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Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime Revista Brasileira de História da Educação

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Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

Revista Brasileira deHistória da Educação

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Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagas deCarvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialJosé Gonçalves Gondra (UERJ); Marcos Cezar deFreitas (PUC-SP); Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (USP);Maurilane de Sousa Biccas (USP).

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU e Centro Universitário do Triângulo); Denice B.Catani (USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto Luiz Alves(UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); José SilvérioBaia Horta (UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho(UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); Maria ArisneteCâmara de Moraes (UFRN); Maria de Lourdes de A.Fávero (UFRJ); Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI);Maria Helena Camara Bastos (UFRGS); MariaStephanou (UFRGS); Marta Maria de Araújo (UFRN);Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini(Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile);Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes(Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel(Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica dedireito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendo in-tercâmbios com entidades congêneres nacionais einternacionais e especialistas de áreas afins. É filiadaà ISCHE (International Standing Conference for theHistory of Education), a Associação Internacional deHistória da Educação.

Diretoria NacionalPresidente: Diana Gonçalves Vidal (USP)Vice-presidente: Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG)Secretária: Libânia Xavier (UFRJ)Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

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SecretariaCentro de Memória da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 – Bloco BTerceira Fase – Sala 40CEP 05508-900 – São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3194.E-mail: [email protected]

Revista Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHE

Sociedade Brasileira de História da Educação

da

janeiro/junho 2004 no 7

ISSN 1519-5902

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

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Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Dermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoKelly LimaCleide Salme FerreiraOsmar A. Savioli Junior

Diagramação e ComposiçãoEdnilson Tristão

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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SUMÁRIO

EDITORIAL 7

ARTIGOS

Monteiro Lobato e seus leitores: livros para ensinar, ler para aprender 9Marco Antonio Branco Edreira

Educação e civismo: o movimento escoteiro em Minas Gerais (1926-1930) 43Adalson de Oliveira Nascimento

Diderot e o sentido político da educação matemática 75Maria Laura Magalhães Gomes

A Cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 109Iole Maria Faviero Trindade

O plano de estudos das escolas públicas elementares na Província do Paraná:ler e escrever, para Deus e o Estado 135Ariclê Vechia

A Reforma Universitária e a criação das Faculdades de Educação 161Macioniro Celeste Filho

Leowigildo Martins de Mello e a organização da Escola Normal de Cuiabá 189Elizabeth Figueredo de Sá Poubel e Silva

RESENHAS

Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária 215Por André Luiz Paulilo

Relações de força: história, retórica, prova 223Por Irlen Antônio Gonçalves

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 229

CONTENTS 231

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Editorial

A Revista Brasileira de História da Educação chega no seu sétimonúmero. Esta publicação da Sociedade Brasileira de História da Educa-ção entra numa fase importante de sua consolidação, com apenas trêsanos de existência foi avaliada pela CAPES com um A Nacional. Preten-demos continuar investindo para que a “nossa” publicação alcance cadavez mais padrões de qualidade nacional e internacional. A adesão contí-nua da comunidade de historiadores da educação brasileira e a sua apostaneste projeto editorial foram fundamentais para conseguirmos este resul-tado. Assim, a revista reafirma-se como um lugar de destaque e de difu-são dos trabalhos produzidos em história da educação no Brasil, garantindoa importante manutenção de sua periodicidade.

Este número traz para os leitores e pesquisadores da história da educa-ção sete artigos e duas resenhas de grande fôlego, com temáticas diversi-ficadas e significativas para o campo. Foram abordados temas sobre:educação e civismo; educação matemática; planos de estudo de escolaspúblicas provinciais; cartilha maternal; práticas de leitura; reforma univer-sitária e criação de faculdades de educação; e criação de escolas normais.

A comissão editorial convida seus pares para que continuem fortale-cendo este projeto acadêmico nacional, espaço de divulgação de resulta-dos de pesquisas conclusas e em andamento, reafirmando assim o perfildo “nosso” periódico, aberto a consensos, a diferenças e ao diálogo deum campo de pesquisa plural, dinâmico e rico.

Comissão Editorial

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Trata-se de um estudo sobre práticas de leitura de leitores de Monteiro Lobato que lheenviaram cartas nas décadas de 1930 e 1940. Essas práticas estão relacionadas ao caráterdidático dos livros infantis do escritor. A partir das idéias de Chartier e Certeau, foramanalisadas as maneiras pelas quais o autor utilizou seus livros como forma de ensinar e osleitores utilizaram os livros para aprender.CARTAS DE LEITORES; PRÁTICAS DE LEITURA; LITERATURA INFANTIL; LIVRODIDÁTICO; HISTÓRIA DA LEITURA.

This is a research about practices of reading from Monteiro Lobato’s readers. These readersused to send him letters during the 30’s and the 40’s. These practices are related to thepedagogical character of the writer’s children books. Based on ideas of Chartier andCerteau, it was analysed how the author used his books like as a way to teach and how thereaders used them to learn.READER LETTERS; PRACTICES OF READING; CHILDREN’S LITERATURE;SCHOOLBOOK; HISTORY OF READING.

Monteiro Lobato e seus leitores

livros para ensinar, ler para aprender

Marco Antonio Branco Edreira*

* Mestre em história e historiografia da educação pela Faculdade de Educação da Uni-versidade de São Paulo (USP).

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Introdução

Todo estudo sobre a história do livro e da leitura tem algum interes-se para história da educação, ainda que indireto. Compreender o uso dolivro como instrumento de ensino e a prática de leitura vinculada aoaprendizado tem uma importância fundamental.

Este artigo trata dessas duas questões a partir do estudo das caracte-rísticas didáticas dos livros de Monteiro Lobato e das apropriações, re-lativas à aprendizagem, de um conjunto de leitores desses livros1. Trata-sede um conjunto de leitores comuns2 que se corresponderam com o autornas décadas de 1930 e 1940. Sua faixa etária se estende dos 8 aos 16 anose a procedência é muito variada, abrangendo todas as regiões brasileiras,com predominância da Região Sudeste. Suas cartas encontram-se arqui-vadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)3 e muitas fornecem indí-cios das apropriações relativas à aprendizagem através das leituras deLobato.

De acordo com Chartier, para a compreensão das práticas de leituraé necessário levar em conta a produção do texto, a produção do suporteno qual o texto está inscrito e a apropriação dos leitores.

Daí a necessidade de reunir duas perspectivas, freqüentemente separadas: o

estudo da maneira como os textos, e os impressos que lhes servem de suporte,

organizam a leitura que deles deve ser feita e, por outro lado, a recolha das

1 Este artigo é composto, com algumas modificações, pelo terceiro capítulo da dis-sertação À caça do sentido: práticas de leitura de leitores de Monteiro Lobato(1926-1946). São Paulo: FEUSP, 2003.

2 A denominação leitor comum é utilizada por Darnton em seu estudo sobre as cartasde um leitor de Rousseau, Jean Ranson. Para ele, esse leitor possui característicasque o faz assim, isto é, “desconhecido, que não tinha nada de extraordinário e quefala de suas leituras ao contar sua vida cotidiana” (Darnton, 1996, p. 144).

3 As cartas fazem parte do Dossiê Monteiro Lobato, pertencente ao Arquivo Raul deAndrada e Silva. Este foi doado pelo sobrinho do titular, Guy R. de Andrada, emmarço de 1993, com inúmeros documentos, principalmente relativos ao trabalhodo titular do arquivo. Raul de Andrade e Silva foi historiador e professor da USP.Nasceu em São Paulo em 1905 e morreu em 1991. Colaborou em revistas acadêmi-cas e jornais, além de membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo eda Academia Paulista de Letras (cf. Batista, pp. 55, 97).

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leituras efectivas, captadas nas confissões individuais ou reconstruídas à es-

cala das comunidades de leitores [Chartier, 1988, pp. 123-124].

Para isso, mais tarde, o autor propõe que o historiador transite pordiversas áreas:

O historiador [da leitura] deve poder vincular em um mesmo projeto o estudo

da produção, da transmissão e da apropriação dos textos. O que quer dizer ma-

nejar ao mesmo tempo a crítica textual, a história do livro e, mais além, do im-

presso ou do escrito, e a história do público e da recepção [Chartier, 1999, p. 18].

Por isso, é necessário tanto conhecer os livros do autor quanto asapropriações dos leitores indicadas nas cartas. Ambos os aspectos sãoimportantes para compreensão dos sentidos dados pelos leitores. Assim,são apresentadas as características dos livros infantis de Monteiro Lobatoque fazem deles supostamente um instrumento pedagógico, princi-palmente a partir de alguns estudos relativos ao autor e sua obra, mastambém através das edições originais dos livros. Considerou-se impor-tante, também, conhecer alguns aspectos da atuação do escritor queexplicitam o vínculo estabelecido com a escola.

Livros para ensinar

O vínculo entre Lobato e a escola pode ser entendido pelas relaçõesentre literatura infantil e escola. Historicamente, essa ligação parece serinquestionável, como atesta Lajolo:

Na tradição brasileira, literatura infantil e escola mantiveram sempre relação

de dependência mútua. A escola conta com a literatura infantil para difundir

[...] sentimentos, conceitos, atitudes e comportamentos que lhe compete

inculcar em sua clientela. E os livros para crianças não deixaram nunca de

encontrar na escola entreposto seguro, quer como material de leitura

obrigatória, quer como complemento de outras atividades pedagógicas, quer

como prêmio aos melhores alunos [Lajolo, 2002, p. 66].

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Mas é preciso compreender como esse vínculo se dá através da obrainfantil de Monteiro Lobato, isto é, como a estratégia4, tanto autoral co-mo editorial, manifestou-se de modo a vincular-se à instituição escolar.

O uso da escola como um dos componentes da estratégia do escritorcomeçou através de sua atuação editorial. O vínculo mais explícito des-sa atuação dá-se através da publicação do seu segundo livro infantil,Narizinho arrebitado, em 1921, produzido para ser usado nessa insti-tuição. No entanto, vale observar que no primeiro livro, publicado umano antes, A menina do narizinho arrebitado: livro de figuras porMonteiro Lobato com desenhos de Voltolino, pode-se observar uma pe-quena relação com uma possível concepção escolar de livro. É que esseprimeiro livro foi feito, como o próprio nome diz, como um livro defiguras. Foi anunciado como álbum colorido, assim como Jeca Tatuzinhomais tarde. Esse tratamento dado ao livro pode ser associado aosurgimento, na França, em fins da década de 1920, dos álbuns do PéreCastor, de Paul Faucher. Segundo Coelho, esses álbuns são os primei-ros do gênero e estão ligados ao movimento da Escola Nova.

Tal como é hoje compreendido, o “álbum de figuras” nasceu em decorrência

do movimento da Escola Nova (ou da Educação Renovada) que, basicamen-

te, procurou criar atividades didáticas que levassem a criança a uma partici-

pação mais ativa no processo de sua própria educação. [...]

A invenção/produção desses álbuns surgiu em conseqüência das atividades

do educador e orientador pedagógico, Paul Faucher (1898-1967), desde os

anos 20, trabalhando junto a órgãos oficiais, de controle para seleção e apro-

vação de livros didáticos, e por isso mesmo integrado no movimento da Es-

cola Nova que, na época começava a se organizar na Europa [Coelho, 1987,

pp. 135-136].

4 Tomo o conceito na acepção de Certeau, para o qual estratégia é “...o cálculo (ou amanipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento emque um sujeito de querer e poder (uma empresa, uma cidade, uma instituição cien-tífica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscritocomo algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exte-rioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o cam-po em torno da cidade, os objetivos e objetos de pesquisa)” (Certeau, 1994, p. 99).

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Faucher de fato esteve ligado às idéias da Escola Nova, atuandocomo editor. Procurou, através dos álbuns de leitura, uma forma de atingiras crianças antes e no início de sua atividade leitora, através de um livroem que houvesse preponderância das imagens e um caráter de ativida-de. A dominância de imagens de nada valeria se não houvesse umainteração entre elas e os textos, de tal maneira que levassem os leitoresa “reunir informações, questionar, memorizar, fazer leitura da história –antes, durante e depois da ‘verdadeira’ leitura” (Chartier & Hébrard,1995, pp. 417-418).

Embora o livro de Lobato não tenha todas as características do futu-ro álbum do Pére Castor, já demonstra o mesmo tipo de preocupaçãoque orientou Faucher. Mas é interessante notar que essa preocupaçãodissipa-se toda no próximo livro, feito como “segundo livro de leiturapara uso das escolas primárias” e, portanto, com a preocupação explíci-ta de entrar no mercado escolar. Manteve, para isso, como já foi visto, asmesmas características de livros infantis anteriores que já faziam suces-so na escola e que nada tinham a ver com a publicação de 1920.

A grande preocupação em relação ao segundo livro foi a forma dedistribuição. Ela foi impulsionada através da aquisição pelo governo deSão Paulo de inúmeros exemplares em 1921:

Buscando dar maior solidez à empresa, Lobato envereda pelo caminho já

trilhado por quase todas as editoras, investindo no gênero didático, de consu-

mo obrigatório. De início, lança um livro de leitura que, submetido à aprova-

ção do governo de São Paulo, foi aceito e adotado para uso no segundo ano

das escolas públicas. Sob o título Narizinho Arrebitado, acabou recebendo

elogios da crítica e do professorado, figurando no balanço de 1921 com uma

edição de cinqüenta mil exemplares [Azevedo, Camargos & Sacchetta, 1997,

p. 130].

É comum, nas biografias de Lobato (Cavalheiro, 1962, p. 158; Lajolo,2000, p. 61; Azevedo, Camargos & Sacchetta, 1997, p. 161), trataremdo episódio que marca sua entrada maciça no mercado infantil comoum acontecimento fortuito. Os autores narram que Washington Luís,governador de São Paulo, visitava as escolas junto com Alarico Silveira,

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secretário do Interior, em 1921, e observando um livro que estava es-cangalhado em todas elas, disse para comprá-lo, pois se estava assimera porque as crianças gostavam muito dele e o liam bastante. Esse livroera Narizinho arrebitado. Há que se verificar, entretanto, que AlaricoSilveira era amigo pessoal de Lobato e mesmo o governador tinha anti-gas ligações com o autor. Koshiyama observa que:

Antes do fim de 1921 a edição de 50.000 exemplares do Narizinho estava

totalmente vendida, devido a um comprador providencial: o governo do Es-

tado de São Paulo. [...] No seu relato [o episódio envolvendo o governador

relatado acima], Lobato omitiu sua íntima amizade com Alarico Silveira e

suas sempre ótimas relações com Washington Luís, a quem devia sua pro-

moção ao cargo de promotor público de Areias, no distante 1907 [Koshiyama,

1982, p. 83].

Para divulgar o livro, o autor distribuiu, gratuitamente, 500 exem-plares às escolas públicas de São Paulo (Azevedo, Camargos & Sacchetta,1997, p. 161). Antes, aparentemente, Lobato via-se às voltas com o pro-blema da venda dessa edição. Basta lembrar que o autor tinha uma edi-ção de mais de 50 mil livros para escoar pelo mercado. E conseguiu,vendendo mais da metade ao governo de São Paulo. O autor não diz deque forma, isto é, com qual estratégia, mas dificilmente ele arriscariafazer uma edição tão grande para o período sem garantia de que seriabem-sucedido.Talvez já houvesse algum acerto com o governo do esta-do. Nenhuma das pesquisas aponta essa questão, que entretanto seria deinteressante investigação. É importante ressaltar, também, que a ediçãofoi inteiramente dedicada às escolas. A intenção do autor foi a de que elaservisse como segundo livro de leitura.

Monteiro Lobato teve o mérito de perceber a necessidade de conquistar um

público exposto à produção alienígena. Para isso, tratou de cultivar o leitor

infantil, inclusive introduzindo literatura nas escolas primárias, pois reconhecia

a receptividade das crianças a quaisquer informações ministradas. O primeiro

livro que editou para crianças, Narizinho Arrebitado, trazia o frontispício

esclarecedor: “literatura escolar” [Koshiyama, 1982, p. 81].

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Na verdade, como já foi visto, não se trata do primeiro livro de Lobatopara crianças, mas do segundo. Dois anos depois, a entrada de MonteiroLobato no mundo escolar parece consolidada. Ele comenta com Rangel:“Tomo nota do teu plano de traduções. Estamos refreando as ediçõesliterárias para intensificação das escolares. O bom negocio é o didático.Todos os editores começam com a literatura geral e por fim se fechamna didática. Veja o Alves” (Lobato, 1972, p. 260).

E acrescenta mais tarde, em tom que não parece valorizar o uso doslivros considerados didáticos e, conseqüentemente, a escola: “Só cuida-remos agora de cartilhas, gramáticas, aritméticas – todos instrumentosde torturar crianças” (idem, p. 265). Não é à toa o reconhecimento daimportância do negócio didático. Segundo relato de Koshiyama, a valo-rização do segmento dos didáticos no mercado editorial é muito grande:“Uma sondagem feita junto a 15 das 20 editoras de São Paulo, em 1920,mostrava a predominância dos livros didáticos, cerca de 600.000 exem-plares num total de 900.000 editados” (Koshiyama, 1982, p. 82).

A autora tenta explicar o que devem ser considerados livros didáticosna época, mas como será visto a seguir, essa não é uma tarefa tão simples.

Pela nomenclatura usada na classificação dos livros editados pelas empresas

paulistas, deduzia-se que livros didáticos eram os usados nos cursos primários

e secundários. Pois havia os “livros didáticos” e os referentes a Direito,

Medicina, comércio, literatura de cordel, os livros de conhecimentos úteis e

os livros de literatura [idem, ibidem].

Ela ressalta, ainda, o fato de não ser explicado o que são os “livrosde conhecimentos úteis”, mas que os livros de literatura são os conside-rados de “boa literatura”. Diz, também, que, apesar das deficiências dolevantamento, ele “permite concluir que havia predominância do livrodidático, seguindo uma tendência editorial, já observada no passado, deproduzir para um público leitor previsível” (idem, ibidem).

Na esteira desse mercado dos livros didáticos, além de Narizinhoarrebitado, publica, em 1921, Fábulas de Narizinho. No ano seguinte,sai outra edição do mesmo livro, reformulado e com outro nome, Fábu-las. Na folha de rosto dessa edição indica-se: “Obra aprovada pela Dire-

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toria da Instrução Pública do Estado de São Paulo”. Quatro anos depois,em 1926, ainda expõe ao amigo Rangel seus vínculos com a instituição:“A edição do Hans Staden (recebeu?) foi um triunfo – 8.000 em trêsmeses – e está entrando nas escolas” (Lobato, 1972, p. 291).

Esse vínculo com a escola deve ser entendido também a partir dasligações com alguns expoentes da Escola Nova. No período em queficou nos EUA, Lobato conheceu aquele que seria um dos maiores no-mes associados a esse movimento, Anísio Teixeira, que para lá viajoufazendo cursos no Departamento de Educação da Universidade deColúmbia. A amizade que fizeram nesse período durou a vida toda deLobato. Cassiano Nunes, num estudo sobre as relações postais entreambos, aponta a existência de 40 cartas, sendo 23 de Teixeira e 17 deLobato, entre 1928 e 1946 (Nunes, 1986, p. 8). Essa relação parece tercontribuído para estreitar os vínculos de Lobato com a instituição esco-lar. Segundo o que relatam os leitores que fazem parte dos documentosanalisados nesta pesquisa, por exemplo, os dois fizeram algumas visitasjuntos à escolas do Distrito Federal à época em que o educador foi dire-tor geral do Departamento de Educação.

Além de Anísio Teixeira, outros educadores também foram para osEUA. Foi o caso de Lúcia Casassanta, educadora mineira, que tambémviajou no ano de 1927 junto com outras quatro professoras de MinasGerais. Era professora no estado e foi escolhida para um curso na Uni-versidade de Colúmbia, mesmo local freqüentado por Teixeira. O grupofoi escolhido durante a gestão de Francisco Campos, então também iden-tificado com os ideais escolanovistas. A ida desse grupo para os EUAdemonstra que não foi por acaso a influência norte-americana nos edu-cadores brasileiros. Segundo Maciel, a partir de levantamento de Vidal,foram 23 os professores e pesquisadores brasileiros que estudaram noTeacher’s College da Universidade de Colúmbia, incluindo AnísioTeixeira. Isso, por si só, demonstra claramente os Estados Unidos comoum país de referência educacional no período. Muitos desses educado-res depois tiveram preponderante papel na educação brasileira e foramos responsáveis por trazer muitas idéias vigentes naquele país para ter-ras brasileiras. Ao menos foi esse o caso de Anísio Teixeira e de LúciaCasassanta, que se especializou em metodologia da linguagem e foi

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responsável por influenciar diversas gerações em Minas Gerais. Autorade uma de uma importante cartilha na década de 19405, Anita Fonsecaafirma, no prefácio de 1945, a importância de Casassanta na formaçãoda área:

Em Minas, desde algum tempo, se vem adotando o método global pelo pro-

cesso de “contos ou historietas”. Devemos, porém, a sua divulgação entre

nós, com técnicas mais aperfeiçoadas, à professora Lúcia Casassanta, que a

partir de 1929, através de eficiente curso de Metodologia da Língua Pátria,

ditado na Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte, vem imprimindo

nova e inteligente orientação ao ensino desta matéria, baseando-a em sólidos

princípios científicos [apud Leite, 2002, pp. 482-483].

O próprio Anísio Teixeira confirma a importância desse intercâm-bio, em 1934:

Os primeiros passos de uma nova política educacional brasileira, primeiros e

indispensáveis, são os de buscar, fora do Brasil, elementos para a renovação

de nossa cultura e de nossas técnicas. Remessa de estudantes de mérito para

o estrangeiro e contrato de professores estrangeiros para novas escolas e no-

vas faculdades. Não há como sair daí.

[...] O problema brasileiro é o de readaptar a civilização ocidental ao nosso

meio e às nossas condições. [...] Aí deveríamos, sempre, possuir algumas deze-

nas de professores e estudantes, como patrulhas avançadas da nossa curiosi-

dade científica e do nosso empenho em progredir [Teixeira, 1935, pp. 25-28].

Mas não é só a Teixeira que o escritor estava ligado. Fernando deAzevedo, outra grande figura do movimento escolanovista, também fa-zia parte de suas relações. Em 1923, Lobato tornou-se o editor da Revis-ta da Sociedade de Educação de São Paulo, da qual o educador faziaparte. Além disso, Azevedo foi o editor da coleção Biblioteca Pedagó-

5 Trata-se da cartilha O livro de Lili (método global), publicada pela editora FranciscoAlves em 1945.

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gica Brasileira, em que diversos livros de Lobato estavam presentes. Oescritor conheceu Azevedo antes de Teixeira. Foi ele quem apresentou oamigo que conhecera nos Estados Unidos a Azevedo, como pode servisto numa carta transcrita por Nunes. Ela é interessante, não apenaspor isso, mas porque nela também fica evidente a influência decisivaque a experiência norte-americana teve em suas vidas: “... Anísio, creio,sentiu e compreendeu a América e aí te dirá o que realmente significaesse fenômeno novo do mundo. [...] Adeus, estou escrevendo a galope abordo do navio que vai levar uma grande coisa para o Brasil: o Anísiolapidado pela América” (Nunes, 1986, pp. 4-5).

Os textos

Após deixar suas funções de editor, os vínculos de Lobato com aescola passam a ocorrer principalmente através dos textos. Uma das for-mas da escola estar presente nesses textos é uso de uma certa concepçãopedagógica e do estabelecimento no Sítio do picapau amarelo de situa-ções de ensino. Não é simples estabelecer essa análise, mas vale a penaenunciar aspectos destacados em alguns estudos. Para Melloni, há umapedagogia implícita nos textos do escritor. Ela utiliza o exemplo do li-vro Serões... para exemplificar essa pedagogia:

Ambiente e personagens operam de modo a garantir o confronto das experiên-

cias das crianças com a dos adultos, prefigurando uma espécie de processo

construtivo, contínuo e natural de inserir-se as crianças no mundo da cultura.

Em resumo, uma idéia de Pedagogia.

[...] Aquele chamado “raciocínio” ou “reflexão” de criança inteligente, que

todos os professores desejariam em seus alunos, aparece por todos os textos

dos “serões”; não como produto de mera fantasia de autor, mas como uma

amostra de que esse “raciocínio” pode ser seguido, induzido, respeitado e

suscitado habilmente [Melloni, 1998, pp. 313-314].

A autora ainda ressalta um aspecto não destacado por nenhum outroautor. Para ela, um dos fundamentos da tal pedagogia de Lobato é o uso

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da fantasia: “Lobato evidencia não só que a imaginação é algo próprioda mentalidade infantil; ele faz recordar direta ou indiretamente que aEducação tem esquecido com enorme freqüência do valor de sonho nassuas lições” (idem, p. 365).

Zilberman e Lajolo descrevem o caráter pedagógico do ambiente doSítio do picapau amarelo e a inclusão nas histórias de uma concepçãopedagógica:

Com efeito, as terras de Dona Benta, sob certas circunstâncias, desempe-

nham a função de uma escola, sendo a proprietária, a professora ideal, e os

alunos, os moradores do sítio, ouvintes atentos e interessados que, como sem-

pre, polemizam os temas, quando não decidem vivê-los in loco, abandonan-

do temporariamente o lugar improvisado das aulas.

O sítio metamorfoseia-se numa escola paralela, reforçando a versão do escri-

tor pela instituição tradicional de ensino, cujas disposições física e psicológi-

ca o desagradavam. Trata de substituí-las, dando-lhe um arranjo diferente, ao

mesmo tempo antigo e moderno. Antigo, porque o modelo é a escola grega,

conforme a filosofia helênica a divulgou: um sistema de ensino que evolui

através do diálogo, sem soluções pré-fabricadas ou conclusões previstas por

antecipação. Além disso, não supõe um espaço determinado, fixo de ante-

mão e classificado como sala de aula. [...]

A partir do aproveitamento desse fator técnico, esclarece-se o conteúdo mo-

derno desta prática pedagógica: vale-se de instrumentos procedentes da atu-

alidade, usando a ciência e a tecnologia e vendo-as como os principais

objetivos a alcançar. [...] Apoiando-se no diálogo, como metodologia de en-

sino, e no amor ao conhecimento, como finalidade, aponta um caminho pe-

dagógico para a sociedade contemporânea, arejando-a com as idéias que

motivam a atitude do ficcionista [Lajolo & Zilberman, 1987, pp. 76-77].

Penteado apóia-se em Rose Lee Hayden6, uma estudiosa americanade Lobato, para comentar as características pedagógicas de sua obra,

6 Trata-se de sua tese de doutorado: The children’s literature of José Bento MonteiroLobato of Brazil: a pedagogy for progress, concluída em 1974, pela MichiganState University.

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embora a autora não se refira apenas à parte da obra considerada didáti-ca por Penteado. Segundo ela, Lobato tinha um método de ensino comcaracterísticas semelhantes àquelas apontadas pelas autoras citadas an-teriormente:

é sobre a qualidade didática da obra que a autora concentra o foco do seu es-

tudo, tendo concluído que Lobato se utilizava do método socrático de ensino

e valorizava, sobretudo, o aprendizado informal, já que ele próprio assim ab-

sorvera a maior e melhor parte do seu conhecimento [Penteado, 1997, p. 221].

Segundo Penteado, Hayden aponta alguns princípios do que seria apedagogia lobatiana:

- Os conhecimentos a serem transimitidos devem-se relacionar com o campo

de experiência do educando, ao que lhe é familiar;

- Sempre que possível, os educandos devem participar ativamente do proces-

so educativo. Isso é conseguido através de interações, fazendo experiências

e viajando para examinar diretamente os fenômenos;

- A experiência de aprendizado deve ser agradável e interessante.[...];

- Os tipos de conhecimentos devem ser transmitidos de forma adequada à

idade do educando;

- Para ser efetivo, o conhecimento deve ser transmitido de foram simples e

clara, sem embelezamentos pretensiosos ou desnecessários;

- Quando um educando assenhora-se de um fato ou conceito, eles devem ser

reforçados positivamente, e isso deve ocorrer imediatamente à resposta cor-

reta [...] [idem, pp. 221-222].

É possível observar nesses princípios alguns vínculos com idéiasrelacionadas à Escola Nova, principalmente nos quatro primeiros itens.Isso também apontaria para a crítica do autor à escola formal. Haydenreconhece algumas passagens na obra de Lobato que se referem à esco-la, na maior parte das vezes, com muitas críticas: “Hayden conta 25menções – em geral negativas – à escola formal, em 4.683 páginas detexto, e, em uma delas, Lobato usa o tradicional colégio Caraça, de Mi-

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nas Gerais, como uma espécie de prisão para crianças malcomportadas”(idem, p. 221).

É necessário salientar que, apesar de perceber uma concepçãopedagógica nos livros de Lobato, é preciso considerar que isto aindanão é uma forma de uso da escola; é apenas uma maneira de ver a edu-cação e, dentro dessa, discordar da escola formal. É necessário, entre-tanto, considerar que a escola tem suas nuances, muito diferentes doambiente do Sítio. Esse pode ser um espaço alternativo de educação,mas será que é possível pensar a escola a partir dele?

O aspecto mais determinante do uso da escola através dos textos é autilização de conhecimentos de disciplinas escolares como temas dealguns livros, como: História do mundo para crianças, Emília no paísda gramática, Aritmética da Emília e Geografia de Dona Benta. Emcarta a Vianna, Lobato demonstra nitidamente que essas escolhas nãoforam obra do acaso:

A minha Emília está realmente um sucesso entre as crianças e os professores.

[...] Vale como significação de que há caminhos novos para o ensino das

matérias abstratas. Numa escola que visitei, a criançada me rodeou com

grandes festas e me pediram: “Faça a Emília do país da aritmética”. Esse

pedido espontâneo, esse grito d’alma da criança não está indicando um

caminho? O livro como o temos tortura as pobres crianças – e no entanto

poderia diverti-las, como a gramática da Emília o está fazendo. Todos os

livros podiam tornar-se uma pândega, uma farra infantil. A química, a física,

a biologia, a geografia prestam-se imensamente, porque lidam com coisas

concretas. O mais difícil era a gramática e é a aritmética. Fiz a primeira e vou

tentar a segunda. O resto fica canja [in Lajolo, 2002, pp. 95-96].

Os conteúdos indicados pelos títulos faziam parte das disciplinasministradas nas escolas, como podemos observar em alguns autores.Bittencourt afirma, em seu estudo sobre o ensino de história no períodode 1917 a 1939, que há poucos trabalhos sobre as disciplinas no currícu-lo escolar (1990, p. 18). Entretanto, a autora aponta alguns aspectos quecontribuem para compreensão das disciplinas no ensino primário. Elaafirma, a partir do caso de São Paulo, que após a República, somente em

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1918 houve uma reforma do ensino primário, elencando as disciplinasdo programa:

Ao lado da Leitura e da Aritmética, os programas escolares do 1918

enfatizaram o ensino de Geografia e História do Brasil, acrescentando

Instrução Moral e Cívica, Trabalhos Manuais, Música, Desenho, Ginástica,

Ciências Físicas e Naturais e Higiene [Bittencourt, 1990, p. 120, grifos meus].

Nagle também descreve o conjunto de disciplinas do ensino primá-rio. Ao comentar a reforma de Sampaio Dória, cita as disciplinas queconstam na reforma de 1920. Como exemplo, serão aqui citadas as refe-rentes ao 2o ano: leitura, linguagem, noções de francês, caligrafia, arit-mética, geometria, história do Brasil, instrução moral e cívica, educaçãodoméstica, ciências físicas e naturais, higiene, música, desenho, trabalhosmanuais e ginástica (Nagle, 1974, p. 215).

O autor cita e comenta, também, as mudanças curriculares do ensi-no primário na reforma do antigo Distrito Federal. Constam no progra-ma as seguintes disciplinas: “linguagem oral e escrita, aritmética,geometria, geografia e história pátria, ciências físicas e naturais, higie-ne e puericultura, economia doméstica, desenho, caligrafia, música, gi-nástica e trabalhos manuais” (idem, p. 216).

Ribeiro expõe o quadro das disciplinas do programa de 1925 paraos grupos escolares e do programa mínimo para o curso primário de1934. Como exemplo o 4o ano: leitura, caligrafia, linguagem oral, lin-guagem escrita, geografia, aritmética, geometria, desenho, história,instrução moral e cívica, ciências físicas e naturais, música e ginástica.E em 1934: leitura, linguagem oral, linguagem escrita, desenho, trabalhosmanuais, música, aritmética, geometria, geografia, história e instruçãomoral e cívica (1996, p. 89).

Esse conjunto de disciplinas dá uma idéia do corpo do currículoprimário, pelo menos até meados da década de 1940. Comparando comos títulos de alguns livros de Lobato, elas são um indício do uso feitopelo escritor de um aspecto da instituição escolar, embora seja aindanecessária a análise mais detida dos conteúdos dos programas para umamelhor conclusão. Entretanto, não é só através das disciplinas escolares

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que percebemos a relação entre os textos de Lobato e a escola. Numapropaganda colocada na edição de 1934 do livro Hans Staden pode-seobservar a explicitação de intenção de uso pedagógico do livro Emíliano país... e um uso com críticas à forma de trabalhar da escola:

Não houve bairro do País da Gramática que não visitassem [...] e o resultado

de tudo foi que quando voltaram para o Sítio de Dona Benta estavam sabendo...

gramática! Mas sabendo mesmo, de verdade, e tanto que deram vários quinaus

num professor duma escola pública lá perto. Foi uma simples brincadeira, e

no entanto lhes valeu mais para o conhecimento de coisas da língua do que

um ano ou dois de escola com aqueles terríveis livros... [Lobato, 1934].

Essa posição contra a escola, contudo, deve ser vista para além deuma visão de educação, como uma forma de propaganda, pois contra-pondo-se à escola, propõe-se como alternativa. O final do texto nãodeixa dúvidas: “E acabou-se a dificuldade das crianças aprenderem Gra-mática. Basta agora que comprem este livro...”.

Os estudos sobre os livros infantis de Lobato apontam, também,que além daqueles com o nome explícito no título, há outras produçõescom pretensões didáticas. Segundo Penteado, é o caso de Serões de DonaBenta. O autor afirma que o livro veicula conhecimentos da área deciências. Sua análise aponta o vínculo explícito com a escola:

Serões retoma o modelo da narrativa de Dona Benta, dentro de casa, seguin-

do, de certa forma, o formato de livro-texto da matéria Ciências, como era

ministrada nas escolas primárias e secundárias ao tempo da publicação do

livro. É possível que Lobato estivesse convencido de que o milagre, que

profetizara em Poço, não ocorreria numa sociedade tão pouco comprometida

com o conhecimento e o estudo das ciências e quisesse, mais uma vez, dar

sua contribuição para alterar a situação [Penteado, 1997, p. 198].

