro judiciário e a definir se esse erro é ou não indenizável. Assim, o condenado, para que possa obter a indenização correspon-dente, deverá propor ação própria no juízo cível.

Deve-se destacar que tal solução não torna o juízo revi-sional inócuo em relação ao pedido indenizatório, uma vez que há inúmeras situações em que não se evidencia o erro judiciário, mesmo quando o pedido é deferido. Há também as situações em que há erro, mas esse erro não é imputável ao Poder Judiciário e, portanto, não é indenizável, porquanto provocado pelo próprio réu.

Ademais, essa orientação não traz indevidamente para o juízo criminal discussões de natureza cível, além de ser a que melhor se coaduna com os princípios do contraditório e do devido processo legal, porquanto permite à Fazenda Pública, no exercício pleno dos referi-dos princípios constitucionais processuais, defender, na ação própria a tramitar no juízo cível, a tese da res-ponsabilidade subjetiva ou mesmo alegar e demonstrar que não existiram prejuízos, além de poder também comprovar a existência de causas excludentes da ilici-tude – obviamente não as previstas no art. 630, §2º do CPP, porquanto estas já teriam sido apreciadas no juízo da revisão criminal.

Deste modo, entendemos que, no juízo criminal, deverá ser reconhecida (ou não) a existência de erro judiciário e se este é indenizável, devendo toda a discussão relativa à caracterização ou não da responsabilidade civil do Estado, à existência ou não de danos e ao eventual valor da indenização ser levada a efeito no juízo cível, em estrita obediência aos princípios do contraditório e do devido processo legal.

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REFERÊNCIAS

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 505393/PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 26.06.2007. Disponível a partir de: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.

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TRIBUNAL DE JUSTIçA DE MINAS GERAIS. Re-visão Criminal nº 1.0000.05.422519-8/000, Relator para o Acórdão: Des. ELI LUCAS DE MENDONçA, j. 03.07.2007, DJ de 19.09.2007. Disponível a partir de: <http://www.tjmg.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.

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TRIBUNAL DE JUSTIçA DE SãO PAULO. Revisão Criminal nº 00914141.3/3-0000-000, j. 22.11.2006, Relator: Des. Guilherme G. Strenger. Disponível a partir de: <http://www.tjsp.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.

TRIBUNAL DE JUSTIçA DO RIO DE JANEIRO. Revisão Criminal nº 1996.053.00035, Relator: Des. José Af-fonso Rondeau, j. 12.08.1998. Disponível a partir de: <http://www.tjmg.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.

TRIBUNAL DE JUSTIçA DO RIO DE JANEIRO. Re-visão Criminal nº 2004.053.00157, Des. Maria Raimunda T. Azevedo, j. 18.10.2006. Disponível a partir de: <http://www.tjmg.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.

TRIBUNAL DE JUSTIçA DO RIO GRANDE DO SUL. Revisão Criminal nº 70017439076, Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Relator: José Eugênio Tedesco, Julgado em 09/03/2007. Disponível a partir de: <http://www.tjrs.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.

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O EmbATE ENTRE As TEsEs BIOLOGISTA E SOCIOAFETIVA: QUAL

O MELHOR INTERESSE DO FILHO?

Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade1

REsumO

Diante da existência de uma dicotomia real de paterni-dades, uma socioafetiva e outra biológica, um dos critérios deve sucumbir ao outro em casos específicos de atribuição de paternidade quando obviamente os critérios se excluem. Assim, em ação de investigação de paternidade, o critério exclusivamente biológico deve ser afastado, se comprovado que a paternidade socioafetiva atende ao melhor interesse do filho, propondo este breve estudo soluções para casos determinados de conflito de paternidades, verificando-se que nestas hipóteses, impõe-se a aplicação do princípio da afetividade.

Palavras-chave: paternidade – desbiologização – so-cioafetividade.

1 Advogada, Especialista e Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco e Professora da Faculdade Maurício de Nassau.

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AbsTRAcT

Due to the dichotomy that exists between socioaffective and biological paternities, one of the criterias to establish this tie should be excluded. For this reason, in legal actions, the exclusive biological criteria should be excluded when it is proved that the socioaffective paternity is better for the child’s interest. This brief work tries to study specific situations of paternity conflict, observing that in such cases the affectivity principle should be applied.

Key-words: paternity – debiologization – socio-affec-tivity.

sumário: 1 Introdução – 2 A afetividade como argu-mento jurídico – 3 O embate das teses biologista e socioafe-tiva a partir da Súmula 301 do STJ – 4 Hipóteses do mundo fático – 5 Conclusões – 6 Referências.

1 – INTRODUÇÃO

Considerando que no estágio atual do direito de família brasileiro o instituto da paternidade encontra-se diante de uma dicotomia conceitual e que isso reflete diretamente sobre a atribuição ou reconhecimento de paternidade de filhos extra-matrimoniais (que não se encontram sob o pálio da presunção pater is est), duas correntes se digladiam nos tribunais: a teoria da afetividade e a do biologismo. A primeira tem como fundamento a afetividade humana, construída no dia-a-dia, nas relações cotidianas; a segunda tem como esteio a herança genética, a ser facilmente comprovada pelo exame de DNA.

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Nessa travessia do novo milênio, em que se busca a nova configuração familiar (FACHIN, 2001, p. 9-13), a palavra de ordem é flexibilização. Flexibilizar a norma, permitir e ampliar a interpretação, preencher nos casos concretos o conteúdo de normas abertas e princípios norteadores. Não se pode tratar com rigorismos, com regras fechadas ou generalizações o que, por natureza, não se pode tipificar, sobretudo quando ainda não se está assentado em certezas sequer relativas. A família contemporânea e tudo o que está diretamente ligado a ela encontra-se no meio de um processo de mudanças; justamente por isso pode-se perceber o grau de incertezas, de experimen-tos, de desejos de estabilização. Contudo, não se pode dizer ainda até quando esse estágio de coisas poderá durar, pois as mudanças muitas vezes implicam readaptações culturais, o que leva certo tempo para ser absorvido pela sociedade e pelo Estado como um todo.

No caso da afetividade, por exemplo, a sociedade vem absorvendo cada vez mais a suplantação da consangüinidade pelo afeto nas relações familiares, em virtude de situações que decorrem do cotidiano das pessoas e que as afetam direta-mente, porém o Estado, sobretudo quanto aos Poderes Legis-lativo e Judiciário, ainda não conseguiu acompanhar os passos dessas mudanças, o que fica evidente diante da ambigüidade do Código Civil de 2002 e da impropriedade da Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça.

2 – A AFETIVIDADE COMO ARGUMENTO JURÍ-DIcO

É possível invocar a afetividade no direito de filiação em duas perspectivas: como fundamento para o estabeleci-

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mento de vínculos paterno-filiais e como forma de impedir o rompimento destes mesmos vínculos, impossibilitando a sua desconstituição. Nas duas situações, o que se tem é a confirmação formal de uma realidade fática, através do re-conhecimento formal de uma situação já existente, mas ainda não juridicizada, seja para a manutenção de uma situação já existente e juridicizada.

Embora o Código Civil de 2002 possa parecer ambíguo, já que não abandona o uso das presunções e ainda as alia à vinculação biológica, como nas hipóteses de presunção de paternidade por inseminação artificial homóloga, não deixa de ser referido como inclusivo da paternidade ampla e do princípio da afetividade (LOBO, 2006, p. 3), decorrentes dos arts. 1.593, que se refere ao parentesco natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem; 1.596, que transcreve a regra da igualdade entre os filhos, presente na Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, § 6º; 1.605, que consagra a posse do estado de filiação, através de presunções veementes resultantes de fatos certos, aqui exemplificadas pelo autor como os filhos de criação e a adoção à brasileira (aquela que não observou os trâmites legais); e 1.614, que possibilita o filho reconhecido rejeitar esse reconhecimento, seja o pai biológico ou socioafetivo, desde que não tenha havido ainda o registro público.

Diante disso, não se pode mais falar em paternidade exclusivamente biológica como presunção de paternidade legítima, devendo-se observar que os critérios para o re-conhecimento de paternidade plena devem levar em conta primordialmente a afetividade.

Decisões judiciais isoladas nesse sentido já podem ser vistas no País, como a proferida pelo Desembargador do Tri-bunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Ataíde Siqueira

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Trindade, que decidiu pelo reconhecimento da paternidade e maternidade socioafetivas, em decorrência de situação fática (filho de criação), mesmo possuindo o filho pais biológicos referidos em registro civil. Ao argumento de que o pedido, nesta hipótese, não é juridicamente impossível, por se tratar de regularização de verdadeira filiação, por estar estabelecida no terreno da afetividade, tendência que o julgador esclarece decorrer do direito internacional, houve o afastamento da tese biologista e a primazia da socioafetividade (Apelação Cível Nº 70010408508, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, julgado em 30/12/2004). No mesmo sentido, decidiu a Desembargadora Maria Berenice Dias, ao deter-minar o prosseguimento de ação negatória de paternidade cumulada com nulidade de registro de nascimento, para permitir a investigação da existência de socioafetividade, já que o pai, autor do feito, falecera no curso deste, e o re-curso visava à regularização de legitimidade de parte. Neste caso, o pai ingressara com a desconstituição do vínculo de parentesco, após descobrir que o seu filho não fora fruto de uma inseminação artificial heteróloga consentida por ele próprio, mas sim de uma relação extraconjugal de sua es-posa, motivo que fora alegado para fundamentar a negatória (Apelação Cível Nº 70011878899, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, julgado em 14/09/2005). Ainda, em direção semelhante, o Desembargador Antônio Eduardo Duarte, equiparou a posse de estado de filho à adoção, sob o argumento de que o reconhecimento voluntário e consciente, mesmo diante das dúvidas acerca da paternidade, torna o ar-rependimento inviável, a despeito da comprovada exclusão de paternidade biológica por exame de DNA (Apelação Cível nº 2005.001.40278, TJRJ, Terceira Câmara Cível, julgado em 04.04.2006).

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Percebe-se, no segundo caso, que o pai registrara a criança como sua filha e como tal a criara, vindo, após alguns anos, vir a descobrir que a mesma não era resultado de inseminação artificial heteróloga por ele autorizada, mas de concepção natural, entre sua esposa e terceiro. Tomando conhecimento da verdade, o pai ingressara com Ação Negatória de Paternidade, vindo a falecer no curso da mesma, pelo que fora substituído pelos seus irmãos. Claro está que se trata de uma paternidade socioafetiva, até mesmo porque na mente do pai se tratava de uma filiação decorrente de inseminação artificial heteróloga, embora por ele autorizada. Assim, não se pôde desconstituir o vínculo de filiação estabelecido, com base apenas na questão da infidelidade da esposa, pois a relação paterno-filial já consti-tuída teria o condão de afastar qualquer argumento contrário ao princípio da afetividade, justamente o ponto que foi utilizado como fundamento para o prosseguimento do feito. No último julgado acima transcrito, apesar da ausência da expressão so-cioafetividade, é clara a opção por esta tese, quando o julgador reconhece que, apesar da desvinculação biológica efetivamente comprovada pelo teste de DNA, a paternidade já estabelecida não poderia ser desconstituída por esse motivo.

Esse é também o pensamento de Paulo Lobo:

Toda vez que um estado de filiação estiver constituído na convivência familiar duradoura, com a decorrente paternidade socioafetiva consolidada, esta não poderá ser impugnada nem contraditada. A investigação de paternidade só é cabível quando não houver paterni-dade, nunca para desfazê-la (LOBO, 2006, p. 3).

É de se observar, porém, que no primeiro caso retro-mencionado, a decisão judicial foi mais além, possibilitando a discussão jurídica de paternidade socioafetiva, inclusive

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nos casos de pais biológicos referidos no registro de nasci-mento, o que só vem demonstrar como a doutrina, a juris-prudência e – com muito menos razão, a legislação –, ainda não encontraram um discurso único na matéria, sobretudo diante de alguns julgados recentes que ainda privilegiam a verdade biológica, como a proferida pelo Desembargador Antônio Carlos Stangler Pereira, que declarou a verdade biológica sobre a verdade socioafetiva, ao argumento de que o reconhecimento de uma filiação, que não corresponde à verdade biológica, poderá ser impugnado por falsidade material ou ideológica, sobretudo nos dias de hoje, diante do progresso da ciência, em relação à verificação de des-cendência biológica pelo exame de DNA e, ainda, que a paternidade socioafetiva só encontra compasso quando a afetividade provém de ambos os litigantes, estando ligada e atrelada ao conceito de reciprocidade de sentimento e afeto (Apelação Cível Nº 70007685290, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, julgado em 15/04/2004). No caso, o dado interessante é a antinomia entre afetividade e litigância, não se podendo estabelecer uma vinculação necessária entre a afetividade durante a fase processual e a história dos ora litigantes, devendo o magistrado estar atento a essas situações, pois de fato dificilmente se poderá encon-trar afeto em pessoas que se encontram em lados opostos pela relação processual que se impõe. Não obstante isso, já se decidiu que a verdade biológica deve se sobrepor à ver-dade socioafetiva, quando excluída a paternidade biológica pelo exame de DNA, ao argumento de que a paternidade biológica há de ser respeitada, não importando outras conotações (Acórdão nº 2.230, Ação Cautelar Inominada nº 01.001782-8, Câmara Cível, Relator originário Desem-

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bargador Ciro Facundo, Relator designado Desembargador Eliezer Scherrer, Julgado em 24.02.2003).

