Revista Contemporane, Maria AP., Juliana e Beatriz

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Dossiê O mundo rural no século XXI Contemporânea ISSN: 2236-532X v. 4, n. 1 p. 85-115 Jan.–Jun. 2014 Quando a máquina “desfila”, os corpos silenciam: tecnologia e degradação do trabalho nos canaviais paulistas 1 MARIA A. MORAES SILVA 2 JULIANA DOURADO BUENO 3 BEATRIZ MEDEIROS DE MELO 4 Resumo: A hipótese central do artigo gira em torno das (novas) configurações do trabalho no atual contexto da mecanização nos canaviais paulistas.Os acha- dos da pesquisa revelam que à intensificação da exploração dos operadores das máquinas soma-se outra relacionada às atividades subsidiárias – recolha de pedras, tocos, restos de cana, distribuição de veneno, vinhaça – que implicam rearranjos da divisão sexual do trabalho, constituindo a simbiose tecnologia/ degradação do trabalho. O atual avanço tecnológico é analisado tanto do ponto de vista econômico como das estratégias de controle vigentes segundo as parti- cularidades históricas dessa produção em São Paulo. 1 Este artigo é resultado da pesquisa: Novas configurações do trabalho nos canaviais. Um estudo compara- tivo entre os estados de São Paulo e Alagoas. Edital Universal do CNPq (processo: 474696-2011-1), sob a coordenação de Maria A. Moraes Silva. 2 Professora visitante sênior da CAPES junto ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – São Carlos – Brasil. Pesquisadora do CNPq – [email protected] 3 Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – bolsista de doutorado do CNPq – São Carlos – Brasil – [email protected] 4 Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – bolsista de pós-doutorado da FAPESP – São Carlos – Brasil – [email protected]

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Artigo sobre o trabalho nos canaviais

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Dossi O mundo rural no sculo XXIContemporneaISSN: 2236-532Xv. 4, n. 1 p. 85-115Jan.Jun. 2014Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao do trabalho nos canaviais paulistas1 MARIA A. MORAES SILVA2JULIANA DOURADO BUENO3BEATRIZ MEDEIROS DE MELO4Resumo:Ahiptesecentraldoartigogiraemtornodas(novas)confguraes do trabalho no atual contexto da mecanizao nos canaviais paulistas.Os acha-dos da pesquisa revelam que intensifcao da explorao dos operadores das mquinassoma-seoutrarelacionadasatividadessubsidiriasrecolhade pedras, tocos, restos de cana, distribuio de veneno, vinhaa que implicam rearranjosdadivisosexualdotrabalho,constituindoasimbiosetecnologia/degradao do trabalho. O atual avano tecnolgico analisado tanto do ponto de vista econmico como das estratgias de controle vigentes segundo as parti-cularidades histricas dessa produo em So Paulo.1Este artigo resultado da pesquisa: Novas confguraes do trabalho nos canaviais. Um estudo compara-tivo entre os estados de So Paulo e Alagoas. Edital Universal do CNPq (processo: 474696-2011-1), sob a coordenao de Maria A. Moraes Silva.2Professora visitante snior da CAPES junto ao Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) So Carlos Brasil. Pesquisadora do CNPq [email protected] de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) bolsista de doutorado do CNPq So Carlos Brasil [email protected] de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) bolsista de ps-doutorado da FAPESP So Carlos Brasil [email protected] a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...Palavras-chave:mecanizao; produo canavieira; trabalho; gnero/etnia.When the machine shows of the bodies make silence: technology and degradation of work at the So Paulos canebrakesAbstract:Tecentralhypothesisofthisarticleinvolvesthe(new)workplacecon-fgurationunderthecurrentSoPauloscanebrakesmechanizationcontext.Re-searchfndingsrevealtheincreaseofmachineoperatorsexploitationsumming up to subsidiary activities exploitation - collection of stones, stumps, distributing poison, vinasse -, which implies a readjustment of the sexual division of labor and ultimately constitutes the symbiosis technology/degradation of work. Ongoing ad-vance in technology will be analyzed from both the economics point of view and theoneofactualcontrolstrategiesaccordingtohistoricalparticularitiesofthis production in So Paulo.Keywords:mechanized agriculture; sugarcane production; work; gender/ethnicity. Na semana passada fui a uma fazenda em Cravinhos-SP, que conheci alguns anos atrs. L chegando, fquei espantado, pois no vi mais osmorros, as minas dgua e nem as rvores que ali havia. Era uma fazenda com mais de 1.000 hectares com muitas pastagens e muitas rvores. Era uma paisagem bonita de se ver. Eu me perguntei: onde esto os morros? A rea fora arren-dada para a usina para o plantio da cana mecanizado, que necessita de ter-reno plano. Hoje, tudo cana. No acreditava no que estava vendo (Sr. Jos, sitiante. Altinpolis, 25/1/2014).IPara quem percorre as estradas paulistas, a paisagem que se descortina o monocromtico da cana-de-acar, ora verde, ora enegrecida pela queima das palhas.Nomeiodela,comfrequnciacadavezmenor,silhuetasdetrabalha-doresrurais,migrantes,negros,provenientesdosestadosdonordesteoudo nortedeMinasGeraissoesmaecidaspelasnuvensdecinzaepoeira,que asencobrem,apsasequnciademilharesdegolpesdefacodesferidosdu-rante a jornada de trabalho. De abril a dezembro, o cu do interior paulista era atalgunsanosatrsparcialmentevistoporseushabitantes,poisachava-se encoberto por milhes de toneladas de gases advindos da queima da biomas-sa. Seguramente, essa paisagem escurecida e poluente seria considerada uma gigantescairracionalidadeporpessoasdeoutrasplagas,preocupadascomo v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 87meio ambiente. Ademais, durante a safra de cana, os mdicos alertavam para o agravamento de doenas respiratrias e o crescimento de internaes de pes-soasmaisvulnerveis,comocrianas,idososeportadoresdeenfermidades crnicas. O Ministrio Pblico e representantes de muitas entidades civis con-clamavam a favor do fm das queimadas e em alguns municpios esta prtica foi at mesmo proibida. No entanto, cada vez mais, ano aps ano, aumentavam as reas com cana e tambmasqueimadas.Asjustifcativasdaclassepatronalassentavam-senos lucros, pois com a queima a quantidade de gua da cana se reduz, diminuindo assim os custos com o transporte at as moendas das usinas. Outra justifcativa repousava no fato de que os trabalhadores preferiam (sic) esta prtica porque, assim, logravam aumentar a quantidade de cana cortada e, por meio do salrio por produo, seus ganhos seriam maiores. Tambm se livrariam dos riscos de ser picados/atacados por animais peonhentos (sic) tatus, ratos, capivaras, lo-bos, cobras, coelhos etc. , os quais seriam mortos durante a queima em virtude defcaremencurraladospelofogonostalhesdecana.Essaprtica,portan-to,benefciavatantoostrabalhadorescomoospatres.Alis,osrepresentan-tes sindicais tambm a defendiam. As questes relativas aos baixos salrios, superexploraoimposta,queemmuitoscasoslevoumorteouinvalidez permanente muitos trabalhadores, no eram objeto de pautas da reivindicao sindical. A partir de 2002, quando entraram em operao os chamados carros fex fuel, movidos a etanol e a gasolina, a demanda de cana-de-acar cresceu, gerando o aumento vertiginoso da expanso dos canaviais no somente no esta-do de So Paulo como tambm em outros estados5. Neste contexto, aprofundou--seaexploraodaforadetrabalhopormeiodaintensifcaodosnveisde produtividade exigidos metas de produo , em razo da impossibilidade do cortemanualnoturno,visandoatenderdemandacrescentedecanaparaas moendas. A partir de ento, vrias pesquisas, juntamente com a participao da 5Segundo a estimativa da CONAB, a rea cultivada com cana-de-acar colhida e destinada atividade sucroalcooleiranasafra2013/14foiestimadaem8.799.150milhectares.OestadodeSoPauloper-manececomoomaiorprodutor,com51,31%(4.515.360hectares)dareaplantada,seguidoporMinas Gerais,com8,0%(781.920hectares),Gois,com9,3%(818.390hectares),Paran,com7,04%(620.330 hectares), Mato Grosso do Sul, com 7,09% (624.110 hectares), Alagoas, com 5,02% (442.590 hectares), e Pernambuco, com 3,25% (286.030 hectares). Nos demais estados produtores as reas so menores, com representaesabaixode3,0%.Areadecana-de-acardestinadaproduonesteano/safradeve apresentarumcrescimentode3,70%,ou314.150hectares,emrelaosafrapassada.Disponvelem: .88Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...Pastoral do Migrante (sediada em Guariba [SP])6, trouxeram superfcie a bar-brie que estava ocorrendo nos canaviais em virtude das mortes de trabalhado-res supostamente motivadas pelo excesso de trabalho (Silva et al., 2006; Alves, 2006; Laat, 2010; Barbosa, 2010; Silva, 2006; Silva; Martins, 