A relação com o livro-texto apontado por Penteado é central paracompreender as relações com a pedagogia. Se de fato este vínculo ocor-re da forma como é indicada, e mais, se este vínculo também ocorre emoutros livros, pode-se notar o profundo relacionamento entre os livros

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de Lobato e a instituição escolar. Entretanto, o caráter pedagógico doslivros não parece evidente em todos os casos. Penteado, por exemplo,estabelece um quadro, dividindo os livros de Monteiro Lobato em trêscategorias: fantasia, didáticos e recontados, como é possível observar aseguir (idem, p. 170):

ANO FANTASIA DIDÁTICAS RECONTADAS

1920 A menina do narizinho

arrebitado

1921 Narizinho arrebitado

O saci

1922 Fábulas

1924 A caçada da onça

1927 Hans Staden

1930 Peter Pan

1931 Reinações de Narizinho

1932 Viagem ao céu

1933 As caçadas de Pedrinho História do mundo para

crianças

1934 Emília no país da

gramática

1935 História das invenções

Aritmética da Emília

Geografia de Dona Benta

1936 Memórias de Emília D. Quixote das crianças

1937 O poço do Visconde Serões de Dona Benta Histórias de Tia Nastácia

O poço do Visconde

1939 O picapau amarelo

O Minotauro

1941 A reforma de natureza

1942 A chave do tamanho

1944 Os 12 trabalhos de

Hércules

O quadro parece interessante e permite uma perspectiva abrangentedos livros. Ocorre, porém, que outros autores incluem algumas das obras

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de fantasia entre as didáticas, como por exemplo Zilberman e Lajolo:“Após a publicação da História do Mundo para Crianças, Lobato ampliao currículo escolar: A cada disciplina corresponde uma obra: [...] A refor-ma da natureza (1941), sobre Ciências Naturais” (Lajolo & Zilberman,1987, p. 78). De fato, não parece fácil estabelecer essa divisão. O livroFábulas, por exemplo, foi editado para uso das escolas, como se vê nafolha de rosto da edição de 1922: “Obra aprovada pela Diretoria da Ins-trução Pública do Estado de São Paulo”. No final do livro ainda há umaadvertência, que também o vincula à educação. No início está escrito: “Asfábulas constituem um alimento espiritual correspondente ao leite na 1a.infância”. Além da discordância entre os estudiosos e das próprias esco-lhas do autor, alguns remetentes, como será visto, também consideraramdidáticos alguns livros não incluídos pelo autor nessa categoria, comoViagem ao céu e Espanto das gentes. E há o caso contrário, como nota-se na carta de Tagea Bjönberg. Ao comentar alguns livros de aventurasque gosta inclui História do mundo... e diz: “São os meus prediletosporque tratam de aventuras fantásticas cheias de seres sobrenaturais queno entanto fazem-me crêr que existem realmente”7.

O segundo livro publicado pelo autor também é outro exemplo inte-ressante. Foi editado, como já foi visto, para uso das escolas primárias,entretanto, para Arroyo,

A forma de aparecimento na fase de literatura escolar era um imperativo de

desenvolvimento histórico da literatura infantil. Monteiro Lobato percebeu

perfeitamente a dinâmica e daí ter feito concessões formais. Narizinho Arrebi-

tado aparece como “segundo livro de leitura para uso das Escolas Primárias”,

mas o conteúdo não é mais didático: é amplamente lúdico [1968, p. 202].

7 ARAS-DML, Cp, Ci. – Cx. 1, P2, 11. Coqueiros – MG, 24.02.36. A partir daspróximas notas, as referências às cartas do acervo não conterão a denominaçãoARAS-DML (Arquivo Raul de Andrada e Silva – Dossiê Monteiro Lobato), Cp(Correspondência passiva) e Ci (Cartas infantis), pois todas as correspondênciasfazem parte desse conjunto. Constarão apenas as referências ao número da caixa(Cx.), da pasta (P) e, logo em seguida, ao número do documento na pasta. Estassiglas foram extraídas da documentação do próprio IEB, tal como consta na listagemdos documentos do arquivo.

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Parece, portanto, mais correto procurar uma forma de reconhecer ocaráter didático que vá além da análise do próprio livro. Assim, uma pro-dução seria considerada didática quando fosse utilizada como tal. Perce-bendo a dificuldade dessa definição, Soares propõe duas formas de con-siderar o livro didático. Na primeira, a relação se dá pela apropriaçãoque a escola faz da literatura. Esta torna-se assim uma “... apropriação,pela escola, da literatura infantil: nesta perspectiva, analisa-se o proces-so pelo qual a escola toma para si a literatura infantil, escolariza-a,didatiza-a, pedagogiza-a, para atender a seus próprios fins – faz dela umaliteratura escolarizada” (Soares, 1997, p. 17).

A outra forma é a produção da literatura já pensando no uso que aescola irá fazer. Nesse tipo de relação os autores e editores fazem uma“... produção, para a escola, de uma literatura destinada a crianças: nes-ta perspectiva, analisa-se o processo pelo qual uma literatura é produzi-da para a escola, para os objetivos da escola, para ser consumida naescola, pela clientela escolar – busca-se literatizar a escolarização in-fantil” (idem, ibidem).

A autora utiliza, inclusive, essas perspectivas para definir a literatu-ra infantil, possibilitando duas vias de interpretação: literatura destina-da à criança ou que a ela interessa, da qual a escola, que trabalha com acriança, se apropria; ou a literatura produzida para escola, para “tornarliterário o escolar” (idem, p. 18). Afirma que definir a literatura infantila partir da escola não constituiu um problema e apresenta umajustificativa histórica para isso, citando Lobato:

Este conceito de literatura infantil pode parecer, aos mais radicais, uma here-

sia – talvez seja, mas deve-se também reconhecer que sempre se atribui à

literatura infantil (como também à juvenil) um caráter educativo, formador,

por isso ela quase sempre se vincula à escola, a instituição, por excelência,

educativa e formadora de crianças e jovens; lembrem-se, por exemplo, que

Monteiro Lobato, quando publicou A menina do nariz arrebitado, em 1921

[sic], caracterizou-o, na capa como “livro de leitura para as segundas séries”,

o livro foi anunciado como “um novo livro escolar aprovado pelo governo de

São Paulo”, e a edição foi realmente vendida para o governo de São Paulo

para que o livro fosse adotado nas escolas.

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Nessa mesma linha de raciocínio, é interessante observar como o desenvol-

vimento da literatura infantil e juvenil no Brasil acompanha o ritmo do de-

senvolvimento da educação escolar; basta citar o chamado boom da literatura

infantil e juvenil, que coincide, não por acaso, com o momento da multipli-

cação de vagas na escola brasileira. Parece mesmo que, ao longo do tempo, a

literatura infantil e juvenil foi-se aproximando cada vez mais da escola. Há

autores que vêm apontando (ou denunciando?) a clara vinculação, atualmen-

te, da literatura infantil e juvenil à escola: Marisa Lajolo fala do “pacto entre

produtores e distribuidores”, isto é, entre autores que produzem e a escola

que distribui... [idem, p. 19].

Livros para aprender

Desejo a continuação da vossa boa saúdepara que os vossos serviços em favor dos que estudam

não sofram interrupção 8 [grifo meu].

As cartas analisadas a seguir ajudam a compreender as apropriaçõesque os remetentes fizeram dos livros. Contudo, relacionando-se à esco-la, as cartas, além de apontarem apropriações táticas de leitura, apontamtambém táticas9 discentes, que utilizam os livros do autor como formade lidar com as imposições escolares.

Pouco mais da metade das cartas analisadas na pesquisa está de al-guma maneira relacionada à instituição escolar. Interessa aqui aquelas

8 Cx.1, P1, 21. Distrito Federal, 01.09.1934.9 O conceito de tática aqui é tomado de Certeau: “... chamo de tática a ação calcula-

da que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação defora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o dooutro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza alei de uma força estranha. [...] Ela não tem portanto a possibilidade de dar a simesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visí-vel e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘oca-siões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade eprever saídas” (Certeau, 1994, p. 100).

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que demonstram como os leitores aprendem com os livros de Lobato. Jáfoi visto como o escritor usa a escola; é importante perceber também deque maneira os alunos se apropriam dos livros, a partir desse uso; comoos alunos-leitores percebem e comentam a possibilidade de aprendiza-do através dos livros do autor. Certeau considera que os leitores produ-zem algo novo no ato da leitura, que é tática e, por isso, produz a partirda estratégia: “Longe de serem escritores, fundadores de um lugar pró-prio [...], os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômadescaçando por conta própria através dos campos que não escreveram, ar-rebatando os bens do Egito para usufruí-los” (1994, pp. 269-270). Oautor considera ainda que essa produção é de difícil conhecimento, poisao contrário da estratégia não deixa muitas marcas, é preciso percebê-las em vestígios, rumores: “A escritura acumula, estoca, resiste ao tem-po pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção peloexpansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o des-gaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ouconserva mal a sua posse” (idem, p. 270).

As cartas apresentam alguns vestígios de suas leituras. Nesses ves-tígios, percebe-se um tipo de prática de leitura que usa os livros de Lobatopara aprender. Muitos leitores vinculam livros do autor a alguma disci-plina escolar e algumas vezes a leitura parece apenas servir a este pro-pósito. Há muitos enaltecimentos ao caráter instrutivo e de ensinamentodos livros do autor. Essa percepção do conteúdo didático dos livros nãosegue os mesmos critérios expostos por Penteado, quando os divide emdidáticos, de fantasia e recontados. Grande parte das referências aoaprendizado remete aos livros do conjunto de didáticos como apontadopor Penteado, mas alguns leitores incluem outros.

Nice, de 15 anos, exalta a facilidade com que qualquer um aprendecom os livros de Lobato, dizendo que costuma até incentivar sua mãe aler: “Sempre que releio os seus livros digo: mamãe, você devia ler oslivros de Monteiro Lobato, pois até você aprenderia. Ela confirma aminha opinião e só não lê, por falta de tempo”10.

10 Cx.1, P2, 26. Niterói – RJ, 29.05.42.

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José Maria, de 14 anos, lembra que Lobato ensina o que há de novo:“... além de vir adoçar a vida brasileira, ensinando a gente as últimasnovidades”. E afirma a garantia do aprendizado: “No seu livro tudo,tudo se entende”11. Um leitor carioca diz que suas histórias são bonitas einstrutivas, e têm grande poder de influência sobre os estudos. Diz ex-plicitamente que tem aprendido mais em seus livros do que nos do colé-gio. Nicean, um leitor amazonense, dá um depoimento, após a libertaçãode Lobato da prisão, no qual valoriza sua liberdade como possibilidadede continuar proporcionando conhecimento aos leitores: “Muito con-tente em saber que o sr. está livre e pode continuar assim a instruir àscrianças brasileiras, produzindo ótimos livros. [...] tenho aprendido muitoatravés de seus belos livros”12.

Os livros do autor são vistos como fonte de conhecimento e muitosleitores citam explicitamente os livros em que aprenderam. Emília nopaís... foi editado em 1934. É um dos livros mais citados pelos remetentespara comentar o aprendizado de algum assunto, no caso a língua. Édividido em vários capítulos, cada um deles referindo-se a algum aspectodo ensino da gramática. As ilustrações são fartas, abrangendo tanto ospersonagens do Sítio viajando pelo país, quanto as letras e sinais depontuação transformados em personagens. Vanda escreve, em 1945, comcerta formalidade, para agradecer o que aprendeu com o livro, lembran-do que isso sempre ocorre ao ler os livros do autor: “Acabo de ler o seuEmilia do País da Gramática e venho por meio desta agradecer ao sr. omuito que aprendi com ele [...] Já li 5 livros seus e cada vez gosto maisde lê-los porque sempre aprendo alguma coisa”.

O livro sobre a gramática a motiva a pedir mais explicações sobre oassunto a Lobato, ou melhor, a Dona Benta, para um concurso que iráprestar, enviando até a lista dos assuntos que serão exigidos. Aqui adisciplina escolar aparece como uma exigência social, extrapolando oslimites da instituição. Vanda solicita a Lobato

11 Cx.1, P1, 42. Barra do Piraí – RJ, 18.11.1936.12 Cx.1, P2, 34. Manaus – AM, 14.04.41.

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...pedir a Dona Benta que me ensine mais alguma coisa de Português além do

que ela ensinou no livro. [...] quero inscrever-me num concurso, e quase não

sei Português [...] Tenho uma gramática, mas infelizmente leio, leio e não

entendo nada. Preciso muito passar no concurso, pois o papai esta desempre-

gado [...] e eu ganho “uma ninharia” onde trabalho. Tenho certeza de que se

ela ensinar-me eu aprenderei.

O pedido da leitora volta em outra carta, no mês seguinte, mostrando-se agradecida pela resposta de Lobato, mas insiste querendo saber seDona Benta a ajudará. Manifesta uma grande aflição quanto ao aprendi-zado da gramática: “Eu tinha vontade de ser um anjo porque assim nãoprecisaria estudar português não é mesmo?”13.

Alariquinho, filho de Alarico da Silveira, secretário do Interior quan-do da compra dos milhares de exemplares de Narizinho arrebitado pelogoverno do estado de São Paulo, afirma que Emília no país... ajudamuito no estudo da gramática. Diz que só aprendeu o que a professorapediu depois de sua leitura: “Você fez bem em escrever este livro por-que eu estou estudando gramática que é a coisa mais cacete do mundo.A professora mandou decorar uns verbos e quando eu li o seu livroaprendi tudo”14.

A leitora que se identifica como “Rã-sizuda” descreve o que preten-de fazer na aula a partir do que aprendeu com o livro, mostrando outraaluna levando idéias do autor para a escola: “Amanhã é dia de portu-guês. Vou outra vez boquiabertar o teacher. [...] Falarei [...] sôbre a modi-ficação das palavras e sôbre a natural inclinação dela para a mais fácillinguagem – mais fácil e mais preguiçosa”15.

Haroldo, leitor de 13 anos, comenta a opinião de seu tio, que ressal-ta a facilidade com que se aprende com o livro: “Um tio meu me disseque só há um meio ‘canja’ de aprender gramática: é ler ‘Emilia no paísda Gramática’”16. Gilson, aos 10 anos, ressalta que leu o livro logo as-

13 Cx.1, P3, 26-27. Juiz de Fora – MG, 22.02.45 - 08.03.1945.14 Cx.1, P2, 2. Distrito Federal, 26.06.1934.15 Cx.1, P2, 28. Distrito Federal, 10.06.40.16 Cx.2, P1, 37. Curitiba – PR, 26.11.44.

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sim que comprou e aprendeu muito com ele: “Chegando em casa fuilogo começando à ler. Aprendi ‘abéssa’”17. Assim como Edite, que afir-ma de passagem: “Não é por dizer, mas eu aprendi e compreendigramatica com o seu livro”18.

Outras referências ao livro ocorrem junto com outros livros do au-tor, como História do mundo..., outra obra muito citada como fonte deaprendizado escolar. Foi editada pela primeira vez em 1933. Adaptaçãodo texto de Virgil Hillyer, não é um livro pequeno, pelo contrário, é osegundo mais extenso do autor, compondo 78 capítulos. Conta a vidahumana desde a pré-história até a Segunda Guerra Mundial. Nasprimeiras edições, lida por muitos dos remetentes, ela ia apenas até aPrimeira Guerra e a Revolução Russa. As edições conhecidas pelos lei-tores eram fartamente ilustradas com figuras relativas à história semalusão aos personagens do Sítio, mas o texto contém a participação dospersonagens que, a todo momento, intervêm para opinar e tirar dúvidas.

Manuel, que leu o livro um ano após o lançamento, já identifica oaprendizado através do mesmo, ressaltando estar essa característica pre-sente em outros livros do autor: “De todos os livros os autores que euelogio mais são os livros de V. Exa. porque são os que me despertammais curiosidade. [...] História do Mundo para crianças que ensina mui-ta coisa que ignorava inteiramente”19.

Dora, representando uma turma da Escola Técnica Orsina da Fonse-ca, em 1935, comenta o caráter instrutivo dos livros, opinião influencia-da possivelmente pela escola, pois a classe escreveu a pedido da profes-sora. Lamenta que Lobato não escreva somente para crianças: “É pena!O sr. quer saber de uma coisa? Deve escrever muitos livros no gênero deHistória do Mundo para Crianças e Emilia no País da Gramática, porquealém de recreativos são altamente instrutivos e têm muita saída”20.

Em 1936, Maria Josefina, do quarto ano do Grupo Escolar Tiradentes,de Curitiba, também comenta a aquisição de novas informações: “Li

17 Cx.1, P1, 8. Distrito Federal, 12.07.34.18 Cx.1, P2, 14. Botucatu – SP, 10.01.37.19 Cx.1, P1, 4. S/l, 20.02.34.20 Cx.1, P2, 7. Distrito Federal, 04.05.35.

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também outros, com o: História do Mundo para Crianças, e aprecieimuito, pois daquilo quase nada eu sabia...”21. Mas é interessante notarcomo esse caráter didático pode não atingir a todos os leitores. Arnaldodiz que gostou de ler Reinações..., Viagem..., mas quando foi ler Histó-ria... não gostou: “E quando chegou a vez da História do Mundo paraCrianças não gostei, não tinha graça!”22.

Para Bruno, aluno do primeiro ano do ginásio, do Recife, o livro éútil para os estudos de história da civilização, assim como Geografia...Como já aprendeu com estes, pede outro para ajudá-lo numa disciplinaem que considera ter dificuldades:

Depois li História do Mundo para Crianças que me tem sido de muita utilida-

de nos meus estudos de Historia da Civilização. A Geografia de Dona Benta

também. Então com aqueles apartes de Emilia torna-se muito engraçado. [...]

Sou muito imbecil para a Matemática e ficar-lhe-ia muito grato se o Snr. me

mandasse a Arithmética de Emília23.

Geografia de Dona Benta e Aritmética da Emília foram lançadosem 1935, o primeiro como adaptação de Hendrik Van Loon, em que ospersonagens viajam pelos países para conhecê-los; o segundo como aulasdo Visconde dadas à turma do Sítio, a partir de situações do cotidiano.Quanto a este, alunos de um grupo escolar da Cidade do Prata, mesmoenviando carta da escola, comentaram o quanto aprenderam brincando,livrando-se de um fardo:

Guardaremos tudo isto [que pediram] como relíquia do melhor amigo que

tivemos, que nos livrou das cacetes e antigas aulas de Português e Aritméti-

ca. [...] Os seus livros nos já os conhecemos. O preferido por nos é “Arithme-

tica da Emilia”, que viajando, comendo melancias, nos ensinou frações. Era

esse ponto detestado por nos24.

21 Cx.1, P1, 50. Curitiba – PR, 28.10.36.22 Cx.1, P3, 12. São Paulo – SP, 29.09.44.23 Cx.1, P1, 46. Recife – PE, 04.07.36.24 Cx.1, P2, 12. Cidade do Prata – MG, 15.05.1936.

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monteiro lobato e seus leitores 33

Muitos remetentes referem-se a diversos livros que lhe serviram comofonte de aprendizado. Julio, em 1945, escreve que considera a maioriados livros de Lobato educativos e que eles ajudam muito a “juventu-de”... “pois esta muito aprende com seus magníficos livros, que na maio-ria são todos educativos, tais como História do Mundo para Crianças,Poço do Visconde, Emilia no País da Gramática, Aritmética da Emilia,Minotauro, Viagem ao Céu, Doze Trabalhos de Hércules e outros”25.

Alguns livros citados como fonte de aprendizado não são incluídospor Penteado em sua relação de livros considerados didáticos. EditeCanto, por exemplo, genericamente, diz que há muitos ensinamentosem O minotauro26. Liliana entende que Reforma da Natureza é um livrodidático, ou com muita ciência, como diz, pois pede para não fazer maislivros como ele: “... tem muita ciencia e eu não entendo pois fiz 9 anosdia 18 de junho”27. Vilma, em 1945, cita D. Quixote como um livro queensina, ressaltando também o humor. Importante ainda é que diz gostardos livros do autor por estar na escola que está: “Tenho 12 anos e cursoo 2o ano do Ginásio Campos Sales. É por isso que admiro seus livrosque ensinam e divertem. É essa, sem dúvida, a melhor maneira de ensi-nar. O modo pelo qual o senhor escreve seus livros como D. Quixote ébem acessível às crianças”28.

Haroldo, que se referiu também a Emília no país..., comenta o quan-to aprendeu com Visconde no livro Espanto das gentes, editado em 1941,depois reunido com o livro A reforma da natureza, num só volume.Exalta a possibilidade de aprendizado rápido:

O livro das glândulas (a glandulologia?) facilita extraordinariamente o estu-

do e a compreensão de assuntos complicados. O que a minha mãe quebrou a

cabeça, sem que ela nunca pudesse entender, eu entendi em 2 tempos.

Á sua custa a criançada do meu tempo pode ilustrar-se mais do que os adul-

25 Cx.1, P3, 34. São Paulo – SP, 29.10.45.26 Cx.1, P2, 15. Botucatu – SP, 12.11.39.27 Cx.1, P2, 48. Belo Horizonte – MG, 23.06.42.28 Cx.2, P1, 45, São Paulo – SP, 12.05.1945.

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34 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

tos modernos e antigos [...] Um 1945 cheio de aventuras instrutivas e diver-

tidas de todos os seus heróis29.

Cordélia comenta que aprendeu lendo Os doze trabalhos..., diz quejá está pronta para discutir mitologia grega com o Visconde e conclui,pelas atitudes de Hércules, que: “Se a massa bruta se encontrar algumdia com a inteligência, vai saindo bem encolhidinha”30.

Mas há os que citam exatamente aqueles com características didáti-cas, como os que já foram referidos. Sylvio, que diz ter ficado maravilha-do ao ler História..., Geografia..., Emília no país.., Aritmética..., queraprender mais com um livro sobre ciências – talvez sem ter lido Se-rões...–, pois gosta da matéria: “Ocorreu-me a idéia de lhe escrever,porquê, com seus livros, aprende-se brincando! É duro decorar aquelesnomes de músculo, tecidos, etc. Mas com um livro ‘da Emilia’ quemnão aprende?”31.

Um livro de ciências é justamente o citado por Modesto Marques. O re-metente conta que pegou “amor ao saber” lendo Serões de Dona Benta 32.

São comuns os pedidos de livros referentes a assuntos do currículoescolar. Sarah, de 12 anos, diz que estuda história do Brasil e quer umlivro para poder aprendê-la melhor:

Estou estudando História do Brasil e como acho muito cacete, peço por favor

que o sr. escreva, um livro, sobre o assunto. Acho que o senhor não quer

escrever porque Viriato Corrêa plagiou dos seus contos, escrevendo logo a

História do Brasil. Mas por mim pode escrever porque certamente já o tinha

imaginado e mesmo eu não gosto dos livros que Viriato Corrêa faz. Prefiro

os seus33.

Esse é o mesmo desejo de Severino, de 9 anos: “... desejo que DonaBenta apareça com um bonito livro de ilustrações dando lições a gente

29 Cx.2, P1, 37. Curitiba – PR, 26.11.44.30 Cx.1, P3, 7. Belo Horizonte – MG, 17.02.45.31 Cx.2, P2, 22. São Paulo – SP, 23.04.1946.32 Cx.1, P2, 39. Tatuí – SP, 11.11.45.33 Cx.1, P2, 23. Distrito Federal, 26-18.05.1937.

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monteiro lobato e seus leitores 35

sobre História do Brasil. Os seus livros me têm ensinado muita coisa daHistória de minha Patria com minha querida Dona Benta”34.

Para alguns leitores, o interesse não é meramente escolar, pois pe-dem assuntos que não faziam parte, ao que parece, do currículo escolar.É o caso de um aluno que quer aprender sobre o petróleo. Depois dedizer: “Tenho lido quasi todos os seus livros e aprendido muita cousa”,escreve que quer aprender como se tira petróleo no novo livro que seuprimo disse que irá sair: Emília tira petróleo35. Esse livro foi editado em1937, com o título O poço do Visconde.

É importante lembrar que, em algumas referências ao aprendizado,os leitores comentam o quanto é divertido aprender com os livros doautor, como o caso de Maria Josefina: “Em Viagem ao Céu, por, exem-plo, eu aprendi e diverti-me imensamente com aquele pedaço que a Emiliaacha o anjinho de aza quebrada e quando o Pedrinho cai do astro em queêle estava montado”36. Bruno comenta o mesmo aspecto, opondo a idéiade livro que ensina e de humor, como se os livros de Lobato fossem umaexceção: “Esses livros que o Snr. faz e Emilia figura são gozados. Ape-sar de serem instrutivos fazem rir”37.

A leitura de Monteiro Lobato não é vista somente como algo útil àvida escolar. Ela pode também ser vista, não como complemento para oque é ensinado na escola, mas como alternativa ao difícil trabalho escolar,servindo como fonte de prazer. Edite Canto diz que, por estar fazendoexame de final de ano, “regalou-se” mais com o livro O Minotauro. Háum conflito quanto à definição do livro. No início diz haver ensinamentosnele, para depois dizer que não, pois o que há é diversão.

Os ensinamentos ali contidos são inúmeros; as piadas não só da Emilia como

dos outros, são muito engraçadas. Não ensinamento, mas distração. Estive e

ainda estou fazendo os meus exames orais para completar a terceira série e,

enjoada de exames como ando, regalei-me (si é possível) mais ainda com seu

34 Cx.1, P3, 21. Distrito Federal, 19.02.45.35 Cx.1, P1, 53. São Paulo – SP, 25.11.36.36 Cx.1, P1, 50. Curitiba – PR, 28.10.36.37 Cx.1, P1, 46. Recife – PE, 04.07.36.

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livro. [...] Não vou amola-lo mais com minhas tolas palavras e também eu

tenho de estudar38.

Além das referências ao uso dos livros como fonte de aprendiza-gem, há dois leitores que expressam a ajuda direta que os livros do autorprestaram à vida escolar. Eumira, em 1942, escreve que lê o autor desdeos primeiros anos de estudo e que seus livros foram a forma encontradapara entender aquilo que a escola não conseguiu ensinar:

Desde os meus primeiros anos de estudos, comecei a ler os vossos admirá-

veis trabalhos dedicados á infância brasileira. Apoderou-se de mim um gran-

de entusiasmo para enviar agradecimentos pelo muito que tendes indire-

tamente concorrido para o esclarecimento de minha compreensão nessa série

de dificuldades que encontramos no decorrer de nossa vida escolar.

Agora, já me encontro na 3a. série ginasial, com os meus 13 anos de idade,

pretenciosa de que já posso exprimir os meus sentimentos, devo dizer-vos

quanto têm sido úteis os vossos livros que me têm muitas vezes, tirado de

sérias dificuldades. Freqüentemente quebro a cabeça estudando lições que

não há meios de assimilar. Acontece que, depois de algum tempo tenho a

oportunidade de encontrar em alguns livros de vossa autoria o assunto que

tanto me torturava e, num instante, encontro a chave do problema39.

Modesto, também no fim do curso ginasial, expressa seu reconheci-mento. Afirma que concluiu o ginásio graças aos livros do autor. Esteleitor diz ter mudado sua maneira de ver o mundo através dos livros deLobato, mesmo assim viu na obra a possibilidade de extrair uma utilidadeprática: aprender alguns conhecimentos que o ajudassem na escola: “Aca-bo de passar para o 2o. ano do antigo pré, agora 3o. ano do Colégio. Issosignifica que já sou bacharel do Ginásio (graças aos ‘teus livros’)”40.

Para esse remetente, no entanto, os livros do escritor foram muitomais do que uma ajuda à travessia escolar. Eles levaram a uma identifi-

38 Cx.1, P2, 15. Botucatu – SP, 12.12.1939.39 Cx.2, P1, 19. Uberlândia – MG, 14.07.42.40 Cx.1, P2, 42. Tatuí – SP, 17.12.1945.

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monteiro lobato e seus leitores 37

cação profunda com o autor, levando-o a querer agir como o mestre.Nesses casos, aquele que ensina oferece não só informações e conheci-mentos, mas um sentido para a vida (Gusdorf, 1987). Na primeira cartaque enviou em 1941, diz que Emília o libertou e que ela era responsávelpor uma nova visão de mundo que adquiriu. “Agora que você me liber-tou da rotina mental em que eu vivia há 8 anos atrás, quero falar-lhe delibertado para libertador”. Diz que antes ria das palavras dela, mas “hojeque sou emiliano [o personagem sendo adjetivado], medito profunda-mente nas suas palavras”. Parecendo guiar-se realmente pela boneca,pergunta se “para salvar a pátria abandonaria família e amigos. Não meconsidere louco: minha intenção nem você minha libertadora, entende-rá”. Essa maestria exercida por Emília é evidenciada no início e no fimda carta, no PS: “Você foi a minha princesa Isabel”. Explica uma dasatitudes que passou a ter: “...a duvidar de tudo que não me parecesselógico e a investigar a verdade nos próprios absurdos”. Aprendeu tam-bém com Emília: “seja esperto” 41.

Essa adesão continua ainda quatro anos depois, quando já tem 16anos, mas o leitor desvia o foco para outra personagem, Dona Benta,que assume o papel de mestra:

Sabe uma conclusão que eu tirei? Que a senhora é uma pedagoga revolucio-

nária, utópica possível. [...] Revolucionária porque o seu “método de cama-

radagem” não existe ainda no Brasil (talvez mesmo no mundo). Utópica,

porque, com a mentalidade dos tais adultos, o ensino é uma coisa tão sisuda,

tão vital, tão obrigatória, que nos aborrece. [...] Se eu for alguém algum dia,

se algum dia eu tiver ou poder, ou riqueza, ou fama, eu juro em nome de

Monteiro Lobato, meu pai espiritual, que mandarei erguer uma grande está-

tua em sua honra, que será o mesmo que à Cultura e à Pedagogia. [...] Quero

com isso pagar não o quanto aprendi, mas apenas a Nova Visão da vida que

os seus livros me deram42.

41 Cx.1, P2, 38. Tatuí – SP, 28.11.1944.42 Cx.1, P2, 37. Tatuí – SP, 10.12.1945.

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38 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

Em Nova Visão, o grifo é meu, para ressaltar a importância do con-junto da obra e do conhecimento de modo geral e não somente de algumaspecto isolado que lhe tenha sido importante ou interessante. Vale no-tar que assim como Modesto ofereceu uma reação à escola e passou ater problemas com ela, outros leitores não entraram em conflito com ainstituição pelas idéias do autor, agindo, para retomar a expressão, comtáticas diferentes. O próprio Modesto relata uma atitude completamentecontrária a de outro leitor sobre o mesmo assunto. Comenta, ao escreverporém no início de uma frase da própria carta enviada, que o professororientou-o a não fazê-lo, mas ele não se importa, afinal de contas apren-deu com Lobato a não dar importância para isto43. Já Carlos, remetenteda capital, pede desculpas pelos acentos que deixou em sua carta, masdiz ter que usá-los, pois, como estudante, deve fazer o prescrito pelaescola, senão repete o ano: “Eu espero, Dr. Lobato, que o senhor meperdoe êsses acentos, se estão aí, é porque acostumei-me a eles. Esperoque o senhor se recorde de que sou estudante portanto tenho que obede-cer ao professor de português ou levarei ‘bomba’”44.

Nos dois casos, não são as estratégias as determinantes. O primeiropoderia ter a mesma atitude do segundo diante do “erro”, contudo preferiuaderir a Lobato e renegar o ensinamento escolar. O segundo tambémnão precisaria obedecer ao professor – não numa situação como a dacarta, ao menos –, pois não estava na escola. Mesmo assim, preferiudizer que deve obediência à escola nesta matéria. Contudo não desme-receu o autor.

Todos esses trechos das cartas demonstram um modo de compreen-der os livros de Monteiro Lobato, que leva em conta a possibilidade deaprendizado através dos livros. Elas apresentam algumas nuances dife-rentes, como a valorização do humor, o uso escolar ou pessoal, por exem-plo. Nota-se uma correspondência entre as intenções estratégicasapontadas nos estudos sobre Lobato e as táticas dos leitores. Entretanto,essas táticas não se esgotam nas estratégias apontadas. Muitos leitores

43 Cx.1, P2, 41. Tatuí – SP, 12.12.1945.44 Cx.1, P3, 35. São Paulo – SP, 19.11.1945.

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monteiro lobato e seus leitores 39

aprendem mesmo com os livros que estão fora do conjunto daquelesindicados para ensinar e não necessariamente aprendem do modo comofoi pensado pelo autor. A escolha de um escritor e o uso feito pela escolanão definem totalmente o modo como o leitor usará determinado livro,ainda que exerçam uma grande influência.

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42 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

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O artigo apresenta um estudo sobre a trajetória do movimento escoteiro em Minas Gerais,durante a gestão do presidente do estado Antônio Carlos Andrada (1926-1930), quando seimplementou uma reforma da instrução pública. Pesquisei o apoio estatal ao movimentoeducacional criado pelo militar inglês Baden-Powell, num contexto de valorização donacionalismo, do civismo e de militarização infantil e juvenil.ESCOTISMO; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; MINAS GERAIS; REFORMA DE ENSINO;ANTÔNIO CARLOS ANDRADA.

The article describes the scouting developed in Minas Gerais, during the Antônio CarlosAndrada governor years (1926-1930), when a reformulation was carried out in the publiceducation. I have researched the assistance of state to the education movement createdoriginaly by the British military Baden-Powell, in a context that reenforce nationalism,civilianship and militarization of children and teenagers.SCOUTING; HISTORY OF EDUCATION; MINAS GERAIS; TEACHING REFORM;ANTÔNIO CARLOS ANDRADA.

Educação e civismo

movimento escoteiro emMinas Gerais (1926-1930)

Adalson de Oliveira Nascimento*

* Mestre em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), bacharel elicenciado em história pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.

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Neste artigo1, estudo as formas pelas quais o governo de Minas Ge-rais, durante a gestão do presidente Antônio Carlos Andrada (1926-1930),contribuiu para a consolidação do movimento escoteiro no estado a par-tir da reforma educacional proposta por Francisco Campos, então secre-tário do Interior responsável pela pasta da educação2.

Esta reforma educacional ficou conhecida por trazer ao ensinoprimário novas práticas pedagógicas baseadas nos preceitos da chamadaEscola Nova. Várias inovações pedagógicas foram discutidas e introdu-zidas nos grupos escolares, dentre elas foram criados grupos escoteirosvinculados aos grupos escolares e o Estado passou a incentivar o esco-tismo através da formação de chefes escoteiros, do apoio financeiro e dapropaganda sobre suas “vantagens”.

O escotismo, das primeiras décadas do século XX, tem sido poucoestudado pela historiografia brasileira. As pesquisas já realizadas sãorecentes e abordaram a trajetória do movimento em São Paulo. É o casodo trabalho de Rosa Fátima Souza, intitulado A militarização da infância:expressões do nacionalismo na cultura brasileira e de Judith Zuquim eRoney Cytrynowicz, Notas para uma história do escotismo no Brasil: a“psicologia escoteira” e a teoria do caráter como pedagogia de civismo.

O escotismo, movimento educacional de caráter militar e cívico-patriótico, foi criado pelo general inglês Robert Stephenson SmythBaden-Powell, em 1907. Rapidamente se expandiu por todo o mundo.No Brasil, o movimento se tornou bastante expressivo nas décadas de1910 e 1920. Ele foi vinculado ao sistema escolar público, e ficou sobtutela governamental em vários estados brasileiros.

Através do escotismo, durante as décadas de 1910 e 1920, diversosgrupos políticos, preocupados com a valorização do sentimento nacionalentre a juventude, doutrinaram crianças e jovens. Neste sentido, o estudo

1 Sou grato aos professores Rodrigo Patto e Luciano Mendes que, através de suges-tões e da leitura do texto, muito contribuíram para elaboração deste trabalho.

2 O artigo apresenta parte de minha pesquisa desenvolvida durante o curso de bacha-relado em história do Departamento de História da UFMG. A pesquisa, já concluí-da, resultou na monografia intitulada Sempre alerta! O movimento escoteiro emMinas Gerais (1926-1930).

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do movimento pode revelar importantes aspectos da cultura política eeducacional daquele momento.

Para compreendermos o sucesso da doutrina escoteira e o incentivode sua aplicação nos grupos escolares mineiros, é necessário conhecerseus pressupostos e o contexto de seu surgimento.

Surgimento do escotismo

Os anos finais do século XIX foram marcados por uma grandeinsegurança social acarretada pelas transformações porque passava ocontinente europeu, além de uma forte depressão econômica e moral.Nesse momento de crise, surgiu um tipo de nacionalismo específico,desenvolvido por ideólogos e políticos de direita. Esses grupos voltaramo discurso nacionalista contra estrangeiros, liberais e socialistas epropunham uma expansão agressiva de seus próprios Estados, sendoesta a principal característica de tais movimentos. A difusão e a aceitaçãodesta ideologia política de valorização do aspecto nacional foi, paraHobsbawm (1988, p. 206), uma resposta à crise pelo qual passava oVelho Mundo.