3 – O EMBATE DAS TESES BIOLOGISTA E SOCIO-AFETIVA A PARTIR DA SúMULA 301 DO STJ

Um dado interessante que se pode perceber, a partir da jurisprudência, e que já fora observado por Paulo Lobo, é a constatação do estado de coisas, anteriormente à Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça, no que se refere à pri-mazia ou exclusividade da origem genética para determinar a paternidade, pois até a edição da Súmula 301, do Superior Tribunal de Justiça, despontava a socioafetividade como paradigma das relações paterno-filiais, em decorrência inicialmente da Constituição Federal de 1988 e depois do Código Civil de 2002. Mas, como dito, até a Súmula 301. A partir da presunção de paternidade sumulada, houve um retrocesso nesse estado de coisas, como se infere da decisão proferida pelo Desembargador Paulo Furtado, anteriormente à Súmula, que considerou prescindível a prova pericial do exame de DNA, diante da suficiência da prova testemunhal (Apelação Cível nº 29.669-6/01, Quarta Câmara Cível, TJBA, Relator Desembargador Paulo Furtado)3, além de outros julgados, que demonstram como vinham decidindo os juízes nessa matéria. Após a edição da súmula, passou-se a considerar o teste de DNA imprescindível, até mesmo para se afastar a ouvida de testemunha, por entender que a prova 3 No mesmo sentido, os julgados: Apelação Cível nº 21.194-4/2004, TJBA,

Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo Furtado; Apelação Cível nº 4.432-4/2002, TJBA, Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo Furtado; Apelação Cível nº 6.396-2/2003, TJBA, Segunda Câmara Cível, Relator Desembargador João Augusto Alves de Oliveira Pinto.

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já estava completa e suficiente. Assim, a prova testemunhal deixou de ser suficiente para o convencimento do juiz, pois, diante do poder discricionário a ele conferido, assiste-lhe a faculdade de ouvir ou não as testemunhas e na quantidade que ele entender suficiente para o seu convencimento. Nesse sentido, “as testemunhas darão ao julgador o valor que merecem de acordo com as circunstâncias da causa, em seu livre convencimento” e, se não há indícios que coloquem em dúvida o resultado científico, nada há que se contraponha à certeza do resultado do exame pericial de pesquisa de im-pressões digitais de DNA (Apelação Cível nº 36.735-8/2004, TJBA, Primeira Câmara Cível, relator Desembargador Raimundo Antônio de Queiroz). Por fim, em perfilhação clara à Súmula 301, a presunção de paternidade por ausên-cia injustificada ao exame de DNA vem sendo largamente utilizada, ao argumento de que a negativa na realização do exame, caracterizada pelo não comparecimento na data livre e antecipadamente fixada e pelas esquivas às intimações com o fito de remarcá-lo, apesar de intimado o advogado, que também não compareceu, traz consigo a presunção de veracidade da paternidade contestada, situação que é cor-roborada pelo depoimento pessoal da parte, a confessar o relacionamento íntimo mantido com a mãe do investigando (Apelação Cível nº 34.869-3/2002, TJBA, Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo Furtado)4.

Nos casos apresentados, percebe-se claramente a mu-dança de pensamento do julgador, a partir das novas diretrizes apontadas pela Súmula 301, no que se refere à recusa na submissão ao exame de DNA, sendo que na primeira situa-

4 No mesmo sentido, os julgados: Apelação Cível nº 26.792-3/2000, TJBA, Terceira Câmara Cível, Relator Desembargador Manoel Moreira Costa; Apelação Cível nº 43.883-3/2000, TJBA, Primeira Câmara Cível, Relator Desembargador Aloísio Batista.

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ção o mesmo magistrado considerava desnecessária a prova pericial, quando comprovada a paternidade por outros meios; após o advento do DNA, sobretudo após a edição da Súmula, o conjunto probatório nos autos só restaria completo se reali-zado o teste sangüíneo ou reconhecida a presunção pela não realização da perícia técnica. A afirmativa de que “inexistem argumentos científicos capazes de se contraporem à certeza do resultado do exame pericial de pesquisa de impressões digitais de DNA” (Apelação Cível nº 36.735-8/2004, TJBA, Primeira Câmara Cível, Relator Desembargador Raimundo Antônio de Queiroz), só tem sentido para a tese biologista, de que a paternidade necessariamente se confunde sempre com o vínculo biológico. Nesse sentido, não se poderia falar em socioafetividade e com isso, estariam afastadas as hipóteses de paternidade decorrente da adoção, da inseminação artifi-cial heteróloga autorizada e da posse de estado de filiação.

Em que pesem as críticas ao determinismo biológico, é possível compreender o motivo da edição da indigitada Súmula em confronto com determinado momento histórico; não se sustenta, porém, a sua manutenção hoje, diante dos debates doutrinários – e que vêm timidamente influenciando a jurisprudência, que passa a se dividir, para corrigir os equívocos trazidos pelo instrumento normativo 301 do Su-perior Tribunal de Justiça, justamente diante da inutilidade da súmula, “equivocada em seus fundamentos e violadora dos princípios constitucionais” (LOBO, 2006, p. 3).

4 – HIPÓTESES DO MUNDO FÁTICO

Um sem-número de situações pode ocorrer no cotidiano e, preparado ou não, o juiz deve oferecer uma resposta.

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Dentre tantas situações que podem vir a existir, é possível imaginar algumas, como as que se seguem: a) investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação, sem que o investigante tenha já constituído qualquer tipo de estado de filiação, com o investigado ou com terceiro; b) investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação com o investigado, sob o fundamento do biologismo, tendo o in-vestigante já constituído estado de filiação socioafetiva com terceiro; c) investigação de paternidade socioafetiva, quando o investigante tenha sido registrado por pai biológico sem que tenha o investigante mantido com este estado de filiação; d) negativa de paternidade, quando já tenha sido constituído estado de filiação; e) negativa de paternidade, sem que tenha havido estado de filiação; f) reconhecimento de paternidade socioafetiva.

Talvez o direito vigente não seja tão justo em sua concretização ao ser aplicado nos casos acima, mesmo assim o juiz deve oferecer uma resposta. Atento à sua responsabilidade como “agente transformador” (DIAS, 2002, p. 12) e agindo com a ética do cuidado, sempre buscando a realização do que lhe parece mais adequado para cada caso, o juiz tem à sua disposição outras possibilidades, além da letra pura da lei. Ele tem os princípios.

Assim, no primeiro caso (letra “a”), tratando-se daquelas situações em que a pessoa tenha apenas o nome da mãe no registro público e não tenha sido “adotada” afetivamente por terceiro, normalmente um padrasto ou figura similar, a doutrina vem apontando a imposição do vínculo biológico como solução patrimonial, uma vez que o filho não pode ficar em estado de abandono material, quando a mãe não possa, sozinha, suprir todas as necessidades da criança. É o direito ao pai, referido por Giselda Hironaka como um

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direito de personalidade de conteúdo plural, que se compõe de múltiplos sub-direitos, faculdades ou faces, escalonados em graduações distintas, podendo, por isso mesmo, ser exer-cido pelo seu titular por partes, optando por um interesse em detrimento dos demais, em respeito ao melhor interesse da criança (com destaque em especial, referido pela autora, para as situações de filiação incestuosa), e limitando a ex-tensão do campo de incidência do exercício da paternidade (HIRONAKA, 2000, p. 6).

Igual solução pode ser encontrada em autores franceses, como Michel Dagot, Pierre Spiteri e Pierre Raynaud (apud FACHIN, 1996, p. 38), que se referem à ação para fins de sub-sídios5, movida pelo filho biológico sem pai registral, que não implica em reconhecimento de paternidade, pois não se trata de investigação de paternidade. Não se trata, nessa hipótese, de pro-var ou pretender a paternidade, mas de estabelecer a medida de 5 Art. 342 do Código Civil dos franceses. Pela reforma do direito de família

francês, em 2005, cujo período de vacatio legis foi de um ano, iniciou-se em 1º de julho de 2006, a vigência do novo direito de filiação, afastando as distinções entre filhos naturais e legítimos, que permaneciam no Código Civil até esta data. Manteve, porém, a lei civil francesa a ação para fins de subsídios de forma independente da investigação de paternidade, sendo a primeira com vistas ao pagamento de pensão alimentícia em função da vinculação biológica entre pai e filho, e a segunda para instituir vínculo de paternidade plena (informações extraídas do site: <www.parent-solo.fr>. Acesso em: 02 ago 2006). Tradução livre da autora: “L’ordonnance a tiré lês conséquences de l’egalité entre lês enfants, quelles que soient lês conditions de leur naissance: - Elle a supprimé la distinction entre filiation legitime et naturelle qui avait perdu tout portée juridique et pratique depuis quele législateur avait consacré l’egalité parfaite entre les enfants quelle que soit leur filiation (...). L’action à des fins de subsi-des peut être demandée par l’enfant naturel dont la filiation naturelle n’est pás établie. Elle consiste à reclamer une aide matérielle sous forme de pension à celui qui a eu des relations intimes avec as mère pendant la période légale de la conception. Même si lê père ou la mère étaient mariés par ailleurs, á l’époque, l’action est recevable. La preuve des relations intimes peut être apportée par des témoignages, des lettres ou une recherche d’ADN (que lê père supposé peut refuser). Cette action est indépendante de l’action em recherche paternité”.

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sua responsabilidade. Nessa mesma linha de pensamento, Paulo Lobo resolve a questão da pretensão patrimonial no âmbito obrigacional, considerando razoável atribuir ao “filho sem pai” um crédito decorrente do dano oriundo do inadimplemento dos deveres impostos pela paternidade responsável, exemplificados pelo autor como dever de assegurar educação, assistência moral, sustento, convivência familiar, sem olvidar, ainda, com absoluta prioridade, do direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionaliza-ção, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, impedindo por outro lado toda forma de negligência, discriminação, explo-ração, violência, crueldade e opressão, deveres estes decorrentes do art. 227 da Constituição Federal de 1988. O crédito referido por Paulo Lobo equivaleria a uma quota hereditária, se o filho herdeiro fosse (LOBO, 2006, p.7-8).

No segundo caso (letra “b”), se o investigante propõe ação de investigação contra pai biológico, já tendo sido registrado por pai socioafetivo, não haveria nenhuma possibilidade de se desconstituir vínculo já devidamente cons-truído através do estado de filiação. Assim, tal pedido há de ser consid-erado juridicamente impossível, pois a adoção é irrevogável, no sistema jurídico brasileiro. Porém, na hipótese do filho socioafetivo desejar conhecer a sua origem genética, cujo direito é de personalidade (LOBO, 2003, p. 151), descabe a ação de investigação de paternidade, para fins de determi-nação de paternidade, mas tão-somente para conhecimento de identidade genética. O termo mais correto seria ação de conhecimento de identidade genética, de rito ordinário, com ampla produção de provas, primordialmente o teste de DNA, este sim, o mais apropriado para legitimar a procedência do pedido, pois de fato se trata de declaração de vínculo genético entre as partes, que não induz paternidade (LOBO, 2003, p. 153). Assim, são duas as situações que devem ser claramente

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separadas: o direito à paternidade é direito de família, realiza-se judicialmente através da investigação de paternidade e se baseia na socioafetividade, que pode ser oriunda da filiação biológica ou não (adoção, inseminação artificial heteróloga, posse de estado de filiação); outro é o direito à identidade genética, que deve ser esclarecido em ação de investigação de vínculo genético, limita-se ao direito de personalidade em conhecer a sua origem genética fazendo parte, portanto, da esfera da identidade do indivíduo, sem, no entanto, gerar vínculo paterno-filial e pode, ainda, originar um direito de responsabilidade civil em face do genitor irresponsável.