2010; Silva; Veroza; Bueno,2013),semcontarqueessarealidadeextrapolouosmurosdauniver-sidade,chegandoaosmeiosdecomunicaonacionaiseatinternacionaise, sobretudo,aoMinistrioPblicodoTrabalho.Enfm,chegaraomomentode impor alguns limites aos capitalistas no que se referia aos nveis de dilapidao da fora de trabalho e da natureza, pelo menos aparentemente.Dois arranjos institucionais o Protocolo Agroambiental, frmado pelo go-verno estadual e representantes da UNICA em 2007, e o Compromisso Nacional ParaAperfeioarasCondiesdeTrabalhonaCana-de-acar,frmadopelos representantesdostrabalhadores,CONTAGeFERAESP,governofederalere-presentantes do patronato em 2009 marcaram a presena poltica do Estado em relao s queimadas, aos problemas ambientais, de um lado, e, de outro, situaodostrabalhadores.Estesdoisarranjosinstitucionais(estadualefede-ral)visavam,sobretudo,consolidaodaideologiasegundoaqualoetanol, extrado da cana, seria a soluo para os problemas ambientais do planeta na medida em que seu uso causaria a diminuio de gases poluentes na atmosfera, responsveis pelo efeito estufa, garantindo assim a segurana energtica.Noquetangeaosempresrios,pressionadospelasnotciasveiculadasnos pases compradores de acar e etanol, o que poderia comprometer suas vendas, pelo Ministrio Pblico e, ainda, pela resistncia dos trabalhadores por meio de milhares de processos trabalhistas, a soluo encontrada foi mascarar a realida-de social e ambiental existente por meio da assinatura desses acordos e do incre-mento do processo de mecanizao, alis em marcha ascendente desde a dcada de19907.Assimsendo,oslimitesnaturaisdessaproduoseriamtranspostos namedidaemqueocampofossepaulatinamentetransformadonumaverda-deira fbrica funcionando diuturnamenteSegundo dados do INPE, a rea com cana no estado de So Paulo teve um incremento de 51,1% no perodo de 2006 6Jadir Damio Ribeiro, aluno de IC do CNPq, sob orientao da primeira autora deste artigo, ento agente leigo da Pastoral do Migrante, foi quem primeiro denunciou as mortes nos canaviais, em funo da bi-rola (termo usado pelos trabalhadores para se referir sequncia de cibras provocadas pelo dispndio excessivo de energia).7SegundodadosdoProjetoCanasat,doInstitutoNacionaldePesquisasEspaciais(INPE),dos4.658.316 hectares de cana colhidos na safra 2012, 1.277.003 hectares (27,4%) foram por queima e 3.381.313 (72,60%) mecanicamente.Em2006,65,76%doscanaviaisforamcolhidoscomousodefogoe34,24%comouso demquinas.Disponvelem:. Acesso em: 3 fev. 2014. v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 89a 2012. Em contrapartida, o nmero de trabalhadores no qualifcados os que no operam as mquinas decresceu de 154.254 em 2007 para 110.188 em 2012, enquanto os empregados na mecanizao agrcola passaram de 34.142 em 2011 para 35.825 em 2012, segundo os dados CAGED e RAIS (Baccarin, 2013).Em 2009, durante a assinatura do Compromisso Nacional em Braslia, com apresenadosrepresentantesdachamadaComissoTripartite(governo,em-presriosetrabalhadores),foimontadoocenrioparaaveiculaodanova imagem do setor canavieiro. O Compromisso frmado visava ao seguimento da NR31(NormaRegulamentadora31,quenormatizaoambientedetrabalhono campo) e implantao do chamado trabalho decente, por meio da verifcao documprimentodessanorma.Entreosvriositensdesseacordo,destaca-se aregulamentaodomercadodetrabalhopormeiodacontrataonolugar deorigemdostrabalhadores,evitandoassimavindaespontneademigran-tes para a safra de cana. Criou-se, portanto, um mercado de trabalho migrante temporrio regulado pelas empresas com o aval do Estado. Este fato se constitui num elemento importante para entender o avano do processo de mecanizao eaeliminaodemilharesdepostosdetrabalho,semaocorrnciadapropa-ganda ideolgica de um possvel desemprego em massa. Desde suas origens, os migrantesrepresentaramamaiorfatiadoconjuntodetrabalhadoresdasusi-nas(Silva,1999).Destasorte,elesestosendodescartadospaulatinamentee substitudos pelas mquinas, enquanto uma pequena parte destinada a outras tarefas subsidirias das mquinas, sob o manto da contratao direta e formal. Osdescartadostomaramarotadeseuslocaisdeorigem,livrando,assim,as cidades canavieiras paulistas dos problemas sociais causados pelos migrantes, se-gundo palavras de um engenheiro agrnomo.IIAoanalisaraliteraturasobreamecanizaodocortedacana8,obser-vam-seasseguintespreocupaes:a)explicaestcnicasrelacionadasao funcionamentooperacionaldemquinas,tratores,transbordosecarregadei-ras,geralmenteprovenientesdareadaengenhariaagronmicaemecnica; b)explicaesquevisamaapontarasvantagensdamaquinaria,relacionan-dooscustosdeproduo,taiscomoconsumodecombustveis,vidatildos 8As informaes a respeito da mecanizao so inmeras. Selecionamos aquelas que nos auxiliaram na anlise dos depoimentos recolhidos durante a pesquisa, a saber: Ramo, Schineider, Shikita, 2007; Cano, Vergnio, 2010; Veiga Filho et al, 1994; Scheidl, Simon, 2012. Os principais sites consultados foram: ; ; .90Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...equipamentos,rendimentos,cuidadosoperacionaisetc.Demodogeral,tais explicaes se estendem tambm a outras fases da produo, como preparo do solo,subsolagem,nivelamento,profundidadedossulcos,distribuiodeher-bicidas e adubos, atividades prvias ao plantio da cana. Muitos so os sites da internet de empresas, fabricantes, associaes de plantadores de cana, alm dos artigostcnicosecientfcosquedivulgamtaisinformaes.Enfm,amaqui-naria,comomercadoria,cuidadosamenteexpostaparaatrairaatenode futuros consumidores. O auge de seu fetichismo ocorre durante a realizao das agrishows, feiras anuais visitadas por consumidores nacionais e internacionais, alm de por representantes de partidos polticos, governadores e presidentes da repblica e, obviamente, dos meios de comunicao. importante ressaltar que dessa exposio no fazem parte os trabalhadores. Eles permanecem ocultados e, assim, a maquinaria parece dotada de um poder anmico, pelo qual ela sozi-nha responsvel por toda a produo.Os achados de nossa pesquisa trazem ao palco, no entanto, esses atores es-condidos atrs das cortinas pelos fabricantes da imagem da produo canaviei-raproprietrios,tcnicos,meiosdecomunicao,cientistas,fabricantesde mquinas etc. Assim sendo, objetivamos ao entendimento desse processo luz no apenas dos aspectos econmicos como tambm das estratgias de domina-o que asseguram o poder da classe patronal e desvendam formas de submis-so ao capital que so to ou mais perversas do que aquelas at ento vigentes. Desta feita, alm de tornar visvel a presena de trabalhadores, nossos achados depesquisamostramqueamecanizaonoseliminoupostosdetrabalho comotambmaprofundouaexploraodaforadetrabalhodaquelesquefo-ram empregados. Para tanto, analisaremos a situao dos operadores de mqui-nas, considerados qualifcados e os mais bem pagos, e tambm a daqueles(as) que desempenham tarefas como: a recolha de pedras para evitar que estas da-nifquem as lminas das mquinas; a extrao do colonio nas fleiras de cana com a utilizao de enxades; a distribuio de veneno com bombas costais de at 20 ou 30 quilos no meio das canas; a recolha da bituca (restos de cana) dei-xada pelas mquinas; a limpeza das curvas de nvel e dos canais de vinhaa; o plantio da cana por meio da retapagem dos sulcos ou at mesmo por meio do plantio manual. preciso, de antemo, ressaltar que essas atividades (exceto a dosoperadores)nosotornadasvisveis,inclusivepelosestudosquelevam em conta o trabalho, nos quais a nfase recai somente sobre os operadores de mquinas (Scopinho et al., 1999; Vergnio; Almeida, 2013) ou sobre a quantifca-o do mercado de trabalho (Veiga Filho et al., 1994; Baccarin; Gebara; Borges Junior, 2011; Baccarin; Gebara; Silva, 2013); v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 91Outro ponto importante a ser ressaltado que esse processo de mecanizao no homogneo. Assim, h, de um lado, usinas cujo progresso tcnico maior do que em outras. Isto est em sintonia com o grau de concorrncia entre os capitais, por meio da qual so defnidas a taxa de lucro e a produtividade mdia do trabalho. Por outro, trata-se de um processo tcnico-cientfco que se acha combinado per-manncia/recriao de atividades aparentemente anmalas (e impensveis) como a recolha de pedras. Essa combinao defnidora da nova morfologia do traba-lhonoscanaviaispaulistaseproduzadialticadaracionalidade/irracionalidade, cuja essncia a busca da reproduo ampliada dos capitais assentada na dilapida-o da natureza e da fora humana de trabalho (Silva; Martins, 2010).IIIAntesdeiniciarmosaanlisedasmudanasdoprocessodetrabalhonos canaviaispaulistas,teceremosalgumasrefexestericascapazesdeapontar outros caminhos interpretativos sobre essa realidade.Numimportanteartigo,Gaudemar(1991)analisaadisciplinanoprocesso de trabalho como sendo inscrita nas transformaes sociais capitalistas:Ese,naverdade,adisciplinaconstituiopontonevrlgicodarelaode subordinao do trabalho ao capital, a anlise