Revista Ciência Dinâmica - 3ª Edição

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Revista Eletrônica da Faculdade Dinâmica

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APRESENTAÇÃO

A Revista Ciência Dinâmica é um periódico semestral editado pela Faculdade

Dinâmica do Vale do Piranga, em Ponte Nova/MG.

Aberta aos professores, convidados e, principalmente, aos acadêmicos da

Faculdade Dinâmica, a revista tem por finalidade precípua a publicação dos primeiros

trabalhos elaborados pelos alunos, contribuindo para incentivo à iniciação científica e a

expansão do conhecimento nas áreas das Ciências Jurídicas e Sociais.

A revista está disponível no endereço eletrônico www.faculdadedinamica.com.br

e, em breve, também em meio impresso.

A Revista Ciência Dinâmica tem a missão de constituir-se em um periódico

qualificado, fomentado preferencialmente por artigos elaborados pelos acadêmicos do Curso

de Direito da Faculdade Dinâmica, propiciando, através do estímulo à reflexão científica, o

amadurecimento, a ampliação do conhecimento e a consolidação dos ensinamentos teóricos

absorvidos na Faculdade, contando, ainda, com a valorosa contribuição de professores da

Instituição e de professores convidados que só vem enriquecer o conteúdo da publicação.

Conselho Editorial

Revista Ciência Dinâmica®

Editora: Faculdade Dinâmica

Ano I, n° 3, 1° Semestre 2010

ISSN – 2176-6509

_________________________

Conselho Editorial: Prof. Dr. José

Luiz Quadros de Magalhães, Prof.

Leilson Soares Viana, Prof. Mestre

Bernardo Gomes Barbosa

Nogueira, Prof. Mestre José

Carlos Henriques, Prof. Ramon

Mapa da Silva, Prof. Ernane

Salles.

________________________

Revista Ciência Dinâmica.

Faculdade Dinâmica do Vale do

Piranga. Rua G, n° 205, Bairro

Paraíso. Ponte Nova-MG.

Contato: (31) 3817-2010

[email protected]

www.faculdadedinâmica.com.br

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É proibida e reprodução, no todo

ou em parte, dos artigos

publicados nessa Revista sem

prévia autorização dos seus

autores, resguardado o direito de

citações com expressa referência à

sua fonte.

Copyright©

Todos os Direitos Reservados

Ponte Nova – 2009/2

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Formando Pessoas!

EDITORIAL

Se da continuidade de um trabalho podemos inferir algo em relação à

necessidade do mesmo, podemos dizer que essa edição da Revista Ciência

Dinâmica – Revista Científica Eletrônica da Faculdade Dinâmica reafirma

não só o compromisso da Faculdade Dinâmica em atender à necessidade

crescente de pesquisa científica responsável e socialmente engajada, como

também à vontade de levar o conhecimento científico produzido na

instituição para a comunidade, sempre carente de veículos que

possibilitam, mais do que informação, reflexão sobre aspectos profundos

de sua própria vivência.

Entre a vida e a ciência reside um abismo longo e, muito

possivelmente, intransponível. Isso se dá porque a ciência é pouco mais

que uma representação racionalizada da vida, representação que nunca é, e

não pode ser, completa. Também a arte não é vida, mas uma representação

estética da mesma, o que explica a resposta de Cézanne a um interlocutor

que o perguntara sobre a figura de um cão verde que o pintor acrescentara

em um quadro, alegando que não existiam cães verdes: “mas isso não é

um cão, é um quadro”. A ciência está para a vida como os cães pintados

de Cézanne estão para os cães reais, como uma representação, uma

maneira de se enxergar.

As páginas que se seguem estão repletas de representações. Em si, elas

representam o enfrentamento não só de problemas que a reflexão teórica

gera, mas o tatear de dimensões existenciais e sociais que vivemos e

dividimos mesmo sem saber. Tão logo as páginas a seguir forem fechadas

a vida continuará, como não poderia deixar de ser, mas com outras

matizes, outras cores, porque filtrada pela reflexão e pelo olhar fino da

representação científica. Se existe algo em comum entre todos os textos

aqui presentes é essa tentativa de criar pontes entre o abismo da ciência e

o da vida. O sucesso da empreitada é condicionado mais pela ação do

leitor, sua argúcia, sua perspicácia e crítica, do que pela qualidade do texto

ou o tema abordado. E é esse leitor, o que vivencia o que lê, que nos

interessa, é para eles que essas linhas existem.

Aos autores nosso muito obrigado, em especial aos docentes que

mantêm a experiência da pesquisa e do estudo cada vez mais forte e viva.

Aos leitores nossos desejos de boas e instigantes leituras e que encontrem

nessas páginas elementos para repensar a vida, em qualquer aspecto que

seja, e assim, torná-la um pouco mais digna de ser vivida.

PROF. RAMON MAPA DA SILVA Coordenador do NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa

Faculdade Dinâmica

SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................................................ 1

Editorial .................................................................................................................................... 2

Índice de Autores ..................................................................................................................... 4

1. A separação conjugal e os conflitos pós-separação: o retorno ao judiciário. .............. 5

2. Da possibilidade de incidência do contraditório e do direito de defesa na fase pré-processual ........................................................................................................................ 26

3. Estado de Exceção e crítica ao parlamentarismo em Carl Schmitt ............................ 43

4. Gestão Municipal – novos rumos da administração gerencial .................................... 54

5. Sobre Remédios Constitucionais e Direitos Petitórios ................................................. 66

6. A segurança jurídica trazida pelo serviço notarial e registral aos cidadãos .............. 84

7. A penalização em sindicância administrativa disciplinar. ........................................... 97

8. Pós-positivismo e argumentação jurídica: reflexão à luz do conceito de Direito .... 109

9. A função social da empresa em relação a função social da propriedade. ................ 122

ÍNDICE DE AUTORES

Daniel Pereira Delvaux – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica de Ponte Nova.

Dênio Guilherme dos Reis – Especialista em Direito Público pela FADOM. Doutorando em Ciências Jurídicas

e Sociais Universidad del Museo Socio Argentino. Professor Universitário nas áreas de Direito Civil, mais

especificamente Direitos Reais e Contratos. Pós Graduando em Direito Notarial e Registral pela Faculdade

Milton Campos. Oficial de Registro de Imóveis de Jequeri-MG.

Erika Cristina Nunes – Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas

Flaviana Maria da Silva – Acadêmica do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale

Piranga.

Harrysson Luiz da Silva – Pós-Doutor em Ergonomia Cognitiva -UFSC- IGETECON

Hugo Garcez Duarte – Mestre em Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade

Presidente Antônio Carlos de Juiz de Fora/MG; Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido

Mendes/RJ. Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas

Gerais/MG.

Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo – Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa; Mestra em

Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa; advogada e Professora do Curso de Direito da

Faculdade Dinâmica em Ponte Nova/MG.

Karla Maria Damiano Teixeira – PhD em Ecologia Familiar e Infantil, Profª Adjunta do Departamento de

Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa.

Leonardo Augusto Marinho Marques – Advogado e Professor de Direito Processual Penal da PUCMinas

Márcia da Rocha Rodrigues – Aluna do 8º Período do Curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica

do Vale do Piranga.

Maria das Dores Saraiva de Loreto – Pós-Doctor em Família e Meio Ambiente, Profª Associada do

Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa.

Ramon Mapa da Silva – Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais (PUC – MG), Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Presidente Antônio

Carlos – UNIPAC, Professor do Curso de Direito da UNIPAC de Itabirito e da Faculdade Dinâmica de Ponte

Nova.

Suely Vidal José – Acadêmica do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale Piranga.

Tatiana Rosmaninho Andrade – Acadêmica do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do

Vale Piranga.

Thamara Tereza Linhares Gomes – Acadêmica do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do

Vale Piranga.

Vagner Adriano Ferreira – Acadêmico do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale

Piranga.

Vagner Adriano Ferreira – Aluno do 8º Período do curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica do

Vale do Piranga.

Walace Marçal Viana – Acadêmico do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale Piranga.

Walter de Laia Rocha – Acadêmico do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale

Piranga.

Wanderson Gutemberg Soares – Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas.

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A SEPARAÇÃO CONJUGAL E OS CONFLITOS PÓS-SEPARAÇÃO: O RETORNO AO JUDICIÁRIO.

Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo1

Maria das Dores Saraiva de Loreto2

Karla Maria Damiano Teixeira3

Harrysson Luiz da Silva4

RESUMO: Diante da constatação empírica das implicações da ruptura conjugal sobre a

dinâmica da vida familiar, delimitou-se a seguinte questão de pesquisa: Após a separação

judicial do casal, ainda persistem os conflitos? Para responder a essa pergunta, este artigo teve

como objetivo examinar as novas situações conflitivas que motivaram o ingresso com outras

ações judiciais pós-separação judicial. Como procedimento metodológico, diante da natureza

descritiva e qualitativa da pesquisa, fez-se uso de entrevistas semi-estruturadas. Os resultados

mostraram que os conflitos pós-separação, na maioria das vezes, associam-se à escassez de

recursos e aspectos do relacionamento com o ex-cônjuge. A escassez de recursos ou a

insuficiência de renda foi um fator preponderante para a proposição de novas ações judiciais, no

sentido de alcançar uma melhora na qualidade de vida. Outro domínio da vida determinante

para o ingresso com novas ações está associado com o relacionamento, principalmente em

termos da ação de conversão da separação judicial em divórcio, com vistas a uma maior

liberdade e novas relações afetivas. Conclui-se que os conflitos não cessam após o rompimento

da sociedade conjugal. Eles ainda remanescem, o que instiga a demanda do judiciário para a

solução de novos conflitos, associados basicamente a aspectos financeiros e relacionais.

Palavras-chaves: Separações conjugais; novos processos; conflitos.

ABSTRACT: Given the empirical observation of the implications of marital breakdown on

the dynamic of family life, a question is raised: Conflicts remain after the couple’s legal

separation? To answer this question, this article aims to review the new conflict situations

which led to new lawsuits after judicial separation. Semi-structured interviews were used as

methodological procedure, in the face of the descriptive and qualitative nature of the research.

The results show that post-separation conflicts are, in most cases, associated with scarcity of

resources and aspects of the relationship with the former spouse. The scarcity of resources or

lack of income was an important factor for new lawsuits proposed in order to achieve a better

quality of life. Another area of life which determines new lawsuits is associated with the

relationship, especially on lawsuits for conversion of legal separation into divorce, aiming

more freedom and new relationships. After all, it follows that conflicts do not cease after the

breakup of the marriage. They still remain, which instigates the demand for Judiciary to

resolve new conflicts, mainly associated with financial and relationship aspects.

Keywords: marital separations, new processes; conflicts.

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa; Mestra em Economia Doméstica pela Universidade

Federal de Viçosa; advogada e Professora do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica em Ponte Nova/MG. 2 Pós-Doctor em Família e Meio Ambiente, Profª Associada do Departamento de Economia Doméstica da

Universidade Federal de Viçosa. 3 PhD em Ecologia Familiar e Infantil, Profª Adjunta do Departamento de Economia Doméstica da

Universidade Federal de Viçosa. 4 Pós-Doutor em Ergonomia Cognitiva -UFSC- IGETECON.

6

1. INTRODUÇÃO

Evidências empíricas têm mostrado que as separações judiciais provocam alterações

significativas na dinâmica da família, dentre elas: a partilha de bens; a definição de guarda

direta, o pagamento de pensão, dentre outras. Essas alterações, por sua vez, podem influenciar

a qualidade de vida dos membros da família, na medida em que o patrimônio material e a

renda familiar envolvida são, em regra, repartidos entre os cônjuges e, também, porque a

separação judicial interfere nas dimensões simbólicas da família.

Nos termos das leis que disciplinam a separação judicial, qualquer dos cônjuges

poderá propor ação de separação judicial, quando for imputado ao outro qualquer ato que

importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum5;

quando se provar a ruptura da vida em comum há mais de um ano e a impossibilidade de sua

reconstituição6; ou mesmo, quando o outro cônjuge estiver acometido de doença mental

grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum,

desde que, após uma duração de dois anos a enfermidade tenha sido reconhecida de cura

improvável7. O legislador listou de maneira exemplificativa os motivos que representam a

impossibilidade da comunhão de vida, como: o adultério8; a tentativa de morte

9; a sevícia

10 ou

injúria grave11

; o abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo; a

condenação por crime infamante12

e a conduta desonrosa13

, 14

(BRASIL, 2005).

5 Art. 1.572 do Código Civil de 2002.

6 §1

o do art. 1.572 do Código Civil de 2002.

7 §2

o do art. 1.572 do Código Civil de 2002.

8 É a quebra de fidelidade que os cônjuges reciprocamente se devem (PEREIRA, 2004, p. 258).

9 Tem os seus extremos assentados no Direito Penal, os quais poderão ser transpostos para aqui. Bom será,

contudo ressaltar que não se exige, para fundamentar o Desquite, haja condenação do agente no juízo

criminal, embora seja certo que a sua absolvição pode ilidir a ação cível, se fundada em excludente de

criminalidade, como a negação de autoria ou legítima defesa (PEREIRA, 2004, p. 260). 10

Sevícias são os maus-tratos, ofensas físicas, agressão, toda espécie de atentado à integridade corporal do outro

cônjuge (PEREIRA, 2004, p. 260). 11

É todo ato que implique ofensa à integridade moral do cônjuge. Em termos gerais, é a ofensa à honra,

portanto, “conduta desonrosa”. Não coincide sua conceituação com a figura criminal. Esta, obviamente, é de

molde a fundamentar a dissolução da sociedade conjugal. Mas justificam-na também palavras e gestos

ultrajantes; quaisquer ofensas à respeitabilidade do outro cônjuge; a transmissão de moléstia venérea; a

imputação caluniosa de adultério; as práticas homossexuais; a injusta recusa das relações sexuais; o ciúme

infundado, gerando clima de intranqüilidade (Moura Bittencourt); toda sorte, enfim, de atos que agravam a

honra, a boa fama, a dignidade do cônjuge ou lhe tragam situação vexatória ou humilhante no seu meio social

ou familiar (PEREIRA, 2004, p. 260). 12

Como “crimes infamantes” compreendem-se aqueles que traduzem um vício de personalidade tal, por parte

do agente do crime, que tornam absolutamente incompatíveis o interesse coletivo na prestação de um serviço

confiável e de qualidade e o forte receio de que o interessado venha novamente a revelar o grave vício de

conduta já externado. São exemplos de crimes dessa natureza, o tráfico de entorpecentes, o latrocínio, a

extorsão mediante seqüestro, etc. (PEREIRA, 2004, p. 263). 13

Não existe um critério pré-ordenado, outrossim, para a definição do que se compreende como conduta

desonrosa, prevista no art. 1753-VI. É de se considerar todo comportamento de um dos cônjuges, que

7

Feres-Carneiro (1998), Gianella (1998) e Abuchaim e Abuchaim (2007) mostram

que a relação conflituosa entre o casal que enseja a separação judicial não cessa após o

rompimento da sociedade conjugal. Apontam, também, que a separação implica

conseqüências financeiras e emocionais negativas, ou seja, a separação judicial implica numa

lide15

que envolve conflitos dos quais decorrem outros conflitos.

Além das questões sentimentais, questões objetivas devem ser disciplinadas, em

regra, quando se dá a separação. O casal precisa definir a quem caberá a guarda dos filhos e

como serão exercidas as visitas; qual será o valor a ser pago a título de pensão alimentícia;

como será partilhado o patrimônio, incluindo ativos e passivos. Essas questões são tidas como

fontes de conflitos, que culminam por ensejar a propositura de novas ações judiciais.

O pagamento de pensão alimentícia aos filhos, por exemplo, é considerado uma das

principais fontes de conflitos. Gianella (1998) apresenta um trabalho realizado ao longo de 15

anos, do qual fizeram parte 60 famílias divorciadas, que tinham filhos de dois a 18 anos no

momento da separação; tendo sido constatado que a resolução da crise do divórcio em relação

aos filhos está estreitamente ligada à capacidade dos pais para conseguir acordos e,

principalmente, com respeito à abdicação dos alimentos, que constitui o aspecto mais delicado

dos acordos, em torno do qual os pais mostram maiores dificuldades. A questão financeira

também fica em evidência como fonte de conflito.

Galvão (2006, p. 1), com base em dados de uma pesquisa americana, afirma que o

divórcio é um dos caminhos mais rápidos para a destruição da riqueza comum. A pesquisa

aponta que o crescimento médio anual da riqueza dos casados é de 4%; enquanto o aumento

médio do patrimônio após a união conjugal é de 93%, e que a soma dos bens com o divórcio

diminui para 77%.

A importância dessa análise decorre da constatação de que o conflito é inerente à

interação humana; considerando, como, ressalta Winton (1995), que todos os sistemas sociais

têm recursos escassos, sob os quais ocorrem competição e conflitos, além do fato de que

implique granjear menosprezo no ambiente familiar ou no meio social em que vive o casal. Assim, se devem

entender os atos degradantes como o lenocínio, o vício do jogo, o uso de tóxicos, a conduta homossexual, a

condenação por crime doloso, especialmente que impliquem a prática de atos contra a natureza, os delitos

sexuais, o vício da embriaguez. Essa referência é meramente exemplificativa. Não é possível arrolar todos os

atos que possam constituir conduta desonrosa de um cônjuge. Cabe ao juiz, em cada caso, examinando as

circunstâncias materiais da espécie, e tendo em vista o ambiente familiar, o grau de educação e de

sensibilidade do cônjuge, e quaisquer outros elementos informativos, decidir se a imputação procede e se a

conduta do cônjuge tem efetivamente o caráter desonroso (PEREIRA, 2004, p. 264). 14

Art. 1.573 do Código Civil de 2002. 15

Pretensão resistida (CARNELUTTI, 1958).

8

exibem uma estratificação social, em que algumas pessoas detêm mais poder que as outras,

tornando-se inevitável a presença de atitudes conflitivas.

Nesse contexto, objetivou-se com esse artigo analisar os conflitos relacionados

materializados em processos judiciais após o rompimento da sociedade conjugal.

2. REVISÃO TEÓRICO-CONCEITUAL

A revisão de literatura visou fundamentar o campo de investigação da pesquisa, bem

como, os conceitos fundamentais sobre os seguintes temas: separação judicial, divórcio e suas

implicações.

2.1. A separação judicial, o divórcio e suas implicações

Segundo Cahali (2005, p. 20), a decomposição da sociedade familiar acontece

através de uma paulatina, intermitente ou sucessiva infração dos deveres que resultam do

matrimônio e participa da própria contingência humana. Ou seja, o casal não consegue

administrar o conflito inerente às interações estabelecidas em suas relações intra e

extrafamiliares.

A sociedade conjugal constituída pelo casamento cessa pela morte de um dos

cônjuges, pela sentença anulatória do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio.

É importante distinguir a diferença entre o término da sociedade conjugal e a

dissolução do vínculo matrimonial. A extinção da sociedade conjugal pela separação judicial

não pressupõe o desfecho do vínculo matrimonial, ou seja, com ela findam-se as relações do

casamento, mas o vínculo permanece intacto, o que impede os cônjuges de contrair novas

núpcias. O vínculo somente se extingue com a morte, a anulação e o divórcio, que

possibilitam aos ex-cônjuges a contrair novas núpcias.

A conquista legislativa do direito de romper o vínculo matrimonial foi obtida, no

Brasil, depois de muita luta. Uma das barreiras para a legalização do Divórcio no Brasil deve-

se ao fato da forte atuação da Igreja Católica. Com o Concílio de Trento (1545 a 1553), a

doutrina da Igreja se consolidou, repudiando o divórcio em definitivo, proclamando o

matrimônio à categoria de sacramento com caráter de indissolubilidade. O que se permite em

face da Igreja Católica é a separação de corpos, denominada divortium quo ad thorum et

habitationem, que deixa intacto o vínculo matrimonial (PEREIRA, 2004).

9

Para melhor entendimento acerca do casamento, da separação e do divórcio no

Brasil, convém trazer um breve histórico. Ao tempo do Império prevalecia a doutrina da

Igreja, nos termos do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia. Um

decreto de 3 de novembro de 1827 oficializou o casamento segundo as diretrizes daquele

Concílio. Com isso, adotou-se a jurisdição canônica, o que significa afirmar que não se

admitia a validade do casamento sem a intervenção da Igreja e, também, obviamente, que o

casamento era indissolúvel (PEREIRA, 2004).

Na constituição da República de 1824 nada se mencionou sobre o casamento.

Somente na Constituição outorgada em 1890 foi feita referência ao matrimônio, onde dizia

em seu art. 72, §4o A República só reconhece o casamento civil, que precederá sempre as

cerimônias de qualquer culto. Aqui foi afastada a jurisdição canônica. Assim, durante a

Primeira República, vigeu o Decreto no 181, de 24 de janeiro de 1890, que instituiu o

casamento civil e manteve o critério da indissolubilidade do vínculo. Em decorrência do lobby

da Igreja Católica, o legislador inseriu na Constituição de 1934, o princípio da

indissolubilidade, que constou das reformas constitucionais de 1937, 1946, 1967 e da Emenda

Constitucional no 1, de 1969. Com isso, tendo a indissolubilidade do vínculo matrimonial

caráter constitucional, o Brasil se posicionava, com destaque, entre os países antidivorcistas.

Sendo o casamento indissolúvel, era inegável o estigma de culpa atribuído a quem

pretendesse se separar; ressaltando-se que, culturalmente, o cônjuge desquitado era visto com

preconceito, como pessoa à margem das relações familiares.

Segundo Pereira (2004, p. 275), a indissolubilidade do casamento não é a regra na

sociedade primitiva. Segundo ele, os povos primitivos cultivaram a noção do vínculo conjugal

suscetível de rompimento, salvo algumas poucas exceções; inclusive, nos primeiros tempos, o

Cristianismo se mostrou pouco seguro em relação ao combate ao divórcio. Para o mencionado

autor, os monumentos que nos legaram as civilizações antigas atestam a existência do

divórcio. O velho testamento do povo Hebreu o aprovava, indo mesmo mais longe, por

admitir o repúdio unilateral como prerrogativa marital. O Código de Hamurabi, por sua vez,

facultava o divórcio ao marido e à mulher. Na Grécia, praticou-se o divórcio e admitiu-se o

repúdio da mulher estéril. Em Roma, não obstante proclamar-se (...) o casamento como uma

união por toda a vida, o divórcio era conseqüência natural do fato de ser o casamento

sustentado pela affectio maritalis: desde que esta desaparecia, tinha lugar a separação –

divortium. Mesmo o matrimônio sacramental e solene (confrarreatio), que a princípio se

10

reputava indissolúvel, veio a dissolver-se por uma cerimônia contrária – diffarreatio genus

erat sacrificci quo inter virum et mulierem fiebat dissolutio.

Pereira (2004) ressalta que na República eram poucos os casos de divórcio. No

Império, e à medida que a opulência romana foi suscitando a dissolução dos costumes, o

divórcio generalizou-se e atingiu todas as classes.

Aquele autor lembra que o Cristianismo combateu o divórcio, embora se mostrasse

nos primeiros tempos pouco seguro, tendo em vista passagens parcialmente divergentes dos

Evangelhos. Em São Mateus (Cap. V, versículo 32, e XIX, versículo 9) admite-o por

adultério, ao passo que São Marcos (Cap. X, versículo 2) e São Lucas (Cap. XVI, versículo

18) condenam-no de modo absoluto. São Paulo, impressionado talvez pela sua freqüência na

sociedade romana, que ele conhecia, revelou-se-lhe contrário (Epístola aos Coríntios, VII,

versículo 10).

No Direito Brasileiro sempre se adotou a separação de corpos e a dissolução da

sociedade conjugal, não se podendo dizer o mesmo quanto ao divórcio (dissolução do

vínculo). Anteriormente à Lei no 6.515, de 26 de dezembro de 1997, havia a previsão do

“desquite”, hoje denominado “separação judicial”. O desquite configurava uma sanção para o

comportamento de um dos cônjuges, contravenientes aos deveres fundamentais do

matrimônio. O antigo “desquite litigioso” punia o adultério, a tentativa de morte, as sevícias, a

injúria grave, o abandono do lar. Com o advento da Lei no 6.515/1977, a denominação

“desquite” foi substituída por “Separação Judicial Litigiosa ou Consensual”.

A Lei no 6.515/1977 e a Emenda Constitucional n

o 9, de 28 de junho de 1977,

representaram um marco importante no Direito de Família e refletiu a opinião dominante à

época ao instituir o divórcio, com bem expressa Pereira (2004, p. 279):

Em suas linhas gerais, a Lei no 6.515, de 26 de dezembro de 1977, deu um passo na

marcha evolutiva de nosso Direito de Família, procurando, com sinceridade,

solucionar problemas que a vida conjugal dá nascimento, e que o excessivo amor à

tradição impedia de resolver (PEREIRA, 2004, p. 279).

No tocante à Emenda Constitucional retro mencionada, esclarece o mesmo autor,

que: com a aprovação da Emenda Constitucional no 9, de 28 de julho de 1977, foi aberta a

porta ao divórcio, ao ser alterado o §1o do art. 175, franqueando a dissolução do matrimônio

nos casos previstos em lei, e admitindo o §2o o divórcio desde que haja separação judicial

por mais de três anos (PEREIRA, 2004, p. 279).

11

A Constituição da República de 1988, por sua vez, trouxe um avanço ainda maior

quanto à possibilidade do divórcio. Os prazos estabelecidos naquela emenda foram reduzidos.

Assim, em seu art. 226, §6o, a CR/1988 previu a possibilidade do Divórcio após um ano da

separação judicial, ou comprovada por mais de dois anos a separação de fato. Com isso, ficou

instituído o divórcio direto. O casamento religioso com efeitos civis também foi protegido

pela Constituição vigente, em seu art. 226, §2o: O casamento religioso tem efeito civil, nos

termos da lei. Foi editada, em seguida, a Lei no 7.841, de 1989, que alterou os arts. 16,

parágrafo único, e 40 da Lei 6.515/1977, bem como revogou os arts. 18 e 40, §1o, da Lei n

o

6.515/1977.

Conforme já dito, a luta pelo divórcio foi acirrada. Parlamentares divorcistas, como

Nelson Carneiro, tentaram por mais de três décadas, mas os projetos de lei acabavam sendo

vencidos pelos opositores, fortemente apoiados pela Igreja Católica.

Felizmente, com a instituição do divórcio não aconteceu nenhuma das previsões

catastróficas apregoadas pelos opositores do mesmo. Efetivamente, o divórcio não representa

um perigo ao casamento, uma vez que a sustentação deste não pode se dar pela proibição. São

outros os valores que servem de sustentáculo para a família constituída pelo matrimonio.

Esses valores estão inseridos na noção de afetividade e é sobre esse prisma que as sociedades

conjugais devem ser mantidas ou desconstituídas, para o bem de seus integrantes. A

finalidade do casamento há muito tempo deixou de ser a procriação. Hoje, têm importância os

sentimentos que unem o homem e a mulher.

A separação de corpos, que é autorizada pela Igreja católica, é uma medida cautelar

para se autorizar o afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal, prevista

no art. 1.562 do Código Civil de 2002 e disciplinada pelo Código de Processo Civil, nos arts.

888, IV e 799.

O Código Civil de 2002, em conformidade com a lei do divórcio (Lei no 6.515/77),

trouxe a “separação judicial litigiosa” e a “separação judicial consensual”, que subordinam a

separação à “insuportabilidade da vida em comum”, nos termos do art. 1.572 daquele Código.

A separação judicial litigiosa pode se dar quando um dos cônjuges provar a ruptura

da vida em comum por um ano e a impossibilidade de sua reconstituição (art. 1.572, §1o).

Trata-se de um caso em que o ambiente conjugal deixou de existir por um motivo conhecido

somente dos cônjuges, ou destes e de terceiros, pondo fim à comunidade de vida, sem que o

cônjuge inocente quisesse ou pudesse intentar ação de separação. Resulta de dois elementos:

12

um material, qual seja o fato de estarem os cônjuges separados um do outro por mais de um

ano e outro psíquico, que podem se relacionar as razões que situam no plano da mera

manifestação interior, como a incompatibilidade de gênios ou cessão da afinidade (PEREIRA,

2004, p. 253).

Uma segunda causa para se pleitear a separação judicial litigiosa é quando o outro

cônjuge estiver acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne

impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a

enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável. Segundo Pereira (2004, p. 255), essa

previsão atenta contra os compromissos assumidos e contra o mais elementar sentimento de

solidariedade, na medida em que quando um cônjuge é fulminado por enfermidade que lhe

obscureça a mente, não configura falta a seus deveres e nem rompimento da sociedade por ato

de vontade.

A separação judicial litigiosa pode fundar-se em uma ou mais das causas seguintes

alegadas e provadas pela parte que postula a separação, nos termos do art. 1.573 do Código

Civil de 2002: adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave; abandono voluntário do

lar conjugal, durante um ano contínuo; condenação por crime infamante e conduta desonrosa.

Maria Berenice Dias (2006) chama essa enumeração legal de rol de “culpas”. Além disso, o

legislador previu no parágrafo único do art. 1.573, que o juiz poderá considerar outros fatos

que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.

Vários civilistas ressaltam o retrocesso do legislador ao enfatizar a pesquisa da culpa

para autorizar a separação judicial dos cônjuges. Dias (2006, p. 97) alerta para o fato de que

nenhuma das diversas hipóteses elencadas na lei permite a identificação de um culpado.

Segundo ela, o que traz a lei são meras conseqüências, pois a causa é única: o desamor, que é

o motivo para aquele que comete o adultério, tenta matar, agride, abandona, ou mesmo,

mantém conduta desonrosa. Portanto, as atitudes previstas na lei são apenas reflexos do fim

do amor. Em outras palavras, de acordo com os fundamentos dos conflitos, o casal deixa o

espírito de cooperação e passa a priorizar a competição, na busca pela satisfação de seus

interesses particulares, o que acaba por culminar em uma das situações descritas pela lei.

Na verdade, quando não se consegue administrar as situações de conflito, deixando

que os interesses próprios prevaleçam sobre os interesses do casal, é porque já se deu o

esgotamento do vínculo de afetividade e, isso, motiva a violação dos deveres do casamento.

13

A lei do divórcio, em vez de discriminar as causas da separação, refere-se a outros

fatores etiológicos da mesma, conforme previsto no seu art. 5º: conduta desonrosa ou

qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento, e tornem

insuportável a vida em comum. Quanto à violação dos deveres do casamento, Pereira (2004,

p. 265) preleciona:

A “violação dos deveres matrimoniais”, posto que elástica, é menos imprecisa.

Partindo-se de que são conhecidos e definidos os deveres conjugais (fidelidade

recíproca, vida em comum no domicilio conjugal, mútua assistência, sustento,

guarda e educação dos filhos previstos no art. 1.566), genericamente podem alinhar-

se, como violações dos deveres matrimoniais, todos os atos que se traduzem em

infração dessas obrigações que o legislador impõe aos cônjuges (PEREIRA, 2004, p.

265).

A questão da fidelidade recíproca é bastante frisada como um dever dos cônjuges no

casamento e uma expectativa dos mesmos (TREAS e GIESEN, 2000), diante do contexto

cultural em que a infidelidade está relacionada com a falta de verdade (DINIZ, 1998;

LUSTERMAN, 1998) e causa diversos sentimentos negativos no cônjuge traído (MATHES et

al., 1985; SHARPSTEEN, 1995; CANO e O’LEARY, 2000), além poder ocasionar a

desestabilização da harmonia familiar (BUNDT, 2007). Larrañga (2000) e Menezes (2005),

por sua vez, apontam que a infidelidade relaciona-se com a existência de problemas não

resolvidos na intimidade do casal. Já Madaleno (2005) indica que os cônjuges que se separam

por motivo de infidelidade têm dificuldades em se casarem novamente.

A separação judicial consensual está prevista no art. 1.574 do Código Civil de 2002,

que assim versa: dar-se-á a separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges se

forem casados por mais de um ano e o manifestarem perante o juiz, sendo por ele

devidamente homologada a convenção. Neste caso, após a oitiva do representante do

Ministério Público, o juiz homologa a separação. Vale ressaltar que compete ao juiz apreciar

os requisitos de fundo e de forma, verificar a regularidade do procedimento e apreciar a

validade das deliberações quanto aos filhos do casal.

No caso das separações consensuais, apesar de o casal já apresentar um acordo

pronto para ser homologado pelo juiz, não significa inexistência de conflitos. Às vezes, a

fonte dos conflitos é tão grave que os cônjuges preferem abrir mão de determinados interesses

e firmar um acordo, em prol de não se discutir a motivação da separação e apenas afirmar que

o rompimento da sociedade conjugal se deu por incompatibilidade de gênios ou porque a vida

em comum é de difícil convivência.

14

Em ambos os casos de separação, algumas questões são definidas, dentre elas a

partilha dos bens, a guarda dos filhos, o exercício das visitas, o nome do cônjuge. Constará

também a quantia com que os cônjuges concorrerão para a manutenção dos filhos na

proporção de seus recursos (art. 1.703) e, excepcionalmente, a pensão que será paga ao ex-

cônjuge para suas despesas pessoais, comprovada a hipossuficiência. Nota-se, portanto, que a

separação judicial dissolve a sociedade conjugal com tríplice conseqüência: pessoal,

patrimonial e relativa aos filhos.

A sentença que decreta a separação judicial somente faz coisa julgada16

em relação à

dissolução da sociedade conjugal e quanto à questão patrimonial. Todavia, a todo tempo é

lícito ao juiz modificar o que fora deliberado quanto aos filhos no tocante à guarda, visitas17

e

pensão alimentícia18

, bem como o que ficou determinado quanto à pensão de qualquer dos ex-

cônjuges.

Nos termos do art. 1.580, do Código Civil de 2002, decorrido um ano do trânsito em

julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da

medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão

em divórcio. Para ocorrer a conversão, é preciso comprovar que não houve reconciliação

durante aquele período.

Considerando que a sentença não transita em julgado, quanto à questão dos alimentos

e da guarda, novas ações podem ser propostas para se discutir novamente essas questões.