Na terceira hipótese (letra “c”), o investigante busca a determinação de vínculo paterno-filial com pai socioafetivo, embora já registrado por pai biológico, sem que com este tenha constituído estado de filiação, utilizando a tese da socioafetividade sobre o biologismo. Esse parece ser o caso típico do embate entre as duas teses. É preciso que se tenha presente que o estado ideal de coisas é a reunião, dentro de uma mesma relação paterno-filial, das duas perspectivas, quais sejam: a origem biológica e a afetividade. Na esteira do pensamento desenvolvido por Paulo Lobo de que nem toda paternidade socioafetiva resulta da consangüinidade, o direito à igualdade de paternidade a ser exercida nos casos de adoção, de inseminação artificial heteróloga autorizada e de posse de estado está assegurado, pois, nesses casos a filiação é inviolável e, como tal, não poderia ser desfeito por decisão judicial, ressalvada a hipótese de perda do poder familiar, advertida pelo mesmo autor, que complementa: “a paterni-dade socioafetiva decorrente da posse de estado de filiação não pode ser contraditada” (LOBO, 2006, p. 8). É possível desenvolver o raciocínio em igual sentido, para afirmar que ao julgador não é lícito desconhecer a posse de estado mesmo

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que exista um pai registral biológico, afastando na hipótese da letra “c” o pai biológico e anulando o registro civil, para declarar a verdade real da socioafetividade.

Na quarta situação (letra “d”), em que o pai, na dúvida quanto à origem de seu filho socioafetivo e, até então bio-lógico, ingressa com ação negativa de paternidade para desconstituir vínculo paterno-filial, a contradição à posse de estado de filiação já consagrada desautoriza a anula-ção do registro civil, pela autoridade judiciária, pois deve prevalecer no caso a continuidade da relação de família que já estava estabelecida. A opção pela socioafetividade deve levar em conta a posse de estado já constituída, sendo certo que, embora na prática possa levar a situações difíceis entre as partes, deve-se evitar um mal maior, retirando do filho o único pai que até então aquele conhecia. Outro dado a ser sopesado diz respeito à afetividade como princípio, pois nesta condição a afetividade “é dotada de força normativa, impondo deveres e conseqüências por seu descumprimento. Por isso, não se confunde com o afeto como simples fato anímico e psicológico” (LOBO, 2006, p. 8), afastando a insegurança que tal princípio viria a causar, se a sua aplicação tivesse a mesma ratio que nas relações matrimoniais em geral, em que a sociedade só tem existência enquanto permanecer nas partes o affectus que os uniu.

Na quinta hipótese (letra “e”), em que o pai apontado pelo registro público resolve negar a paternidade biológica, sem ter havido a posse de estado de filiação, duas situações devem ser observadas preliminarmente: o direito do filho ao pai e o direito do filho ao pai socioafetivo. Isto significa dizer que, na ausência da posse de estado em relação ao autor da negatória, por si só não autorizaria a anulação do registro, diante do direito do filho a um pai, mesmo que limitado no

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exercício do conteúdo múltiplo que preenche o conceito de paternidade, como já visto e referido aqui em Giselda Hironaka (2000, p. 6). De outra sorte, tivesse o filho consti-tuído posse de estado de filiação com terceiro, a negatória teria desfecho diferente, pois o mesmo direito que assiste ao filho em desconstituir paternidade meramente biológica (sem posse de estado) para privilegiar paternidade socioafetiva regularmente constituída, assiste também ao genitor que não constituiu relação paterno-filial com filho biológico, que mantém posse de estado de filiação em relação à terceiro.

No sexto e último caso (letra “f”), em que o filho, na posse de estado, vem a requerer a investigação de paterni-dade socioafetiva, esta deve ser reconhecida, em razão do afastamento do biologismo exclusivo, da impossibilidade de contraditar posse de estado regularmente constituída, do reconhecimento da continuidade das relações de família, da adoção da afetividade como princípio a impor deveres e conseqüências pelo seu descumprimento. De fato, a solução mais adequada para o caso é o reconhecimento da vinculação jurídica de paternidade, estabelecida sobre a socioafetividade e constituída na posse de estado de filiação.

5 – CONCLUSõES

Sabe-se que a dinâmica das relações interpessoais huma-nas vem acompanhando as mudanças impostas pelo modelo sócio-econômico do capitalismo no mundo ocidental, razão porque toda e qualquer pretensão de generalidade cai por terra. O recurso às normas e princípios de conteúdos mais gerais e abertos, que possibilitam o preenchimento segundo o caso concreto, é ainda a melhor tentativa para a solução das

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contendas, especialmente em direito de família, pois como visto, a aplicação da estrita legalidade, pode vir a autorizar ainda mais abandonos de filhos, estes os mais prejudicados, pois muitas vezes nunca tiveram e nunca vão ter nenhum tipo de pai.

Sem perder de vista o fim último do direito, que é o de promover a justiça, ao se utilizar o princípio da afetividade como argumento jurídico, torna-se solução mais equili-brada no reconhecimento ou estabelecimento de vínculos paterno-filiais não oriundos de vinculação biológica, como nas hipóteses de investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação, sem que o investigante tenha já consti-tuído qualquer tipo de estado de filiação, com o investigado ou com terceiro; investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação com o investigado, sob o fundamento do biologismo, tendo o investigante já constituído estado de filia-ção socioafetiva com terceiro; investigação de paternidade socioafetiva, quando o investigante tenha sido registrado por pai biológico sem que tenha o investigante mantido com este estado de filiação; negativa de paternidade, quando já tenha sido constituído estado de filiação; negativa de paternidade, sem que tenha havido posse de estado de filho; reconheci-mento de paternidade socioafetiva, entre outras.

Nesse sentido, conclui-se que a paternidade que se iden-tifica hoje é plena quando conjuga os critérios biológico e afetivo, porém, diante da impossibilidade dessa conjugação, deve-se privilegiar a socioafetividade, sobretudo nos conflitos de paternidade meramente biológica e paternidade afetiva já constituída, pois a tese biologista adotada isoladamente, ou seja, sem a associação necessária à socioafetividade para a construção dos laços paterno-filiais, não se presta ao direito: a uma, porque não induz à paternidade responsável, haja vista

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o elevado número de crianças sem a indicação do nome do pai em seus registros de nascimento; a duas, porque afasta a socioafetividade nas situações em que haja rejeição paterna exclusivamente biológica, uma vez que estaria autorizada a desconstrução do vínculo socioafetivo em função do vínculo biológico com terceiro; a três, porque, nessas hipóteses, estaria o direito colaborando ainda mais com a elevação dos números de filhos sem pai no país, o que, sob hipótese alguma, poderia ser tolerado pelo sistema jurídico brasileiro. Por fim, conclui-se que a adoção da tese biologista representa um verdadeiro retrocesso ao moderno direito de família em vigor no Brasil.

6 – REFERÊNCIAS

DIAS, Susana. Entusiasmo brasileiro com DNA é criticado. Disponível em: <http://www.comciencia.br/re-portagens/cultura/cultura04.shtml>. Atualizado em 10 jul. 2003. Acesso em: 05 out. 2006.

FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em busca da família do novo milênio: uma reflexão sobre as origens históricas e as perspectivas do Direito de Família brasileiro contemporâ-neo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação bi-ológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Se eu soubesse que ele era meu pai... Jus Navigandi, Teresina, ano

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4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=529>. Acesso em: 26 jul. 2006.

LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Re-vista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n. 19, Síntese, p. 133-156, ago-set. 2003.

______. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da Súmula 301-STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1036, mai. 2006. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8333 >. Acesso em: 20 jul. 2006.

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GÊNERO, DIREITO E ESFERA PúBLICA: CONDIÇõES DE EFETIVIDADE DA LEI

MARIA DA PENHA1 3

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REsumO

Apesar dos constantes avanços legislativos em favor das mulheres, observa-se que parte das dificuldades de implementação dos direitos reconhecidos está na deficiência da formação dos operadores jurídicos para lidar com as questões mais amplas – e, por isso, não apenas dogmáticas – que envolvem as relações de gênero e o Direito. Mais uma vez tal dificuldade se apresenta, agora com a edição da Lei Maria da Penha, considerada por muitos inconstitucional por ferir

1 Este artigo foi inspirado nas reflexões estimuladas pelas reuniões, ao longo do segundo semestre de 2007, na Comissão de Políticas Integradas para o Enfrentamento da Violência Doméstica e Sexista, da Secretaria Especial da Mulher do Governo do Estado de Pernambuco – da qual a autora participa como membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PE – bem como pelos nos cursos que a Escola Superior da Advocacia Professor Rui Antunes tem promovido, juntamente com aquela Secretaria, sob o título “Direito e Relações de Gênero – a aplicabilidade da Lei Maria da Penha”.

2 Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha/Espanha, Pesquisadora do Núcleo de Documentação dos Movimentos Sociais de Pernambuco da Universidade Federal de Pernam-buco, Representante da OAB/PE na Comissão de Políticas Integradas para o Enfrentamento da Violência Doméstica e Sexista do Governo de Pernambuco e Professora da Faculdade Maurício de Nassau.

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o princípio da igualdade perante a lei. Aprofundar a discussão acerca da igualdade e da diferença sob uma perspectiva de gênero e questionar o justo lugar do jurídico na proteção das mulheres, no sentido de contribuir para a construção de uma prática jurídica crítica, são os objetivos deste trabalho.

AbsTRAcT Despite the latest legal improvement in favor of

women, it is noticed that part of the difficulties when it is to accomplish the rights is on the imperfection on part of the legal academic education so that they are able to deal with broaden matters – and, therefore, deal not only with dogmatic ones – which involve the genre relations and the Law. Once more, such obstacle is clear, now with the recent passed Law entitled “Lei Maria da Penha”, which is considered unconstitutional because it goes against the equality principle. This research aims to make profound study of equality and difference under a genre perspec-tive and put in question what the Legal System role is in order to support women’s rights, for contributing to more straightforward legal practice.

sumário: 1. Igualdade ou diferença? 2. Enfrentamento da violência de gênero: o lugar da Lei Maria da Penha. 3. Por uma prática jurídica crítica

1 – IGUALDADE OU DIFERENÇA?

Em 2001, a Fundação Perseu Abramo realizou uma ampla pesquisa nacional e constatou que um terço das mulheres (33%) admite já ter sido vítima de alguma forma de violência física. O estudo demonstrou também que dentre

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as formas de violência física mais comuns destaca-se a agressão mais branda, sob a forma de tapas e empurrões (20%). Segundo ainda essa pesquisa, a responsabilidade do marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% e 70% das ocorrências de violência em qualquer das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio, e outros agressores comumente citados são o ex-marido, o ex-companheiro e o ex-namorado que, somados ao marido ou parceiro, constituem sólida maioria em todos os casos (VENTURINI, 2004, p. 226-237).

Os estudos demonstram, portanto, que as mulheres estão expostas a grande violência, que tem a peculiar característica de ocorrer geralmente no seio das relações de intimidade e no âmbito da vida privada, contrastando com a violência que acontece nos espaços públicos e que se dá, em especial, entre os homens. Na região metropolitana do Recife tais informações foram confir-madas pela pesquisa34 “Saúde da Mulher, Relações Familiares e Serviços de Saúde do Sistema Único de Saúde em Duas Capitais – Recife e São Paulo”, financiada pelo CNPQ e coordenada em Recife por Ana Paula Portella, do SOS Corpo (Instituto Feminis-ta para a Democracia): entre as usuárias do serviço de atenção primária, 51% afirmaram ter sofrido violência física alguma vez na vida por parceiro íntimo e 32% disseram que a violência adveio de familiares (SCHRAIBER, 2007, p. 13-22).

Os dados dessas pesquisas foram colhidos antes de 2006, mas ainda está muito presente na memória das mulheres brasileiras, e mais especificamente das pernambucanas, vítimas de violência doméstica o que acontecia com seus agressores antes da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 07/08/2006). No que diz respeito

3 Para maiores informações acerca de pesquisas sobre violência contra a mulher no Brasil e no mundo ver o site www.patriciagalvao.org.br

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à lesão corporal dolosa considerada leve pelo Código Penal45 (tipo de violência mais freqüente, como consta-tou a pesquisa da Fundação Perseu Abramo), a Lei n. 9.099/95 praticamente legalizou a violência doméstica ao permitir a conciliação, a transação e a suspensão condicional do processo. De fato, pesquisas demonstram que os índices desse crime aumentaram depois da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (SAFFIOTI, 2004, p. 62/63).