da evoluo das formas des-sa disciplina (por exemplo, as formas de controle do processo de trabalho) pode ser um indicador fundamental da evoluo da relao social em seu conjunto (p. 88; trad. MAMS).Ao estabelecer um dilogo crtico com outros marxistas, o autor ressalta a importnciadeumareleituradeMarx,sobretudodocaptulodamaquinaria e da grande indstria, para se entender o estatuto terico da disciplina do tra-balho na atual fase do capitalismo. Desta feita, retoma as passagens referentes a esta temtica em Marx, mostrando a necessidade do controle como meio de assegurar a produo da mais-valia. Na fase anterior, os capatazes eram os res-ponsveispeladisciplinadotrabalhoparceladoecooperativoentreostraba-lhadores. Na fase da maquinaria, o controle no se acha encarnado em fguras humanas, subjetivas, como a do capataz, por exemplo, porm numa fora muito mais diablica a de um mecanismo objetivo: O que eu denomino maquina-o maquinadora (p. 91). Na sequncia, o autor afrma: Levando-se em conta que a formao social sempre imperfeita, no que diz respeito s possibilidades que o pensamento terico lhe oferece, existiriam 92Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...doisnveisdisciplinaresdamodeobra.Umquedesignariaatendncia progressiva, a da fbrica automatizada, e outro que suporia a permanncia dos velhos modos de dominao; um que conduziria ao futuro capitalismo, e outro que permaneceria ancorado em suas origens, em seu passado (p 91-92; trad. MAMS).Mais adiante, Gaudemar retoma as consideraes de Marx acerca da diviso do trabalho, onde h uma separao ntida entre o trabalho dos engenheiros, dos tcnicosespecializados,dosvigilantesdasmquinas,dosoperadoreseaquele dos pees, dos ajudantes, que naquele momento eram representados pelas crian-as e mulheres. Para Gaudemar, a maquinaria gera um processo de autovigiln-ciaque,nolimite,poderiasuprimiropessoalencarregadoexclusivamenteda vigilncia.Dessemodo,opanoptismodaprimeirafasepoderiasersubstitudo pelomaquinismopormeiodeumprocessodeobjetivao-interiorizaoda disciplina(p.93).Nacontramodeoutrosmarxistas,oautorafrmaqueessa diviso no puramente tecnolgica, ainda que esta seja uma tendncia. Pelo contrrio, tal disciplina se reproduz amplifcando os modos de dominao social: a fbrica um lugar fora da lei, porque o capitalista faz nela a sua lei (p. 94).Essasrefexesnospermitemenxergaralmdoeitodoscanaviais,isto, analisar as mudanas do processo de trabalho no contexto da dominao social impostaaostrabalhadores.Entendemosarealidadesocialenquantoprocesso, cuja dinmica se reproduz por meio de elementos histricos determinados, se-gundo as particularidades de cada sociedade. Inspiradas nas refexes tericas deMarxeGaudemar,sugerimosquatrociclosdodesenvolvimentodeestrat-gias de dominao social nos canaviais no estado de So Paulo, a saber:A histria brasileira durante quase quatro sculos foi marcada a ferro pela escravido de negros e ndios. Durante os primeiros sculos, o centro da econo-mia colonial situava-se no nordeste, cujo solo massap da costa era propcio plantao canavieira. No estado de So Paulo, os primeiros engenhos surgiram emSoVicente;maistarde,emmeadosdosculoXVIII,comadecadncia da minerao e o retorno de muitas famlias, houve no chamado quadriltero doacarPiracicaba,Sorocaba,Mogi-GuaueJundiaaimplantaode muitos engenhos (Petrone, 1968). Os escravos eram a base do trabalho nesses engenhos de cana, produtores de cachaa e rapadura. A cidade de Itu tambm desenvolveu essa produo. As estratgias disciplinares eram por meio da coer-o fsica, da chibata e outros instrumentos de tortura.Durante o colonato (as primeiras cinco dcadas do sculo XX) o controle do trabalho era exercido pelo chefe da famlia. O processo de trabalho consistia no v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 93trabalho manual em todas as fases do processo produtivo, incluindo preparo do solo, por meio de arados tracionados por animais, plantio e corte da cana crua (no queimada). Aps o corte realizado por homens e mulheres, as canas eram amontoadas em feixes pelas crianas, que os amarravam com a folha da cana, os quais, em seguida, eram transportados nos ombros dos homens at os carro-es puxados por bois ou burros nos carreadores. Dali a cana era levada at os vages de trens que a conduziam aos ptios das usinas (Silva, 2008). As relaes sociais do patriarcado reproduziram-se no interior dos canaviais, investindo os chefes de famlia da funo de capatazes9. A partir do surgimento das usinas na dcada de 1960 e do desmonte do sis-tema do colonato, as formas do controle passaram para um grupo especial de vigilantes do processo de trabalho, como feitores, fscais, empreiteiros de mo de obra (gatos), que refetiam as mudanas nas formas de gesto e organizao do trabalho. Instalou-se, assim, um sistema panptico de controle tanto no es-pao produtivo como no reprodutivo. Com o surgimento das cidades canaviei-rasnoestadodeSoPaulo,pormeiodavindademilharesdetrabalhadores dosestadosdeMinasGerais,Paranedonordestedopas,criou-seumsis-tema disciplinar no eito dos canaviais e tambm em seu exterior, modelando, assim,acasaeoeito.Nocolonato,essecontroleduploexistia,emborafosse exercidopelopai-patro,almdepelosfscais.Comasusinas,essaduplici-dadedecontrolecaberaumgrupoespecializadodefnidopelasestratgias dasempresas,segundocdigosdamoralizaosocial,pormeiodocontrole do mercado de trabalho desde as regies de origem dos trabalhadores, at suas condutas morais (uso de bebidas alcolicas, absentesmo) e polticas partici-pao em greves (Silva, 1999).Emmeadosdadcadade1990,inicia-seochamadoparadigmadama-quinarianoscanaviais,nocontextosocial,econmicoeambientalexposto noinciodesteartigo.Deformacadavezmaissistemtica,amaquinaria seroprincipalinstrumentodeobjetivaodoprocessodetrabalho,em-boranestemomentocombineformassubjetivasdecontrolepormeiode capatazes(encarregados),prevalecentesnasfasesanteriores.Seguindoas refexesdeGaudemar,aalienaoquederivadamaquinariaconsistena 9Essasinformaesvmdapesquisalevadaacabopelaprimeiraautoradesteartigoemmeadosdad-cada de 1990, com apoio da FAPESP e do CNPq, na usina Amlia (Santa Rosa de Viterbo), pertencente famlia Matarazzo, que operou a partir da dcada de 1930, por meio do trabalho dos colonos, constitu-dos por afrodescendentes, provenientes do nordeste e de Minas Gerais e tambm de imigrantes italianos. Na usina Tamoio (Araraquara), (Caires, 2008), o sistema era o mesmo.94Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...interiorizaodoprocessodetrabalhoobjetivadopormeiodeumciclode disciplina maquinadora (p. 103).Aperiodizaodasestratgiasdisciplinarespostasemprticanesselongo perodohistricodessaatividadeprodutivanospermiteafrmarqueessesci-clos no so excludentes entre si, justapondo-se uns aos outros, ainda que em cadaciclosejapossvelverifcaratendnciadaestratgiadominantedecada umdeles.Aparticularidadehistricadopas,marcadaporquatrosculosde escravido,imprimiumarcasprofundasnasrelaesdetrabalhops-escravi-do, cujos rastros ainda vigem, embora escamoteados sob o manto do trabalho livre. A chibata hoje foi substituda pelo gancho, pela imposio das metas de produo, pela suspenso do vale-refeio e por tantos outros mecanismos de controle que sero descritos mais adiante. Uma anlise que privilegiar o recorte tnicoencontrarnoeitodoscanaviais,desdeocolonatoatosdiasdehoje, uma classe trabalhadora constituda de negros e no provenientes do estado de So Paulo. Este dado histrico de suma importncia para a compreenso dos quatro ciclos de tecnologias de disciplina impostos, alm de para uma anlise que aponte para a mudana da mais-valia absoluta para a relativa, o crescimen-todaprodutividadedotrabalhocomasmquinaseoaumentodaproduo. Tal como afrmou Marx, o capitalista compra a fora de trabalho e no o traba-lhador, mas no podemos olvidar que a primeira no existe sem o segundo, do mesmo modo que a lesma no vive sem a concha.Portanto, as razes das estratgias disciplinares encontradas no eito dos ca-naviaispaulistasemtemposdoparadigmadamaquinariaforneceroosele-mentos para o entendimento da tecnologia per se e no o contrrio. Desta feita, analisaremos o atual processo de trabalho, enfatizando a organizao do traba-lho, a diviso do trabalho, segundo os gneros e as formas de controle impostos.IVTalcomodescritoporMarx,oespaodacompraevendadaforadetra-balhooreinodaliberdadeondeestopessoasjuridicamenteiguais.Toda-via, essa aparncia de liberdade desaparece no momento da produo. Segundo Marx, observa-se a uma mudana na fsionomia dos personagens desse drama. Enquanto o homem do dinheiro caminha frente, o possuidor da fora de tra-balho lhe segue atrs como seu trabalhador. Aquele possui um ar altivo e este tmido, hesitante, retido, como algum que levou sua prpria pele ao mercado e s pode esperar uma coisa: ser tosquiado (Marx, 1976: 135; trad. MAMS). v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 