O escotismo foi criado em 1907 pelo general inglês Baden-Powell3.Nascido em 1857, Baden-Powell ingressou no exército britânico em1876, onde fez carreira. Foi autor de vários livros nos quais discorresobre técnicas militares de avanço em terreno inimigo, dentre eles,Reconnaissance and scouting4, lançado em 1884 e Aids to scouting for

3 Informações sobre a biografia de Baden-Powell podem ser encontradas no livro 250milhões de escoteiros, de Laszlo Nagy.

4 A palavra scout, em inglês, significa explorador, batedor ou espião militar, ou,ainda, sentinela avançada, vedeta. Pode ser empregada também com o sentido dosverbos explorar, reconhecer, descobrir. O movimento escoteiro foi criado sob onome de Boys Scout em 1907 e, ao que tudo indica, até 1914, não havia traduçãodireta para o termo no Brasil. Mario Cardim, ativo militante do movimento esco-teiro paulista na década de 1910 teria sido o criador, em janeiro de 1914, dos ter-mos “escotismo” e “escoteiro”. Até início da década de 1930, no Brasil, além de“escotismo”, era comum o emprego do termo “escoteirismo” ou “scoutismo”.

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non-commissioned officer and men, de 1900. Baden-Powell “sugeriu aformação de pequenos grupos de treinamento, possibilitando-os desen-volver suas próprias dinâmicas. Introduziu a idéia de jogos – na maioriadeles, idealizados por ele mesmo – como método educacional” (Nagy,1987, p. 42). Mais tarde, esses livros foram referência para o treinamen-to e a dinâmica do movimento escoteiro.

A partir de sua vivência no exército e preocupado com a formaçãoda juventude inglesa foi que Baden-Powell elaborou um “plano paraformação de rapazes, que seguia de perto o programa dos exploradoresmilitares” (Baden-Powell, 1986a, p. 51). Foi naquele contexto, marcadopelo discurso nacionalista da direita política que via no fortalecimentoda nação uma solução para crise pela qual passavam os países europeus,que surgiram as organizações paramilitares destinadas ao treinamentoda juventude, que deveria estar preparada para defender a nação. Estasorganizações utilizavam-se, na maioria das vezes, da ginástica e dosesportes para treinar a juventude para ser “mais viril, mais apta a supor-tar a vida militar, mais preparada para enfrentar um longo conflito semperder a coragem” (Weber, 1988, p. 259).

Em agosto de 1907, Baden-Powell, juntamente com cerca de vinterapazes, fez um acampamento na Ilha de Bronwnsea, na Baía de Poole;ali eles colocaram em prática a proposta de educação do militar inglês.O sucesso alcançado naquele primeiro acampamento foi seguido do lan-çamento de seis fascículos intitulados Scouting for boys, em 1908. Es-ses fascículos continham todas as prerrogativas do movimento que estavasendo criado e foram também publicados posteriormente em forma delivro.

Vários eram os objetivos, mas, basicamente, Baden-Powell queriaformar uma juventude desenvolvida, física e moralmente, que, com suasvirtudes, pudesse contribuir para o desenvolvimento da nação inglesa.Ao se referir à finalidade do movimento, ele diz:

[...] procurar melhorar o padrão dos futuros cidadãos, especialmente seu ca-

ráter e sua saúde. Era preciso descobrir os pontos fracos do caráter nacional

e esforçar-se por erradicá-los, substituindo-os por virtudes equivalentes que

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os programas escolares não mencionavam. As habilidades manuais, as ativi-

dades ao ar livre e o serviço ao próximo estavam na vanguarda desse progra-

ma [escoteiro] [Baden-Powell, 1986b, p. 53].

O objetivo do movimento seria alcançado a partir do aprendizadoda “arte mateira” (técnicas de sobrevivência na natureza em condiçõesadversas). A partir desta concepção é que Baden-Powell criou o esco-tismo. Durante os acampamentos, os jovens participavam de jogos eatividades recreativas e ouviam “palestras” sobre questões morais; estemomento de conversas e de reflexão era chamado no Brasil de “fogo doconselho”. Outras atividades eram realizadas nas cidades, tais como tra-balhos assistenciais e encontros de estudo de temas morais e de técnicasrelacionadas à sobrevivência no campo.

Acredito que o movimento teve, no período estudado, forte caracte-rística militar. Sua própria origem revela isto, pois sua base foi pensadae gestada para o treinamento de militares; o que ocorreu depois foi uma“adaptação”: a pedagogia se voltou para crianças e jovens.

“O escotismo, enquanto pedagogia de civismo, condensou diversasvertentes de movimentos de intervenção extra-escolar na educação decrianças e jovens desde o século XIX, que enfatizavam a insuficiênciada escola na formação de ‘caráter’ e a necessidade de constituição deuma nacionalidade ‘forte’” (Zuquim & Cytrynowicz, 2002, p. 45).

A doutrina badeniana no Brasil

Durante as décadas de 1910 e 1920, importantes políticos e intelec-tuais brasileiros apoiaram o escotismo. Num período onde a preocupa-ção era “integrar e controlar as massas” e formar uma consciência denação brasileira, o escotismo era visto como uma solução para a educa-ção das crianças e jovens.

A primeira entidade representativa do escotismo no Brasil foi criadaem 1914, a Associação Brasileira de Escoteiros (ABE). Instalada emSão Paulo, nela atuavam figuras políticas importantes, militares de altapatente e pessoas de destaque social. Seu primeiro vice-presidente foi

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Washington Luiz, que mais tarde ocupou os cargos de prefeito e gover-nador de São Paulo e presidente da República (Blower, 1994)5.

Já nos primeiros anos da chegada do escotismo ao Brasil o movi-mento ganhou força. Em 1917, o decreto federal n. 3.297 considerou deutilidade pública as associações brasileiras de escoteiros com sede noBrasil, comprovando o status alcançado pelo movimento.

Acredito que o sucesso do escotismo no Brasil, nas décadas de 1910e 1920, assim como na Europa, está relacionado a um contexto de crisee de valorização da idéia de nação e de nacionalismo e de surgimento denovas práticas pedagógicas que valorizavam atividades inovadoras naformação moral dos educandos6. O Brasil viveu, no início do séculoXX, uma crise do regime e das idéias liberais. Esta crise está diretamen-te relacionada ao agravamento da questão social, que passou a represen-tar o grande problema a ser resolvido. Era preciso reforçar o controlesobre as massas e integrá-las politicamente. Nesse sentido germinaramidéias nacionalistas vindas da Europa e reinterpretadas no Brasil. Osgrupos de intelectuais e ideólogos brasileiros nacionalistas propunhama criação e difusão de uma nova identidade, uma identidade coletiva.

O movimento escoteiro era visto como uma possibilidade deeducação voltada para os interesses nacionalistas naquele momento.Assim como Baden-Powell, os nacionalistas brasileiros acreditavam queo escotismo criaria cidadãos responsáveis, capazes de enfrentar asadversidades, conscientes de seus deveres para com a pátria, além deproporcionar um treinamento pré-militar, importante no caso de eventuaisconflitos entre nações.

Em termos pedagógicos, o Brasil vivia, nas décadas de 1910 e 1920,um momento de implementação de novas idéias e métodos. “O escotismosurgiu em uma época em que brincadeiras e jogos adquiriram um novosignificado para os educadores. A recreação tornou-se uma ferramenta a

5 Informações factuais sobre o escotismo brasileiro no período de 1910 a 1924 podemser encontradas no livro de Bernard David Blower, História do Escotismo Brasilei-ro (1910-1924), os primórdios do escotismo no Brasil.

6 Sobre este assunto, ver o trabalho de Judith Zuquim e Roney Cytrynowicz “Festade escotismo, Programma”, 1917, em Blower (1994, p. 127).

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mais na formação do caráter, o que refletia não apenas novos modelospedagógicos mas também novas atitudes em relação ao brincar e jogar”(Zuquim & Cytrynowicz, 2002, p. 50).

Na década de 1910, surgiram no Brasil diversos movimentos devalorização do civismo e do nacionalismo. Os movimentos mais conhe-cidos e estudados são a Liga de Defesa Nacional, a Liga Nacionalista deSão Paulo, ambos paulistas, a Propaganda Nativista e a Ação SocialNacionalista, com sede no Rio de Janeiro. Dentre esses movimentos, omais importante foi a Liga de Defesa Nacional. Criada em 1916, a Ligadefendia a elevação da consciência cívica através da educação e do ser-viço militar obrigatório. Estes movimentos tinham a educação comoponto central para a implementação de seus projetos políticos.

O poeta Olavo Bilac, principal fundador da Liga de Defesa Nacio-nal, tinha um grande trânsito entre as elites civis paulistas e se apro-veitou disto para promover a idéia da instrução militar como soluçãopara os “problemas nacionais”. As idéias de Bilac criaram a concepção“cidadão-soldado”, que pressupunha que o exército e a educação mar-cial seriam uma boa saída para o enfrentamento da desorganização edos conflitos sociais e para a produção de cidadãos aptos a “defende-rem” a nação brasileira.

Ao citarmos a Liga de Defesa Nacional, o que mais nos interessa ésua relação com o movimento escoteiro. Se para os adultos a Liga pro-punha o serviço militar, para as crianças e os jovens ela propunha oescotismo. Um trecho de seu estatuto, citado por Horta (1994, p. 11),expõe alguns dos objetivos: “[...] difundir a instrução militar nas diversasinstituições, desenvolver o civismo, o culto do heroísmo, fundar asso-ciações de escoteiros, linhas de tiro e batalhões patrióticos [...] difundirnas escolas o amor à justiça e o culto do patriotismo”.

Bilac foi um ardoroso defensor do serviço militar obrigatório e doescotismo. Ele acreditava que o movimento criado por Baden-Powell,assim como o militarismo, teria uma ação educadora benéfica nasociedade brasileira. Para Bilac, a dinâmica do movimento escoteiroestava relacionada às artes marciais e daí o incentivo da Liga à criaçãode “associações de escoteiros”. O poeta via no escotismo a possibilidadede grandeza da pátria:

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No escotismo a idea de honra define-se: é a honra do individuo e a honra do

cidadão; o desinteresse e a magnanimidade não são apenas gestos formosos;

são acções justas e uteis, – justas para a perfeição humana, e util para a gran-

deza da Patria [Blower, 1994, p. 127].

Bilac, juntamente com outro poeta de renome, Coelho Netto, prefa-ciou o primeiro manual escoteiro lançado no Brasil, em 1916, intituladoO livro do escoteiro. Assim como Olavo Bilac, outras figuras de desta-que apoiavam o escotismo e dele faziam propaganda.

Em São Paulo, a Associação Brasileira de Escoteiros (ABE) rece-beu todo apoio da Liga de Defesa Nacional. A entidade de escoteiros erafiliada à Liga, que por sua vez incentivava grupos de escoteiros de ou-tros estados a se filiarem à ABE.

No Rio de Janeiro, surgiram durante as décadas de 1910 e 1920 diver-sas entidades representativas do movimento escoteiro. Em 1924, as en-tidades com sede na capital federal se reuniram e fundaram a União dosEscoteiros do Brasil (UEB).

A partir de 1924, a UEB se tornou reconhecidamente a entidademáxima representativa do escotismo brasileiro, posição que ocupa atéhoje. O primeiro presidente da UEB foi Afonso Pena Júnior, entãoMinistro da Justiça. Ele sempre foi ligado ao escotismo e em 1936publicou o livro A educação pelo escotismo.

O escotismo fazia parte do discurso político de diversos segmentosda sociedade, principalmente daqueles que defendiam o nacionalismocomo estratégia para construção de uma identidade brasileira. A Igrejacatólica também atuava de forma marcante no movimento escoteiro7.Em 1921 foi criada a Associação de Escoteiros Catholicos do Brazil(AECB), cujos estatutos diziam:

A Associação de Escoteiros Catholicos do Brazil tem por fim desenvolver na

juventude, o vigor e a destreza physica, o espirito de iniciativa, a rapidez nas

7 O livreto Sobre o escotismo, da coleção Documentos Pontifícios, publicado pelaeditora Vozes, traz documentos produzidos pelos Papas Bento XV, Pio XI e Pio XIIrelacionados ao escotismo.

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decisões, a coragem, o sentimento da responsabilidade e dignidade pessoal, a

honra, e o patriotismo por meio dos methodos creados pelo General Baden-

Powell, e sob inteira obediência aos princípios, dogmas e leis da Egreja

Catholica8.

Além dos “nacionalistas” e da Igreja, o exército também se interes-sava pela doutrina de Baden-Powell. Prova disso é a grande quantidadede chefes escoteiros militares. O Estado também tinha simpatia pelomovimento. Em 1928, o governo federal, através do decreto n. 5.497,assegura a UEB “o direito de porte e uso de todos os uniformes, emble-mas, distintivos, insígnias e lemas que forem adaptados pelos seus re-gulamentos, aprovados pelo Governo da República, como é necessáriopara a realização dos seus fins”. Vale lembrar que o presidente da Repú-blica, Washington Luiz, que assina o decreto, havia sido vice-presidenteda ABE em anos anteriores. Esse decreto também previa o apoio ins-titucional do governo ao escotismo: “O Governo promoverá a adoçãoda instrução e educação escoteiras nos colégios e institutos de ensinotécnico e profissional mantidos pela União”9.

Também a Associação Brasileira de Educação, criada em 1924, e que,segundo alguns analistas, teria sido um catalisador do movimento reno-vador da educação, tinha grande simpatia pela doutrina de Baden-Powell.“O escotismo – fusão exemplar de vida saudável e moralizada – era ini-ciativa que contava com todo o apoio da Associação Brasileira de Edu-cação” (Carvalho, 1998, p. 180). Prova disto é a presença de teses defen-soras do movimento nas “famosas” Conferências Nacionais da Educação.

Podemos concluir que, durante as décadas de 1910 e 1920, o esco-tismo recebeu o apoio de diversos grupos políticos, inclusive do gover-no federal, que viam no movimento a possibilidade de educação e dou-

8 ESTATUTOS E REGIMENTO INTERNO DA ASSOCIAÇÃO DE ESCOTEIROS CATHOLICOS DO BRAZIL,1921, p. 3.

9 A partir de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, o escotismo receberá umapoio ainda maior do governo federal. Legalmente, esse apoio é oficializado com alei n. 342, de 12 de dezembro de 1936, que “institui o escotismo nas escolas primá-rias e secundárias do país”.

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trinação da juventude de acordo com valores considerados necessáriosnaquele momento. Há diversas afinidades entre as idéias políticas deorganização social propostas pelos intelectuais do nacionalismo brasi-leiro e o movimento escoteiro. Teóricos como Oliveira Viana, AzevedoAmaral e Francisco Campos, ícones intelectuais da corrente naciona-lista na primeira metade do século XX, não pensavam de forma idênti-ca, mas há um conjunto de princípios que os une. Eles concordavamacerca da necessidade de construção de uma identidade coletiva brasi-leira e suas teorias apresentam uma crítica ao presente com propostas demudança para a construção desta “identidade” (Fausto, 2001, p. 48). Omovimento escoteiro seria uma das “organizações” sociais capazes deauxiliar a promoção dessa mudança necessária, educando crianças e jo-vens patriotas e integrando-os à vida social e política brasileira.

A idéia de que o movimento escoteiro formaria jovens integrados àpátria, de acordo com o pensamento dos autores citados anteriormente,pode ser percebida em diversos documentos do período. Temas comoeugenia, trabalho, integração social e política das massas aparecem comconstância nos discursos produzidos pelo movimento e sobre o movi-mento.

O Ementario do escoteiro, bosquejo de instrucção theorica,publicado pela ABE em 1920, foi elaborado em forma de perguntas erespostas. Uma delas é a seguinte:

Por que e para que ser escoteiro?

Para se tornar, quando homem, um cidadão util á Pátria e aos outros homens;

preparado para lucta da vida; firme na sua vontade e no seu caráter; resoluto

na sua iniciativa; cumpridor dos deveres que lhe incumbem ou tiver de assu-

mir; forte, enfim, no corpo e na alma, patriota sem bairrismos, economico

sem avareza, generoso sem desperdicios, corajoso sem bravatas, altivo sem

soberba e respeitador incondicional dos fracos e dos velhos, das creanças e

das mulheres, das flôres, das aves, de todos os animaes e dos direitos pró-

prios e alheios [ABE, 1920, p. 6].

O documento deixa claro que a primeira virtude de um escoteiro é:“se tornar, quando homem, um cidadão util á Pátria”. O escoteiro também

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seria um cumpridor de seus deveres e patriota “sem bairrismos”, o quecontribuiria para a criação da tão sonhada “identidade nacional”. Ficaclaro também a valorização do escotismo enquanto promotor de umacoesão social, o que, na época, era visto como uma necessidade urgente,no intuito de garantir o controle sobre as “massas”. Noutro trecho, aoexplicar parte do juramento escoteiro, invoca-se novamente o patriotis-mo, além da valorização da importância do trabalho para a pátria:

Amar a minha patria e servil-a fielmente na paz e na guerra. Sim! O escoteiro

deve ter sobretudo bem vivo o amor de sua patria, desejal-a forte, livre, res-

peitada e gloriosa. Para assim a poder ver, é mister que pela pratica constante

de seus deveres, o escoteiro de hoje possa ser o cidadão de amanhã, obreiro

do progresso e amigo da ordem; e, no dia em que a Pátria precisar de defeza,

ser o soldado forte e valoroso, que pela Pátria se sacrifique e a defenda com

o seu corpo e com a sua alma! Até lá o escoteiro servirá a patria com a sua

actividade e o seu trabalho [idem, p. 14].

O Guia do escoteiro, um dos manuais escoteiros mais populares dadécada de 1920, também se refere ao patriotismo:

O escoteiro é patriota. Está sempre prompto para servir ao paiz. Respeita

voluntariamente as leis e as autoridades costituidas e esforça-se para que

todos as respeitem. Conhece a historia, a organização patria, desde a sua

origem.

Prepara-se com interesse para poder cumprir bem os seus deveres de cidadão

quando attingir a sua maioridade.

Tem orgulho de ser brasileiro e procura seguir o exemplo dos que se dedica-

ram e morreram pelo Brasil [Velho Lobo, 1925, p. 18].

Aqui novamente invoca-se a idéia de que o escotismo é uma escolaque forma cidadãos patriotas e integrados à sociedade. Um novo elementoé a valorização dos “heróis” brasileiros, aqueles cujo exemplo deve serseguido.

A associação entre escotismo e eugenia também foi marcante naqueleperíodo. O discurso do chefe Antônio Pereira da Silva, proferido emBarbacena e publicado pelo Diário da Manhã em 1927, mostra-nos isto:

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O escoteirismo, podemos dizer, é o cadinho onde procuramos apurar a nossa

raça; é a pedra de toque do futuro cultivo das populações, porque, nesta esco-

la, a mocidade vae beber os principios salutares de um triplice caracter:

physico, moral e intellectual.

Educar a creança na escola do são escoteirismo é preparal-a para encarar

com serenidade e impavidez a defeza da Patria10.

A idéia de educação integral também está presente nos discursosacerca do escotismo. A educação integral – educação física, intelectuale moral –, apela para a indissociabilidade entre corpo e espírito e para anecessidade do processo educativo seguir as mesmas leis da natureza(Souza, 2000, p. 107).

Um resumo do discurso de Afonso Pena Júnior durante uma ceri-mônia no Palácio da Liberdade (sede do governo mineiro), publicadono jornal Minas Gerais, aponta para a questão da formação integral atra-vés do escotismo: “O escoteirismo não é simples gymnastica não é meroesporte, nem é apenas educação militar. É a preparação do homem inte-gral, pela completa fortaleza physica, civica e moral, de cujo esforçopossa a patria esperar confiadamente”11.

Como demonstrei, Baden-Powell acreditava que a vida “rústica”praticada no escotismo propiciaria uma boa formação para os jovens.Ele contrapunha a modernidade das grandes cidades à vida bucólica doscampos. No Brasil, Alberto Torres – um dos precursores do pensamentonacionalista autoritário – influenciado por teóricos da direita européiacomo Barrès e Maurras, contrapunha campo e cidade com sinais, res-pectivamente, positivo e negativo (Fausto, 2001, p. 26). Uma das virtu-des do escotismo seria possibilitar esta volta ao campo, idéia presentena Europa e na sociedade brasileira e expressa nos discursos acerca domovimento:

E avulta ser o escoteirismo, uma reacção contra o viciado e depauperador espi-

rito das “urbs” que ameaça degenerar a mocidade, enfraquecel-a, aniquilal-a.

10 Associação dos Escoteiros de Barbacena. Diário.11 “Sete de Setembro”, Minas Geraes, Belo Horizonte, 9 set. 1927.

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Com o escoteirismo, a creança, libertando-se do circulo de influencia do

espirito urbanista, irá vitalizar-se nos campos, longe do “struggle-for-life”

da cidade, garantido-nos dest’arte, uma nova raça, pujante e victoriosa12.

Portanto, durante as décadas de 1910 e 1920, o movimento escotei-ro encontrou grande apoio na sociedade brasileira. Este “sucesso” dadoutrina de Baden-Powell no Brasil, ao nosso ver, se explica pela cren-ça no movimento como uma oportunidade de se implementar projetospolíticos e concepções pedagógicas vigentes na época, principalmenteaqueles de valorização da nação, do patriotismo e da idéia da necessidadede criação de uma identidade nacional.

Escotismo em Minas Gerais

Em Minas Gerais, a partir da segunda metade da década de 1920,surgiram grupos escoteiros organizados nas principais cidades, graças aoapoio do governo estadual. Nesse período foi organizada também a Fe-deração Mineira de Escoteiros (FME), órgão máximo do escotismo mi-neiro, filiada à UEB e a ela subordinada.

Meu objetivo é demonstrar como o escotismo se desenvolveu e seestruturou em Minas, nos anos de 1926 a 1930, graças à reforma educa-cional proposta por Francisco Luiz Campos, então secretário do Interiorresponsável pela área da educação do governo de Antônio Carlos. Essareforma previa a criação de grupos escoteiros vinculados aos gruposescolares e destinados a difusão do escotismo através da participaçãodos alunos matriculados nas escolas.

O “apoio” dado ao escotismo mineiro se insere num contexto maisamplo de valorização do movimento ocorrida em todo Brasil. Oescotismo era visto como uma escola para formação das crianças e jo-vens de acordo com princípios ideológicos e pedagógicos vigentes àépoca.

12 “Escoteirismo”, Diario de Minas, Belo Horizonte, 8 jan. 1928.

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Durante a década de 1910 e início da de 1920, o movimento escotei-ro brasileiro esteve concentrado, principalmente, no Rio de Janeiro eem São Paulo. Há notícias de grupos no resto do país, mas no Rio e emSão Paulo eles existiam em maior número e contavam com entidadesrepresentativas. Em Minas Gerais encontramos diversas notícias sobreo escotismo no período anterior a 1926. As informações revelam a exis-tência de poucos grupos e a falta de articulação do escotismo mineiro.

Foi no governo de Fernando Melo Viana (1922-1926) que o escotis-mo saiu dos discursos políticos patrióticos para se tornar um movimen-to doutrinário e educacional dos jovens, organizado e com o apoio oficialdo estado. O regulamento do Gymnasio mineiro, de 30 de janeiro de1926, previa:

Art. 170 – A cargo do professor de educação physica e sob a direcção do

reitor, que organizará instrucções adequadas será instituida no Gymnasio a

escola de escoteiros.

O Gymnasio mineiro dividia-se num externato com sede em BeloHorizonte e num internato em Barbacena. Em Belo Horizonte, foi cria-do em 30 de maio de 1926 o grupo escoteiro previsto no regulamento doGymnasio, sob orientação do professor de educação física Antônio Pe-reira da Silva. Em 14 de julho do mesmo ano foi criada a Associação deEscoteiros do Gymnasio Mineiro13.

Em 25 de novembro de 1926 foi fundado, por iniciativa de chefePereira, o Grupo de Escoteiros Populares, independente do Gymnasiomineiro. Esses foram os dois primeiros grupos surgidos em Belo Hori-zonte nesta “nova era” de apoio estatal14.

Em setembro de 1926, Antônio Carlos Andrada assumiu a presidênciado estado. Durante seu governo o escotismo se fortaleceu não apenasem Belo Horizonte, mas em toda Minas Gerais. A reforma educacionalimplementada por Francisco Campos, reconhecido teórico do pensa-

13 “Recordando”, Estado de Minas, Belo Horizonte, 11 maio 1928.14 Idem.

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mento nacionalista brasileiro, enquanto secretário de Estado do Interiordo governo de Andrada, foi o grande reconhecimento estatal da impor-tância do escotismo para a formação das crianças e jovens.

A partir de 1927, o chefe Pereira, sempre acompanhado de escotei-ros belorizontinos, iniciou viagens pelo interior do estado com o intuitode divulgar a doutrina de Baden-Powell. Em janeiro ele foi a Barbacenafundar o grupo de escoteiros daquela unidade do Gymnasio mineiro,como previsto no regulamento da instituição. Em maio, os escoteirosbelorizontinos estiveram em Juiz de Fora onde já existiam grupos esco-teiros. Em julho, novamente os escoteiros voltaram a Barbacena. A con-vite do doutor Amando Brasil de Araújo, presidente da Câmara Munici-pal, realizaram-se duas reuniões para a reorganização da Associação deEscoteiros de Barbacena. O discurso de chefe Pereira, publicado no Jor-nal de Barbacena, na ocasião, nos dá mostras do interesse do governona fundação de grupos escoteiros:

É desejo do exmo. sr. dr. Antonio Carlos, intensificar o movimento escoteiro

em nosso Estado e assim já foram fundadas em Juiz de Fora e Bello Horizon-

te associações escoteiras, que vão em franco progresso, mostrando grandes

resultados. [...]

Já certa vez, por esforço e enthusiasmo do nosso conterraneo, dr. Brasil de

Araújo, foi aqui fundado um grupo de escoteiros, que, infelizmente, não lo-

grou progresso por faltar o necessário apoio governamental.

Agora, porem, graças ao espirito lucido e pratico do nosso presidente e seus

auxiliares; homens que encaram os grandes problemas nacionaes, bem

comprehenderam a necessidade, na epocha, da introducção em nosso meio,

de tão uteis ensinamentos.

Felizmente, o movimento cresce dia a dia e assim em breve teremos a alegria

de ver uma nova geração de moços fortes, disciplinados e patriotas, graças

aos ensinamentos do grande General Baden-Powell15.

15 “Associação dos Escoteiros de Barbacena”, O Jornal de Barbacena, Barbacena, 14jul. 1927.

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O jornal publicou ainda o texto de um telegrama enviado por Aman-do Brasil ao presidente Antonio Carlos: “com viva satisfação tenho ahonra de communicar a v. exc. haver-se fundado hoje, em reunião pormim convocada, presente professor Pereira da Silva, a AssociaçãoBarbacenense de Escoteiros, acudindo assim patriotico appello sua pla-taforma”. Note-se que Amando Brasil diz ter criado a associação deescoteiros de acordo com a plataforma do presidente Antônio Carlos.

A revista Anaúê, publicada em 1928, traz uma reportagem intitulada“O escoteirismo e o sr. presidente do estado”. Na matéria, relembra-se oapoio dado pela gestão de Antônio Carlos à doutrina de Baden-Powell.Ela traz também trechos de um discurso proferido por Antônio Carlosquando ainda candidato a presidência, em 23 de janeiro de 1926:

Pela instituição do escoteirismo tenho a mais decidida sympathia, convenci-

do de que nela se encontra o complemento natural e a cooperação eficaz para

a obra da escola primaria.

Tal sympathia e tal convicção derivam dos fins a que essa instituição se en-

trega e que são os de pugnar pela educação da mocidade, despertando-lhe,

principalmente os sentimentos moraes e civicos, o espírito de iniciativa e de

bondade, a abnegação e a alegria, ao mesmo tempo cuidando do seu aperfei-

çoamento physico, dando aos moços conhecimentos directos da natureza,

infundido-lhes ao caracter os predicados de intrepidez e disciplina, prapa-

rando-os, enfim, para a vida do trabalho intenso e para a exacta compreensão

e pratica concetaneas aos deveres civicos16.

Esta simpatia declarada ao escotismo por Antônio Carlos ficou ex-plícita quando foi eleito presidente. A reforma educacional implementadaem seu governo valorizou o movimento, incentivando a criação de tro-pas escoteiras através da divulgação dos valores positivos do escotismoe do apoio institucional do Estado.

O ano de 1927 foi marcado por uma vasta campanha de incentivo acriação de grupos escoteiros em diversas cidades do interior de Minas e

16 Anaúê, Belo Horizonte, Associação Mineira de Escoteiros, n. 1, jul. 1928.

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em todos os grupos escolares da capital, como veremos a seguir. Oficial-mente, o apoio estatal surgiu a partir da aprovação do Regulamento doEnsino Primário proposto por Francisco Campos. Esse regulamento foia base de uma ampla reforma no ensino primário no Estado. Com rela-ção ao escotismo, ele previa a existência da Inspetoria de Educação Fí-sica subordinada a Inspetoria Geral da Instrução Pública, que eraencarregada de auxiliar o governo na direção e administração do ensinoprimário. O regulamento dizia: “art. 94 – A Inspectoria da EducaçãoPhysica terá por fim: [...] h) incentivar e orientar a organização doescoteirismo nas escolas publicas, formando e preparando o necessariocorpo de instructores”.

Este regulamento previa ainda, na parte VI, “Das instituições esco-lares e das instituições complementares da escola”, a criação de institui-ções escolares complementares da escola. O escotismo é declarado umadestas instituições:

Art. 207 – Será instituido entre os alumnos das escolas primarias, com caracter

facultativo e como instrumento de educação physica, moral e cívica, o pe-

queno escoteirismo.

Parag. 1º – A instrucção será ministrada por instructores escoteiros, fóra dos

dias de funccionamento escolar, de accordo com as instrucções organizadas

pela Inspectoria de Educação Physica.

Parag. 2º – O director do estabelecimento, assim como o medico escolar,

deve sempre ser ouvido sobre o horario, a duração e a natureza dos exercí-

cios e scientificados dos alumnos que devem delles participar.

O programa do ensino primário, aprovado pelo decreto n. 8.094, de22 de dezembro de 1927, se refere ao escotismo da seguinte forma:

Será instituido, diz o art. 207, do regulamento, entre os alumnos das escolas

primarias, com caracter facultativo e como instrumento de educação physica,

moral e civica, o pequeno escoteirismo.

O escoteirismo é uma admiravel escola de educação, já consagrada nos mais

importantes paizes do mundo pelos seus fructos grandiosos, alguns dos quaes

se mostram vicejantes em nosso proprio paiz.

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Bem fariam os professores em conhecer o manual de Baden-Powell, notavel

general inglez, que fundou o escoteirismo em 190817.

Toda esta legislação demonstra o interesse do governo do presiden-te Antônio Carlos em difundir o escotismo no sistema público educacio-nal. Esse apoio ao escotismo em Minas Gerais se insere num contextode idéias nacionalistas que propunham uma educação cívico-patrióticae com aspectos militares. É interessante notar que em outros estadosbrasileiros, como no Rio de Janeiro, o escotismo se desenvolveu muitoem função de um atrelamento a instituições militares. Mesmo em MinasGerais temos o exemplo de Juiz de Fora que, talvez por contar com amaior presença de instituições militares, já possuía em 1927 vários gru-pos escoteiros em funcionamento. Mas, no estado como um todo, o esco-tismo só veio a se desenvolver a partir da reforma educacional de 1927.

Chefe Pereira teve importante participação no encaminhamento destapolítica. Ele foi encarregado de orientar a formação de grupos e de ins-trutores para atuar junto aos grupos escoteiros. Sua ação ocorreu emBelo Horizonte e no interior.

Para a realização dos objetivos do governo era necessário despenderrecursos para financiar viagens do chefe Pereira, juntamente com esco-teiros da capital, ao interior, além da participação dos escoteiros minei-ros em encontros fora do estado e até mesmo fora do país. Era necessário,também, a compra de equipamentos e investimento nas “tropas”escoteiras. Para “bancar” essas despesas, o governo de Antônio Carlospreviu em seu primeiro ano de mandato uma verba destinada a subven-ção do escotismo. Pela lei n. 1.003, de 21 de setembro de 1927, quefixou a despesa e orçou a receita para o exercício de 1928, foi garantidoo Auxílio ao escoteirismo no valor de 100:000$000 (cem contos de réis).Este valor, se comparado, por exemplo, ao destinado ao pagamento detodo pessoal empregado no ensino superior durante o ano 1928,

17 Minas Gerais, “Decreto n. 8.094, de 22 de dezembro de 1927: approva os programmasdo ensino primário”, em Collecção das Leis e Decretos, 1927, vol. III. Belo Hori-zonte, Imprensa Official do Estado, 1928.

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119:000$000 (cento e dezenove contos de reis), demonstra ser uma quan-tia razoável para gastos com o escotismo em um ano18.

A partir da legislação podemos notar como se deu o apoio institucio-nal ao escotismo em Minas Gerais, principalmente durante o governode Antônio Carlos. Esse incentivo, previsto na legislação, fortaleceu omovimento no estado. A partir de então fundaram-se diversos grupos euma entidade representativa e organizacional do movimento, que o estru-turou em “bases mais sólidas”, como veremos a seguir.

Em julho de 1927, a fusão do grupo Associação de Escoteiros doGymnasio Mineiro ao Grupo de Escoteiros Populares deu origem a As-sociação Mineira de Escoteiros (AME)19. Dentre suas responsabilida-des estava a formação de chefes escoteiros para atuarem junto aos gruposescolares e a manutenção do antigo grupo de escoteiros do Gymnasiomineiro. Ainda neste mesmo mês, em telegrama datado do dia 19, oconselho diretor da União dos Escoteiros do Brasil informou ao chefePereira sua nomeação para delegado da UEB em Minas Gerais, em vir-tude de sua “efficiente acção digna todo louvor pro escotismo mineiro”.

A criação da AME sob a direção de chefe Pereira e sua nomeaçãocomo representante da UEB em Minas indicam marcos importantes: acriação de uma entidade representativa do escotismo mineiro e sua in-serção na estrutura de organização nacional do movimento.

Em Belo Horizonte foram criadas, no decorrer de 1927, “tropas”escoteiras em todos os grupos escolares. Um jornal de agosto noticiaum bivaque20 na “Caixa de Areia” (localizada na Serra do Curral), pro-movido pela AME, com a participação de 400 escoteiros21.

Surgiram grupos vinculados a outras escolas como Colégio Arnaldo,Escola Italiana Dante Alighieri, Escolas Reunidas Lucio dos Santos.

18 Minas Gerais, “lei n. 1.003, de 21 de setembro de 1927: fixa a despesa e orça areceita para o exercicio de 1928”, em Collecção das leis e decretos, 1927, vol. I.Belo Horizonte, Imprensa Official do Estado, 1928.

19 “Recordando”, Estado de Minas, Belo Horizonte, 11 maio 1928.20 “Bivaque” era o nome dado ao dia em que os escoteiros iam para o campo desen-

volver atividades diversas.21 “Escotismo”, Minas Geraes, Belo Horizonte, 17 ago. 1927.

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Foi criado também um grupo no America Football Club. A criação des-ses grupos, fora da tutela do estado, demonstra a simpatia da sociedadepelo movimento. Nas escolas estaduais, a princípio, somente os meni-nos participavam das atividades escoteiras. O sucesso do movimentolevou a criação de grupos femininos, em julho de 1927.

Em 28 de agosto de 1927, foi realizada uma “imponente cerimôniacívica dos escoteiros” belorizontinos. Na praça da Liberdade – com apresença do presidente do estado, de todos os secretários de estado, dopresidente da Câmara dos Deputados, do prefeito, de vários oficiais doexército e da força pública, senadores, deputados e jornalistas – foramentregues 30 estrelas numa cerimônia onde 76 noviços juraram a ban-deira22, com a presença de 267 escoteiros. Este tipo de cerimônia foicomum durante o governo de Antônio Carlos e acontecia não só emBelo Horizonte, mas também no interior.