No entanto, apesar de todas as críticas que se fizeram a essa lei, à época certas juristas feministas viram nela um ponto positivo com relação ao tratamento jurídico anterior. Antes da Lei n. 9.099/95, a ação penal para a lesão corpo-ral era pública incondicionada e com essa lei passou a ser necessária a representação da vítima. Dizia-se que tal exi-gência tinha ao menos o mérito de considerar a vítima como uma pessoa adulta, responsável pelos seus atos. A perspectiva era de que o oferecimento de serviços de apoio e de políticas públicas fortalecessem as vítimas e assim estimulassem as representações.

Não constitui objetivo deste texto discutir sobre as possíveis alterações que a Lei Maria da Penha fez no que diz respeito ao tipo da ação penal para o processamento dos crimes de lesão corporal dolosa leve5 . O que se quer levantar brevemente aqui

4 Lesões corporais dolosas de natureza leve, de acordo com o art. 129, caput e §§ 1o, 2o e 3o, são as ofendem a integridade corporal ou a saúde de outrem mas que não resultam: incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função; aceleração do parto; incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização de membro, sentido ou função; deformidade permanente; abordo ou morte.

5 Para uma análise sobre as mudanças legislativas proporcionadas pela Lei Maria da Penha ver BARSTED, Leila Linhares. O avanço legislativo no enfrentamento da violência contra as mulheres. In: LEOCáDIO, Ecylene ; LIBARDONI Marlene (Orgs.). O desafio de construir redes de atenção às mulheres em situação de violência. Brasília: AGENDE, 2006, p. 65-90.

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é o fato de que, seja como for considerado o tipo de ação penal, não se elimina uma dificuldade concreta: a violência doméstica ocorre em uma relação afetiva, cuja ruptura geralmente demanda intervenção externa. No entanto, uma das características da violência doméstica é sua rotinização, o que contribui, tremen-damente, para a co-dependência. Esse é um dos primeiros elementos que lança luz sobre a ambigüidade das atitudes de mulheres que em um dia apresentavam a queixa e, no dia seguinte, solicitavam sua retirada. Com efeito, essa ambigüidade é muito grande e compreende-se o porquê disto.

Embasadas em anos de experiência acumulada em cursos de capacitação para o enfrentamento da violência contra a mulher, Débora Menezes e Juliana Marcondes (2006, p. 126) afirmam que entre os

[...] fatores que contribuem para a permanência da mulher em situação de violência estão a dependência econômica e emocional do companheiro; o medo da solidão; o apego a crenças religiosas e os valores culturais e morais, [ao passo que entre os] fatores que dificultam ou impedem a denúncia estão o medo da represália, o medo das lesões serem agravadas, o medo de perder os filhos e de ficar sozinha; a difi-culdade em lidar com a socialização do problema e a dificuldade em aceitar o marido como um ‘agressor’ e abrir mão da esperança de mudar de situação.

Com efeito, as agressões têm lugar em uma relação afetiva com múltiplas dependências recíprocas. Contudo, por mais que a Lei n. 9.099/95 tenha possibilitado um tratamento mais brando para os agressores, não foi ela quem determinou que para as lesões corporais leves praticadas contra as mulheres a pena deveria ser o pagamento de multas (geralmente 60

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reais) ou a entrega de cestas básicas a uma instituição de caridade6 . Em geral, concorda-se com a afirmação de que a solução para a violência não está no agravamento das penas – e essa é a orientação da Lei n. 9.099/95 – mas na certeza da punição. Nesse sentido, podemos dizer que não foi essa lei que fez com que a pena do crime de violência doméstica mais cometido contra as mulheres se convertesse em um pagamento pela agressão. Os efeitos da interpretação dessa lei revelam a pouca importância que a sociedade atribui a um fenômeno com conseqüências muito negativas para a saúde orgânica e psíquica das mulheres e para a educação das novas gerações.

Em razão de exemplos como esse é que muitas feministas argumentam que as lutas no campo jurídico são inglórias, que se deveria abandonar esse terreno porque o sexismo seria uma atitude cultural e, portanto, passível de ser eliminada apenas culturalmente. O “feminismo da diferença” – como Joaquín Herrera Flores qualifica essa corrente teórica que, entre outros temas, assim se posiciona – contrapõe-se ao chamado “feminismo da igualdade”, que, ao contrário, segundo esse autor, aposta suas fichas quase que exclusiva-mente na consecução de igualdade de oportunidades para as mulheres e, nesse sentido, centra sua estratégia na criação de leis pelas quais seja possível realizar um tipo de “discrimi-nação positiva” para as mulheres, com o objetivo de assim construir aos poucos uma sociedade igualitária e democrática (HERRERA FLORES, 2005, p. 70).

Uma das principais críticas que frequentemente se faz ao “feminismo da igualdade” é a de que essa corrente acaba por essencializar a “diferença” – “a mulher” – e, como tal,

6 Há relatos que afirmam que em grande parte dos casos as mulheres agredidas acabavam por pagar, elas próprias, tanto as multas quanto as cestas básicas, cedendo às ameaças dos companheiros violentos.

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por mais que se façam normas que prevejam uma “discrimi-nação positiva” não se chega a superar o princípio liberal de igualdade perante a lei. Em outras palavras, o “feminismo da igualdade” acaba por despolitizar a questão por deixar intactas as causas e as conseqüências que fazem com que as diferenças que existem entre homens e mulheres acabem por se converter em desigualdades. Melhor dizendo, as causas e as conseqüências que fazem com que pelo simples fato de ter nascido com um determinado sexo permaneça-se subor-dinada aos homens de sua mesma classe e relativamente com menos poder que todos os homens.

Não é assim que ocorre no mercado de trabalho? A lei ga-rante a mulheres e homens o acesso à educação, respeitando as diferenças entre ambos. Nas faculdades e nas escolas se admite uma licença especial em caso de gravidez e, imagine-mos por um minuto uma situação ideal, a possibilidade de as mulheres deixarem seus filhos em creches enquanto estudam. Será que, mesmo nessa situação hipotética no Brasil mas que ocorre em alguns países europeus, isso significaria que a mulher não teria que se qualificar muito mais para disputar com o homem o mesmo cargo, com igual salário?

Por outro lado, tal constatação nos autorizaria a fechar os olhos para as diferenças e desigualdades reais e concretas entre homens e mulheres no que diz respeito às condições econômi-cas, sociais e culturais sem as quais não se poderia construir uma sociedade igualitária? Ao adotarmos a posição do “feminismo da diferença” – que nega o papel do direito como lugar de luta social – não se estaria caindo inadvertidamente no formalismo abstrato e, consequentemente, na concepção de liberdade que predomina hegemonicamente na tradição liberal do direito, entendida em termos de autonomia individual? A liberdade entendida como autonomia individual, lembre-se, considera

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que bastam direitos civis e políticos – como o direito de votar e de ser votado, a liberdade de expressão e de imprensa – e um mercado livre para que todos alcancem a igualdade.

Estamos, pois, diante de um impasse. Concentramos nossos esforços em lutar por leis que acolham a diferença de oportunidades reais para homens e mulheres mesmo sabendo, desde já, que essas leis não atingirão o problema da desigual-dade em sua raiz? Mesmo estando cientes que de “lei em lei” que prevejam um certo tipo de “discriminação positiva” não se chegará a uma sociedade igualitária? Ou, ao revés, não percamos tempo com o direito? Dediquemo-nos diretamente à combater o sexismo no plano ideológico-cultural?

Obviamente, se a resposta for na segunda direção, a Lei Maria da Penha não teria sentido. Homens e mulheres que cometessem algum tipo de violência doméstica deveriam responder de igual maneira pelo mesmo dispositivo legal, como era anteriormente com a Lei n. 9.099/95. No entanto, diante do aumento dos índices de violência e assassinatos7 cometidos contra mulheres em todo o país, mas muito espe-cialmente em Pernambuco, não foi esse o caminho escolhido. Apostou-se no campo jurídico como um terreno importante na luta contra a violência doméstica.

Contudo, para compreendermos a importância da Lei Maria da Penha, em outras palavras, para não pedirmos nem mais nem menos ao direito, é necessário enfatizar o justo lugar que ocupa o jurídico na proteção das mulheres, como também de todos que historicamente foram relegados a uma posição subalterna na sociedade. Tal postura evita o ceticismo com relação ao direito, mas também futuras frus-trações por se ter apostado nele todas as fichas.

7 Pesquisas demonstram que a violência doméstica é gradativa. O agressor prin-cipia com agressões verbais, em seguida passa para lesões físicas leves e assim por diante, podendo chegar, caso não seja impedido a tempo, ao homicídio.

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2 – ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DE GÊNE-RO: O LUGAR DA LEI MARIA DA PENHA

Já se disse que o direito não é uma ferramenta neutra. Se é certo que o direito, assim como todo o aparato ideológico do Estado, não é simplesmente um mero reflexo das relações sociais e culturais dominantes, ele também pode ser usado para transformar tradições e costumes. Mas, como?

O direito, afirma Joaquín Herrera Flores, é em primeiro lugar uma técnica de domínio social que se coloca perante os conflitos neutralizando-os a partir da perspectiva da ordem dominante. E, em segundo lugar, é uma técnica especializada que determina a priori quem é legitimado para produzi-la e quais os parâmetros a partir dos quais se deve utilizá-la. Daí a imensa força daquele que tem a autoridade de “dizer” o direito – tanto o legislador como o juiz – no momento de conformar atitudes e regular relações sociais em um sentido ideológico e politicamente determinado. Por isso, alerta o autor, é importante que não tenhamos desprezo pela luta jurídica nem, por outro lado, confiança de que só por meio dela se possa chegar a um tipo de sociedade não sexista (HERRERA FLORES, 2005, p. 70/71).

Nesse sentido, toda leitura do fenômeno jurídico – assim como de qualquer aspecto da realidade – se faz a partir de uma postura política e ideológica determinadas. Em outras palavras, o direito não oferece ao seu (sua) intérprete e/ou aplicador (a) a possibilidade de fugir da posição particular que ele/ela ocupa no interior dos conflitos sociais (e tal posição tanto pode ser opositiva ou legitimadora do status quo), nem dos parâmetros dominantes que conformam a hegemonia em um espaço e em tempo determinados. Por mais que se pretenda suprimir essas duas posturas, seja pela

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afirmação de que o ordenamento jurídico é auto-suficiente e pleno e que por isso só há uma decisão juridicamente correta, seja pela negação da influência das ideologias na produção, interpretação e aplicação do direito, não há como o (a) in-térprete e/ou aplicador(a) aliviar a consciência ou eximir-se de responsabilidade no momento em que lê o mundo e os conflitos sociais por intermédio do direito.

Se com a Lei Maria da Penha abandonou-se o “femi-nismo da diferença” e se apostou na luta jurídica como instrumento para a construção de uma sociedade igualitária – reconhecendo ao mesmo tempo que o ideológico e o político não podem ser excluídos do direito – temos que responder a duas perguntas que propõe Joaquín Herrera Flores. Essas duas perguntas estão intrinsecamente relacionadas, mas têm conotações e conseqüências específicas: qual igualdade? E, em seguida, igualdade de quê? (HERRERA FLORES, 2005, p. 65-90)

Desde as revoluções burguesas do século XVIII fala-se da necessidade de traços comuns entre os cidadãos para a construção de um Estado Democrático. Segundo essa perspectiva, deve haver um mínimo de homogeneidade entre os cidadãos para que possam se entender como participantes da vontade geral (HERRERA FLORES, 2005, p. 67). São essas características comuns que fazem com que seja possível falar da igualdade perante a lei: todos somos iguais perante a lei, diz o art. 5º, caput, da Constituição Federal.

No entanto, muito cedo se constatou que a conquista da igualdade de direitos não foi suficiente para apoiar ou para impulsionar o reconhecimento e o respeito pelas diferenças, nem muito menos propiciou a remoção das desigualdades so-ciais, econômicas e culturais. Ao responder a pergunta “qual igualdade”, Herrera Flores considera fundamental identificar

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que a problemática apontada tem suas raízes fincadas na figura clássica do “contrato” como fundamento da relação social, figura que se situa na separação – fundamental para o liberalismo político – entre política e economia. Ao partir da constatação fática de que todos somos iguais perante a lei a figura do contrato normaliza, legitima e legaliza posições prévias de desigualdade com o objetivo de reproduzi-las infinitamente (HERRERA FLORES, 2005, p. 58).