95Essa passagem de O capital ilustra bem as relaes de poder que existem no espao produtivo, mormente quando o saber tcnico-cientfco domina o proces-so de trabalho, aprofundando a diviso do trabalho e a alienao do trabalhador. Ametforamarxiananosfazlembrarasituaodostrabalhadoresnointerior das minas de carvo descritas por mile Zola na obra-prima Germinal. Somente penetrando nas entranhas da terra era possvel extrair o carvo e tambm conhe-cer as condies de trabalho l vigentes. Ainda que a produo canavieira seja feita na superfcie da terra, o conhecimento do trabalho que a realizado s se faz pelo escutar das vozes e pelo compartilhar das emoes advindas das profun-dezas no da terra, mas dos interiores daqueles(as) que a labutam10.Linhas atrs mencionamos que a implantao das mquinas implicou largas mudanasnoprocessoprodutivodacana-de-acar.Comojsalientaramou-tros estudos (Veiga Filho et al., 1994; Scopinho et al., 1999; Scheidl; Simon, 2012), h uma interdependncia entre as diferentes fases do processo produtivo: desde a escolha de variedades de cana que se adaptem s condies edafoclimticas, passando pelo preparo do terreno, pelo plantio, pela colheita, at o carregamen-toeotransporteparaasmoendasdaindstria.Poroutrolado,oavanoda tecnologia impe cada vez mais mudanas em todo o processo. Antes do plan-tio, prepara-se rigorosamente o terreno com tratores, niveladores, gradeadores, escavadeiras, sulcadores. O terreno necessita ter grandes dimenses em virtude nosdotamanhodasmquinas,mastambmparafacilitarediminuiros gastos com combustvel para as suas manobras durante a colheita. Em casos de reasnovas,hanecessidadederetirarrvores,cercas,pomares,casas,corri-gindo a declividade, secando as nascentes dgua, alm de nivelar o terreno por-que as salincias podem causar acidentes, como o tombamento11. E mais ainda. A demolio das casas ocorre aps a sada de seus moradores trabalhadores, sitiantes ou at mesmo fazendeiros, que arrendaram ou venderam suas terras para as usinas (Melo, 2012; Reis, 2013). A demolio das casas, sedes de fazen-das nada mais do que o apagamento das marcas sociais e coletivas de quem ali viveu, portanto do patrimnio material e histrico. Ela determina tambm oquantumdecortadoresmanuaisqueperderoempregocomsuachegada. Enfm,amquina,oumelhor,afguradamquina,determinacomoeoque 10Marxafrmouquenoespaodafbricanopermitidaaentradadepessoasestranhas.Domesmo modo,ospesquisadoresnotmacessoaoeitodoscanaviais.Todavia,sabiamente,aproveitandoum descuido dos vigilantes, em duas ocasies foi possvel adentrar esse espao e seguir os trabalhadores da vinhaa, do preparo da terra e da distribuio de venenos.11Aqui podemos entender o desaparecimento dos morros citado na passagem em epgrafe deste artigo. As rvores so enterradas cemitrio das rvores em gigantescos buracos escavados pelos tratores.96Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...deve ser feito para que ela opere. Ela a persona central do processo produtivo e para ela que as atenes, os olhares, os fashes se dirigem. Ela custosa (em torno de R$ 1.000.000,00), luxuosa (com cabines refrigeradas e computador de bordo).Suaetiquetadefabricao(modelo,capacidadedecolheita,consumo de combustvel, graxa, leo) a coloca no centro da passarela12. Uma verdadeira topmodel,quedesflasemparar,descansandoapenasalgunsminutosparao abastecimento e a reparao de peas danifcadas. O tempo todo ela exige que osolharessejamaeladirigidoseseusdesejossatisfeitos,atmesmonoite. Emborasendoproduzidaparaoperarnaterra,elanoofazduranteopero-do chuvoso, pois a lama no combina com seus ps esteirados. Mesmo que os tratores tapem as minas dgua, sequem as reas pantanosas, seus artfces no conseguiram ainda impedir as chuvas. Neste momento o desfle se interrompe. Ela descansa, enquanto seus operadores so destinados a outras atividades.Sigamos as indicaes desta metfora. O preparo da passarela, como vimos, exige planejamento prvio dos tcnicos em relao ao terreno, variedade de cana,distribuiodefertilizantes,herbicidas,larguraentreasfleirasda canaeprofundidadedossulcos.Prepararoterrenosignifcalimp-lodeto-das as impurezas e anomalias, tanto naturais como sociais. Esta fase feita pela frente de trabalho dos tratoristas e seus ajudantes. Esses profssionais, em geral, j tinham uma trajetria laboral na usina, eram bons cortadores de cana, dceis, que, assim que surgiu a oportunidade, fzeram o curso e foram selecionados. H aindaaquelesquesoflhosdesitiantesedesdecrianasaprenderamalidar com o trator, juntamente com os pais13. Neste caso, no necessitam fazer o curso. Os ajudantes aprendem com os tratoristas, havendo a captura do saber e da ex-perincia dos trabalhadores por parte das empresas, diminuindo os custos com a qualifcao da fora de trabalho. H ainda os mecnicos, soldadores que trabalham nas ofcinas de apoio s mquinas e no campo, quando so chamados para o reparo daquelas que esto emoperao.Nestemomentocontamcomoapoiodosoperadoreseajudan-tesdasmquinasemsituaodereparo.Acomunicaofeitapelopessoal docontrole,oschamadosencarregados,pormeioderdiosamadores,poiso uso de celulares pelos trabalhadores proibido nos canaviais. As estratgias da disciplina so feitas pelos computadores de bordo dos tratores e tambm pelos encarregados, os capatazes, supervisionados pelos tcnicos.12A marca John Deere a mais cobiada, segundo os operadores.13Situao encontrada em Santa Albertina na regio de Jales-SP. v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 97Afeituradapassarelaexigeumacabamentofnal,desempenhadoporoutra frentedetrabalho,totalmenteinvisibilizadapelosestudosconstitudaporho-mens e mulheres considerados no qualifcados, trabalhadores da diria, poliva-lentes,taiscomoaturmadapedraoudotoco.Maisadiante,veremosqueesta atividade mormente desempenhada por mulheres. Vale enfatizar que se trata de uma atividade importantssima, pois a recolha das pedras impede a quebra das faquinhas (lminas) das mquinas. Essa frente controlada pelos encarregados. Todavia, nossos achados de pesquisa revelaram que a frente da pedra traba-lha tambm antes da operao das colheitadeiras, porque, segundo uma depoen-te, as pedras brotam do cho; quanto mais a gente recolhe, mais elas aparecem. De todo modo, h aqui a combinao da tecnologia avanada com o trabalho huma-no degradado, um trabalho da poca da escravido, segundo uma trabalhadora14. Terminadaaconstruodapassarelaentraemcampooutrafrentedetra-balho,adoplantio.Atecnologiadessaetapavariamuitodeumausinapara outra. H aquelas que combinam o trabalho manual com o mecnico, enquanto em outras o processo todo ele feito por mquinas. No primeiro caso, a cana crua cortada manualmente, transportada at as reas de plantio e depositada em montes. Nos sulcos previamente adubados e abertos por tratores, as canas vo sendo depositadas pelos(as) trabalhadores(as), seguidos de outra frente que pica os gomos e, fnalmente, pelos tratores que realizam a cobertura com terra. Essa atividade exige muito esforo e agilidade, pois a distribuio das canas nos sulcoseocortedosgomossorealizadossegundoavelocidadedostratores ecaminhesquetransportamascanas,quenamaiorpartedasvezesperten-cem a frmas terceirizadas, cuja forma de remunerao pelo quantum de cana plantada.Essaatividadeprovocamuitasdoresnocorpo,poisexigeapostura curvada ou at mesmo ajoelhada para cortar os gomos. No plantio mecanizado, todas essas etapas so realizadas pelas mquinas e seus operadores: as colheitadeiras cortam e picam as canas cruas que, aps ser transportadas, so distribudas nos sulcos j adubados por outros tratores com caambas, que tambm realizam a tapagem dos sulcos15. Caso os encarregados 14Consultando os sites sobre as mquinas, vimos que h um modelo de colhedora de pedras na Austrlia. 