No interior foram várias as visitas realizadas por chefe Pereira eseus escoteiros a fim de fundar grupos. Nos anos de 1927 e 1928, alémde Barbacena e Juiz de Fora, já citadas, chefe Pereira esteve em Oliveirae em Palmyra.

O primeiro aniversário do governo de Antônio Carlos foi marcadopor grandes festividades. Nesse dia se reuniram em Belo Horizonte es-coteiros de todo estado. Os acontecimentos foram amplamente divulga-dos não apenas pela imprensa mineira. O Jornal do Brasil noticiou oapoio do estado ao escotismo:

Os (grupos) escoteiros com que conta actualmente o Estado de Minas Geraes,

foram na maioria, fundados e agrupados pelo governo, sendo que pelo mes-

mo já foram uniformisados e equipados 1.750 escoteiros, além de diversos

outros auxilios prestados as tropas escoteiras23.

22 A “estrela” era um distintivo entregue ao escoteiro de acordo com o tempo demilitância no movimento. O juramento da bandeira ocorria quando os “noviços”eram aceitos no movimento, após cumprirem uma série de provas.

23 “Concentração em Bello Horizonte”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 set. 1927.

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O Jornal do Brasil fala na presença de dois mil escoteiros duranteas festividades, enquanto o Correio da Manhã24 anuncia quatro mil. Ofato é que estiveram presentes grupos de escoteiros de Barbacena, Mon-tes Claros, Juiz de Fora, São João Del Rei e Curvelo, além dos belorizon-tinos. O evento marcou de forma acentuada a reafirmação de duas idéias,seja através dos discursos proferidos, seja através das publicações da im-prensa: a lembrança de que o escotismo se desenvolveu em Minas atra-vés do apoio do governo estadual e a importância do escotismo para aformação das crianças e jovens.

Ainda durante as comemorações do primeiro aniversário do governode Antônio Carlos, no dia 8, os escoteiros de Montes Claros fizeramuma visita ao presidente no Palácio da Liberdade, onde homenagearam-no. Atendendo a um pedido de Antônio Carlos, Afonso Pena Júnior,então presidente da UEB, proferiu um discurso em saudação aos esco-teiros. O Minas Geraes publicou um resumo do discurso, ao que tudoindica, elaborado pelo próprio jornal:

Disse que náo havia ainda um anno que, pela primeira vez, se fizera ouvir em

Minas, pelo escoteirismo, a palavra de um grande chefe, e os resultados já

eram aquelles que Bello Horizonte, há dois dias, vinha premiando com o

mais quente aplauso e o mais ardente enthusiasmo de seu civismo.

O presidente Antônio Carlos, o grande chefe a que se referia, fazendo o que

tem feito, com exito pleno, pelo escoteirismo, deixou evidenciado que não

pregara por essa cruzada de patriotismo, com palavra van, em busca de po-

pularidade, mas como é do feitio do eminente estadista, com palavra

convencida,com palavra nascida do coração e da sinceridade. [...]

O escoteirismo não é simples gymnastica não é mero esporte, nem é apenas

educação militar. É a preparação do homem integral, pela completa fortaleza

physica, civica e moral, de cujo esforço possa a patria esperar confiadamente.

Saudando os escoteiros de Montes Claros, o voto que formulava era por que

o enthusiasmo daquelles jovens patricios se communicasse avassalador, como

24 “Primeiro anniversário do Governo Antonio Carlos”, Correio da Manhã, Rio deJaneiro, 9 set. 1927.

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a chamma de um incendio grandioso de civismo, ao espirito de toda a moci-

dade mineira, porque assim acontecendo, Minas terá um novo, poderoso,

inestimavel elemento populsor do progresso e da grandeza da nossa terra25.

As festividades funcionaram como um marco para o escotismo mi-neiro, pois foi a primeira grande concentração de escoteiros de todo oestado. Além disto, essa foi a oportunidade de divulgação para todoBrasil do progresso encontrado pelo movimento em Minas Gerais e deglorificação da atitude do governo de Andrada ao investir na escolabadeniana.

O ano de 1928 foi marcado pela consolidação da política de in-vestimento no escotismo em Minas Gerais. No decorrer do ano os gru-pos continuaram desenvolvendo atividades diversas, com grandeentusiasmo.

Durante a última semana de abril de 1928 foi comemorada a Sema-na Escoteira. Em Belo Horizonte foram várias as festividades e daquisaiu, no dia 25, um grupo de 102 escoteiros para participar das come-morações no Rio de Janeiro. Os escoteiros mineiros ficaram acampadosno Parque Fagundes Varella, em Niterói, durante alguns dias, juntamen-te com grupos cariocas26. Essa foi a primeira participação dos escoteirosmineiros num evento fora do estado e serviu para divulgar nacional-mente a política adotada pelo governo de Antônio Carlos com relaçãoao movimento. No decorrer da semana escoteira carioca, chefe Pereirafoi batizado com o codinome “Onça Pintada”. Simbolicamente, essebatismo, ocorrido entre os chefes cariocas, marca a entrada de chefePereira nesse grupo. Era no Rio de Janeiro que estava instalada a sededa UEB e o escotismo já era bastante consolidado no estado. Portanto,esse evento marca mais uma etapa da “evolução” do escotismo mineiro:a participação dos grupos mineiros no movimento em nível “nacional”e o reconhecimento por parte dos dirigentes da importância do novomomento vivido em Minas.

25 “Sete de Setembro”, Minas Geraes, Belo Horizonte, 9 set. 1927.26 “Escoteiros em Nitheroy”, O Estado, Niterói, 27 abr. 1928.

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A visita dos escoteiros mineiros foi retribuída no mês de setembro;durante as comemorações do dia 7, vinte escoteiros do Rio de Janeiro equarenta de Petrópolis estiveram em Belo Horizonte. Acompanhandoos escoteiros cariocas estavam os chefes Jensen, Guilherme Azambuja eGabriel Skinner, que eram figuras importantes do movimento escoteirobrasileiro à época. Numa cerimônia ocorrida no Parque Municipal, oschefes cariocas entregaram ao chefe Pereira o “distintivo máximo doescotismo”, a cruz suástica27, concedido a pessoas que prestavam rele-vantes serviços ao movimento28.

Ainda em 1928, a Associação Mineira de Escoteiros passa a se cha-mar Federação Mineira de Escoteiros (FME) por sugestão de AzambujaNeves, presidente da UEB29. A FME passou a atuar como entidade derepresentação do escotismo mineiro junto a UEB.

A partir de 1929 podemos notar uma certa desmobilização das tro-pas escoteiras em Belo Horizonte. Já nos primeiros anos da década de1930, não mais existiam os grupos de escoteiros vinculados aos gruposescolares. Esse processo de enfraquecimento do movimento foi graduale acredito ter relação com dois fatores: o decréscimo do apoio dado pelogoverno de Antônio Carlos Andrada e, em 1930, a ascensão de OlegárioMaciel, que não previa em seu programa um incentivo tão grande aoescotismo como o dado por Andrada.

Apesar dessa “desmobilização” ocorrida a partir de 1929, o governoainda dava provas de seu interesse pelo escotismo. Um grupo de 19 esco-teiros de Minas Gerais foi, juntamente com outros 35 escoteiros brasilei-ros, participar do 3º Jamboree Mundial30, na cidade de Birkenhead,Inglaterra, no mês de agosto. A delegação mineira foi para o encontrograças a uma subvenção de 90 contos de réis dada pelo governo mineiro.

O jornal do grupo Guia Lopes, de 1933, traz um pequeno artigoanalisando o movimento em Minas:

27 Em minha monografia, já citada, fiz um estudo sobre os símbolos e ritos presentesna dinâmica do movimento escoteiro.

28 “Escoteirismo”, Diario de Minas, Belo Horizonte, 11 set. 1928.29 “Escoteirismo”, Estado de Minas, Belo Horizonte, 31 out. 1928.30 Jamboree é o encontro internacional de escoteiros. Ocorre até hoje, periodicamente.

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O escotismo mineiro tem tido no decurso de 1928 para cá uma boa dose de

infelicidade.

Passamos a explanar os motivos porque assim dizemos:

Há 6 anos, Pereira da Silva fez de mil jovens da nossa capital, mil batalhadores

da grandiosa obra de Baden Powel.

Depois Pereira organiza a Federação Mineira de Escoteiros, a Federação

Mineira de Escoteiros não apoiou o escotismo como deveria.

E com isso nosso escotismo, tão bem levantado por Pereira da Silva, caiu

quase em franca decadencia e sinão assim, porque essa mesma figura a quem

o escotismo já devia a sua fundação e propagação em nossa terra ainda soube

tira-lo dos escombros em que jazia31.

Nesse artigo passa-se a idéia de que a FME, órgão que possuía afunção de estimular e coordenar o movimento escoteiro em Minas não ofazia de forma satisfatória. A figura do chefe Pereira é vista como deessencial importância para o movimento; ele, pessoalmente, teria sido oresponsável por impedir que o movimento morresse.

É preciso compreender qual é a “infelicidade” do movimento esco-teiro em Minas a partir de 1928, citada no jornal. A reforma educacio-nal, implantada pelo governo de Antônio Carlos em 1927, dava grandeimportância ao escotismo, que passou a ser subvencionado e apoiadopelo estado. Num primeiro momento, em 1927 e 1928, houve a criaçãode diversos grupos que funcionavam “a todo vapor”. Já no ano de 1929houve uma estabilização e o movimento deixou de crescer tanto, o quepode ter sido confundido com uma queda, já que o movimento vinhanum processo de amplo crescimento, seja através da criação de grupos,seja através do desenvolvimento de atividades próprias do escotismo.Prova da força que o movimento mineiro ainda tinha em 1929 foi aparticipação no Jamboree na Inglaterra com o “patrocínio” estatal.

Em setembro de 1930, o governo de Antônio Carlos chega ao fim ecom ele esta “era” de desenvolvimento e apoio ao escotismo. Não querodizer que o escotismo em Minas sucumbiu a ponto de voltar a ser o que

31 “De ves em vês”, O guia Lopes, Belo Horizonte, 15 jan. 1933

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era antes de 1926, pelo contrário, durante a gestão de Antônio Carlos omovimento se articulou em todo estado. Com o final da gestão, desapa-receram diversos grupos escoteiros ligados aos grupos escolares. Mas,talvez para “compensar” o fim desses grupos, surgiram outros gruposindependentes que não contavam com o apoio estatal. O impulso dadoao escotismo durante a presidência de Antônio Carlos foi essencial aomovimento, pois a partir daí a escola de Baden-Powell se tornou conhe-cida em Minas Gerais.

Após o fim do governo de Antônio Carlos, a ação desenvolvida pe-los escoteiros durante os conflitos que levaram a ascensão de GetúlioVargas demonstra que os escoteiros continuavam mobilizados. Em ma-téria no jornal Estado de Minas, intitulada “A acção efficaz dos escotei-ros da Associação Guia Lopes”, noticia-se a mobilização dos escoteirospara ajudar as pessoas durante aqueles dias. “Há tres dias que essesbravos jovens prestam o seu concurso á assistência, em geral.[...] O che-fe geral dos escoteiros, Pereira, está sempre no grupo escolar ‘Rio Bran-co’ a fim de dirigir mais outros serviços que se destinem a socorros dequalquer natureza e a qualquer pessoa”32. O jornal A Tarde assim serefere a participação dos escoteiros: “Sempre alertas, sempre garbosos,sempre altivos, os soldados da flôr de lys estão dando as melhores dassuas energias para a victoria da causa que empolga e arrasta a naciona-lidade – a causa da legalidade! Bravos, valentes escoteiros!”33.

Um artigo do escoteiro Herbert Brant Aleixo, publicado no Jornaldo Brasil em 1933, faz uma análise da situação do movimento em Mi-nas a partir da década de 1930:

Há cerca de dois anos, o escotismo mineiro, talvez mesmo por influencia do

periodo latente por que passava a instituição em todo o Brasil, sofreu

grandemente, tanto em seu enthusiasmo quanto em seu trabalho. A FME, a

quem competia fazer viver e vibrar o escotismo no nosso meio, não dando

cumprimento aos seus fins, pelo desinteresse da maioria dos seus elementos,

32 “A acção efficaz dos escoteiros da Associação ‘Guia Lopes’”, Estado de Minas,Belo Horizonte, 8 out. 1930.

33 “Os escoteiros e a revolução”, A Tarde, Belo Horizonte, 24 out. 1930.

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ainda mais aumentava a decadência por que passava o nosso escotismo.

Os grupos desappareceram como fruto do desinteresse da FME, e muito tam-

bém pela falta de apoio material e mesmo moral do actual Governo Mineiro...

Só funcionavam os grupos Guia Lopes e o Barão de Macahubas quando Pe-

reira da Silva ficou doente.

Aparece então o amor pela causa e o esforço dos que a compreendem e a

admiram. Em Outubro do anno passado (1932), surge na capital uma Associ-

ação Escoteira (Associação Auxiliar do Escotismo). O seu programa, se bem

que não seja completo não é mau. Há esforço e boa vontade. Há entre gente

leiga na nossa causa, pessoal antigo34.

Este artigo nos ajuda a entender algumas questões sobre a crise pelaqual passou o escotismo mineiro a partir de 1930 e lança a idéia de queeste momento se insere num contexto maior de dificuldades do escotis-mo nacional. Herbert reforça a idéia de que a FME se omitiu no apoioque deveria dar ao escotismo; além disso, ele afirma que grupos desapa-receram “tambem pela falta de apoio material e mesmo moral do actualGoverno Mineiro...”. Essa fala reforça minha afirmação de que com asaída de Antônio Carlos e a eleição de Olegário Maciel o escotismoperdeu prestígio dentro do governo e, conseqüentemente, as verbas e o“apoio moral” diminuíram35.

No início de 1932, chefe Pereira foi para Barbacena fazer um trata-mento médico e ficou afastado durante quase um ano. Nesse período, ogrupo Guia Lopes e o da Escola Barão de Macahubas encerram suasatividades. Estes eram os dois únicos grupos remanescentes da décadade 1920 que ainda atuavam. O Guia Lopes, que era o antigo grupo doGymnasio mineiro, fundado ainda no governo de Mello Viana, chefiadopor Pereira da Silva, reaparece no final de 1932 graças a mobilização deantigos escoteiros que mesmo sem a presença do antigo chefe retomam

34 “O Escotismo Mineiro, breve histórico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 jan.1933.35 Com o fim do governo de Antônio Carlos Andrada, houve um “retrocesso” na

política educacional mineira. Várias ações e práticas inovadoras, implementadaspor Andrada, foram suspensas após 1930. Sobre este assunto, ver o artigo de AnaMaria Casasanta Peixoto, “Triste retrato: a educação mineira no Estado Novo”.

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as atividades do grupo. Sem dúvida, a doença de chefe Pereira, no iníciode 1932, foi um novo fator que levou à desmobilização ainda maior doescotismo mineiro.

Herbert aponta ainda uma terceira questão para explicar a situaçãodo escotismo mineiro: “[...] há cerca de dous annos, o escotismo minei-ro, talvez mesmo por influencia do periodo latente por que passava ainstituição em todo o Brasil, soffreu grandemente, tanto em seuenthusiasmo quanto em seu trabalho”. De fato, no início da década de1930, houve uma crise nacional do escotismo. Em novembro de 1932foi organizado no Rio de Janeiro um grande “fogo do conselho” desti-nado a marcar o “reerguimento do escotismo patrio”36.

Não se sabe ao certo que motivos levaram a esta crise do escotismonacional mas, ao que tudo indica, está relacionada com o momento po-lítico conturbado pelo qual passou o país no ano de 1930 e a mudançado grupo político no controle do estado. O fato é que a crise nacionaltem relação com a crise no estado de Minas. Esse é um tema para umtrabalho mais amplo e que pretendo estudar durante a pesquisa demestrado que estou cursando.

Neste artigo, procurei analisar a formação e disseminação do movi-mento escoteiro em Minas Gerais nos anos de 1926 a 1930. Pode-seconcluir que o escotismo estava inserido num contexto republicano derenovação educacional, em que o civismo e a formação pré-militar fa-ziam parte de programas de ensino primário. A defesa do escotismo nãose restringiu aos programas educacionais, vários grupos e organizaçõespolíticas apoiaram o movimento. Ele esteve presente nos discursos po-líticos e recebeu o apoio institucional de diversas esferas governamen-tais. Em meu trabalho, detive-me no estudo do escotismo em Minas,mas também em São Paulo os ensinamentos de Baden-Powell fizeram“grande sucesso”; em 1921, uma Reforma da Instrução Pública decre-tou: “todos os alunos matriculados nas escolas públicas seriam conside-rados aspirantes a escoteiros” (Souza, 2000, p. 112).

36 “Extraordinaria concentração escoteira promovida pelo Correio da Manhã na ex-planada do Castelo”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 nov. 1932.

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No Brasil, os anos de 1910 e 1920 foram marcados por discursossobre a necessidade de controle social e de construção de um sentimen-to nacional e de um povo (raça) forte, viril, patriota. A educação era tidacomo um espaço privilegiado para a busca destes objetivos; o escotis-mo foi uma das “instituições auxiliares educacionais” com este intuito.

Acredito que a grande difusão do movimento foi uma resposta so-cial a um momento em que, através da educação, tentava-se reverter osmales da degeneração física e moral causada pelas condições sociais davida moderna. Neste sentido, o movimento possuía caracteríscas da di-reita política; concordo com Zuquim e Cytrynowicz, “[...] embora decerta matriz identificada com o conservadorismo, o escotismo é pecu-liar em sua configuração ideológica, compartilhando, inclusive, valorese ideais [...] com movimentos de espectro socialista e comunista” (2002,p. 51).

Em todo o mundo, a doutrina, os valores e a ritualística do movi-mento escoteiro estavam ligados a um contexto de emergência do nacio-nalismo e da busca pela construção de identidade e formação das nações.Nesse contexto, o escotismo se encaixou “como uma luva” para a for-mação das crianças e adolescentes. A dinâmica do movimento procura-va criar nos jovens o patriotismo e a coesão do grupo e, acima disso, ofortalecimento do sentimento de pertencimento à nação.

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A historiografia das idéias pedagógicas destaca Denis Diderot (1713-1784) como umdefensor do ensino científico, em oposição ao literário, como a base da educação. NoPlano de uma universidade, proposto por Diderot a Catarina da Rússia, o conhecimentomatemático tem uma posição privilegiada. Neste artigo, discutimos algumas idéias doenciclopedista sobre a educação matemática e procuramos colocar em evidência a ligaçãoentre essas idéias e o pensamento político do autor.DIDEROT; MATEMÁTICA; EDUCAÇÃO MATEMÁTICA; HISTÓRIA DAS IDÉIASPEDAGÓGICAS; INSTRUÇÃO PÚBLICA.

The historiography of pedagogical ideas presents Denis Diderot (1713-1784) as a thinkerwho struggles for scientific education, in opposition to literary education, as the basis ofpublic instruction. In the Plan of an University, written by Diderot in an answer to theempress Catherine of Russia, mathematical knowledge plays a very important role. In thisarticle, we discuss some of Diderot’s ideas about mathematical education and try toemphasize the connections between those ideas and the author’s political thinking.DIDEROT; MATHEMATICS; MATHEMATICAL EDUCATION; HISTORY OFPEDAGOGICAL IDEAS; PUBLIC INSTRUCTION.

Diderot e o sentido político daeducação matemática

Maria Laura Magalhães Gomes*

* Doutora em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2000).

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Introdução

As referências a Denis Diderot (1713-1784) em alguns textos quefocalizam a história da educação enfatizam especialmente sua defesa dainstrução pública organizada e dirigida pelo Estado independentementeda Igreja, fundamentada no predomínio do ensino científico sobre oensino literário. Diderot vê na educação um fator primordial para a vidaindividual e social e afirma que a instrução deve dar oportunidades atodos de acordo com seus méritos e capacidades. Contudo, emborasublinhe a importância da educação, Diderot procura também relativizaruma possível confiança ilimitada em seu papel, considerando que nelainfluem de maneira decisiva as faculdades e disposições naturais de cadaindivíduo (Abbagnano & Visalberghi, 1995; Boto, 1996; Luzuriaga,1990; Snyders, 1977). Autores como Manacorda (1997) e Snyders (1977)acentuam, além desses aspectos, o reconhecimento do valor das artesmecânicas por parte do principal editor da Enciclopédia, destacandoseu esforço pela compreensão das relações entre cultura e trabalho ou,num vocabulário mais afeito ao Século das Luzes, entre a geometria dasacademias e a das oficinas.

Em 1775, Diderot enviou à imperatriz Catarina II a encomenda feitapor ela de um projeto de instrução pública para a Rússia, o Plano deuma universidade (ou de uma educação pública em todas as ciências);nesse escrito, o filósofo expõe suas idéias a respeito da escola a quedeveriam ter acesso, após alguma instrução primária1, todos os filhos deuma nação. Ao apresentar sua proposta para o primeiro curso de estudosda Faculdade das Artes2, Diderot dispõe na primeira classe – preceden-do os estudos relativos às demais ciências, às línguas, à literatura, à

1 Nas palavras de Diderot: “Suponho que aquele que se apresenta à porta de umauniversidade saiba ler, escrever e ortografar corretamente sua língua; suponho queele sabe dispor os caracteres da aritmética; o que ele deve ter aprendido ou na casade seus pais ou nas escolas primárias” (Diderot, 2000, p. 284).

2 Diderot, embora condene radicalmente o modelo da Sorbonne, organiza a univer-sidade de acordo com a estrutura francesa: todos os estudantes freqüentariam pri-meiramente a Faculdade das Artes, em três cursos de estudos que durariam de setea oito anos. Os que terminassem tais cursos entrariam em seguida em uma das trêsfaculdades superiores – medicina, direito ou teologia.

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metafísica, à religião e à história – a aritmética, a álgebra, o cálculo deprobabilidades e a geometria, escrevendo:

Eu começo o ensino pela aritmética, pela álgebra e pela geometria, porque

em todas as condições da vida, desde a mais elevada até a última das artes

mecânicas, tem-se necessidade desses conhecimentos. Tudo se conta, tudo

se mede. O exercício de nossa razão se reduz freqüentemente a uma regra de

três. Não há objetos mais gerais do que o número e o espaço [Diderot, 1875,

t. III, p. 452].

Nessa passagem podemos constatar o lugar privilegiado da educa-ção matemática na proposta diderotiana; essa posição nos remete tantoà busca da compreensão das relações entre a pedagogia de Diderot e amatemática quanto à pesquisa das ligações do editor da Enciclopédiacom a matemática.

A historiografia da matemática faz poucas menções a Diderot e emgeral tende a considerar que o enciclopedista não contribuiu significati-vamente na produção do conhecimento matemático. Entretanto, Diderotnão desconhecia totalmente o campo, e a prioridade que concede aostemas matemáticos em sua proposta curricular de estudos para todos osfilhos de uma nação não é acidental, pois seus escritos em diferentesfases da vida atestam sua reflexão constante sobre questões epistemoló-gicas próprias da matemática, bem como sobre questões ligadas à meto-dologia, à psicologia e, sobretudo, às finalidades e aos valores da edu-cação matemática3. Neste artigo vamos analisar, em alguns escritos deDiderot, aspectos que nos parecem fundamentais à compreensão de seupensamento no que concerne à educação matemática. Quero evidenciar,especialmente, a integração desse pensamento à filosofia política deDiderot. Começo pelo exame da localização e da caracterização da ma-temática na árvore dos conhecimentos da Enciclopédia.

3 Venturi (1988), além de destacar, como outros estudiosos de Diderot, o fato de tero filósofo, em sua juventude, se sustentado dando aulas particulares de matemáti-ca, escreve que talvez tenha sido esse conhecimento aquilo que de mais profundo eduradouro lhe deixou a passagem pela escola. Venturi enfatiza o interesse de Diderotpela matemática durante toda a sua vida.

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A localização e o estatuto da Matemática naEnciclopédia

O exame da Explicação detalhada do sistema de conhecimentos hu-manos (Diderot & D’Alembert, 1989) – que originalmente completavao Prospecto da Enciclopédia – mostra a localização da matemática nadivisão geral dos conhecimentos humanos proposta pelos dois editores,seguindo a divisão do Chanceler Francis Bacon (1561-1627): ela com-parece no ramo da filosofia, que é associado à faculdade da razão4. Esseramo, considerado por Diderot e D’Alembert o mais extenso e impor-tante de seu sistema5, bem como o mais diferenciado em relação à árvo-re dos conhecimentos de Bacon, divide-se, por sua vez, em Ciência deDeus, Ciência do Homem e Ciência da Natureza6, e essa última subdivi-são é composta pela matemática e pela física7. Torna-se importante cha-mar a atenção para a classificação da matemática como Ciência daNatureza, tendo em vista que ao introduzir o ramo da filosofia ou ciên-cia, os editores afirmam que o homem aprendeu a história da naturezamediante o uso de seus sentidos exteriores, enquanto o conhecimentode Deus foi alcançado pela “reflexão sobre a História Natural e sobre aHistória Sagrada” e o do homem “pela consciência ou sentido interior”(Diderot & D’Alembert, 1989, p. 117). Eis o que diz a Explicação sobrea Ciência da Natureza:

Alcançamos através dos sentidos o conhecimento dos indivíduos reais: Sol,

Lua Sírio etc., Astros; Ar, Fogo, Terra, Água etc., Elementos; Chuvas, Ne-

ves, Granizos, Trovões etc., Meteoros; e assim para o resto da História Natu-

4 Na proposta de Diderot e D’Alembert, a divisão das ciências origina-se nas trêsfaculdades principais do entendimento – a memória, a razão e a imaginação – dasquais surgem, respectivamente, a história, a filosofia e a poesia.

5 Darnton (1996) afirma que a filosofia não era um ramo, mas o tronco principal daárvore da Enciclopédia.

6 Segundo Darnton (1996), os editores da Enciclopédia submetem a religião à filo-sofia, e elevam a Ciência da Natureza, excluindo de sua obra aquilo que não pudes-se alcançar a razão através dos sentidos.

7 Para Diderot e D’Alembert, a física é constituída pela zoologia, com seus váriosramos; pela astronomia física e pela astrologia; pela meteorologia; pela cosmologia;pela botânica; pela mineralogia e pela química (Diderot & D’Alembert, 1989).

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ral. Tomamos, ao mesmo tempo, conhecimento dos abstratos: cor, som, sa-

bor, odor, densidade, rarefação, calor, frio, moleza, dureza, fluidez, solidez,

rigidez, elasticidade, peso, leveza etc.; figura, distância, movimento, repou-

so, duração, extensão, quantidade, impenetrabilidade” [idem, p. 119].

Na disposição da matemática no subramo da filosofia chamado Ciên-cia da Natureza, podemos observar a influência da doutrina de JohnLocke (1632-1704): a fonte e a matéria do conhecimento são a sensação(a percepção dos sentidos) e a reflexão (a percepção de nós mesmos).Como Ciência da Natureza, a matemática é considerada como um co-nhecimento produzido pelo homem por sua reflexão a partir da experiên-cia sensível, e seu objeto é um dos abstratos, a quantidade, que é “umapropriedade mais geral dos corpos, e que todas as outras supõem”. Asnoções de quantidade e de grandeza se confundem: “Chama-se quanti-dade ou grandeza tudo o que pode ser aumentado ou diminuído”8 (idem,ibidem).

Três diferentes modos de se considerar a quantidade produzem trêstipos de matemática: a matemática pura, que advém de se considerar aquantidade sozinha ou independentemente dos indivíduos reais e abs-tratos dos quais nos vem seu conhecimento, ou seja, trata da quantidadeabstrata; a matemática mista considera a quantidade nesses indivíduosreais ou abstratos; a física matemática analisa a quantidade em seus efei-tos a partir de causas reais ou supostas. Enquanto os dois primeiros ti-pos são subdivididos e detalhados no texto da Explicação, o terceiro

8 Também em outro contexto, o do manual inacabado que iniciou para o ensino damatemática (Primeiras noções sobre as matemáticas para uso das crianças, ouPrimeiro livro clássico do primeiro curso de estudos) visando o Plano de uma uni-versidade, Diderot define as matemáticas como todas as ciências cujo objeto é aquantidade ou a grandeza, e acrescenta: “Por essas palavras – quantidade ou gran-deza – entende-se tudo aquilo que se pode conceber como composto de partes, tudoo que é, por conseguinte, suscetível de aumento ou de diminuição” (Diderot, 1975,p. 366). Schubring (2000) comenta que as definições de “grandeza” e “quantidade”na Enciclopédia mostram grande aproximação, e que mesmo hoje em dia não sedistinguem claramente os dois termos. Esse autor refere-se ainda à crítica deD’Alembert à definição de grandeza como tudo aquilo que é suscetível de aumentoou diminuição: D’Alembert considera que a luz, que pode ser diminuída ou aumen-tada, seria impropriamente considerada uma grandeza de acordo com essa definição.

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não é subdividido ou pormenorizado, seja nesse texto, seja no Sistemafigurado dos conhecimentos humanos (idem). Analisando o detalhamentoque é apresentado para a matemática pura e a matemática mista na Ex-plicação, constatamos que essa última inclui algumas ciências que hojesituaríamos no campo da física, como a mecânica, a astronomia, a ótica,a acústica, ou ainda em outros campos, como a geografia, a perspectiva,a navegação, a arquitetura naval e a arte de conjecturar (a probabilidadeou análise dos acasos). A matemática pura, que lida com a quantidadeabstrata, compreende os tópicos que nos são mais familiares quandotemos como referência os conteúdos da matemática escolar. Com exce-ção do cálculo das probabilidades, estão nessa subdivisão da matemáti-ca os itens enumerados para a educação matemática que Diderot propõea Catarina II – os temas integrantes da primeira classe da Faculdade dasArtes, a ser cursada por todos.

Na Explicação detalhada do sistema de conhecimentos humanos,ao deter-nos na apresentação da matemática pura, constatamos mais duasdivisões quanto à natureza da quantidade abstrata focalizada: a aritmética,cujo objeto é a quantidade abstrata enumerável, e a geometria, que tempor objeto a quantidade abstrata extensa. A primeira tem mais subdivi-sões: aritmética numérica ou por algarismos, e álgebra ou aritméticauniversal por letras. A álgebra, que ainda pode ser separada em álgebraelementar e álgebra infinitesimal, de acordo com a natureza das quanti-dades às quais é aplicada,“não é outra coisa senão o cálculo das grande-zas em geral, e cujas operações não são propriamente senão operaçõesaritméticas indicadas de uma forma abreviada: pois, para falar com exa-tidão, somente há cálculo de números” (idem, p. 119).

Quanto à geometria, o texto da Explicação esclarece que seu objetoprimitivo são as propriedades do círculo e da linha reta (geometria ele-mentar) ou ainda de qualquer tipo de curva (geometria transcendente).

O cálculo das probabilidades, muito valorizado na primeira classedo Primeiro Curso de Estudos do Plano de uma universidade, é apre-sentado brevemente na Explicação como a ciência da matemática mistana qual a quantidade é considerada na possibilidade dos acontecimentos.

Na Observação sobre a divisão das ciências do Chanceler Bacon(Diderot & D’Alembert, 1989), Diderot põe em destaque que a Enciclo-

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pédia adota a divisão baconiana das matemáticas em puras e mistas. Defato, em sua obra Progresso do conhecimento, ao discutir as matemáti-cas, Bacon as divide em puras e mistas, numa concepção muito seme-lhante à do texto da Explicação:

As matemáticas são puras ou mistas. Às matemáticas puras pertencem aque-

las ciências que lidam com a quantidade determinada, apenas separadas de

quaisquer axiomas da filosofia natural, e elas são duas – a geometria e a

aritmética – uma aborda a quantidade contínua e a outra a quantidade dividi-

da9. A matemática mista tem como tema alguns axiomas ou partes da filoso-

fia natural, e considera a quantidade determinada, já que as auxilia e a elas se

refere. Pois muitas partes da natureza não podem ser concebidas com sufi-

ciente argúcia, demonstradas com suficiente clareza, ou adaptadas ao uso

com suficiente habilidade sem a ajuda e a intervenção das matemáticas: são

desse tipo a perspectiva, a música, a astronomia, a cosmografia, a arquitetu-

ra, a engenharia e diversas outras [Bacon, 1952, p. 46].

A leitura da Explicação detalhada do sistema de conhecimentoshumanos nos mostra, portanto, que para Diderot o objeto da matemáticaé a quantidade, um abstrato que os sentidos exteriores percebem; a partirdessa percepção, o entendimento produz o conhecimento pela reflexão.A reflexão operada pelo entendimento, no entanto, não é desinteressada;de fato, no Plano de uma universidade, que funda a seleção dos conteúdosa serem ensinados em sua utilidade, Diderot cita a matemática comouma ciência nascida da necessidade ou da carência, assim como a física,a medicina e o direito. O estatuto do conhecimento matemático é, então,o de um saber construído pelo homem em decorrência de necessidadesde sua vida social.

Todavia, se na Explicação, texto integrante da Enciclopédia, a ma-temática é uma das duas divisões da Ciência da Natureza, em outrosescritos Diderot faz fortes restrições à fidelidade do reflexo que o conhe-

9 Para maior clareza, cito parte do texto de Bacon no original: “... and these are two,geometry and arithmetic; the one handling quantity continued, and the otherdissevered”.

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cimento matemático oferece quanto a essa mesma natureza. É esse otema que focalizaremos a seguir.

A matemática é insuficiente na interpretação da realidade física: or-dem natural versus ordem intelectual.

A condenação da abstração do conhecimento matemático por Diderotpode ser ilustrada pela seguinte passagem, na qual o filósofo critica demodo particular a apresentação consagrada por Euclides:

Não existe na natureza nem superfície sem profundidade, nem linha sem

largura, nem ponto sem dimensão, nem qualquer corpo que tenha essa regu-

laridade hipotética do geômetra. Desde que a questão que se lhe propõe o

faça sair do rigor de suas suposições, desde que ele seja forçado a fazer en-

trar na solução de um problema a avaliação de algumas causas ou qualidades

físicas, ele não sabe mais o que faz; é um homem que coloca seus sonhos em

equações, e que chega a resultados que a experiência quase nunca deixa de

destruir [Diderot, 1875, t. XVI, pp. 475-476].

O exame dessa posição de Diderot remete-nos a Aristóteles (1952),em sua distinção entre física e matemática: os corpos físicos possuemsuperfícies e linhas que, não existindo separadas de sua encarnaçãomaterial, são focalizadas pelo matemático não como limites desses cor-pos, mas de um modo isolado, mediante a eliminação de todas as suasqualidades sensíveis e o estudo exclusivo dos aspectos da quantidade eda continuidade. Essa atitude faz com que Aristóteles recuse explica-ções dos fenômenos naturais com base matemática e considere que aaritmética e a geometria não tratam “das realidades” (Guthrie, 1993).

É sobretudo na obra Da interpretação da natureza, publicada pelaprimeira vez em 1753, portanto após o lançamento dos primeiros textosda Enciclopédia (ocorrido em 1750-1751), que Diderot expressa seuponto de vista quanto à insuficiência da geometria10 no que se refere aomundo físico:

10 É importante assinalar que no século XVIII as palavras “geometria” e “geômetra”são muito freqüentemente usadas, em sentido amplo, para designar, respectiva-mente, o conhecimento matemático em geral e o matemático.