Mas não é só isso. A separação entre economia e política é muito clara para nós hoje quando a analisamos do lado da economia: parece muito claro que o mercado não é capaz de distribuir os bens de forma igualitária. Mas será que as conseqüências da separação entre economia e política são tão claras quando analisadas do lado da política?

No processo de separação ideológica e irreal entre economia e política também vai se instaurando, alerta Her-rera Flores (Idem, p. 59-61), uma segunda separação muito importante: aparece um espaço ideal/universal – o espaço público – onde se moveriam sujeitos idealizados e idênticos que gozam de igualdade formal perante a lei e, junto a tal espaço, dando-lhe suporte mas guardando ao mesmo tempo sua especificidade, surge a consciência de um espaço mate-rial/particular/doméstico – o espaço do privado – onde se encontram não só os interesses econômicos dos sujeitos “concretos”, mas também as relações que os ligam a outros sujeitos no espaço doméstico, as crenças particulares e as identidades sexuais e raciais. O contratualismo supõe, portanto, a construção de uma percepção social baseada na identidade que se dá no espaço público garantido pelo direito e a expulsão das diferenças para o âmbito desestru-turado, e invisível para o institucional, do privado. Assim, as diferenças que existem entre homens e mulheres e entre

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etnias, por exemplo, ficam adstritas à esfera do privado sem jamais adquirir visibilidade ou consideração públicas. Em resumo, a formação da lei, expressão da vontade geral, não leva em consideração as necessidades e os interesses dos que se encontram nesse espaço.

Nesse sentido, para o liberalismo político a diferença deve ser entendida como “diversidade”, como algo que foge do padrão universal que nos faz partícipes da vontade geral e que, por isso mesmo, deve ser apenas tolerada. E esse padrão universal não é outro senão, como diz Jürgen Habermas, o do homem, branco, proprietário e culto (2003, p. 42/74). É dentro dessa perspectiva, portanto, que devem ser vistas as várias tentativas de impedir a vigência ou de restringir a eficácia Lei Maria da Penha que se baseiam no princípio da igualdade entre os gêneros: impor um padrão de ser, de sentir e de fazer que se convencionou identificar com o masculino.

Por outro lado, se não separarmos o econômico do político podemos dizer que o que ameaça a igualdade não é a diferença. Como afirma Heleieth Saffioti (2004, p. 37),

[...] a democracia exige igualdade social. Isto não significa que todos os socii, membros da sociedade, devam ser iguais. Há uma grande confusão entre conceitos como: igualdade, diferença, desigualdade, identidade. Habitualmente, à diferença contrapõe-se a igualdade. Considera-se, aqui, errônea esta concepção. O par da diferença é a identidade. Já a igualdade, conceito de ordem política, faz par com a desigualdade.

A igualdade, conceito de ordem política mas inseparável do econômico, não é algo do qual devemos partir, mas uma meta, um objetivo que apenas será conquistado se houver o

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reconhecimento de que existem desigualdades econômicas, sociais e culturais entre pessoas e grupos. O que se contrapõe à igualdade, como afirmou a autora, não é a diferença, mas a desigualdade de condições econômicas, sociais e culturais que permitam ou que possibilitem a igualdade perante a lei, perante o direito.

A Lei Maria da Penha, portanto, não pode ser considerada – como muitos querem - inconstitucional por supostamente possibilitar uma discriminação não permitida entre homens e mulheres, conforme determina o art. 5o, I, da Constituição Federal. Essa lei, fruto de anos de pressão e embates dos movimentos feministas e da luta silenciosa de milhares de mulheres constantemente agredidas por seus parceiros e familiares, ataca a desigualdade existente entre homens e mulheres ao reconhecer a especificidade da violência de gênero e, assim, prever formas distintas de erradicá-la. Do contrário, como podemos falar de igualdade de oportuni-dades para homens e mulheres no mercado de trabalho, por exemplo, quando, segundo o Banco Mundial, a violência de gênero causa mais danos e mortes às mulheres entre 15 e 44 anos do que doenças, como câncer e malária, ou mesmo acidentes de trânsito e guerras; e quando um em cada cinco dias em que as mulheres faltam ao trabalho é motivado pela violência doméstica (PERNAMBUCO, 2007, p. 9)?

Agora sim podemos voltar à pergunta inicial: qual igualdade? Igualdade de oportunidades, entendida como a criação de condições, de meios, de recursos econômicos, sociais e culturais que permitam a igualdade de direitos, que possibilitem a igualdade perante a lei.

As questões que envolvem a segunda pergunta colo-cada por Joaquín Herrera Flores – igualdade de quê? – não podem se limitar ao terreno jurídico, porque não se trata de

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igualdade perante a lei. No entanto, apesar de o direito não ser a resposta para essa questão, tal não diminui em mo-mento algum a importância da luta jurídica, pois, de acordo com esse autor, o jurídico deve ser entendido como um dos instrumentos mais importantes no momento de garantir institucionalmente os resultados das lutas por igualdade (HERRERA FLORES, 2005, p. 83). Sem o jurídico, como seria possível registrar as grandes mudanças que ocorreram nas últimas décadas em favor das mulheres? Sem a ajuda do registro legal, como disseminar as pautas e as reivindicações da mulheres? Como ganhar posições na sociedade civil em favor da igualdade de gênero? Como tornar constantemente visível as desigualdades econômicas, sociais e culturais en-tre os gêneros? Em uma frase, como converter as lutas por igualdade em “uma língua que todos falem”? A Lei Maria da Penha, afortunadamente, parece estar se convertendo nessa língua comum.

A dificuldade surge quando se abandona a prática social e se confia apenas nos resultados que foram registrados juri-dicamente, pois tais resultados – os resultados das lutas pela igualdade de oportunidades, pela igualdade perante a lei –, apesar de imprescindíveis, não têm o condão de alterar por si só o processo histórico e social de diferenciação entre homens e mulheres. Dado que ser homem e ser mulher é muito mais uma questão que diz respeito aos modelos e as expectativas socioculturais sobre ambos os seres do que simplesmente uma determinação biológica, em outras palavras, consid-erando que a diferenciação entre os gêneros não é algo dado direta e espontaneamente por suas anatomias, tal processo de identificação/diferenciação não pode ser modificado pelo direito. A eliminação do patriarcado, como processo histórico e social que atribui valoração positiva ao universo

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dos homens e que, concomitantemente, exclui socialmente tudo o que se refere às mulheres, necessita que as mulheres estejam “empoderadas”, isto é, que tenham as mesmas opor-tunidades econômicas, sociais, políticas e culturais que os homens, mas como se trata da eliminação de uma relação de poder que se baseia no medo e no controle, ele não é suscetível de ser combatido apenas juridicamente.

É por isso que grande parte do feminismo de procedência jurídica questiona a identificação total que comumente se faz entre a práxis política e a atividade legislativa, como se a política se reduzisse à produção de normas e, consequente-mente, a igualdade fosse possível ser obtida mediante o mero reconhecimento jurídico dela. Se as leis constituem o lugar da representação do existente, afirma Herrera Flores, o lugar da modificação e da transformação é a prática social (2005, p. 85).

O grande mérito de Joaquín Herrera Flores em não se deter na pergunta “qual igualdade?” e colocar a questão “igual dade de quê?” está no fato de que ele parte da existência de uma situação de desigualdade. Portanto, longe de refletir sobre as diferenças a partir de padrões universalistas a priori, esse autor se preocupa em reconhecer as causas que fazem com que as diferenças se transformem em desigualdades. Por isso, ele diz que a problemática que nos apresenta o conceito de igualdade deve ser situada nos espaços concre-tos, isto é, nos contextos precisos onde se produz a riqueza, e consequentemente a pobreza, onde se reproduzem as di-visões sociais, sexuais, étnicas e territoriais do fazer humano. Nesse sentido, qual é o contexto e o conjunto das causas da desigualdade e da diferença e como temos que caminhar para solucioná-las colimando a construção de uma sociedade igua litária? São perguntas que se devem colocar todas e todos

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que não querem essencializar as diferenças nem eternizar as desigualdades (HERRERA FLORES, 2005, p. 82-91).

Para analisar a problemática da igualdade e da diferença com mais detalhes, Herrera Flores se apóia em Amartya Sen. Para esse economista indiano, a diferença e a desigualdade procedem fundamentalmente da diferente capacidade que o sistema oferece no que diz respeito ao uso dos recursos dis-poníveis e das possibilidades de transformar esses recursos em capacidades para atuar. Assim, para determinar o grau de desigualdade na diferença não devemos nos fixar uni-camente na falta de “meios”, de “recursos”, de “condições” econômicas, sociais e culturais, mas levar em consideração a injusta distribuição de possibilidades de funcionamento ou de capacidades sociais de uso dos recursos disponíveis no que diz respeito à “diferente” situação de homens e mulheres no processo de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano (HERRERA FLORES, 2005, p. 84/85).

Retomemos uma questão colocada anteriormente. Quando se fala da necessidade de se criar creches para as mulheres poderem estudar em condições de igualdade com os homens parte-se do pressuposto de que a elas cabem o cuidado dos filhos, no máximo os homens podem “ajudar”, mas a responsabilidade é delas. Fica claro, portanto, que não se trata apenas de lutar por meios e recursos que possibilitem a igualdade perante a lei, a igualdade de oportunidades, mas por um acesso igualitário e não hierarquizado a esses recursos e a esses meios. Homens e mulheres deveriam se ocupar igualmente dos cuidados domésticos com os filhos para que todos tenham acesso e o uso igualitário da educação.

É por isso que não podemos tratar a igualdade separada da liberdade. É por isso que não podemos apostar todas as nossas fichas no direito. Necessitamos que as transfor-

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mações se dêem na prática social. No entanto, ao mesmo tempo, não podemos colocar como sinônimo de liberdade a autonomia individual, porque isso nos levaria a separar novamente o político do econômico. Em outras palavras, não podemos desprezar a necessidade de meios e recursos econômicos, sociais e culturais para atingirmos a igualdade perante a lei, mas ao mesmo tempo – para resguardar as diferenças, para que não nos orientemos por um padrão universal a priori – deveríamos lutar pela construção de espaços sociais nos quais os indivíduos e grupos possam levar adiante suas lutas por sua própria concepção da digni-dade humana.

A partir dessa posição, o principal objetivo da liberdade, da atividade política, será o de construir subjetividades ade-quadas para a construção de relações sociais igualitárias. Pensar o direito a partir de uma perspectiva materialista e de totalidade, e não como algo ideal e desconectado dos con-textos onde a vida é produzida e reproduzida, permite lidar com a Lei Maria da Penha como um apoio para a criação de uma subjetividade política antipatriarcal: fazer com que as conquistas das práticas sociais se transformem “em uma língua que todos falem”.

Nesses termos ganha sentido a reivindicação de um direito à comunicação, de um direito à polifonia, a partir do qual se reconheça a existência de muitos pontos de vista e se proporcionem recursos e meios, especialmente tecnológicos, para que a pluralidade seja uma verdadeira forma de vida e, portanto, não se confunda com a superposição de consensos, que deixa intacto o padrão a ser refletido.

A construção e a perpetuação da ideologia patriarcal alcança a todos e a todas pelo simples fato de estar presente em todos os instrumentos e instituições de socialização. De

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fato, os mecanismos de produção e de difusão são tão efi-cientes que a ideologia patriarcal muitas vezes não chega à consciência, ao contrário, na maioria das vezes não percebe-mos que a carregamos em nossas veias. A família, a escola, as igrejas são instituições que tradicionalmente ajudaram a produzir e perpetuar o patriarcalismo e, como tal, a relegar a existência feminina à esfera privada. No entanto, atualmente nenhuma instituição desempenha melhor esse papel na esfera pública que os meios de comunicação e, por isso mesmo, merece todas as atenções dos que lutam por uma sociedade igualitária.

Como afirma a jornalista feminista Ana Veloso (2007, p. 15),

Local de embates políticos e espaço fundamental para a democratização da vida cotidiana, a esfera pública desponta como locus privilegiado para quem pretende ascender ao poder ou para quem não quer abrir mão dele. Isso acontece porque também é por meio dela que se constroem e legitimam discursos. Ela funciona como vitrine da vida social. E ninguém melhor do que a imprensa para fazer sua refração. Não seria exagero dizer que a mídia detém grande poder de sedução e influência sobre a sociedade justamente por fazer a mediação entre a esfera pública e a privada, ou melhor, por sua capacidade de reproduzir, para um grande número de espectadores, algum fato social.