15At h alguns anos vigorava outro sistema de plantio, embora, ainda seja praticado, porm, interditado peloMinistrioPblico.Osistemaomesmonoquetangeaopreparodossulcos.Oscaminhes transportavamacanaechegandoaoslocaisdoplantio,cincohomensdispostossobreacanaiam lanandoasmesmasnossulcos,medidaqueocaminhoavanava.Nocho,asmulherescortavam os toletes nos sulcos e atrs delas, os tratores faziam a operao de tapagem. As mulheres, assim, eram pressionadas pelos tratores e pelos caminhes, alm de inalarem os gases expelidos dos escapamentos. Em razo da movimentao das canas, eram frequentes os acidentes graves, resultando em quedas dos homens e tambm atropelamento das mulheres pelas mquinas.98Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...julguem necessrio, uma turma de trabalhadores(as) ser mobilizada para rea-lizar a retapagem dos sulcos. importante ressaltar que as frentes da diria so constitudasportrabalhadoresmanuais,polivalentes,osquaisdesempenham atividades complementares s mquinas e so deslocados para diferentes reas detrabalho,segundoasnecessidadesdaproduo.Dasurgeaformacomo defnemseutrabalho:trabalhonaroa.Juridicamente,soregistradoscomo trabalhadores rurais. Na verdade, so, alm de polivalentes, ambulantes. A mu-dana do tropo semntico importante na medida em que so distinguidos em relao aos qualifcados tratoristas e operadores , e a natureza do trabalho realizado camufada e no paga, segundo a NR31. o caso dos trabalhadores nadistribuiodavinhaaedoveneno,quenorecebemacomplementao correspondente insalubridade. Finda essa etapa aguarda-se o ciclo natural da cana brotao, crescimen-to e maturao. Todavia, h necessidade de muitos cuidados para esse ciclo se completar. Ou seja, a cana o tapete verde que se estende sobre a passarela da mquina, que necessita de planejamento tcnico-racional. a fase de cuidar da cana. a vez dos(as) que executam o trabalho na roa: frentes da pedra, bituca, veneno e vinhaa, que certifcam a combinao da racionalidade/irracionalida-de mencionada linhas atrs.VPretendemos apresentar nas linhas que se seguem a degradao do trabalho que circunda as grandes mquinas colheitadeiras e a forma pela qual as normas referentesaospadresdegneronosdiferenciamoempregodehomense mulheres nas diversas etapas do processo de produo da cana como acabam por estabelecer o momento em que as fronteiras devem ser abertas e fechadas para a contratao de mulheres. Entre as atividades que ainda empregam mulheres est o recolhimento das pedras nos canaviais, como j foi mencionado. Tal processo pode ser descrito como um dos movimentos de abre-alas para a mquina colheitadeira passar. Isso porque o terreno precisa fcar livre de pedras que possam danifcar as lmi-nas das enormes e potentes mquinas colheitadeiras. Essa atividade consiste na retirada de pedras de diferentes tamanhos. Primeiramente, as pedras so reco-lhidas e colocadas em baldes, para depois serem depositadas em uma pequena carreta puxada por um trator no canavial. Essa atividade realizada pela assim chamada turma da pedra ou por uma turma que est trabalhando na diria. A turma da diria muitas vezes chega no eito do canavial sem saber ao certo qual atividade desempenhar naquele dia. Pode ser enviada para a recolha de v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 99bituca e pedra, a abertura de eito ou at mesmo a retirada de cercas que marca-vam as reas recm-arrendadas pelas usinas. Na recolha de pedras, geralmente asmulheresseencarregamderecolheraspedrasmenores,coloc-lasemum balde, enquanto os homens puxam o trator que carrega a carreta e so responsa-bilizados tambm por puxar as pedras maiores que fcam escondidas na terra. Eles usam uma enxada para retirar as pedras que esto parcialmente fncadas no solo. Muitas vezes, em razo do tamanho e do peso das pedras, elas precisam ser carregadas por um grupo de pessoas.Neusa16:Deprimeiroagenteusavabastantepedra,colocavanocarreador. Sabe o que carreador? Assim, um caminho. Porque eles falam que a pe-dra protegia muito o caminho, o local. Acho que para as barreiras no cair terraporqueperdiamuito.Squeporcausadasmquinasobrigatrio tirar as pedras por causa das mquinas pra cortar as canas. E quebra mui-toalminadamquina,entoelespemostrabalhadoresparacataras pedras.Agentecataaspedras,jogaprafora,unsvopegandoefazendo aqueles montes. Outros vo atrs pegando e pondo num caminho, levando pra outro lugar e jogando num buraco. assim. Mesmo que puder catar as miudinhas, tem que catar. As grandes os homens iam l, ajudavam, catavam pra jogar pra fora, por causa da mquina.[...]Eu entrei na bituca, a como acaba a bituca a tinha dia que a gente ia na bi-tuca e tinha dia que a gente ia na pedra. Ento quando chovia bastante que no tinha como eles se... Por causa das canas que o caminho no andava porcausadaterramolhada,entoagenteiacatarpedra.Agenteiacatar pedra. Tirar pra fora (7 de novembro de 2012).Aatividadecontroladaporumfscaldeturma,quedestinaacadatraba-lhadora um nmero e uma rua de cana para que a recolha de pedra seja feita. Elepassanoscanaviaisolhandoparasabersealgumapedrafoideixadapara trs. Caso isso acontea, uma vez identifcada a rua em que a pedra foi deixada, o fscal tem acesso tambm pessoa que estava encarregada de realizar aquele trabalho. Essa mais uma das formas de controlar o trabalho nos canaviais. Nos trechos seguintes, as trabalhadoras descrevem a diviso do trabalho na atividade. Neusa:Voumaspessoasnafrenteevaicatandoaspedrasecolocando naqueles montes. A vem uns homens mexer na caamba, na carriola, sei l, 16Os nomes so fctcios.100Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...sabe? Vai pegando por cima daquela caamba. A vai levando pro tratorista que est com a caamba l atrs, e vai levando pro terreno ali. Tem um bu-raco e vai jogando, sempre. E a maioria levava balde. Sabe esses baldes de casa mesmo? A a maioria das mulheres levava de balde, apanhava aquelas pedras de balde pra puxar pra fora pra juntar. Levava baldes de casa mesmo.Rita: que fca aquelas pedrinhas pequenininhas...Neusa:pedrinhagrandeassim.Eratograndequesvezeseradetrs, quatrohomenspraarrastarela.Squeaspequenaselespediampragente levar balde. Tinha vez que no tinha balde, tinha vezes que as mulheres que no sabiam que iam trabalhar l, elas pegavam a roupa e colocava l. A gente at zuava com elas. A gente falava: No faz isso no, mais tarde voc vai es-tar toda suja!. A gente que j era acostumada fazia de outro jeito pra no se sujar. Elas colocavam tudo na roupa. sempre assim (7 de novembro de 2012).Para alm da diviso de tarefas, os excertos das narrativas evidenciam uma prtica abusiva por parte dos empregadores: delegar s trabalhadoras a respon-sabilidade por levar os instrumentos de trabalho de suas casas para o canavial. Levando-se em considerao que o trabalho na recolha das pedras realizado muitas vezes pela turma da diria, algumas trabalhadoras, por desconhecer o trabalhoderecolhadaspedras,acabamutilizandoasprpriasblusasparaar-mazenar as pedras e transport-las at as carretas.Outraatividadesubsidiriamaquinareporta-sedistribuiodeherbi-cidas, formicidas e tambm extrao do colonio17. No tocante a esta ltima, foramencontradasmulheresque,comousodoenxado,arrancavamastou-ceirasdocapimnomeiodasfleirasdecana.Porseremresistentes,elasno soeliminadaspelosherbicidas,sendo,portanto,necessrioarranc-las,ga-rantindoassimocrescimentodacana.Trata-sedeumtrabalhopesado,dado queexigemuitodispndiodeenergiaparaextrairasrazesprofundasdoca-pim.Aprefernciapormulheresdeve-seaofatodeelasseremmaiscuida-dosas,segundoosfscaisdocontrole.Poroutrolado,quandoascanasesto crescidas, o trabalho executado longe do olhar panptico dos fscais, pois em razodotamanhodelasasmulheresfcamtotalmenteinvisveis,camufadas por elas. Todavia, assim que logram percorrer as fleiras de cana e chegam at 17O Panicum maximum Jacq CV Colonio, conhecido como capim colonio originrio da frica. uma plantaperene,formatouceirasgrandesedensasepodeatingirattrsmetrosdealtura.Exigealtas temperaturas e umidade para crescimento; pouco resistente a geadas e tem resistncia regular seca e no resistenteaofogo.Defniodisponvelem:http://www.agronomia.com.br/conteudo/artigos/arti-gos_gramineas_tropicais_panicum_colon.htm. Acesso em 10/02/2014. v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 101oscarreadores(espaosdetrnsitodasmquinaselimitesdostalhes),les-to eles espera. A estratgia disciplinar, neste caso, medida pelo clculo do tempoparaoarranquedocapim.Emvirtudedodiminutoespao(entre1,50 me1,90m)edocrescimentodasfolhas,asruasdacanafcamtotalmente fechadas. Esse ambiente inspito, agravado pelo perigo de cobras, alm do calor excessivo, faz que as mulheres trabalhem em duplas, sobretudo para evitar que o medo ou mesmo a picada de cobras possa afetar o rendimento do trabalho. A estratgia colocar as mulheres mais arrojadas frente das medrosas. Inme-ros foram os relatos de mulheres que mataram cobras. Nota-se que, neste caso, nohmaisodiscursodeproteoaostrabalhadorescontraoschamados animais peonhentos, descrito linhas atrs, justifcando a mecanizao. H ain-da aquelas que vo amassando o colonio com os ps para facilitar o arranque. Esta operao penosa, pois exige que as mulheres portem botas especiais com canos acima dos joelhos, o que lhes provoca deformaes nos ps, varizes, alm da queixa de presso arterial alta, devido ao calor. No inverno, quando as folhas da cana esto ainda orvalhadas, logo no incio da jornada de trabalho, elas so obrigadas a adentrar as fleiras de cana. Muitas reclamam que fcam com a rou-pa molhada durante muitas horas, o que lhes provoca muitas doenas respira-trias, inclusive pneumonia.No que se refere turma do veneno, encontramos homens que distribuem formicidaemulheresquedistribuemherbicidas.Ambosportambombascos-tais, que pesam de 20 at 30 kg. Do mesmo modo que a turma do colonio, eles trabalham no meio da cana, no mesmo ambiente penoso, agravado