Caso o detentor da guarda considere que a pensão paga pelo visitante não está suficiente, ele

pode ingressar com uma ação revisional de alimentos visando majorar o valor da pensão

alimentícia. Da mesma forma, o visitante19

que considerar o valor pago elevado, pode

16

Conforme disposto no art. 467 do Código de Processo Civil, coisa julgada material é a eficácia, que torna

imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (BRASIL, 2005). 17

Dias (2006, p. 365) aponta que não são pouco freqüentes os pedidos de suspensão das visitas por denúncia de

abuso sexual do genitor. Em face da seriedade da acusação e da dificuldade de sua comprovação, deve ser

imediatamente determinada a realização de estudo social e a elaboração de perícia psicológica e

psiquiátrica não só com o filho, mas também com ambos os genitores. Sem provas além da versão da

genitora, descabe simplesmente interromper as visitas e cortar qualquer contato do pai com o filho. Precisa o

juiz ter redobrada cautela, pois a acusação às vezes é levada a efeito por vingança, exatamente para

obstaculizar as visitas, por ter havido suspensão do pagamento dos alimentos, ou simplesmente pelo fato de o

genitor estar com nova companheira. 18

O direito a alimentos deve ser compreendido no seu aspecto amplo, compreendendo não apenas a alimentação

propriamente dita, mas, também, todos os demais bens necessários para se atender às necessidades básicas

(CYRILLO e CONTI, 2005). 19

Que é o detentor da guarda indireta. Vale ressaltar que todas as prerrogativas decorrentes do poder familiar

persistem mesmo quando da separação ou do divórcio dos genitores, o que não modifica os direitos e deveres

dos pais em relação aos filhos, conforme disposto no art. 1.579 do CC/2002. Como o poder familiar é um

complexo de direitos e deveres, a convivência dos pais não é requisito para a sua titularidade.

15

ingressar com a revisional para minorar o valor pago. Essas novas ações são distribuídas por

dependência à ação de separação20

.

As ações revisionais são comuns, posto que o dever de alimentar se prolonga no

tempo, seja por ter havido aumento ou redução, quer das possibilidades do alimentante, quer

das necessidades do alimentando. Essas alterações afetam o princípio da proporcionalidade

que norteia a fixação dos alimentos e, portanto, autorizam a busca de nova equalização do

valor dos alimentos.

Segundo Rizzardo (2005, p. 737), justamente por estar condicionada a pensão aos

pressupostos da necessidade do alimentando e da possibilidade do obrigado impera o

princípio da alterabilidade das decisões que estabelecem os alimentos. O referido autor

acrescenta que as sentenças, em matéria de alimentos, não transitam em julgado, permitindo

sempre a revisão quando há mudança econômica na situação das partes.

Quanto à ação exoneratória, o simples implemento da maioridade não autoriza a

exoneração imediata do encargo. Dias (2006, p. 457) aponta que:

Freqüentes sãos as ações de exoneração pela alegação da impossibilidade do

alimentante de continuar atendendo ao dever alimentar. Nessa hipótese se faz mister

uma robusta prova da incapacidade absoluta do devedor, principalmente quando

ausente prova de que não subsiste a necessidade do alimentando. Quer a constituição

de nova família, quer o nascimento de outros filhos não justificam o pedido de

redução do encargo alimentar, sob pena de se estar transferindo a obrigação

alimentar de uns filhos para outros, mas a tendência é proceder à readequação

(DIAS, 2006, p. 457).

No que diz respeito à guarda21

, caso o visitante ao pegar o filho durante o tempo que

lhe cabe para as visitas, e não o devolver, o guardião poderá ingressar com uma ação de busca

e apreensão do menor22

. Além disso, caso o visitante queira obter a guarda direta dos filhos,

poderá ingressar com uma ação de modificação de guarda.

Quanto às visitas, caso algum dos cônjuges queira alterar a regulamentação ou

mesmo discipliná-la, nos casos em que não ocorreu, poderá ingressar com uma ação de

regulamentação de visitas. Ainda, quanto aos alimentos, caso o devedor não efetue o

pagamento, o guardião poderá ingressar com uma ação de execução de pensão23

, que pode

20

Isso significa que os processos ficam apensados. 21

Geralmente, as mães ficam com a guarda dos filhos, devido ao modelo de maternagem vigente em nossa

sociedade (MACEDO, 2002). 22

Nessa hipótese, não se trata de demanda cautelar a exigir a propositura de ação principal oportunamente, uma vez

que a guarda já se encontra definida. A ação é satisfativa e se exaure com o cumprimento da medida liminar. 23

O Código de Processo Civil admite duas modalidades executórias: a execução contra devedor solvente (CPC,

art. 732) e a execução mediante coação pessoal (CPC, art. 733). Esta ultima é uma das raras exceções em que

a Constituição admite prisão por dívida (CR/1988, art. 5o LXVII) (VADE MECUM, 2008). Nesse tocante,

16

culminar na prisão do devedor de alimentos. Quanto aos bens, se não foram partilhados no ato

da separação, pode se propor a ação de partilha. Enfim, todas essas ações tramitam junto com

a ação primeira, ou seja, a ação de separação, que pode ter sido antecedida pela ação cautelar

de separação de corpos. Assim, uma série de outras ações podem ser propostas após a

dissolução da sociedade conjugal.

Quando a separação é amigável, normalmente a partilha é feita conjuntamente com o

pedido de separação. Nesse ato, dispõem os cônjuges segundo suas vontades no tocante à

divisão dos bens, nos termos do parágrafo único do art. 1.575 do Código Civil de 2002, que

assim versa: A partilha de bens poderá ser feita mediante proposta dos cônjuges e

homologada pelo juiz ou por este decidida (VADE MECUM, 2008).

No entanto, também é comum que se postergue para momento posterior a disposição

sobre o patrimônio, embora esta prática possa acarretar problemas no tocante à propriedade de

bens adquiridos por um dos separados depois da homologação, a não ser que se realize o

inventário ou o arrolamento dos existentes até a separação.

Caso os cônjuges não entrem em acordo sobre a partilha, proceder-se-á a mesma de

forma judicial, com a intervenção do juiz. Salienta-se a necessidade de observância constante

da igualdade dos valores de cada uma das duas partes que compõem o monte partilhável, em

consonância com o regime de bens instituído no casamento. (RIZARDO, 2005).

Não há estudos sobre a motivação para o ingresso com essas novas ações e se estas

têm alguma relação com a qualidade de vida. E, conforme já afirmado, apesar das evidências

empíricas sobre a redução da qualidade de vida da família monoparental24

, após a separação

judicial, não se conhece estudos científicos sobre dessa questão.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A presente pesquisa, de natureza descritiva-exploratória, priorizou a análise

qualitativa para obtenção de dados. Considerou-se para esta escolha, o trabalho investigativo

importante esclarecer que o Superior Tribunal de Justiça firmou o seguinte entendimento por meio da súmula

309: o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações

anteriores à citação e as que vencerem no curso do processo (VADE MECUM, 2008). 24

O fim dos vínculos afetivos com prole é o principal gerador de monoparentalidade. Quando da separação

dos pais, normalmente os filhos ficam sob a guarda de um dos genitores. Na grande maioria das vezes, na

companhia da mãe. Ao pai, de forma confortável, é deferido singelo direito de visita, direito que exerce a seu

bel-prazer, sem maior comprometimento com a criação e desenvolvimento do filho. De modo geral, ocorre

uma transitoriedade entre duas situações. Num primeiro momento, há família biparental constituída. A

separação gera uma família monoparental, por exemplo, a mãe fica com o filho (DIAS, 2006, p. 185).

17

realizado e a complexidade do objeto de estudo, assim como a limitação de acesso aos

processos e, consequentemente, aos casais que preenchessem os requisitos estabelecidos.

A técnica de coleta de dados utilizada foram entrevistas semi-estruturadas25

, que

foram realizadas junto aos genitores detentores da guarda direta dos filhos, abordando-se

sobre questões relativas aos conflitos que ensejaram a separação judicial

A amostra compôs-se de dez famílias residentes na cidade de Viçosa/MG que, em

virtude da separação judicial, tornaram-se famílias monoparentais, constituídas apenas por um

dos cônjuges e a prole. Os dados foram analisados em função do conteúdo dos depoimentos

dos ex-cônjuges detentores da guarda dos filhos, em termos dos seus pontos semelhantes e

divergentes. As entrevistadas foram identificadas como: mulher “A”, mulher “B”, mulher

“C”, mulher “D”, mulher “E”, mulher “F”, mulher “G”, mulher “H”, mulher “I”, mulher “J”,

com o objetivo de proteger suas identidades.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1. Identificação de novas situações conflitivas após a separação judicial

A separação judicial significa a total impossibilidade de o casal administrar o

conflito e permanecer em união. No entanto, a separação não significa o fim dos conflitos.

Eles ainda remanescem, o que instiga a demanda do judiciário para a solução de novos

conflitos. Instaura-se nova lide, que, segundo Carnelutti (1958), é um conflito de interesses,

qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência do outro. Todavia, as

novas lides, em regra, versam diretamente sobre uma questão objetiva: recursos, o que não

significa que outros fatores não influenciem essa decisão de demandar o judiciário.

No caso da mulher “A”, a relação estabelecida com o ex-marido após a separação foi

definidora para o ingresso com novas ações, mas, a questão relativa à pensão e aos bens

(recursos) também foi abordada. Ao ser questionada sobre o que motivou o ingresso com novas

ações judiciais, após a separação judicial, afirmou o seguinte:

Eu entrei com o divórcio porque eu queria acabar com tudo. Acabar com o vínculo

que existia. Na hora que fui entrar com o divórcio, perguntaram se ele estava

pagando a pensão. Falei que não e aí a advogada entrou com a execução. Não

tinha mais acordo, amizade...

Já tinha acontecido o caso do chumbinho26

. Pedi a partilha da casa para legalizar.

O meu marido queria que eu renunciasse tudo para ficar tudo para os filhos.

25

Por entrevista semi-estruturada, entende-se aquela que se desenrola a partir de um esquema básico, porém não

aplicado rigidamente, permitindo ao entrevistador realizar as necessárias adaptações.

18

A doação do único bem imóvel aos filhos é uma forma muito utilizada pelos casais

para minimizar os prejuízos da divisão do mesmo. Assim, a mulher “A” ingressou com ação

de partilha, ação de conversão da separação em divórcio e com ação de execução de pensão

alimentícia.

A mulher “B” viu no fim da possibilidade de restauração do casamento e também na

redução da renda, os motivos para a propositura de duas novas ações judiciais foram: ação

revisional de pensão e ação de conversão da separação em divórcio:

Já tinha quatro anos que estávamos separados. Ele já tem outra mulher e filhos.

Então, pensei em ter possibilidade de encontrar outra pessoa que dê mais valor em

mim. Para que eu possa casar novamente... Eu pensei assim: volta não vai ter. Para

mim não tinha sentido ficar presa numa pessoa. Pedi a revisional de alimentos

porque ele tava pagando o mesmo valor por dois anos, apesar dos aumentos do

salário. Conversei com ele, mas ele não quis aumentar. A pensão era de 42% do

salário.

A mulher “C”, por sua vez, ingressou com ação revisional de alimentos, execução do

acordo para o ex-marido pagar a casa e ação de conversão da separação em divórcio:

Ele tava pagando muito pouco, não dava para nada... porque ele tava dando a

pensão sobre o salário mínimo e não sobre o que ele ganhava. Não recebo sobre

férias e nem sobre o 13o salário. Pedi para ele ajudar a comprar remédio para as

meninas e ele não ajudou. Também entrei para ele pagar a metade da casa. Pedi

para ele assinar o divórcio porque ele queria casar de novo. Eu não tava pensando

em casar de novo.

A mulher “C” construiu junto com o marido sobre a laje da casa dos pais dele. Com a

separação, ela saiu da casa, diante da impossibilidade de conviver com os ex-sogros; desta

forma o imóvel ficou sendo utilizado apenas pelo marido, sem que ela recebesse qualquer

valor. Além disso, quando tentou receber o valor correspondente à meação, os sogros

alegaram que o imóvel tinha sido construído por eles.

A mulher “D”, que ficou com a guarda de cinco filhos, viu na escassez de recursos a

necessidade de ingressar com a ação de execução de pensão, relatando que:

Além dele não estar dando atenção também não estava dando alimentação. Não

cumpriu o que falou na frente do juiz que ia assumir. Foi combinado de dar pensão,

mas ele mandava uns 10 a 20 reais. Eu não tava agüentando. Ele disse que estava

com problema do coração. Mãe sempre reclamava dos meus filhos, mas não queria

que eu entrasse com a ação. Mas fiquei com muita raiva e procurei a Dra. Maria do

Carmo. Demorou para o juiz chamar. Depois ele voltou a não pagar. Ele tinha que

dar o dinheiro para alimentar. Ele achou um desaforo dar dinheiro depois da

separação. (...) Ele foi preso por isso. A dívida era de R$4.000,0. Recebi só uns

R$2.000,00. Os meninos não queriam só a metade. Mas eu não ia deixar a mãe dele

passar o natal com o filho preso. Ela sempre me ajudou. Agora ele paga direitinho.

26

A entrevistada contou que sofreu envenenamento por chumbinho ao tomar chá na casa do ex-marido após já

ter se separado dele. Com isso, foi dada como morta, ficou toda roxa e foi parar no CTI. O ex-marido a

acusou de ter causado o envenenamento para culpá-lo.

19

Quando é flagrante a reiterada atitude omissiva do alimentante no atendimento da

obrigação alimentar, pode caracterizar-se o crime de abandono, previsto no art. 244 do

Código Penal27

.

A mulher “E”, que também construiu no lote do sogro, sofreu para reaver a sua casa.

Isso foi o motivo para a ação de execução do acordo, no tocante à divisão dos imóveis:

O meu sogro cismou que esta casa era dele e colocou um homem para morar aqui.

O homem era sem-vergonha. Eu vim aqui e entrei no banheiro... Quando ele

chegou, falou que podia me processar, podia falar que eu tinha furtado. Então,

entrei para pedir minha casa, tive que pagar oficial de justiça e foi uma luta.

Naquele dia, me senti muito humilhada. Depois que ele saiu, aluguei minha casa e

com o dinheiro, pagava lá em Silvestre. Assim fiquei por um ano... Eu tinha que

alugar minha casa para refazer minha renda.

Quanto à ação de conversão em divórcio, a mulher “E” relatou que: não tinha volta,

não queria voltar mais. Eu não gostava dele.... Por sua vez, a situação financeira motivou a

mulher “F” a ingressar com a ação de execução de pensão: minha situação financeira não era

muito boa, por isso precisava de ajuda. Eu entrava com ação, fazia acordo e ele deixava de

pagar. Durante o tempo que ele recebia auxilio acidente do INSS, ele pagou a pensão, mas

quando deixou de receber, não pagou mais.

A mulher “G” ingressou com ação de execução de pensão e com a ação de conversão

de separação em divórcio. A primeira, porque ele não tava pagando pensão e a segunda,

porque já estava separada mesmo, porque faz a gente sentir mais livre, porque infelizmente

não dá para voltar a ser solteira. A mulher “H” também ingressou com as mesmas ações.

Quanto à ação relativa ao não-pagamento da pensão ela justificou: Pensei comigo que não sou

obrigada a criar filho sozinha. Ficou que ele tinha que pagar 30% do salário mínimo. Voltei

lá para cobrar. Depois quis tirar a queixa, mas a Dra. Maria do Carmo falou que o dinheiro

é do menino.

Os alimentos dos filhos são irrenunciáveis. O Código Civil de 2002 consagra, no art.

1.708, o princípio da irrenunciabilidade aos alimentos, admitindo apenas que o credor não

exerça o direito.

Quanto à ação de conversão da separação em divórcio, a mulher “H” disse: pedi o

divórcio porque ele tá doido querendo casar. Assim vai me dar sossego se ele casar. Eu

também tô pretendendo.

27

Art. 244 – Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito)

anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes

proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente

acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente

enfermo (VADE MECUM, 2008).

20

Somente com o divórcio dá-se a dissolução do vínculo matrimonial. Com isso, o

divorciado pode contrair novas núpcias. A conversão da separação em divórcio está prevista

nos arts. 35 a 37, da Lei do Divórcio.

O descumprimento das cláusulas previstas no acordo da separação levou a mulher

“I” a demandar novamente o judiciário. Ela ingressou com ação de obrigação de fazer para

que o ex-marido cumprisse as obrigações assumidas:

Na partilha, abri mão de muita coisa. Ele ficou de construir minha casa, mas não

cumpriu tudo. Não deu acabamento e nem o registro. Até a casa ser construída, ele

tinha que pagar o aluguel e não pagou até hoje... Somente com o registro do

apartamento em meu nome vou ter segurança da casa ser minha.

Após a separação, o ex-marido da mulher “I” ingressou com ação de exoneração em

face do filho mais velho, posto que o mesmo havia completado 18 anos. Esse fato foi relatado

pela mulher “I”, como uma situação que a marcou no processo de separação como um todo:

Eu não esqueço quando ele tirou a pensão do meu filho. Eu não esqueço a revolta do meu

filho, porque ele ficou sem pensão e estava estudando e fazendo tratamento (medicamento

regulado). Quem requereu a conversão da separação em divórcio foi o ex-marido e casou-se

com a ex-funcionária do açougue do casal.

A mulher “J” foi quem mais lamentou perdas financeiras com a separação. Ela

entrou com ação de execução de pensão:

Ele pagava 10% do salário mais setenta reais. A advogada falou que ele tinha que

pagar até completar o valor dos atrasados, mas apesar de ter feito acordo ele não

pagou. Ele ficou com tudo. A casa que era nossa tá valorizada e ele me deu um

barraco no valor de R$1.200,00. Ele ficou com tudo, apesar de eu ter comprado

tudo.

Não me preocupo com a casa porque sei que vai ficar para os meus filhos. Ele ficou

mais de um ano sem pagar pensão. Ele nunca teve dó dos filhos. Posso dizer que

sempre fui pai e mãe dos meninos. A pensão é pouca, mas ajuda. Eu pensei em

deixar pra lá, mas fiquei sem trabalho...

De acordo com os relatos das mulheres e a natureza das ações propostas, os maiores

conflitos que motivam o ingresso com novas ações são relativos à escassez dos recursos. Fica

evidente que a limitação de recursos é fonte propícia para o conflito e, por conseguinte, a

estratificação, definida como uma distribuição ou retenção dos recursos de um modo desigual,

organiza e justifica comportamentos; criando e perpetuando desigualdades estruturais e

provendo estruturas de oportunidades diferenciadas entre os membros. Dessa maneira, o

cônjuge detentor da guarda, que suporta todas as obrigações e responsabilidades pela criação

e educação dos filhos, diante da falta de auxilio material, se vê numa posição de desigualdade

21

e vale-se do judiciário para sanar essa desigualdade e ver o pai compelido a cumprir com a

sua obrigação.

Não se pode deixar de considerar que, além dos recursos, outros fatores podem

contribuir para a instauração de novos litígios, como o desejo de findar definitivamente o

vínculo matrimonial para constituição de novos arranjos familiares, a mágoa pela

desconsideração com os filhos, o que representa o fim definitivo do projeto comum outrora

partilhado e, talvez, aqueles resquícios de raiva, mágoa e rancor, frutos dos conflitos que

ensejaram a separação, ainda não esquecidos.

4.2. Os motivos para a propositura de novas ações judiciais

Questionou-se ao público entrevistado quais os motivos para a propositura das novas

ações judiciais. De acordo com os dados apurados, a questão relacionada com as necessidades

materiais, ou seja, os sentimentos de insatisfação com questões materiais e, também, os

sentimentos de insatisfação com as relações mantidas com os ex-maridos levaram as

entrevistadas a ingressarem com ações judiciais no sentido de alcançar uma melhora na

qualidade de vida.

A mulher “A” relacionou o ingresso com as ações devido ao relacionamento com o

ex-marido. A mulher “B” justificou o ingresso com a conversão da separação em divórcio da

seguinte forma: eu pensei assim: volta não vai ter. Para mim, não tinha sentido ficar presa

numa pessoa. E, justificou o ingresso com a revisional de pensão porque a renda não

aumentou, em que pese ele ter sido condenado a pagar um porcentual sobre o salário, o

salário subiu duas vezes e ele não aumentou a pensão.

A conversão da separação pode ser consensual ou litigiosa. Na conversão consensual

não se exige audiência privada do juiz com os ex-cônjuges, para esclarecer as conseqüências

da decisão de buscar a conciliação. Essa exigência ocorre com a separação, pois nesta ainda

existem pendências a ajustar; enquanto no divórcio já estão aparadas as arestas. (RIZZARDO,

2005).

Na conversão litigiosa, procede-se a citação do outro cônjuge, que terá o prazo de 15

dias para contestar. A ação prosseguirá conforme o rito comum e próprio para as demais

ações. O cônjuge apenas teria motivos para contestar, caso no interregno de tempo após a

separação tenha ocorrido reconciliação ou que caso não tivesse transcorrido o prazo de um ano

após a separação.

22

Por sua vez, a mulher “C” justificou o ingresso com a execução do acordo para ele

pagar a casa e a conversão da separação em divórcio da seguinte forma: Entrei com os novos

pedidos porque esta casa não é minha. Quero construir uma casa neste lote aqui do lado, que

comprei, porque tenho que entregar essa casa para minha irmã de São Paulo para ela

terminá-la. Já a ação revisional de alimentos foi por que: Ele tava pagando muito pouco, não

dava pra nada.

A ação de revisão refere-se, na maioria dos casos, ao quantum da pensão alimentícia

fixado, posto que sujeito a modificação, de acordo com a variação socioeconômica das partes.

No caso em questão, a entrevistada relatou o aumento das necessidades por parte das filhas,

justificando-se, assim, a busca pelo aumento do quantum da pensão..

A mulher “D” foi taxativa: além de não estar dando atenção, também não estava

dando alimentação. Não cumpriu o que falou na frente do juiz que ia assumir. Então, foi por

causa da alimentação e do relacionamento.

A necessidade de refazer a renda justificou para a mulher “E” o ingresso com a ação

de execução do acordo para receber a casa: eu tinha que alugar minha casa para refazer

minha renda. E, para o ingresso com o pedido de conversão da separação em divórcio, disse

que: não tinha volta, não queria voltar mais.

A execução dos acordos feitos nos autos da separação, em regra, corre nos mesmos

autos. O juiz determina a intimação do réu para cumprimento da obrigação, podendo,

inclusive, fixar multa diária para o caso de inadimplemento.

A mulher “F” justificou o ingresso com a ação de execução de pensão da seguinte

forma: Foi por causa de minha filha. Para manter a saúde e a educação e, também, por ser

um direito dela.

A mulher “G”, que ingressou com ação de execução de pensão alimentícia e com a

ação de conversão da separação judicial em divórcio, relacionou a propositura dessas ações:

por causa da renda e por causa dos relacionamentos, para firmar novas relações.

Os relacionamentos e a renda também motivaram o ingresso, por parte da mulher

“H”, das ações de conversão de separação em divórcio e de execução da pensão alimentícia:

Relacionamentos. Porque tanto ele quanto eu temos novos relacionamentos.

23

A mulher “I” ingressou com a ação de execução da obrigação de fazer para ter

segurança da sua habitação: somente com o registro do apartamento em meu nome vou ter

segurança da casa ser minha.

A ausência de trabalho e renda motivou o ingresso da ação de execução de pensão

alimentícia por parte da mulher “J”: Ele ficou mais de um ano sem pagar. Ele nunca teve dó

dos filhos. Posso dizer que sempre fui pai e mãe dos meninos. A pensão é pouca, mas ajuda.

Eu pensei em deixar pra lá, mas fiquei sem trabalho.

Nesse contexto, a escassez de recursos ou insuficiência de renda foi um fator

preponderante para a proposição de novas ações judiciais, por meio de execução de pensão

alimentícia. Esses dados estão concernentes com a natureza jurídica do instituto da pensão

alimentícia, que é prover as necessidades básicas do alimentando. Nesse sentido, a explicação

de Cyrillo e Conti (2005, p. 1) é de que:

O direito aos alimentos, que deve ser compreendido no seu aspecto amplo, incluindo

não só a alimentação propriamente dita, mas também todos os demais bens que

satisfaçam as necessidades humanas básicas, garantindo assim a vida, tanto física,

como intelectual e moral, está consagrado no Código Civil em seus artigos 1.694 a

1.701.

O ordenamento jurídico já consagrou o direito de os filhos menores pleitearem a

seus pais recursos suficientes para fazer frente às suas necessidades básicas, caso

eles não estejam cumprindo esta obrigação, por tê-los abandonado ou por outra

razão qualquer. Os pais têm a obrigação legal de sustentar os filhos menores e estes

têm o direito de ser mantidos pelos pais até que possam fazê-lo por seus próprios

meios (CYRILLO e CONTI, 2005, p. 1).

Outro ponto determinante para o ingresso com novas ações está associado com o

relacionamento, principalmente em termos da ação de conversão da separação judicial em

divórcio, com vistas a uma maior liberdade e novas relações. Além desses domínios, também

foram citados: alimentação, habitação, saúde e educação.

O ingresso com as ações tem relação com dois dos três verbos considerados básicos à

vida humana, que são: ter, amar e ser (ALLARDT, 1995, apud HERCULANO, 1998). A relação

se dá com os verbos ter e amar. Com o primeiro, na medida em que se refere às condições

materiais necessárias ao atendimento das necessidades básicas mencionadas pelas

entrevistadas: renda, alimentação, habitação, saúde e educação. Já o segundo, amar, está

associado à necessidade de se relacionar com outras pessoas, que é a motivação da maioria

das entrevistadas ao requerer o rompimento definitivo do vínculo com o ex-marido.

24

5. CONCLUSÕES

Apurou-se que, após a separação judicial do casal, ainda persistem os conflitos entre

o casal. Quanto às novas situações conflitivas, que motivam o ingresso com novas ações

judiciais, pode-se afirmar a predominância das questões relativas a recursos. Em grande parte

dos casos estudados, a pensão alimentícia é utilizada para o orçamento familiar. Assim, diante

do não-pagamento, a escassez de recursos motiva o ingresso com nova ação. Trata-se do

exercício de poder por parte do ex-marido, que se vale da sua condição de estar longe da prole

para deixar o ônus de arcar com as despesas materiais com a detentora da guarda. E, a

demanda do judiciário por parte desta significa uma maneira de estabelecer a igualdade, por

meio da intervenção do Estado-Juiz que obriga o pai inadimplente a efetuar o pagamento da

pensão sob pena de prisão.

No entanto, não somente os recursos motivam as novas ações. Outros motivos que

impulsionaram aquela força motora para vencer a resistência de buscar o judiciário para tratar

de questões pessoais, como: questões de foro íntimo, derivadas do desejo de romper

definitivamente os laços com o ex-marido, algumas vezes pelo fato de ele ter constituído nova

família, outras pela vontade da entrevistada de se envolver sentimentalmente com outro

homem; como também a mágoa pela desconsideração com os filhos, por deixar o ônus apenas

com a detentora da guarda e em nada contribuir para o sustento material dos filhos; além

daquele resquício de sentimentos, frutos dos conflitos que ensejaram a separação, ainda não

esquecidos.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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26

DA POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO CONTRADITÓRIO E DO DIREITO DE DEFESA NA FASE PRÉ-PROCESSUAL 1

Leonardo Augusto Marinho Marques. 2

Erika Cristina Nunes.3

Wanderson Gutemberg Soares.4

RESUMO: Busca-se compreender, por meio do método jurídico-teórico, orientando-se

através do estudo de casos, visando abordagem dialética, a investigação preliminar no

processo penal, à luz dos princípios constitucionais do contraditório e do direito de defesa,

sob a perspectiva do modelo constitucional de processo, voltado para a promoção dos direitos

fundamentais. Entende-se que a incidência de tais princípios, na fase pré-processual, contribui

para a afirmação do investigado como sujeito de direitos e para a realização dos direitos

fundamentais no processo penal.

Palavras-chave: Modelo constitucional de processo; Inquérito Policial; Direitos

Fundamentais.

ABSTRACT: Try to understand, through the legal-theoretical method, guiding it through

case studies, dialectical approach to the preliminary investigation in criminal proceedings, in

light of the constitutional principles of adversarial proceedings and the right to defense, from

the perspective of model of constitutional process, towards the promotion of fundamental

rights. It is understood that the incidence of such principles, in the pre-procedure, contributes

to the affirmation of the investigated as a subject of rights and the realization of fundamental

rights in criminal proceedings.

Keywords: Model of constitutional process; police investigation; Fundamental Rights.

1. INTRODUÇÃO

A maioria dos autores de processo penal defende a inaplicabilidade do contraditório

e do direito de defesa na fase de investigação, por entender que a incidência desses princípios

inviabilizaria ou dificultaria a atividade da polícia judiciária na coleta de informações

mínimas sobre a autoria e a materialidade do fato. Inegavelmente, esse entendimento confere

primazia ao interesse público, atribuindo ao Estado plenas condições para investigar

determinada infração penal, em detrimento de eventuais direitos outorgados ao investigado.

1 Artigo resultante de pesquisa desenvolvida na PUCMinas, campus São Gabriel, no Programa de Iniciação

Científica Voluntária – PICV 2008/2009. 2 Advogado e Professor de Direito Processual Penal da PUCMinas.

3 Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas.

4 Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas.

27

Há também quem aponte a impossibilidade prática de se realizarem essas garantias,

sob o argumento de que a investigação precede a identificação da autoria. Desconhecendo-se

o autor, não haveria como assegurar o contraditório e o direito de defesa.

Mesmo sem enfrentá-los imediatamente, acredita-se que os obstáculos apontados

pela teoria sejam frutos de uma mentalidade inquisitória que vem prevalecendo na realidade

processual penal brasileira desde o período das Ordenações e que ainda se faz bastante

presente no Código de Processo Penal de 1941.

Esta mentalidade reforça o mito da busca da verdade absoluta, por meio de um

procedimento que concentra o poder e as funções nas mãos do Estado, reservando-lhe a

gestão da prova, com o objetivo de impedir a participação dos afetados e de eliminar qualquer

oportunidade de contestação ao poder. Nesse quadro, compreende-se a política de defesa

social, a concentração de funções, a atuação de ofício, a redução do investigado à condição de

objeto de investigação, a ausência do contraditório e o sigilo como características basilares do

método inquisitorial.

O problema diagnosticado é que grande parte dos autores brasileiros tem classificado

o sistema processual brasileiro como misto ou acusatório formal. Neste, a fase pré-processual

é pautada pela forma inquisitiva, enquanto a fase processual pela forma acusatória. Ocorre

que a manutenção do método inquisitivo na investigação preparatória representou um grande

golpe contra o método acusatório, restabelecido na França após a queda do Antigo Regime,

sob manifesta influência das idéias liberais.

Importante esclarecer que o golpe foi engendrado por Napoleão Bonaparte, logo que

ele assumiu o poder no início do século XIX. Ao ditador não interessa o processo penal

democrático compromissado com a promoção dos direitos fundamentais, razão pela qual se

retornou ao modelo processual que privilegia a concentração de poder. 5

O golpe consiste no fato da prova ser colhida antecipadamente no inquérito, sendo

depois introduzida no processo, para ser impugnada tardiamente pelo acusado sob manto de

garantias constitucionais tardias: presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, dentre

outros. Lopes Júnior elucida a farsa do sistema misto:

A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo

trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do

julgador pra imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas

fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada;

cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício

5 Cf. COUTINHO (2001)

28

imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação,

que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O

processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primeira

fase. (LOPES JÚNIOR, 2005, p. 170).

Sem dúvida, a aceitação do modelo misto entre os processualistas brasileiros tem

contribuído para a perpetuação do método inquisitório, dificultando a afirmação de direitos do

investigado no curso da fase preliminar.

Partindo, portanto, do modelo acusatório delineado na Constituição da República6,

procurar-se-á romper com a mentalidade inquisitiva do Código de Processo Penal, criando

condições para se compreender a incidência do contraditório e do direito de defesa na

investigação policial.

2. O INQUÉRITO POLICIAL E A PROMOÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Conhecida como fase pré-processual e/ou investigação preliminar, o inquérito

policial é, antes de tudo, o local em que há o predomínio do método inquisitivo no sistema

processual penal brasileiro.

As atividades exercidas na fase pré-processual são de extrema necessidade para o

processo penal, pois, é nessa fase, antecedente e primária, que se deve reunir os elementos que

irão justificar o processo ou o não-processo (hipóteses de arquivamento), já no contexto de

promoção dos direitos fundamentais.

Como o inquérito policial segue a lógica do sistema inquisitório e a Constituição da

República consagrou o modelo acusatório, necessário se faz promover uma interpretação

constitucionalmente adequada da investigação. Definitivamente, o inquérito policial precisa se

legitimar no horizonte dos direitos fundamentais.

Afinal, no Estado Democrático de Direito não é possível sustentar a primazia do

interesse público sobre o interesse individual, reflexo daquela velha oposição entre autonomia

pública e autonomia privada, originária da filosofia política7. Ao contrário, pensa-se,

atualmente, na existência de um ambiente abrangente de proteção aos direitos fundamentais.

Nesse ambiente, existe uma nova relação de reciprocidade e de complementaridade entre a

6 O Brasil adotou, constitucionalmente e de forma explícita, o sistema acusatório. Este, por sua vez, tem como

principais características: separação das atividades de acusação, defesa e julgamento; gestão das provas pelas

partes; imparcialidade do juiz; vedação da atuação de ofício por parte do Juiz; procedimento oral e público;

incidência dos princípios do contraditório e da ampla defesa; livre convencimento motivado do juiz. 7 Cf. Habermas (1997), Habermas (2002) e Habermas (2003).

29

perspectiva coletiva e a perspectiva individualizada. E, nesta última, é que reside a

possibilidade concreta de incidência do contraditório e do direito de defesa.

Inevitavelmente, esta nova realidade se projeta sobre a investigação preparatória.

Essa nova releitura sobre a tutela dos direitos fundamentais no processo penal exige que se

rompa com aquele antigo binômio segurança x liberdade. 8 Por certo, não são apenas esses

dois os direitos fundamentais que estão em jogo no processo penal. O direito à intimidade, à

privacidade, à imagem, à honra, ao sigilo telefônico, ao sigilo de correspondência, à

integridade física e moral, dentre tantos outros, que, também se inserem na realidade

processual penal, ao lado da segurança e liberdade, reclamando idêntica proteção, seja na fase

investigatória ou na fase processual.

É justamente nessa enorme perspectiva de promoção dos direitos fundamentais que

se pretende estabelecer a incidência do contraditório e do direito de defesa.

3. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E SUA APLICABILIDADE NA FASE PRÉ-PROCESSUAL

O Estado é o único titular do poder de julgar, aplicar e fazer com que se execute

penas. Mas não é esse, simplesmente, o seu papel. É atribuída ao Estado, primordialmente, a

proteção ao indivíduo.