Como é a imagem da mulher na mídia? Como os meios de comunicação retratam a mulher e seu lugar na sociedade? Para um(a) expectador(a) tolerante, bastam apenas alguns minutos em frente à televisão, principal veículo de comunica-ção do país, para constatar que a programação das emissoras primam pelo grotesco, pela incitação da violência e pelo des-respeito aos direitos das mulheres e de grupos minoritários.

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Vale tudo em nome do entretenimento e da “informação”, ou melhor, em nome do lucro fácil, camuflado por um suposto atendimento ao “gosto do público”. Diga-se-lo sem rodeios: trata-se de oportunismo e populismo. Oportunismo, porque as emissoras se aproveitam das necessidades humanas de com-pensação que implica um cotidiano de inúmeras privações, desemprego e baixa auto-estima. Enquanto o telespectador ri de mulheres, lésbicas e homossexuais colocados em situações vexatórias e caluniadoras, isto é, de grupos que são excluídos social, econômica e politicamente na sociedade, ri incons-cientemente de si mesmo. Populismo, porque a televisão intervém na própria opinião e no comportamento do público, em outras palavras, é um veículo formador de opinião e de comportamentos. A neutralidade mercadológica de atender ao “gosto do público” encobre, na verdade, uma ação real-mente formadora de opinião e a exploração desse segmento de mercado passa a ser a mesma coisa que “dar o que o público quer”. Em suma, a tv não inventa comportamentos, tendências ou valores, mas captura comportamentos e decide a quais dar visibilidade, legitimidade, importância.

Contudo, mais do que um efeito “sócio-terapêutico” de compensações psicológicas, a liberdade de expressão e o direito de informar, geralmente invocados pelas emissoras de televisão, têm repercussões ainda mais graves, pois a prática da democracia pressupõe e objetiva a criação e a consolidação de sujeitos sócio-políticos capazes de construir novas rela-ções sociais, baseadas no respeito mútuo e na preservação da dignidade humana.

Nesse sentido, como erradicar a violência contra as mulheres se os meios de comunicação a retratam em uma relação de subordinação diante do homem? Como extinguir a violência contra a mulher sem transformar essa arena de

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formação e desempenho de identidades sociais? Não foi à toa que em agosto de 2007 mais de 2,5 mil delegadas da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres destacaram, como um dos novos eixos prioritários do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), a criação de mecanismos de controle social sobre o uso da imagem da mulher nos meios de comunicação.

3 – POR UMA PRÁTICA JURÍDICA CRÍTICA

Quando manejado para construir igualdade de condições econômicas, sociais, políticas e culturais entre os gêneros e como base objetiva, concreta, para o processo de produção de uma subjetividade antipatriarcal, o direito converte-se em instrumento das lutas sociais por uma so-ciedade igualitária. Nesse sentido, um dos aspectos mais importantes da Lei Maria da Penha está no fato de ter surgido de pesquisas fundamentadas e de reivindicações concretas que expressam o conjunto das lutas feministas no Brasil. Lutas que têm nessa lei um ponto de apoio e não um resultado final, não só porque, como se viu anteriormente, o direito não resolve a questão “igualdade de quê”, mas também, e talvez especialmente, pelo fato de que ele próprio é, na imen-sa maioria dos casos, ensinado conforme os parâmetros da ideologia patriarcal e de uma suposta neutralidade política, dificilmente superadas na prática profissional.

Por isso, interpretar e aplicar a Lei Maria da Penha faz dessas práticas políticas uma tarefa arriscada. Os textos jurídicos são aparentemente de natureza formal e, na maio-ria das vezes, também são interpretados com base em uma lógica formal abstrata, por meio da qual o processo histórico

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de onde resultam não pode se apresentar. Não é de se es-pantar, portanto, os inúmeros artigos e livros que passaram a defender a inconstitucionalidade ora de alguns artigos ora de toda a Lei Maria da Penha, em nome do princípio da igualdade perante a lei.

A lógica formal abstrata no ensino e na prática do direito alimenta-se de múltiplos fatores. É muito comum atribuir a perpetuação de tal lógica à contribuição de uma certa “pompa” que faz parte do imaginário do mundo jurídico. De fato, o mistério conferido pela solenidade que ronda as salas de audiência; a imponência dos edifícios que abrigam as mais altas cortes do país; a indumentária sisuda a dar um ar próspero sob o sol tropical; o manejo de regras e normas cuja inteligibilidade é dificilmente acessível aos leigos mui-tas vezes fazem com que os estudantes dos cursos de direito construam para si mesmos uma imagem ao mesmo tempo privilegiada e distinguida de suas futuras práticas profissionais. Há, porém, um outro fator que muito tem contribuído para o ensino e a prática jurídicos formais: ingressar e poder freqüentar as aulas do curso de direito representa uma pos-sibilidade real de ascensão social que, para os mais altos cargos da burocracia jurisdicional, implica ganhar mais de cinqüenta vezes o salário mínimo do país.

Se a imagem “pomposa” do curso é logo desafiada pelos primeiros contatos com extrema burocracia na trami-tação dos processos e pela morosidade da justiça, a idéia de que o direito constitui um mundo à parte, imune à extrema desigualdade social que define a sociedade brasileira, é mais difícil de ser abalada. Essa visão começa a ser construída muito cedo, desde o primeiro ano de estudos, e permanece, na maioria das vezes, ao longo de todo o curso, estendendo-se para a prática profissional. Assim, muito cedo os alunos

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tentarão reter uma grande quantidade de normas, dedicar-se-ão com afinco ao aprendizado das técnicas de aplicação das leis, desdobrar-se-ão em perceber os problemas “jurídicos”, a identificar as ambigüidades e contradições das normas e quando são aplicáveis aos casos concretos. Tudo isso a ga-rantir a “segurança jurídica”, a previsibilidade das decisões para o bom funcionamento de um sistema fechado, circular, hierárquico e, principalmente, coerente. Tudo passa como se aprender o “direito” significasse saber o conteúdo das normas e porque o sistema jurídico tem que ser como é.

Nas últimas décadas, as mulheres têm conquistado maiores espaços no conjunto da sociedade brasileira, ampli-ando sua participação na produção da riqueza no mercado de trabalho e nas esferas de decisão política. Tais conquistas não foram, porém, amplas o suficiente para modificar os papéis sociais que lhes foram destinados. Historicamente, o direito positivo reforçou essa condição, cumprindo assim sua função de controle social ao promover a desigualdade jurídica da população feminina. A partir da década de 1980, com o fortalecimento do movimento feminista, é que se delineou uma tendência de reconhecimento formal dos direitos das mulheres. A Constituição Federal, ao reconhecer a igualdade entre homens e mulheres e por ter previsto amplos direitos para as mulheres, foi um importante marco na luta pela emancipação feminina. Desde então, outros direitos foram garantidos, sendo importante ressaltar a ratificação integral da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e da Convenção Interameri-cana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).

Em que pesem os avanços na legislação, observa-se que parte das dificuldades de implementação dos direitos reconhe-

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cidos está na deficiência da formação dos/das operadore(a)s jurídico(a)s para lidar com as questões mais amplas – e, por isso, não apenas dogmáticas – que envolvem as relações de gênero e o direito.

Daí a importância de, antes de estudar e aplicar a Lei Maria da Penha, compreender as relações de gênero. Daí a necessidade de exigir que o Ministério da Educação intro-duza, na estrutura curricular dos cursos de bacharelado em direito, uma disciplina específica sobre os direitos das mu-lheres que problematize os aspectos sociológicos, históricos, políticos, econômicos, culturais e jurídicos das relações de gênero no país. Medida concreta nessa direção é incluir, de forma específica, o direito das mulheres no edital do exame para a Ordem dos Advogados do Brasil, à semelhança do direito do consumidor, do direito da criança e do adolescente e do direito ambiental.

O ensino do direito e das relações de gênero nos cursos jurídicos é condição para uma prática jurídica crítica. E é preciso que se diga que tal prática não se resume ao anti-formalismo. É certo que não há formação técnica, dogmática, que supra a necessidade de formação política, no sentido da elaboração consciente, e de maneira coletiva, de uma visão de mundo. No entanto, não há consciência das implicações políticas das interpretações dos textos normativos que seja capaz de, pelo menos no que diz respeito atualmente à imensa maioria dos/das que ocupam os mais altos cargos da burocra-cia jurisdicional, alcançar a compreensão de uma situação de carência e de opressão. Não se pode construir idealmente soluções ou decisões que, em seu conjunto, sejam capazes de suprir necessidades absolutamente distantes da realidade cotidiana em que se vive.

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4 – REFERÊNCIAS

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HERRERA FLORES, Joaquín. De habitaciones proprias y otros espacios negados. Una teoría crítica de las opresiones patriarcales. Bilbao: Universidad de Deusto/Cadernos Deusto de Derechos Humanos, 2005.

MOTTA, Débora Menezes Silva; SOUZA, Juliana Marcondes Pedrosa de. O sentido das capacitações profissionais na perspectiva de gênero. In: LEOCáDIO, Ecylene; LIBARDONI Marlene (Orgs.). O desafio de construir redes de atenção às mulheres em situação de violência. Brasília: AGENDE, 2006, p. 113/130.

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SCHRAIBER, L. B. et al. Saúde da mulher, relações familiares e serviços de saúde do Sistema único de Saúde (SUS) em duas capitais – Recife e São Paulo. São Paulo: USP/FM, 2007.

SAFFIOTI, Heleieth I. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

VELOSO, Ana. O discurso feminista na esfera pública. Disponível em<http://www.ibase.org.br/modules.php?name=Conteudo&pid=851> Acesso em 20/11/2007.

VENTURINI, Gustavo, Marisol Recamán e Suely de Oliveira. A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

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DA PRESCRIÇÃO DO “FUNDO DE DIREITO”

Sérgio Paulo Ribeiro da Silva1

REsumO

O presente trabalho tem por enfoque o fenômeno da prescrição consumada em favor da Fazenda Pública, en-fatizando aquela que afeta a pretensão incidente sobre o chamado “fundo de direito”, isto é, no suposto direito que o particular entende ter adquirido, do qual decorrerão efeitos patrimoniais.

Com vistas às recentes discussões acadêmicas e jurisprudenciais acerca do tema, a principal abordagem da pesquisa residirá na distinção entre a denominada prescrição do “fundo de direito”, daquel’outra inci-dente, unicamente, sobre as prestações decorrentes de uma situação jurídica já estabelecida, com o objetivo de demonstrar que a percepção equivocada do julgador, a confundir uma com a outra, poderá conduzir uma das partes a prejuízo patrimonial. Isto é, tanto pode obrigar a Fazenda Pública a realizar pagamento de prestações

1 Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Católica de Pernambuco, Professor da Escolar Superior da Magistratura de Pernambuco, Juiz de Direito – assessor especial da presidência do Tribunal de Justiça de Pernambuco e Professor da Faculdade Maurício de Nassau.

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decorrentes de direito, cuja pretensão já se encontra pres-crita, ou ainda, privar o particular de um direito quando apenas as prestações dele decorrentes se encontravam alcançadas pela prescrição.

AbsTRAcT

The present work deals with the institutes of prescription and decadence in favor of the State (Treasury), emphasizing how they affect the “essence of right”.

By observing the most recent academic and jurisdic-tional discussions concerning the subject, this research will also bring the distinction between the extinctive phenomenon, in order to demonstrate that a mistake on interpreting the institute by the judge, confusing one with the other, may lead one of the parties to a material damage.

Key-words: State, Prescription, Decadence, Effects, Essence of right.

sumário: introdução: Da prescrição do “fundo de di-reito”; 1 definições; 1.1 Prescrição; 1.1.1 Temporaneidade; 1.1.2 Pretensão; 1.1.3 Natureza (jurídica); 1.1.4 Efeitos; 1.2 Fazenda Pública; 2 A fazenda pública diante da prescrição; 3 A prescrição das pretensões contra a fazenda pública; 4 pres-crição do “fundo de direito”; 4.1 Distinção (entre prescrição do “fundo de direito” e prescrição incidente sobre prestações de trato sucessivo); 4.2 Significação prática do tema; 4.3 Análise de um caso concreto; 5 conclusões; Referências.

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INTRODUÇÃO

Nossa análise – sem pretensões de ser percuciente –, está na mira da prescrição que se consuma em favor da Fazenda Pública, buscando focar a específica prescrição que afeta a pretensão que recai sobre o chamado “fundo de direito”, este consistente no suposto direito que o par-ticular entende ter adquirido, do qual decorrerão efeitos patrimoniais.