pelo cheiro dos venenos e pelo peso das bombas nas costas. Os depoimentos revelam o so-frimento do trabalho, as dores na coluna, de cabea, enjoos, vmitos, inapetn-cia, desmaios, alergias, perturbaes visuais, alm de outras queixas.O que constatamos que mormente as mulheres no aguentaram ou no esto aguentando essa atividade por muito tempo. A grande maioria solicitou a transferncia para outras funes, afastaram-se por razes de doena ou ma-nifestaram desejo de deixar o emprego. A gente quer que a usina nos mande embora, mas eles no mandam. Esta frase revela outra face dessa realidade. O cicloatualdoparadigmadamquina,aoimpornovasestratgiasdecontrole, produziu tambm mudanas nas formas de contratao. As frentes de trabalho soconstitudasportrabalhadorescomregistroformaleportempoindeter-minado.Nohmais(excetoparaoscortadoresmanuaisdecanaqueimada) os contratos de safra e entressafra. Portanto, eliminaram-se, naqueles casos, os contratossazonais.Destafeita,aoserdespedidosnoporjustacausa,ospa-tres seriam obrigados ao pagamento dos direitos trabalhistas. Na medida em 102Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...que eles no mandam a gente embora, eles no pedem demisso para assegu-rar esses direitos, na esperana de que eles mandem a gente embora.Para completar a descrio da feitura do tapete verde da passarela, analisa-mos em seguida os trabalhadores da vinhaa.VIA vinhaa, tambm conhecida por restilo ou vinhoto, o produto oriundo da destilao do licor de fermentao do lcool de cana-de-acar18. As usinas aproveitamesselquidoresidualparaaplicarnosistemadefertirrigaonas plantaes de cana. Dependendo do solo e da quantidade de vinhaa aplicada noterreno,olquidopodecontaminarasguassuperfciaisesubterrneas.A contaminaosed,emparte,emrazodeumaconcentraoespecfcade fosfato e nitrato. A aplicao da vinhaa tem efeitos diretos na sade humana e animal e tambm infuencia no crescimento de plantas e na qualidade do am-biente (Silva; Griebeler; Borges, 2007). O poder poluente da vinhaa decorre da sua riqueza em matria orgnica, baixo pH, elevada corrosivida-de e altos ndices de demanda bioqumica de oxignio (DBO), alm de ele-vada temperatura na sada dos destiladores; considerada altamente nociva fauna,fora,microfaunaemicroforadasguasdoces(Silva;Griebeler; Borges, 2007: 109).Szmrecsnyi(1994:73)tambmapresentaasconsequnciasambientais do uso da vinhaa in natura: poluio hdrica dos cursos dgua e dos lenis freticos e uma progressiva salinizao dos solos. Esses estudos mostram os riscosambientaisdodespejodavinhaanosoloetambmdeseuusona cultura de cana-de-acar como fertilizante. Traz, inclusive, risco de doenas para os peixes dos rios prximos a essas reas e tambm o risco de dissemi-naodeendemiascomoamalriaeaesquistossomose.Oelementooculto nessasrefernciasoriscoparaquemtrabalhadiretamentecomavinhaa. Recorremos experincia laboral do Sr. Edson, que trabalha h sete anos na aplicaodavinhaanasplantaesdecana.Suanarrativatrazelementos fundamentaisparaacompreensodeelementoscomoadinmicadotraba-lho, o esquema de revezamento de turnos, o protagonismo das mquinas e os riscos para a sade do trabalhador. Em sua trajetria laboral esto presentes 18Cada litro de lcool produzido pela usina gera cerca de dez a dezoito litros de vinhaa (Silva; Griebeler; Borgeset al., 2007). v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 103aomenostrsatividadesdistintasnaculturacanavieira:controlebiolgico depragasnoscanaviais,cortedecanamanualeaplicaodavinhaa.Aps dois anos de atividade no corte de cana, Edson comeou a sentir fortes dores no brao que fazia o movimento de abraar a cana. Aps passar por percia mdica e tentar afastamento, foi encaminhado de volta usina para dar conti-nuidade ao trabalho. Entretanto, no podia mais cortar cana; por esse motivo, foi destinado para a turma da vinhaa.A turma da vinhaa responsvel pela construo dos canais que ligam a usinaaoscanaviais.Oscanaissoconstitudospordutosfeitosnasuperfcie do terreno. Em seguida, colocada uma lona preta para facilitar o escoamen-todavinhaa.Existemaomenosduasfrentesdeaplicaodavinhaa.Uma delas feita por asperso de canho. Uma mquina puxa a vinhaa que sai do canal e o trabalhador responsvel tem que inclinar o canho em diferentes n-gulos para que a irrigao seja feita. Na outra frente de trabalho da vinhaa a asperso feita por meio do carretel enrolador. Nessa modalidade de asperso, avinhaaarmazenadaemumcaminhotanque,apartirdoqualsaiuma mangueiraqueseligaemoutramquinaqueabasteceocarretel.Ocarretel tem um comprimento de trezentos metros e consegue jogar a vinhaa a uma distncia de cinco metros.Aaplicaodesseprodutofeitaininterruptamente,oqueimplicaumes-quemaderevezamentoquefazqueostrabalhadorespassemportrsturnos distintosduranteoms.Dessemodo,seuscorposprecisamsereadaptar,se-manalmente,anovosordenamentosderotina,comdistintoshorriospara alimentao, sono e trabalho. Alm da confuso mental e orgnica gerada por readaptaesconstantes,oambientedetrabalhoapresentaalgunsfatoresde risco, como o rudo elevado emitido pelos motores das mquinas que fazem o carregamento e a asperso, e o contato direto com o lquido da vinhaa, que tem um odor bastante acentuado, chegando a fcar impregnado na pele dos trabalha-dores, mesmo depois que eles chegam em casa e tomam banho. A despeito de os trabalhadores realizarem suas atividades com protetores auriculares e roupas reforadas para no entrar em contato com o lquido, em alguns momentos a substncia entra em contato direto com a pele dos trabalhadores, como mostra o seguinte trecho da narrativa de Edson: Edson:Prafalaraverdadepravocela[avinhaa]qumica.soda, soda...umaqumica,euvoufalaraverdadeparavoc.[...].Aroupada gentedevoctrabalharmuitotempocomelaapodrecetudo[...]ela come a roupa da gente. 104Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...[...] J teve at vez de eu tomar banho nele, no vou mentir pra voc. Porque tem uma tal de motobomba, e essa tal de motobomba tipo de uma dessa mquina a. Ento, voc liga a motobomba assim [...] voc liga a motobom-ba,eessamotobombajogaelasozinha,novaicano,novainadanela.E ela joga a vinhaa l assim, joga sozinha. E tem vez que ela enrosca o cano dela, e voc obrigado a tomar um banho pra desligar aquela mquina. [A mquina]estesticadatrabalhando,sabe?Elaestavatrabalhando,ocano dela trabalhando, e enroscou, parou. O cano dela, e ela no desarma. E se ela no desarmou voc obrigado a ir embaixo dela, pegar um cabo de enxada e bater ali no canho dela para desarmar. E nisso a voc j se molhou tudo. Voc sai com a roupa, todo molhado. Se voc levou roupa, voc troca, se voc no levou obrigado a trabalhar no turno molhado ali. E eu no vou mentir no,jaconteceudeeutrabalharanoitetodinhamolhadinhodevinhaa, vou falar o que verdade [...] trabalhei a noite toda molhadinho-molhadinho.P: E essa coisa de contato com a vinhaa, ento, o senhor acha que nunca deu nenhum problema para o senhor?Edson: No, no [...] falar o que pleno e verdade... Mrcia19: Pra ele [...], ele no sabe dos outros. Edson: S teve uma coisa que deu. Um rapaz fcou cego. Menino. Olha, ns estvamos trabalhando das 11 [...] das 3 s 11. A ns chegamos na usina, ns passamos o crach na usina, chega e espera o nibus da usina vir aqui trazer... vemumnibus[...]trazerosprofssionaisaquina[...].A,quandonspe-gamos e chegamos l, descemos todo mundo de dentro do nibus, ele estava quase assim dentro do nibus, . Ele gente boa, brincava com a gente [...] ele se batendo dentro do nibus, assim, ... e eu falei: , rapaz, que brinca-deiraessa?!Falei[...]eelefcouassim.Aelefoiefalouquenoestava enxergando mais. A, levaram ele na casa dele, chamaram a esposa dele, pe-garam os documentos dele, e levaram ele em Campinas num mdico l... A chegou l, o mdico falou, ia, ele perdeu a vista. No sei quantos por cento. Inclusive, algum leva ele pros lugares, a esposa dele (14 de abril de 2013).Durantenossaspesquisasdecampo,ementrevistaseconversascomho-menstrabalhadoresdoscanaviaispaulistas,nasdiferentesocupaes,ouvi-mos muitos relatos de pessoas que conheciam algum que tinha se machucado no trabalho, mas difcilmente a doena tinha acometido o narrador, principal-mentenocasodoshomens.Emseuestudosobrepsicopatologiadotrabalho, 19Esposa de Edson. v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 105Dejours (1987) mostra que o corpo s aceito enquanto est silencioso, isto , enquanto capaz de produzir valor. De acordo com o autor, a situao ocasio-nada por uma doena advinda do trabalho gera uma ideologia da vergonha, que causa no trabalhador angstia e sofrimento, no em razo da doena em si prpria, e sim pela destruio do corpo enquanto fora capaz de produzir trabalho (Dejours, 1987: 34).Asituaodetrabalhonavinhaageraaindaumdesconfortoparaotra-balhador,namedidaemqueasmquinassetornamprotagonistasnaaplica-o da vinhaa e o trabalho destitudo de contedo. Durante