Cabe frisar que as garantias e princípios constitucionais são válidos, pois vigentes,

existem juridicamente e isso os tornam de observância obrigatória, ou seja, os fazem exigíveis

e cogentes9.

A inteira submissão do acusado/indiciado face ao Estado, frente à fase de inquérito,

implica a adoção de um sistema penal autoritário. A democratização do processo ocorrerá

através do fortalecimento da participação e representação do indivíduo que ocupa o lugar

processual de sujeito passivo.

Para tanto, não se pode ter uma leitura e interpretação da fase investigativa/pré-

processual de forma desvinculada da Constituição. Deve-se evitar a inversão lógica,

paleopositivista10

.

8 Oliveira (2004).

9 Cf. Silva (2007).

10 Cf. Lopes Júnior (2005): “os paleopositivistas restringem a eficácia garantista da Constituição para fazer com

que esta entre na sistemática autoritária e separada do nosso CPP.”

30

Ressalte-se que não há que se falar em ordenamento jurídico infraconstitucional que

possa concorrer de forma horizontal com a Constituição. Todo ordenamento jurídico, seja ele

anterior ou ulterior à Constituição de 1988, estará submetido ao ordenamento constitucional,

onde terá sua principal fonte formal. Sua compatibilidade em relação à Constituição se dará

da forma vertical, posto que deverá se ater ao princípio da supremacia da Constituição11

.

Nesse sentido, o princípio do contraditório e o direito de defesa12

tornam-se itens

essenciais e primordiais na compleição de um processo constitucional que, verdadeiramente,

seja instrumento de efetivação dos direitos fundamentais.

A Constituição democrática que possuímos e os direitos e garantias fundamentais por

ela integrados frente ao Estado Democrático de Direito, se associam para que haja a

possibilidade de incidência e realização efetiva desses princípios no processo penal e,

consequentemente, na fase pré-processual.

É inconcebível pensar no exercício de qualquer das funções estatais que não tenham

como base e fundamento o respeito efetivo aos direitos fundamentais consolidados.

Entretanto, tais princípios e garantias são menosprezados diariamente pela prática viciada em

que estamos mergulhados, principalmente, quando observados desde a fase pré-processual,

passando pela persecução e no que esta resulta, excluindo-se de nosso cenário processual

penal a democracia que apresentam.

Assim, apesar de constitucionalmente previstos, princípios e direitos fundamentais

possuem, em sua maioria, conceitos abertos, o que permite que sua aplicabilidade seja

cerceada por doutrinas que, ao invés de buscar sua efetivação, a obstaculizam dando espaço

ao chamado “decisionismo13

” e “subjetivismo14

” jurídico-doutrinário, que buscam avaliação

por meio de valores.

Devemos nos ater ao fato de que, apesar de buscar a ordem e a unidade, o sistema

jurídico não é harmônico, de forma absoluta. Assim, por não ser imutável ou de fácil e

coerente adequação, não é possível que se exija uma perfeita conformação de suas normas.

11

Esse exercício efetivo dos princípios e garantias na atividade jurisdicional, como um todo, bem como na

aplicabilidade da lei, é derivado da superioridade da Constituição face, não só ao ordenamento jurídico, como,

também, ao Estado. 12

Derivados do princípio da igualdade processual e corolários do devido processo legal. 13

Fenômeno jurídico que supervaloriza a decisão (sentença), não se situa na norma ou em sua imperatividade. 14

Doutrina filosófica onde o sujeito é a fonte da verdade. Mas, tal verdade é individual, própria.

31

Um modelo de raciocínio apropriado seria o modo problemático15

que implica, não

na inexistência de um sistema, mas a existência de um sistema não rigoroso. A partir de uma

perspectiva democrática, o Estado Democrático de Direito pressupõe um ordenamento onde é

possível diversidade de aplicações quanto ao tradicionalmente imposto, ou, pelo menos, que

se discuta tais aplicações.

Contudo, grande parte do nosso Judiciário originou-se em escolas de direito baseadas

no paradigma liberal16

. E, por esse motivo, teimam na aplicação mecânica da norma.

Entretanto, na via procedimentalista da Constituição, sob a ótica de Fazzalari17

, adotada em

nosso país, o contraditório se apresentaria como principal elemento do processo, melhor:

como elemento definidor.

Sendo o contraditório e o direito de defesa garantias constitucionalmente previstas,

não se deve restringir seu campo de atuação por meio de meras interpretações legislativas ou

através de aplicações erroneamente horizontais da norma constitucional, do contrário, não se

estará diante de um processo constitucional democrático.

(...), é indispensável que os direitos fundamentais sejam efetivados, única forma de

permitir que a soberania popular se manifeste na sua integral inteireza. Num país de

excluídos como o Brasil a presente discussão ganha contornos críticos e bem

definidos: a defesa dos direitos fundamentais é o único caminho seguro para

consolidação da democracia. (CRUZ, 2001, p. 242).

O direito de defesa18

e o contraditório19

fazem com que o indiciado tenha efetiva

ciência dos atos praticados e participe da produção de elementos probatórios. Visam propiciar

ao investigado a possibilidade de produzir e acompanhar provas, de ter o acompanhamento de

defensor técnico e a possibilidade de, facultativa e pessoalmente, participar de atos, na fase

processual como na fase pré-processual. Além disso, poderá conhecer, claramente, a

imputação que lhe é feita, bem como ter liberdade de se manifestar, dentro das previsões

legais.

O que se pode observar é que, na prática, o direito de defesa se encontra prejudicado.

Afinal, quase não há atuação de defensor durante a fase de inquérito. As exceções se

apresentam quando a situação financeira do indiciado o permite constituir procurador. Na

esmagadora maioria, não há a presença de defensor público ou nomeação de defensor dativo,

15

Cf. Galuppo (2001), é um modo de raciocínio não-sistemático do aplicador, “em que o contorno fático do

caso interfere no próprio sentido das normas jurídicas.” 16

Cf. Cruz (2001). 17

Cf. Pellegrini (2003). 18

Cf. Lopes Júnior (2005): como poder correlato de ação. 19

Cf. Pellegrini (2003): definido como uma efetiva participação das partes na persecução processual e na

produção do provimento final.

32

mesmo para que presencie e defenda, formalmente, os interesses do indiciado ante ao

interrogatório policial, conforme previsão legal.

A efetiva aplicação das garantias constitucionais acaba por assegurar o acusado

frente à acusação, minimizando sua hipossuficiência frente ao Estado e permitindo equidade.

Possibilita, ainda, segurança jurídica não só ao acusado/indiciado, mas ao autor e à

coletividade, pois, acabaria por justificar ou impedir acusações com indícios insuficientes ou

não-razoáveis.

O processo nasce a partir da apresentação da denúncia do Promotor, devendo dispor

de requisitos, legalmente previstos, para que seja recebida em Juízo. E o seu instrumento

legal, aquele que instrui a denúncia e atribui a ela indícios de autoria e materialidade, mesmo

que não exclusivo, é o Inquérito Policial.

Tourinho Filho (2005) entende que a efetiva aplicação do contraditório na fase pré-

processual afetaria a investigação produzida pela polícia judiciária. Entende, ainda, que

quando a Constituição se refere ao processo administrativo, não estaria se referindo ao

inquérito policial, mas, sim, a um processo que tenha como resultado o conhecimento de

ilícitos administrativos, principalmente, devido à possibilidade de aplicação de uma punição.

Como se pode ver firmou-se, doutrinária e jurisprudencialmente, a idéia de que não

se aplicam, à fase de inquérito, os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Tal aceitação afeta o valor dos elementos obtidos em tal fase preliminar. Os

argumentos para não aplicação dos princípios aqui discutidos são: a natureza inquisitiva e

informativa do inquérito policial, bem como a natureza meramente administrativa do

procedimento. Este último, um dos principais, se firma na teoria de que não seria necessário,

em um simples procedimento administrativo, que o acusado se pronuncie a respeito dos fatos

contra ele imputados, por não resultar, tal procedimento, em decisão ou sentença que o possa

prejudicar/condenar. Contudo, segundo Cretella Júnior:

(...) processo designa entidade que, em essência, naturalmente, ou ontologicamente,

nada difere da que se designa por procedimento (Tito Prates Fonseca, Lições de

Direito Administrativo, p. 203, e Marcello Caetano, Manual... cit., p. 726), podendo-

se, quando muito, quantitativamente, denominar de processo o conjunto de todos os

atos e procedimento tão-só um ou um grupo desses atos. (CRETELLA JÚNIOR,

2004, p. 32).

Ainda, conforme Cretella:

(...) processo é o todo; procedimentos são as partes que integram esse todo. Dentro

de uma operação maior e global, contenciosa ou não, penal, civil ou administrativa,

que se desenvolva entre dois momentos distintos – o processo –, cabem outras

33

operações parciais ou menores – os procedimentos – que, em bloco formando uma

unidade, concorrem para completar a operação mais complexa, mencionada.

(CRETELLA JÚNIOR, 2004, p. 33).

Destarte, é equivocada a interpretação no que tange a aplicação do termo processo

administrativo. Além disso, claro é que, na fase investigativa, há a predominância das

atividades probatórias, pretendendo-se embasar futura e eventual ação penal. Apesar disso,

dissociou-se a imagem do "acusado", figurando apenas o "indiciado", por não se ter, ainda, a

identificação da autoria nem a denúncia formal. Questão meramente terminológica.

Nesse sentido é o entendimento de Lopes Júnior:

A postura do legislador constitucional no art. 5º, LV, foi claramente garantidora, e a

confusão terminológica (falar em processo administrativo quando deveria ser

procedimento) não pode servir de obstáculo para sua aplicação no inquérito policial.

Tampouco pode ser alegado o fato de a Constituição mencionar acusados e não

indiciados é um impedimento para sua aplicação na investigação preliminar. Sucede

que a expressão empregada não foi só acusados, mas sim acusados em geral,

devendo nela ser compreendida também o indiciamento, pois decorre de uma

imputação determinada. Por isso o legislador empregou acusados em geral, para

abranger um leque de situações, com um sentido muito mais amplo que a mera

acusação formal (vinculada ao exercício da ação penal) e com um claro intuito de

proteger também ao indiciado. (LOPES JÚNIOR, 2005, p. 245).

Assim, fazer separação entre processo e procedimento, ou limitar a aplicabilidade e a

efetividade de garantias e direitos fundamentais por questões relacionadas à interpretações

terminológicas, é ater-se à parte de um todo complexo. Nesse sentido, tal parte se apresenta

alheia ao todo que a complementa, separando fases que formam o processo em si, e que

possibilitam a formação de toda a instrução, criando a persecução processual e firmando o

convencimento do juiz para que se chegue ao provimento final: a sentença.

Por meio do raciocínio apresentado, torna-se necessário que se tenha uma conexão

entre a fase pré-processual e a fase processual como parcelas de um todo que, juntas, e de um

modo sincrético, possibilitem e desenvolvam a persecução processual, visando a satisfação

jurídica na sentença e, assim, seja possível a criação de segurança jurídica, não apenas numa

perspectiva geral, mas, também, vista pela ótica do iniciado/denunciado, em todos os

momentos processuais.

Não há, ainda, como se argumentar a negativa ao contraditório na fase pré-

processual, baseando-se no fundamento de que há participação do Ministério Público, atuando

como custos legis. Não desmerecendo a função (por lógico, posto sua importância e

necessidade), mas, valorando e tornando efetiva a participação da parte legítima, para atuar

em contraditório (posto ter interesse na futura demanda, passível de ser proposta, e,

34

consequentemente, no provimento final). Sob esta perspectiva, observemos os dizeres de

Cruz:

Também no discurso de aplicação imparcial do direito, a noção procedimental e

comunicativa das partes envolvidas torna-se base de legitimidade do Estado

Democrático. As pretensões juridicamente dedutíveis devem ser reciprocamente

reconhecidas pelos operadores do direito. A constituição e a democracia não serão

salvas por juízes e promotores travestidos de super-homem/mulher-maravilha

defensores da ética e da justiça. Ao contrário, a efetividade/legitimidade

constitucional encontra seu fundamento nos instrumentos processuais capazes de

realizar tais valores. O acesso à ordem jurídica, a eficácia da tutela jurisdicional, o

contraditório, a igualdade entre as partes, a fundamentação das decisões judiciais,

dentre outros princípios, são o fundamento de um processo jurisdicional

democrático, desde que unidos a uma perspectiva ética no discurso da aplicação

jurídica. (CRUZ, 2001, p. 227).

A produção de material de cunho probatório, de modo unilateral, na fase pré-

processual, é um exemplo da ausência do contraditório e, consequentemente, do direito à

defesa do indiciado. Com o objetivo de informar a acusação e de justificar o processo, tal

material é angariado durante a fase pré-processual e, na prática, confirmado na fase

processual, ganhando força e validade de prova. Nestes termos a acusação possui uma

vantagem substancial em relação à defesa, o que evidencia a desigualdade provocada pela não

aplicação do contraditório. Ora, há evidente desrespeito/ataque aos princípios, direitos e

garantias fundamentais se a acusação elabora todo o aparato probatório durante a fase pré-

processual, por meio de poderes estatais de polícia e, simplesmente, apresenta-o na fase

processual, onde é meramente confirmada.

Tomando por base os estudos estatísticos nos arquivos e nas publicações

especializadas do Judiciário, realizadas pelo doutrinador Alexandre de Moraes

temos que: 95% do processos criminais no Brasil, resultam de denúncia embasada

em Inquérito Policial. Por sua vez, os juízes, utilizam-no para receber ou rejeitar a

acusação; para decretar a prisão preventiva ou conceder a liberdade provisória; para

determinar o arresto, seqüestro e o confisco de bens, etc.; para decidir crimes graves,

como estupro, roubo, furto qualificado, estelionato, tráfico de drogas e contrabando,

esse último, o número chega a 100%. (ANDRADE, 2008, p. 04).

Partindo do pressuposto de que há uma disparidade, enorme, entre o indiciado e o

Estado, este último, investido na função administrativa investigativa, por meio do seu poder

de polícia, durante o inquérito policial/fase pré-processual, surge a exigência de um

tratamento que vise igualar os desiguais. Assim, ao indiciado deve ser concedido direitos e

garantias fundamentais, no caso específico, o contraditório e o direito de defesa, na fase pré-

processual, como exigência para uma igualdade formal e material.

Para que o processo penal trate o indiciado como sujeito, amparado por direitos e

garantias fundamentais, constitucionalmente previstos, tanto na fase processual como na fase

pré-processual, é essencial que se estabeleça a possibilidade de efetiva igualdade entre as

35

partes, e esta acontece quando o Estado (polícia judiciária e Ministério Público) e o indiciado,

sujeito de direitos, encontram-se em um mesmo plano processual, ou seja, como partes,

legitimamente, ativas em contraditório, possibilitando efetivo exercício do direito de defesa.

4. ESTUDO DE CASOS

É na análise de casos concretos, autos processuais, que se pode perceber o grande

problema acarretado ao processo penal pela inaplicabilidade dos princípios do contraditório e

do direito de defesa.

A manutenção do cárcere do indiciado/acusado, sem uma sentença transitada em

julgado, por exemplo, traz consigo um enorme prejuízo para a defesa ferindo os princípios em

questão, além, é claro, da presunção de inocência.

Nesse mesmo sentido, são as palavras de Ferrajoli:

(...) a custódia preventiva (...) pode ser considerada favorável somente por quem

considere o papel da defesa como obstáculo inoportuno e a investigação como

inquisição da parte. Contrariamente, dentro de uma concepção cognitiva e acusatória

de processo ela não só não é necessária, mas prejudicial à averiguação da verdade

por meio do livre contraditório. (FERRAJOLI, 2006, p. 448).

Analisando o processo nº 245.07.124.869-5, verificamos que o denunciado foi preso

no dia 13/07/2007, conforme se pode verificar nos autos:

AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO (fls. 02) 13/07/2007 (às 03:00

horas). (...) diante do fato foi dado voz de prisão em flagrante ao conduzido

presente, foi lido e resguardado os seus direito constitucionais e sua integridade

física. (SANTA LUZIA/MG, 2007a).

Este, somente deixou os cárceres após a sentença final, em 20/11/2007, ficando, ao

total, 131 (cento e trinta e um) dias preso, como é possível verificar na sentença abaixo:

SENTENÇA (fls. 109 a 115) 20-11-2007. Fundamentação (...) A autoria, no entanto,

não restou devidamente comprovada, uma vez que não existem nos autos provas

concretas e seguras de que o acusado trazia consigo as substâncias entorpecentes

apreendidas, bem como que ele tentou dispensa-las (sic), jogando-as debaixo do

assento do ônibus, ao avistar os policiais militares, que adentraram no coletivo. (...)

JULGO IMPROCEDENTE a denúncia para ABSOLVER P.A.O., (...)/Autorizo a

incineração da droga, observadas as cautelas legais./Custas pelo Estado./Expeça-se

incontinenti alvará de soltura./Após o trânsito em julgado, expeça-se alvará em favor do acusado para levantamento da quantia em dinheiro apreendida, conforme

Auto de Apreensão de f. 11 e Comprovante de Depósito judicial de f. 43,

restituindo-lhe, ainda, os vales transportes, mediante termo nos autos. (...). (SANTA

LUZIA/MG, 2007b, grifo nosso).

É possível, ainda, perceber que o indiciado/acusado respondendo a todo o processo

preso, teve direitos e garantias fundamentais violados, sendo, ao final, absolvido por falta de

provas.

36

A presunção de culpabilidade, fato este recorrente, pode, também, ser observada, nos

autos do processo nº Processo 245.07.124.504-8, na qual o indiciado/acusado sofreu enormes

prejuízos advindos do descumprimento de norma constitucional. Vejamos:

AUTOS DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO E DE APREENSÃO EM

FLAGRANTE ATO INFRACIONAL. (fls. 02) Aos 12 de junho de 2007, às

02h22min, nesta Cidade de Santa Luzia/MG, (...) compareceu com o CONDUTOR

DO FLAGRANTE A.R.R., Policial Militar (...). Que confirma o inteiro teor do

BOPM (...) ao passarem pela Rua (...), depararam com os elementos ora

identificados como E.F.J., B.J.O. e F.B.O. em atitude suspeita; (...); QUE, diante dos

fatos os menores foram apreendidos e o maior preso em flagrante (...). (SANTA

LUZIA/MG, 2007c).

O caso demonstra que o indiciado/acusado fora preso no dia 12 de junho de 2007, e

que durante toda a fase pré-processual e fase processual foi mantido em cárcere.

SENTENÇA (fls. 79 a 82) 30-08-2007 (...). Assiste razão ao Ministério Público e à

Defesa quando pugnam pela absolvição do acusado (...). Assim, o contexto

probatório não deixa a certeza da prática do crime, razão pela qual o acusado deve

ser absolvido. (...) CONCLUSÃO (...). Ao exposto, JULGO IMPROCEDENTE a

denúncia para ABSOLVER E.F.J., qualificado nos autos, da imputação que lhe foi

feita na peça acusatória, nos termos do art. 386, IV, do Código de Processo Penal.

(...). Expeça-se competente alvará de soltura. (...). (Santa Luzia/MG, 2007d).

A garantia da liberdade, prevista na constituição, somente foi conquistada após a

sentença de absolvição por falta de provas e a expedição do respectivo alvará de soltura.

Assim, nesse caso, o indiciado/acusado ficou preso por 80 dias, sendo ao final absolvido.

Alguns poderão dizer que, oitenta dias preso é tempo razoável. Mas se considerarmos que a

Constituição de 1988 garante a liberdade para todos, até que a sentença esteja transitada em

julgado, e que as condições das penitenciárias brasileiras são péssimas, a simples manutenção

do indiciado/acusado nos cárceres é um dos maiores prejuízos que um sujeito pode sofrer.

A violação a direitos e garantias fundamentais é gritante e o juiz, que deveria ser o

principal garantidor de tais direitos, previstos constitucionalmente, acaba por causar mais

embaraço na sua preservação.

Vejamos um despacho de homologação da prisão em flagrante delito:

DESPACHO (fls. 07) “(...) ratifico a prisão em flagrante de P.A.O., por infringir o

contido no Art. 33 da Lei 11.343/06, considerando a quantidade da substância

arrecadada, o alto valor em dinheiro em poder do conduzido com procedência

duvidosa, e o horário em que o mesmo fora encontrado no interior de um coletivo.”

(SANTA LUZIA/MG, 2007e).

Observemos o seguinte: o despacho de homologação citado, faz às vezes de

sentença, antes mesmo da devida instrução processual. Assim, fere vários princípios e

garantias constitucionais. Dentre eles: o contraditório e o direito de defesa, em questão, e,

consequentemente, o devido processo legal. Se não vejamos: ao afirmar que o conduzido

37

infringiu o tipificado no art. 33, da Lei nº 11.343/06; ao afirmar que o valor em dinheiro

apreendido em poder do conduzido era de origem duvidosa; e, finalmente, ao basear a

veracidade das alegações policiais no horário em que o conduzido se encontrava dentro do

ônibus coletivo (22:00 horas, conforme se depreende, inclusive, da denúncia). De acordo com

o art. 5º, da CR/88, em seu inciso LIV, temos que o conduzido, enquanto sujeito de direitos,

não será tratado como culpado, até que se prove o contrário. Desse modo, entende-se como

ilegal a primeira fundamentação que homologa a prisão em flagrante do caso ora estudado.

Outro fundamento duvidoso, o segundo, afirma ser de origem duvidosa o valor em dinheiro

em seu poder. Contudo, mesmo que o fosse, “ninguém é obrigado a produzir provas contra si

mesmo”, e, em sendo assim, o conduzido poderia ter se recusado a responder à pergunta

relacionada a origem do dinheiro ou, até mesmo, calar-se.

Por último, no que tange à terceira fundamentação apresentada, é absurda, posto ferir

o direito a liberdade, por limitar o trânsito dos cidadãos, seu direito de ir e vir, no horário em

que bem lhe provier.

A fundamentação para homologação da prisão em flagrante fere, também, o princípio

da imparcialidade do juiz, tendo em vista o fato de, de forma clara, demonstrar que considera

o conduzido culpado do fato tido como criminoso. Por fim, cabe ressaltar que, em relação ao

caso especificado, o acusado foi absolvido.

Outra característica marcante é a fundamentação da denúncia tendo por base o

inquérito policial.

Denúncia (fls. I a IV), em 26/07/2007. Em face de P.A.O., vulgo “PEDRÃO”, pelo

art. 33, caput, da lei nº 11.343/2006. Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, na noite de 12 de junho de 2007, por volta de 22:00 horas, no interior

de um ônibus que se encontrava na Avenida Antônio de Pinho Tavares, Bairro

Cristina, em Santa Luzia/MG, o Denunciado trazia consigo substância entorpecente

sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.”

(SANTA LUZIA/MG, 2007f, grifo nosso).

O caso acima, como na maioria das vezes, demonstra que os autos de inquérito

policial, fundamentam e instruem a denúncia oferecida pelo Ministério Público. Assim,

contraria o que vários autores afirmam: tratar o inquérito policial de “mero procedimento

admistrativo”, sem nenhuma finalidade específica. Podemos perceber a contradição existente

entre a teoria e a prática, também, no termo de interrogatório, no termo de oitivas das

testemunhas e na sentença:

TERMO DE INTERROGATÓRIO (fls. 89 e 90) 1-10-2007. (...) Presente o

Defensor nomeado para o ato Dr. J.M.O. (...)./Presente, o Promotor de Justiça Dr.

C.E.D.P. (...) quesitos obrigatórios/2ª PARTE (...): que os fatos narrados na

38

denúncia não são verdadeiros; que confirma seu depoimento prestado em sede policial (...). (SANTA LUZIA/MG, 2007g, grifo nosso).

No mesmo sentido é o termo de oitiva de testemunha, processo nº 245.07.124.869-5:

“TERMO DE OITIVA DE TESTEMUNHA (...) 2ª TESTEMUNHA DA DENÚNCIA (fls.

93) 11-10-2007. (...) que confirma seu depoimento prestado em sede policial (...).”

(SANTA LUZIA/MG, 2007h, grifo nosso).

Essa mesma lógica segue a sentença, processo nº 245.07.124.504-8:

SENTENÇA (fls. 79 a 82) 30-08-2007 (...). A autoria, por sua vez, não restou

comprovada, uma vez que não existem nos autos provas concretas e seguras de que

o acusado estava, de fato, exercendo o comércio de substâncias entorpecentes no

local. O contexto probatório carreado para os autos mostra que o acusado, não

obstante estar na companhia dos adolescentes infratores, estava comprando bombons

no local onde fora abordado, (...). (SANTA LUZIA/MG, 2007i, grifo nosso).

A validação da fase do inquérito policial, também, está presente nas alegações finais

do Ministério Público, vejamos:

ALEGAÇÕES FINAIS DO MP. (fls. 116 a 18) 16-01-2007. (...). A autoria foi objeto de confissão tanto em fase policial como em interrogatório judicial, amparada perfeitamente pelos depoimentos das testemunhas. (...). (SANTA

LUZIA/MG, 2007j, grifo nosso).

ALEGAÇÕES FINAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO (fls. 115 a 120) 09-05-2008.

(...) A confissão do réu está em harmonia com as demais provas nos autos, em especial com as declarações das testemunhas ouvidas na fase inquisitorial. (...). Diante do exposto, o Minístério Público pugna pela CONDENAÇÃO do acusado

(...). (SANTA LUZIA/MG, 2008, grifo nosso).

Destarte, observemos que as provas corroboradas em fase de inquérito policial,

permeiam o processo penal e sua instrução, sendo praxe processual a simples leitura do que

foi dito em sede policial, seguida da pergunta: “Você confirma o depoimento prestado na

Delegacia?”; obtendo-se como resposta: “sim” ou “não”; e acrescentando-se ao Termo: “(...)

que confirma seu depoimento prestado em sede policial (...)” integralmente ou parcialmente.

Ressalte-se que, em sede policial, o depoimento é o momento em que não se encontram

presentes o contraditório e o direito de defesa e que, em sua esmagadora maioria, não se tem a

presença de defesa técnica, resultando em uma cruel supressão de direitos e garantias

fundamentais.

Assim, verificamos que é no decorrer da fase procedimental, que se percebe a

importância da fase preparatória para o processo como um todo. O inquérito policial visto

como um fim em si mesmo, não demonstra a importância desta fase e o prejuízo que causa ao

interessado, principalmente, quando há a negação da aplicação dos princípios e garantias

fundamentais.

39

Os reflexos do inquérito policial, que estão presentes em toda a fase processual, não

deixam dúvidas sobre a magnitude desse instrumento probatório de acusação. A análise do

inquérito policial demonstra, de forma clara, que a fase pré-processual tem o sentido de

conduzir e instrumentalizar a fase processual. A oitiva de testemunhas, ocorrida nessa fase,

tem como fundamento a legitimação do ocorrido em sede de inquérito, buscando acrescer

toda a prática probatória, contudo, de modo, originalmente, inquisitorial. E é nesse sentido

que os princípios constitucionais ganham um contorno diferenciado, exigindo uma efetiva

aplicação, também, na fase investigativa.

CONCLUSÃO

Com a Constituição de 1988, a manutenção do Código de Processo Penal de 1941 no

ordenamento jurídico pátrio desafia a nova ordem constitucional vigente, qual seja: a de que o

processo penal deve passar, necessariamente, pelo filtro da Constituição de 1988 para poder

atingir o seu objetivo primordial, que é a efetiva garantia dos direitos fundamentais previstos.

Assim, devemos ter a relação entre o processo penal e a Constituição, considerando-se aquele

como um instrumento que garanta a aplicação dos direitos e garantias fundamentais previstos

nesta, tornando-se um processo penal constitucional e, consequentemente, democrático.

Assim, torna-se evidente e necessária a democratização do processo penal, em seu

todo.

Com a efetiva incidência do contraditório e do direito de defesa, visando respeitar o

indiciado/investigado como indivíduo, e não mero objeto de investigação, teremos

resguardados os direitos e garantias fundamentais e o status de sujeito de direitos durante o

inquérito policial.

Tal incidência poderá ser compreendida como um direito/ônus processual para o

indiciado, a partir de uma correta interpretação do art. 5º, inciso LV, da Constituição de 1988,

bem como de uma análise da fase pré-processual por meio da perspectiva problemática e

sincrética do processo penal.

Desta forma, pensar a aplicabilidade e a incidência dos princípios do contraditório e

da ampla defesa requer, antes de tudo, abandonar as influências de um Estado autoritário e de

uma doutrina utilitarista; requer, ainda, consolidar a escolha por um Estado Democrático de

Direito com concepções pluralistas, atribuindo ao indiciado a condição de sujeito de direitos,

40

além de afirmar a função do processo penal como um instrumento de limitação do poder

estatal e ao mesmo tempo garantidor dos direitos e garantias fundamentais.

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SANTA LUZIA/MG. 1ª Vara Criminal e da Infância e Juventude. Processo criminal de nº

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294.

43

ESTADO DE EXCEÇÃO E CRÍTICA AO PARLAMENTARISMO EM CARL SCHMITT

Ramon Mapa da Silva1

Daniel Pereira Delvaux2

RESUMO: O objetivo do presente artigo é fazer uma análise do Estado de Exceção em Carl

Schmitt. Utilizando-se das teorias de Schmitt, serão abordados aspectos sobre estado de

exceção, decisão política e soberania. A crítica de Schmitt ao parlamentarismo liberal será

também analisada para a compreensão da soberania na modernidade tardia e do uso do direito

enquanto técnica.

Palavras-chaves: Estado de exceção, parlamentarismo, soberania.

ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the state of exception in Schmitt. Using the

theories of Schmitt, aspects will be addressed on the state of exception, sovereignty and

political decision. Schmitt's critique of the liberal parliamentary system will also be examined

for the understanding of sovereignty in late modernity and the use of law as technique.

Keywords: State of exception, parliamentary system, sovereignty.

INTRODUÇÃO

O Estado de Exceção é o momento extremo onde não mais existe o direito, mas

prevalece a decisão. Esse conceito limite tratado por Schmitt em “Teologia Política”, e mote

principal de sua análise da soberania, será aqui abordado com o intuito de estimular o debate

acerca da situação da soberania nas atuais democracias liberais, contribuindo para a discussão

sobre o estado de exceção, o conceito de soberano e de soberania, bem como o poder de

decisão como característica do político.

Tendo como base os escritos de Schmitt, esses aspectos polêmicos serão tratados

aqui com o intuito de analisar e demonstrar o que Schmitt estabelece como essencial: a

exceção como fundamento da soberania.

O Parlamentarismo liberal e o problema da homogeneidade e integração nacional

1 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC – MG),

Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC,

Professor do Curso de Direito da UNIPAC de Itabirito e da Faculdade Dinâmica de Ponte Nova. 2 Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica de Ponte Nova.

44

Penso que as expressões lex civilis e jus civile, quer dizer, lei e direito civil, são

usadas promiscuamente para designar a mesma coisa, mesmo entre os mais doutos

autores, e não deveria ser assim. Porque direito é liberdade, nomeadamente a

liberdade que a lei civil nos permite, e lei civil é uma obrigação que nos priva da

liberdade que a lei de natureza nos deu. (Hobbes, 2003, p. 246).

Na teoria hobbesiana, da impossibilidade de obedecer às regras inatas, aos ditames

da razão, às Lex naturalis, o homem cria o Estado, o Deus artificial e mortal3, que lhe imporá

um conjunto de leis positivadas. De acordo com Santos (2007), na concepção de Hobbes, a

justiça é um valor presente na razão humana, que após a criação do Estado, exerce um papel

mantenedor e decisivo, permitindo a estabilidade dos pactos entre os homens. Segundo

Schmitt, a formação do Estado legal positivista não se dá como tipo histórico até o século

XIX, onde o “pensamento de Hobbes penetra e atua eficazmente no Estado legal positivista

do século XIX, mas isso só se realiza de uma forma que poderíamos chamar de apócrifa”`4

(Schmitt, 2004, p.70). Esse Estado do século XIX é o Estado legiferante que assiste à

derrocada do político, como veremos à frente. O estado natural exposto no Leviatã por

Hobbes é um Estado sem lei e o estado civil é um estado de paz justamente porque é jurídico.

Isso leva às ideias de Schmitt sobre a formação e função do Estado levantadas tanto em O

Conceito do Político como em o Nomos da Terra (Nomos der Erde). Assim como para

Hobbes, para Carl Schmitt os Estados surgem para evitar uma situação de “guerra civil

mundial”.5 Tal situação, segundo Schmitt, historicamente quase teve lugar com as disputas

confessionais provenientes da Reforma Protestante. Uma vez que a Igreja não mais conseguia

conter os levantes e os conflitos o Estado toma para si essa função e se torna o garantidor de

um pacto de “não-agressão” entre os envolvidos nas disputas confessionais:

Com a crise da autoridade da Igreja decorrente do movimento da Reforma, a questão

da justa causa se transforma em um fator de exacerbação da inimizade confessional

e de desencadeamento de uma violência crescente. A ordem do Estado moderno

teria sido uma resposta às conseqüências anárquicas e desagregadoras dos conflitos

religiosos dos séculos XVI e XVII. A afirmação do monopólio do direito de guerra

por parte do Estado implicou despojar os grupos em conflito dos princípios de

3 Esse ser artificial recebeu de Hobbes o nome de Leviatã, criatura da mitologia judaico-cristã citada no livro de

Jó como “o mais poderoso dos filhos do orgulho”, e que só possuía Deus como força acima de si. Schmitt

dedicaria um livro à análise do Leviatã como símbolo político, considerado por Habermas sua obra de maior

expressão (prefácio ao Conceito de Político, Del Rey Editora, 2009) 4 Ao termo apócrifa, podemos nos referir a algo sem autenticidade ou não provado.