A um só tempo a prescrição é sanção – dirigida ao titular do suposto direito que supostamente foi violado, e mesmo assim permaneceu inerte – e instrumento de pacificação social – ao garantir estabilidade às relações jurídicas.

E como não faz muito tempo que a idéia de prescrição, como meio de extinção do direito de ação, circulava nos meios acadêmicos, na doutrina e na própria jurisprudência, é que, para possibilitar o diálogo, a reflexão do tema está precedida da fixação de conceitos – antigos e novos –, como de Fazenda Pública e de prescrição, adentrando nos aspectos da temporaneidade, da pretensão, da sua natureza (jurídica) e dos efeitos que produz.

Especificamente sobre a chamada prescrição do “fundo de direito”, inicialmente distinguimo-la da prescrição que recai unicamente sobre as prestações decorrentes de uma situação jurídica já estabelecida, com o objetivo de demons-trar que a percepção equivocada do julgador, a confundir uma hipótese com a outra, poderá conduzir uma das partes a prejuízo patrimonial. Tanto pode obrigar a Fazenda Pública a realizar pagamento de prestações decorrentes de direito, cuja pretensão já se encontra prescrita, ou ainda, privar o particular de um direito quando apenas as prestações dele decorrentes se encontravam alcançadas pela prescrição.

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1 – DEFINIÇõES

1.1 Prescrição

1.1.1 Temporaneidade

Pelo que propõe este trabalho, não é de todo apro-priado fazer incursões históricas acerca do instituto da prescrição. Porém, um brevíssimo relato de sua origem não deve ser desmerecido, pois serve de suporte para uma melhor compreensão de sua natureza, sobretudo no que diz respeito ao caráter da temporaneidade do exercício dos direitos, dentre os quais o de ver reparado o direito subjetivo violado. Nesse intuito, sirvo-me das referências de Venosa:

Antonio Luís Câmara Leal (1978, p. 3) descreve a história desse conceito etimológico. Quando o pre-tor foi investido pela lei Aebutia, no ano de 520 de Roma, do poder de criar ações não previstas no direito honorário, introduziu o uso de fixar prazo para sua duração, dando origem, assim, às chamadas ações temporárias, em contraposição com as ações de direi-to quiritário que eram perpétuas. Ao estabelecer que a ação era temporária, fazia o pretor precedê-la de parte introdutória chamada praescriptio, porque era escrita antes ou no começo da fórmula. (VENOSA, 2008, p.538).

No dizer de Gonçalves (2007, p.467), o tempo é o personagem principal da prescrição. Não há como desprezar o fato que o tempo afeta o exercício dos direitos subjetivos, cicatrizando lesões ocorridas no contexto

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das relações (jurídicas) econômico-sociais. E Venosa (2008, p. 535), com a percuciência de sempre, arremata: “O decurso do tempo, em lapso maior ou menor, deve colocar uma pedra sobre a relação jurídica cujo direito não foi exercido.”.

1.1.2 Pretensão

Para Gagliano (2007, p. 455), prescrição é a perda da pretensão de reparação do direito violado. Refletir sobre o conteúdo do termo prescrição pressupõe, de certo, refletir, também, sobre o termo pretensão.

Pretensão, pois, diz respeito ao poder ou ao direito de exigir, do devedor em mora, o adimplemento da obriga-ção. Supõe, portanto, o inadimplemento de um dever jurídico, ou, na expressão do Código Civil de 2002, a violação de um direito (artigo 189): “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”. Colho das lições da professora Maria Helena Diniz:

A violação do direito subjetivo cria para o seu titu-lar a pretensão, ou seja, o poder de fazer valer em juízo, por meio de uma ação (em sentido material), a prestação devida, o cumprimento da norma legal ou contratual infringida ou a reparação do mal causado, dentro de um prazo legal (arts. 205 e 206 do CC). (DINIZ, 2005, p. 375).

Informa Gonçalves (2007, p. 467) que a pretensão – Anspruch –, como expressão da exigibilidade da prestação não cumprida, foi adotada entre nós – Código Civil de 2002, artigo 189 – por influência do direito

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germânico, revelando, inequivocamente, que não mais vigora a idéia segundo a qual a prescrição põe fim ao direito abstrato de ação. Tanto é assim – que não ex-tingue o direito de ação, no sentido processual – que o acolhimento da exceção de prescrição pelo juiz se dá por sentença de mérito (CPC, art. 269, IV), que, inclusive, faz coisa julgada material (CPC, arts. 467 e 468).

1.1.3 Natureza (jurídica)

Prescrição é, essencialmente, sanção. É resposta à inércia do titular diante da violação do seu direito. Essa inércia do titular do direito violado, contudo, tanto pode significar negligência do titular do direito, como pode, também, traduzir mero desinteresse (=renúncia tácita) do credor em obter a prestação que lhe é devida, muitas vezes após sopesar a relação custo/benefício.

Nem por isso, é quase uníssona a consideração segundo a qual a prescrição resulta do menoscabo do titular do direito. Tanto é assim que Gagliano (2007, p. 455) dispara: “quem não tem dignidade de lutar por seus direitos não deve sequer merecer a sua tutela”. Outro não é o sentimento de Diniz (2005, p. 375):

Se o titular deixar escoar tal lapso temporal, sua in-ércia, dará origem a uma sanção adveniente, que é a prescrição. A prescrição é uma pena ao negligente. É a perda da ação, em sentido material, porque a vio-lação do direito é condição de tal pretensão à tutela jurisdicional. A prescrição atinge a ação em sentido material e não o direito subjetivo; não extingue o direito, gera a exceção, técnica de defesa que alguém tem contra quem não exerceu, dentro do prazo es-

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tabelecido em lei, sua pretensão. (DINIZ, 2005, p. 375). (grifo nosso)

Por isso, mantêm-se de pé, entre nós, a máxima: dormientibus non sucurrit jus.

1.1.4 Efeitos

Uma vez consumada a prescrição, ou seja, decor-rido determinado lapso de tempo indicado pela lei, sem que, durante o seu interregno, o titular do direito violado tenha feito uso da ação judicial adequada exigindo a correspondente reparação – nem ocorrido qualquer um dos fatos previstos em lei que impeça, suspenda ou interrompa a contagem desse prazo –, inexorável o resultado consistente na extinção da pretensão.

Wald (2003, p. 227) salienta que a prescrição faz convalescer uma lesão de direito no interesse social, esclarecendo que o que prescreve não é o direito em si, mas a lesão ao direito que convalesce.

Tanto é verdade que o direito material – além do dire-ito abstrato de ação, como já salientado anteriormente – não é afetado pela prescrição, no sentido de não ser extinto, já que a lei admite como bom o adimplemento da prestação, cuja pretensão de exigibilidade, já se encontrava pulverizada pela prescrição, a ponto de não assegurar qualquer direito de repetibilidade àquele que tenha solvido a obrigação (CC, art. 882).

Também, verbi gratia, na hipótese de “cheques pre-scritos”, donde, como é sabido, a prescrição dissolve a pretensão executiva, o direito de crédito deles decorrente se mantém hígido a ponto de autorizar a correspondente

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cobrança através de ação ordinária (Lei do Cheque, arts. 61 e 62).

De outra parte, nossa doutrina – como também a própria legislação, conforme dispositivos legais acima indicados – acolhe sem maiores dificuldades a existên-cia das chamadas obrigações naturais, às quais Ripert (2000, p. 355 e 364) se refere como o “(...) dever de consciência tomado em consideração pelo juiz em vista dos seus direitos civis.”, cujo “(...) o laço obrigatório pode ser sempre desfeito por uma execução voluntária.”. E ainda sai com a seguinte tirada: “Certos autores che-gam mesmo a dizer que a prescrição consegue apenas paralisar o direito, mas não extingui-lo.”.

Sempre claro, Wald (2003, p. 228) sustenta que so-mente a responsabilidade decorrente da lesão ao direito violado é atingida pela prescrição, senão vejamos:

Se invocarmos a idéia de que toda lesão de direito cria uma responsabilidade em virtude da qual o prejudicado pode recorrer à justiça para obter o ressarcimento dos danos sofridos, podemos afirmar que a prescrição faz desaparecer a responsabilidade, mantendo, todavia, em vigor, mas desarmada, a relação originária. Tanto assim é que, se for paga uma dívida prescrita, quem a pagou não pode exigir a devolução do pagamento da dívida prescrita. Este pagamento legitima-se pela existência da obrigação originária, embora o credor já não possa, em virtude do decurso do tempo, recorrer às vias judiciais para cobrar o débito, equiparando-se a dívida prescrita à obrigação natural. (WALD, 2003, p. 228).

Sob outra percepção, pode-se ainda afirmar, sem vacilo, que o instituto da prescrição se presta também,

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como assevera Gagliano (2007, p. 454), como instru-mento de garantia da pacificação social:

O exercício do direito por ações judiciais deve ser uma conseqüência e garantia de uma consciência de cidada-nia, e não uma ‘ameaça eterna’ contra os sujeitos obriga-dos, que não devem estar submetidos indefinidamente a uma ‘espada de Dâmocles’ sobre suas cabeças..

Além de estar a serviço da consolidação de direitos, proporcionando segurança e estabilidade às relações jurídicas, destaca Venosa (2008, p. 536) outro aspecto relevante acerca da prescrição: “Não fosse o tempo determinado para o exercício dos direitos, toda pessoa teria de guardar indefinidamente todos os documentos dos negócios jurídicos realizados em sua vida, bem como das gerações anteriores.”.

São ganhos que o Direito – e seus destinatários – não mais pode abrir mão, apesar de favorecer que as obrigações permaneçam incumpridas. O lucro auferido pela sociedade supera, em muito, o prejuízo sofrido por cada indivíduo.

1.2 Fazenda Pública

No dizer do professor Leonardo da Cunha, a expressão Fazenda Pública designa a pessoa jurídica de direito público em juízo, pouco importando se a demanda verse, ou não, sobre matéria estritamente fiscal ou financeira. É o que se extrai das seguintes passagens:

O uso freqüente do termo Fazenda Pública fez com que se passasse a adotá-lo num sentido mais lato, traduzindo a idéia do Estado em juízo; em Direito

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Processual, a expressão Fazenda Pública contém o significado de Estado em juízo. Daí porque, quando se alude à Fazenda Pública, a expressão apresenta-se como sinônimo de Estado em juízo, ou, ainda, da pessoa de direito público em juízo. A expressão Fazenda Pública é utilizada para desig-nar as pessoas jurídicas de direito público que figurem em ações judiciais, mesmo que a demanda não verse sobre matéria estritamente fiscal ou financeira.”. (CUNHA, 2008, p.15).

Meirelles (1990, p. 617), por sua vez, esclarece que a pessoa jurídica de direito público, quando em juízo, recolhe essa denominação porquanto é o erário que terá de suportar os encargos patrimoniais da demanda. Nessa mesma linha, assevera Pereira (2008, p. 5) que “A expressão Fazenda Pú-blica é normalmente evocada como representativa de feição patrimonial das pessoas jurídicas de direito público interno, tanto mais quando observadas sob a atuação judicial.”.

Merece também registro que essa expressão alcança qualquer uma das entidades da administração pública direta: União, Esta-dos e Municípios. Da indireta, por força do disposto no artigo 10 da Lei 9.469/97, estão compreendidas no seu conceito somente as autarquias e as fundações públicas, ficando de fora, pois, as empresas públicas e as sociedades de economia mista.

2 – A FAZENDA PúBLICA DIANTE DA PRESCRIÇÃO

Lógico que a prescrição tanto pode beneficiar como desfavorecer a Fazenda Pública, conforme seja o titular, ou não, do direito subjetivo malferido. Prescrição em favor da Fazenda Pública supõe que aquele que tinha direito à

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prestação incumprida, o particular, tenha deixado – pouco importa a razão, se por mero descaso ou por opção – de exigir o cumprimento da respectiva obrigação no prazo fixado em lei.

Se a prescrição, ao contrário, desfavorecer a Fazenda Pública, é porque foi ela quem deixou de manejar a ação adequada – em sentido processual –, a fim de afastar e/ou sanar a lesão que afetava seu direito subjetivo.

Embora não esteja no foco destas reflexões, abro um parêntese tão-somente para registrar que os prazos de pres-crição, conforme seja a favor ou contra a Fazenda Pública, prima facie, são diferenciados e ainda regidos por diplomas legais diversos, salvo, naturalmente, as percucientes opiniões em contrário.