uma situao de pesquisadecampo,quandoacompanhvamosoprocessodeplantiodacana, passamospordiferentespontosdoscanaviaisevisualizamosalgumasfrentes de trabalho. Uma delas era composta por uma dupla de trabalhadores. Eles es-tavam sentados em uma valeta prxima ao canal da vinhaa. Ao lado deles, uma mquina grande com um canho fazendo a irrigao no canavial que a circun-dava.Conversamosdurantealgunsminutoscomostrabalhadores,querelata-ram uma experincia de submisso mquina.P: A vocs tm que montar um cano, como que vocs fazem?Afonso:No,porenquantono.Essamquinaabombeiadireto.Esseca-nho a trabalha [...] (27 de maio de 2013).AsrefexesdeMarx(1984)nosfornecemabaseparaacompreensodo processo de protagonismo das mquinas. Como destacado no excerto acima, o canho que atua, ele que trabalha. Portanto, nesse cenrio o trabalho des-titudo de contedo. A se manifesta o poder anmico da mquina.Mesmo a facilitao do trabalho torna-se um meio de tortura, j que a m-quinanolivraotrabalhadordotrabalho,masseutrabalhodecontedo. Toda produo capitalista, na medida em que ela no apenas processo de trabalho, mas ao mesmo tempo processo de valorizao do capital, tem em comum o fato de que no o trabalhador quem usa as condies de traba-lho, mas, que, pelo contrrio, so as condies de trabalho que usam o tra-balhador: s, porm, com a maquinaria que essa inverso ganha realidade tecnicamente palpvel (Marx, 1984: 43).O trabalho na vinhaa quase que exclusivamente masculino. Assim como o a operao das mquinas colheitadeiras de cana. A ausncia das mulheres nacolheitamecanizadajustifcadapelapericulosidadeoferecidapelam-quina.possvelverifcarquemuitasvezesodiscursoreforaaausnciade 106Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...mulheresematividadesconsideradasperigosas.Entretanto,naprtica,elas tambmestonalinhadefrentedeocupaescomaltoriscodeacidentes detrabalho,comonocasodemulheresquerecolhemasbitucasaoladodas mquinasqueretiramascanascortadasmanualmenteparaocaminhode transbordo. No seguinte trecho da entrevista fca evidente o risco na atividade desenvolvida pelas mulheres: P: E na bituca era recolher s a sobra da cana?Rita:Era.Nabituca?Eracorrendoatrsdasmquinastambm.Prapo-der... muito difcil. [...] , correr atrs das mquinas. Ficava que nem boba correndo atrs das mquinas [risos contidos] [...] Vai catando a cana e co-locando no caminho, e s vezes elas derrubam tambm, a a gente ajudava amquinaacataracana,picavaejogavadentrodocaminho.,tinha que jogar dentro do caminho. [...] Uma vez [...]. Morreu bastante gente na usina. Na bituca. O caminho passou por trs, a pessoa no v. S se tiver muita coisa [...]. Isso a muito perigoso, sabia? muito errado esse servio a. Mandar a gente atrs das mquinas. Eu acho que no devia de fazer isso. Porque a gente vai alcanando a mquina e como que a gente vai alcanar uma mquina? [...] (7 de novembro de 2012).A atividade de recolha de bituca acompanhando o caminho realizada predominantementepormulheres,assimcomoaquelareferenterecolha das pedras nos canaviais20. De acordo com os fscais de turma, as mulheres soempregadasnasatividadesderecolhadasbitucasepedrasporqueso mais delicadas que os homens. Entretanto, preciso lanar um olhar crtico sobreessasconsideraesacercadascaractersticasqueseriaminerentesa homensemulheres.AspesquisasdesenvolvidasporOlaizola(2009;2012) reforamessaposturacrtica.Aautoramostraanecessidadedecompre-ender dialeticamente como as ideologias sexuais vo se materializando nos processos de trabalho e como as condies materiais de existncia formatam e condicionam essas ideologias, as quais no so estticas e sim cambiantes (Olaizola, 2009: 254-255).A materializao das ideologias sexistas se expressa no s na diviso das tarefasnoscanaviais,mastambmnasexignciasreferentesaoprocessode seleoparatrabalharemalgunssetoresdaagroindstriacanavieira.Nos 20Em Silva (2011) possvel encontrar uma descrio detalhada acerca do trabalho das mulheres na reco-lha das bitucas nos canaviais. v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 107seguintes trechos da entrevista com Rita e Neusa, as trabalhadoras justifcam os motivos pelos quais as usinas esto contratando poucas mulheres nas tur-mas.Neusa: Eu acho mais por causa da mquina. Das mquinas [...]. Eles esto olhando tambm que as mulheres esto engravidando muito. To engravi-dando muito. Porque... No sei se faz uns dois anos atrs ou um ano atrs que a Usina X tambm s pegava mulher se a mulher fosse se fosse casal. Deprefernciaamulherquetivessefeitolaqueaduraequenopodiater mais flho. Porque entrava e engravidava. Se afastava e ento... Por mais que a usina no pagasse... Porque agora diz que o INSS que paga. Mesmo que a usina no pagasse, a usina estava sendo prejudicada, ento eles no estavam mais querendo pegar mulher.[...]Rita: Tinha aquele papel que eles fazem na laqueadura, a tinha que mostrar pra eles l. Levar o papel que voc j fez a laqueadura.Neusa: Ou s pegava casal, homem e mulher. que teve uma poca tambm. No foi, Rita? Ento o que tinha ali arrumava vaga pra quem estava desempre-gado, n. E eu s entrava se eu fosse casada e se eu tivesse o meu marido pra entrar junto comigo. A fquei at sem emprego, no foi? Naquele tempo... No sei por qu. S pegavam o casal junto, ou s mulher que no tivesse mais flho [...]. Eles no estavam tendo futuro com as mulheres (7 de novembro de 2012).No incio do excerto da narrativa de Neusa a mquina citada como prin-cipalresponsvelpelonmeroreduzidodemulheresempregadasnoscana-viais.Elasegueaargumentaoeacrescentaosempecilhosdausinapara acontrataodemulheres,combaseemumcritriosexista.Emumadas tentativas de Neusa de procurar trabalho na usina, ela estava solteira, motivo sufcientenaquelemomentoparaqueaempresarecusasseotrabalhoa ela.Trata-se,naverdade,deumadasimplicaesdopatriarcado,aquien-tendidocomoumdossistemasdedominao-exploraocomponentesde uma simbiose da qual participam tambm o modo de produo e o racismo (Safoti, 1990: 22). Se, por um lado, a tecnologia das mquinas colheitadeiras tiraotrabalhodehomensemulheres,aideologiasexistaestabeleceomo-mento em que as mulheres devem ou no ser chamadas para o trabalho nos canaviais,lanandomodoargumentodequeastrabalhadorassomes em potencial. Chodorow (1990) assim defne as implicaes da categorizao de homens e mulheres no que diz respeito ao posicionamento na famlia e na 108Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...organizaodaproduo.Paraestaautora,asmulheresestoposicionadas primeironosistemasexo-gneroeoshomensprimeironaorganizaoda produo (Chodorow, 1990: 223).Issofcabastanteevidentequandoconsideramosqueasusinassolicitam queasmulheresentremnoprocessoseletivosomenteseestiveremacompa-nhadas21 e desde que comprovem que a gravidez no um risco a ser encarado pela usina.VIIFindas as construes da passarela e do tapete verde, chegamos ao momen-to do incio do desfle da top model: a colheitadeira.Linhas atrs, mostramos que h uma interdependncia entre as diferentes fases do processo produtivo que se intensifcam com o paradigma da mquina. Todasasatividadesanalisadasdosustentaoentradadamquinanoca-navial. O trabalho de Scopinho et al. (1999) analisa as condies de trabalho e sade dos operadores nos fnais da dcada de 1990. Comparando nossos acha-dos de pesquisa com esse estudo, notamos que, de modo geral, ainda que tenha havidosignifcativoavanotecnolgicodascolheitadeiras,asituaodosope-radores no sofreu mudanas signifcativas. A trajetria laboral dos operadores a mesma dos tratoristas. Iniciaram o trabalho em outras funes e em razo do bom comportamento e da produtividade foram selecionados para, primei-ramente,trabalharcomtratores,depoiscomasmquinas.Seguiramocurso profssionalizanteoferecidopelasusinasepeloSENAR(ServioNacionalde Aprendizagem Rural) e, em meio a tantos outros, graas aos seus bons desem-penhos,foramselecionados.Noincioforamajudantesdosoperadoresmais experienteselogoemseguidaassumiramocontroledamquina.Descrevem esse momento com muito orgulho, agraciados por Deus, por terem logrado um posto to importante como aquele. Sentem-se felizes, realizados. Falam da casa, do carro, dos eletrodomsticos, enfm, das mercadorias que possuem como re-sultado desse trabalho. Sentem-se, tal como a mquina, no topo em relao aos demaistrabalhadores,principalmentedoscortadoresmanuais,considerados coitados ou sofredores. Todavia, ao ser inquiridos sobre o trabalho, paulatinamente vo revelando outra face dessa realidade. Trabalham em trs turnos (oito horas) alternados semanalmente.Atecnologiasofsticadaexigeatenocontinuadadurante 21Omesmocritrionoutilizadonacontrataodehomens.Homenspodementrarnausina desacompanhados. v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 109todooprocessodetrabalho,semcontarquetrabalhamaoladodostratoris-tasdoschamadostransbordos,cujascaambasrecebemacanacortada22.A maneira de conduzir tanto dos