5 Tal conceito é inserido por Schmitt no texto “Teoria do Partisan” de 1963, segundo Agamben (2004: 13) no

mesmo ano Hannah Arendt utiliza o mesmo termo em “Sobre a Revolução”. Schmitt usa a ideia de Guerra

Civil Mundial para explicar os novos tipos de conflito que estariam sendo criados para substituir os conflitos

do modelo clássico amigo x inimigo que estaria deixando de existir. É a guerra contra o inimigo absoluto. Em

uma das passagens Schmitt diz: “No ano de 1914, os povos e governos da Europa entraram cambaleantes na

primeira guerra mundial sem uma inimizade real. A inimizade real só surgiu a partir da própria guerra, que

começou como uma guerra estatal convencional do Direito Internacional europeu e terminou como uma

guerra civil mundial da inimizade revolucionária entre classes. Quem irá impedir que, de forma análoga, mas

infinitamente mais intensa, surjam inesperadamente novas espécies de inimizade, cuja extensão provoque

manifestações inesperadas de um novo caráter partisan? SCHMITT (2009: 243)

45

legitimidade mutuamente excludentes que cada um deles reivindicava na luta contra

o seu adversário. Com a soberania estatal, se constitui uma instância de decisão e

ordenação da vida coletiva, que pretende ter um caráter último nos limites de um

espaço circunscrito e, com isso, exclui, no interior desse âmbito, todas as decisões e

ordens públicas alternativas. (FERREIRA, 2008:332)

Contudo, Schmitt chama atenção para o fato de que o Estado no fim da modernidade,

e, sobretudo, o Estado contemporâneo, vem, paulatinamente, perdendo sua capacidade de

garantir a paz. Isso porque para que o Estado consiga atingir seus objetivos de manutenção da

paz antes é preciso lidar com a ameaça real e constante de guerra. Tal decorre do fato de que a

existência do Estado pressupõe a existência do Político, e, na lição de Schmitt, o critério

fundamental do político é a separação amigo x inimigo, que somente se sustenta perante a real

possibilidade de guerra.6 A substituição desse critério político pelo critério “apolítico” de

“humanidade” significa, na obra do pensador de Plettemberg, o fim do político, e o fim da

soberania estatal, uma vez que o soberano não mais governa, já que não há mais decisões

políticas a serem tomadas, somente posições gerenciais diante do aparato estatal, uma vez que

o agrupamento amigo x inimigo não existe se todos forem colocados como iguais na forma

maior da humanidade. De fato, sem a separação amigo x inimigo, critério essencial do

político, a soberania, enquanto fator essencialmente político, deixa de existir.7

No período entre guerras o parlamentarismo vive uma profunda crise em toda

Europa, especialmente na Alemanha, Itália e Espanha, e é nessa crise em que Schmitt escreve

a parte mais polêmica de sua vasta obra. Não aceita a crítica fundada na prática do

parlamentarismo (argumento do mal menor) como apregoada em Capitant (LE BRAZIDEK:

2002) e trava a discussão em seus princípios. Uma democracia que descarta o povo das

decisões parece algo ilógico. A única fonte de legitimidade em um regime democrático é a

vontade popular. Na crise ficava claro que no sistema parlamentar os representantes

representavam mais o partido que o povo. Era um governo “do povo” por notáveis. Com a

multiplicação dos partidos formam-se os governos de coalizão, onde estes não assumem seus

atos sendo politicamente irresponsáveis, assegurando impunidade frente aos eleitores. O

parlamentarismo acaba sendo uma fachada do governo dos partidos.

6 Schmitt insiste que aceitar a possibilidade da guerra como fundamento do político, uma vez que pressuposto

para o agrupamento amigo x inimigo, não é fazer apologia da guerra: “A guerra é apenas a realização extrema

da inimizade. Ela não precisa ser nada de quotidiano, nada de normal, tampouco precisa ser percebida como

algo ideal ou desejável, tendo, antes, que permanecer existente como possibilidade real, na medida em que o

conceito de inimigo conserva seu sentido. (SCHMITT, 2009:35) 7 De fato, um agrupamento amigo x inimigo que envolvesse a humanidade como um dos pólos só poderia ter

lugar contra “inimigos da humanidade”, como ocorre na, indevidamente chamada, guerra ao terror. A questão

é que, para que uma guerra nessas condições realmente seja possível, os inimigos da humanidade não podem

ser considerados como humanos, já que, se tal ocorresse estariam inclusos no pólo da humanidade e o guerra

não se justificaria.

46

A defesa de Schmitt de um governo baseado na vontade popular é sensivelmente

distinta do governo democrático liberal baseado no voto e na atuação descontrolada dos

partidos. De fato, em Schmitt uma ditadura pode, e segundo ele, em verdade é, mais

democrática que um governo parlamentarista partidário. Novamente isso decorre da

concepção do político como baseado no agrupamento amigo x inimigo. Uma vez que o

confronto entre tais pólos é público, e envolve os contingentes populacionais dos opositores,

uma unidade entre aqueles que se posicionam em qualquer um dos lados nasce. Essa unidade

possibilita uma vontade popular forte, baseada na homogeneidade do povo que vive a

realidade política. Um ditador representaria melhor essa homogeneidade que um governante

eleito pelo sistema partidário e que tivesse que governar atendendo aos ditames do legislativo

parlamentar. Os partidos que compõe o poder legislativo representam o ideal liberal da

legitimação pelo discurso e defendem interesses distintos dos interesses populares. O

constante conflito de interesses dentro do sistema parlamentar faz ruir a homogeneidade

fundamental para um governo realmente democrático. Ao invés de um agrupamento amigo x

inimigo clássico surgem diversos adversários privados dentro do próprio país, minando a

unidade nacional e impossibilitando o governo de atuar realmente, abrindo espaço para uma

guerra civil. O discutir perpétuo que caracteriza o sistema parlamentar liberal engessa

qualquer possibilidade de decisão, impossibilitando, por conseguinte, a existência de

soberania real. Ademais, a forma parlamentar, que coloca o poder na mão do legislativo

elegeu a lei como forma de legitimação par excellence, gerando o que Schmitt chama de

Estado Legiferante:

Como “Estado legiferante”, designa-se, nesse aspecto, um determinado tipo de

Estado que tem por característica ver a suprema e decisiva expressão da vontade

comum residir em normatizações que aspiram a ser Direito e, por essa razão, exigem

necessariamente determinadas qualidades, às quais se podem subordinar, por

conseguinte, todas as outras funções, questões e áreas públicas específicas. Na

realidade, desde o século XIX, o termo “Estado de Direito” passou a ser entendido

nos países do continente europeu apenas como referência a um Estado legiferante,

mais precisamente ao Estado legiferante parlamentar. A posição destacada e central

do Parlamento partia do princípio de que ele, em sua qualidade de “corporação

legiferante”, compusesse as supramencionadas normatizações com toda a dignidade

do législateur. (SCHMITT, 2007:2)

Em tal Estado a exceção não pode existir, uma vez que todas as questões públicas

precisam ser previstas por leis gerais. Ou a decisão que versaria sobre a exceção estaria

prevista no ordenamento, o que faria que a exceção perdesse seu caráter de imprevisibilidade,

ou essa decisão não seria considerada jurídica. Em verdade, nem mesmo política, uma vez que

o Estado pela visão legalista nada mais é que a corporificação do ordenamento jurídico. Ora,

se, como quer Schmitt, a exceção em política é análoga ao milagre na teologia, um evento

47

inesperado, irrepresentável na ordem comum das coisas, e que, uma vez exaurido restaura a

própria ordem comum que rompera (em Schmitt é a partir do eventual, do especial, do

excepcional, que podemos compreender o quotidiano, o geral, o comum) sua positivação pelo

ordenamento esvazia esse caráter excepcional, privando-lhe de sentido. Como nos mostra

Agamben, “o estado de exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter

forma legal” (AGAMBEN, 2004:12). De fato, o estado de exceção é o momento onde o

direito é obrigado a lidar com a vida, na sua complexidade extremada que não pode ser

reduzida a nenhuma normatividade. Por isso o positivismo, iminentemente formal e desligado

da existência real do direito não reconhece a exceção. O positivismo jurídico, por não aceitar

a exceção como algo jurídico, uma vez que afeito unicamente a normatizações gerais é,

incontornavelmente, contrário à soberania e incapaz de compreender o fenômeno jurídico em

toda sua profundidade:

Max Planck ha demonstrado cómo el positivismo de las ciencias naturales, em su

interés por alcanzar una seguridad incondicionada solo tiene em cuenta la impresión

de los sentidos y, en consecuencia, no puede distinguir las percepciones engañosas e

ilusorias de las otras; por eso en una física positivista no caben ilusiones de los

sentidos. El destino del positivismo de la ciencia del derecho, interesado solamente

em la seguridad y en evitar la arbitrariedad subjetiva, tiene cierta semejanza com

esse mismo hecho. Si falla la normalidad de la situación concreta que la norma

positiva presupone, pero que, si se considera positivo –jurídicamente, es

imperceptible, entonces caería con ella posibilidad firme, previsible e inquebrantable

de aplicación de la norma. También la “justicia de la positividad”, de la que habla

Erich Jung, cesaría. Sin el sistema de coordenadas de un orden concreto, el

positivismo jurídico no consigue distinguir entre justicia e injusticia, ni entre

objetividad e arbitrariedad subjetiva. (SCHMITT, 1996:44)

Como vimos até o momento, Schmitt critica o Estado liberal em três momentos: em

primeiro lugar no abandono da forma política, caracterizado pela substituição do agrupamento

amigo x inimigo pelo conceito apolítico de humanidade, depois a forma legalista de

fundamentação própria do Estado Legiferante, e, por último, a incapacidade desse Estado

apolítico e legalista de lidar com a exceção, pressuposto da soberania. A essa altura é

fundamental recordarmos que, o soberano, em Schmitt, representa a vontade do povo, e é

capaz de manter a integridade da nação apesar das ameaças constantes representadas pelo

pluralismo, que encontra na forma partidária a via para minar a integração política e a

soberania.

O fato de o sistema parlamentar se basear no voto popular para legitimar a

investidura de seus representantes não afeta a crítica de Schmitt. Segundo ele o voto nada

mais é que uma vontade privada que não coincide, necessariamente, com o melhor para a

nação. Um amontoado de vontades privadas não constrói uma vontade pública por serem de

naturezas claramente distintas. Ao governo da maioria imposto pela forma liberal de agir

48

“político”, Schmitt opõe o governo de todos, baseado na vontade popular homogênea

representada pelo soberano que exerce uma função de real integração política:

Carl Schmitt afirma ainda que o presidente do Reich não representa apenas um

poder neutro, mas tem também uma função de integração política nos termos de

Rudolf Smend, pois representa o Estado em contraposição ao pluralismo do

Parlamento. A unidade política do Estado, para Schmitt, está representado pelo

presidente, eleito por toda a nação. (BERCOVICI, 2009:78)

O presidente do Reich agiria de forma neutra, uma vez que independente dos

partidos, não beneficiando ou atendendo nem a um nem a outro. Aqui reside mais uma crítica

à forma positivista de se fazer direito. Kelsen diz que a objetividade e neutralidade da Teoria

Pura do Direito podem ser vistas no fato de a mesma ter sido acusada de legitimar posições

das mais discrepantes, como a nacional socialista e a liberal. Contudo, não é o servir a todos,

mas o não servir a ninguém que caracteriza a neutralidade.

Schmitt via com péssimos olhos o pluralismo político de sua época como uma

desintegração do Estado. A autoridade estatal estaria sendo usurpada por poderes outros,

tornando impossível qualquer integração política minimante sólida. De Popitz, Schmitt

empresta o termo policracia:

Essa situação foi chamada por Popitz de policracia, com a qual se encontra

qualificada de forma sumamente acertada um fenômeno de características especiais

que, embora esteja estreitamente ligado ao pluralismo de nosso sistema político, não

é absolutamente idêntico a ele. Na economia publicada Alemanha, reina hoje uma

“pluralidade quase ilimitada de entes detentores de vontade da mais variada espécie

e qualificação, não suficientemente ligados entre si”. (SCHMITT, 2007:134)

Em 1921, Schmitt publica o ensaio “A Ditadura” (Die Diktatur), em que enfatiza o

papel do Presidente do Reich (Reichprasident) na recém fundada República de Weimar, no

qual o soberano teria condições de, graças ao artigo 48 da Constituição que garantiria poderes

especiais ao mesmo frente a problemas políticos incapazes de serem resolvidos pela aplicação

hodierna do ordenamento jurídico, efetivamente, encarnar a vontade popular com mais

propriedade decisória que o corpo legislativo, considerando que os parlamentares

inevitavelmente tem um caráter público de debates e equilíbrio de poderes:

“Ao Estado como uma unidade essencialmente política pertence o jus belli, a

possibilidade real de num dado caso, determinar, em virtude de sua própria decisão,

o inimigo e combatê-lo. Com que meios técnicos a luta será travada, que

organização das forças armadas existe, quais são as perspectivas de vencer a guerra,

é aqui indiferente, enquanto o povo unido politicamente estiver pronto a lutar por

sua existência e sua independência, sendo que ele mesmo determina, em virtude de

decisão própria, em que consiste sua independência e sua liberdade”.(SCHMITT,

1992,p.71)

Schmitt parte da idéia do Estado soberano entendido como aquele que tem o poder

de decisão sobre um caso de exceção cabendo ao Estado, através da decisão política

e não em norma consensual, ponto em que faz objeção ao liberalismo e ao

parlamentarismo da República de Weimar, que segundo Schmitt seria incompatível

49

a democracia com este sistema representativo. A falta de autonomia decisória das

ações políticas faz com que ele defenda a ideia de que a “legitimidade política na

sociedade da democracia de massas não se basearia mais em convicções de valores

principais, senão única e exclusivamente na legalidade formal do

procedimento”.(SCHMITT, 1992,p.26)

Na exceção, para que a ação soberana seja realmente eficaz, não deve carecer de

quaisquer legitimações advindas da forma jurídica adotada pelo Estado. Nos momentos em

que a exceção se apresenta, em geral de perigo para a própria vida do Estado, é preciso que o

soberano exerça seu poder de decisão de forma a afastar as ameaças ao Estado. Essa posição

extrema talvez justifique não só a filiação de Schmitt ao nazismo como a apologia de alguns

atos de Hitler em um curto, mas impressionante, texto: O Führer defende o direito.

Nesse libelo Schmitt justifica a ação de Hitler contra inimigos da nova ordem que ele

pretende instaurar como ação contra inimigos do Estado. E fundamenta a concessão de

poderes ao Presidente do Reich com base nessa necessidade de proteção retomando o conceito

de ato de governo:

A fines del siglo XVIII, el Häberlin vinculó el problema del derecho de emergencia

nacional al de la delimitación de los asuntos judiciales y los gubernamentales y

declaró que, en caso de correr peligro el Estado de haber sufrido grandes daños,

puede convertir cualquier asunto judicial en asunto gubernamental. En el siglo XIX,

Dufour, uno de los padres del derecho administrativo francés, definió el acto del

gobierno (acte de gouvernment) sus traído a cualquier revisión judicial como un

acto cuyo propósito es defender a la sociedad; defenderla contra los enemigos

internos y externos, abiertos u ocultos, actuales o futuros. (Schmitt, Carl, El Führer

defiende el derecho, in Carl Schmitt, Teólogo de la Política, colêtanea org. México,

p. 117)

Schmitt desenvolve argumentos sobre a necessidade de um governo soberano, bem

como a forma de agir desse Estado em momentos de crise. Em sua obra sobre o Estado de

Exceção, Teologia Política, que trata do poder de decisão, Schmitt aborda o papel do

soberano, como aquele que decide sobre o Estado de exceção, baseado num conceito de

soberania que não se encaixa num caso normal. Todo Estado, segundo Schmitt, deveria

incluir em sua constituição um elemento ditatorial, a possibilidade de instaurar todos os tipos

de violência a serviço do próprio Direito, do próprio Estado. A soberania, Schmitt define

como o poder de decidir sobre a instauração do Estado de Exceção. Por exceção, entende-se

como o momento em que se sai do Estado de Direito para se instaurar ações excepcionais,

ações de exceção. O Estado usa de dispositivos legais justamente para suprimir os limites da

sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Segundo Agamben, o estado de

exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal. Onde continua

a política depois que o direito deixa de existir.

50

Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção: decisão e soberania

A exceção é um limite, determinando a normalidade e o caso excepcional. O

soberano, portanto, é aquele que “decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT: 2006) e

quando este passará a vigorar. Na concepção de Schmitt, o estado de exceção representa uma

transformação existencial da vida e para isso toda norma deveria ser destruída. A decisão do

estado de exceção tem um sentido existencial superior ao da vida cotidiana.

a exceção é mais interessante que o caso normal. O normal não prova nada; a

exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra só vive da

exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de uma mecânica

cristalizada na repetição. (SCHMITT: 2006)

Em Teologia Política, Schmitt trata do importante papel do soberano, que decidiria

sobre a existência do Estado de exceção como também sobre o que deveria ser feito para

eliminá-lo. O soberano estaria incumbido de “decidir sobre a suspensão total da constituição”

(SCHMITT: 2006). O Estado apresenta uma superioridade sobre a norma jurídica em que

podemos afirmar que “a decisão liberta-se de qualquer decisão normativa e torna-se absoluta.

No caso de exceção o Estado suspende o direito em função de um “direito à autopreservação”

(SCHMITT: 2006)

Para a jurisprudência, o Estado de exceção possui um significado análogo ao do

milagre para a teologia. Só com a consciência dessa situação consegue-se

compreender o rumo da evolução das idéias da filosofia do Estado nos últimos

séculos. (SCHMITT: 2006)

A exceção exerceria na política moderna um papel semelhante ao milagre na religião.

É a exceção que “confirma a ordem, é o milagre que reafirma o continum”. Daí a necessidade

de se introduzir um elemento “particular, pessoal e forte” na política moderna, algo que tinha

caído no esquecimento com o obscurecimento do absolutismo político. Schmitt procura

fortalecer o político como vital do estado de exceção que só deveria ocorrer através da ação

de um soberano carismático equivalente ao monarca de direito divino da época absolutista.

Segundo Agamben:

A exceção é a condição de possibilidade da norma jurídica e o próprio significado da

autoridade do Estado. Eis a situação paradoxal, segundo a qual o soberano através

da exceção cria a situação de que o Direito precisa para poder existir, a qual,

ironicamente, é a situação de suspensão do próprio direito.

Para Schmitt, o elemento decisionista e personalista da noção de soberania perdeu o

efeito na modernidade tardia e na conversão do Estado de Direito em Estado Legiferante. O

prevalecimento do ateísmo, suplantando a ideia de Deus pela do homem e a majestade do

51

soberano substituída pela noção de soberania popular leva a falta de um espaço autônomo de

decisão sobre o agir político. Para Schmitt, ordem e segurança devem partir de uma decisão

soberana, ainda mais evidenciada em situações de exceção. As contradições dentro de um

Estado têm que ser resolvidas por ele próprio e em casos de perturbação da ordem pública, até

mesmo, se necessário for, instaurar uma ditadura.

Conclusão

A partir do Estado Legiferante do século XIX a forma decisória cede lugar para um

agir que enxerga no direito uma técnica racional para a dominação. Foi Weber o primeiro a

ver essa característica em suas considerações sobre a burocratização do aparato estatal. Como

leitor de Weber, Schmitt compreende essa burocratização como uma racionalização que afasta

o aspecto existencial do direito, melhor apreendido no momento da decisão e da exceção. Na

sua visão escatológica, esse estado de decadência do político é a homologia do que, em

teologia, se entende por apocalipse. Pela defesa da Teologia Política como algo possível8, é

perceptível que a separação entre mundo espiritual e material em Schmitt não é tão radical

como a tradição ocidental apregoa, por isso sua compreensão do fim do Estado como o

apocalipse não é algo que surpreenda. E é preciso uma decisão soberana para evitar esse fim.

Jacob Taubes, teologicamente, explica:

Schmitt’s interest was in only one thing: that the party, that the chaos not rise to the

top, that the state remain. No matter what the price. This is difficult for theologians

and philosophers to follow, but as far as the jurist is concerned, as long as it possible

to find even one juridical form, by whatever hairsplitting ingenuity, this must

absolutely be done, for otherwise chaos reigns. This is what he later calls the

katechon: The retainer (der Aufhalter) that holds down the chaos that pushes up

from below. That isn’t my worldview, that isn’t my experience. I can imagine as an

apocalyptic: let it go down. I have no spiritual investment in the world as it is. But I

understand that someone else is invested in this world and sees in the apocalypse,

whatever its form, the adversary and does everything to keep it subjugated and

suppressed, because from there forces can be unleashed that we are in no position to

control. (TAUBES, 2004:103)

O pensamento de Schmitt trata do agir político. E sua compreensão está atrelada

necessariamente ao momento extremo da exceção. A racionalidade técnica que herdamos da

modernidade, por ser incapaz de lidar com o excepcional dificulta nossa compreensão acerca

disso. De fato, as críticas a Schmitt parecem vir todas do mesmo lado, de uma defesa do

Estado de Direito como último bastião da democracia, mas ignoram que a pergunta de

8 Em Teologia Política, Schmitt explicita o debate intelectual com Peterson acerca da possibilidade de uma

teologia política.

52

Schmitt não é essa e, que a mesma ainda permanece sem resposta: e se esse Estado de Direito

falhar? E na sua falta? Na sua exceção? E, mais radicalmente como pergunta Agamben, e se,

perversamente, o Estado de Exceção se tornar a regra? E se essa regra for legitimada pela

ordem jurídica legalista tradicional ganhando um status de legalidade, como na questão dos

detidos acusados de conspiração terrorista após o 11 de setembro, privados de qualquer

estatuto jurídico e mantidos numa zona de flutuação entre o criminoso comum e o político?

Sem a compreensão do momento decisório dentro do direito tais perguntas permanecem sem

resposta. Isso fica muito claro na crítica de Habermas a Schmitt e aos demais “modernos

ressentidos”, que não aceitam o projeto da modernidade como a solução para humanidade.

Ainda afeita a muitos conceitos formais e contrafáticos, tal crítica acaba renegando o aspecto

existencial do político. Colocar o mundo da vida como um pano de fundo é ignorar que o

problema começa justamente nesse pano de fundo. Da mesma forma, ignorar a exceção é

fechar os olhos para onde o problema da política e do direito efetivamente toma forma: não

nas leis e na formalidade do ordenamento, mas na complexidade irrepresentável da vida.

Bibliografia:

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BERCOVICI, Gilberto, Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução consevadora, in

Pensamento Alemão no Século XX, Jorge Almeida e Wolfgang Bader (orgs) São Paulo:

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53

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1996.

TAUBES, Jacob, The Political Theology of Paul, California: Stanford University Press, 2004.

ZIZEK, Slavoj, Bem- vindo ao deserto do real!, São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

54

GESTÃO MUNICIPAL - NOVOS RUMOS DA ADMINISTRAÇÃO GERENCIAL

Márcia da Rocha Rodrigues1

RESUMO: Este estudo mostra que apesar da Constituição Federal de 88 ter consagrado

autonomia para os municípios, existem ações que podem ser implementadas de acordo com a

necessidade de cada gestor, buscando maior eficiência na prestação do serviço público,

porém, existe a dificuldade orçamentária, pois os municípios possuem autonomia mas não

possuem recursos suficientes para gerir tais conquistas. Para que o município possa promover

uma reforma administrativa eficaz, terá que iniciar o seu processo de modernização ao

elaborar e implantar essa reforma, definindo o seu conceito organizacional e seus princípios

de gestão gerencial, cujo embrião passa pelo controle dos gastos públicos, pelo fortalecimento

da participação popular (orçamento participativo) nas decisões de governo e pela

descentralização das ações, através das administrações regionais, que assumem a execução da

prestação de serviços na ponta e aproxima o cidadão da administração. É de suma importância

para o Município a descentralização das ações municipais através de suas administrações

regionais ou secretarias, baseada na facilitação da gestão orçamentária e o efetivo gasto com a

população local, a qual exercerá uma melhor participação e fiscalização nas ações do

executivo municipal, principalmente no orçamento participativo e na criação de conselhos que

auxiliam e fiscalizam a administração em áreas diversas.

Palavras-Chave: Autonomia Municipal, Descentralização, Reforma Administrativa

ABSTRACT: This study shows that although the Constitution of 88 have devoted autonomy

for municipalities, there are actions that can be implemented according to the needs of each

manager, seeking greater efficiency in public service delivery, however, it is difficult budget

because the municipalities have autonomy but have insufficient resources to deal with such

achievements. For the municipality to promote an effective administrative reform, will have

to start the modernization process to design and implement this reform, defining their

organizational concept and principles of managerial organization, whose embryo passes

through the control of public spending, the strengthening of popular participation

(participatory budgeting) in the decisions of government and the decentralization of actions

by regional administrations, which take the implementation of service delivery at the tip and

near the public administration. It is extremely important for the municipality decentralization

of municipal actions through their regional offices or, based on the facilitation of budget

management and cost effective with the local population, which will have a better

participation and oversight in the actions of the municipal executive, especially in

participatory budgeting and the creation of councils that assist and supervise the

administration in several areas.

Keywords: Municipal Autonomy, Decentralization, Administrative Reformation

1 Aluna do 8º Período do Curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga

55

1. INTRODUÇÃO

Na distribuição dos poderes orgânicos, a cargo do poder constituinte, não foi

deferido ao Município o Poder Judiciário, mas tal fato não retira do Município a condição de

ente federado com personalidade jurídica de Direito Público e competência ampliada na nova

ordem constitucional.

Os municípios podem criar muito pouco no que diz respeito às normas de

estruturação, mas podem inovar quanto às de funcionamento, embasadas no controle

administrativo do Município, bem como na gestão administrativa do mesmo, efetuando a

divisão em secretarias, redistribuindo cargos e descentralizando poderes, em prol de uma

melhor e eficaz administração.

Conforme dispositivo do art. 29 da Constituição Federal de 1988, a organização

municipal é da competência privativa do Município. Assim, a Lei Orgânica adquire uma

categoria diferenciada das leis ordinárias, por conter substância constitucional. A Lei

Orgânica ultrapassa os limites objetivos das leis ordinárias para alcançar o patamar de norma

de substância constitucional, com eficácia normativa restringida à área territorial do

Município. Sob esse aspecto ela é a Constituição do Município.

A Constituição de 1988, em seu art. 1º, incorporou o Município como parte

integrante e autônoma do todo indissolúvel, que constitui o Estado Democrático de Direito

por ela instituído.

Desta forma, a autonomia municipal constitui-se na faculdade de dispor sobre os

assuntos de seu interesse, através de suas próprias leis. Tal autonomia consolida-se pelo

governo próprio e pelo uso de sua competência através da auto-administração.

2. PODERES DO MUNICÍPIO

Segundo o entendimento do Dr. Getúlio Saraiva2, o poder do Município poderia ser

analisado sob a influência de diversas correntes do direito como o jus naturalismo, o poder do

Município decorreria de um direito natural, como uma corporação histórica que é anterior ao

Estado. Seria, assim, um direito e um poder afirmado em si mesmo. Se visto, entretanto, pelo

ângulo do direito positivo, chega-se à teoria da delegação de poder, ao raio cedido de ação

2 Dr. Getúlio Saraiva, disponível em <(coluna dr.getulio saraiva.html no site

http://everardocaioprado.blogspot.com/2009/04/coluna-dr-getulio-saraiva.html)>

56

(Kelsen), sendo o poder do Município uma delegação do poder estatal, que vem expresso no

art. 29 da Constituição Federal.

O Município, por um direito natural reconhecido, ou pelo raio cedido de ação, exerce

poder sobre o seu território, no exercício de sua autonomia, numa extensão de poder estatal,

tanto pelo critério orgânico como pelo funcional.

Ao admitir o exercício do poder pelo próprio povo, deixando de lado a tradicional

declaração, que se continha nas constituições anteriores, de que o poder era exercido em nome

do povo, a nova Constituição de 1988 aderiu ao dispositivo no art. XXI. I., da Declaração

Universal dos Direitos Humanos3, da qual o Brasil é signatário: “Todo homem tem o direito

de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes

livremente escolhidos”.

A divisão de poderes é imposta pelo regime democrático. Essa divisão conduz às três

funções do Estado, sistematizadas por Montesquieu que se representam pelas atividades de

legislação, de administração e jurisdição.

Detentora do Poder Legislativo, constituído pela função de estabelecer normas gerais

e especiais destinadas a definir a vida do Município, cabe à Câmara Municipal deliberar sobre

todos os aspectos da vida administrativa, enquanto ao Poder Executivo é reservada a função

administrativa e executória dessas deliberações.

O Prefeito Municipal, com auxílio dos secretários municipais exerce função de

administrador que limita suas atribuições, subordinando-o ao cumprimento das leis e

resoluções emanadas da Câmara Municipal.

O detentor do poder público é o povo, todo o poder dele emana, nos termos do

parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal.

Na divisão de funções entre os poderes legislativo e executivo se estabelecem

situações específicas. O Prefeito Municipal na direção do Poder Executivo pode influir nos

atos legislativos da Câmara Municipal através do veto, que representa a não aprovação do ato.

Constitui, porém, crime de responsabilidade do Prefeito atentar, de qualquer forma, contra o

livre funcionamento da Câmara Municipal, punível com a cassação de mandato. A Câmara

Municipal, detentora do poder de fiscalizar os atos do Poder Executivo pode interferir na ação

administrativa do Prefeito, mas este não pode interferir nos atos da Câmara.

3 Declaração Universal dos Direitos Humanos; disponível em::<

http://www.sejus.am.gov.br/programas_02.php?cod=0333> em 08 de junho de 2010.

57

À Câmara Municipal cabe, entre outras matérias de sua competência privativa,

suspender, no todo ou em parte, a execução de ato normativo municipal declarado,

incidentalmente, inconstitucional por decisão definitiva do Tribunal de Justiça, quando a

decisão de inconstitucionalidade for limitada ao texto da Constituição do Estado respectivo.

Cabe também à Câmara Municipal, aprovar as contas do prefeito, ao término do mandato,

ratificando ou retificando a posição do Tribunal de Contas do Estado.

3. A AUTONOMIA MUNICIPAL SEGUNDO A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS DA CF/88

A autonomia do Município é dividida em três ordens: política (art. 29, I, da CF),

administrativa (art.29, caput, da CF) e financeira (art. 30, III, da CF). A autonomia política

consiste na eleição do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores e na criação das leis locais,

realizada de acordo com a legislação eleitoral vigorante, ditada pela União. A autonomia

administrativa define-se pelo poder de se organizar juridicamente através de lei orgânica

própria, sem a tutela do Estado-membro, e de dispor sobre a sua própria administração em

tudo que respeita aos seus interesses locais. O referido autor preceitua que o provimento dos

negócios do interesse local “cabe exclusivamente ao Município interessado, não sendo lícita a

ingerência de poderes estranhos, sem ofensa à autonomia local”4. (MEIRELLES, 2001, p.

108).

Ainda, de acordo com o autor acima referido, a autonomia financeira advém do

poder de instituir e arrecadar tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas,

como preceitua a Constituição Federal. O Município, entretanto, não institui imposto, posto

que os de sua competência já venham definidos expressamente na Carta Federal (art. 156).

Cabe-lhe a instituição de taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pelos serviços

prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição, bem assim a contribuição de melhoria,

decorrente de obras públicas.

O mestre José Afonso da Silva5 (1988, p.623-624) enumera quatro capacidades

dentro do conceito de autonomia do Município: capacidade de auto-organização, capacidade

de auto-governo, capacidade normativa própria e capacidade de auto-administração, sendo

definidas como:

4 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª edição. São Paulo, Malheiros Editores, 2001 5 SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª edição. São Paulo, ed. Revista dos

Tribunais, 1988.

58

a) Capacidade de auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria;

b) Capacidade de auto-governo, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às

respectivas Câmaras Municipais;

c) Capacidade normativa própria, ou capacidade de auto-legislação, mediante a

competência para a elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas

à sua competência exclusiva e suplementar;

d) Capacidade de auto-administração, administração própria, para manter e prestar

os serviços de interesse local.

Competência é a capacidade ou aptidão para alguma coisa. Entende-se por

competência do Município, o somatório das atribuições que lhe são reservadas para o

conseguimento de seus fins, como limite de sua atuação.6 (A Constituição Brasileira de 1988:

interpretações (in II Fórum Jurídico),1990.).

É reservada ao Município toda competência, que não lhe seja vedada pela

Constituição Federal, para cuidar dos assuntos de interesse local.

Hely Lopes Meirelles7 (2001) declara que competências legislativas existem, em

caráter concorrente e supletivo, nas três ordens estatais, e nesse particular é que se avultam as

dificuldades de triagem. Integram a competência do Município, comum à União e ao Estado,

zelar pela guarda das Constituições Federal e Estadual, das leis e das instituições

democráticas e conservação do patrimônio público (art. 23, I, da CF).

A competência do Município é exercida através de agentes com poder funcional. A

capacidade do agente não tem relevância, se vista como aptidão intrínseca da pessoa. É ela um

poder atribuído pela lei aos órgãos ou agentes públicos.

As competências privativas do Município estão previstas no artigo 30 da

Constituição Federal, que estabelece as matérias cuja competência exclusiva é atribuída aos

municípios, e confere poderes para legislar a fim de promover o bem-estar comum local e

para atender as suas funções sociais.8 (Edson Jacinto da Silva, 2009).

A Constituição Federal de 1988 adotou na repartição de competências o critério do

interesse local, sendo tudo aquilo que é inerente à sua faculdade, ou seja, “interesses locais

dos municípios são aqueles que relacionam imediatamente com suas necessidades imediatas,

e, indiretamente, em maior ou menos repercussão, com as necessidades gerais”9 (BASTOS,

2000, p.311).

6 A Constituição Brasileira de 1988: interpretações (in II Fórum Jurídico). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,

1990. 7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª edição. São Paulo, Malheiros Editores, 2001.

8 SILVA, Edson Jacinto da. Manual do Assessor Jurídico Municipal, 4ª edição, revista e atualizada, editora

J.H.Mizuno, Leme/SP, 2009. 9 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000.

59

Existe a predominância de interesses, não exclusividade, como o diferencial do

interesse local para o interesse geral, até mesmo por estar o Município dentro de um Estado

que integra a federação brasileira, formando a “União indissolúvel”, e por ser parte dessa

coletividade, qualquer benefício ou afetação ao ente local, direta ou indiretamente afetará os

demais entes federativos.

Portanto, interesse local não se confunde com interesse privativo, pois o que está

protegido na Constituição é aquele interesse peculiar, ou seja, próprio e especial. Em cima

desse “interesse local” é que o município desenvolve sua competência legislativa, onde a

Constituição Federal em seu art. 30 apresenta um rol apenas exemplificativo, indicando pelos

pontos básicos da autonomia do Município, deixando um campo aberto onde o legislador

pode trabalhar da forma mais eficiente em prol do interesse do município.

É necessário salientar que com a descentralização das ações através das

administrações regionais, o município terá condições de não somente ouvir da população local

quais são as suas prioridades, como também identificar onde e como a administração

municipal irá aplicar os recursos disponíveis, melhorar o aspecto social durante a elaboração

do orçamento participativo, além de informar à população como está aplicando o erário

público, mediante a desconcentração das ações de fomento econômico e definição de novas

estratégias para o desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico da cidade.