Se em benefício da Fazenda Pública, salvo as ações reais e outras hipóteses previstas em leis específicas, o prazo prescri-cional é de cinco anos, conforme o estabelecido no Decreto n° 20.910, de 6 de janeiro de 1932. Merece respeito, entretanto, a exegese segundo a qual, sobretudo nas demandas indenizatórias, esse prazo fica reduzido para os três anos fixados pelo Código Civil de 2002, na medida em que o § 3° do artigo 206 não fez – e não faz – qualquer ressalva relativamente à Fazenda Pública, bem como em face do teor do artigo 10 do próprio Decreto n° 20.910/32, que, expressamente, ressalva que o prazo nele fixado de cinco anos não prevalece sobre prazo menor fixado em lei e regulamentos.

Se, em desfavor da Fazenda Pública, de acordo com atual Código Civil, o prazo de prescrição – sobremaneira nas ações pessoais que visem o recebimento de prestações vencidas, o ressarcimento de enriquecimento sem causa ou a reparação civil (CC, artigo 206, § 3°, II a V) –, é de apenas três anos.

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3 – PRESCRIÇÃO DAS PRETENSõES CONTRA A FAZENDA PúBLICA

O tema como visto, trata de hipótese em que a prescrição se consuma em favor da Fazenda Pública. Essa prescrição, porém, nos termos dos artigos 2° e 3° do Decreto n° 20.910/32, respectivamente, tanto pode se referir a “(...) todo o direito e as prestações correspondentes (...)”, como exclusivamente “(...) as prestações, a medida que completarem os prazos estabelecidos pelo presente Decreto.”.

Noutras palavras, a prescrição tanto está vocacionada a extinguir pretensão relativa a um direito subjetivo em si, que o sujeito julga ser titular, como única e exclusivamente às prestações que decorrem de um direito já reconhecido, e cuja execução é de trato sucessivo.

Na primeira hipótese, em que a prescrição extingue uma pretensão a um direito subjetivo que o sujeito julga ser titu-lar, a doutrina e a jurisprudência convencionaram se tratar da chamada prescrição do próprio “fundo de direito”, que é objeto de nossa preocupação.

4 – PRESCRIÇÃO DO “FUNDO DE DIREITO”

4.1 Distinção (entre prescrição do “fundo de direito” e prescrição incidente sobre prestações de trato sucessivo)

Cumpre-nos, agora, esquadrinhar a chamada pres-crição do “fundo de direito”, sobretudo para distingui-la da prescrição que recai sobre meras prestações de trato sucessivo, nem sempre bem percebida pelos operadores do Direito.

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Quando o particular exerce pretensão – via ação judicial –, verbi gratia, a uma determinada pensão que entende ser de direito e que foi denegada pela Administração Pública, ou seja, visa estabelecer (ou restabelecer) uma determinada situação jurídica, a prescrição afetará a exigibilidade desse suposto direito à pensão. Configurada a prescrição, o parti-cular não poderá mais exigir que lhe seja deferida a pensão requestada. É o caso da chamada prescrição do “fundo de direito”.

A exigibilidade do pagamento das pensões mensais su-põe o reconhecimento do direito à pensão. Só após tal reco-nhecimento é que nascem os efeitos patrimoniais decorrentes, ou seja, só depois de certificado o direito – deferimento, por exemplo, da pensão pelo órgão previdenciário – é que se torna exigível a prestação periódica.

E quando o particular exercer pretensão tendo em vista o simples pagamento de prestações – das pensões mensais, por exemplo –, originalmente reconhecidas como devidas, e mesmo assim não foram pagas, a prescrição recairá exclu-sivamente sobre a pretensão referente às parcelas anteriores a cinco anos. É o caso de prescrição das prestações de trato sucessivo.

A propósito, a matéria já mereceu, inclusive, a atenção das Cortes Superiores de Justiça. O Supremo Tribunal Fe-deral, quando ainda tinha jurisdição sobre direito federal, editou a Súmula n° 443, com o seguinte enunciado: “A prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre, quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de que ele resulta.”.

Assim também o fez o Superior Tribunal de Justiça, editando a Súmula n° 85, com o seguinte enunciado: “Nas

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relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pú-blica figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior a propo-situra da ação.”.

Por fim, é digno de registro que a chamada prescrição do “fundo de direito”, na lição de Cunha (2008, p. 74), ou de-corre de expresso pronunciamento da Administração Pública, denegando o pleito do interessado, ou da simples vigência das denominadas “leis de efeitos concretos”, ou seja, daquela lei, verba gratia, que altera situação jurídica estabelecida. A lesão, afirma o doutrinador, não advém de ato administrativo, mas com a simples vigência da lei.

4.2 significação prática do tema

A percepção inadequada da questão pode conduzir o titular do direito violado a sofrer novo dano – tão nocivo, senão mais grave do que a própria violação do seu direito material –, qual seja, o de se ver privado da possibilidade de exigir o adimplemento da obrigação incumprida e/ou a cor-respondente reparação, tão-somente e por conta do aplicador do direito, indevidamente, ter entendido estar configurada a prescrição do “fundo de direito”, quando, de fato, tratava-se de simples prescrição referente às prestações decorrentes de um direito já reconhecido.

O inverso também é verdadeiro: não seria correto – para não falar em injustiça –condenar a Fazenda Pública a qualquer pagamento quando a pretensão do particular está dissolvida pela chamada prescrição do “fundo de direito”.

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Quando o aplicador do direito reconhece a prescrição da pretensão que recai apenas sobre as prestações decor-rentes de um direito já reconhecido, a perda daí decorrente se limita àquelas parcelas correspondentes ao qüinqüênio anterior ao ajuizamento da ação judicial, ficando ressalvadas, conseqüentemente, além do próprio direito do qual decor-rem tais prestações, as demais que ficaram de fora desse qüinqüênio.

Ao contrário, quando o aplicador do direito decreta a extinção da pretensão, pela prescrição, que recai sobre o próprio direito do qual decorreriam as prestações, o prejuízo adveniente ao titular do direito não se limitaria às parcelas, mas, como visto, ao direito em si, de modo que esse sujeito nada pode mais exigir.

4.3 Análise de um caso concreto

Para ilustrar e facilitar a compreensão, nada mais per-tinente do que partir de uma situação concreta, como a que cuida o Recurso Especial n° 534.671-CE (DJ: 31/05/2004, p. 194), especialmente por conta do debate travado entre o Ministro Francisco Falcão, relator do recurso, e o Ministro José Delgado. Assim relata o Ministro Delgado:

Os autos atestam que José Ivan da Silva, em data de 08.11.83, quando se encontrava preso na Comarca de Redenção, Estado do Ceará, foi linchado até a morte, fato ocorrido dentro da cela. Em 10 de junho de 1996, portanto, quase 13 anos do referido sinis-tro, a sua esposa promove ação de responsabilidade civil, requerendo uma pensão mensal até completar 65 anos de idade. O juízo de primeiro grau julgou extinto o processo, acolhendo argüição de prescrição.

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O Tribunal ‘a quo’, após afastar a prescrição, apreciou o mérito, considerando parcialmente procedente o pedido, concedendo a pensão a partir de 26.7.91, data em que foi cumprido o lapso temporal de 5 (cinco) anos imediatamente anteriores ao ajuizamento da ação. O eminente relator deu parcial provimento ao recurso especial do Estado. Este reivindica a aplica-ção das regras postas no Decreto 20.910/32.

Em seu voto, o Ministro Falcão, considerou, a exemplo do tribunal a quo, que a prescrição consumada dizia respeito tão-somente às prestações vencidas e não ao chamado “fundo de direito”:

Primeiramente, no que concerne à prescrição da pos-tulação da autora, entendo que esta não se configurou, nos moldes como decidiu o acórdão vergastado. No presente caso, a autora pleiteia a reparação de danos por ato ilícito, em face da morte de seu cônjuge, re-querendo o pagamento de pensão mensal. Com isso, afigura-se o caráter alimentar e de trato sucessivo da presente indenização, razão pela qual, no teor da Súmula n° 85 desta Corte, a prescrição não atinge o fundo do direito, mas tão-somente as parcelas ante-riores ao qüinqüênio do ajuizamento da ação.

O Ministro Delgado, por seu turno, considerou que a prescrição havia destruído a pretensão referente o próprio direito de pensionamento:

Como bem posto, a hipótese tratada nos autos não caracteriza relação jurídica reconhecida por lei de trato sucessivo. Esta relação, com tal característica,

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exige que o direito se encontre reconhecido, tendo, apenas, deixado de ser exercido. É exemplo constante o pensionamento devido ao cidadão por determinação legal ou por força de sentença, sem que tenha havido efetivo exercício de concretizá-lo. Nessa situação, o fundo do direito não prescreve. Só as prestações devidas atingidas pela prescrição. No caso em aná-lise, inexiste direito objetivamente reconhecido. Em conseqüência, se a parte interessada deixou escoar o prazo qüinqüenal para propor a ação objetivando o reconhecimento do seu direito, não resta opção ao Poder Judiciário senão decretar extinto o processo, em face de efeito prescricional, sem julgamento de mérito.

Como visto, de uma simples leitura dos trechos trans-critos dos votos dos ministros se constata que a matéria suscita dificuldades e produz conseqüências importantes para as partes.

Na primeira instância, o juízo singular pôs fim ao proces-so por entender que estava configurada a chamada prescrição do “fundo de direito”. Em termos práticos, para a esposa do preso que foi assassinado na prisão, tal decisão importou em permanecer sem qualquer reparação por parte do Estado, em poder de quem se encontrava o marido da autora da ação.

Na segunda instância, o tribunal local, vendo a causa sob outra perspectiva, reformou a sentença por acreditar que se tratava de prescrição que recaia apenas sobre as prestações compreendidas a partir do último qüinqüênio anterior à pro-positura da ação indenizatória, de modo que, assim, condenou o Estado a pagar a pensão perseguida pela viúva – salvo, naturalmente, as prestações alcançadas pela prescrição.

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Chegando a causa ao Tribunal Superior de Uniformi-zação do Direito Infraconstitucional, a matéria voltou a ser objeto de desencontro de percepções, pois o Ministro Falcão, relator do especial, ao votar, considerou, a exemplo do tribunal a quo, que a prescrição consumada dizia respeito tão-somente às prestações vencidas e não ao chamado “fundo de direito”, razão porque se posicionou pela manutenção da condenação do Estado a realizar o pensionamento.

Enquanto, isso, o Ministro Delgado, acertadamente, entendeu que a prescrição atingiu a pretensão do próprio direito ao pensionamento e, por conseguinte, das parcelas dele advenientes. Como seu voto prevaleceu, a decisão da Turma (acórdão) foi no sentido de reconhecer a prescrição e afastar a condenação imposta ao Estado. Com isso, nada mudou na vida concreta da viúva do preso assassinado: o dano permaneceu sem qualquer reparação pelo Estado.

CONCLUSõES

Não há como desprezar o fato de que o tempo afeta o exercício dos direitos subjetivos, cicatrizando lesões ocorridas no contexto das relações (jurídicas) econômico-sociais.

Refletir sobre o conteúdo do termo prescrição pressupõe refletir, também, sobre o termo pretensão, que diz respeito ao poder ou ao direito de exigir, do devedor em mora, o adim-plemento da obrigação. Supõe, portanto, o inadimplemento de uma obrigação. Prescrição é, essencialmente, sanção devido à inércia do titular diante da violação do seu direito. Porém, sob outra perspectiva, prescrição se presta também como instrumento de garantia da pacificação social.

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Relativamente à prescrição em favor da Fazenda Pública supõe que aquele que tinha direito à prestação incumprida, o particular, tenha deixado – pouco importa a razão, se por mero descaso ou por opção – de exigir o cumprimento da respectiva obrigação no prazo fixado em lei e poderá ex-tinguir tanto a pretensão relativa a um direito subjetivo em si, que o sujeito julga ser titular (“fundo de direito”), como única e exclusivamente às prestações que decorrem de um direito já reconhecido.

Também é digno de registro que a chamada prescrição do “fundo de direito” decorre de expresso pronunciamento da Administração Pública denegando o pleito do interessado ou da simples vigência das denominadas “leis de efeitos concretos”, ou seja, a lesão não advém de ato administrativo, mas com a vigência da lei.

Por fim, a percepção inadequada da distinção entre a prescrição do “fundo de direito” e a prescrição de meras pres-tações pode conduzir uma das partes a prejuízo patrimonial. Tanto pode obrigar a Fazenda Pública a realizar pagamento de prestações decorrentes de direito, cuja pretensão já se encontra prescrita, ou ainda, privar o particular de um direito quando apenas as prestações dele decorrentes se encontravam alcançadas pela prescrição.

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