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diderot e o sentido político da educação matemática 83

a região das matemáticas é um mundo intelectual no qual aquilo que se toma

por verdades rigorosas perde totalmente essa vantagem quando se o trans-

porta para o nosso terreno. Concluiu-se daí que cabia à filosofia experimen-

tal retificar os cálculos da geometria, e essa conseqüência foi reconhecida até

mesmo pelos geômetras. Mas para que corrigir o cálculo geométrico pela

experiência? Não é mais fácil ater-se ao resultado dela? Donde se vê que as

matemáticas, sobretudo as transcendentes, não conduzem a nada de preciso

sem a experiência; que é uma espécie de metafísica geral na qual os corpos

são despojados de suas qualidades individuais; que restaria fazer, pelo me-

nos, uma grande obra que poderia se chamar a Aplicação da experiência à

geometria ou Tratado da aberração das medidas [Diderot, 1875, t. II, p. 10,

grifo meu].

O contraste entre a matemática e a natureza, de acordo com Diderot,é posto em relevo por Schmitt (1997) ao citar uma passagem do Diálogoentre D’Alembert e Diderot na qual o último afirma que há um fim paraa possibilidade de divisão da matéria na natureza, ainda que não existatermo para essa divisibilidade no entendimento. Assim, “o matemáticotrabalha sobre uma quantidade contínua, sobre um espaço divisível atéo infinito, enquanto o mundo nos oferece uma quantidade descontínua,um espaço que justamente não é divisível até o infinito, uma extensãoque não tem nada da homogeneidade, da imutabilidade daquela dogeômetra” (Schmitt, 1997, p. 155).

Na leitura de Crocker (1974), em Da interpretação da natureza, oataque de Diderot ao enfoque da matemática devido à ausência de umarelação entre ela e a realidade física reflete sua concepção desse conhe-cimento como representante de “uma ordem intelectual, auto-contida,peculiar à mente humana” (Crocker, 1974, p. 14). Essa ordem se opõe àordem da natureza, que só pode ser apreendida a partir da evidênciaexperimental. Para Diderot, acrescenta Crocker, a falta de correspon-dência entre a ordem da natureza e a da matemática não se encontraapenas no aspecto convencional e circular da prova matemática, mastambém no caráter imutável e estático das verdades que ela desenvolve.

Essa posição parece atestada pela identificação, por parte do filóso-fo, da matemática com um jogo e do gênio matemático com o espírito

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do jogo, e é por essa razão que ele chega até mesmo a considerar comoesgotada a ciência matemática11.

Ainda segundo Crocker, a matemática, na visão diderotiana, é “umaordem criada pelas necessidades e pelo modo de operação do intelecto”(Crocker, 1974, p. 14). Retomaremos mais adiante o tema da ordem emDiderot para interpretar a preferência do enciclopedista pela colocaçãoda matemática em primeiro plano na organização dos estudos que propõea Catarina da Rússia.

O posicionamento de Diderot quanto à insuficiência da matemáticana interpretação da realidade física, entretanto, já havia se manifestadoantes da publicação dos primeiros textos da Enciclopédia, na Carta so-bre os cegos, em 1749. Considerando a abstração como a separação, pelopensamento, das qualidades sensíveis dos corpos, Diderot refere-se àocorrência, nas questões físico-matemáticas, de enganos provenientes daexcessiva simplificação dos objetos.

A Carta sobre os cegos é apontada por muitos autores como ummarco na evolução do pensamento diderotiano – como nota Romano(1996a), ela sinaliza uma aventura do espírito na qual dissolve-se a

11 Projetando no passado o seu conhecimento sobre a matemática desenvolvida atémeados do século XX, Mayer (1959, p.101) vê essa consideração diderotiana arespeito do esgotamento das possibilidades de novos conhecimentos matemáticoscomo um “erro evidente” do enciclopedista. Para esse estudioso de Diderot, a ex-plicação para tal ponto de vista estaria na falta de intimidade do filósofo com asrenovações introduzidas na matemática a partir dos trabalhos de Newton e Leibnizno campo do cálculo diferencial e integral. Todavia, parece-nos necessário dizer,em contraposição a Jean Mayer, que no século XVIII, até mesmo quem estivessefamiliarizado com os desenvolvimentos do cálculo diferencial e integral poderiadefender a afirmação sobre o esgotamento da matemática. Na verdade, somente noséculo seguinte surgiram, por exemplo, os trabalhos concernentes às geometriasnão-euclidianas e à álgebra que desmentiram essa afirmação. Como assinalaGrabiner (1974), as preocupações quanto aos diferentes aspectos da matemáticamudam com o tempo, e uma mudança fundamental marca a transição entre osséculos XVIII e XIX.Jean Mayer, entretanto, levanta dois outros argumentos para explicar a atitude deDiderot: o primeiro é o de que o ataque do enciclopedista às ciências racionaisdecorreria de seu entusiasmo pelas ciências experimentais; o segundo é o da possi-bilidade de existência de um sentimento de frustração de Diderot em relação a umaciência na qual não era um profissional como seu amigo D’Alembert.

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metafísica e abre-se a via para o mundo físico e humano. Chama-nos aatenção a passagem a seguir, em que Diderot rejeita a doutrina filosófi-ca pitagórica, não só por seu distanciamento do mundo físico, mas porsua inacessibilidade à capacidade humana:

Há uma espécie de abstração da qual muito poucos homens são capazes, pois

ela parece reservada às inteligências puras; é aquela pela qual tudo se reduzi-

ria a unidades numéricas. É preciso convir que os resultados dessa geometria

seriam bem exatos, e suas fórmulas bem gerais, porque não há objetos, seja

na natureza, seja no possível, que essas unidades simples não possam re-

presentar – pontos, linhas, superfícies, sólidos, pensamentos, idéias, sensa-

ções, e... se, por acaso esse fosse o fundamento da doutrina de Pitágoras,

poder-se-ia dizer dele que fracassou em seu projeto, já que essa maneira de

filosofar está demasiado acima de nós, e demasiado próxima da do Ser su-

premo que, segundo a expressão engenhosa de um geômetra inglês12, geome-

triza perpetuamente no universo.

A unidade pura e simples é um símbolo demasiado vago e demasiado geral

para nós. Nossos sentidos nos conduzem a signos mais análogos ao alcance

de nosso espírito e à conformação de nossos órgãos [Diderot, 1951, p. 855,

grifo meu].

Na passagem anterior, podemos observar que Diderot se afasta daconcepção de Locke em relação à apreensão humana da unidade numé-rica, uma vez que para o inglês

Entre todas as idéias que temos, como não há nenhuma outra sugerida ao

espírito de mais maneiras, não existe nenhuma mais simples que a de unida-

de ou um – nela, não há sombra de variedade ou composição: todo objeto em

relação ao qual empregamos os sentidos, toda idéia em nosso entendimento,

todo pensamento de nossas mentes traz consigo essa idéia. E, portanto, é a

mais íntima aos nossos pensamentos, bem como, por seu acordo a todas as

outras coisas, a idéia mais universal que temos [Locke, 1952, p. 165].

12 Guinsburg (Diderot, 2000) anota que Diderot refere-se a Joseph Rason, um discí-pulo de Newton.

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Nas palavras finais da Carta sobre os cegos, Diderot realça a incer-teza de qualquer conhecimento, questionando até mesmo as verdadesgeométricas:

Interrogai matemáticos de boa fé, e eles vos confessarão que suas proposi-

ções são todas idênticas e que tantos volumes sobre o círculo, por exemplo,

se reduzem a nos repetir de cem mil maneiras diferentes que é uma figura na

qual todas as linhas traçadas do centro à circunferência são iguais [Diderot,

1951, pp. 890-891].

Schmitt (1997) qualifica de “fundamental” essa última passagem daCarta, analisando com profundidade a posição de Diderot, o qual cha-ma a atenção para o caráter da demonstração de uma proposição mate-mática – ela consiste essencialmente em fazer ver que a proposição étautológica a proposições já admitidas. Para Diderot, portanto, a certezada matemática reside no raciocínio que emprega, e não em suas idéias.Não há, contudo, identificação entre o pensamento do enciclopedista eas concepções cartesianas quanto à clareza da matemática estar fundadano inatismo das idéias que a ela se referem na mente humana. Como jáfoi dito, Diderot considera que o conhecimento matemático resulta, emsua base, da experiência dos sentidos.

É interessante registrar a retomada da idéia relativa à matemáticacomo arte de estabelecer identidades no Plano de uma universidade,pois nesse contexto, em vez de sublinhar um aspecto desfavorável,Diderot parece estar mais preocupado em salientar as vantagens, porsua simplicidade, do conhecimento matemático na formação dos jovensquando diz que

É sobretudo nas matemáticas que todas as verdades são idênticas; toda a ciên-

cia do cálculo não é senão a repetição deste axioma – um e um são dois – e toda

a geometria não é mais do que a repetição deste – o todo é maior que sua parte

[Diderot, 1875, t. III, p. 454].

Mayer (1959) adverte-nos no sentido de não acentuar demasiada-mente as falas diderotianas a respeito do convencionalismo da matemá-

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tica e da limitação de suas aplicações13. Isso porque é o mesmo Diderotquem critica os seus próprios excessos quando os percebe na afirmaçãode Helvétius (1715-1771) de que todos aceitam a verdade das demons-trações geométricas por serem indiferentes à verdade ou à falsidade des-sas demonstrações. De fato, na Refutação de Helvétius14, o principaleditor da Enciclopédia enumera muitos profissionais cujo trabalho sefundamenta na geometria – o arquiteto, o pintor, o desenhista de pers-pectiva, o encarregado de finanças, o engenheiro, o mecânico, o cons-trutor de navios, o óptico, o agrimensor, o geógrafo, o astrônomo – paraargumentar contra o engano de Helvétius.

Também no verbete Arte da Enciclopédia, a despeito de sublinhar aindispensabilidade dos conhecimentos físicos aos artesãos e afirmar que“aquele que só tem a geometria intelectual, ordinariamente é um homembastante inábil”, Diderot diz que “um artista que tem apenas a geometriaexperimental é um obreiro muito limitado” (Diderot, 1989, p. 154).

Em Diderot convivem, assim, duas tendências opostas: a crítica aoconhecimento matemático por seu distanciamento em relação ao mun-do físico e por seu traço característico de repetidor de identidades, e oreconhecimento simultâneo do valor desse conhecimento. Mesmo vistacomo esfera intelectual ou espécie de metafísica que afasta o homem danatureza, a matemática tem um posto de enorme relevância na propostapedagógica do enciclopedista. Como veremos, para Diderot a matemáticaé um conhecimento fundamental na educação requerida pelo contextodo século XVIII; seus resultados têm imenso valor prático; seu método

13 Rashed (1974) chama a atenção para diferenças entre os enciclopedistas quanto àsrelações entre as proposições matemáticas e as proposições empíricas, atribuindo aBuffon (1707-1788) e a Diderot a ênfase no aspecto convencionalista da matemá-tica (nessa visão a certeza não está necessariamente ligada ao uso da demonstraçãomatemática). Em contraposição, Rashed assinala que D’Alembert (1717-1783) eCondorcet (1743-1794) compartilham de outra concepção – a de que um conheci-mento é verdadeiro somente quando se conforma ao raciocínio matemático e sesubmete ao controle do instrumento do geômetra.

14 Esse trabalho de Diderot, composto em 1773-1774, teve seu texto completamentepublicado somente em 1875 (Dictionnaire des auteurs de tous les temps et de tousles pays, vol. II, pp. 14-15, 1989).

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e sua linguagem tornam-na particularmente apropriada a formar o ho-mem necessário à sociedade de seu tempo. Assim, é sobretudo no inte-rior da reflexão política de Diderot que seu projeto pedagógico insere,de maneira indispensável, a educação matemática. Para compreenderessa inserção, vamos nos dedicar em primeiro lugar, nesta ordem, aoenfoque da posição da educação matemática na proposta curricular e aoexame das potencialidades dos conteúdos matemáticos que Diderot nosoferece. A partir dessa análise, procuraremos situar suas concepçõesquanto à educação matemática sob a perspectiva de seu pensamentopolítico.

A posição da educação matemática na organizaçãodos estudos proposta por Diderot

Eu me ergo contra uma ordem de ensino consagrada pelo usode todos os séculos e de todas as nações; e espero que me seja

permitido ser um pouco menos superficial a respeito deste assunto

DIDEROT, 2000, p. 310

A epígrafe anterior, transcrita do Plano de uma universidade, inte-gra a introdução das considerações de Diderot sobre a oitava classe – “Ogrego e o latim. A eloqüência e a poesia ou o estudo das belas letras” –do primeiro curso de estudos da Faculdade das Artes no Plano de umauniversidade. Observemos que o autor faz aí sobressair um traço básicode sua proposta pedagógica, sua oposição a uma ordem de ensino con-sagrada por todos os tempos e lugares; essa ordem confere, na formaçãodos jovens, a maior prioridade aos estudos literários e, de modo particu-larmente notável, ao estudo do grego e do latim.

Se, como vimos, na Explicação detalhada do sistema de conheci-mentos humanos publicada quando do lançamento da Enciclopédia, amatemática tem uma posição privilegiada – é uma das duas divisões daCiência da Natureza, ramificação destacada do tronco mais prestigiadoda árvore dos conhecimentos de Diderot e D’Alembert –, essa posiçãoimportante é mantida na formulação da proposta diderotiana de educa-

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ção pública para Catarina da Rússia, como salientei na introdução destetexto. A ordem dos estudos no Plano de uma universidade, afirma seuautor, tem como diretriz caminhar “da coisa fácil para a coisa difícil, irdesde o primeiro passo até o último, do que é mais útil para o que émenos; do que é necessário a todos ao que é apenas para alguns” (idem,p. 276). Como nem todos seguirão até o fim a avenida dos estudos, e onúmero de estudantes diminuirá à medida que nela avançarem, a pri-meira lição deve ser aquela que convém a todos, independentemente desua condição social. Até o final dos estudos, os conhecimentos devemser ordenados em ordem decrescente de sua utilidade. Vejamos mais deperto como, segundo esse princípio, Diderot estabelece sua seqüênciade abordagem dos conteúdos.

Conforme já foi dito, a matemática constitui a primeira classe doprimeiro curso de estudos da Faculdade das Artes. A segunda classecompõe-se de conhecimentos da física (mecânica e hidráulica); a tercei-ra classe aborda a geografia e a astronomia; a quarta classe refere-se àhistória natural e à física experimental; a quinta classe envolve a quími-ca e a anatomia. As três classes restantes do primeiro curso focalizam,nesta ordem, a lógica, a crítica e os princípios gerais de todas as línguas;a língua russa e a eslavônica; o grego, o latim, a eloqüência e a poesia.Paralelamente15 ao primeiro curso, Diderot propõe três outros, com me-nos classes, nos quais se encontram conhecimentos diversos: metafísica,moral, religião, história, geografia, economia, perspectiva, desenho,música, dança, esportes.

Tendo em vista a pedra angular do edifício que projeta para a instru-ção pública – o princípio de utilidade – é clara a posição de Diderot: os

15 O Plano prevê que o segundo, o terceiro e o quarto cursos serão seguidos durante omesmo tempo de duração do primeiro (Diderot, 2000). Explica Dolle (1973): to-dos os alunos passariam pelas classes desses três últimos cursos enquanto freqüen-tassem o primeiro. O primeiro curso constitui o ensino de base, e é completadopelo segundo, que deve ser seguido por todos os alunos até sua saída da Faculdadedas Artes.Além disso, Diderot enfatiza que a importância do segundo curso reside na forma-ção religiosa, cívica e moral dos estudantes. O texto do Plano deixa claro que asclasses do primeiro curso teriam lugar pela manhã, e as do segundo à tarde.

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conhecimentos científicos, presentes nas cinco primeiras classes do pri-meiro curso, são mais úteis do que os conhecimentos literários, que for-mam as três últimas. É importante assinalar que, assim como toma deempréstimo a Bacon a divisão dos conhecimentos humanos, o enciclope-dista adota a proposta baconiana de inversão da hierarquia tradicionaldos saberes (Luzuriaga, 1990; Oliveira, 2000).

Além do princípio de utilidade, a ordenação dos estudos no Planoobedece à ligação entre as ciências16: assim, a mecânica e a hidráulicavêm após a aritmética, a álgebra e a geometria; os conteúdos da terceiraclasse são “puramente geométricos” e podem ser acompanhados por-que “os alunos aprenderam tudo o que se faz necessário para se aplicara eles” (Diderot, 2000, p. 298); a física experimental está na quarta clas-se porque “não há mecânica sem geometria; não há física experimentalsem alguma tintura de mecânica” (idem, p. 300).

A posição dos conteúdos matemáticos no conjunto dos temas cien-tíficos significa, à luz do princípio de utilidade que norteia a disposiçãodos estudos no Plano, que a aritmética, a álgebra, a geometria e o cálcu-lo das probabilidades são os conhecimentos mais úteis, aqueles que de-vem ser aprendidos por todos. Interpretemos a utilidade da matemáticacomo a sua dimensão prático/instrumental, isto é, aquela que se referetanto ao serviço que o conhecimento matemático presta à vida social eàs diversas ocupações ou profissões quanto ao fato de esse conhecimen-to possibilitar o acesso a outras ciências. Acreditamos que é essencialuma reflexão mais profunda acerca do peso que essa utilidade tem naprioridade que Diderot defende para a educação matemática.

À primeira vista, parece que esse aspecto prático/instrumental temcompleta preponderância sobre o potencial formativo dos conhecimen-tos matemáticos na proposta diderotiana. Diderot se afastaria, então, doPlatão da República, o qual vê na potencialidade formadora da matemá-tica o maior valor da educação matemática (Jaeger, 1979; Manacorda,1997; Marrou, 1966; Miguel, 1995). Contudo, ainda que Diderot de

16 É oportuno lembrar que a palavra “enciclopédia” significa encadeamento das ciên-cias. Etimologicamente, ela é composta de εν (em), κικλοσ (círculo) e παιδεια(ciência) (Diderot & D’Alembert, 1989, p. 139).

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fato acentue o valor prático/instrumental da matemática por sua presen-ça nas artes mecânicas que tanto enaltece na Enciclopédia e pela neces-sidade desse conhecimento para a fundamentação das outras ciências,na leitura mais detida de seus escritos constatamos também a presençainequívoca de outro tipo de visão – aquela que põe em destaque aspotencialidades formadoras do saber matemático. Vamos examinar asmanifestações desses dois aspectos no trabalho do filósofo.

As potencialidades dos conhecimentos matemáticosna educação: o prático/instrumental e o formativono interior de um projeto político

A importância da matemática como ferramenta para as ciências e astécnicas é ressaltada, como dissemos anteriormente, no verbete Arte daEnciclopédia e na Refutação de Helvétius. No Plano de uma universi-dade, o texto referente à primeira classe de estudos inicia-se pela colo-cação, por seu autor, da necessidade dos conhecimentos da aritmética,da álgebra e da geometria em todas as condições da vida, da mais eleva-da até a última das artes mecânicas, pelo fato de tudo se contar, tudo semedir. Mais adiante, no mesmo texto, Diderot faz questão de acrescen-tar à aritmética, à álgebra e à geometria, a ciência das combinações, ouo cálculo elementar de probabilidades.

O conhecimento da aritmética, “de todas as ciências, a mais útil e amais fácil” (Diderot, 2000, p. 285), junto com a alfabetização, é neces-sário a todos: “do primeiro-ministro ao último camponês, é bom quecada um saiba ler, escrever e contar” (Diderot apud Dolle, 1973, p. 20).Romano (2001) comenta que Diderot coloca o cálculo aritmético comoalgo que contribui para a afirmação da cidadania, uma vez que as clas-ses mais desfavorecidas, dominando-o, não se deixarão enganar pelospoderosos. Diderot chama a atenção para o fato de que os conhecimentosda matemática são freqüentemente solicitados na vida social: as crianças,desde que nasceram até entrarem na escola, “não cessaram de somar, desubtrair, de medir” (Diderot, 1875, t. III, p. 453, grifo meu) porque vi-vem num mundo que demanda constantemente essas ações.

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Quanto à álgebra, embora não seja explícito, quer sobre seu usoprático, quer sobre suas vantagens no sentido formativo, o autor do Pla-no, a partir da concepção desse saber como aritmética generalizada, in-siste sobre o fato de ser ela um conhecimento acessível:

A Álgebra, cujo nome não assusta mais, não é senão uma aritmética mais

geral que a dos números, tão clara quanto ela e mais fácil; são somente as

mesmas operações, porém mais simples [idem, ibidem].

Em relação à geometria, já mencionamos a referência de Diderot àpresença da medida nas práticas quotidianas da infância. No texto in-completo que deixou para a instrução das crianças em matemática, aodestacar a etimologia do termo “geometria” – “duas palavras gregas quesignificam medida da terra” (Diderot, 1975, p. 369), nosso autor chamaa atenção mais uma vez para a origem prática dessa ciência:

É, com efeito, bastante natural pensar que o primeiro uso que os homens dela

fizeram logo que se encontraram reunidos em sociedade, tenha sido medir

seus campos e verificar a sua extensão [idem, ibidem].

Porém, Diderot esclarece que, ainda que tenha sido esse o objetivodas primeiras operações geométricas, o uso dessa ciência se tornou muitomais universal – a ela concerne tudo o que é extenso, ou ainda, ela serefere às grandezas cujas partes são contínuas, isto é, unidas e ligadasentre si17. Mais adiante veremos que, mais do que a ênfase sobre o usoprático da geometria nas medições, é o papel formativo do conhecimen-to geométrico na educação moral e intelectual do homem necessário auma sociedade em transformação que terá grande parte da atenção doenciclopedista.

A parte relativa ao cálculo das probabilidades no Plano de umauniversidade põe em relevo utilidades práticas menos imediatas damatemática do que as invocadas em favor da aritmética e da geometria:

17 Um todo composto por partes separadas umas das outras é, por sua vez, uma quan-tidade que se exprime por números, e é objeto da aritmética (Diderot, 1975).

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Eu acrescentei à aritmética, à álgebra e à geometria a ciência das combina-

ções ou o cálculo das probabilidades, porque tudo se combina e porque, fora

das matemáticas, o resto não é senão probabilidade; porque essa parte do

ensino é de um uso imenso nos negócios da vida; porque ela envolve as

coisas mais graves e as mais frívolas; porque ela se estende às nossas ambi-

ções, aos nossos projetos de fortuna e glória, e aos nossos divertimentos...

[Diderot, 1875, t. III, p. 456].

O texto prossegue com a enumeração das aplicações da ciência dasprobabilidades às matérias de legislação, aos seguros, às loterias, à maio-ria dos objetos de finanças e comércio. As noções do cálculo das proba-bilidades são, então, introduzidas no currículo de Diderot da escola paratodos, em grande parte, porque podem ser usadas em muitas situaçõespráticas da vida.

Ressaltemos ainda, nestes comentários sobre o papel prático/instru-mental da matemática nas concepções diderotianas, a indicação da essen-cialidade da apropriação de seus conteúdos para o acesso às outrasciências úteis, como a mecânica, a hidráulica e a física experimental. Ofilósofo chama a atenção, no caso dessa última, situada na quarta classe,para a necessidade dos conhecimentos das duas primeiras: sem eles, “osalunos verão os fenômenos, mas ignorarão sua razão” (Diderot, 2000,p. 300).

Como se pode perceber, os usos práticos e instrumentais da mate-mática são amplamente enfatizados por Diderot. A recomendação doestudo da matemática como prioritário reflete sua concepção básica deque a educação deve ser utilitária: ela deve responder às necessidadesda sociedade, e isso significa, em grande parte, que deve servir comopreparação à vida profissional (Dolle, 1973).

Ao configurar o primeiro curso da Faculdade das Artes com a inver-são na prioridade usual dos estudos desse nível de ensino na França,Diderot combate abertamente a educação de seu país, que privilegia ogrego e o latim, a retórica, a lógica e a metafísica. Contra o latim e ogrego, idiomas mortos, inúteis a quase todos, contra a retórica, que ensina“a arte de falar antes da arte de pensar, e a do bem dizer antes que a deter idéias” (Diderot, 2000, p. 271); contra uma abordagem da lógica que

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enche a cabeça de sutilezas e inutilidades, Diderot investe com as armasda matemática e das ciências. Em contraposição a um sistema de ensinoque rejeita as ciências da natureza como inúteis ou prejudiciais para aformação de bons cristãos, propõe essas mesmas ciências porque levaem conta sobretudo as necessidades e as condições básicas ao bomfuncionamento da sociedade. Diderot é explícito: as línguas antigas,especialmente, são úteis somente “aos poetas, aos oradores, aos erudi-tos e às outras classes de literatos de profissão, isto é, aos estados dasociedade menos necessários” (idem, p. 313, grifo meu). Uma naçãotambém tem necessidade de homens de letras, porém esses, que devemser em número pequeno, deverão sua existência mais ao talento naturaldo que à instrução: “É mister haver oradores, poetas, filósofos, grandesartistas, mas filhos do gênio, bem mais do que do ensino, seu númerodeve e não pode deixar de ser muito pequeno” (idem, p. 310).

O filósofo chama a atenção para um outro aspecto – os estudosliterários pouco contribuem para a educação moral: “As belas-letras nãofazem os bons costumes; são apenas o seu verniz” (idem, ibidem).

Da educação centrada no conhecimento do grego e do latim resul-tam padres e mestres da retórica – “muito perigosos para que se multi-plique sua espécie” (Diderot, 2000, p. 282). Essas idéias integram o queDurkheim (1969) e outros autores identificam como a pedagogia realis-ta, na qual as coisas prevalecem sobre as palavras18.

A formação de cidadãos úteis envolve o domínio de conteúdosaplicáveis às diferentes situações da vida, como os da matemática, quedevem ser ensinados a todos na instrução pública. A prioridade da educa-ção matemática quando se considera sua dimensão prático/instrumentaljustifica-se, então, no projeto diderotiano de bom funcionamento da so-ciedade. Todavia, seria uma visão incompleta desse projeto, particular-mente no que diz respeito à educação matemática, a que se restringisseao utilitarismo do conhecimento matemático, ainda que esse seja umaspecto evidente e muito explícito no Plano de uma universidade. A

18 Billy (1948, p. 370) cita a seguinte passagem de Diderot numa carta a Catarina II:“Em geral, no estabelecimento das escolas tem-se dado importância e espaço de-masiados ao estudo das palavras; é preciso substituí-lo pelo estudo das coisas”.

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abertura do texto das Primeiras noções sobre as matemáticas para usodas crianças mostra a importância formativa que Diderot atribui a esseconhecimento:

Estamos em um século no qual seria supérfluo estender-se sobre a utilidade das

matemáticas: ninguém ignora de que auxílio elas são nas artes, e a vantagem

ainda mais inestimável que elas têm de formar o espírito acostumando-o a

raciocinar de forma correta, porque nelas não se caminha jamais senão de

conseqüência em conseqüência [Diderot, 1975, p. 365, grifo meu].

Mais adiante, no mesmo trabalho, ao expor sua “idéia geral dasmatemáticas”, Diderot escreve:

As matemáticas se estendem sobre quase todos os conhecimentos humanos:

elas servem para distinguir o falso do verdadeiro, para convencer o espírito

de verdades já conhecidas, para descobrir novas e para levar com inteira

certeza a perfeição a todas as ciências que o homem pode adquirir apenas por

sua razão [idem, p. 367].

A potencialidade formativa da matemática é especialmente eviden-ciada naquilo que se refere à geometria, que é qualificada por Diderotcomo a mais simples das lógicas no Plano de uma universidade.

Nesse texto, a parte reservada à lógica – situada, lembremos, nasexta classe do primeiro curso de estudos da Faculdade das Artes – prin-cipia pela afirmação da relevância dessa

arte de pensar corretamente, ou de fazer um uso legítimo dos sentidos e da

razão; de certificar-se da verdade dos conhecimentos recebidos; de bem con-

duzir o espírito na busca da verdade; e de desemaranhar os erros da ignorân-

cia, e os sofismas do interesse e das paixões, arte sem a qual todos os

conhecimentos são talvez mais prejudiciais do que úteis ao homem que por

eles se torna ridículo, tolo e malvado [Diderot, 2000, p. 304].

Para o filósofo, esse é um ensino tão importante que é por ele quecumpriria começar, desde que sua abstração fosse acessível às crianças.No entanto, alocando-o na sexta classe, após as classes de matemática e

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ciências, acredita que ao atingi-la os alunos já terão sido preparados porum exercício suficiente de sua razão. A matemática é particularmenteadequada a modelar o espírito na direção do saber, do bem e da verdadepor sua simplicidade, e essa idéia assim é exposta na parte do Plano quefocaliza a primeira classe de estudos:

Não se pode começar cedo demais a retificar o espírito do homem, mobiliando-

o com modelos de raciocínios da primeira evidência e da verdade mais rigo-

rosa. É a esses modelos que a criança comparará em seguida todos aqueles que

lhe proporcionarem e cuja força ou fraqueza terá de apreciar, em qualquer

matéria que seja.

É sobretudo nas matemáticas que todas as verdades são idênticas; toda a ciên-

cia do cálculo não é senão a repetição deste axioma – um e um são dois – e

toda a geometria não é mais do que a repetição deste – o todo é maior que sua

parte.

A geometria é a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria

a dar inflexibilidade ao juízo e à razão [Diderot, 1875, t. III, p. 454, grifo meu].

Mais: o ensino da geometria é recomendado especificamente nocombate à ignorância e à superstição, e se o método geométrico nãodeve ser aplicado a tudo, não deve jamais ser perdido de vista, pois é “abússola de um bom espírito, é o freio da imaginação” (idem, p. 454). SeDiderot distingue os objetos da geometria, representantes, na interpre-tação de Crocker (1974), de uma ordem intelectual, dos da vida (ordemnatural), não deixa de ver o estudo dos primeiros como propedêutica doentendimento, já que o raciocínio usado na geometria é um modelo paraa argumentação em qualquer campo:

Nada do que é obscuro pode satisfazer uma cabeça geométrica. A desordem

das idéias lhe desapraz e a inconseqüência a fere. Se com freqüência se cen-

surou o geômetra por ter o espírito equivocado, é que, por estar todo entre-

gue ao seu estudo, as coisas da vida lhe são desconhecidas.

Todos os raciocínios do geômetra findam por estas palavras: o que era pre-

ciso demonstrar (cqd). Todos os raciocínios que se fazem, seja ao discorrer,

seja ao escrever, deveriam terminar pela mesma fórmula [Diderot, 2000,

pp. 293-294, grifo meu].

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Encontra-se aqui, na preferência pela matemática e, em particular,pela geometria, em que pese a sua consideração às vezes desfavorável –espécie de metafísica, repetição de verdades idênticas – por Diderot,uma manifestação do paradoxo referido por Romano (2002): emboranão exista ordem no universo, de acordo com o enciclopedista “somosdirigidos pelo desejo da ordenação legal, da regularidade, do sentido”.

Em relação ao potencial formativo da geometria, esse paradoxo com-parece ainda com outra roupagem em mais uma passagem diderotiana:vimos que as verdades geométricas são questionáveis na epistemologiado enciclopedista, no trecho final da Carta sobre os cegos transcritoanteriormente. Entretanto, o conhecimento da geometria possibilita aquem o detém maior competência para avaliar o que lhe dizem seuspróprios sentidos: segundo uma das passagens finais da Carta, uma pes-soa instruída em geometria que enxergasse desde o nascimento e nãopossuísse o sentido do tato, se passasse a tê-lo, saberia discernir umcubo de uma esfera, mesmo com os olhos vendados. Porém, caso igno-rasse a geometria, essa pessoa teria a mesma dificuldade que um cegode nascença a quem tivesse sido restituída a visão se lhe fosse propostoo mesmo problema. Eis as palavras de Diderot:

É evidente que a geometria, caso nela fosse instruído, lhe forneceria um meio

infalível de assegurar-se se os testemunhos de seus dois sentidos são ou não

contraditórios. Ele não teria senão que tomar o cubo ou a esfera entre suas

mãos, demonstrar a alguém qualquer uma de suas propriedades, e pronunciar,

se o compreendessem, que vê-se cubo aquilo que ele sente cubo, e que con-

seqüentemente é cubo aquilo que ele segura. Quanto àquele que ignorasse

essa ciência, penso que não lhe seria mais fácil discernir, pelo toque, o cubo

da esfera que ao cego do senhor Molineux19 distingui-los pela vista [Diderot,

1951, p. 890].

19 O físico irlandês William Molineux (1656-1698) propôs o problema aqui referido,que é o centro da Carta sobre os cegos: um cego de nascença que tivesse aprendidoa identificar pelo tato um cubo e uma esfera construídos com o mesmo materialconseguiria, passando a enxergar, reconhecê-los se não pudesse tocá-los?

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O comentário de Venturi (1988) a respeito dessa passagem nos pa-rece iluminar mais um pouco o pensamento diderotiano acerca da mate-mática e, em especial, da posição de destaque que ela ocupa na organi-zação dos estudos proposta pelo filósofo. De fato, ao chamar a atençãopara a afirmação de Diderot de que o cego geômetra certamente seriacapaz de distinguir o cubo da esfera, o comentador italiano salienta a“verdadeira função” do saber matemático – “tornar inteligível a nossasensação”, ou ainda, atuar como um “instrumento de conhecimento danatureza” (Venturi, 1988, p. 238).

É oportuno assinalar que Mayer (1959) considera que a matemáti-ca, que Diderot cultivou durante dez anos desde o término de seus estu-dos na universidade, teve um papel importante na constituição de seurigor científico.

A qualificação da matemática e especialmente da geometria comoum conhecimento cuja contribuição é fundamental na construção dopensamento correto nos remete às idéias platônicas. É interessantecomparar as colocações de Diderot com a seguinte fala de Sócrates aGlauco no livro VII da República:

Portanto, meu nobre amigo, [a geometria] conduzirá a alma em direção à

verdade e disporá a mente do filósofo para que ele eleve seu olhar para o alto

em vez de dirigi-lo para as coisas inferiores, que agora contemplamos sem

dever fazê-lo [Platão, 1969, p. 786].

Ao considerar a matemática particularmente adequada à preparaçãodo espírito, Diderot se aproxima, pois, de Platão, mesmo não comparti-lhando de sua concepção quanto a esse saber (nem da que se refere ànecessidade de elevar o olhar para o alto) – para Platão, como é bemconhecido, o conhecimento matemático reside no interior da cons-ciência e não no campo do que é perceptível pelos sentidos. A valoriza-ção da matemática como propedêutica para a verdadeira ciência nosparece, dessa maneira, um exemplo daquilo que Romano (2000) deno-mina platonismo invertido do enciclopedista.

Um balanço das aproximações e desvios de Diderot em relação aPlatão no que concerne à educação matemática nos mostra, portanto,

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que o enciclopedista se afasta do pensamento platônico quanto às con-cepções sobre a localização e os modos de acesso do indivíduo ao co-nhecimento matemático, e se aproxima do filósofo grego ao concederimportância primordial à potencialidade formativa da matemática. Adiferença essencial nesse aspecto está em que Platão, contrário àdemocracia, propõe a educação matemática como base para a aristocra-cia que deve governar a pólis (Miguel, 1995), enquanto Diderot, favorá-vel à democracia, deseja que essa educação matemática seja propriedadedo povo, o verdadeiro soberano.

É importante ainda indicar uma outra conexão: trata-se do questio-namento por Diderot (como por Platão) a respeito dos equívocos dalinguagem verbal e da retórica. Romano (1996a) chama a atenção paraas relações acentuadas entre linguagem e matemática em Diderot – paracombater as ambigüidades e enganos da fala e da escrita comuns, a ciên-cia matemática é útil e serve como parâmetro:

Se nossos dicionários fossem bem feitos, ou o que dá no mesmo, se as pa-

lavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras “ângulos” e

“quadrados”, restariam poucos erros e disputas entre os homens. É a esse

ponto de perfeição que todo trabalho sobre a língua deve tender [Diderot,

1875, t. III, p. 455].