A Constituição de 1988 define os Municípios como membros da Federação, rezando

no seu artigo 18 que “a organização político-administrativa da República Federativa do

Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos

autônomos10

...”. É quando se passa, então, a associar descentralização à municipalização,

vinculando-a ao processo de autonomização das distintas esferas subnacionais entre si.

Mas não obstante a interpretação amplamente partilhada, sobretudo da perspectiva do

governo federal, de que o novo texto constitucional descentralizou recursos, mas não os

encargos – o que vem sendo atribuído a uma transformação não concluída de um novo

sistema federativo brasileiro e à conseqüente redefinição ainda nebulosa das competências e

atribuições.

10

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado,

1988.

60

A) COMPETÊNCIA EXCLUSIVA

É aquela que só entra nas atribuições do Município (art. 30, da CF), com exclusão da

União e do Estado-membro. É exercida, em sua plenitude, dentro da sua área territorial, tanto

na esfera legislativa quanto na executiva. Compete ao Município, privativamente:

I. Legislar sobre assuntos de interesse local, notadamente: emendas à Lei Orgânica; a

instituição, decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e aplicação de

suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade

II. de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; a criação,

organização e supressão de Distrito, observada a legislação estadual; a criação,

organização e supressão de subdistrito; a organização e a prestação de serviços

públicos de interesse local, diretamente ou sob regime de concessão, permissão ou

autorização, incluindo o transporte coletivo de passageiros, que tem caráter

essencial; o plano diretor; o regime jurídico dos servidores públicos municipais; a

organização de serviços administrativos; a administração, utilização e alienação de

seus bens; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais;

III. Construir guarda municipal destinada à proteção de seus bens, serviços e

instalações;

IV. Elaborar o Plano Municipal de Desenvolvimento Integrado;

V. Implantar processo adequado para tratamento de lixo urbano;

VI. Zelar pela guarda e observância de sua Lei Orgânica.

Pelo preceito constitucional contido no art.30, I, todos os atos que visem a realização

dos objetivos do Município, que não conflitem com os interesses da União e/ou do Estado-

membro, podem por ele ser praticados, inclusive através da suplementação da legislação

federal e estadual, quando essas adentrarem na área de incidência dos seus objetivos e

interesses (art.30,II, da CF). Dessa enumeração, embora incompleta, dos itens referenciados à

competência própria do Município se extrai os objetivos municipais.

B) COMPETÊNCIAS COMUNS

A competência comum ou cumulativa ocorre por poder ser exercida pela União, pelo

Estado-membro, pelo Distrito Federal e pelo Município, com a mesma capacidade funcional.

Compete ao Município, concorrentemente, nos termos do art. 23 da Constituição

Federal:

I. zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e

conservar o patrimônio público;

II. Cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas

portadoras de deficiência;

III. Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e

cultural, monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV. impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros

bens de valor histórico,artístico ou cultural;

V. proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

VI. proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

VII. preservar as florestas, a fauna e a flora;

61

VIII. fomentar a produção agrária e organizar o abastecimento alimentar;

IX. promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições

habitacionais e de saneamento básico;

X. combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a

integração social dos setores desfavorecidos;

XI. registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e

exploração de recursos hídricos e minerais em seu território;

XII. estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.

Lei complementar federal fixará normas para a cooperação entre a União, o Estado e

o Município, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito

nacional, nos termos do art.23, parágrafo único, da Constituição Federal.

C) COMPETÊNCIA EM COOPERAÇÃO

Quando uma entidade federativa, a quem não compete originalmente a atribuição

funcional para a prática de certos atos administrativos, adentra validamente e por disposição

legal, na esfera funcional de outra, com vistas ao atendimento aos fins do Estado, em sua

concepção genérica.

Compete ao Município manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do

Estado, programas de educação pré-escolar, de ensino fundamental e prestar serviços de

atendimento à saúde da população (art. 30, VI e VII da CF/88).

Para a realização de tais serviços as partes interessadas devem fixar os deveres, as

responsabilidades e os direitos de cada uma. Não vêm explícitas as formalidades do ato

cooperativo, mas se houver necessidade de aplicação e recursos municipais, haverá

necessariamente que depender o ato de autorização legislativa. A participação do município

justifica-se pela finalidade pública dos serviços em referência.

D) COMPETÊNCIA SUPLETIVA

A competência dita supletiva é a que se estabelece por ampliação, permitindo a

solução de possíveis conflitos, atribuindo-se ao Município capacidade para a elaboração de

leis, em atendimento ao interesse local, versando sobre matéria não definida em sua

competência privativa. No art. 30, II da Constituição Federal, foram facultados ao Município

os mais amplos poderes para suplementar, nos assuntos de interesse local, as legislações

federal e estadual, no que couber.

Essa legislação suplementar torna-se necessária especialmente nos assuntos

relacionados na Constituição Federal, limitada à listagem das competências concorrente ou

62

em cooperação, não podendo adentrar nos assuntos de competência privativa da União ou do

Estado.

E) COMPETÊNCIA DE AUTO-ORGANIZAÇÃO

A Constituição Federal de 1988 inseriu em seu artigo 29 a competência ao

Município, para promover sua auto-organização. Compete ao Município, implementar sua Lei

Orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de 10 dias, e aprovada por dois

terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios

estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado.

Rege o art. 182 da Carta Magna que a política de desenvolvimento urbano, executada

pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo

ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o “bem estar” de

seus habitantes. Tal artigo implementa o Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal,

obrigatório para as cidades com mais de 20.000 habitantes, que é o instrumento básico da

política de desenvolvimento e de expansão urbana.

4. ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL

A organização dos serviços administrativos compreende-se as repartições públicas

municipais, dos dois Poderes (executivo e legislativo), e todas as atividades diretamente

ligadas à Administração, abrangendo o ensino, a limpeza pública, a saúde pública, a

construção e conservação de rodovias. Esta organização deve ser feita através de leis

específicas.

A Lei Complementar municipal deverá instituir o Plano de Desenvolvimento

Integrado do Município. Enquanto o Plano Diretor limita a sua atuação ao ordenamento

físico-territorial da cidade, o Plano de Desenvolvimento Integrado, que abarca o próprio Plano

Diretor, contempla também os aspectos sócio-econômicos, já que ao Município se abriu a

oportunidade, pelo art. 174, da Constituição Federal, de ação normativa e regulamentadora

das atividades econômicas, posto que o Estado, definido de forma singular na Constituição,

incorpora a União, os Estados-membros e os Municípios, todos os entes federativos.

O art. 37 da Carta Magna de 1988 impõe que a atividade administrativa municipal

obedeça aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade

e eficiência.

63

Os atos da Administração são públicos, a conduta da Administração deve estar

amparada em expressa disposição legal, o procedimento administrativo deve caracterizar-se

pela probidade, objetivando bem comum. A Administração deve tratar a todos igualmente,

sem conferir distinção ou tratamento privilegiado, pautando-se pelo equilíbrio e pelo bom

senso.

O Governo do Município é exercido, em sua função legislativa, pela Câmara

Municipal e, em sua função executiva, pelo Prefeito Municipal, com o auxílio dos Secretários

Municipais. Pelo princípio da independência dos poderes (art. 2º, da CF), é vedada a

delegação de atribuições de um poder a outro, isto é, quem for investido no exercício da

função de um poder não pode exercer a outra, salvo poucas exceções que as Leis orgânicas

podem prever.

Pelo princípio da separação dos poderes, o Poder Legislativo dos Municípios é

autônomo e desvinculado do Poder Executivo, tendo suas funções expressas na Lei Orgânica

do Município, em decorrência da norma fundamental, contida no art.29 da CF.

O mestre José Afonso da Silva11

enumera as funções essenciais do Poder

Legislativo, agrupando-as em cinco atribuições, que transportadas para o plano municipal

podem ser divididas, em:

I. atribuições legislativas;

II. atribuições meramente deliberativas;

III. atribuições de julgamento;

IV. atribuições de fiscalização;

V. atribuições organizacionais.

O Poder Executivo Municipal é exercido pelo Prefeito Municipal, auxiliado

pelos Secretários Municipais. O Prefeito e o Vice-Prefeito são eleitos mediante pleito direto e

simultâneo, realizado em todo território nacional, que tomarão posse perante a Câmara

Municipal.

No exercício do governo do Município compete ao Prefeito Municipal,

entre outras, as seguintes atribuições:

I. nomear e exonerar os Secretários Municipais;

II. exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da

Administração municipal;

III. iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos na Lei Orgânica;

IV. sancionar,promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e

regulamentos para sua fiel execução;

11

SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais,

1980.

64

V. vetar projetos de leis,total ou parcialmente;

VI. dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração municipal, na

forma da lei;

VII. comparecer ou remeter mensagem e plano de governo à Câmara Municipal por

ocasião da abertura da sessão legislativa, expondo a situação do Município e

solicitado as providências que julgar necessárias;

VIII. nomear, após a aprovação pela Câmara Municipal, os servidores que a lei assim

determinar;

IX. enviar à Câmara Municipal o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes

orçamentárias e as propostas de orçamento previstas na Lei Orgânica;

X. assinar convênios de natureza urgente, sem ônus para o

Município,encaminhando-os à Câmara Municipal no prazo de dez dias para

aprovação;

XI. prestar anualmente à Câmara Municipal,dentro de sessenta dias após a abertura da

sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior;

XII. prover os cargos públicos municipais, na forma da lei;

XIII. convocar extraordinariamente a Câmara Municipal;

XIV. nomear, após aprovação da Câmara, o Procurador do Município, onde houver;

XV. nomear o Administrador Distrital, onde houver;

XVI. exercer outras atribuições prevista em lei.

A organização dos Municípios se estabelece em um modelo federal constituído de

dentro para fora, isto é, pela descentralização da União para os Estados e subseqüentemente

para os Municípios.

5. CONCLUSÃO

Os novos rumos da Administração Pública dependerá de um amplo estudo de

viabilização financeira e de alterações na legislação municipal para propiciar um novo modelo

de gestão gerencial, onde o poder de decisão deverá ser centralizado pelo gestor, porém, as

ações deverão ser descentralizadas para que atinjam o objetivo principal, que é o atendimento

ao princípio constitucional da eficiência.

Para que a administração pública seja mais eficiente, deverá promover uma ampla

reforma administrativa, adequando-se aos modelos de administração gerencial, promovendo a

descentralização das ações do município, com planejamento adequado para captação de

recursos junto às esferas estadual e federal, capaz de atender às necessidades do município,

aliado ao controle de gastos públicos, reduzindo-o para equilibrar as finanças públicas para

atender aos anseios da população.

A transformação da Administração Pública se dará por um lento processo, pois

apesar da mudança ocorrida com a administração gerencial, ainda encontram-se presentes as

burocracias que imperam na legislação municipalista, principalmente no aspecto da lei de

responsabilidade Fiscal, que impõe aos entes municipais ainda uma condição de burocratizar

ao passo que deveriam descentralizar ações na busca de uma maior eficiência.

65

Portanto, tal modelo gerencial restará ainda distante dos pequenos municípios,

principalmente aqueles que não dispõem de mão-de-obra qualificada e de material humano

capaz de transformar o Município em um verdadeiro ente federado voltado para a

Administração Gerencial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

(A Constituição Brasileira de 1988: interpretações (in II Fórum Jurídico). 2. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1990.).

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição. São Paulo: Saraiva,

2000.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF,

Senado, 1988.

Declaração Universal dos Direitos Humanos; disponível em::<

http://www.sejus.am.gov.br/programas_02.php?cod=0333> em 08 de junho de 2010.

Dr. Getúlio Saraiva <(coluna dr.getulio saraiva.html no site

http://everardocaioprado.blogspot.com/2009/04/coluna-dr-getulio-saraiva.html)>

MARE – Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado. Plano Diretor da

Reforma do Estado (on-line). Brasília: <http://www.planejamento.gov.br>, 1995.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 22ª edição, atualizada, São

Paulo, Malheiros Editores, 1997.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª edição. São Paulo, Malheiros

Editores, 2001

SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, ed. Revista dos

Tribunais, 1980.

SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª edição. São Paulo, ed.

Revista dos Tribunais, 1988.

SILVA, Edson Jacinto da. Manual do Assessor Jurídico Municipal, 4ª edição, revista e

atualizada, editora J.H.Mizuno, Leme/SP, 2009.

66

SOBRE REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS E DIREITOS PETITÓRIOS

Flaviana Maria da Silva

Suely Vidal José

Walace Marçal Viana1

RESUMO: O presente artigo tem a finalidade de discutir acerca do exercício de alguns

direitos constitucionais, mostrando a forma como estão abordados pela CF/88, além de

posições doutrinárias e interpretações de legislações específicas. Examinaremos os direitos

de: acesso às informações públicas, certidão, petição, habeas corpus, habeas data, mandado

de segurança, mandado de injunção, ação popular e assistência judiciária gratuita.

Obviamente, como é compreensível, não pretendemos, com este trabalho, esgotar o tema. De

forma sucinta, traremos para o leitor uma abordagem sobre conceitos, legitimidade,

finalidade, natureza jurídica e requisitos para o exercício destes direitos. No entanto,

dedicamos atenção por primar, a todo instante, a defesa de seu exercício como aspecto basilar

dentro do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chaves: informação pública, habeas corpus, habeas data, certidão, petição, ação

popular.

ABSTRACT: This article aims to discuss about the exercise of some constitutional rights,

showing how they are approached by CF/88, and doctrinal positions and interpretations of

specific laws. We will examine the rights to: access to public information, certificate, petition,

habeas corpus, habeas data, writ of mandamus, writs of injunction, popular action and legal

aid. Obviously, as is understandable, we do not intend with this work, the whole theme.

Briefly, the reader will bring to a discussion of concepts, legitimacy, purpose, and legal

requirements for the exercise of these rights. However, we devote attention to excel at any

moment, the defense of its exercise as fundamental aspect within the democratic state of law.

Keywords: public information, habeas corpus, habeas data, certification, petition, popular

action.

1. INTRODUÇÃO

Sabemos que vários são os direitos ressalvados pela CF/88 aos indivíduos e à

coletividade em geral. Os mais importantes deles encontram-se elencados no rol do artigo 5º,

constituindo a porta de entrada de nossa Carta Magna e servindo de embasamento para todos

os demais. Porém, a Constituição não previu somente direitos, mas também formas de

reclamarmos perante o Poder Público quando quaisquer destes sofrerem violação ou quando

não forem conferidos em sua plenitude.

1

Acadêmicos do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale Piranga/MG.

67

Os termos “direitos petitórios” e os “remédios constitucionais” não se encontram

assim dispostos na legislação, mas são conferidos pela doutrina. Voltam-se à garantia da

efetividade dos direitos conferidos pela CF/88, que possuem aplicabilidade direta e imediata,

seja no plano individual ou coletivo.

Na lição de José Afonso da Silva (2007, p.442) o termo “remédios constitucionais” é

aplicado “no sentido de meios postos à disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a

intervenção das autoridades competentes, visando sanar, corrigir, ilegalidade e abuso de poder

em prejuízo de direitos e interesses individuais”.

São eles, ferramentas, antídotos criados para afastar ilegalidades e abusos de poder,

ou mais ainda, instrumentos importantes para nós cidadãos atuarmos tanto em defesa de

nossos direitos, quanto no monitoramento do exercício da função pública.

Daí, serem de extrema importância o seu estudo sistematizado.

Destarte, vamos dar seguimento à exposição de alguns destes em espécie.

2. DIREITO AO ACESSO À INFORMAÇÃO PÚBLICA

O direito constitucional de acesso às informações públicas vem resguardado pela

CF/88 em seu artigo 5º, inciso XXXIII, in verbis:

“todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse

particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob

pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à

segurança da sociedade e do Estado”. (BRASIL, 1988)

O dispositivo confere a todos o direito de solicitar informações junto aos órgãos

públicos, com vistas a atender interesse particular ou ainda interesse coletivo ou geral. É

dever do Estado informar, é direito de todos serem informados. Neste sentido, podemos dizer

que a palavra “todos” abrange de forma genérica tanto os nacionais, quanto os estrangeiros e

ainda, pessoas físicas e jurídicas.

De fato, “o exercício prático do princípio constitucional de que “todo poder emana

do povo” está condicionado ao acesso da população ao conhecimento e à informação”.

(CANELA e NASCIMENTO, 2009, p.5)

Mas, não é qualquer tipo de informação que pode ser obtida por este remédio

constitucional. O próprio inciso faz ressalva às informações que devem ser guardadas em

sigilo visando à segurança do Estado e da sociedade.

68

Muito bem exposto por Levy (2009, p.7) são os requisitos para o exercício do direito

à informação, quais sejam: “a) objeto determinado; b) legitimidade e interesse; c)

razoabilidade do pedido e ausência de abuso de direito; d) ausência de sigilo; e e) respeito à

privacidade, intimidade, honra e imagem”. Mais adiante ele assevera que “ o pedido de

informação somente pode ter por objeto fatos determinados, e não objetos genéricos, que

configurem devassa na Administração”.

O próprio governo tem criado medidas que visam o acesso amplo às informações

públicas. Como exemplo, podemos citar a criação do Portal da Transparência

(http://www.portaltransparencia.gov.br/), em novembro de 2004, com o objetivo de permitir o

acompanhamento da execução financeira dos programas de governo, em âmbito federal.

“O cidadão pode acompanhar, sobretudo, de que forma os recursos públicos estão

sendo usados no município onde mora, ampliando as condições de controle desse

dinheiro, que, por sua vez, é gerado pelo pagamento de impostos.” (Portal

Transparência).

“Assim, por exemplo, torna-se possível ao cidadão saber, além de quanto o servidor

recebeu em diárias para realização de uma viagem a serviço, quanto foi gasto em

passagens, qual o motivo da viagem, sua duração e período. Igualmente, podem-se

conhecer as licitações e os contratos firmados, inclusive com descrição do objeto,

valor do contrato e nome dos vencedores por item, bem como informações sobre os

aditivos aos contratos, caso existentes.” (Boletim Informativo – ano 2 - nº 2 - Janeiro

a Março de 2009)

Porém, ainda não existe uma lei que regulamente de forma específica o acesso às

informações, inclusive quanto à disposição sobre seus procedimentos e prazos.

“O Brasil tem tomado diversas medidas esparsas que visam ao aprimoramento da

transparência administrativa, como, por exemplo, a criação de websites que

disponibilizam informações sobre contas públicas e processos legislativos, a criação

de comissões de combate à corrupção e o desenvolvimento de programas

informativos destinados ao público em geral. Estas iniciativas, no entanto, não são

suficientes e devem ser fortalecidas pelo estabelecimento de um verdadeiro regime

de acesso à informação (...).

Existe hoje um projeto de lei sobre o tema parado no Congresso Nacional,

aguardando análise pelo plenário, desde 2003. Um novo pré-projeto de lei também

está em elaboração no Executivo e deve ser apresentado ao Congresso, em 2009. É

necessário que atores da sociedade civil se mobilizem para debater o conteúdo

destas propostas e sua adequação aos padrões internacionais.” (MARTINS, 2009, p.

27)

Cabe a nós depreendermos a interpretação de que o Estado deve buscar facilitar o

acesso a informações, uma vez que é direito garantido a todos pela nossa Carta Magna.

Constitui, dentro do Estado Democrático, uma importante ferramenta para a

sociedade: à medida em que possibilita a transparência da Administração Estatal, também nos

confere um meio de controle social e monitoramento da gestão pública.

69

3. DIREITO DE PETIÇÃO E DIREITO DE CERTIDÃO

Temos aqui a menção a dois remédios constitucionais distintos.

Prescreve a CF/88, em seu artigo 5º, inciso XXXIV, que:

“são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou

contra ilegalidade ou abuso de poder;

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de

direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.” (BRASIL,

1988)

O primeiro deles diz respeito ao direito de petição, possuindo natureza informal e

democrática. “Pode ser definido como o direito que pertence a uma pessoa de invocar a

atenção dos poderes públicos sobre uma questão ou uma situação.” (MORAES, 2009, p.183).

Está voltado para informações que possuem uma dimensão coletiva, de abrangência pública.

Podemos extrair da alínea “a” a interpretação de que tal direito permite ao requerente

a solicitação junto aos Poderes Públicos da tomada de providências cabíveis voltadas para a

defesa de direitos ou ilegalidade ou abuso de poder. Trata-se, portanto, de um remédio que

confirma o exercício da democracia ao permitir à parte requerente apresentar queixa de ato

ilegal, reclamar um direito e até mesmo reivindicar determinados interesses, sejam eles

individuais ou coletivos.

Segundo Moraes (2009, p.183-184), este direito “constitui uma prerrogativa

democrática, de caráter essencialmente informal, apesar de sua forma escrita, e independe de

pagamento de taxas”. Ele cita mais adiante que “ (...) seu exercício está desvinculado da

comprovação da existência de qualquer lesão a interesses próprios do peticionário”.

O segundo, explanado na alínea “b”, diz respeito ao direito de certidão, que tem

duplo objetivo ou pressupostos básicos: a defesa de direitos e o esclarecimento de situações

em que há interesse pessoal. O direito de certidão é remédio constitucional voltado a garantir

efetividade do direito de informação de dimensão particular.

O Estado não pode se eximir de entregar gratuitamente tal informação quando

solicitado, sob pena de ferir este preceito constitucional.

Atestamos que, para o jurista Meirelles (1989, p.168):

“certidões administrativas são cópias ou fotocópias fiéis e autenticadas de atos ou

fatos constantes de processo, livro ou documento que se encontre nas repartições

públicas. Em tais atos o Poder Público não manifesta sua vontade, limitando-se a

trasladar para o documento a ser fornecido ao interessado o que consta de seus

arquivos”.

70

A lei n.° 9.051/95, que dispõe sobre a expedição de certidões para a defesa de

direitos e esclarecimentos de situações, prescreve que:

Art. 1.° As certidões para a defesa e esclarecimentos de situações, requeridas aos

órgãos da administração centralizada ou autárquica, às empresas públicas, às

sociedades de economia mista e às fundações públicas da União, dos Estados, do

Distrito Federal e dos Municípios, deverão ser expedidas no prazo improrrogável de

quinze dias, contado do registro do pedido no órgão expedidor.

Art. 2.° Nos requerimentos que objetivam a obtenção das certidões a que se refere

esta Lei, deverão os interessados fazer constar esclarecimentos relativos aos fins e

razões do pedido. (BRASIL, 1995)

Adverte Moraes (2009, p.182) que o “direito à expedição de certidão engloba o

esclarecimento de situações já ocorridas, jamais sob hipóteses ou conjecturas relacionadas a

situações ainda a serem esclarecidas”. Também cita que Celso de Mello aponta os

pressupostos necessários para se valer do direito de certidão: “legítimo interesse (existência

de direito individual ou da coletividade a ser defendido); ausência de sigilo; res habilis (atos

administrativos e atos judiciais são objetos certificáveis)”.

Não são apenas as pessoas físicas as legitimadas para exercerem tanto o direito de

petição, quanto o de certidão. O inciso constitucional dispõe que “são a todos assegurados”, o

que nos possibilita compreender que o legislador não restringiu a abrangência deste direito,

sendo, ainda, ele estendido às pessoas jurídicas e aos estrangeiros, independentemente de

advogado.

A resposta do órgão requerido é obrigatória. Seja positiva: efetivando o direito de

pronto se informações tiverem em seu poder. Seja negativa: dizendo que não lhe compete ou

encaminhando ao órgão responsável pela mesma ou ainda estabelecendo um prazo a

posteriori para que seja conferida.

Porém, pode ocorrer situações em que após requeridos tais direitos perante o Poder

Público, este se omita, não dando qualquer resposta. Neste caso, quando não se tem satisfeito

o direito de petição perante o respectivo órgão público, ter-se-á por instrumento de defesa o

mandado de segurança. Se violado for o direito de certidão, a via jurisdicional correta será o

habeas data.

4. HABEAS CORPUS

Encontra-se determinado pelo inciso LXVIII do art. 5º da CF/88, nos seguintes

termos: "Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de

sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de

poder." (BRASIL, 1988).

71

Moraes (2003, p.138) menciona que o sentido da palavra alguém no habeas corpus

refere-se tão-somente à pessoa física (...) e era endereçado a quantos tivessem em seu poder

ou guarda o corpo do detido, da seguinte maneira: "Tomai o corpo desse detido e vinde

submeter ao Tribunal o homem e o caso”.

A expressão “habeas corpus” se pode traduzir como “ande com o corpo ou tenha

corpo”, formada pelo verbo latino habeas de habeo, (ter, andar com) e corpus

(corpo). A sua origem possui diferentes correntes, sendo que a primeira desses

correntes defende que essa origem do HC remota ainda ao Direito Romano e para

uma segunda corrente originou-se com o advento da Carta Magna da Inglaterra de

1215, em sua cláusula 39, que teve ao longo do tempo uma importância significativa

(tradução livre a partir de uma versão em inglês): “Nenhum homem livre será preso,

aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou

de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém

contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.” -

significando que o rei devia julgar os indivíduos de acordo com a lei, e o devido

processo legal, não segundo a sua vontade pessoal, até então absoluta. (ALVES,

2010, p.2)

Vem definido pela doutrina como uma ação constitucional de caráter penal e de

procedimento especial, isenta de custas e que visa evitar ou cessar violência ou ameaça à

liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Não se trata, portanto, de uma

espécie de recurso, apesar de regulamentado no capítulo a eles destinados no Código de

Processo Penal. (MORAES, 2009, p.127)

Pode-se afirmar que trata-se de “um remédio destinado a tutelar o direito de

liberdade de locomoção, liberdade de ir, vir, parar e ficar. Tem natureza de ação

constitucional penal”. (SILVA, 2007, p.445)

Quanto às partes, considera-se que o autor da ação constitucional de habeas corpus

recebe o nome de impetrante; o indivíduo em favor do qual se impetra, paciente (podendo ser

o próprio impetrante), e por impetrado, a autoridade que pratica a ilegalidade ou abuso de

poder. (LENZA, 2009, p.728) O art. 654 do CPP vem estipular que "o habeas corpus poderá

ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério

Público" (BRASIL, 1947). Subentende-se que tanto o nacional, quanto o estrangeiro podem

ser impetrantes, em seu próprio favor ou de terceiros.

Pode o habeas corpus ser ordenado de oficio pelo juiz ou tribunal, sem que haja

qualquer requerimento, conforme previsão expressa do parágrafo 2º do artigo 654 do Código

de Processo Penal que menciona: “Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de

ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou

está na iminência de sofrer coação ilegal.”

72

A pessoa jurídica não pode ser sofrer qualquer ameaça ou violência em se tratando

de liberdade de locomoção, uma vez que este direito não lhe é dirigível, ou seja, não pode ser

paciente, mas pode ser impetrante. Assim, “nada impede que ela ajuíze habeas corpus em

favor de terceira pessoa ameaçada ou coagida em sua liberdade de locomoção”. (MORAES,

2009, p.130)

Também, é mister frisar que a ação de habeas corpus independe de advogado. Tanto

é que o próprio Estatuto da Advocacia, lei nº 8906/94, salienta em seu art. 1º, §1º, que “não se

inclui na atividade privativa da advocacia a impetração de habeas corpus em qualquer

instância ou tribunal”.

Em se tratando da legitimidade passiva, ensina a doutrina que:

“O habeas corpus deverá ser impetrado contra o ato do coator, que poderá ser tanto

autoridade (delegado de polícia, promotor de justiça, juiz de direito, tribunal etc.)

como particular. No primeiro caso, nas hipóteses de ilegalidade e abuso de poder,

enquanto no segundo caso, somente nas hipóteses de ilegalidade.

Por óbvio, na maior parte das vezes, a ameaça ou coação à liberdade de locomoção

por parte do particular constituirá crime previsto na legislação penal, bastando a

intervenção policial para fazê-la cessar. Isso, porém, não impede a impetração do

habeas corpus, mesmo porque existirão casos em que será difícil ou impossível a

intervenção da polícia para fazer cessar a coação ilegal (internações em hospitais,

clínicas psiquiátricas).” (MORAES , 2009, p.131)

O habeas corpus pode ser preventivo ou liberatório/repressivo. Assim, temos que:

“O primeiro ocorre quando alguém, ameaçado de ser privado de sua liberdade,

interpõe-no para que tal direito não lhe seja agredido, isto é, antes de acontecer a

privação de liberdade; o segundo, quando já ocorreu a "prisão" e neste ato se pede a

liberdade por estar causando ofensa ao direito constitucionalmente garantido”.

(WIKIPEDIA)

Não há formalidades para o procedimento do habeas corpus, é feito mediante

simples petição. Deverá ser impetrado perante a autoridade imediatamente superior àquela

que cometeu o ato de ilegalidade ou abuso de poder. Porém, há casos em que própria

Constituição determina competência para julgamento desta ação em razão da pessoa, como

por exemplo, quando são pacientes o Presidente da República, Procurador Geral da

República, Membros do Congresso Nacional, dentre outros.

“Como a ação de habeas corpus é de natureza informal, pois qualquer pessoa pode

fazê-la, não é necessário que se apresente procuração da vítima para ter ajuizamento

imediato. Ela tem caráter informal. Portanto, a ação tem características bem

marcantes, a se ver: privação de liberdade injusta; direito de, ainda que preso por

"justa causa", responder o processo em liberdade.” (WIKIPEDIA)

Mesmo sendo informal, o artigo 654, § 1º do CPP traz os seus requisitos mínimos:

§ 1° A petição de habeas corpus conterá:

a) o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de sofrer violência ou coação e o de

quem exercer a violência, coação ou ameaça;

73

b) a declaração da espécie de constrangimento ou, em caso de simples ameaça de

coação, as razões em que funda o seu temor;

c) a assinatura do impetrante, ou de alguém a seu rogo, quando não souber ou

não puder escrever, e a designação das respectivas residências.

Ainda, por ser o direito de liberdade um dos maiores direitos conferidos, há

cabimento de liminar em todas as ações de habeas corpus, garantindo de pronto o retorno do

direito à pessoa se presentes o periculum in mora e o fumus boni iuris. A liminar visa impedir

que um dano maior ou um constrangimento irreparável seja sofrido pela pessoa.

A gratuidade da ação de habeas corpus encontra-se disciplinada, conjuntamente com

a do habeas data, pelo próprio art. 5º, da CF/88, inciso LXXVII, in verbis: “são gratuitas as

ações de habeas corpus e habeas data, e, na, forma da lei, os atos necessários ao exercício da

cidadania.”

5. MANDADO DE SEGURANÇA

O mandado de segurança, que surgiu na Constituição de 1934, por inspiração de João

Mangabeira é, segundo Ivan Lira de Carvalho, uma criação brasileira, derivada do habeas

corpus. (CARVALHO, 2009, p.6)

Regulado atualmente pela Lei 12.016/2009, só não esteve presente na Carta Maior de

1937, sendo que a de 1988 o contempla de duas formas: individual e coletivo.

A CF/88 o prevê em seu artigo 5º da seguinte maneira:

LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,

não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela

ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no

exercício de atribuições do Poder Público;

LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:

a) partido político com representação no Congresso Nacional;

b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e

em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus

membros ou associados;

A doutrina o conceitua como “a ação de rito sumaríssimo pela qual a pessoa pode

provocar o controle jurisdicional quando sofrer lesão ou ameaça a direito líquido e certo, não

amparado por habeas corpus ou habeas data, em decorrência de ato de autoridade praticado

com ilegalidade ou abuso de poder. (DI PIETRO, 1999, p. 612) Tem natureza residual, pois

somente é cabível diante de situação em que não seja possível manejar habeas corpus ou

habeas data.

74

Expõe Moraes (2009, p152) que, para Ary Florêncio Guimarães, ele é conferido aos

indivíduos para que se defendam de atos ilegais ou praticados com abuso de poder,

constituindo-se verdadeiro instrumento de liberdade civil e política.

O particular jamais poderá ser sujeito passivo do mandado de segurança, pois este

somente é cabível contra autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de

atribuições do Poder Público.

Quanto às modalidades, é mandado de segurança individual aquele destinado a

proteger direito subjetivo individual e onde a parte legítima (para ser o impetrante) é o próprio

titular do direito, seja ela pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira. Considera-se

como coletivo o que se destina à proteção de direitos a fim de preservar ou reparar interesses

transindividuais, quais sejam: individuais homogêneos, coletivos e difusos. Neste segundo

caso, será impetrante o partido político com representação no Congresso Nacional ou

organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em

funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou

associados.

O Poder Judiciário, após procurado pelo interessado, apreciará a ameaça ou lesão de

direito ocorrida e se este for líquido e certo, caberá a impetração do mandado de segurança.

Mas o que é um direito líquido e certo? Temos o conceito de que “direito líquido e certo é o

direito manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no

momento da impetração.” (MEIRELLES, 1989, p.612) É, portanto, direito líquido e certo

aquele sobre o qual não incide controvérsias, ou seja, sobre ele não paira nenhuma dúvida ou

discussão quanto à situação fática. Se tal direito precisa ser comprovado posteriormente, não é

líquido nem certo.

Para o prazo de impetração, dispõe a lei 12.016/2009 em seu artigo 23 que: “O

direito de requerer mandado de segurança extinguir-se-á decorridos 120 (cento e vinte) dias,

contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado.” Este prazo é decadencial, não se

suspende, nem se interrompe.

A doutrina classifica o mandado de segurança em: repressivo (para reparar

ilegalidade ou abuso de poder já ocorrido) e preventivo (para combater uma ameaça de se

violar direito líquido e certo).

Quanto à competência, o Manual do Mandado de Segurança (2000, p.9) explicita

que:

75

“para a fixação do juízo competente em mandado de segurança não interessa a

natureza do ato a ser impugnado, o que importa é a sede da autoridade coatora e sua

categoria funcional. Assim, os mandados de segurança impetrados contra atos de

autoridades federais têm foro competente na localidade onde estão sediadas, desde

que haja vara federal, ou, na hipótese negativa, na Capital do Estado respectivo. Para

as autoridades estaduais e municipais, o foro competente será sempre o da respectiva

comarca.”

É cabível a obtenção de liminar diante do mandado de segurança. Para tanto, será

necessário demonstrar que o pedido feito precisa ser deferido com urgência, de forma

temporária, antes do julgamento definitivo, pois se fazem presentes a fumaça do bom direito

(fumus boni iuris) e o perigo da demora (periculum in mora). Com a alegação do primeiro

significa dizer que há uma grande chance de a situação levada ao judiciário ser verdadeira e

por isso deve ela ser juridicamente protegida desde já; com o segundo, que haverá dano

irremediável à pessoa que pede a medida judicial caso esta não seja imediatamente executada.