operadores quanto dos tratoristas precisa ser totalmente sincronizada, caso contrrio haver perdas em razo de canas ca-das fora das caambas23. Completadas as caambas, seu tratorista, por sua vez, encaminha-seatolocalondeestooscaminhes,enquantooutrotomao seu lugar, e assim ininterruptamente. o sistema CCT (Corte, Carregamento e Transporte)24. Portanto, a movimentao de mquinas, tratores, caminhes, que operam segundo o tempo do chamado bate-volta, intensa e contnua, onde o domnio da maquinao maquinadora atinge o auge, pois a mquina no pode parar.Almdaatenoexigidanestetrabalhocooperativo(colheitadeira,trans-bordo e caminho), h que se considerar que a velocidade da mquina progra-mada pelos computadores, bem como suas paradas, tal como pode ser visto na foto (Figura 1) do painel de controle de uma delas, com 34 cdigos de coman-dos25. Quanto ao tempo de parada para as refeies os entrevistados afrmaram quesealimentamenquantoamquinaestparada(trocadepeas,abasteci-mento, limpeza de palhas etc.). Portanto, a mquina que determina quando e quanto podem se alimentar. O mesmo ocorre em relao s necessidades fsio-lgicas. Se estiver com dor de barriga, no pode trabalhar, o encarregado pe outro no lugar. Afnal, a usina paga a gente para trabalhar e no para cagar, disse o encarregado, segundo um depoente.Almdocontroleexercidopelamaquinaomaquinadoracomputado-res,rdiosamadores,satlites,GPShaindaapresenadoschamadosen-carregados.Portanto,haduplicidadedasestratgiasdedisciplina,pormeio da interiorizao da objetivao, que atinge at o funcionamento orgnico dos operadores(fome,apetite,necessidadesfsiolgicas),etambmdapresena subjetiva dos capatazes que controlam se a mquina est deixando tocos altos (soqueira alta) ou se as faquinhas esto afundando muito na terra e causando impurezas s canas, sem contar os acidentes provocados por manobras rpidas oucurvasdenvel(tombamento),ouaindaaquantidadedepalha(embucha-mento) que pode, com o calor, provocar incndio na mquina26. 22Para cada mquina, h um trator com dois transbordos.23As possveis perdas,assim como os tocos altos, so reparados pela frente da bituca.24Ver a respeito da terceirizao do CCT:Scheidl; Simon, 2012; Barreto, , 2013.25A foto foi feita por Lcio Vasconcellos de Veroza, durante a pesquisa de campo.26Recentemente, ao participar de um evento na UFG, a primeira autora deste artigo foi informada de que em Gois, em razo das altas temperaturas, as mquinas incendeiam-se com muita frequncia.110Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...Figura 1. Cdigos e comandos da mquina colheitadeira de cana.[...]Pegoufogo,queimouinteira.Nodeutempoparaooperadortirara mochila dele [...] Estourou uma mangueira que trabalha com seis mil peci-nhas de presso. A presso to terrvel que se ela fzer apenas um furinho na mangueira com os implementos ligados, ela nem precisa estar em duas milrpmderotao.Seaquelefurinhofordirecionadonumapessoatraa uma pessoa igualzinho uma bala, muito forte. leo quente ainda. A ela pegou fogo, estourou uma mangueira em cima da turbina quente, a ela ex-plodiu e queimou inteira (Antnio, 26/5/2013). v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 111Estemesmooperadorapontououtrassituaesderisco,provenientesda trocadasfaquinhas(lminas),acada80horas,issosenohouverpedras.A troca feita com luvas de ao, pois as lminas raspam at cabelo de to afadas, sem contar a troca dos parafusos que enroscam na terra, bem como a simples sada da cabine, que pelo fato de estar numa posio elevada pode causar que-das com leses. Outraestratgiadecontroleexistenteadvmdaformadeorganizaodo trabalho dos operadores. Pelo fato de trabalharem em trs turnos, h um siste-ma de premiao, PAM (prmio para atingir a meta), que consiste no seguinte: a mdia diria estipulada para cada operador 718 toneladas. Se um deles no cumprir a meta, o prmio (30% do salrio em carteira) ser diminudo. Alm dacoaoqueumacabaexercendosobreooutro,htambmocontrolede qualidade da cana colhida impurezas, tais como palha, terra, capim , que in-terferir no montante do bnus a ser recebido. Se houver uma falta, eles perdem 50% do bnus; duas faltas implicam perda total. Assim, eu me esforo e meu parceiro tambm faz o mesmo. H uma combinao entre ns. Um no pode prejudicarooutro.Poressemotivo,hconfitosentreoperadoresqueno trabalham combinados, sobretudo quando h terceirizao dos tratoristas dos transbordos. Nos perodos chuvosos, a mquina no opera, mas os operadores permanecem no seu interior, vigiando-a para evitar possveis roubos. No que diz respeito sade, aos transtornos psicossomticos em virtude da alternnciadeturnosdajornadadetrabalhosomam-seasdifculdadespara dormirduranteodiaeorudo(zum)dosmotoresquepermanececonstante-mente nos ouvidos, a falta de apetite e os prejuzos relativos sociabilidade da famlia, pois, alm da alternncia dos turnos, o sistema vigente o 5 x 1, ou seja, cinco dias trabalhados e um de descanso. VIIIPor fm, os resultados desta pesquisa revelaram o avesso do processo de me-canizao nos canaviais paulistas. A anlise do paradigma da mquina vis--vis asestratgiasdisciplinaresresultantesdasimbiosetecnologia/degradaodo trabalho foi importante para a compreenso das particularidades histricas des-saatividadeeconmica,bemcomodasrazesdapermannciadohabitusdas formas de dominao que asseguram os nveis da acumulao desses capitais. Neste momento, os leitores podem nos perguntar: E a resistncia? Ela no existe? Nos limites deste texto no nos sobrou espao para essa anlise. Compre-endendo a histria como processo, a resistncia greves ou a revolta cotidiana 112Quando a mquina desla, os corpos silenciam: tecnologia e degradao...foidetectadaemvriosmomentosduranteapesquisa.Grevesdeoperadores de mquinas em Sertozinho, de cortadores manuais em Fernandpolis, alm de centenas de processos trabalhistas coligidos nas Varas da Justia do Trabalho emMato,RibeiroPreto,Sertozinho,Jaboticabal,Araraquara,Franca,Bata-tais e Campinas. Ademais, foram captadas muitas formas de resistncia mida, nem por isso menos importantes, como encher a memria dos computadores, obrigando a mquina a parar, no pedir para ser mandado embora para rece-ber os direitos, no recolher todas as pedras dos canaviais, deixar o emprego de tratorista e voltar ao trabalho da famlia nos stios, no aceitar os preos pagos pelo corte da cana e voltar ao local de origem (migrantes), abandonar o traba-lho de distribuio de veneno e assim por diante.Seguindo as pegadas de Harvey (2011), o sistema de dominao precisa exis-tir em funo da tenso existente no processo de trabalho, onde o capitalista basicamente dependente do trabalhador (88). o(a) trabalhador(a) que traba-lha, que opera as mquinas, que distribui veneno, que recolhe pedra, que cata bituca, que entra em tanque com vinhaa, que corta cana at a morte... e no o capitalista e seus adeptos. Por mais que os capitalistas organizem o processo de trabalho, o trabalhador o agente criador. O processo de trabalho um campo de batalha perptuo, segundo Harvey. Quando enfrentam ocanavial, consideram arecolhade pedras comotra-balhoescravo,quandosopostosnogancho,comoamarradosaopelourinho, quando sentem cibras por todo o corpo, inclusive na lngua, em funo do ex-cesso de trabalho, os trabalhadores tm conscincia do campo de batalha onde esto. Nas palavras de Harvey:Umdostpicosmaispersistentesdahistriadainovaotecnolgicatem sido o desejo de enfraquecer o trabalhador tanto quanto possvel e passar os poderes de movimento e deciso para dentro da mquina, ou pelo menos para cima, em alguma sala com controle remoto (89).Todavia,parasaberoqueocorrealmdessasalacomcontroleremoto, preciso escutar as vozes daqueles(as) que a trabalham. Hoje eu sei o quanto na cana bruto. Trabalho com a top de linha, a John Deer,commotorde477cavalos,e,mesmoassim,agentevqueomotor senteumacanade18meses,enraizada[...]Agentefala:meuDeusdo cu, como bruto isso aqui. Como eu aguentei trabalhar nisso durante onze anos?. Eu trabalho pensando nisso [...] (Antnio, 26/5/2013). v.4, n.1Maria A. M. SilvaJuliana D. BuenoBeatriz M. de Melo 113Referncias ALVES,FranciscoJosdaCosta.Porquemorremoscortadoresdecana?Sadee Sociedade, v. 15, 2006, pp. 90-98. BACCARIN, Jos Giacomo, GEBARA, Jos Jorge; BORGES, Jlio Cesar. Expanso cana-vieiraeocupaoformalemempresassucroalcooleirasdocentro-suldoBrasil, entre2007e2009.RevistaEconomiaeSociologiaRural,Braslia,v.49,n.2,abr./jun. 2011, pp. 493-505.BACCARIN, Jos Giacomo; GEBARA, Jos Jorge; SILVA, Bruna Matsufugi. Acelerao da colheita mecnica e seus efeitos na ocupao formal canavieira no estado de So Paulo, de 2007 a 2012. Informaes Econmicas, So Paulo, v. 43, n. 5, set./out. 2013, pp. 19-31.BACCARIN,JosGiacomo;GEBARA,JosJorge;SILVA,BrunaMatsufugi.Boletim daocupaoformalsucroalcooleiranocentro-sul.Vriosnmeros.Disponvelem: . 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