Outros trabalhos diderotianos põem em destaque a precisão da lin-guagem geométrica. Na Refutação de Helvétius, ao referir-se às dificul-dades de comunicação das sensações entre as pessoas devido a seucaráter subjetivo, Diderot coloca entre as poucas coisas comunicáveistodas as ciências matemáticas. Na Carta sobre os surdos e mudos,escreve que é impossível traduzir um poeta para outra língua e que émais comum entender bem um geômetra do que um poeta. Nesse mes-mo texto, ao apresentar sua idéia da decomposição de um homem emuma sociedade formada por seus cinco sentidos, Diderot diz que todosesses sentidos poderiam entender-se maravilhosamente somente em ge-

20 Embora veja nessa passagem que até a linguagem geométrica não escapa da des-confiança de Diderot, Romano (1996a) afirma ser possível acreditar que o filósofo,

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ometria20.Romano (2001) comenta que as preocupações com a linguagem

verbal são um traço característico dos pensadores democráticos doséculo XVIII, e especialmente de Diderot – todos eles “afirmavam quepara instaurar a democracia, seria preciso a mudança na língua do po-vo” pois este,“acostumado à distorção das leis e dos vocábulos, reali-zada pelos tiranos, acostumara-se a ouvir uma coisa e entender outra”(Romano, 2001, pp. 424-425). Eis mais uma relação a ser enfatizada – orelevo que a matemática adquire na proposta pedagógica de Diderotdevido às vantagens da linguagem dessa ciência está ligado ao pensa-mento político do enciclopedista.

Contudo, se a geometria é, entre os conteúdos propostos por elepara o Primeiro Curso de Estudos da Faculdade das Artes, aquele que émais mencionado quanto ao papel formativo, Schmitt (1997) nos cha-ma a atenção para uma passagem em que Diderot tece um vínculo entreum outro estudo – o das probabilidades – e a educação moral. Agora, oganho está em uma maior aproximação com os negócios da vida:

Com o instinto da precisão sente-se, nos próprios casos de probabilidade, os

desvios maiores ou menores em relação à linha do verdadeiro: apreciam-se

as incertezas, calculam-se as chances, faz-se a própria parte e a da sorte; e é

nesse sentido que as matemáticas se tornam uma ciência usual, uma regra de

vida, uma balança universal, e que Euclides21, que me ensina a comparar as

vantagens e desvantagens de uma ação, é ainda um mestre de moral [Diderot

apud Schmitt, 1997, p. 160].

devido ao seu entusiasmo pelas ciências, confia mais (ou desconfia menos) nessamesma linguagem.

21 Eric-Emmanuel Schmitt indica que essa passagem pertence a uma carta dirigidapor Diderot à condessa de Forbach em março de 1772 (Schmitt, 1997, p. 315).Nesse trecho, ao qual não tivemos acesso direto, uma aparente contradição se ma-nifesta caso tomemos literalmente a figura de Euclides como o educador moral aque Diderot se refere, uma vez que a obra do grego não contempla as probabilida-des. No entanto, parece-nos que Diderot, ao nomear Euclides como seu mestre demoral, identifica-o com o conhecimento matemático, em particular com o conheci-mento referente às probabilidades – esse último, sem dúvida, ensina a comparar asvantagens e desvantagens de uma ação.

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O comentário de Schmitt lança luzes sobre a simpatia diderotianapelo cálculo das probabilidades – esse autor cita um trecho escrito pelopróprio filósofo em uma apresentação crítica de um trabalho deD’Alembert sobre o assunto. Nesse trecho, Diderot acentua o estatutoambíguo das probabilidades, escrevendo que elas podem ser considera-das como uma ciência abstrata ou como uma ciência físico-matemática.Nessa segunda alternativa, as probabilidades aproximam matemática erealidade física e social, e parece-nos que aí se pode explicar o valor queDiderot confere a seu conhecimento, associado à incerteza e à conjectura.

Consideramos, anteriormente, o papel da potencialidade prático/ins-trumental da matemática em relação ao preparo requerido pelas ocupaçõese profissões necessárias ao bom funcionamento da sociedade no pensa-mento de Diderot. Procuramos também, em várias de suas passagens,evidenciar a valorização que ele confere ao papel formativo da matemá-tica, papel esse que passa despercebido em trabalhos mais gerais relativosà história das idéias pedagógicas (Cambi, 1999; Luzuriaga, 1990; Mana-corda, 1997), os quais sublinham especialmente o utilitarismo do princi-pal editor da Enciclopédia. Esse papel formativo, posto em destaqueprincipalmente no Plano de uma universidade, também deve ser ligado aoprojeto de reforma política e moral da sociedade que Diderot propõe.

Composto em 1775, o Plano pertence a um período da vida deDiderot no qual se acentua, de acordo com vários autores (Crocker, 1974;Dolle, 1973; Stenger, 1994), o desejo ordenador do filósofo na esferapolítica. Mais radicalmente no início dos anos 70 do século XVIII, osescritos de Diderot enfatizam a desordem da “bela máquina que [oslegisladores] eles chamaram sociedade” (Diderot apud Crocker, 1974,p. 126), arquitetada exatamente para criar a ordem. Concebendo comosolução para essa desordem um governo regido por um código de leiselaboradas pelos representantes (fonte do poder político) do povo (baseda soberania da nação), Diderot pensa na educação pública como ummeio imprescindível para preparar cidadãos capazes de exercer suasresponsabilidades nessa sociedade. Dolle (1973) afirma que a educaçãoé, para Diderot, a essência da organização política.

Por essa perspectiva, somente habilitar ao exercício de uma profis-são é insuficiente, ou seja, a ordem social depende também de o povo

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ter assegurada, na instrução de responsabilidade do Estado, a oportuni-dade de desenvolver a capacidade de pensar corretamente, rigorosamente,eticamente, e saber eleger representantes competentes para elaborar ereformar, sempre que necessário, o código de leis da nação. Nesse con-texto é que Diderot escolhe as ciências e a matemática como o alicercedos estudos. Particularmente a ordem intelectual representada pela ma-temática é considerada por ele como uma contribuição indispensável,mesmo padecendo das características de abstração, alheamento da rea-lidade física e certeza puramente formal que lhes aponta.

Assim, pode-se interpretar tanto o papel instrumental quanto o papelformativo da matemática, reconhecidos por Diderot, como constituintesessenciais a seu projeto pedagógico, e responsáveis pela prioridade queele lhes concede. Mostra Dolle (1973) que esse projeto é, no todo, conso-nante com a filosofia política do principal editor da Enciclopédia. Nestaseção, ao focalizar o estatuto privilegiado da educação matemática nomesmo projeto, procurei argumentar no sentido de que esse privilégiotambém está em harmonia com o pensamento político de Diderot.

Algumas considerações gerais sobre a propostadiderotiana para a educação matemática

Neste artigo, expus e comentei idéias relacionadas à educação ma-temática em diversos trabalhos de Diderot. Particularmente, procureiinserir essas idéias no contexto de seu projeto político de reforma deuma sociedade em desordem. Na proposta pedagógica do filósofo daEnciclopédia, não se pode perder de vista a proximidade entre os sabe-res – primordialmente os científicos e técnicos – e os ideais democráti-cos: não existe verdadeira democracia sem povo instruído (Romano,1996). Ao mesmo tempo, uma nação não progride em nenhum sentidose o Estado não proporcionar essa instrução a todas as classes sociais.Chamando a atenção para a desigualdade entre as capacidades naturaisdos indivíduos, Diderot é claro: para funcionar bem, a sociedade preci-sa do trabalho da maior parte dos cidadãos (que constituem o público-alvo de seu projeto pedagógico), os quais precisam dominar conheci-

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mentos úteis como a matemática. Mas uma nação não pode se dar aoluxo de perder as potencialidades dos mais capazes – daí a exigência deque as portas da escola se abram indistintamente a todos os filhos dessanação. É essencial a seguinte passagem, freqüentemente citada do Pla-no de uma universidade, na qual o autor explica essa concepção:

Eu digo indistintamente, porque seria tão cruel quanto absurdo condenar à

ignorância as condições subalternas da sociedade. Em todas, há conheci-

mentos dos quais a gente não poderia se privar sem conseqüências. O núme-

ro de choupanas e de outros edifícios particulares estando para o dos palácios

na relação de dez mil para um, há dez mil para apostar contra um que o gênio,

os talentos e a virtude sairão antes de uma choupana do que de um palácio

[Diderot, 2000, p. 267].

Como vimos, a inserção privilegiada do conhecimento matemáticona escala dos saberes se dá de forma associada a duas diretrizes princi-pais – o princípio de utilidade e o princípio de ligação entre as ciências.A matemática, sendo necessária a todas as ciências e fundamentando asartes mecânicas que satisfazem necessidades humanas de tipos varia-dos, é um saber cujo domínio é imprescindível à vida social e profissio-nal no Século das Luzes. É, pois, um conhecimento essencial no contextoda Europa, e particularmente da França desse período, no qual o quadrosocial e político encontra-se defasado dos progressos econômicos, cien-tíficos e técnicos. Não é possível deixar de notar a consciência de Diderotem relação às demandas que começam a se constituir em decorrência dainfluência dos desenvolvimentos da ciência e da técnica sobre os meiosde produção.

Por outro lado, Diderot, como foi sublinhado, vê mais vantagens nométodo de raciocínio da matemática do que em suas idéias, já que amiú-de a ela se refere como uma espécie de arte da repetição de proposiçõesidênticas, e mesmo como a um “tecido de verdades internas” (citado porSchmitt, 1997, p. 152). É precisamente esse método, ao qual ele relacio-na explicitamente a perfeição do conhecimento matemático em seu es-boço de livro didático de geometria, que desempenha um papel funda-mental na formação do pensamento. Ao concluir este artigo, é importante

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ressaltar mais uma vez esse aspecto ligado à educação matemática den-tro da obra política de Diderot.

Certamente podem-se levantar questionamentos quanto à forma queele propõe para essa educação no Plano, levando em conta, como ob-serva Dolle (1973), que, figurando na primeira classe do primeiro cursode estudos, os conhecimentos matemáticos, mesmo com a vantagem deter garantida sua abordagem na instrução dos que não pudessem prosse-guir nos estudos, seriam focalizados exclusivamente nesse nível, nãosendo retomados depois para aprofundamento. Dolle levanta tambémdúvidas quanto à possibilidade de um aprendizado efetivo da matemáti-ca em tão pouco tempo – uma classe de estudos – a menos que Diderottivesse pensado, para a aplicação de seu plano, somente em um progra-ma reduzido.

Todavia, não se pode negar a ousadia de Diderot em relação ao quese fazia na educação da época e mesmo ao que se propunha então comoreforma, como ressalta também Dolle. A proposta diderotiana de fixaras ciências em lugar das letras, e especialmente em lugar das línguasantigas, como base da instrução, se apóia não só no tão enfatizado prin-cípio de utilidade, mas também, em grande parte, em uma argumenta-ção sobre a capacidade dos jovens para assimilar os conhecimentoscientíficos e, particularmente, a matemática. Dolle assinala o que dife-rencia Diderot de outros proponentes de mudanças na educação de seutempo da seguinte maneira:

Diderot nega não somente a prática tradicional dos Colégios e Faculdades

das Artes, mas também os planos de seus contemporâneos. Não somente

subverte a ordem habitual colocando as línguas antigas no fim do ciclo dos

estudos, mas instaura o plano de uma “educação pública em todas as ciên-

cias”. Há, portanto, nele, qualquer coisa de mais radicalmente inovador, e até

mesmo revolucionário, que em seus predecessores, que são, quando muito,

reformistas [Dolle, 1973, p. 161].

Focalizando a matemática nesse contexto, pode-se terminar reite-rando que para o grande vulgarizador das ciências que foi o enciclopedis-ta, esse conhecimento, embora não possa ser criado por todos, é o mais

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fácil, o mais útil e o necessário a um maior número de pessoas. Vistacomo um saber produzido a partir da experiência sensível, constitui-sede idéias que suprem carências sociais e cujo domínio é importante naformação do espírito do homem. É certo que seu valor para a educaçãoreside, em primeiro plano, nas aplicações práticas e no mundo material;contudo, repito ainda: Diderot considera sempre sua contribuição parao desenvolvimento do pensamento como uma justificativa relevante parapropor o seu ensino aos cidadãos de uma sociedade livre na qual asluzes são um direito de todos.

Passados mais de 250 anos desde a publicação dos primeiros vo-lumes da Enciclopédia, esses ideais ainda não se encontram realizadosno Brasil. É oportuno lembrar que os Parâmetros Curriculares Nacio-nais – Ensino Médio (Brasil, 2000) apresentam como ponto básico deseu discurso a necessidade de “desenvolver o saber matemático, cientí-fico e tecnológico como condição de cidadania e não como prerrogativade especialistas”, ressaltando a importância da matemática para as ciên-cias e as tecnologias do mundo contemporâneo.

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Da ótica dos Estudos Culturais e campos afins, analiso estratégias implementadas pelosrepresentantes do governo do estado do Rio Grande do Sul de importação da obra didáticado autor português João de Deus, a Cartilha maternal, cujo método de ensino da leiturafora adotado oficialmente. Inicialmente, apresento a crítica dos representantes do governogaúcho às “contrafações inconvenientes”, discutindo, após, a aceitação de adoção decartilhas que mais se aproximassem da obra lusa. Finalizo a análise mostrando as marcasde sua aculturação, ao se adaptar a necessidades locais do estado gaúcho.CARTILHA MATERNAL; ACULTURAÇÃO; RIO GRANDE DO SUL; PRIMEIRAREPÚBLICA; ESTUDOS CULTURAIS.

From the perspective of the Cultural Studies and related fields, I analyse strategiesimplemented by Rio Grande do Sul state officers on importing the didactic work developedby the Portuguese author João de Deus, Cartilha maternal, whose method to teach readingwas officially applied. Firstly, I have provided the critique formulated by the Rio Grandedo Sul government officers concerning “unsuitable counterfeits”, and after that, theacceptance of primer uses most closer to the Portuguese work. I conclude the analysis byshowing its acculturation marks, as it fits to the local needs of this southern Brazilian state.MATERNAL PRIMER; ACCULTURATION; RIO GRANDE DO SUL; EARLY REPUBLIC;CULTURAL STUDIES.

A Cartilha maternal e algumasmarcas de sua aculturação*

Iole Maria Faviero Trindade**

* Versão modificada de trabalho (apoiado pelo CNPq – processos n. 520.810/89-8,200.674/00-5 e 4.791.123/01-2) apresentado na 26ª Reunião da ANPED, em Poços deCaldas/MG, out. de 2003. Este trabalho corresponde à combinação parcial dos capí-tulos 4 e 5 de livro a ser publicado pela Universidade São Francisco (EDUSF), em 2004,como obra integrante da coleção de estudos CDAPH, série Historiografia.

** Professora adjunta do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educa-ção e do Programa de Pós-Graduação em Educação, linha Estudos Culturais emEducação, Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.

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Introdução

Até hoje me assombra periodicamente a memória umafrase dum livro de texto escolar: “Ó Pedro, que é do livro de

capa verde que te deu o avô?”1. Só agora na velhice é quecomeço a compreender o sentido transcendental dessa

pergunta: “Ó Érico, onde está o livro de capa verde?” Ficopensando: Que fiz desse volume que não li? Rasguei-o?

Queimei-o? Dei-o de presente a alguém?VERISSIMO, 1981, p. 86

Ao analisar as cartilhas2 como artefatos culturais, discuto suas posi-ções e relações em uma cadeia de produção cultural, na medida em queesses artefatos não interessam por si mesmos, mas pelo sentido que re-cebem nas práticas culturais e ao constituir outras mais. Nos estudosculturais, há um redobrado interesse pelas práticas e pelos artefatos cul-turais. Podemos examinar, então, as cartilhas como artefatos que crista-lizam de certa forma significados e representações de determinadasépocas e de diversos grupos em cada época, bem como em que cadeiasde produção cultural elas se situam.

Para entender a cadeia discursiva em que as cartilhas se encaixam,procuro recuperar um pouco das práticas dentro das quais esses artefa-tos significavam um instrumento importante, isto é, uma ferramenta fun-cional para ensinar/aprender e um sinal da própria escolaridade, do ser

1 Essa frase mencionada por Erico Verissimo é a frase inicial do primeiro texto daCartilha maternal.

2 A definição do que seriam cartilhas em contextos e períodos diversos pode auxiliara entender esses deslizamentos, isto é, a produção de novos significados. A tradi-ção lusa dessas obras didáticas as reconhecia inicialmente como cartas ou cartinhas,e estas, ainda no final do século XIX e início do século XX, circulavam pelo Brasilcomumente apresentadas como livros de primeiras letras. Essas obras têm suaorigem nos catecismos e silabários manuscritos que foram utilizados no ensino daleitura no final do século XV (Fernandes, 1998), consistindo, então, em pequenoslivros que continham o abecedário, o silabário e rudimentos do catecismo. Escolano-Benito (1997) nos informa que a denominação cartilha tem origem em expressõescomo “cantar” ou “ler a cartilha” para alguém. Já a denominação primeiro livro deleitura está associada às séries cíclicas de livros “compostas de textos de diferentesníveis de complexidade, dispondo os conteúdos, geralmente, os mesmos, em cadaetapa do processo, de forma gradual” (ESCOLANO-BENITO, 1997, p. 34).

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aluno/a e, também, do ser letrado/a ou aprendiz de letrado/a. Essa brevecontextualização histórica nos permite recuperar também o valor dadoàs cartilhas e aos métodos de ensino da leitura e da escrita que as orien-tam, fazendo ambos parte de uma rede de discursos e representaçõesque podem ser localizados como produtos culturais de uma determina-da época3.

Considerando que os estudos culturais se valem de uma bricolagede campos do conhecimento, neste texto privilegiarei as contribuiçõesdo próprio campo dos estudos culturais, associadas às de outros cam-pos, como o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, e os estudos daanálise crítica do discurso, em sua versão foucaultiana. O campo dosEstudos Culturais é marcado por uma identidade cambiante, delineadapelas transformações na concepção de cultura. Ao opor-se à concepçãode cultura como conjunto de grandes obras cuja produção e apreciaçãosão privilégio de um grupo restrito de pessoas, os estudos culturais pro-põem uma nova interpretação de cultura que corresponde ao modo devida global de uma sociedade. Tal interpretação do conceito de culturapermite examinar as cartilhas como textos culturais, isto é, explorar aprodução, recepção e os usos desses textos contextualmente. O campodos estudos pós-modernos permite examinar as cartilhas como artefatosconstituídos por discursos que vigoravam à época, bem como constitui-dores de novos discursos. O sujeito deixa de pensar, falar e produzir,passando a ser pensado, falado e produzido (Silva, 1999). O campo dosestudos pós-estruturalistas, por sua vez, permite examinar a centralidadeda linguagem, ao enfatizar a análise de discursos e textos. Para tal campode estudos, conhecer e representar são processos inseparáveis. A repre-sentação é compreendida como inscrição, marca, traço, significante enão como processo mental. É a face material, palpável do conhecimento(idem). A análise crítica do discurso se associa a esses campos de co-

3 Estudos como os de Pfromm Netto, Rosamilha e Dib (1974), Magnani (1996, 1997),Mortatti (1999) e Monarca (1994) foram extremamente importantes para a com-preensão da trajetória de métodos de alfabetização e de cartilhas adotadas na ins-trução pública do nosso país, entre império e república, auxiliando, assim, naidentificação de obras didáticas adotadas, seus autores e sua circulação por diver-sos estados brasileiros, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo.

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nhecimento, especialmente ao pós-estruturalismo, em sua vertente fou-caultiana, ao descrever o caráter construtivo da linguagem. Assim, textose discursos passam a ser vistos como artefatos produtivos, construtivosde formações sociais, comunidades e identidades sociais dos sujeitos.Dessa forma, os textos são considerados artefatos do trabalho dos sujeitosna produção do significado, isto é, momentos de intersubjetividade entreescritores, leitores, falantes e ouvintes, cujas intenções não são evidentessem recorrer a outros textos (Luke, 1996). Como esses textos se conectamuns aos outros, se referem uns aos outros, às vezes sistematicamente, àsvezes através da escolha e deliberação do autor e às vezes através dacoincidência, podem ser vistos como multidiscursivos, ou seja, guiadospor uma variedade de discursos, campos de conhecimento e vozes.

Os estudos culturais, por sua vez, não possuem uma metodologiadistinta, que possam reivindicar como sua; fazem uso de uma diversidadede métodos, em que a escolha de práticas de pesquisa é pragmática,estratégica e auto-reflexiva (Nelson, Treichler & Grossberg, 1995). É,portanto, essa abordagem que me permite examinar as cartilhas comoartefato cultural de uma determinada época, de uma determinada cultu-ra, para proceder a uma análise descritiva, histórica e contextualmenteespecífica. Os textos examinados, representando fragmentos retiradosdas próprias cartilhas ou das atas, da legislação e dos relatórios, fazemparte de uma rede de discursos e representações que podem ser localiza-dos como produtos culturais de uma determinada época. A análise dessesartefatos culturais permitiu, dependendo do ponto que se examina (de-terminações legais, métodos de ensino da leitura e escrita circulantes,produção e circulação de cartilhas, bem como conceitos de alfabetização/alfabetismo que vigoravam), responder a questões que surgem da suaprópria análise e da tentativa de reconstituir um passado marcado conco-mitantemente por diferenças, transformações, mutações e continuidades(Kendall & Wickham, 1999).

Este trabalho é um recorte de uma pesquisa mais ampla4. Nele de-tenho-me na discussão das tentativas implementadas pelos representantes

4 Cf. Trindade (2001a, 2001b, 2002a, 2002b).

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do governo do estado do Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas daPrimeira República, de importação da obra didática do autor portuguêsJoão de Deus, a Cartilha maternal, cujo método de ensino da leitura foraadotado oficialmente nesse período. Inicialmente, apresento a crítica dosrepresentantes do governo gaúcho às “contrafações inconvenientes” quesurgem logo após, discutindo a aceitação de adoção de cartilhas que maisse aproximassem da obra lusa. Destaco, então, para análise, a inclusão daletra cursiva e o uso do Português Brasileiro nas lições da obra gaúcha.Finalizo a análise dessa cartilha, transplantada de Portugal, contexto ondefoi produzida, para o estado do Rio Grande do Sul, mostrando algumasmarcas de sua aculturação ao se adaptar às necessidades locais,reconhecendo as cartilhas como textos culturais que tornam evidentes aintertextualidade e interdiscursividade de uma época.

As “contrafações inconvenientes” da Cartilhamaternal

Ao longo de toda esta seção e da próxima, teremos a presença das“vozes impressas” daqueles/as que eram responsáveis pela orientaçãopolítica e pedagógica da Instrução Pública gaúcha à época. Essas vozesse fazem presentes a cada relatório anual da Secretaria dos Negócios doInterior e do Exterior e também na maioria das reuniões dos conselhosresponsáveis pelo exame das obras pedagógicas. Considero que osdiferentes lugares ocupados por esses sujeitos na Instrução Pública dogoverno republicano gaúcho da Primeira República foram determinantespara a produção de certos discursos e para a interação que se estabeleceentres eles.

Popkewitz (1994, p. 196), ao abordar a constituição dos discursos eo descentramento do sujeito, alerta que boa parte daquilo que é ditopelas vozes “que nos falam” foi construído anteriormente, pois quandousamos a linguagem, pode ocorrer que não sejamos nós, eles ou eu, queestejamos falando, e sim “a linguagem que nos foi dada através de for-mações sociais que ocorreram no passado”. Na seção “Livros escola-res” dos relatórios dos representantes do governo, a voz do inspetor

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geral de instrução Manoel Pacheco Prates, por exemplo, marca umadiscussão da época: a das cartilhas que vinham sendo adotadas no RioGrande do Sul, relacionando essa adoção à unidade de métodos e dedoutrinas:

Tenho examinado cuidadosamente não só os livros que encontrei adoptados,

mas outros consagrados pela aceitação em outros Estados da União. Nesta

escolha subordino-me á mais escrupulosa unidade de methodo e de doutrina,

que parece não ter outr’ora presidido ás deliberações do conselho diretor

neste sentido; de modo que encontrei adoptados, com prévia approvação do

conselho, livros e compendios que se repellem pela radical divergencia de

methodo e doutrina, no ensino de uma mesma matéria. Começando pelo pri-

meiro livro, que é o livro por excellencia do menino da escola e o que mais

deve prender a attenção dos modernos educacionistas, a divergencia de doutri-

na neste ponto toca as raias do inverosimil, pois existem approvados cinco

destes e cada um com uma doutrina, e são:

1º João de Deus – Cartilha Maternal5.

5 João de Deus Nogueira Ramos (1830-1896) nasceu em São Bartolomeu de Messinis.Simplificou depois seu nome para João de Deus Ramos e, a partir de 1868, re-duziu-o apenas a João de Deus (Nunes, 1896). Formou-se em direito, mas acabouse tornando poeta ao mesmo tempo em que se dedicou à criação de sua cartilha e deseu método de ensino da leitura. Na minha tese de doutorado (Trindade, 2001a), aoexaminar o método de ensino da leitura que orienta a Cartilha maternal, analisodiscursos e representações circulantes em Portugal no final do século XIX. Constatoque, pelo menos, três obras servem de referência para a análise da produção didá-tica na área da alfabetização em Portugal – a Cartinha com os preceitos da SantaMadre Igreja (Barros, 1539), o Método português (Castilho, 1850) e a Cartilhamaternal (Deus, 1876). O antigo método alfabético de ensino da leitura, ou desoletração antiga, caracterizado pelo ensino simultâneo de todas as letras, caracte-rizava a Cartinha de João de Barros. Já o Método português e a Cartilha maternalirão propor o ensino do alfabeto por partes, rompendo assim, com os velhos pro-cessos de soletração “antiga” (através nome das letras) e “moderna” (através deseus valores). Ao olhar para esses três autores “didáticos” portugueses – João deBarros, o gramático, e os poetas António Feliciano e João de Deus – e suas obras,métodos de leitura e cartinhas ou cartilhas que expressam esses métodos, observoo quanto seria leviano acusar o método alfabético de simplório ou os métodosfonéticos de estreitos ante o universo complexo da língua escrita. João de Barrosproduziu tal método de leitura quando as línguas vernáculas e, no caso, o português,

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2º Hilario Ribeiro – Cartilha Nacional6.

3º Abilio – Primeiro livro de leitura7.

4º Ubatuba8.

5º Samorim de Andrade – Primeiro livro9 [Relatorio, 1896, p. 302].

estava começando a se sobrepor ao latim vulgar e estava sendo composta uma gra-mática que lhe fosse própria. Por sua vez, os métodos de António Castilho e de Joãode Deus mostram, de diferentes formas, uma possibilidade de reflexão sobre a relaçãoentre língua oral e escrita a partir de uma de suas unidades lingüísticas: a palavra.

6 Gaúcho, Hilário Ribeiro (1847-1886) era reconhecido nacionalmente, desde o pe-ríodo imperial, por sua produção didática. Além das atividades de professor e escritordidático, foi poeta, dramaturgo e biógrafo (Martins, 1978). Seus compêndios fo-ram adotados nas escolas públicas do município da Corte e nas províncias de Mi-nas, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Rio de Janeiro e outras (Ribeiro,1887). Continuaram populares na República, sendo bastante usados até a décadade 1930. Foram premiados em 1883, com o “Diploma de 1ª Classe”, em importan-te exposição pedagógica que se realizou na capital do país. Mais tarde, em 1887,receberam a mesma premiação na Exposição de Objetos Escolares, sendo final-mente consagrados, com “Medalha de Prata”, na Exposição de Paris, de 1889.Pfromm Neto, Rosamilha e Dib (1974) observam que as obras didáticas de HilárioRibeiro disputavam com as de Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, a prefe-rência dos/as professores/as primários/as. A última edição do silabário é de 1941(123. ed.) e da cartilha é de 1943 (236. ed.), pela Francisco Alves (Villas-Boas,1974). Em nota introdutória que acompanha a Cartilha nacional, Hilário Ribeiro(s.d.; 1887; 1919) explica que escreveu essa cartilha para substituir esse primeirolivro (silabário) que era, então, bastante adotado.

7 O baiano Abílio César Borges (1824-1891) trocou a carreira de médico pela deprofessor. Para Pfromm Neto, Rosamilha e Dib (1976), o primeiro livro de leiturado “Método Abílio” representou um surpreendente salto na pedagogia brasileira,pois, até então, a aprendizagem da leitura se iniciava com abecedários manuscri-tos, papéis de cartório e “toscas cartilhas”. Esse primeiro livro, ao mesmo tempoque adotava a silabação, se opunha à soletração de sílabas sem sentido.

8 Maiores referências sobre Ubatuba encontrei em uma das atas das sessões do Con-selho de Instrução Pública. Um dos primeiros livros examinados por esse conse-lho, já no regime republicano, corresponde ao silabário de Arthur Trajano Ubatuba(Atas..., 1891, p. 189).

9 Professor de português, francês, italiano, matemática e escrituração mercantil, foitambém autor de livros didáticos. Escreveu a Cartilha mestra para aprender-se aler com rapidez ou primeiro livro de leitura, identificando sua orientação de leituracom o “genuíno methodo João de Deus” (Andrade, 1919, capa). Esta obra foi“adoptada não só nas escolas publicas do Estado do Rio Grande do Sul, Ceará eRio Grande do Norte, mas também para as escolas regimentaes do exército”(ANDRADE, 1919, capa). A Cartilha mestra foi premiada na Exposição Nacional de1908, no Rio de Janeiro, com medalha de prata.

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Assim, o inspetor geral considerava que

excluindo algumas affinidades existentes entre a primorosa “Cartilha mater-

nal” de João de Deus e a “Cartilha nacional” de Hilario Ribeiro (porque esta

é uma inconveniente contrafacção daquella), estes livros se repellem pela

profunda diversidade de doutrina e método [idem, 1896, pp. 302-303].

Como esse governo julgava que a unidade pretendida era garantidacom a adoção de livros de mesmo autor para a mesma matéria, buscouformas de “construir” essa unidade através de algumas estratégias deadaptação às contingências. Podemos constatar o uso de tal estratégiaquando o inspetor geral, ao reconhecer que os livros de Hilário Ribeiroeram adotados pela maioria dos/as professores/as, concluiu que, dessaforma, pelo menos a unidade de método e doutrina estaria garantida:

Felizmente este erro não tem ainda produzido todos os seus máos fructos por-

que quasi a totalidade do professorado pede livros de Hilario Ribeiro, estabe-

lecendo-se assim uma tacita combinação. Jámais adoptarei livros de methodo

e doutrinas oppostas para o ensino de uma mesma matéria [idem, p. 303].

Assim, seguindo o pensamento de Prates, mesmo que as obrasadotadas não fossem as desejadas, pelo menos o critério da unidade deensino estaria de certa forma garantido através da adoção das “contrafa-ções inconvenientes”.

Outro exemplo da adaptação das estratégias governamentais decelebração da referida unidade, a menores custos, estaria na intenção desubstituir a Cartilha maternal pela sua edição em “ponto grande”, queseriam os mapas murais a serem usados na primeira seção da primeiraclasse (idem, ibidem). Eis algumas argumentações do inspetor geral nessesentido, em 1896:

Tenho observado que as crianças inutilisam quatro exemplares deste livro

antes de aprendel-o, ao passo que os mappas se conservam por muitos annos.

Assim, além de economica, é esta medida exigida pela moderna pedagogia;

della depende a definitiva implantação nas nossas escolas dos modos de en-

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sino simultaneo e mixto, os unicos que a escola publica póde com vantagem

empregar; e além disso são os regulamentares conforme estatúe o artigo 54

do regulamento [idem, ibidem].

E em 1897:

podemos adquirir uma edição baratissima dos mappas muraes, da Cartilha

Maternal e do segundo livro (Deveres dos filhos): e mais que, mediante uma

razoavel remmuneração, conseguiriamos da digna viuva do illustre autor a

concessão necessaria para ser tirada uma edicção daquellas obras, eliminando-

se da Cartilha Maternal as longas explicações e o volumoso appendice que

tornam carissima e que só servem para o professor aprender o grande e im-

portante methodo. Os mappas servirão para ensinar a ler á primeira classe e a

Cartilha será distribuida aos alumnos de leitura da segunda secção da primeira

classe. A cada professor fornecerá o Estado um exemplar da Cartilha com

todas as explicações e com o appendice para servir de guia indispensavel

[Relatorio..., 1897, pp. 410-411].

Podemos observar através da voz de Prates diversas estratégias pen-sadas pelo governo gaúcho para adquirir e distribuir a cartilha, o guia,os mapas murais e o segundo livro do poeta luso nas aulas públicas,bem como localizar a preocupação com contrafações da obra de João deDeus, em outro fragmento de seu relatório para o Secretário do Interiore Exterior, João Abbott:

Reitero o que sobre este assumpto tive a honra de dizer vos em meu relatório

do anno passado. Continúa o mesmo mal; penso, porém, tomar serias provi-

dencias a respeito na proxima reunião do conselho escolar, porque pretendo

nomear uma commissão de membros daquella corporação para examinar os

livros em uso e dar parecer fundamentado sobre os que julgar mais em con-

dições de serem adoptados. Nessa escolha se terá em vista a unidade da dou-

trina e os methodos.

Impressionado com as péssimas consequencias da diversidade de livros es-

colares de que vos falei no meu relatorio do anno passado, tomei a resolução

de dirigir-vos officio n. 266, de 3 de abril do corrente anno, no qual eu pon-

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derava que desde que fôra publicada a primorosa e inimitavel Cartilha Ma-

ternal do inolvidavel João de Deus, começaram a aparecer as contrafacções,

com grande prejuizo para o ensino, porque todas, visando somente o escopo

mercantil, deturpavam o maravilhoso invento.

Infelizmente estas contrafacções (como sempre sóe acontecer) repelliram do

mercado brazileiro a grandiosa obra do grande homem; e o nosso Estado,

como todos os da União, tem sido forçado a distribuir pelas escolas publicas

as referidas contrafacções. Penso, porém, que podemos conseguir emancipar

o ensino desses maús livros [idem, ibidem].

Acredito que foram exatamente os pontos que diferenciavam as duascartilhas gaúchas – Nacional e Mestra – da cartilha produzida por Joãode Deus – Maternal – que levaram os representantes do governo a loca-lizar aí a diversidade de doutrinas e métodos, reconhecendo-as, então,como “contrafações inconvenientes” da obra lusa. Isto sugere que elesacreditavam ser possível produzir-se uma contrafação conveniente, oumelhor, uma cópia adequada da referida cartilha portuguesa. De formabastante resumida, poderíamos dizer que o método João de Deus e aCartilha maternal permitiam a exploração da face fônica da língua e desua relação com a escrita a partir da análise de palavras, tendo a origina-lidade de manter a unidade gráfica das palavras e, facilitando, assim, asua análise estrutural; a Cartilha nacional se diferencia da cartilha por-tuguesa e da outra cartilha gaúcha – a Mestra –, por privilegiar o ensinosimultâneo da leitura e da escrita; a Cartilha mestra, por sua vez, sediferencia das outras duas obras – Maternal e Nacional –, por privilegiaro uso da imagem no ensino da leitura; tanto a Nacional quanto a Mestrase distinguiam da Maternal por apresentarem frases desde as primeiraslições e por conterem uma seqüência diferenciada dessa obra para oensino das letras e seus valores, especialmente a partir das consoantesincertas.