(WIKIPEDIA) Ao final, se a decisão confirmar o direito líquido e certo, a liminar será

confirmada uma vez que o direito já foi assegurado. Mas se não confirmado, a liminar será

cassada e o sujeito ativo será obrigado a ressarcir ao sujeito passivo as despesas pagas.

6. MANDADO DE INJUNÇÃO

Trata-se de ação subjetiva, que vem prescrita no artigo 5º da CF, inciso LXXI da

seguinte maneira:

“conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma

regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades

constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à

soberania e à cidadania;” (Brasil, 1988)

O mandado de injunção tem um campo de atuação restrito, não alcançando outros

direitos que não os previstos na CF/88.. José Afonso da Silva (2007, p. 448) define o

mandado de injunção como “um remédio constitucional posto à disposição de quem se

considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas inviáveis por falta

de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição.” A finalidade será de dar

concretude à norma e efetivar o direito constitucional.

Regulamentado pela lei 8.038/90, o mandado de injunção serve, pois, para solucionar

casos de inaplicabilidade da norma constitucional devido à ausência de norma

infraconstitucional que a regulamente, tendo a finalidade de o Poder Judiciário dar ciência ao

Legislativo sobre a omissão de tal norma.

76

Lenza expõe dois requisitos constitucionais para o mandado de injunção, quais

sejam: “norma constitucional de eficácia limitada, prescrevendo direitos, liberdades e

prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; falta de norma

regulamentadora, tornando inviável o exercício dos direitos, liberdades e prerrogativas acima

mencionados (omissão do poder público”.(LENZA, 2009, p.738)

A legitimidade ativa, ou seja, o poder de impetrar o mandado de injunção, é de

qualquer pessoa cujo direito inviabiliza-se por falta de norma regulamentadora. Já a

legitimidade passiva, cabe somente à pessoa estatal, pois “somente ao Poder Público é

imputável o encargo constitucional de emanação de provimento normativo para dar

aplicabilidade à norma constitucional.”(MORAES, 2009, p.173) Assim, devemos interpretar

que de regra caberá ao Legislativo, haja vista ser ele o responsável maior pela criação das leis.

Porém, também poderá ser sujeito passivo o Executivo e o Judiciário em situações que a estes

caberá a iniciativa do processo legislativo.

Um ponto bastante dissertado pela doutrina é a semelhança entre o mandado de

injunção e a ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) por omissão, já que ambos têm o

escopo de efetivar a aplicabilidade da norma constitucional. Porém, conforme assevera Souto

(2009, p.1), a similitude não é total, posto que o campo de atuação do mandado de injunção é

bem mais restrito que o da ADIN. Outra diferença destacada pelo referido autor reside na

legitimidade ativa: o mandado de injunção pode ser postulado por qualquer cidadão, enquanto

na ADIN a capacidade postulatória restringe-se aos agentes públicos discriminados no artigo

103 da Constituição Federal. O Mandado de injunção ocorre mediante o controle difuso,

diante de um caso concreto e o seu efeito é inter partes. A ADIN por omissão ocorre

mediante o controle concentrado, diante de uma situação abstrata e os seus efeitos é erga

omnes.

7. HABEAS DATA

O habeas data é outra das garantias fundamentais com status de “remédio

constitucional”. Através dele só se pode pleitear informações relativas ao próprio impetrante,

ou seja, tem caráter personalíssimo porque está voltado à proteção íntima de informação que

diz respeito somente ao indivíduo.

Vem amparado no artigo 5º, inciso LXXII da CF/88, in verbis:

“ conceder-se-á "habeas-data":

77

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante,

constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de

caráter público;

b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso,

judicial ou administrativo;”

Alexandre de Moraes (2009, p. 142) muito bem o define como ação constitucional,

dotada de caráter civil, conteúdo e rito sumário, cujo objeto é a proteção do direito líquido e

certo do impetrante que busca conhecer todas as informações e registros relativos à sua

pessoa que estejam constantes de repartições públicas ou particulares acessíveis ao público,

para eventual retificação de seus dados pessoais.

O rito do habeas data está regulamentado pela lei 9.507/97 e sua finalidade, de

acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2007, p.332), é evitar que atos dos órgãos

públicos baseiem-se em informações sigilosas, ignoradas pelo interessado, o que lhe subtrai

qualquer possibilidade de defender-se.

A legitimidade ativa é conferida a qualquer pessoa física ou juridica, brasileira ou

estrangeira e a ação tem caráter pessoal, só se podendo pleitear informações relativos ao

próprio impetrante, nunca de terceiros. Já os impetrados (legitimidade passiva), podem ser:

“as entidades governamentais, da administração pública direta e indireta, bem como as

instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestem serviços para o público ou de

interesse público, e desde que detenham dados referentes às pessoas físicas ou jurídicas.”

(MORAES, 2009, p.145/146)

Para o ajuizamento do habeas data entende a jurisprudência que deverá ter o

impetrante já esgotado todas as vias administrativas em busca da informação pretendida, pois

caso contrário correrá risco não ser reconhecido o remédio em comento por falta de interesse

de agir.

8. AÇÃO POPULAR

A ação popular vem disciplinada no inciso LXXIII do art. 5º, CF/88, da seguinte

forma:

"qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato

lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade

administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o

autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da

sucumbência". (BRASIL, 1988).

Trata-se de um importante instrumento de participação democrática que nos

possibilita o exercício da cidadania a fim de defender interesses de uma coletividade. Tem

78

como objeto atos que afetem lesivamente o patrimônio público, a moralidade administrativa,

o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.

Pode ser proposta mediante duas formas: “forma preventiva (ajuizamento da ação

antes da consumação dos efeitos lesivos) ou repressiva (ajuizamento da ação buscando o

ressarcimento do dano causado).” (MORAES, 2009, p.185)

Reveste-se de legitimidade ativa aquele que se encontra na condição de cidadão.

Neste sentido, traz a Lei 4.717 de 29 de junho de 1965, em seu art. 1º, §3º, o requisito

subjetivo para comprovação de cidadania: “a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será

feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda.” (BRASIL, 1965).

Desta forma, não tem legitimidade para a propositura de ação popular os estrangeiros

e aqueles que não estão em pleno gozo de seus direitos políticos, seja por perda ou suspensão

destes. Quanto às pessoas jurídicas, a Súmula 365 do STF estabelece: “Pessoa jurídica não

tem legitimidade para propor ação popular”.

Quanto à legitimidade passiva ressalta Moraes (2009, p. 188):

“Os sujeitos passivos da ação popular são diversos, prevendo a Lei n.° 4.717/65, em

seu art. 6.°, § 2.°, a obrigatoriedade de citação das pessoas jurídicas públicas, tanto

da Administração direta quanto da indireta, inclusive das empresas públicas e das

sociedades de economia mista, ou privadas, em nome das quais foi praticado o ato a

ser anulado, e mais as autoridades, funcionários ou administradores que houverem

autorizado, aprovado, ratificado ou praticado pessoalmente o ato ou firmado o

contrato impugnado, ou que, por omissos, tiverem dado oportunidade à lesão, como

também, os beneficiários diretos do mesmo ato ou contrato.”

Mas, quais serão as conseqüências da ação popular caso seja julgada procedente?

Ter-se-ão: “invalidade do ato impugnado; condenação dos responsáveis e beneficiários em

perdas e danos; condenação dos réus às custas e despesas com a ação, bem como honorários

advocatícios; produção de efeitos de coisa julgada erga omnes.” (MORAES, 2009, p.189)

É importante salientar que o autor desta ação, caso não caracterizada a má-fé, é

isento das custas processuais e do ônus da sucumbência, conforme menciona a CF.

9. ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E GRATUITA

Dentro do Estado Democrático de Direito, temos o acesso amplo à justiça como um

dos princípios basilares da ordem processual e, a Constituição Federal não poderia permitir

que aqueles que não têm condições de arcar com os custos fiquem na inércia de pleitearem

um direito que lhes é devido. Para tanto, previu de forma expressa, a nossa Carta Magna de

1988, em seu artigo 5º, inciso LXXIV, a assistência judiciária gratuita nos seguintes termos:

79

“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência

de recursos”. (BRASIL, 1988)

Segundo Rocha (2007, p. 34): “O direito à prestação jurisdicional ficaria vazio de

conteúdo se os carentes de recursos não recebessem ajuda do Estado para obter a proteção

para seus direitos”.

Mas, o que afinal engloba a gratuidade da assistência judiciária fornecida pelo

Estado? Para regular este direito, foi criada, em 05 de fevereiro de 1950, a lei nº 1.060, que

estabelece as normas para a concessão da assistência judiciária aos necessitados. Através dela,

é garantido o acesso gratuito à justiça, compreendo, em seu artigo 3º, incisos I a VI, as

seguintes isenções aos necessitados: das taxas judiciárias e dos selos; dos emolumentos e

custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da Justiça; das

despesas com as publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos

oficiais; das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do

empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo

contra o poder público federal, no Distrito Federal e nos Territórios; ou contra o poder público

estadual, nos Estados; dos honorários de advogado e peritos e das despesas com a realização

do exame de código genético – DNA que for requisitado pela autoridade judiciária nas ações

de investigação de paternidade ou maternidade. (BRASIL, 1950)

A própria lei 1060/50 considera como necessitado, para os fins legais, "todo aquele

cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de

advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família".(BRASIL, 1950).

Para ser ter legitimidade deste direito deve haver uma afirmação da parte requerente

quanto à insuficiência de recursos, ou seja, para que a parte goze deste benefício deverá

declarar que não tem condições de suportar os gastos do processo sem prejudicar seu sustento

próprio e de seus familiares. Sobre tal condição dispôs a mesma lei que “a parte gozará dos

benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de

que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem

prejuízo próprio ou de sua família”.

Assim, podemos aferir que não se menciona exigência de nenhum fator

comprobatório da condição econômica, mas perante a afirmação de hipossuficiência será

concedido o benefício.

80

Nem a CF/88, nem a lei 1060/50 dão nota sobre a extensão deste direito à pessoa

jurídica, de tal forma que não há impeditivo ou qualquer distinção da abrangência do direito

neste sentido. Porém, o próprio STJ proferiu decisão favorável à situação:"A jurisprudência

deste Tribunal admite a concessão do benefício da assistência judiciária às pessoas jurídicas,

desde que haja comprovação da necessidade. (Agravo Regimental em Resp, nº

2003/0117651-1, 2ª Turma do STJ, Rel. Ministro Castro Meira. Julgado em 28/06/2005.

Publicado em: DJ 05/09/2005 p. 346)

Ainda, não é só privativo de brasileiros o exercício deste direito. É ele estendido aos

estrangeiros residentes no país, conforme reza o caput do art. 2º da mesma norma: “Gozarão

dos benefícios desta lei os nacionais ou estrangeiros residentes no País que necessitarem

recorrer à justiça penal, civil, militar, ou do trabalho”.

A orientação e defesa dos necessitados cabem à Defensoria Pública, em todos os graus.

“(...) no propósito de garantir a todos o acesso à justiça, em condições de igualdade,

a Constituição (art. 134) prevê a criação da Defensoria Pública, e a qualifica como

instituição essencial à administração da Justiça. Incumbe-lhe a orientação jurídica e

a defesa dos necessitados, em todos os juízos e tribunais. Haverá Defensorias

Públicas da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Territórios”. (ROCHA ,

2007, p.217)

É proveitoso destacar que não se confundem os significados os termos assistência

judiciária e benefício da justiça gratuita. O relator Marcelo Rodrigues, menciona no

julgamento do agravo abaixo:

[...] "Existe uma diferença conceitual e prática entre a locução 'assistência jurídica

gratuita', utilizada pela Carta da República, no inciso LXXIV de seu artigo 5º e as

expressões 'assistência judiciária' e 'gratuidade de justiça'".

"A constituição, ao assegurar a prestação da assistência jurídica integral e gratuita,

ampliou o campo de abrangência do instituto para abarcar não só o patrocínio

judiciário .... tornando mais amplos possíveis os serviços que vão desde a orientação

jurídica até a defesa em juízo" (ROGÉRIO NUNES DE OLIVEIRA, in Assistência

Jurídica Gratuita, p. 74, Ed. Lumem Júris: Rio de Janeiro - 2006).

E arremata ao citar PONTES DE MIRANDA (Comentários ao Código de Processo

Civil, Tomo I, 2ª edição, Forense, p. 460):

"O beneficio da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível

em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação jurisdicional.

É instituto de direito pré-processual. A assistência judiciária é a organização estatal,

ou paraestatal, que tem por fim, ao lado de dispensa provisória de despesas, a

indicação do advogado. É instituto de direito administrativo".

Com efeito, a obrigação do Estado do amplo acesso à Justiça cristaliza um princípio,

um objetivo fundamental da República, contido no art. 3º da Constituição Federal,

de construção de uma sociedade justa, que reduz as desigualdades sociais e erradica

a pobreza e a marginalização, sem qualquer discriminação, fundada na dignidade da

pessoa humana. [...] (Agravo de Instrumento, nº 1.0702.08.448741-3/001. Julgado

em: 13/05/2009. Relator Marcelo Rodrigues. Publicado em: Data do Julgamento:

08/06/2009.)

81

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao nosso ver, os remédios constitucionais acabam por reafirmar o direito pátrio.

A CF/88 não só previu direitos, mas também institutos que garantem que estes

direitos sejam exercidos em sua plenitude, livre de arbitrariedades e abuso de poder.

A exemplo, citemos: a CF/88 nos conferiu o direito de liberdade e, o remédio do

habeas corpus veio a tutetá-lo. Da mesma forma, conferiu-nos o direito à informação, mas

criou o direito de petição, de obtenção de certidão e do habeas data a fim de que possamos

exercitá-lo em cada caso.

Se um pedido nos for negado ou tido por não decidido, temos o mandado de

segurança, que vem amparar o direito líquido e certo.

Se algum destes direitos não puderem ser exercidos por falta de uma norma

regulamentadora, podemos usufruir do mandado de injunção.

Se a res publica sofrer ato lesivo, a ação popular vem buscar seu ressarcimento.

De um lado, conferem-se direitos para a sociedade, de outro, veda-se a atuação

abusiva do governante, uma vez que se encontra impedido de violar qualquer deles.

Temos armas, temos meios legais de exercemos nossa cidadania e garantir o gozo de

direitos violados ou não atendidos. Temos meios postos à nossa disposição a fim de exigirmos

das autoridades a sua intervenção quando quaisquer deles for violado ou não for conferido em

sua integralidade. Por isso, é de extrema importância o seu conhecimento por todos aqueles a

quem são dirigidos.

Diante do exposto, concluímos que devemos primar pela idoneidade do uso desses

institutos, seja no plano individual ou coletivo. Devemos usufruir deles sempre que necessário

ao invés de desprezá-los; devemos concretizá-los, pois consagram a vitória da democracia em

face de arbitrariedades, abusos de poder e de violação a direitos emanados pela Constituição.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Osvaldo Emanuel A. Habeas corpus, o ‘santo remédio’ para a liberdade.

Disponível em: < http://aqueimaroupa.com.br/?p=16172>.Acesso em: 10 jun. 2010.

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82

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Processo Civil, relativas ao mandado de segurança. Vade Mecum.7 ed. São Paulo: Saraiva,

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Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Vade Mecum.7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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defesa de direitos e esclarecimentos de situações. Vade Mecum.7 ed. São Paulo: Saraiva,

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84

A SEGURANÇA JURÍDICA TRAZIDA PELO SERVIÇO NOTARIAL E REGISTRAL AOS CIDADÃOS

0 Dênio Guilherme dos Reis

1

RESUMO: O serviço notarial e registral têm ganhado força atualmente em razão da rapidez

com que seus serviços são prestados, mormente em decorrência das inovações legais que

delegaram funções aos cartórios que outrora eram privativas do Poder Judiciário. Tal fator

decorre do acúmulo exacerbado de demandas judiciais, que, via de regra, não são

solucionadas a contento, em prazo razoável. Todavia, a população ainda desconhece os

benefícios dos serviços prestados pelos cartórios, utilizando como meio o Poder Judiciário

para a solução de demandas que hoje, podem ser solucionados com maior celeridade nos

cartórios. Assim pretende-se com o presente artigo demonstrar a segurança jurídica do serviço

notarial e registral mediante uma análise substancial de seu surgimento histórico, natureza

jurídica, bem como evolução legislativa. Desta feita, o serviço notarial e registral apresentam

perfeita segurança aos atos que realizam, além de serem dotados de caráter público, são feitos

de forma rápida e eficaz, satisfazendo em curto prazo os interesses da partes.

Palavras-chaves: Serviço notarial; Registro; Segurança Jurídica.

ABSTRACT: The notary service and registral have gained strength today because of the

rapidity with which its services are provided, mainly as a result of legal innovations that have

delegated tasks to private registries that were once the judiciary can. This factor arises from

the exaggerated accumulation of lawsuits, which usually are not resolved satisfactorily, within

a reasonable time. However, the population is still unaware of the benefits of services

provided by registries, using the judiciary as a means to resolve claims that today can be

solved more quickly in the registries. Thus it is intended with this article demonstrate the legal

and notarial service registral by a substantial analysis of its historical emergence, legal and

legislative developments. This time, the notarial service and registral have perfect security to

perform acts that, in addition to having a public character, are made quickly and efficiently,

satisfying short-term interests of the parties.

Keywords: notary service, registry, Security Law

1. INTRODUÇÃO

O serviço notarial e registral, paulatinamente, têm alcançado destaque em virtude da

conjugação de fatores como o crescimento populacional associado ao aumento da

criminalidade pela escassez de empregos. Neste cenário, o Poder Judiciário tem-se mostrado

1 Dênio Guilherme dos Reis é especialista em Direito Público pela FADOM. Doutorando em Ciências Jurídicas

e Sociais Universidad del Museo Socio Argentino. Professor Universitário nas áreas de Direito Civil, mais

especificamente Direitos Reais e Contratos. Pós Graduando em Direito Notarial e Registral pela Faculdade

Milton Campos. Oficial de Registro de Imóveis de Jequeri-MG.

85

insuficiente na solução da prestação jurisdicional devido ao grande volume de demanda que

sobrecarrega a instituição, engessando assim, a tramitação regular de um processo com

duração razoável.

Dentro deste contexto, o serviço notarial e registral vêm adquirindo espaço na

solução de pequenos litígios e procedimentos que podem ser solucionados com brevidade,

quais sejam: separação, divórcio, realização de inventário, retificação de área; sendo que neste

último procedimento a competência é do serviço registral de imóveis.

Todavia, não obstante a importante função que o serviço prestado pelos cartórios

possui, ainda é pouco utilizado pela população. As pessoas desconhecem ou não acreditam na

possibilidade de realização de certos procedimentos pelos cartórios, optando, mesmo diante

da lentidão do Poder Judiciário, por ingressar com uma demanda em juízo.

A premissa do serviço notarial e registral, analisando sua evolução histórica em

tempos remotos, estabelecendo conceitos, natureza jurídica e a evolução legislativa que

conferiu amplitude nas atividades notariais e registrais, pautou-se e ainda pauta-se no

princípio da segurança jurídica.

Por derradeiro, em razão das constantes modificações introduzidas no Código Civil

brasileiro atribuindo aos cartórios a função, observados certos requisitos legais, de realização

de separações, divórcios, partilha de bens, inventários, retificação de área, dentre outros atos

que antigamente somente eram realizados pelo Poder Judiciário, mister se faz o estudo sobre a

importância da utilização dos cartórios pelos cidadãos como meio facilitador de solução de

demandas, com o aval trazido pelo serviço, que é a segurança jurídica.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA ATIVIDADE NOTARIAL

O primeiro reflexo da confiabilidade do serviço notarial observa-se a partir do seu

surgimento, o qual possui como primeiro registro histórico as práticas dos escribas no antigo

Egito. Neste sentido, é salutar o entendimento de Brandelli, senão vejamos:

O embrião da atividade notarial, ou seja, o embrião do tabelião, nasceu do clamor

social, para que, num mundo massivamente iletrado, houvesse um agente confiável

que pudesse instrumentalizar, redigir o que fosse manifestado pelas partes

contratantes, a fim de perpetuar o negócio jurídico, tornando menos penosa a sua

prova, uma vez que as palavras voam ao vento.2

2 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 4.

86

Assim, a partir do momento que o homem sentiu a necessidade de viver em

comunidade e gerir suas relações de forma confiável escolheu uma certa pessoa para que

pudesse anotar tais relações e torná-las públicas, visando o respeito, pela coletividade, dos

direitos nele inseridos.

Para Cotrim Neto3 a sociedade egípcia, dotada de um notório avanço social, era

regida pelo monarca, organizada em castas, imperando a forte influência sacerdotal, ocasião

em que surgiram os primeiros oficiais de notas, denominados de “escribas do Egito”. Eram

pessoas de altíssimo nível cultural, ocupantes de cargos privilegiados nesta sociedade,

considerados propriedade privada, podendo transmitir por sucessão aos herdeiros. Todavia,

destaca-se que os documentos por eles redigidos não eram possuidores de fé pública e por

isso, os instrumentos por eles lavrados, para ter valor probatório, tinham que ser homologados

por uma autoridade superior.

Neste compasso, aduz Almeida Junior:

Desde 600 anos A. C., o encargo de receber e selar os atos e contratos, que deviam

ser munidos do selo público, competia a uma espécie de notários chamados escribas.

Estes, na maior parte das convenções, faziam simples notas ou abreviaturas, cada

uma das quais significava uma palavra, e eram escritas com toda a celeridade, como

se depreende do versículo segundo do Salmo, XLIV: Lingua mea calamus scribae,

velociter scribentis. Eram revestidos de caráter sacerdotal, tanto os escribas ou

doutores da lei, que transcreviam e interpretavam a Sagrada Escritura, como os

escribas do povo, que ocorriam às necessidades quotidianas dos cidadãos, redigindo

memórias, cartas e semelhantes documentos. 4

No tocante à organização do sistema notarial egípcio, o referido autor Almeida

Júnior explica sua sistemática:

Na praxe egípcia, pois, se encontram a escritura, o cadastro, o registro e o imposto

de transmissão ou siza, em sua origem histórica. Encontram-se ainda o arquivo ou

cartório, porque não bastava que os contratos fossem registrados; a lei exigia ainda

que fossem transcritos no cartório do tribunal ou juízo e que fossem depositados no

cartório do conservador dos contratos: era o uso de todos os países onde penetrava a

civilização helênica. 5

Corroborando a explicação de Almeida Júnior em relação aos escribas, Brandelli

leciona:

Os escribas pertenciam às categorias de funcionários mais privilegiadas e lhes era

atribuída uma preparação cultural especialíssima; por isso, os cargos recebiam o

tratamento de propriedade privada, e, por vezes, transmitiam-se em linhas de

sucessão hereditária. Eram eles que redigiam os atos jurídicos para o monarca, bem

como atendiam e anotavam todas as atividades privadas. No entanto, como não eram

3 COTRIM NETO, Alberto Bittencourt. Perspectivas da função notarial no Brasil. Porto Alegre: Colégio

Notarial do Brasil – Seção do Rio Grande do Sul, 1973, p. 10. 4 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. São Paulo: Saraiva, 1963, p.5.

5 Ibidem, p.14.

87

possuidores de fé pública, havia a necessidade de que os documentos por eles

redigidos fossem homologados por autoridade superior. 6

Outro ponto de destaque na evolução histórica do serviço de notário foi o surgimento

na Grécia da figura dos mnemons ou epistates e hieromnemons, que a tradução em latim era

notarii, actuarii, chartularii, cuja tradução para o português seria notários, secretários e

arquivistas, considerados funcionários públicos. Tais pessoas eram encarregadas de redigir

instrumentos particulares, podendo posteriormente, ser utilizados pelas partes contratantes

como prova, de escrever os atos dos processos judiciais, como as petições, acusações, defesas,

citações e as decisões dos juízes e, por fim, tinham a função de conservar documentos

públicos e particulares.7

Dentro dessa dinâmica, explica Almeida Junior:

A verdade é que, em todos os países onde dominou a civilização helênica, observa-

se a existência de notários, incumbidos de dar aos contratos o seu testemunho

qualificado e, ao lado dos tribunais e juízes, um secretário, incumbido não só de

escrever peças do processo, como de coordená-las, guardá-las na caixa selada

respectiva e transmitir essa caixa ao juiz ou tribunal. A expressão – mnemons,

literalmente traduzida, bem explica que o fim principal do notário é guardar a

lembrança dos contratos, isto é, preconstituir prova.8

Assim, no início da civilização romana, a realização dos negócios acontecia de forma

verbal, sendo fielmente cumprida a lei natural e imperando a boa-fé. Porém, com o aumento

da população romana e a multiplicação dos negócios civis tornou-se necessária a

instrumentalização desses negócios por intermédio de um profissional, responsável por

conferir formalidade à vontade das partes, de forma que tal documento possuísse força

probatória como um ato público. 9

Sobre as figuras dos argentarii, dos notarii e dos tabularii, Miranda menciona que:

Surgiram diversos profissionais responsáveis pela instrumentalização de negócios,

conservação dos documentos e por serviços auxiliares da justiça, como os

argentarii, que exerciam nos fóruns a função de procurar empréstimos em dinheiro

para particulares e confeccionar os contratos de mútuo. Os notarii, cuja atividade era

escrever com as notas, que consistia muitas vezes na simples indicação das iniciais

ou abreviaturas conhecidas se revelando uma espécie de estenógrafos. Os tabularii,

que eram funcionários fiscais e tinham, dentre outras funções, a escrituração e a

6 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 4-5.

7 GUERREIRO, José Augusto Mouteira. A Actividade Notarial e Registral na Perspectiva do Direito

Português. Trabalho apresentado no XIII Congresso Internacional de Direito Comparado, realizado no Rio de

Janeiro em Setembro de 2006. Publicado no site www.fd.uc.pt/cenor/textos/mouteiraguerreiro.pdf. Acessado

em 20.12.2009. 8 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 16.

9 Ibidem, p. 20.

88

conservação dos registros hipotecários, a direção do censo e posteriormente

confeccionavam documentos legais. 10

No entanto, a carreira de tabelião de notas, somente foi institucionalizada com a

administração do imperador Justiniano I (Flavius Petrus Sabbatius Justinianus), responsável

pela unificação do império romano cristão. 11

O Direito Canônico também contribuiu para o desenvolvimento da atividade notarial

como explica Almeida Júnior:

Na ordem eclesiástica, desde os primeiros tempos da Era Cristã, achamos alguns

oficiais que traziam o nome de notarii. Eram estes os notarii regionarii, notários

regionais, instituídos pelo Papa S. Clemente, no ano 98, os quais eram distribuídos

pelas sete regiões eclesiásticas, e tinham o encargo de receber os atos dos mártires,

de anunciar ao povo as procissões, as preces, etc.; os notários do tesouro da Igreja,

chamados também scriniarii, e os protonotários apostólicos, instituídos pelo Papa

Júlio I na primeira metade do século IV. Estes últimos se chamavam – participantes,

e gozavam de algum privilégio, como por exemplo, do direito a uma parte das taxas

pagas à chancelaria romana pela expedição dos atos e ad instar participantium, se

este título era concedido por mera honorificência. 12

Noutro giro, explica Arouca13

que com o tombamento de bens eclesiásticos para

proteção da igreja católica e o registro desses tombamentos para fins de publicidade e

segurança jurídica fomentou o registro das propriedades, que em um primeiro momento eram

efetuados sob a égide da igreja católica e posteriormente dando origem ao serviço de registro

de imóveis.

Além disso, contribuía para o estabelecimento de uma forte ligação da atividade

notarial à igreja católica, o fato de serem as pessoas ligadas ao clero dotadas de vasto

conhecimento, inclusive jurídico, dominando a escrita, e, desta forma, garantindo a confecção

de instrumentos de elevado nível técnico e dotados de perfeição nas formas.

Já no Brasil, Miranda14

ensina que a atividade notarial data do próprio

descobrimento, pois Pero Vaz de Caminha, embora não fosse oficialmente o escrivão da

10

MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de

desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.

ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.

de 2010. 11

MARTINS, Cláudio. Teoria e Prática dos atos notariais. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 7. 12

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. São Paulo: Saraiva, 1963 p. 53-54. 13

AROUCA, Ana Carolina Bergamaschi. Evolução Histórica dos Notários e sua Função Social. Dissertação

apresentada ao Curso de Pós-graduação stricto sensu em Função Social dos Institutos de Direito Privado. São

Paulo, 2009. Disponível em: http// www.fadisp.com.br/download/.../ana_carolina_bergamaschi_arouca.pdf,

Acesso em: 02 abr 2010. 14

MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de

desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.

89

armada, de fato, exerceu a função notarial ao narrar oficialmente para a Coroa Portuguesa a

descoberta e a posse das novas terras.

Neste sentido, é pertinente a colocação de Brandelli sobre o desenvolvimento da

função notarial no Brasil, vejamos:

Abaixo da magistratura situava-se o terceiro nível da burocracia: uma vasta teia de

pequenos cargos, de tabeliães e escrivães a fiscais de portos e comissários da

marinha. Havia literalmente centenas desses cargos e sua presença na folha de

pagamento real indicava sua importância dentre os empregados reais. Alguns desses

cargos não requeriam qualquer experiência ou habilidade. Mesmo nos casos em que

isso se torna necessário, a habilidade não era levada em consideração no momento

em que as indicações eram feitas. Muitos dos cargos da burocracia profissional

podiam ser comprados, ou adquiridos como recompensa oferecida pela Coroa. Tais

cargos não eram apenas dados diretamente a candidatos em perspectiva, mas eram

também oferecidos a viúvas ou órfãos como dote. Obviamente, esses pequenos

cargos se constituíam um patrimônio real, um recurso que possibilitava a Coroa

assegurar a lealdade e recompensar bons serviços. 15

Em seguida, foi editado no dia 11 de outubro de 1827, o Decreto-Lei n.º 848,

regulando o provimento dos ofícios da Justiça e da Fazenda. No que se referem aos Registros

Públicos, estes foram instituídos pela Lei n.º 601, de 18.09.1850 e seu Regulamento n.º 1.318,

de 30 de janeiro de 1854 passou a ser de competência da Igreja Católica, ficando o sistema

conhecido como “Registro do Vigário” ou “Registro Paroquial”.

Posteriormente, foi editada a Lei n.º 1.237, de 24 de setembro de 1864,

regulamentada pelo Decreto n.º 3.453, de 26 de abril de 1865, criando o Registro de Imóveis

com a função de transcrever aquisições imobiliárias e inscrever ônus reais.

Ato contínuo, adveio em 25 de abril de 1874 o Decreto n.º 5.604 criando de maneira

formal e generalizada o registro civil para fins de nascimento, casamento e óbitos, sendo que a

partir do ano seguinte, 1875, algumas cidades deram início paulatino à criação dos ofícios de

registro civil, os denominados “cartórios” do registro civil.

Entretanto, foi somente a partir da promulgação da primeira Constituição Brasileira,

datada de 1891, que se teve início a primeira tentativa de organizar melhor a atividade notarial

e de registro ao dispor em seu artigo 58 que, o provimento dos ofícios de justiça nas

circunscrições judiciárias competia aos presidentes dos tribunais federais. 16

ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.

de 2010. 15

BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 7. 16

MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de

desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.

ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.

de 2010.

90

Assim, faz-se necessário frisar que a importância do serviço do notário advém desde

os primórdios da colonização, ou melhor, da socialização do homem, tendo a legislação

apenas conferido amplitude aos seus efeitos.

2.1. Definição do serviço notarial e de registro no ordenamento jurídico

Estabelece a Constituição Federal de 1988 no artigo 236 17

que:

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por

delegação do Poder Público.

§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos

notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus

atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos

aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

§ 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de

provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura

de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

Segundo dispõe o artigo 1º da Lei n.º 8.935 de 18 de novembro de 1994, conhecida

como Lei dos Notários e Registradores, os serviços notariais e de registros são os de

organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade,

segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Ante tais considerações legais, nota-se que o serviço notarial não perdeu sua essência

com a evolução de sua denominação atribuída pelas legislações, ou seja, o serviço notarial

continua tendo como finalidade conferir validade e eficácia geral a documentos e situações

jurídicas, como sempre foi.

2.2. Natureza Jurídica do serviço registral e notarial

Em primeiro lugar, ao analisar o artigo 236 do texto constitucional, é possível

identificar a natureza pública da função notarial e registral, ainda que haja a delegação para

ser exercida em caráter privado.

Desta forma, a previsão constitucional exigindo a edição de lei federal para regular

essa atividade, o ingresso por concurso público, mediante seleção para verificação da aptidão

do candidato, preenchimento de requisitos legais e a necessidade da realização de concurso

para preenchimento das serventias que estejam vagas por mais de seis meses, caracterizam

17

BRASIL. Leis, etc. Constituição Federal, Código Civil, Código de Processo Civil. São Paulo: Manole, 2003,

p.1.780.

91

sua natureza pública, bem como a importância do serviço, pois os requisitos para o ingresso

no cargo são tão exigentes quantos outros, por exemplo, os cargos do Poder Judiciário.

A esse propósito, os serviços prestados pelos profissionais que laboram nos cartórios,

chamados serventuários são considerados servidores públicos, que exercem uma função

pública sui generis, exercida no interesse da sociedade. 18

Portanto, o fato de serem executados mediante delegação não retira do serviço

notarial e de registro a sua natureza de serviço público, essencial à segurança, eficácia,

publicidade e autenticidade dos atos jurídicos praticados no cotidiano da vida em sociedade.

No entendimento de Lima19

no que diz respeito a notários e registradores, o artigo 3°

da Lei 8.935/94 os qualifica como profissionais do direito. Logo, têm o dever de conhecer os

princípios e normas atinentes aos seus ofícios. As suas competências são taxativamente

definidas em lei (artigo 6°20

). Outrossim, o artigo 31, I21

, considera infração sujeita à sanção

disciplinar, a inobservância das prescrições legais e normativas.

Destaca Miranda22

que apesar da fiscalização dos atos notariais ser de competência

do Poder Judiciário, por expressa disposição constitucional, os serviços registrais e notariais

não mantêm qualquer relação organizacional nem hierárquica com o referido poder e

tampouco com qualquer outro órgão do Estado, estando o notário e o registrador subordinados

tão-somente à lei, em cumprimento ao princípio da legalidade.