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Surge, enfim, a possibilidade de adotar cartilhagaúcha “mais aproximada” ao método João de Deus

Ao enfatizarmos as contingências, em vez das causas, na análisedos fragmentos dos relatórios de instrução, podemos entender osurgimento de determinados eventos históricos, não previstos, comoresultado de uma série de relações complexas com outros eventos(Kendall & Wickhan, 1999). Essa ênfase nas contingências é funda-mental para que possamos realizar análises conjunturais, isto é, análisesque estejam imersas em seu meio, que sejam descritivas, históricas econtextualmente específicas (Nelson, Treichler & Grossberg, 1995). Cabeobservar também que a análise cultural nos permite localizar artefatosculturais que trazem as marcas de discursos pedagógicos que eram maisvalorizados pelos representantes do governo gaúcho à época, conside-rando que, para dar conta da reorganização política no regime republi-cano, haviam discursos que eram reconhecidos como verdadeiros àépoca, bem como aqueles sujeitos que eram considerados qualificadospara enunciá-los. Inspirada em Foucault (1998), observo que determi-nados rituais definiam a qualificação que deveriam possuir os indiví-duos que falavam e as posições que ocupariam na ordem do discurso. Aanálise das atas do Conselho Escolar permite que se ouça, através dasvozes de seus membros, discursos sobre educação, alfabetização, infân-cia, escola etc., que conduziram o exame e a adoção de certas obrasdidáticas. Tais vozes, ao mesmo tempo que foram produzidas nessamoldura histórica, participaram da produção do sujeito moderno, repu-blicano, brasileiro e, no nosso contexto, gaúcho, conformado por essadiversidade de discursos e representações. Tal produção passa a ser vis-ta como fluida e incerta, já que não existe uma verdade única, mas ver-dades que foram construídas cientificamente, como os métodos dealfabetização, por exemplo. Representações, indícios, sinais e marcasdesses discursos são examinados a seguir em alguns fragmentos dasatas do Conselho Escolar, tendo presente que nem os artefatos por sipróprios – cartilhas, relatórios, legislação – nem os usuários da lingua-gem – autores/as, editores/as, governantes, professores/as, alunos/as –podem fixar sentidos únicos na linguagem.

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Entre os livros apresentados para exame pelo Conselho Escolar noano de 1902, estavam os “Livros de leitura – 1º e 2º – por um professor,que se achavam adoptados provisoriamente” (ATAS..., 1902, p. 36). Taladoção ocorreu a partir da autorização concedida pelo conselho, no anode 1901, para que o inspetor geral adotasse quaisquer livros para o anode 1902, a título de experiência, apresentando-os posteriormente ao con-selho para que recebessem parecer, como podemos constatar a seguir.

O Sr. Inspector Escolar declarou que, tendo o Conselho em sua ultima reu-

nião, consedido-lhe autorização para titulo de esperiencia, destribuir pelas

escolas, adoptando provisoriamente, quaesquer livros de leitura (1º e 2º) que

mais se aproximassem do Methodo João de Deus, não havia se utilizado

d’essa autorização: não só por que não appareceram ditos livros: porem que

si o conselho assim o entendesse, poderia ratificar á autorização a respeito. O

Sr. Brandão Junior, tomando a palavra propoz que não só se ratificasse aque-

la autorização, quanto aos mencionados livros como quaesquer outros que o

Sr. Inspector Geral julgar de conveniência para o ensino, apresentando-os

depois ao Conselho para sobre elles elaborar parecer. Foi approvada esta

proposta por todos os Srs. Presentes [ATAs..., 1901, p. 34].

Os pareceres dados pelo conselho, no ano de 1902, a essas duasobras de autor anônimo adotadas provisoriamente como Cartilhaprimária e 2° livro em continuação da mesma por um professor, permitemobservar o uso das duas denominações para a mesma obra:

Posto em discussão o parecer sobre os livros Cartilha primaria e 2º livro em

continuação da mesma, por um professor. Tomou a palavra o Sr. João Maia

e, achando acceitavel a cartilha, apontou diversos erros do 2º livro, mostran-

do não poder ser o mesmo approvado. Tomando a palavra o Sr. Toscano

apresentou o seguinte substitutivo: “A commissão teve a seu cargo o estudo

dos 1° e 2° livros de leitura por um professor, depois da discussão do parecer

por ella elaborado e das ponderações feitas pelo Sr. Dr. Inspector Geral, a

respeito, propõe como substitutivo ás conclusões do mesmo: 1° – Que seja

approvado o primeiro livro. 2° – Que o segundo livro, tal como se acha, não

pode ser approvado” [ATAS..., 1902, p. 40, grifos meus].

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Não tive acesso a nenhuma obra didática que tivesse a denominaçãoPrimeiro livro por um professor ou Cartilha primária, mas pude exami-nar quatro exemplares de livros didáticos da editora Selbach, sendo doisexemplares da Cartilha maternal e dois do Segundo livro de leitura.Dos quatro exemplares, uma edição da cartilha e uma do segundo livrosão de autor anônimo, mas os outros dois exemplares aparecem com aautoria reconhecida, pertencendo a um mesmo autor, José Carlos FerreiraGomes10. O exame desses quatro exemplares e as denominações recebi-das por essas obras em diversos documentos permite reconhecer a Car-tilha maternal como sendo a Cartilha primária em sua edição no RioGrande do Sul. Vemos a seguir a referência que seu autor faz à Cartilhamaternal pelo methodo João de Deus na folha de rosto de um dos exem-plares examinados de seu segundo livro, e que me permite fazer tal afir-mação:

Aos meus Collegas

Tendo escripto a “Cartilha Maternal” pelo Methodo “João de Deus”, pareceu-

me necessário este pequeno segundo livro, em qual se observasse ainda uma

parte daquele methodo e facilitasse a passagem da formação de syllabas e das

palavras, para uma leitura fácil.

O Auctor [Gomes [?], s.d., p. 2, grifo meu].

10 O autor da Cartilha maternal, edição da Selbach, é José Carlos Ferreira Gomes. Aoque parece, Gomes foi Diretor do Almoxarifado da Instrução Pública, pois assina-va mapas demonstrativos dos objetos recebidos e distribuídos pela Instrução Pú-blica, juntamente com o almoxarife responsável por sua distribuição, como podemosconstatar em mapa de 1898, anexado ao final de relatório da Instrução Pública(RELATORIO..., 1898). Outra referência a esse autor didático encontramos em ata doConselho Escolar, constando que, por iniciativa de um dos membros do conselho,o inspetor da 5. Região, sr. Manoel da Costa Brandão Jr., apoiado pela unanimida-de dos demais membros do mesmo conselho, “resolve lançar na acta de seus traba-lhos imaugurses da sessão de 1093 um voto de sincero pesar pelo passamento deseu secretario, o cidadão José Carlos Ferreira Gomes, cuja dedicação, inteligênciae probeidade, exercitadas em longa e laboriosa carreira de funcionário publico seapraz em constatar solesmente, como uma legitima homenagem á sua carreira res-peitosa” (ATAS..., 1903, p. 43).

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Merece atenção nesse momento, frente à possível constatação daexistência de uma contrafação que mais se aproximava da Cartilhamaternal (Deus, 1996)11 de João de Deus, a questão dos direitos auto-rais. Desde 1827, existia no Brasil uma lei imperial defendendo os di-reitos autorais e instituindo o “privilégio exclusivo da obra” por dezanos para quem produzisse compêndios das matérias a serem ensinadasnas Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda (A luta..., 2001).Em 1830, o Código Criminal estabelecia sanções penais para infratoresde contrafação, que correspondia à “reprodução não autorizada de obraintelectual” (idem, p.1).

Em 1891, com a Constituição republicana, a matéria foi contempla-da e aprimorada e, em 1916, o Direito de Autor saiu do campo teórico-jurídico para ingressar na esfera prática, com a criação das associaçõesarrecadadoras (idem). Com o Código Civil de 1916, estendeu-se o pra-zo para a duração dos direitos autorais, fixado em sessenta anos após amorte do/a autor/a, desde que em consonância com a legislação do paísonde a obra tivesse sido editada pela primeira vez (Torresini, 1999, p. 48).

Ao discutir a pirataria dos direitos autorais, Hallewell (1985) obser-va que não existiu proteção internacional dos direitos autorais no Brasilaté 1912, sublinhando que essa situação tinha sido de fundamental im-portância para a sobrevivência das editoras nacionais. O autor observatambém que o artigo 261 do Código Criminal de 1830, já citado, querezava que seria crime “imprimir, gravar, litographar ou introduzir quaes-quer escriptos ou estampas que tivessem sido feitos, compostos outraduzidos por cidadãos brazileiros enquanto estes viverem e dez annosdepois de sua morte se deixarem herdeiros” (Hallewell, 1985, p. 171),parece ter permanecido letra morta. Além disso, informa que nem aconstituição de 1891 ou a lei n. 946, de 1º de agosto de 1898, indicariama participação do Brasil em um acordo internacional sobre os direitosautorais, garantindo apenas proteção a obras de cidadãos brasileiros eestrangeiros residentes no país. Ou seja: os direitos autorais de estran-

11 O exemplar da Cartilha (Deus, 1996) utlilizado para análise nesta seção correspondeà cópia fac-similada da 1ª edição, publicada em 1876.

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geiros e de brasileiros estavam se constituindo entre o final do séculoXIX e início do século XX.

Ainda segundo Hallewell (1985), a execução da lei de direitos auto-rais se tornará quase uma opção dos estados com o advento da Repúbli-ca, o que permitiu que algumas editoras fizessem da publicação ilegalsua principal atividade. Para esse autor, em nenhum outro estado issoficou mais evidente do que no Rio Grande do Sul. Ele identifica que asobras de autores portugueses eram particularmente atraentes para re-produção indevida, pois, assim, evitavam-se os custos de uma tradução,citando Borba de Moraes (idem, p. 311), que creditou ao primeiro gover-no republicano gaúcho o desrespeito aos direitos autorais: “No Brasil,em fins do século XIX e princípios deste, os editores rio-grandenses,protegidos por uma constituição positivista, imprimiam toda sorte delivros sem autorização dos editores legítimos e sem pagar direitos au-torais”. Ainda que Hallewell pontue que firma alguma é mencionada àépoca por Moraes, este autor reconheceria como principal culpada aeditora gaúcha mais importante dessa época, que seria a livraria Ameri-cana. Quanto à livraria Selbach, de J. R. da Fonseca & Cia., que editoue distribuiu a Cartilha maternal para as aulas públicas na Primeira Re-pública, não há nenhuma menção no seu estudo sobre possíveis pu-blicações irregulares de obras estrangeiras.

Em estudos sobre o direito autoral, Quartucci e Pereira (2001) enfa-tizam a importância do uso dos verbos reproduzir ou utilizar, e tal argu-mentação me permite interpretar que, nesse período, as contrafaçõescorresponderiam à reprodução e não à utilização da obra de determina-do/a autor/a. Poderíamos interpretar, então, que as contrafações gaúchasda Cartilha maternal não seriam a reprodução da obra original, mas ouso de seu método, que ainda não era penalizado como cópia, já queeram diferentes da obra original, embora essas diferenças fossem apa-rentemente discretas.

Chartier (1998, p. 53) nos auxilia a prosseguir nessa argumentaçãoao referir que havia traços, já nos livros impressos do século XVI, quemanifestariam “a atribuição do texto a um indivíduo particular, designadocomo seu autor”, sendo que “a mais espetacular dessas marcas [segundoele, seria] a representação física do autor, em seu livro”, através de sua

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foto. A nova edição da Cartilha maternal, publicada em 1925 ou anterior-mente, traz no verso da folha de rosto: “Ficam reservados todos os direitosgarantidos pela lei”, e a 96ª edição, que é posterior à década de 1930, jáque segue o acordo ortográfico de 1931 e o decreto nacional de 1938,apresenta no verso da folha de rosto a foto de João de Deus, com suaassinatura abaixo. Devo observar que no primeiro exemplar citado oautor não é mencionado, o que apontaria para João de Deus se, no segun-do exemplar, não aparecesse o nome de José Carlos Ferreira Gomes.Assim, a Cartilha maternal, em sua edição gaúcha, inicialmente de autoranônimo e, depois, com autoria identificada, não desrespeitaria o direitodo autor, pois não seria considerada reprodução por apresentar na suamaterialidade diferenças em relação à obra original e porque “utiliza” ométodo criado por João de Deus legalmente amparado, já que a “espiri-tualidade de criação do autor” não era vinculada, ainda, ao direito autoral(Quartucci & Pereira, 2001).

Resumindo: problemas quanto ao fornecimento de livros, associadosao preço e à necessidade de que estes atendessem à determinação go-vernamental de adoção do método oficial de leitura, mostram como umacontrafação – a Cartilha primária/Primeiro livro por um professor –torna-se aproximação da Cartilha maternal, permitindo inclusive suaadoção e, ao que parece, sem o descumprimento dos direitos autorais.

Temos aqui um redimensionamento do discurso sobre a Cartilhamaternal, pois determinadas contrafações dessa obra permanecem como“inconvenientes”, enquanto o governo aventa a possibilidade de surgi-rem no mercado editorial cartilhas que representem melhores “aproxi-mações” do método oficial.

Novos deslizamentos: quando a Cartilha maternalvira “adaptação” da Cartilha maternal

O método João de Deus sofre aculturações ao ser transplantado deum contexto onde foi produzido, Portugal, para o estado do Rio Grandedo Sul, onde foi reapropriado segundo necessidades locais, como porexemplo, a sua “adaptação” ao português falado e escrito no Brasil,

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através da adoção de uma cartilha reconhecida como “similar”, quematerializaria esse processo. Vejamos, nesta seção, como isso ocorre aolocalizarmos tanto a cartilha gaúcha quanto a portuguesa como textosmultidiscursivos.

Considerando texto como linguagem em uso, ou seja, qualquerexemplo de linguagem escrita e/ou falada que tenha coerência e signifi-cados codificados e, ao localizar esses textos, de modo mais geral, comovisuais, audiovisuais e gestuais. Luke (1996) reconhece-os como arte-fatos do trabalho dos sujeitos na produção do significado, isto é, comomomentos de intersubjetividade entre escritores, leitores, falantes e ou-vintes, cujas intenções não são evidentes sem recorrer a um outro texto.Ressaltando que os textos não são aleatórios, nem arbitrários, nem uni-dades solitárias que requerem que comecemos de um esboço em cadaevento discursivo, o autor observa que os textos se conectam uns comos outros e se referem uns aos outros, às vezes sistematicamente, àsvezes através da escolha e deliberação do autor e às vezes através dacoincidência. Assim, “todos os textos são, na verdade, multidiscursivos,ou seja, eles se guiam por uma variedade de discursos, campos de co-nhecimento e vozes” (Luke, 1996, p. 15).

Os discursos, por sua vez, ao serem concebidos como práticas so-ciais, imbricam-se em outras práticas sociais. Dessa forma, o discursose vê conformado pelas situações, estruturas e relações sociais etc. e,por sua vez, as conforma e incide sobre elas, consolidando-as, questio-nando-as (Rojo, Pardo & Whittaker, 1998). As autoras ressalvam, ainda,que a noção de discurso presente nestas investigações não pode ser a dodiscurso como reflexo dos acontecimentos, das relações sociais e dossujeitos. Ou seja, o discurso é interpretado como “conjunto de enuncia-dos que se apóiam em formações discursivas, que são definidos em umdeterminado quadro de condições de existência” (Costa & Silveira, 1997,p. 10).

Dessa forma, dependendo de como olhamos para determinadas ques-tões, podemos dar respostas diversas ou, pelo menos, podemos com-preendê-las de outra forma, como no caso do desrespeito aos direitosautorais. Na verdade, a edição gaúcha da Cartilha maternal teve a cartilhaportuguesa e seu método como referência, como aconteceu com essa

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obra em relação a obras didáticas francesas, já que o método de ensinoda leitura de João de Deus, publicado em 1876, se aproximaria tambémdo método de Régimbeau, publicado em 1866, ao apresentar as letraspor seus valores fônicos. Ou seja, novas conexões ou rearticulaçõesdependem de condições concretas de existência – para que apareçam dealguma maneira –, e as mesmas podem ser desarticuladas, conformedeterminadas circunstâncias (Hall,1998), como podemos constataratravés da análise de um outro fragmento dos relatórios de instrução,em que o inspetor geral retoma mais uma vez a discussão da compra daCartilha maternal, buscando relembrar as dificuldades de sua aquisiçãopor preço mais acessível, ao mesmo tempo que indica a adoção daCartilha primária:

Ainda no anno passado vos ponderei que por motivos de ordem econômica,

era-me impossível fornecer ás escolas a “Cartilha Maternal”, de João de Deus.

Tenho diversas vezes dito que o livro actualmente fornecido não satizfaz as

exigências do methodo ordenado pela lei; mas emquanto não desapparecerem

as razões apontadas em outros relatorios ou emquanto não tivermos outro

livro que mais se aproxime do methodo legal, estamos forçados a distribuir

pelas nossas escolas actuaes 1º e 2º livros de Samorim.

Dizia-vos eu, então, que logo que me fosse possivel, de acordo com a lei,

cumpria as vossas ordens, fazendo a substituição lembrada.

No fim do anno passado, appareceram no mercado a “Cartilha Primária” e o

“Segundo Livro” pelo methodo João de Deus, por um professor rio-grandense.

Com auctorisação do Conselho, distribui, como experiência, pelas escolas,

estes dois livros, recomendando a diversos professores competentes que me

communicassem os resultados obtidos com os referidos livros.

Deixo de manifestar-me sobre o merecimento dessas obras por não terem

ellas sido ainda definitivamente aprovadas pelo Conselho Escolar.

Abstrahindo do ensino da lettra manuscripta, a “Cartilha Primaria” adoptou

ou procurou adoptar o methodo de João de Deus aos usos e costumes da lín-

gua portugueza fallada no Brazil [RELATORIO..., 1902, pp. 212-213, grifo meu].

O próprio Prates reconheceu que o que distinguia a Cartilha primá-ria (Cartilha maternal, edição da Selbach, e todas as demais nomeações

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que obteve), obra que mais se aproximaria da Cartilha maternal, ediçãoportuguesa, era a adoção do ensino da letra manuscrita, pois, como jávimos, João de Deus se ateve, com seu método e sua cartilha, ao ensinoda leitura. Neste fragmento de relatório, pode se perceber também a preo-cupação do governo com a adequação das cartilhas adotadas ao portuguêsfalado no Brasil. Ou seja: a cartilha reconhecida como a que mais seaproximaria da obra de João de Deus levaria em conta o português faladono Brasil, e não mais o português escrito em Portugal.

A presença da letra manuscrita na Cartilha maternal, edição daSelbach, nos mostra que tal cartilha estaria privilegiando o ensino si-multâneo da leitura e da escrita e que, portanto, estaria mais de acordocom as prescrições governamentais determinadas para a primeira seçãoda primeira classe do programa do ensino elementar no ano de 1899. ACartilha maternal, edição portuguesa, na medida em que privilegiavasomente a arte da leitura, não atenderia a essas determinações, tantoque, em Portugal, levou a que um amigo de João de Deus criasse ummétodo de ensino da escrita (Arcozello, 1879) para contemplar o ensinoda leitura. Dessa forma, uma imagem de alfabetismo pode ser visibilizadana estrutura que as cartilhas recebiam de seus autores. Embora João deDeus considerasse as habilidades da leitura e da escrita como processosdiversos que merecessem atenções diversas, histórica e contextualmente,as marcas dos apetrechos disponíveis para essas aprendizagens nos per-mitem constatar que a leitura antecedia a aprendizagem da escrita ouque, pelo menos, até o final do século XIX, era mais acessível.

A Cartilha maternal, edição da Selbach, em quaisquer dos exem-plares examinados (Gomes [?], s.d.; Gomes, s.d.), apresentava a mesmaseqüência das lições da cartilha original, excluindo o guia dos exempla-res gaúchos. Quando Prates afirma que a Cartilha primária, que venhoconsiderando como a Cartilha maternal, edição da Selbach, privilegia-ria o português falado no Brasil, devia estar mencionando que algumaspalavras receberiam a ortografia mais usada à época no Brasil, comovae, doe, pôde, póde, pões, dispões, feijão, pássaro, óculo, lágrimas,pêssego (Gomes [?], s.d.) diversamente de Portugal, como vai, doi, poude,põi, dispõis, feijães, passaro, oculo, lagrima, pecego (Deus, 1996), e ainclusão de algumas palavras nas edições da Selbach, que não constam

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na obra “original” portuguesa e que seriam fatiota, data, datada, lata,abalada, bolo, lobo, avô, fouce, coca, gúela, uso, xarope, acção, brinca,honra, horizonte, hesitar, herdar etc. O número de palavras de cada liçãonos exemplares da Selbach examinados é igual ou maior que o númerode palavras do exemplar examinado da cartilha portuguesa.

A Cartilha maternal, edição da Selbach, nos apresenta o ler e oescrever juntos na mesma página e aponta para a simultaneidade dessasaprendizagens; o contar é deixado para as páginas finais da cartilha. Taldivisão pode indicar uma aprendizagem que se sucederia ao ler e aoescrever (que aparecem na mesma página), uma vez que exigiria o usode outros símbolos, ideográficos, diferenciando-se, portanto, da represen-tação alfabética da língua portuguesa. Os dois exemplares da Selbachincluíam seis alfabetos ao final, em letras manuscritas e de imprensa,maiúsculas e minúsculas, como também os algarismos de 1 a 100 e astabuadas de somar, subtrair, multiplicar e dividir.

Na 96ª edição da Cartilha maternal, edição da Selbach, em conse-qüência de alteração na ortografia de algumas palavras, alguns valoresfonéticos passam a ser representados por outros grafemas, como no casodas letras simples (k, y, w) e duplas (th, rh, ph), que tiveram palavrasdeslocadas para outras lições: quilometro, cristo, fósforos etc. Houvetambém a inclusão do acento em palavras que até então não eram acentua-das. A nota que acompanha a 39ª edição do segundo livro traz essasinformações sobre a reforma ortográfica e o acordo realizado entre Brasile Portugal. As datas do acordo (1931) e da nova legislação (1938) nospermitem concluir que a 96ª edição da Cartilha maternal pela Selbachsó pode ser do final da década de 1930 ou posterior. Os editores informamsobre esse acordo ao fim do Segundo livro de leitura, de José CarlosFerreira Gomes (s.d.), que, como já vimos, seria o mesmo autor da Car-tilha maternal, editada pela Selbach.

Nota ao professor

O dec.-lei 292, de 23 de fevereiro de 1938, tornou obrigatório o uso da orto-

grafia nacional, resultante do acordo a que se refere o dec. 20-108, de 15 de

junho de 1931, entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciên-

cias de Lisboa, e deu outras providências.

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Em virtude desta disposição legal, foram proscritas as letras K, W, e Y.

Deverá o sr. Professor explicar, ao aluno, a razão de ser desta supressão, bem

como a permanência das citadas letras nos vocábulos estrangeiros geográfi-

cos ou derivados de nomes próprios e na abreviatura das palavras: “quilo”,

“quilômetro” e “quilolitro”.

Assim, também, fará ver que se devem conservar os nomes próprios

alienígenas na sua forma vernácula respectiva, dando preferência, entretan-

to, se as houver, às formas vernáculas correspondentes, já incorporadas ao

patrimônio da nossa língua.

Os editôres.

Tal acordo visibiliza a afirmação do Português Brasileiro e sua dife-renciação do Português de Portugal, com a materialização desse proces-so através de prescrições criadas pela Academia Brasileira de Letras epelo acordo dessa corporação com a Academia de Ciências de Lisboa,em 1931, que se tornou conhecido pelo decreto-lei citado, de 1938.Guimarães (1996, p. 135) interpreta tais discussões sobre a unificaçãoda ortografia do Português como uma forma de garantir “a unidade doPortuguês de Portugal e do Brasil, sob o pretexto da necessidade detroca cultural entre os dois países (e os demais países de Língua Portu-guesa)”. Ao que parece, a cartilha reconhecida como “mais aproxima-da”, a edição gaúcha da obra lusa, materializou esse processo.

Conclusões

A análise de cartilhas como textos culturais torna evidente a inter-textualidade e interdiscursividade de uma época, em que obras reconhe-cidas como originais se perdem em novas obras que também seriamreconhecidas de tal forma. Dito de outra maneira, isto significa que,quando as cartilhas são vistas como contrafações da Cartilha maternal,mostram nas nuanças apresentadas antes a sua diversidade, o que fazcom que possam ser reconhecidas como contrafações “inconvenientes”ou “similares” da obra original não pelo desrespeito aos direitos autorais,como poderíamos imaginar, mas pela maior ou menor aproximação àobra original.

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Assim, entre prescrições e contingências, entre discursos e suas re-presentações, foram produzidas tais obras em contextos diversos e tem-pos mais ou menos próximos. A aquisição da Cartilha maternal, pormeio de contatos com a família do autor, é marcada por impedimentosnem sempre claros, registrados nos relatórios da Instrução Pública doEstado. Os custos aos cofres públicos de sua importação foram discutidosnesses relatórios, bem como as formas de garantir sua edição a um valormais acessível. O uso de uma contrafação que se assemelhasse bastanteà Cartilha maternal e a seu método acabou se impondo.

Embora não haja em tais relatórios qualquer indicação sobre o usoda Cartilha maternal, de João de Deus, para construir a universalizaçãoda língua portuguesa, eram exaustivos os relatos quanto a preocupaçõescom o ensino da língua portuguesa como se fosse uma língua estrangei-ra nas escolas das áreas coloniais alemãs do Rio Grande do Sul12. Aconstituição do português como língua única e nacional corresponderiaa uma ação homogeneizadora do Estado pela via do ensino, com o ensi-no do português apagando todas as outras línguas faladas no Brasil. Ouseja, a língua portuguesa se impunha como a legitíma, a nossa, a línguapátria, através de um instrumento da sua universalização, o livro didáti-co, iniciando pelo primeiro livro escolar, a cartilha. Arrisco pensar que aanálise fonética da palavra, própria do método João de Deus, pudesseser considerada como elemento facilitador do idioma português nas re-giões coloniais do estado, onde a língua vernácula seria o alemão ou oitaliano. Logicamente, a língua portuguesa não era mais lusa, mas“abrasileirava-se”, o mesmo ocorrendo com a Cartilha maternal gaú-cha, que ao virar contrafação da lusa, adaptava-se aos usos e costumesdo português falado e escrito no Brasil.

12 Cf. Trindade (2002b).

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O texto analisa os planos de estudo das escolas públicas elementares no período do ParanáProvincial, tomando como fonte principal os relatórios dos presidentes da província e osrelatórios dos inspetores gerais da Instrução Pública. Emancipada de São Paulo, a Provín-cia do Paraná precisava firmar-se política e administrativamente. Para tal, o presidente daprovíncia elegeu a educação e a uniformização do ensino como metas prioritárias de seugoverno. Estes objetivos deveriam ser atingidos pela adoção de um plano de estudosúnico, direcionado para a formação do indivíduo, implicando o cultivo dos valores doEstado, visando uma educação nacional, e dos princípios da moral cristã, ou seja, dadoutrina da religião católica.INSTRUÇÃO PÚBLICA; ENSINO ELEMENTAR; PLANO DE ESTUDOS; PARANÁPROVINCIAL; SÉCULO XIX.

This work analizes the programs of study of the public elementary schools during thetime when Paraná was a province, using as its main source the reports of the Presidents ofthe Province and of the General Inspectors of Public Instruction. Once disassociated fromSão Paulo, the Province of Paraná sought to establish a political and administrative identity.The President of the Province identified as a priority of the government the creation of auniform educational system. This objective would to be achieved through the adoption ofa unique program of studies that was oriented to the development of the individual, andincluded the cultivation of the values promoted by the State. The result was an educationalsystem that was based on the principles of Christian morals, that is, on the doctrine of theCatholic religion.PUBLIC EDUCATION; ELEMENTARY EDUCATION; SYLLABUS; PARANÁ;NINETEENTH CENTURY.

O plano de estudos das escolaspúblicas elementares na Província

do Paraná

ler e escrever, para Deus e o Estado

Ariclê Vechia*

* Doutor em história social pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni-versidade Tuiuti do Paraná. Projetos de Pesquisa: 1- O currículo da escola secundá-ria brasileira: 1838-1900, 2- A educação dos imigrantes em Curitiba: 1853-1889.

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Introdução

As lutas políticas para elevar a 5a Comarca de São Paulo à condiçãode província duraram vários anos. O governo paulista dedicava poucaatenção aos problemas e às necessidades da distante Comarca, uma vezque as reivindicações no sentido de separação de parte do territóriovinham de longa data. Deixar a 5a Comarca em estado de letargia erauma forma de impedir o movimento separatista. O ensino público, amola propulsora do desenvolvimento, não escapou desse descaso.Zacarias de Góes e Vasconcellos, logo após assumir a presidência daProvíncia do Paraná, em 1853, enviou um relatório à Assembléia Legis-lativa Provincial expondo o estado de precariedade em que se encontra-va a Instrução Pública da recém-criada província.

A Província do Paraná precisava firmar-se como uma unidade políticae administrativamente autônoma diante das demais províncias, e Curitiba,o centro das decisões políticas, precisava também assumir a primaziacultural e educacional frente às demais cidades e vilas dessa nova unidadepolítica. Curitiba, apesar de ter sido escolhida como capital, não apre-sentava qualquer nível de desenvolvimento nos setores econômico, cultu-ral ou educacional que a destacasse como capital. No tocante à educação,padecia de todos os males comuns à província; havia falta de escolas, faltade professores habilitados e baixa freqüência escolar.

Reconhecendo o problema, o presidente Zacarias de Góes e Vascon-cellos elegeu a educação como meta prioritária de seu governo. Depoisde mandar proceder um balanço da real situação do ensino, principal-mente na capital, o presidente da província e o inspetor geral da Instru-ção Pública, Joaquim Ignácio Silveira da Motta, passaram a estabelecere a colocar em prática um programa de desenvolvimento da educaçãopública elementar para a província. Dentre as inúmeras metas estabe-lecidas para tal, destacava-se a questão da uniformização do ensino emtodo o território paranaense, que deveria ser atingida pela adoção de umplano de estudos que traçaria os conteúdos a serem trabalhados, os li-vros didáticos a serem adotados e as orientações metodológicas quedeveriam nortear o ensino de cada matéria. As orientações metodológicasapontavam que o ensino deveria ser direcionado para a formação do

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indivíduo, implicando no cultivo de valores do Estado, visando umaeducação nacional e dos princípios da moral cristã, no caso específico,da doutrina da religião católica.

Estabelecendo um plano de estudos

Apesar de política e administrativamente emancipada, a provínciado Paraná continuou sendo regida pela legislação paulista no que sereferia aos assuntos educacionais, porém, com algumas alterações. A leiem vigor, à época, era a de n. 34 de 16 de março de 1846, que previaescolas específicas para cada um dos sexos e havia instituído a divisãoda instrução primária em dois níveis: escolas elementares e escolassuperiores ou de segunda ordem, onde seriam ensinadas matérias dife-renciadas para um e outro sexo e graduadas de acordo com o nível deensino a que eram destinadas. Previa também, nos seus artigos 7º e 8º, aexistência de escolas públicas chamadas promíscuas nos lugares ondenão existisse número suficiente de alunos para abrir escolas para cadaum dos sexos, bem como a existência de escolas particulares ditas de“primeiras letras” onde se ensinasse somente a leitura, a escrita, a práti-ca das quatro operações e os princípios de moral cristã e da doutrina dareligião do Estado.

O plano de estudos para as escolas primárias elementares públicasdo sexo masculino compreendia: a leitura, a escrita, teoria e prática daaritmética até proporções, inclusive, as noções mais gerais de geometriaprática, gramática da língua nacional e princípios da moral cristã e dadoutrina da religião do Estado. Para as escolas primárias superiores,deveriam ser adicionadas: noções gerais de história e geografia,especialmente do Brasil; noções das ciências físicas aplicáveis aos usosda vida. As matérias para as escolas primárias elementares para asmeninas seriam as indicadas para os meninos, com a exclusão dageometria, limitação da aritmética à teoria e prática das quatro operaçõese inclusão das prendas domésticas. Nas escolas primárias superioresdeveriam ser adicionadas noções gerais de história e geografia e música(Paraná, 1846).

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A divisão da escola primária em dois níveis, bem como o plano deestudos proposto, tinham inspiração na lei francesa de 2 de julho de1833. No entanto, segundo o presidente Zacarias de Góes e Vasconcellos,a lei de 1846 mutilou o pensamento de Guisot, uma vez que omitiavárias matérias do plano de estudos, tais como o sistema de pesos emedidas. O presidente sugeriu várias alterações, entre elas a inclusão doensino de pesos e medidas e a exclusão de geometria prática, do que alei mandava dar noções. Em relação ao ensino primário superior, opinavapor sua ampliação.

Cumpre ele, que além do objeto do ensino elementar abranja todasou a maior parte das seguintes matérias:

O desenvolvimento da aritmética e suas aplicações práticas.

A leitura explicada dos evangelhos e notícia da história sagrada.

Os elementos da história e geografia, principalmente do Brasil.

Os princípios das ciências físicas e da história natural aplicáveis aos usos da

vida [Paraná, 1854b, p. 15].

Esse rol de matérias, contudo, não necessitava ser adotado na ínte-gra em todas as escolas primárias de segundo grau, antes deveria servirde base para atender às características e aos recursos de cada localidade.Opresidente Zacarias considerava que deveria ser escolhido aquele quemelhor se adaptasse à realidade de cada classe.

Em relação ao método de ensino, o professor poderia optar peloindividual, simultâneo, mútuo ou lancasteriano, ou utilizar uma combi-nação de dois ou mais. Porém, em 27 de dezembro de 1856, o vice-presidente da província mandou que fosse observado nas escolas deprimeira ordem o seguinte plano de divisão do ensino, proposto peloinspetor geral da Instrução Pública:

Art. 1º. As escolas serão divididas em três classes, cada uma das quais, me-

nos a terceira, terá primeiro e segundo banco, conforme o grau de adianta-

mento dos alunos. Essa divisão porém, poderá ser alterada em uma ou em

todas por ordem especial do inspetor geral.

Art. 2º. A divisão do ensino pelas classes nas escolas primárias inferiores do

sexo masculino será feita do modo seguinte: 1ª classe, consistirá de 2 bancos

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o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 139

em frente da cadeira do professor, uma esquerda outro a direita, separados por

um espaço que permitia a passagem. No primeiro ensina-se a conhecer as le-

tras, e retê-las na memória fazendo estudo pela vista e decorado, acabando por

fazer junção de letras e formação de sílabas. No segundo banco ensina-se a

soletrar e a decompor as palavras em sílabas, bem como a conhecer os núme-

ros: começam os meninos a fazer linhas retas e curvas sobre o quadro preto, re-

cebendo as mais fáceis noções para se instruírem na diferença de uma e de

outra. Nesta classe não há mesa; cada banco terá meia hora de lição do profes-

sor, que fará as suas explicações no quadro preto, mandando os alunos procu-

rar nas cartas, que terão à vista, as letras, as sílabas ou palavras, que escrever,

deixando tempo suficiente para os do segundo banco fazerem exercício de tra-

ço no quadro. A segunda classe também consta de primeiro e segundo banco,

colocados por de trás da primeira. Primeiro banco: ensina-se leitura de impresso

e manuscrito, exercícios de espírito e de memória, taboada de Pitágoras, come-

ço de cálculo, principiando pela soma de números dígitos, diminuição e mul-

tiplicação; começam os meninos a fazer traços finos e grossos sobre o papel e

doutrina cristã duas vezes por semana. Segundo banco, leitura, aritmética, a

saber: noções de quantidade e unidade, regra de diminuição, teoria e prática das

quatro operações; escrita por traslado de letras grandes e pequenas; catecismo

de moral cristã com explicações racionais, que desenvolvam os princípios de

criação; doutrina da religião do estado, duas vezes por semana, como no ban-

co precedente, noção de moral civil e conjugação de verbos. Nesta classe tanto

no primeiro como no segundo banco, se farão explicações sobre o quadro pre-

to, quando se tratar de pontuação, conjugação de verbos e aritmética: durarão

as lições o mesmo tempo que na classe antecedente. Terceira classe: constará

de um só banco que fecha o fundo do anfiteatro e ensina-se leitura metódica de

prosa e verso, escrita ad libilum tirada do livro que se lê na classe, ou determi-

nada pelo professor para exercício de ortografia e análise das partes da oração

aritmética, teoria, prática e quebrados, até a regra de três inclusive, gramática,

exercício de memória, com repetição de poesia, geometria, prática (as noções

mais gerais). As explicações de ortografia, aritmética e geometria prática, dará

o professor sobre o quadro preto. A lição dura meia hora e os alunos dessa classe

trazem escritas de casa, fazendo-as na escola para análise gramatical.