Contudo, a disciplina da matéria notarial e registral não se restringe apenas à

Constituição Federal e à Lei 8.935/94, pois, diversas leis esparsas foram editadas tanto no

âmbito federal, como no âmbito estadual para disciplinar a matéria, atualizando-a de forma a

atender às necessidades sociais. Neste contexto, insere-se a Lei 11.441/07, que permitiu a

realização de separações, divórcios e partilhas na esfera extrajudicial, bem como a alteração

18

DINIZ, Maria Helena. Sistema de Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1992, p.37. 19

LIMA, Rogério Medeiros Garcia de. Princípios da Administração Pública: reflexos nos serviços notariais e

de registro. In: Revista Autêntica, 2 ed. Belo Horizonte/MG: Ed.Lastro, 2003.

20 Artigo 6 º da Lei 8.935/94: Aos notários compete: I - formalizar juridicamente a vontade das partes; II -

intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade,

autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias

fidedignas de seu conteúdo; III - autenticar fatos.

21 Artigo 31, I da Lei 8.935/94: São infrações disciplinares que sujeitam os notários e os oficiais de registro às

penalidades previstas nesta lei: I - a inobservância das prescrições legais ou normativas.

22 MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de

desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.

ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.

de 2010.

92

do artigo 212 e 213 da Lei 6.015/73 que trouxe à baila a possibilidade de retificação de área,

de forma administrativa, perante a serventia registral, proporcionando maior comodidade aos

usuários do serviço e por consequência direta, a celeridade dos feitos requeridos.

2.3. A segurança e confiabilidade do serviço notarial e registral

Com a evolução das relações sociais entre os homens, os conflitos tendem a surgir,

seja por competição, por ganância ou por destaque no meio em que se encontram, e até por

poder, enfim, vários são os fatores que motivam as pessoas a estabelecerem litígios entre si.

Em razão de tal evolução o Poder Judiciário caracteriza-se como o principal

mediador de tais conflitos, tendo o juiz como o aplicador da lei ao caso concreto, ou seja,

dizendo o direito às partes.

Mas como a sociedade tende a evoluir e o homem tende a progredir em vários

aspectos, seja biologicamente ou psicologicamente, os conflitos acompanham tal evolução, ou

seja, tornam-se cada vez mais incidentes ao ponto de fazer com que o Poder Judiciário fique

engessado pelo alto índice de demanda, não decidindo os litígios em um prazo razoável.

Neste contexto Moraes23

explica que o Poder Judiciário, desde que haja

plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial

requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é

princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde

uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue.

Neste diapasão, já mencionava Rui Barbosa na Oração aos Moços:

“... justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta, uma vez

que a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as

lesa no patrimônio, honra e liberdade”. 24

Assim, a demora no julgamento das lides pelo Poder Judiciário faz surgir na

coletividade um sentimento de frustração e insegurança e ainda a perda de credibilidade na

justiça, o que pode contribuir para o retorno da prática da justiça privada, como nos tempos

bárbaros.

23

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo/SP: editora Atlas, 2004, p. 34. 24

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços, reedição da Faculdade Ruy Barbosa e do Museu Casa de Rui Barbosa,

Salvador/BA, outubro de 2001.

93

Neste contexto, algumas funções são delegadas ao particular para que as realize em

caráter público, momento em que os serviços notariais esboçam sua relevância e

confiabilidade.

A busca de soluções para esse quadro deveria valorizar “novas técnicas” que

visassem a diminuição da distância entre a sociedade e a justiça. Essas “novas

técnicas”, divididas em uma “vertente jurisdicional” e uma “vertente extra-

processual” deveriam ser incentivadas, de forma a aproximar a justiça dos cidadãos

e contribuir para seu desafogamento. As técnicas jurisdicionais realizariam a

“desformalização do processo”, ou seja, a busca de um processo mais rápido,

simples e econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com eficiência

certos tipos de controvérsias, de menor complexidade. A vertente extra-processual

estaria relacionada com a busca de meios alternativos ao processo, tais como a

arbitragem, a conciliação extra-judicial e a auto-composição, técnicas que, além de

contribuírem para a desobstrução dos tribunais, também funcionam como “estímulo

às vias participativas, à informação e à tomada de consciência” além da conseqüente

“pacificação social. 25

Nesta seara, o serviço notarial e registral ganham força e reconhecimento social. A

Lei n.º 10.931 de 02 de agosto de 2004 ao alterar dispositivos da Lei n.º 6.015 de 31 de

dezembro de 1973, a denominada Lei de Registros Públicos, possibilitou que as retificações

de registro imobiliário, que antes estavam sujeitas a procedimento judicial de jurisdição

voluntária, sejam feitas pelo próprio oficial do Registro de Imóveis, só se levando ao Poder

Judiciário as situações em que não houver acordo entre as partes envolvidas ou houver, em

tese, risco de lesão a direito de propriedade de algum confrontante.

De igual forma é a Lei n.º 11.790 de 02 de outubro de 2008 que ao alterar

dispositivos da Lei de Registros Públicos possibilita ao Oficial de Registro Civil registrar as

declarações de nascimento feitas após o decurso do prazo legal, sem necessidade primária da

intervenção judicial, como se exigia anteriormente.

Ademais, a Lei n.º 11.441 de 04 de janeiro de 2007 que ao alterar dispositivos do

Código de Processo Civil possibilita a realização de inventários, partilhas, separações e

divórcios consensuais por via administrativa, dispensando, assim, o procedimento judicial,

desde que não haja interesses e direitos de incapazes.

Por fim a Lei nº 12.133 de 17 de dezembro de 2009, que ao dar nova redação ao

artigo 1.526 do Código Civil, determina que a habilitação para o casamento seja feita

pessoalmente perante o oficial do Registro Civil, com a ciência do Ministério Público, não

necessitando mais, como outrora, da intervenção judicial, salvo no caso de impugnação pelo

oficial, pelo Ministério Público ou por terceiro.

25

GRINOVER, Ada Pellegrini. A Crise do Poder Judiciário. Texto preparado para a XIII Conferência Nacional

da OAB. São Paulo, 1990.

94

Nota-se que o legislador vem conferindo ao serviço notarial e registral uma

importante função nas relações jurídicas estabelecidas entre as pessoas, ou seja, um eficaz

instrumento de formalização e publicidade das relações, principalmente com a rapidez que é

realizada. Além disso, confere a estabilidade e segurança de igual forma com que os atos

praticados pelo Poder Judiciário possuem, conferindo segurança e celeridade, resgatando cada

vez mais a confiabilidade dos cidadãos.

3. CONCLUSÃO

Ante todo o exposto é possível concluir que o serviço notarial e registral, em razão

de seu arcabouço histórico angariado de confiança e segurança jurídica, é um serviço de

enorme utilidade pública, pois facilita os procedimentos que são de sua competência, seja pela

agilidade da realização ou mesmo pelo caráter público que possui.

Além disso, conclui-se que a importância da atividade notarial e registral, ou melhor,

a confiabilidade em suas atividades resulta benefícios não apenas para a sociedade em geral,

em suas relações, mas principalmente ao Judiciário, que progressivamente vai desafogando

das demandas acumuladas, fazendo acontecer a desjudicialização como corolário do princípio

da celeridade.

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o de outubro de 1969, as Leis n

o

4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e n

o 10.406, de 10 de

janeiro de 2002, e dá outras providências. Disponível em:<

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dezembro de 1973 – Lei de Registros Públicos, para permitir o registro da declaração de

nascimento fora do prazo legal diretamente nas serventias extrajudiciais, e dá outras

providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010

/2008/Lei/L11790.htm>. Acesso em: 02 de abr. 2010.

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10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para determinar que a habilitação para o

casamento seja feita pessoalmente perante o oficial do Registro Civil. Disponível

96

em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/L12133.htm>. Acesso em

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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo/SP: editora Atlas, 2004.

97

A PENALIZAÇÃO EM SINDICÂNCIA ADMINISTRATIVA DISCIPLINAR.

Vagner Adriano Ferreira1

RESUMO: O presente artigo visa analisar a sindicância, levando em conta seu conceito,

finalidade e previsão legal de aplicação, tendo como base a legislação federal e estadual. Na

oportunidade observou-se uma grande divergência conceitual, especialmente o que condiz

com a finalidade. Ficando evidente a função da sindicância dentro do processo administrativo

disciplinar, o que vem sendo hoje deturpada, já que sua característica inicial de ser um

procedimento de caráter investigativo – instrutório, servindo como inquérito no referido

processo administrativo, e hoje sendo aplicada como função apuratória de irregularidade para

com o intuito de aplicar uma penalização, sendo utilizado para a aplicação de penas de

natureza “leve” como à advertência ou a suspensão de até 30 (trinta) dias, desde que cumpram

os princípios do contraditório, da ampla defesa. Foram apresentados alguns dos princípios que

norteiam o processo administrativo, já que não é pacifico quanto todos os princípios, variando

de doutrinador para doutrinador. Sendo explanado no artigo, durante a fundamentação o

procedimento da sindicância em suas duas finalidades hoje admitidas, iniciando em sua

constituição alcançando o final desta, no momento de apresentação do relatório final. Sendo

observado ainda que a comissão sindicante que deverá ser imparcial na condução da

sindicância, podendo o servidor investigado ou indiciado propor exceção de suspeição ou

impedimento.

Palavras-Chave: Sindicância; Punição; Princípios do contraditório e ampla defesa.

ABSTRACT: The present article aims at to analyze the investigation, leading in account its

concept, purpose and legal forecast of application, having as base the federal and state

legislation. In the chance a great conceptual divergence was observed, what especially condiz

with the purpose. Being evident the function of the investigation inside of the administrative

proceeding to discipline, what it comes today being misleading, since its initial characteristic

of being a procedure of investigative character - instructive, serving as inquiry in the related

administrative proceeding, and today being applied as investigative function of irregularity

stops with intention to apply a penalization, being used for the application of penalty of

“light” nature as to the warning or the suspension of up to 30 (thirty) days, since that they

fulfill the principles of the contradictory, of legal defense. Some of the principles had been

presented that guide the administrative proceeding, since it is not I pacify how much all the

principles, varying of doutrinador for doutrinador. Being explanado in the article, during the

recital the procedure of the investigation in its two purposes today admitted, initiating in its

constitution reaching the end of this, at the moment of presentation of the final report. Being

observed despite the sindicante commission that will have to be impartial in the conduction of

the investigation, being able the server investigated or accused to consider exception of

suspicion or impediment.

KEYWORDS: Investigation; Punishment; Principles of the contradictory and legal defense.

1 Aluno do 7º Período do curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga.

98

INTRODUÇÃO

Os servidores públicos respondem administrativamente pelos ilícitos administrativos

definidos em legislação estatutária, no entanto, para a apuração e penalização destes

servidores, a Administração Pública utiliza meios como a sindicância e o processo

administrativo, o qual abordaremos no decorrer do presente artigo.

A Sindicância é um dos meios de apuração de irregularidades envolvendo servidores

públicos em decorrência de seu cargo ou de suas atribuições, no entanto deve-se esclarecer

que sua aplicação poderá estar compreendida de vícios, a qual poderá acarretar a nulidade de

todo o procedimento sindicante.

Porém com o presente artigo, procuraremos responder a questões quanto a legalidade

da sindicância, principais vícios e ainda quanto a aplicação da pena, já que esta é o resultado a

ser pretendido caso confirmada a veracidade dos indícios que fundamentaram a sindicância.

1. A SINDICÂNCIA

Antes de adentrar ao estudo da sindicância em todos seus aspectos, devemos

esclarecer que conceitualmente, sindicância é:

Para Hely Lopes Meireles,2 (p. 705):

“É o meio sumário de apuração ou elucidação de irregularidades no sérvio para

subseqüente instauração de processo e punição ao infrator.”

Já Maria Sylvia Zanella di Pietro3, utiliza-se o conceito do ilustre doutrinador José

Cretella Junior, (p. 636):

“meio sumario de que se utiliza a Administração do Brasil para, sigilosa ou

publicamente, com indiciados ou não, proceder à apuração de ocorrências anômalas

no serviço público, as quais, confirmadas, fornecerão elementos concretos para a

imediata abertura de processo administrativo contra o funcionário público

responsável.”

E ainda José dos Santos Carvalho Filho4, conceitua, (p. 790):

“Trata-se da denominação usualmente dispensada ao procedimento administrativo

que visa a permitir uma apuração preliminar sobre a existência de ilícito funcional. É

através da sindicância que se colhem indícios sobre: a existência da infração

funcional; de sua autoria; e do elemento subjetivo com que se conduziu o

responsável.

2 MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22.Ed. 2ª reimpr. São Paulo: Atlas, 2009.

4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 10. Ed. Rio de Janeiro. Editora

Lúmen Júris, 2003.

99

Em analise aos distintos doutrinadores observa-se que ambos conceituam a

sindicância como um meio sumário de apuração de irregularidades, que servirá como

fundamento para a abertura de um processo administrativo disciplinar, funcionando como

uma espécie de inquérito policial, que servirá ou não para a abertura de uma ação penal.

No entanto, para Odete Medauar5 (p. 318), a sindicância possui duas modalidades: A

sindicância preliminar a processo administrativo e a sindicância como processo sumário:

A sindicância preliminar a processo administrativo trata-se de um meio de apuração

prévia, do processo administrativo disciplinar, na qual servirá para o colhimento de elementos

informativos para instaurar ou não o referido processo, servindo como peça preliminar e

informativa determinando os fatos e indicando os indiciados à autoria, tratando-se assim de

um meio de apuração previa.

Já a sindicância como processo sumário, destina-se a apurar a responsabilidade do

servidor já indicado, por praticar falta de natureza leve, inclusive aplicando pena.

Adotando a mesma ideia da doutrinadora Odete Medauar, o grande Celso Antônio

Bandeira de Melo6 (p. 322), conceitua:

“É o procedimento investigativo, com prazo de conclusão não excedente de 30 dias

(prorrogáveis pela autoridade superior por igual período), ao cabo do qual, se a

conclusão não for pelo arquivamento do processo ou pela aplicação de penalidade de

advertência ou suspensão até 30 dias, assegurada ampla defesa, será instaurado

processo disciplinar, o que é obrigatório sempre que o ilícito praticado enseja sanção

mais grave.”

Diante todos os conceitos acima expostos, vemos a divergência de opiniões quanto à

finalidade da sindicância, já que uma somente é seu caráter investigativo - instrutório, e outra

com um caráter punitivo, funcionando como um verdadeiro Processo Administrativo

Disciplinar, somente em rito sumário, e limitado a penas de natureza “leve”, como a

advertência e a suspensão de até 30 (trinta dias).

Tendo em vista, o forte entrelaçamento com o Processo Administrativo Disciplinar,

temos visualizar que o mesmo trata-se segundo Hely Lopes Meireles7 (p.702):

“É o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos e demais

pessoas sujeitas ao regime funcional de determinados estabelecimentos da

Administração.”

5 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 13. Ed. rev.e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2009. 6 DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26. Ed. rev. e atual. São Paulo:

Malheiros Editores: 2009. 7 MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

100

Conforme o conceito supracitado fica claramente demonstrado que no Processo

Administrativo Disciplinar, à finalidade é a apuração da possível falta cometida por servidor,

e caso for, aplicar a sanção pertinente, podendo incluir em seu procedimento a fase

inquisitória.

Assim é visível que a sindicância teve sua finalidade desvirtuada, passando de um

procedimento inquisitivo, para um procedimento punitivo, sendo considerado por alguns

autores como a doutrinadora Odete Medauar, como um Processo Administrativo Sumário.

No entanto cabe ressaltar que para a sindicância poder ter caráter punitivo, esta terá

que garantir a prevalência em seus atos dos princípios do contraditório e ampla defesa,

conforme é pacífico pelo Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. POLICIAL MILITAR NÃO ESTÁVEL.

LICENCIAMENTO. SINDICÂNCIA SUMÁRIA. Licenciamento de policial

militar sem estabilidade pode resultar de procedimento administrativo mais simplificado, desde que respeitado o contraditório e a ampla defesa. Verificação

da ocorrência do contraditório e da ampla defesa é discussão que demanda reexame

de fatos e provas - vedação da Súmula 279. Agravo regimental a que se nega

provimento. (STF - AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - AI 504869

AgR / PE – PERNAMBUCO, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Publicado

em: 18/02/2005). (Grifo Nosso).

Assim sendo, fica demonstrado que a sindicância na hipótese punitiva adota os

princípios do processo administrativo, e assim cumpre a previsão legal da Constituição

Federal.

“Art. 5º [...]

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a

ela inerentes;”

Como se observa no processo administrativo deve ser amparado por princípios já

previstos no rol de direitos e garantias fundamentais, preservando aos litigantes, no caso ao

servidor acusado por pratica de ato infracional, o contraditório e a ampla defesa.

Quanto aos princípios do processo administrativo, encontra-se previstos

constitucionalmente os princípios do contraditório, ampla defesa, do devido processo legal e

da razoável duração do processo dentre outros, os quais passemos a abordar.

Em relação ao principio do contraditório, para Odete Medauar8 (p. 171) é a faculdade

do acusado, no caso do processo administrativo disciplinar o indiciado, de manifestar-se sobre

as acusações, documentos, defendendo-se sobre o seu ponto de vista, utilizando argumentos

8 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 13. Ed. rev.e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2009.

101

próprios, de modo que a contradita tenha efetividade e não apenas seja uma formalidade

constante no processo.

Outro princípio é o da ampla defesa, segundo a própria Odete Medauar (p.173), trata-

se do direito de defesa, que é o direito de resistência ás pretensões adversárias, consistindo na

possibilidade do acusado, (indiciado) apresentar sua defesa, possibilidade de apresentação de

recurso, utilização de defesa técnica, obrigatoriedade de ser notificado da abertura do

processo, requerer a produção de provas, etc.

Já o princípio da razoável duração do processo, garante a celeridade na tramitação do

processo, mantendo um vínculo estreito com o da eficiência, visando uma tramitação célere

do processo, para que a decisão seja tomada no menor tempo possível. Ressalta-se que este

princípio não implicará no sacrifício do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, já

que pautará pela proporcionalidade e conciliação das partes envolvidas.

E o Princípio do devido processo legal, segundo Odete Medauar, a doutrina

posiciona favoravelmente quanto a aplicação deste princípio no processo administrativo,

conforme observa-se a sumula 21 do STF, in verbis:

“STF – Sumula 21 - Funcionário em estágio probatório não pode ser

exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais

de apuração de sua capacidade.”

Sendo assim, caberá no processo administrativo disciplinar, a garantia do devido

processo legal, sendo garantido ainda o contraditório e a ampla defesa, já que existem

indiciados e fatos que poderão ser controvertidos.

Ainda existem vários outros princípios, sendo que alguns estão na constituição, em

doutrina ou jurisprudências como o da Legalidade, onde a Administração Pública deverá agir

na forma e nos limites da lei com o intuito de atingir a finalidade prevista, devendo embasar o

processo administrativo em uma norma legal.

Outro princípio é o da oficialidade ou impulsão, onde a responsabilidade para a

movimentação do processo administrativo será da Administração Pública, mesmo que a

abertura fora provocado por particular.

O principio do informalismo ou formalismo moderado: nada mais é que a dispensa

dos ritos sacramentais e rígidos, quando trata-se de atos a cargo do particular, quando não

tratar deste atos deverão ser observadas as formalidades absolutamente necessárias, utilizando

ritos e forma simples, suficientes para a obtenção da certeza e da segurança jurídica de modo

102

a propiciar o alcance dos fins almejados pelo sistema normativo, contudo, deverá ser

respeitado os direitos do sujeito, o contraditório e a ampla defesa.

O Princípio da Verdade Material ou verdade real segundo Hely Lopes (p. 695-696) é

a autorização de a administração valer-se de qualquer prova licita na busca obstinada pela

verdade de que a autoridade processante ou julgadora tenha conhecimento, desde que

translade para o processo, devendo a decisão ser tomada nos fatos, tais como apresentam a

realidade, não utilizando somente a versão oferecida.

No Princípio da Garantia da Defesa, para Hely Lopes Meireles (p.696), decorre do

princípio do Devido Processo Legal e do contraditório, garantindo a defesa seja dado total

direito de acompanhar o processo, sendo cientificado dos atos, utilizar recursos, inclusive

publicando os atos oficiais.

Outros Princípios, além dos supracitados, foram encontrados no manual de

Sindicância e Processo Administrativo de Minas Gerais9, que são:

“impessoalidade: a decisão da Administração Pública deve cingir-se ao interesse

apresentado e não ao interessado.

moralidade: é a observância de preceitos éticos produzidos pela sociedade,

variáveis, no tempo, segundo as circunstâncias de cada caso.

publicidade: não havendo previsão legal em contrário, ou razão lógica, os atos

praticados pela Administração Pública devem ser levados ao conhecimento público.

eficiência: consiste em utilizar mecanismos que assegurem uma decisão adequada,

dentro do menor tempo possível.

igualdade: é incabível o tratamento diferenciado mesmo quando uma das partes

interessadas for a Administração Pública.

finalidade: aplicação da lei tal qual é, ou seja, na conformidade de sua razão de ser.

motivação: explicitação dos motivos que levaram a Autoridade a tomar determinada

decisão.

razoabilidade: “O princípio da razoabilidade, na origem, mais do que um princípio

jurídico, é uma diretriz de senso comum ou, mais exatamente, de bom senso jurídico

que se faz necessário à medida

que as exigências formais que decorrem do princípio da legalidade tendem a reforçar

mais o texto das normas, a palavra da lei, que o seu espírito. A razoabilidade

formulada como princípio jurídico, ou como diretriz de interpretação das leis e atos

da Administração, é uma orientação que se contrapõe ao forrmalismo vazio, à mera

observância dos aspectos exteriores da lei, formalismo esse que descaracteriza o

sentido finalístico do Direito.” - Maria Paula Dallari Bucci - “O princípio da

razoabilidade em apoio à legalidade” – Cadernos de Direito Constitucional e

Ciência Política 16/173.

proporcionalidade: “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de

obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente

9 MINAS GERAIS, Auditoria Geral do Estado, Manual de Sindicância e Processo Administrativo

Disciplinar, disponível em < http://www.auditoriageral.mg.gov.br/downloads/doc_download/7-manual-de-

sindicancia-e-processo-administrativo-disciplinar-pdf-139-mb> em: 29/05/2010.

103

necessárias ao atendimento do interesse público” - Lei Federal 9.784/99, art. 2º,

Parágrafo único, inciso VI.

segurança jurídica: não se deve alterar ato ou situação jurídica mediante aplicação

retroativa de nova interpretação da lei, da mesma forma, não se deve invalidar

decisões com vícios sanáveis e que não acarretem lesão ao interesse público nem

prejuízo a terceiros.

interesse público: interesse público não significa, necessariamente, interesse da

Administração Pública, podendo haver até conflito. Segundo o ensinamento de

Celso Antônio Bandeira de Melo, “o interesse público deve ser conceituado como o

interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm

quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato

de o serem.” - “Curso de Direito Administrativo” p. 59.

boa-fé: embora seja um elemento externo ao ato e seja impossível perscrutar o

pensamento, é possível aferir a boa ou má fé face as circunstâncias do caso concreto,

por meio de um conjunto convergente de indícios.

duplo grau de jurisdição: é uma extensão do direito à ampla defesa, uma vez que a

possibilidade de recurso administrativo e/ou revisão retira o arbítrio de quem decide

e obriga a uma decisão devidamente motivada e fundamentada.

“non bis in idem” - nas esferas administrativa ou penal, o servidor não pode ser

processado e punido duas vezes em razão do mesmo fato.”

Destarte é possível aduzir, diante a todos os princípios mencionados acima, mesmo

se tratando de uma sindicância e não de um processo administrativo disciplinar, deverá

cumprir os referidos princípios, cabendo-se ressaltar que na hipótese de sindicância em caráter

punitivo deverão estar presente obrigatoriamente os princípios do contraditório e da ampla

defesa, sob pena de nulidade da mesma.

Após termos tratado toda a parte doutrinaria da sindicância e sua relação com o

processo administrativo, passaremos ao procedimento de realização da sindicância,

apresentando suas especificidades e analisando-a, quando necessário.

Primeiramente após o conhecimento de fato envolvendo alguma irregularidade no

serviço público, ocasionada por servidor, a autoridade competente nomeará um sindicante ou

por uma comissão de dois ou três sindicantes.

A quantidade de membros da sindicância não é determinada nem pela doutrina, nem

pela lei 8.112/90 (dispõe sobre o regime jurídico dos servidores publico da união, das

autarquias e fundações públicas federais) e nem a Lei 869/52 (dispõe sobre o estatuto dos

servidores públicos civis do estado de Minas Gerais).

Contudo é notório que a indicação dos membros para a formação da comissão é um

ato discricionário, que poderá estar viciada por motivos políticos, perseguição, inimizades,

etc. No entanto cabe ao indiciado, caso esteja submetido a esta sujeição, alegar exceção de

suspeição e impedimento, em prol da prevalência do princípio da imparcialidade,

razoabilidade e do devido processo legal.

104

Após a instauração da sindicância, deverá ser notificado o envolvido na acusação

para prestar declaração, ou ficar em silêncio, também serão ouvidos as possíveis testemunhas

além do denunciante ou vítima.

Após a oitiva das possíveis testemunhas, ocorrem duas hipóteses: A primeira é

quando a sindicância possua caráter somente instrutório, no qual a comissão ou o sindicante

elaborará um relatório devidamente fundamentado, opinando pelo arquivamento, ou

instauração do Processo Administrativo Disciplinar.

Caso a sindicância possua caráter punitivo, será lavrado pela comissão o despacho de

indiciamento, a qual a partir deste momento abrirá ao indiciado a garantia do contraditório e

ampla defesa, sendo o indiciado citado, para que seja apresentada defesa previa, produza

provas, e realize a oitiva da testemunha, etc. E seja intimado para a apresentação de razoes

finais.

Ao final também será redigido o relatório a qual poderá opinar pelo arquivamento do

processo, aplicação da penalidade de advertência ou suspensão por até 30 (trinta) dias.

Cabe ressaltar que os procedimentos da sindicância punitiva são os do processo

administrativo disciplinar, e quanto a utilização de defesa técnica por advogado, a Súmula

Vinculante nº 5 do STF nos demonstra:

“STF - Súmula Vinculante n° 5: A falta de defesa técnica por

advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a

Constituição.”

Diante a sumula é possível aduzir que a utilização do advogado pelo indiciado é

facultativa, podendo o indiciado querer ou não sua presença.

Contudo o disparate na utilização do termo sindicância, quando deveria ser utilizada

a terminologia processo administrativo disciplinar, é tanta, que o Tribunal de Justiça de Minas

Gerais, no acórdão do processo nº 1.0079.02.029545-1/002, o relator Audebert Delage,

admite a demissão na sindicância, desde que seja observada o princípio do contraditório e

ampla defesa, conforme trecho abaixo:

“[...] In casu, em tese, em razão de ter sido aplicada a penalidade de demissão ao

impetrante, não poderia ter sido ela precedida de mera sindicância. Contudo, ao contrário do que entendeu a ilustre Juíza sentenciante, houve instauração na verdade, de verdadeiro processo administrativo disciplinar, a despeito de ter sido nomeado por sindicância. Foram observados os princípios constitucionais, asseguradas as garantias fundamentais do contraditório e da ampla defesa ao

impetrante. Foi ouvido o sindicado, f. 144/148, que foi notificado para apresentar

defesa, oferecida à f. 151/155, apresentadas alegações finais, f. 168/215,

posicionando-se a autoridade sindicante pela aplicação da pena de demissão. Nesse

105

procedimento houve, inclusive, a oitiva de testemunhas arroladas pelo apelado.[...]”

(TJMG – Processo nº 1.0079.02.029545-1/002; Relator Audebert Delage, publicado

em 11/11/2004) (Grifo Nosso)

Neste mesmo entendimento, pode observar nas entre linhas da ementa do Tribunal

Regional da 1ª Região, referente ao processo nº AMS 1999.34.00.025754-5/DF, do relator

Desembargador Federal José Amilcar Machado, no acórdão transcrito abaixo:

“EMENTA: ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. SANÇÃO

DISCIPLINAR. SINDICÂNCIA. DEVIDO PROCESSO LEGAL.

INOBSERVÂNCIA. APURAÇÃO DE INFRAÇÃO COM PENA COMINADA DE

DEMISSÃO. EXIGÊNCIA DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ARTS. 132, XIII, E 146 DA LEI Nº

8.112/90. APURAÇÃO DE INFRAÇÃO PUNÍVEL COM PENA DE

SUSPENSÃO. EXORBITÂNCIA DO PRAZO LEGAL PARA CONCLUSÃO DOS

TRABALHOS. AUSÊNCIA DE NULIDADE. AMPLIAÇÃO DO OBJETO DA

INVESTIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO

CONTRADITÓRIO. INOBSERVÂNCIA. ANULAÇÃO DO PROCEDIMENTO.

[...]

5. Comprovado nos autos que a autoridade administrativa não oportunizou ao servidor o exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório, uma vez que tão-somente tomou o seu depoimento e o convocou para acareação, sem lhe oportunizar o direito de apresentar defesa escrita, é de se anular a sindicância realizada e respectiva punição. Precedentes da Corte.

[...]

(TRF 1ª REGIÃO – Processo nº AMS 1999.34.00.025754-5/DF, Relator:

Desembargador Federal José Amilcar Machado, Publicado em: 15/04/2008) (Grifo

Nosso)

Desta forma, aduzi-se que mesmo tratando de sindicância, sendo assim nomeada,

contudo tomando todo o procedimento de um processo administrativo disciplinar, sendo

garantida a ampla defesa e o contraditório, será admitida a validade da mesma.

Tendo em vista, esta possibilidade de utilização, poderá ocasionar maior insegurança

quanto a validade e empregabilidade da sindicância, já que a sindicância poderá ser

convalidada como um processo administrativo, perdendo assim sua função principal.

CONCLUSÃO:

Isto posto, o presente trabalho demonstrou total divergência, e ainda total

desvirtuamento quanto a utilidade da sindicância, já que a mesma possui natureza

investigatória – instrutiva, tendo a função de funcionar como inquérito para o Processo

Administrativo Disciplinar, contudo a mesma, vem sendo comumente utilizada para a

aplicação de penas de caráter leve, como a advertência ou suspensão de até 30 dias, admitindo

até outras penas desde que atendam os princípios do processo administrativo.

106

Tal possibilidade de utilização da sindicância já vem sendo admitida pela legislação

vigente, como a lei nº 8.112/90 (dispõe sobre o regime jurídico dos servidores publico da

união, das autarquias e fundações públicas federais) e a Lei nº 869/52 (dispõe sobre o estatuto

dos servidores públicos civis do estado de Minas Gerais), e ainda pelo julgamento do Agravo

De Instrumento - AI 504869, pelo STF (Supremo Tribunal Federal), e das demais

jurisprudências transcritas no decorrer do presente artigo, o que garante o caráter legal da

mesma, desde que garantido o contraditório e a ampla defesa.

Data vênia, não foi avaliada as conseqüências que uma pena aplicada por um

procedimento administrativo sumário, já que no caso uma advertência ou suspensão, poderá

acarretar ao servidor, como a perda do direito de promoção de carreira, férias-prêmio,

dependendo do estatuto.

Tal afirmativa decorre, tendo em vista os legisladores colocarem pesos nas punições,

de peso “leve” no caso a sindicância, e de peso “grave” nos casos dos processos disciplinares,

não avaliaram a denominação da criação dos dois procedimentos e suas formalidades.

Contudo sendo assegurada a ampla defesa e o contraditório, e tendo a sindicância,

observado a natureza e os procedimentos do processo administrativo disciplinar, não a

transforma em um procedimento correto, mas sana o vício existente, já que é assim é aplicada,

e admitida por nossos tribunais.

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em: 30 maio 2010.

109

PÓS-POSITIVISMO E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: REFLEXÃO À LUZ DO CONCEITO DE DIREITO

Hugo Garcez Duarte

1

RESUMO: O artigo visa analisar a proposta hodierna, de conciliação entre validade formal e

validade material (legitimidade). Para tal, discorremos sobre as teorias Positivista e Pós-

positivista do Direito, perpassando os ditames da Escola da Exegese, tendo demonstrado que

o conceito de Direito alterou-se de acordo com o paradigma adotado. Esta última encarou o

Direito como ciência completa, sem lacunas, apta a resolução de todos os fatos da vida por

meio da aplicação literal da lei. A primeira sucedeu-a com uma nova proposta, evidenciando o

caráter discricionário de aplicação do Direito bem como sua indeterminação. A segunda, por

sua vez, propõe-se a resolver os problemas que envolvem o poder discricionário do juiz e a

indeterminação do Direito, não resolvidos pela primeira. Nesse sentido, suscitamos a teoria de

Robert Alexy, que baseado no papel exercido pelos princípios e na argumentação jurídica,

aponta o procedimento do Direito como parte de seu conceito.

Palavras-chave: Pós-positivismo; poder discricionário; determinação do Direito; princípios;

argumentação jurídica.

ABSTRACT: The article aims to analyze the proposal of today, to reconcile the formal

validity and validity of the material (legitimacy). To this end, we talk about theories Positivist

and Post-positivist law, bypassing the dictates of the School of Exegesis, showing that the

concept of law has changed in accordance with the paradigm adopted. The latter challenged

the law as a science, which has no gaps, able to solve all the facts of life through the literal

application of the law. The first pass it with a new proposal, showing the character of

discretionary application of law and its indeterminacy. The second, in turn, is proposed to

solve problems involving the discretion of the judge and the indeterminacy of law, not

resolved first. In this sense, the theory put forward by Robert Alexy, who based the role

played by the principles and legal argument, says the procedure of law as part of its concept.

Key-words: Post-positivism; power discretion; choice of law; principles; legal argument.

INTRODUÇÃO

O artigo faz uma digressão acerca do conceito de Direito. Analisamos primeiramente

os preceitos do Positivismo, estabelecendo suas distinções com os defendidos pela Escola da

Exegese.

1 Mestre Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos de Juiz

de Fora/MG; Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Professor de Direito

Constitucional da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas Gerais/MG.

110

Desenvolvemos que, apesar de trata-se de uma teoria extremamente formal, em

Kelsen e Hart, principalmente, há o reconhecimento do poder discricionário do juiz, que,

atrelado à norma, terá uma margem (por meio dos princípios) de apreciação, na busca da

melhor maneira de se resolver dado caso. Entretanto, não há resolução de tais problemas, por

mais que tenha apresentado uma teoria diversa do legalismo exacerbado defendido pela

Escola da Exegese, a qual reduzira o Direito à lei escrita, concebendo-o de uma maneira

completa, imputando ao julgador a efetivação dos ditames legais, ou seja, o papel de boca que

pronuncia os mandamentos legais.

Posteriormente, fomentamos a teoria Pós-positivista do Direito, tendo procurado

estabelecer que a pretensão de superação do Positivismo Jurídico, dominante no século XX,

concentra-se na resolução do problema que envolve o poder discricionário do julgador bem

como o da determinação do Direito no caso concreto, de modo a alcançar a conciliação entre

validade formal e validade material (legitimidade).

Almejando a resolução de referidos problemas, concebemos Robert Alexy como Pós-

positivista, por apresentar considerável alternativa para a celeuma.

Para o autor, o conceito de Direito engloba além de preceitos também defendidos

pelo Positivismo jurídico a pretensão à correção material, que poderá ser conquistada a partir

do procedimento do Direito, com ênfase no papel exercido pelos princípios e na

argumentação jurídica.

1. O POSITIVISMO JURÍDICO

O que se deve considerar como direito e a maneira mais adequada de aplicá-lo, são

questões, que há muito protagonizam discussões no cenário jurídico. Encontrar respostas não

é tarefa das mais fáceis, mas tentativas não faltam, modificando-se o paradigma conforme o

momento histórico vivido. Hodiernamente, a denominada Teoria Pós-Positivista do Direito

propõe solução à celeuma, almejando a superação do Positivismo Jurídico que dominara a

ciência jurídica no século XX.

Referida teoria pretenderia, para tal, combater características supostamente atribuídas

ao Positivismo Jurídico, que teria defendido a inexistência de princípios (ou desprovimento de

caráter normativo dos princípios), tendo pregado que o Direito é um modelo de regras; a

completude do Direito, isto é, a inexistência de lacunas; a supremacia da lei ordinária sobre a

Constituição; e a aplicação do Direito de forma mecânica, consubstanciada na subsunção.

111

Ocorre que, tais características coadunam-se, propriamente, com o legalismo da

Escola francesa da Exegese do século XIX, pois o Positivismo Jurídico defende

posicionamentos totalmente contrários.

A Escola da Exegese, que teve como marco o Código Napoleônico de 1804,

asseverava que Direito reduzir-se-ia à lei escrita, por prever em seu corpo, os princípios

superiores, eternos, uniformes, permanentes e imutáveis sustentados pela Escola

Jusnaturalista do Direito.

Para os adeptos desta Escola a lei era obra jurídica perfeita, completa, abarcando o

“verdadeiro direito”, reprodução escrita dos valores absolutos de justiça do Direito Natural,

insculpidos na vontade do legislador.

Tal concepção reduziu o juiz, ao papel de burocrático aplicador de leis, encarando o

ordenamento jurídico como um “catálogo”, dotado da previsão de todos os fatos ocorridos e

que viessem a ocorrer na sociedade, que com sua consecução subsumir-se-iam a ele. Ou seja,

vedava-se aos juízes o poder de criação, sendo-lhes reservada tão-somente, a incumbência de

verdadeira boca que pronuncia os ditames legais.

Sua atividade seria meramente silogística, eis que, a lei era encarada como premissa

maior e o fato como premissa menor, donde desta conjugação chegava-se a uma decisão

lógico-dedutiva.

Posteriormente, tal concepção acerca do Direito foi contestada, sendo a Escola

Histórica a primeira a fazê-lo, sustentando a inexistência de um direito geral e universal, visto

que cada povo em cada época teria o seu próprio direito, resultante de sua evolução histórica,

de seus usos, costumes e tradições.

Esforçaram-se os defensores desta Escola, em demonstrar que o direito era um

produto histórico, sujeito a permanente e natural evolução, nem estabelecido arbitrariamente

pela vontade dos homens, nem emanado de Deus, mas pela consciência coletiva do povo.

Nesses moldes, entende-se que a lei não é pronta e acabada estando suscetível a uma

interpretação mais ampla do que a defendida pela Escola da Exegese, imputando-se ao

intérprete, além da função de esclarecimento dos ditames legais, a promoção de sua

contextualização com os interesses e necessidades sociais, de modo que desvende como agiria

o legislador, caso estivesse em seu lugar prestes a solucionar um caso.

112

Já no século XX, o Positivismo Jurídico apresenta, também, uma teoria diversa da

legalista sustentada pela Escola da Exegese. Tal teoria, de caráter extremamente formal, teria

supostamente pregado a separação entre o Direito e a moral (teoria da neutralidade ou da

separação), concebendo o Direito de uma maneira neutra, como uma estrutura lógico-formal,

desprovida de qualquer conexão com a moral.

Dissemos supostamente, pelo fato de que, como notaremos a seguir, no que diz

respeito a interpretação do Direito bem como sua aplicação, grandes Positivistas, como

Kelsen e Hart, desenvolvem suas teorias admitindo a discricionariedade do julgador, que

vinculada à norma jurídica, por vezes irá transcendê-la, exercendo verdadeiro ato de criação

do Direito, despertando-nos por conseqüência, a reflexão: de quais elementos faria uso o

julgador para transcender a norma jurídica em seu ato de criação do Direito? seria a moral?

vejamos as teorias.

Kelsen aponta que a aplicação do Direito encontra-se carreada de uma forma

relativamente indeterminada, havendo relação entre normas de escalão superior e normas de

escalão inferior2.

Segundo este, a norma de escalão superior determina a execução bem como o

conteúdo da norma inferior3. Todavia, essa orientação se dá de um modo incompleto:

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os

aspectos) o ato do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora

menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior, tem

sempre, em relação ao ato de produção normativa ou execução que aplica, o caráter

de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem mais

pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma

pluralidade de determinações a fazer (KELSEN, 2006, p. 388).

Na Teoria Positivista de Kelsen, o juiz, quando da aplicação do Direito, deverá além

de seguir a lei (norma de escalão superior) observar as diversas alternativas de interpretação

possibilitadas por esta moldura, de modo a apontar, na norma de escalão inferior (sentença), a

melhor maneira de solucionar dado caso, de acordo com suas peculiaridades.

Todavia, inadmite o mesmo, no que tange a busca do melhor modo de julgar-se o

caso concreto, que qualquer conteúdo seja considerado como Direito. Momento em que,

eventual preenchimento de lacunas estaria vinculado, pelo que chama de interpretação

autêntica, à atuação do órgão jurídico aplicador do Direito. De outro modo, demais tipos de

2 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fonte, 2006, p. 388.

3 Idem.

113

interpretação, como a cognoscitiva da ciência jurídica, estabeleceriam, tão-somente,

“possíveis significações de uma norma jurídica” (KELSEN, 2006, p. 395).

Hart, por sua vez, argumenta que na sociedade, haveria necessidade de delimitar-se

padrões e princípios de conduta difusos, e que o Direito, por não regular de forma específica a

conduta de cada indivíduo, mas de classes de pessoas e de atos, para fazê-lo, utiliza-se de dois

instrumentos: a legislação e o precedente. Por legislação, entende-se aquela forma normativa

definidora de um padrão de conduta como modelo obrigatório, de modo que o precedente

apresenta-se como uma referência de conduta4.

Por mais que tenha denominado tais figuras normativas, Hart reconhece a

impossibilidade da previsão, pelo legislador, de todos os fatos da vida, tendo fomentado, que

a aplicação do Direito é envolvida por uma gama de alternativas, classificando de textura

aberta do Direito a possibilidade de que, em razão das circunstâncias, autoridades judiciais e

administrativas evidenciem um equilíbrio entre interesses em conflito, cujo peso varia em

virtude das particularidades de cada caso5. Hart assevera a existência de uma margem, ou seja,

como Kelsen, admite espaços deixados em aberto para que o aplicador do Direito busque a

melhor forma de julgar determinado caso:

Se o mundo no qual vivemos tivesse apenas um número finito de características, e

estas, juntamente com todas as formas sob as quais podem se combinar, fossem

conhecidas por nós, poderíamos então prever de antemão todas as possibilidades.

Poderíamos criar normas cuja aplicação a casos particulares nunca exigiria uma

escolha adicional. Poder-se-ia tudo saber e, como tudo seria conhecido, algo poderia

ser feito em relação a todas as coisas e especificado antecipadamente por uma norma.

Esse seria um mundo adequado a uma jurisprudência “mecânica”. Esse não é,

evidentemente, o nosso mundo; os legisladores humanos não podem ter o

conhecimento de todas as combinações possíveis de circunstâncias que o futuro pode

trazer [...] (HART, 2009, p. 166-167).

Extrai-se do referido, a percepção de ambos autores que a aplicação do Direito é

carreada de criação, deixando claro, que o julgador, atendo-se às minúcias do fato, além de

julgá-lo aplicando o modelo obrigatório de conduta (norma jurídica), fomenta-o.

Além disso, nos resta evidente, manifestarem-se de formas totalmente distintas as

premissas da Escola legalista da Exegese e da Teoria Positivista do Direito, pois enquanto a

primeira defende uma interpretação mecânica do Direito, em que somente ao legislador é

atribuída a tarefa de criar Direito, a segunda tende a rechaçá-la, por considerar o aplicador do

Direito, além do legislador, um criador deste.

4 O autor desenvolve o raciocínio em HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009,

p. 161-162. 5 Nesse sentido HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 175.

114

Contudo, não nos parece claro o que a Teoria Pós-Positivista do Direito pretende

superar em realidade, no Positivismo Jurídico. Seria a hipotética separação entre Direito e

Moral constantemente argumentada? Haja vista que as características outrora anunciadas são,

igualmente, combatidas pelo Positivismo jurídico? É o que buscaremos desenvolver no

próximo capítulo quando examinaremos a Teoria Pós-Positivista do Direito.

2. PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

A Teoria Pós-positivista do Direito propõe solução para o legado deixado pelo

Positivismo Jurídico, que não resolveu o problema da determinação do Direito no caso

concreto bem como o que envolve o poder discricionário do julgador.

Pretenderia a promoção do reencontro da ética com o Direito, por meio de um

conjunto de ideias difusas, inovando sua aplicação sem substituí-la, combatendo, entretanto, o

poder discricionário pregado por autores como o normativista Kelsen e também por Hart,

sem, contudo, voltar ao legalismo mecanicista da Escola da Exegese do século XIX, bem

como fazer uso dos metafísicos preceitos da Escola Jusnaturalista6.

Para alguns teóricos, como Luís Roberto Barroso, suas principais marcas são, a

ascensão dos valores e o reconhecimento da normatividade dos princípios, fundamentando

que a dogmática tradicional fomentou-se sob o mito da objetividade do Direito e da

neutralidade do intérprete, tendo encoberto seu caráter ideológico bem como sua

instrumentalidade à dominação econômica e social7. Vale dizer, todavia, existirem

controvérsias quanto ao referido, pois o Positivismo Jurídico como veremos a seguir concebe

os princípios como normas e não defende a neutralidade do intérprete.

Concordamos, inicialmente, que o legalismo manifesto na prática jurídica

(principalmente) necessita superação, eis que, realmente, ideologias foram encobertas em

nome da lei e a favor de uma dominação econômica e social. Entretanto, discordamos de

quem denomina tais ações como fruto do Positivismo Jurídico, pois há como demonstramos

no capítulo anterior, nos pensamentos de dois dos maiores positivistas (Kelsen e Hart), a

defesa de teses contrárias ao referido. Ora, uma coisa é a criatura, outra coisa é o nome que se

dá a esta criatura.

6 Sobre o reencontro da ética com o Direito indicamos a leitura de BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova

interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro,

2006, p. 47. 7 Idem.

115

O Positivismo, conforme vimos, em ambos os autores, admite que o legislador, como

ser humano que o é e não DEUS, não pode prever todas as minúcias do viver. Pois as normas

têm um condão de indeterminação, servindo unicamente, como uma moldura a ser preenchida

pelo intérprete, que investigará a melhor maneira da resolução do caso concreto.

Diversamente da Escola da Exegese do século XIX, que pregava a completude da lei bem

como a aplicação mecânica, sob o crivo da subsunção.

Que a aplicação do direito, em nosso tempo, se deu de uma maneira legalista,

havendo necessidade de uma lapidação, é fato. Todavia, há de reconhecer-se, que tal realidade

(legalismo exacerbado) coaduna-se com a escola legalista da Exegese, aplicada sob o manto

do Positivismo Jurídico. Vale dizer, a Teoria Positivista do Direito é estigmatizada por

elementos que não lhes são peculiares, pois o legalismo exacerbado por nós vislumbrado

representa em verdade os ditames doutrinários da Escola da Exegese e não os preceitos

daquela.

Tanto Kelsen, quando trata da generalidade da norma, como Hart quando trata da

textura aberta do Direito, reconheceram o papel criador do intérprete do Direito, que por

vezes, em atendimento às circunstâncias do caso deverá transcender a lei, que se aplicada de

forma literal não corresponderá aos anseios deste.

Como haveria neutralidade do intérprete no Positivismo Jurídico se ao mesmo é

reconhecido o poder discricionário e a possibilidade de criação do Direito? a neutralidade que

o Positivismo Jurídico sustenta é da ciência do Direito (e não do intérprete do Direito ou do

próprio Direito), significando inexistir subordinação entre este e uma moral específica. Ou

seja, para o Positivista o Direito encontra-se desvinculado de uma moral determinada, sendo

descrito de uma maneira puramente formal.

Neste sentido vale observar:

Quando uma teoria do Direito positivo se propõe distinguir Direito e Moral em geral

e Direito e Justiça em particular, para não os confundir entre si, ela volta-se contra a

concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que

pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta – da

qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e

Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é

independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a

Moral (KELSEN, 2006, p. 75).

Kelsen, com tais palavras, ao que parece, visou demonstrar que o Direito não está

vinculado a uma moral pré-determinada, a uma moral absoluta. Para o professor, o justo não

pode ser prévia e arbitrariamente determinado, pois por meio de juízos de valor (relativos)

pode-se vincular o Direito a diversos valores, muitas vezes opostos.

116

No que tange referida relatividade Kelsen asseverou que:

Se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o

Direito deve ser moral, isto é, justo, apenas pode significar que o Direito positivo

deve corresponder a um determinado sistema de Moral entre os vários sistemas

morais possíveis. Mas com isso não fica excluída a possibilidade da pretensão que

exija que o Direito positivo deve harmonizar-se com um outro sistema moral e com

ele venha eventualmente a concordar de fato, contradizendo um sistema moral

diferente deste (Idem).

E a normatividade dos princípios? Como poderemos negar a existência de princípios

bem como o desprovimento de sua normatividade no Positivismo Jurídico diante da norma

geral de Kelsen e da textura aberta do Direito de Hart, se são exatamente esses tipos de

normas que, por seu caráter abstrato, autorizam o papel criador do aplicador do Direito? se o

Direito encontra-se desvinculado a uma moral determinada, abarcando diversas concepções

morais, como identificaremos à luz do caso concreto o Direito justo, senão por meio dos

princípios (que são normas)?

Tais premissas refletem, por mais que se trate de uma teoria extremamente formal,

que no Positivismo Jurídico existem princípios e que são considerados normas. Em nosso

sentir, o problema da legitimidade do Direito que o Pós-positivismo pretende superar no

Positivismo Jurídico, não reside na inexistência e/ou ausência de normatividade dos princípios

neste último, outrossim, no papel exercido pelos mesmos em ambas teorias.

No Positivismo Jurídico os princípios são encarados como justificativa do poder

discricionário do julgador, porquanto que, no Pós-positivismo Jurídico serviriam de meio para

superação dessa discricionariedade.

Essa evidência reflete-se na fundamentação do Direito e em sua adequação. No

Positivismo Jurídico, o fundamento de validade do Direito é formal, e por ser formal, sua

adequação é indeterminada. O Pós-positivismo por sua vez, em busca da determinação do

Direito, consubstancia-se na conciliação entre validade formal e validade material (legalidade

e legitimidade).

Grande desafio, porém, é a conquista da conciliação entre validade formal e validade

material sem voltar ao dogmatismo jusnaturalista. Tal conciliação ao que parece, coaduna-se

com o aludido papel dos princípios, que na teoria Pós-positivista, diversamente da teoria

Positivista (justificava o poder discricionário do juiz), assume o papel de elo (por meio da

argumentação jurídica) entre o legal e o justo.

117

Não temos, nesse humilde ensaio, a pretensão de estabelecer os caminhos da

conciliação entre o legal e o justo, mas procuraremos desenvolver a seguir o papel dos

princípios e da argumentação jurídica nessa jornada.

3. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

No ponto anterior, pudemos constatar que a proposta Pós-positivista pretende

superar, em verdade, no Positivismo Jurídico, os problemas, por este não resolvidos

envolvendo a determinação do Direito no caso concreto, além do poder discricionário do

julgador.

Notamos, diversamente do que se pregou em referência ao Positivismo Jurídico, por

mais que se tratasse de uma teoria extremamente formal, há neste, o reconhecimento de

princípios e que são considerados normas. Além de que, é exatamente este, o ponto

determinante de transição da Teoria Positivista para a Pós-positivista do Direito. Ou seja, que

na primeira teoria os princípios eram elementos justificadores do poder discricionário do

julgador, e neste último, realizam uma “ponte” para a superação dessa discricionariedade.

Os elementos dessa transição remontam-nos a outro problema, que envolve a

fundamentação do Direito e sua adequação, pois, no Positivismo Jurídico, o fundamento de

validade do Direito é estritamente formal, e sua adequação indeterminada. Logo, para que o

Pós-positivismo consolide-se, deverá galgar uma determinação legitima para o Direito no

caso concreto, sem, contudo, reduzir-se aos preceitos Jusnaturalistas. Entendamos melhor a

situação.

A fundamentação Jusnaturalista do Direito foi estritamente material, tendo em vista

que o Direito Positivo, para que fosse válido deveria estar em conformidade com os preceitos

do Direito Natural.

Essa concepção acerca do Direito sustentou-se enquanto havia certa homogeneidade

moral na sociedade (crenças, costumes, visões de mundo partilhados), vindo sucumbir diante

da já mencionada Escola da Exegese, que posteriormente fora sucedida pelo Positivismo

Jurídico, devido à pluralidade de características de uma nova sociedade que se formou.

Os preceitos Jusnaturalistas no que tange o fundamento de validade do Direito

(material) tornaram-se insustentáveis, cabendo ao Positivismo Jurídico demonstrar seu caráter

dogmático e absoluto, que em uma sociedade pluralista como a contemporânea nada mais

seria que arbitrar as visões de mundo de uma minoria sobre as da maioria.

118

Nesse contexto, a proposta Positivista apresenta um fundamento formal de validade

para o Direito, pregando sua neutralidade, ou seja, sua desvinculação a uma moral

determinada (relativismo).

Ocorre que, como essa validade é formal, é indeterminada. E como outrora

demonstramos nos pensamentos de Kelsen e Hart, há casos em que o aplicador do Direito

deverá transcender a lei para julgá-lo, e havendo uma indeterminação quanto à validade do

Direito, o controle da discricionariedade do julgador quando de sua aplicação resta

prejudicado.

Identificado o problema da validade formal no Positivismo Jurídico bem como o do

poder discricionário do julgador, ao final do século XX, vislumbrou-se a necessidade da

elaboração de uma teoria que demonstre qual deva ser o conteúdo legítimo do Direito e que

não imponha a visão de mundo de poucos a uma maioria.

Surge então o denominado Pós-positivismo Jurídico, no qual podemos colocar

Robert Alexy, que apresenta interessante solução para o problema da conciliação entre

legalidade e legitimidade no Direito.

Para Alexy, a despeito das teorias positivistas separarem Direito e moral, por meio de

um conceito de Direito com validade puramente formal, corroborada pela legalidade em

conformidade com o ordenamento e a eficácia social, as teorias não-positivistas tendem a

vinculá-los (Direito e moral), concebendo o autor um conceito de Direito carreado de um

terceiro aspecto além dos dois primeiros, vale dizer, o da correção material8.

Para o autor:

o direito é um sistema de normas que (1) formula uma pretensão de correção, (2)

consistindo na totalidade das normas que pertencem a uma Constituição geralmente

eficaz e que não são extremamente injustas, bem como à totalidade das normas

promulgadas de acordo com esta Constituição, que possuem um mínimo de eficácia

social ou de probabilidade de eficácia e não são extremamente injustas a qual (3)

pertencem princípios e outros argumentos normativos nos quais se apoia o

procedimento de aplicação do Direito e/ou tem que se apoiar a fim de satisfazer a

pretensão da correção (ALEXY, 2004, p. 123).

Com esses ditames Alexy enfatiza, primeiramente, que um sistema desprovido de

pretensão à correção não possa ser considerado sistema jurídico, e que na prática os sistemas

jurídicos a formulam. Posteriormente, que os elementos outrora descritos (legalidade em

conformidade com o ordenamento, eficácia social e a correção material) referem-se além da

Constituição, às normas postas em conformidade com essa constituição, existindo uma

8 A respeito consultar ALEXY, Robert. Elconcepto y La validez Del derecho. Barcelona: gedisa, 2004, p. 13-

14.

119

estrutura escalonada, excluindo-se normas extremamente injustas da seara do Direito. E por

fim, que incorpora-se ao Direito o procedimento de sua aplicação, pois tudo aquilo em que se

apoia ou que tem que se apoiar alguém que aplica o Direito almejando sua correção o Direito

abarca. Ou seja, que princípios não identificados como jurídicos sobre as bases da validade de

uma Constituição bem como demais argumentos normativos fundamentadores de decisões

pertenceriam ao Direito9.

Se não estivermos enganados, Alexy considera Direito e moral como “aliados”.

Aliados estes, que por meio de princípios bem como de argumentação jurídica buscam uma

aplicação justa para o Direito.

Antes de chegarmos ao findo momento desta digressão, necessitaremos pontuar

alguns aspectos que envolvem as teorias dos princípios e da argumentação jurídica de Alexy.

Alexy concebe princípios e regras como espécies de normas jurídicas, por mais que

sejam distintos. Para ele, as regras são aplicáveis na maneira do “tudo ou nada” 10

. Vale dizer,

se uma regra é válida, deverá ser aplicada na sua totalidade. Em se tratando de um conflito

entre regras, para que apenas uma delas seja considerada válida, deveremos tomar alguns

cuidados, pois se considerarmos determinada regra como válida a fim de aplicá-la ao caso,

como conseqüência, além da desconsideração da outra regra pela decisão, sua invalidade será

declarada, a não ser que essa regra encontre-se em uma situação que excepcione a outra11

.

Os princípios, de outro modo, são normas que ordenam que algo se realize na maior

medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. São, por conseguinte,

mandamentos de otimização, caracterizados pela possibilidade de satisfação em diferentes

graus e de acordo com as aduzidas possibilidades fáticas e jurídicas12

.

Podemos encará-los como razões em favor de determinado posicionamento

argumentativo, atribuindo-se peso, à luz do caso concreto, quando de uma colisão:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa.

Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de

acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido –, um dos princípios terá

que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado

inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o

que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob

determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser

resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos

9 Nesse sentido ALEXY, Robert. Elconcepto y La validez Del derecho. Barcelona: gedisa, 2004, p. 123-126.

10 Ronald Dworkin também menciona esta diferença, mas de forma distinta. O que não enfrentaremos neste

ensaio devido à delimitação de seu tema. 11

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 92-93. 12

Idem, p. 90.

120

concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm

precedência [...] (ALEXY, 2008, p. 93-94).

Importante frisarmos nas palavras ora mencionadas, que antecipadamente nenhum

princípio tem primazia sobre os demais, e que, o uso da ponderação torna possível

vislumbrar-se o maior peso de um princípio com relação a outro em dado caso, sem que haja a

invalidação do princípio tido como de peso menor. Ademais, em outro caso, poderá haver a

redistribuição dos pesos de uma maneira distinta, inclusive oposta.

Isso se dá, por que segundo Alexy, os princípios equiparam-se a valores, apesar de

não tratarem-se destes. Para o professor princípios dizem respeito a um conceito deontológico

(de dever ser), enquanto que os valores atinem a um conceito axiológico (de bom, de melhor),

não obstante estarem intimamente ligados, possibilitando-se colisão bem como sopesamento

tanto de princípios como de valores, vez que a realização gradual dos princípios corresponde à

dos valores13

.

Alexy delimita que a visão do nível dos princípios mostra que neles estão reunidas

coisas extremamente diversas. Mas mais importante que referir-se a essa diversidade é a

constatação de sua indeterminação. Pois no mundo dos princípios há lugar pra muita coisa,

podendo-se chamá-lo de mundo do dever-ser ideal. Para ele, as colisões, tensões, conflitos,

etc, surgem exatamente no momento em que se tem de passar do espaçoso mundo do dever-

ser ideal para o estreito mundo do dever-ser definitivo ou real14

.

Mas os princípios por si só, não têm a possibilidade de determinar a resposta correta

para cada caso, necessitando de um “amparo” para que alcance a aplicação racional do

Direito.

Alexy então, na busca dessa aplicação racional do Direito, elabora uma teoria da

argumentação jurídica, identificando-a como um caso especial da argumentação prática geral

(da argumentação moral), que conjuntamente com as regras e princípios formam um

procedimento, apto a estabelecer a melhor decisão para o caso concreto15

.

13

Idem, p. 144-145. 14

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 139. 15

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 267.

121

CONCLUSÃO

Sabemos que a teoria de Alexy sofreu e sofre muitas críticas. Mas reconhecemos

como inoportuno, neste momento, tecer comentários a respeito, por tratar-se nossa meta, em

verdade, de outra seara bem mais humilde.

Viemos aqui para analisar a proposta Pós-positivista, que pretende resolver o

problema legado do Positivismo Jurídico, que apesar de reconhecer a discricionariedade do

julgador não a resolveu, além do que envolve a aplicação do Direito no caso concreto.

Ao que parece, obteve sucesso Alexy nessa jornada. Pois impossibilitado no mundo

contemporâneo, devido à pluralidade cultural e subjetiva, de apontar uma moral determinada

(o que seria arbitrário), com sua regra procedimental, com primazia nos princípios e na

argumentação jurídica, apontou considerável alternativa na busca da resolução racional do

caso concreto.

Entendemos, que o mundo contemporâneo, por sua diversidade e complexidade

dificulta a conquista da conciliação entre validade formal (legalidade) e validade material

(legitimidade). Vemos, todavia, que a única solução para esta conquista reside no

procedimento do Direito, que carreado por igualdade entre as partes, ampla defesa e

contraditório, argumentação jurídica, produção de provas e ênfase na efetividade dos

princípios jurídicos, galgará a legitima aplicação da lei no caso concreto.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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BARROSO, Luís Roberto(org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos

fundamentais e relações privadas. 2ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

122

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA EM RELAÇÃO A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

Vagner Adriano Ferreira

Walter de Laia Rocha

Thamara Tereza Linhares Gomes

Tatiana Rosmaninho Andrade1

RESUMO: O presente artigo busca saber a constitucionalidade da Função Social da Empresa,

e sua relação com a Função Social da Propriedade, uma vez que a empresa é uma propriedade

pertencente ao sócio ou ao acionista.

PALAVRAS-CHAVE: Função Social da Empresa; Função Social da Propriedade; Empresa,

Propriedade.

ABSTRACT: The present article searchs to know the constitutionality of the Social Function

of the Company, and its relation with the Social Function of the Property, a time that the

company is a pertaining property to the partner or the shareholder.

KEYWORDS: Social function of the Company; Social Function of the Property; Company;

Property.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Primeiramente cabe falar que a função social da empresa é a busca do interesse

público em limitar o interesse privado, evitando o arbítrio individual que prejudique a

coletividade.

Segundo Mamede (2007, p. 84)

[...] a função social da empresa parte da percepção de que a atividade econômica

organizada para a produção de riqueza, pela produção e circulação de bens e/ ou pela

prestação de serviços, embora tenha finalidade imediata de remunerar o capital nela

investido, beneficiando os seus sócios quotistas ou acionistas, beneficia igualmente

o restante da sociedade, [...]

A sociedade a qual Gladston Mamede refere-se engloba os empregados, os clientes e

o próprio mercado em geral, na qual atingirá diversas pessoas direta ou indiretamente toda a

coletividade.

Diante disso demonstra - se a necessidade do Estado em garantir o interesse da

sociedade, da coletividade em relação a sociedade economicamente organizada, mesmo em se

tratando de atividades privadas, desta forma evitará a discricionariedade das empresas

1 Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica.

123

privadas, evitando assim a arbitrariedade destas, prejudicando o menos favorecido que é a

sociedade em geral.

Desta forma caberá ao Estado proteger com todos os seus órgãos e poderes, o direito

da coletividade, buscando atingir o interesse público protegido por este princípio tão

importante quanto os demais no funcionamento da Sociedade Empresaria.

Podemos assim perceber que este princípio tanto reflete a favor quanto contra os

interesses dos administradores das sociedades empresarias, já que retira deles a faculdade de

conservação ou exercício da arbitrariedade, sendo todos os atos contrabalanceados com o

interesse público.

A função social da empresa é um fator muito importante tanto para a recuperação da

empresa quanto para a sua falência. Essa importância fica explicita ao analisar o texto da

legislação infraconstitucional, em especial o art. 47 da Lei de Falências (Lei 11.101/05),

conforme transcrita abaixo.

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação

de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte

produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo,

assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade

econômica.

Não sendo diferente a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76), dispõe:

Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o

grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) – b) [...]

Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a

companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e

responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham

e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente

respeitar e atender.

Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe

conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências

do bem público e da função social da empresa.

Assim sendo, percebemos que não cabe somente ao estado fazer cumprir a função

social da empresa, mas cabe aos administradores, fornecedores, consumidores, enfim a

comunidade contribuir para que seja cumprida e efetivada a função social.

1. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA X FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Na busca de compreendermos a função social da empresa, procuramos analisá-la

sobre o prisma da função social da propriedade, e assim a propriedade em si.

124

Não somente a propriedade móvel ou imóvel possui função social, mas todo o tipo de

propriedade, como prevê Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2009, p. 227).

[...]A função social incide sobre a própria estrutura da propriedade, portanto, recai

sobre qualquer bem, variando em intensidade em cada situação concreta, de acordo

com as efetivas utilidades dele para a sociedade. Se toda e qualquer propriedade

“atenderá a função social”, assim não apenas a propriedade do solo ou a dos bens de

produção, mas também a propriedade imaterial e a propriedade da empresa.

A função Social da empresa vem diretamente atrelada com a função social da

propriedade, uma vez que, a empresa também se trata de propriedade, não uma propriedade

prevista tradicionalmente pelo Código Civil, mas sim uma propriedade organizada para a

produção de lucros, conforme a visão moderna de noção de empresa. (CHAVES;

ROSENVALD, 2009).

A propriedade tem a sua função social prevista no art. 5º inciso XXIII da

Constituição da República Federativa do Brasil.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos

seguintes:

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Na visão de José Afonso da Silva (2008), a propriedade prevista no art. 5º,

supracitado, é a “propriedade em geral”, englobando inclusive a empresa, fazendo assim com

que a empresa cumpra todos os requisitos da propriedade em geral, inclusive a função social.

Sendo assim, mantendo a mesma relação, a empresa também obedecerá a função

social em relação a ordem econômica conforme prevê o art. 170, inciso III da Carta Magna.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre

iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da

justiça social, observados os seguintes princípios:

III - função social da propriedade;

Desta forma compreendemos que a propriedade é garantida constitucionalmente,

incluindo a propriedade da empresa, fazendo assim esta ter os direitos de propriedade,

conforme art. 1.228 Código Civil.

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o

direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas

finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade

com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio

ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e

das águas.

125

Assim sendo, poderá o proprietário da empresa, exercer todos os seus direitos

referentes a propriedade, desde que estes não conflitam com a função social da empresa.

Outrossim, Pereira (2005) em seu artigo Função Social da Empresa, elenca as

funções e a previsão legal.

[...] responsável pela geração de empregos, pelo recolhimento de tributos (sustento

da economia) e, ainda, movimenta a economia (compra e venda de bens e prestação

de serviço).

[...] a empresa observa a solidariedade (CF/88, art. 3°, inc. I), promove a justiça

social (CF/88, art. 170, caput), livre iniciativa (CF/88, art. 170, caput e art. 1°, inc.

IV), busca de pleno emprego (CF/88, art. 170, inc. VIII), redução das desigualdades

sociais (CF/88, art. 170, inc. VII), valor social do trabalho (CF/88, art. 1°, inc. IV),

dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1°, inc. III), observe os valores ambientais

(CDC, art. 51, inc. XIV), dentre outros princípios constitucionais e

infraconstitucionais.

Conforme visto trata-se de um rol vasto de funções que as empresas devem

proporcionar a sociedade, não sendo somente a geração de empregos, mas todo um conjunto

que leva o crescimento desta.

CONCLUSÃO:

Isto posto, percebemos que a função social da empresa na defesa do interesse da

coletividade, é constitucional, uma vez que, demonstrada a constitucionalidade da função

social da propriedade, e conforme vimos a empresa também é uma propriedade.

Porém vimos que na pratica a função social da empresa impede que a sociedade

empresária tenha o livre arbítrio para as decisões, contrariando assim o Código Civil no art.

1.228, onde garante os direitos do proprietário em relação a propriedade, já que muitas de

suas atitudes em frente a sociedade empresária deverá ser aprovadas por órgãos responsáveis,

a evitar o desrespeito a alguma função da empresa.

Desta forma, chegamos a conclusão de que a Função Social da Propriedade, na regra

evitaria grandes contrastes existentes na sociedade em geral, porém por falta de políticas

públicas mais coerentes, e conscientização dos proprietários das sociedades empresarias isto

não ocorre.

Somente através destas poderiam evitar as desigualdades que ocorrem nos dias

atuais, desigualdades estas que iniciam muitas vezes dentro da própria empresa.

As empresas brasileiras sofrem com a sobrecarga de tributos, o que analisado ao

ponto da função social, vemos que com o faturamento menor, uma vez retirada o que

126

compreende aos tributos, não haverá o desenvolvimento da sociedade, desta forma não poderá

proporcionar remunerações justas ou condições dignas de trabalho, sendo assim, entrará em

um circulo vicioso não obtendo os resultados pretendidos pela função social.

Atualmente somente vemos a análise detalhada de cada empresa, quando ocorre o

pedido de falência ou de recuperação Judicial, ou quando ocorre qualquer ato com a empresa

e esta for analisada pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

Deste modo entendemos que a Função Social da Empresa de modo geral, ou seja, na

lei e princípios, atenderia o interesse popular se fosse efetivamente cumprida, pela sociedade.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 4 jun. 2009.

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