Art. 3º. Ao começar a lição da terceira classe despedem-se os alunos da pri-

meira.

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Art. 4º. A divisão nas escolas femininas será a mesma, com a diferença de que

se omitem as noções de linhas na primeira classe, assim como outras noções

geométricas na terceira classe, ensinando de aritmética somente teoria e prá-

tica de somar e diminuir na segunda classe, e de multiplicar e repartir na ter-

ceira. Também o tempo do ensino é menor em cada banco, sendo vinte minutos

para cada um, menos o da terceira classe que terá meia hora, a fim de que os

40 minutos, que restam para preencher o tempo legal da escola, sejam empre-

gados no ensino do trabalho de agulha [Paraná, 1856, apud Paraná, 1858a].

O plano proposto especificava os passos que deveriam ser adotadosnas aulas segundo o método simultâneo1. Era uma tentativa de unifor-mizar o método de ensino em toda a província.

Até então, nenhuma regra havia sido estabelecida também para aadoção dos livros nas escolas primária elementares. Sua escolha dependiaunicamente do critério do professor. Conseqüentemente, a seleção eraarbitrária, resultando em variedade e falta de unidade na propagaçãodos conhecimentos e na educação pública. Em muitas escolas daprovíncia, eram adotados apenas a cartilha do padre Ignácio ou dePimentel, jornais e a leitura de manuscritos em cartas particulares. Paraimprimir ao ensino o caráter de uniformidade, o inspetor geral daInstrução Pública arrolou livros que deveriam ser adotados em cadamatéria e deu algumas orientações metodológicas que deveriam nortearcada uma delas.

[...] adotei a “Gramática de Coruja” que, posto que se ressinta de alguns de-

feitos foi a que mais adaptada achei para dar as primeira noções, para ligar e

combinar as palavras e saber delas fazer uso e emprego. Para a leitura adotei

1 Método de ensino desenvolvido em fins do século XVIII, sob inspiração de LaSalle (1651-1718). Nesse método, o agente de ensino é o professor, que instruie dirige simultaneamente diferentes classes de alunos, que realizam os trabalhosao mesmo tempo. O ensino é coletivo e apresentado aos grupos de alunos reu-nidos em função da matéria a ser ensinada. A reunião dos alunos em grupos ouclasses é feita de acordo com o grau de aquisições e conhecimentos (Pierre Lesage,“La Pedagogie dans les Écoles Mutuelles au XIX siecle”, Revue Française dePedagogie, p. 62, em Bastos & Faria Filho, 1999, pp. 96-97).

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as “Lições de História do Brasil” do mesmo autor, no intuito de auxiliar o

progresso intelectual dos alunos com o moral. Aí vão eles apanhar a cadeia de

sucessos mais notáveis que ocorreram desde as primeiras peregrinações da

civilização na nossa terra. Assim se pratica em outros países onde se propor-

ciona a puericia com o conhecimento da língua o da história do seu país.

No mesmo intuito e no de exercitar a leitura animada, com entonação e metrifi-

cação da voz, mandei fazer uso, para as classes mais adiantadas, das poesias

escolhidas do padre Caldas. Proscrevo das escolas o uso das fábulas, porque

as suas ilações morais estão fora do alcance da inteligência das crianças e julgo

menos sensato que se procure tão desviado caminho para com ficção se ensi-

nar a verdade. Também proscrevo as epístolas particulares para exercícios de

leitura de manuscrito, porque além de se não poderem evitar erros de ortografia

e de linguagem em que podem abundar, ocupam o espírito das crianças com

frivolidades e às vezes com reserva que não convém violar.

Sob proposta minha foi adotado o compêndio de Aritmética de Manoel

Augusto de Figueiredo [...].

Falta-nos algum livro que instrua a mocidade com noções claras de moral

civil. Estas idéias precisam os meninos aprenderem na escola, porque elas

completam o fim de um plano geral de educação nacional [...].

Para o ensino religioso está adotado pela Assembléia paulistana o Catecismo

de Fleury, traduzido pelo conselheiro Manoel Joaquim do Amaral Gurgel;

esse Catecismo para moral religiosa e para a moral e doutrina a Cartilha de

Pimentel são as obras que ora faço usar nas escolas [...]. Convém dirigir o

ensino na parte religiosa de modo que o professor não só faça um ensino

geral de moral cristã, como outro positivo moral e dogmático – só assim a

educação atingirá seu maior grau de perfetibilidade promovendo a propaga-

ção das luzes e de virtudes pela fé e crença religiosa, porque se as escolas

populares se preocuparem do desenvolvimento do espírito, sem levá-lo aos

sentimentos de amor e justiça para com seu Criador e Redentor, próprio a

dirigi-lo em suas ações; estas escolas fariam mais mal do que bem [...].

Para o ensino da geometria prática penso que pode-se adotar as noções mais

gerais tiradas da obra de Ottoni [...]. Não tenho me pronunciado sobre os

silabários [...]. Para o ensino da caligrafia mandei vir as coleções de trasla-

dos caligráficos de Ciryllo Dilermando da Silva e recomendei a adoção do

compêndio de Ventura. Também já submeti a V. Exa. a bela tradução da obra

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inglesa: Fáceis lições sobre matéria de dinheiro, para uso da mocidade. Julgo

que se pode adotar esse livro para leitura da última classe porque embora

pareça sugerido pelo industrialismo britânico adaptado aos seus hábitos, ele

fornece noções econômicas exatas e certas que a todos convém saber [Paraná,

1856, pp. 25-28].

As orientações metodológicas dadas pelo inspetor geral da Instru-ção Pública são indicadores dos objetivos e da abordagem que deveriaser dada ao ensino ministrado na escola primária elementar. Primeira-mente, sugeria a integração dos conteúdos da língua portuguesa com osde história do Brasil, visando não só ao desenvolvimento intelectualmas também ao aspecto moral do aluno; as aulas de catecismo não de-veriam ser dogmáticas, antes, deveriam ser voltadas para o desenvolvi-mento moral. Enfim, todas as matérias deveriam ser direcionadas para aformação do indivíduo, implicando o cultivo de valores de acordo coma moral cristã, no caso específico, com a religião católica; não apenaspara a transmissão de conhecimentos pura e simplesmente, uma vez quea meta maior a ser atingida era um plano de educação nacional.

Os professores públicos de Curitiba, ao que parece, seguiam, emparte, as disposições legais. Em 1854, a professora Maria do Carmo deMorais, além do ensino da aritmética, da leitura, da escrita e da gramáti-ca da língua nacional, ensinava o catecismo para as meninas, porém, ométodo adotado visava apenas a transmissão dos dogmas da Igreja cató-lica, que eram decorados pelas alunas. Segundo a relação de alunas daque-le ano, muitas sabiam “toda a doutrina de cor”, outras sabiam o “Credo”,“os mandamentos”, “artigos de fé” e a “Oração Dominical” (Paraná,1854a, p. 60). Em 1857, o inspetor da Instrução Pública, Bento Fernandesde Barros, em sua visita de inspeção à escola do professor João BatistaBrandão de Proença, constatou que este seguia as disposições regulamen-tares, exceto uma, por impossibilidade da disposição de um banco fe-chando o fundo do anfiteatro, na forma das instruções de 27 de dezembrode 1856. Embora o inspetor não fizesse menção de que o professor en-sinava catecismo e moral cristã, este fato está implícito, uma vez queafirmava que o professor seguia as disposições regulamentares e indi-cou a única não cumprida (Dezenove de Dezembro, 1857, p. 4).

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A tarefa do professor era bastante árdua. Congregava em um mes-mo espaço alunos de diferentes níveis de aprendizagem; em cada bancoera ensinado um conteúdo diferente e o tempo dedicado aos alunos decada banco era de apenas vinte ou trinta minutos. Outros fatoresintervenientes afetavam o aproveitamento dos alunos. Não havia casasescolares próprias, em geral as escolas funcionavam na residência doprofessor, sendo quase sempre desprovidas de móveis e utensílios, taiscomo mesas, cadeiras, bancos, quadro de giz, lousas, tinteiros e demaismateriais (Paraná, 1856, pp. 25-28).

O Regulamento para as escolas de Instrução Primária de 1857 propôsnovo plano de estudos para as escolas de primeira e de segunda ordem,distinguindo-o por sexos, como segue:

Art. 3º. As escolas de primeira ordem no seu ensino compreendem:

§ 1º Para o sexo masculino;

Leitura, e caligrafia, gramática da língua nacional, religião – princípios de

moral cristã, e doutrina, noções de geometria, teoria e prática de aritmética

até regra de tres, sistema de pesos e medidas do império.

§ 2º Para o sexo feminino:

São as mesmas matérias, com exclusão da gramática e limitado à aritmética,

ao ensino das quatro operações de numeros inteiros; completando o plano de

ensino os trabalhos de agulha.

Art. 4º. As escolas de segunda ordem para o sexo masculino, compreendem

mais o ensino de noções gerais de história e geografia, especialmente do

Brasil e noções de ciências físicas aplicadas aos usos da vida; e para o sexo

feminino, noções de história geográfica, música e língua francesa [Paraná,

1857, pp. 61-62].

Esse plano estava embasado nas disposições da lei n. 34 de 1846 eno traçado pela reforma Couto Ferraz de 1854, que estabelecia o Regu-lamento do ensino primário e secundário no Município da Corte. Osdois planos, por sua vez, tinham inspiração nas idéias educacionais di-fundidas na França e traduzidas nas reformas de Guisot de 1833, naqual se baseou a lei paulista de 1846, e na de Falloux de 1850, que

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serviu de matriz para a Reforma de Couto Ferraz2. O plano adotado pelaProvíncia do Paraná, no entanto, era mais sintético que o de Couto Ferraz;em linhas gerais era um plano conservador, uma vez que manteve prati-camente o mesmo de 1846, que já vinha sendo implementado nas esco-las da capital.

O ensino seria ministrado pela manhã e à tarde, durando cada sessãoduas horas e meia, sendo que na abertura e no encerramento das aulas osalunos deveriam recitar uma oração. O método indicado continuava sendoo simultâneo por classes, ficando ressalvado o direito do professor deexercitar qualquer outro método de ensino, conquanto fosse autorizadopelo inspetor geral. Nas escolas públicas e particulares só seriam admi-tidos livros e compêndios autorizados pelo inspetor geral.

O acesso de uma classe para a outra seria feito via exame e o examefinal de habilitação seria realizado no mês de dezembro, de acordo comas instruções expedidas pelo inspetor geral. Os alunos do segundo ban-co da primeira classe poderiam ser examinados ao final de cada mês, deacordo com solicitação do professor, e os de segundo classe a cada dia15 dos meses de abril, junho e outubro. Os exames de primeira classeconsistiam em soletrar palavras, decompô-las em sílabas, leitura de nú-

2 Os planos de estudos estabelecidos para o ensino primário na França e no Municí-pio da Corte eram idênticos. Plano Francês (1850): A instrução primária compreen-de: a instrução moral e religiosa; a leitura, a escrita e elementos da língua francesa;o cálculo, o sistema legal de pesos e medidas. Pode compreender também: aritmé-tica aplicada às operações práticas; elementos de história e geografia; noções de ciên-cias físicas e de história natural, aplicáveis aos usos da vida; instruções elementaressobre a agricultura, indústria e higiene; agrimensura; nivelamento e desenho linear,canto e ginásticas. Plano do Município da Corte (1854): O ensino primário nasescolas públicas compreende: a) a instrução moral e religiosa; b) a leitura e a escri-ta; c) as noções essenciais de gramática; d) os princípios elementares da aritmética;e) o sistema de pesos e medidas do município. Pode também compreender: a) odesenvolvimento da aritmética em suas aplicações práticas; b) a leitura explicadados Evangelhos e notícia da história sagrada; c) elementos de história e geografia,principalmente do Brasil; d) os princípios das ciências físicas e da história naturalaplicáveis aos usos da vida; e) a geometria elementar; f) agrimensura; g) desenholinear; h) noções de música e exercícios de canto; i) ginástica; j) em estudo desen-volvido do sistema de pesos e medidas, não só do Município da Côrte, como dasprovíncias do Império e das Nações com que o Brasil tem mais relações comerciais(cf. Buisson, s.d.; Chizzotti, 1975, p. 49; Rio de Janeiro, 1854).

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meros e traçado de linhas retas e curvas no quadro negro. Os de segundaclasse, cópia de palavras, pontuação, acentuação em períodos, leiturado Compêndio moral e conjugação de verbos. O exame de aritméticaversava sobre definições, unidade, número, numeração e exercícios dasquatro operações. Havia ainda exame sobre o catecismo, orações, dou-trina histórica e dogmática (Paraná, 1860, pp. 45-46). Os exames paraalunos da terceira classe nas escolas primárias iniciavam em 1º de de-zembro ou em data anterior, de acordo com o requerido pelo professor.Eram realizados perante uma comissão composta pelo professor da clas-se, por um outro designado pela Inspetoria Geral e presidido pelo inspe-tor de distrito ou pelo subinspetor da escola. Havia uma prova escritaonde seriam verificadas a letra, a ortografia e a pontuação e uma provaoral que incluía leitura de períodos da História do Brasil ou das Cartasseletas do padre Antonio Vieira, perguntas de sintaxe e conjugação deverbos. Havia, também, exercícios de aritmética, teóricos e práticos,além de questões de geometria, catecismo e doutrina histórica e moral.O tempo para cada uma das etapas da prova era de dez minutos poraluno. Para o sexo feminino, o exame de aritmética era limitado à práti-ca das quatro operações e posteriormente havia exame de algum traba-lho de agulha (idem, pp. 2-3).

A Inspetoria Geral da Instrução Pública, em 1858, alterou o plano ea divisão do ensino nas cadeiras de instrução primária de segunda or-dem para o sexo feminino. Seriam respeitadas as instruções de 1856,porém com as adições e alterações seguintes:

Art. 1º § 1º. Às matérias daquele programa se adiciona o ensino da música,

língua francesa, geografia, noções elementares de geografia, matemática, fí-

sica e política, com especialidade a do Brasil; história e noções preliminares,

os grandes períodos, as datas notáveis, história Santa e história do Brasil.

Art. 2º. O estudo das matérias necessárias se dividia pelas classes do modo

seguinte:

§ 1º A música começar-se-á a ensinar desde a 2ª classe pelas noções de arte,

exercícios de tons para a formação da gama; na 3ª classe, música vocal e

instrumental com solfejo, vocalização e canto; nas classes superiores, aper-

feiçoamento dos exercícios de transposições.

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§ 2º Na terceira classe inicia-se o estudo da língua francesa, versão de pedaços

fáceis de prosa, havendo uma lição por dia, de sorte que na sessão da tarde

aprendam as alunas as noções gerais de geografia, matemática e da história as

noções preliminares, grandes datas e em seguida a história Santa. Na 4ª classe:

tradução de francês, prosa e verso, geografia física e política, especialmente a

do Brasil e história deste.

Art. 4º. As alunas que não quiserem concluir o estudo das matérias desta

cadeira, poderão pedir exame de instrução elementar no fim da 3ª classe

[Paraná, 1858b, pp. 136-137].

Os livros a serem adotados eram: para música, Método de piano deHunten; língua francesa, Gramática de Sevene; tradução e leitura deprosa de Morceaux choisies, de Fenelon ou Petit Carême, de Massition;de versos, Art-poetique de Boileau; geografia e história, Manual do en-sino primário de Semel; e para o estudo especial de história e geografiado Brasil, a obra de Coruja e a do padre Pompeo na parte que tratava doassunto. Para o ensino de francês, ficava autorizado o método de Burgain(idem, p. 137).

Também, complementando o Regulamento de 1857, o inspetor Joa-quim Ignácio Silveira da Motta propôs um Regulamento para a inspe-ção da Instrução Pública, aprovado em 24 de abril de 18573. A provínciafoi dividida em distritos conforme a divisão das comarcas, tendo naliderança de cada um deles um inspetor e junto a cada escola umsubinspetor. Foi criado um Conselho Literário de Distrito composto dospárocos, dos presidentes das Câmaras e dos subinspetores. Esse conse-lho presidido pelo inspetor ocupar-se-ia de todos os negócios relativos àinstrução primária e secundária, ordem de ensino, plano geral de estu-dos, livros, habilitação dos professores, além de outras funções.

Aos vigários competia a inspeção sobre o ensino religioso, moral eintelectual, podendo estabelecer normas e instruções, bem como exigirque os estabelecimentos particulares de educação cumprissem o precei-to do artigo 95o do regulamento, e propor multa nos casos de infração.

3 Esse Regulamento da Inspeção Pública também estava embasado no Regulamentopara o Município da Corte de Couto Ferraz.

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o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 147

Segundo o inspetor geral, “[...] a influência religiosa simbolizada porum de seus ministros, fazia falta nas escolas; todos os países católicos atem consagrado, e no interesse das nossas crenças convinha encher essalacuna. A Prússia, que serve de modelo nesse assunto da inteira adesãoa intervenção do pastor nas suas escolas” (Paraná, 1856, pp. 21, 24, 44).

Alguns anos depois, o inspetor continuou suas consideraçõesafirmando que os párocos não estavam compenetrados da justaparticipação que deviam ter na educação pública. “O que é com efeito oapostolado e o título de vigário de Jesus Cristo senão a função santa deconcorrer à formação das gerações para a sociedade?” (Paraná, 1858c,p. 5). Advertia que esses ministros da religião não deveriam ficar indi-ferentes à propagação das verdades que aprenderam e que constituem overdadeiro critério da magnífica aliança das duas potências: inteligên-cia e fé.

Em fins de 1858, o inspetor considerava prematura a introdução dereformas no ensino enquanto não fosse possível analisar os reais resul-tados obtidos com a organização então vigente. A sugestão de se adotarum outro método de ensino para a leitura – o método Castilho – foi vistacom cautela. Para fazer uma experiência com o novo método, foi convi-dado o professor do ensino particular Cândido José Pereira, que encon-trou dificuldades em sua aplicação (idem, pp. 11-12).

Em 1860 foi expedido um novo catálogo de livros que deveriam seradotados nas escolas de instrução primária de primeira ordem:

Para a 1ª classe, 1º e 2º banco – o alfabeto de Roquette até a página 33; para

a 2ª classe, 1º banco – História de animais, do mesmo alfabeto da página 34

até 66 e manuscritos do professor, tirados dos Rudimentos de Moral Religio-

sa, tradução de Galvão, para o 2º banco – Catecismo de Doutrina Cristã,

Rudimentos de Moral Religiosa do Manual de Lunel, traduzido pelo profes-

sor Galvão, História do Brasil de Coruja, Gramática de Cavalcanti e Aritmé-

tica de Figueiredo; para a 3º classe, Poesias do Padre Caldas e Epitome de

geometria prática de Albuquerque [Catálogo..., 1860, p. 4].

Demonstrando a vinculação da Igreja com o Estado e preocupadocom o indiferentismo e com a situação pouco satisfatória do ensino reli-

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gioso, o Governo Imperial, por meio da Circular do Ministério dos Ne-gócios do Império, de 11 de março de 1865, aos bispos de todas asdioceses do país, chamava a atenção das autoridades eclesiásticas parao cumprimento dos deveres paroquiais e solicitava que fossem tomadasas medidas necessárias para a realização de tão alto desideratum (Circu-lar..., 1865, p. 1).

Em 1869, o inspetor geral Ernesto Francisco de Lima Santos reco-mendava o cumprimento da lei imperial n. 1.157 de 26 de janeiro de1862, que mandava incluir no plano de estudos das escolas de instruçãoprimária, quer públicas, quer particulares, o ensino do sistema métrico;exigia dos professores exame e aprovação em metrologia e solicitavado governo autorização para a compra de compêndios de metrologiapara distribuí-los pelas escolas (Paraná, 1869, p. 11). No ano seguinte, opresidente Antonio Luiz Affonso de Carvalho expedia ordem para com-pra de quinhentos exemplares desses compêndios, bem como igual nú-mero do Manual prático das escolas, A ciência do bom homem Ricardo,Desenho linear, Catecismo e história pátria e Cartas de “a, b, c” (Paraná,1870b, p. 14).

O método de ensino simultâneo continuava em vigor na década de1860, sendo seguido rigorosamente por alguns professores4. Porém,começava a ser questionado por outros.

Religião: A alma da escola

Em fins de 1870, o inspetor geral Bento Fernandes de Barros infor-mava ao recém-empossado presidente Venâncio de Oliveira Lisboa oestado da instrução pública. Segundo ele, o ensino, na prática, estavarestrito à leitura, à caligrafia, ao cálculo e a algumas fracas noções degramática e de doutrina cristã. Esse ensino apenas fornecia os elementos

4 O professor João da Costa Vianna, por exemplo, professor da primeira cadeira dosexo masculino em Curitiba, em seu relatório de 1866 informava que em sua esco-la mantinha a divisão de três classes, sendo que a primeira e a segunda eram cons-tituídas por dois bancos e a terceira com um banco (DEAP, s.d., fl. 61).

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primários, mecânicos, para a aquisição de conhecimentos e de noçõesde moral (Paraná, 1870a, p. 4). Considerava objetivo do ensino a trans-missão às novas gerações das crenças, idéias e dos sentimentos que ani-maram a vida das gerações passadas; “[...] educá-las nas verdadesmorais e religiosas que são para o indivíduo a condição essencial do seudesenvolvimento e para a sociedade a lei de sua conservação” (idem, p.7). Segundo Bento Fernandes, o ensino primário não possuía o caráterreligioso que deveria ter; a escola apenas transmitia algumas noçõesrepetitivas da doutrina do catecismo, sem incutir no coração o espírito docristianismo. Recomendava o ensino da Bíblia nas escolas e o estabele-cimento de uma aliança entre o desenvolvimento do sentimento religio-so e o desenvolvimento intelectual. Sua proposta tinha inspiração naeducação praticada nos Estados Alemães, onde o conhecimento da ver-dade religiosa era a base do ensino para todos. A religião era vista comoo ponto central do ensino – a alma da escola; em torno da qual giravamos outros objetos de estudo. Este ensino centrado na religião era adota-do tanto pelos católicos quanto pelos protestantes, com excelentes re-sultados (idem, pp. 8-9).

Essas ponderações do inspetor geral certamente influenciaram areforma de ensino efetuada no ano seguinte. Em 1871, o presidenteVenâncio José de Oliveira Lisboa, mediante a lei n. 290 de 15 de abrildaquele ano, reformulou o ensino primário, mandando que fosse obser-vado novo regulamento. O plano de estudos estabelecido pelo Regula-mento da Instrução Pública, de 13 de maio de 1871, estava assimorganizado:

Art. 2º. O ensino nas escolas compreende:

§ 1º A instrução moral e educação, tendo por objeto os deveres fundados na

autoridade dos dogmas cristãos;

§ 2º A instrução religiosa, tendo por objeto as orações, o catecismo, compre-

endendo o velho e novo testamento.

§ 3º A leitura e a caligrafia.

§ 4º A gramática da língua nacional.

§ 5º A aritmética até proporções inclusive e o sistema métrico de pesos e

medidas.

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Nas escolas de sexo feminino, além das matérias prescritas, seriam ensina-

dos os trabalhos de agulha [Paraná, 1871b, p. 7].

Algumas mudanças importantes foram verificadas: o Regulamentode 13 de maio de 1871, que reformulou o Regulamento de 18575, extin-guia a classificação de escolas primárias de primeira e de segunda or-dem; incluía o ensino do sistema métrico; mantinha a maioria das matériaspropostas pelo Regulamento de 1857, com exceção de noções de geo-metria e música. Contudo, o aspecto mais importante era o enfoque quedeveria ser dado ao ensino primário. De acordo com o art. 2º da lein. 290 que o reformulou, o ensino religioso deveria constituir a base doensino primário (Paraná, 1871a, p. 1). A direção do mesmo ficaria con-fiada aos párocos, os quais teriam não só o direito de inspecioná-lo eesclarecê-lo, mas também de dar instrução religiosa nas escolas de suaparóquia (idem, pp. 5-10). Em consonância com esse enfoque dado aoensino primário, os professores teriam que professar a religião do Esta-do como requisito para ingressar no magistério público.

Por esse regulamento, foi mantido o método de ensino simultâneo;porém, ficaria livre a adoção de qualquer outro, desde que houvesseuma representação dos professores junto à Inspetoria do Ensino e a apro-vação do inspetor e do presidente da província. Os livros didáticosadotados seriam aqueles autorizados pela presidência, ouvido o inspe-tor geral. O ensino continuava a ser ministrado pela manhã e à tarde,com duração de duas horas e meia cada sessão: das nove e meia ao meiodia e das duas e meia às cinco horas. Na abertura da escola pela manhãe no encerramento das aulas à tarde as crianças deveriam recitar umaoração religiosa. O calendário escolar previa aulas de 6 de janeiro a 8 dedezembro, sendo feriados apenas os domingos, dias santos, os de festanacional, carnaval, Semana Santa do domingo de ramos até o da Pás-coa. A final de cada ano, de 1º a 8 de dezembro, seriam realizados osexames para os alunos que estivessem preparados nas matérias de ensi-

5 Muito embora o proposto no Regulamento de 8 de abril de 1857 tivesse sofridoalterações, em diversos aspectos o regulamento continuou em vigência até a refor-ma de 1871.

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o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 151

no. Os exames seriam presididos pelos inspetores paroquiais, de distritoe por duas pessoas por eles nomeadas.

Em agosto de 1874, o presidente Frederico Cardoso de AraújoAbranches sancionou um novo regulamento para a Instrução PúblicaPrimária e Secundária. Entre outras disposições, incluiu a obrigatorie-dade do ensino e criou um Conselho de Instrução Pública da Província.O inspetor geral João Manoel da Cunha traçou suas atribuições e desta-cou a importância da participação dos padres como conselheiros, “suainspeção caridosa à escola não deixará costumes sem doutrina, faltassem censura, desalento sem conforto. Continuará aí as protetoras fun-ções de pastor do inexperto e infantil rebanho” (Circular..., 1874, p. 1).

O Regulamento de 1874 pouco mudou o plano de estudos para oensino primário, porém alterou as suas finalidades, diminuindo a ênfasedada ao ensino religioso.

Art. 2º. O ensino nas escolas compreende:

§ 1º A instrução intelectual, a educação e o ensino moral e religioso.

§ 2º A leitura e a caligrafia.

§ 3º A gramática da língua nacional.

§ 4º Aritmética até proporções inclusive e o sistema métrico de pesos e medi-

das.

§ 5º A instrução religiosa, terá por objeto a doutrina da religião do Estado,

compreendendo o velho e o novo testamento.

Nas escolas do sexo feminino, além das matérias prescritas se ensinarão os

diversos trabalhos de agulha [Paraná, 1874, p. 198].

Os dispositivos relativos ao método de ensino, ensino religioso, li-vros didáticos, período de ensino e calendário escolar e requisitos parao professor ingressar no magistério público, foram mantidos como noregulamento anterior. Com relação aos exames, contudo, ficou estabe-lecido que todos deveriam prestá-los ao final do ano para se conhecer ograu de adiantamento de cada aluno. O regulamento, além de incluiralterações quanto à obrigatoriedade do ensino, classificou os professo-res e conseqüentemente as escolas em quatro categorias: a) de cidade;b) de vila; c) de freguesia; d) de bairros.

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Mudança de enfoque: ampliando o plano deestudos

As idéias relacionadas à instrução pública na província continuavamem constante efervescência. Em 16 de julho de 1876, a Assembléia Legis-lativa Provincial aprovou e o presidente da província sancionou o Regu-lamento Orgânico da Instrução Pública que alterou profundamente a ins-trução pública nos mais diversos âmbitos. As alterações relativas ao planode estudos do ensino primário elementar foram poucas, porém funda-mentais. Segundo o art. 9o, o ensino primário elementar seria composto:

1º De instrução moral e religiosa.

2º De leitura e de escrita.

3º De noções gerais de gramática nacional.

4º De elementos de aritmética e desenho linear, compreendendo o estudo do

sistema métrico.

5º De prendas domésticas para o sexo feminino.

6º De geografia e história, particularmente da província [Paraná, 1878, p. 4].

O regulamento estabeleceu, ainda, diversas normas relativas à orga-nização do ensino. O calendário escolar sofreu pequena alteração, o anoletivo começava em 8 de janeiro e terminava em 30 de novembro. Ainstrução religiosa passou a ser dada em um dia da semana determinadopelo professor. No ensino em geral, só seriam admitidos livros e compên-dios autorizados pelo conselho literário. O método do ensino continuavaa ser o simultâneo por classes; para a divisão das classes e programa deensino de cada uma, o conselho literário ficava encarregado de formularum regimento interno das escolas. Os alunos só passariam de uma clas-se para outra depois de aprovados em exame de habilitação, que ocorriamde três em três meses e eram assistidos pelos inspetores paroquiais. Umavez por ano, em novembro, eram realizados os exames finais das maté-rias. Os diretores da instrução deveriam receber com um mês de antece-dência a relação dos que eram considerados aptos ao exame, que erarealizado diante do diretor da instrução ou do inspetor paroquial por umexaminador convidado. Os resultados eram divulgados pela imprensa.

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o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 153

O regulamento introduziu profundas alterações no plano de estu-dos. Incluiu o ensino de “desenho linear” e “história e geografia”, prin-cipalmente da província. Estas duas matérias haviam constado do planode estudos de 1857, porém como parte dos estudos de segundo grau. Omais importante, contudo, foi o direcionamento dado ao ensino primá-rio. Muito embora a instrução religiosa continuasse fazendo parte doplano de estudos, ela deixou de ser o núcleo central, em torno do qual asdemais matérias deveriam girar. Em consonância com essa mudança deenfoque, a exigência de que o professor professasse a religião do Estadodeixou de constar do regulamento. E foi mais além, o artigo 157o, facul-tava a dispensa de instrução religiosa aos alunos não-católicos, desdeque a pedido dos pais. Essa nova abordagem dada ao problema religio-so refletia questões levantadas em um amplo debate em nível nacional,principalmente os ocorridos visando à reforma do ensino na Corte em1875. Alguns parlamentares defendiam a liberdade de religião, no ensi-no, tendo em vista os preceitos constitucionais e o incentivo à entradade imigrantes no país, muitos dos quais não católicos6.

Esse regulamento continuou em vigor até o final do período provin-cial, porém não sem alterações. A lei n. 603 de 16 de abril de 1880 auto-rizava o governo reformular a instrução pública, no entanto, o presidente

6 Os deputados Cunha Figueiredo e Tarquinio de Souza exigiam dos professores aprofissão de fé católica por temer que outras idéias e sentimentos fossem adquiri-dos pela mocidade. Na realidade, temiam a disseminação de crenças religiosasdiversas da religião do Estado. Contudo, parlamentares como Teixeira da Rocha eCunha Leitão salientavam o dispositivo constitucional que consagrava a liberdadede crenças e apelavam para os interesses da colonização. “Em um país como nos-so, cuja constituição sabiamente tolera e permite a liberdade de cultos, a liberdadede crenças; em um país que chama para aumentar a sua população estrangeiros detoda parte do mundo, sem distinção de religião, [...] pode exigir do mestre escola acondição de ser católico; pode-se-lhe impor a obrigação de missionar o catolicis-mo aos meninos confiados a seus cuidados, filhos de pais que não crêem na reli-gião?”. Cunha Leitão apresentou uma emenda ao projeto João Alfredo que dis-pensava os filhos de famílias protestantes que freqüentassem escolas públicas doestudo da religião do Estado e de quaisquer atos religiosos praticados na escola. Oprojeto João Alfredo, bem como essas emendas, caíram no esquecimento na Côrte(Haidar, 1972, pp. 168-170).

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Carlos Augusto de Carvalho, depois de visitar inúmeras escolas, concluiuser inócua uma nova reforma que procurasse atender às idéias pedagó-gicas então propagadas. Citando Froebel, que defendia que a idéia de queo professor é o espírito da escola, Carlos de Carvalho argumentou quedado o nível do pessoal docente não havia conveniência em fazer qual-quer mudança no ensino elaborando um novo plano de estudos.

No entanto, por ato de 2 de maio de 1882, alterou-se o Regulamentode 1876 no que se referia à prática da inspeção do ensino.

Art. 1º. O diretor geral da instrução pública será substituído em todos os seus

impedimentos pela pessoa que for designada pelo presidente da Província.

Art. 2º. O inspetor paroquial da capital será de livre escolha do presidente da

Província.

Art. 3º. Os inspetores paroquiais devem visitar e inspecionar as escolas pelo

menos uma vez por mês.

Art. 4º. As aulas primárias funcionarão todos os dias compreendida a quinta

feira, das 9 horas da manhã a uma da tarde [Paraná, 1882, p. 87].

A única alteração no plano de estudos tratava da inclusão do ensinode ginástica nas escolas primárias do sexo masculino. Por ato de 30 dejunho de 1882, justificou-se a inclusão da matéria no plano de estudo ese estabeleceu as diretrizes metodológicas.

O presidente da Província, atendendo à conveniência de melhorar a educa-

ção física das crianças do sexo masculino e considerando que a ginástica,

desenvolvendo a musculatura e a vitalidade gerais tende a estabelecer o equi-

líbrio, como ensinam os higienistas, entre todas as funções, entre as aptidões

físicas e a capacidade intelectual, resolve:

Art. 1º. Os professores das escolas primárias do sexo masculino são obriga-

dos a ensinar ginástica aos alunos três vezes por semana e por tempo que não

exceda uma hora.

Art. 2º. Enquanto a Província não fizer distribuir os instrumentos e aparelhos

necessários, o ensino da ginástica será feito pelo método do professor Schreber,

de Leipsig – devendo os professores guiar-se exclusivamente pela ginástica

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o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 155

doméstica, médica e higiênica desse professor, traduzida por Júlio Magalhães

[idem, p. 91].

Em 1883, o presidente Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, imbuídodas idéias pedagógicas de Pestalozzi, Herbart e Froebel, teceu severascríticas em relação aos métodos de ensino adotados.

Os métodos pelos quais se educa e se instrui nas escolas da província são

esses antiquados, proscritos à porfia pelas lições da pedagogia, como proces-

sos negativos da real cultura do espírito e do caráter. Atuando só na memória,

lidando por incrustar nela mecânica e impertinentemente umas quantas no-

ções abstratas, sintéticas e nulas, geram esses conhecimento – “verdadeiros”

cogumelos, na frase de Pestalozzi, que brotam nos dias de inverno e de pron-

to fenecem aos primeiro sol. [...]

O método intuitivo, o que embebe o espírito da criança na realidade da natu-

reza, na expressão de Froebel, o que estuda o objeto e não a palavra, as cau-

sas e não as noções abstratas, o mundo e seus fenômenos e não o jornalismo

doutrinal e inane dos compêndios [...] [Paraná, 1883, p. 33].

O presidente continuou criticando o ensino livresco, a falta de práti-ca da ginástica escolar e o ensino mecânico do catecismo e da moral.“Daí o definhamento da raça e os vícios do caráter de que sofre a nacio-nalidade brasileira, eivada na educação das gerações, que a sucedem, detibieza, atonia, irresolução e automatismo” (idem, p. 33).

Classificou o ensino moral e religioso ofertado pelas escolas de ridí-culos e descreveu um episódio verificado em uma visita que fez a umaescola, quando pediu à professora que fizesse uma das alunas rezar aoração dominical, “o riso acolheu a lembrança: – Elas se envergonhamde rezar –, disse-nos a mestra” (idem, p. 34).

Argumentou que embora o regulamento vigente preceituasse a edu-cação religiosa e moral, as crianças se envergonhavam da religião e osprofessores não sabiam ensinar convenientemente, porque o método queaprenderam e que executavam não os havia habilitado a praticá-la.

Convencido da necessidade da cultura moral, religiosa e cívica nasescolas da província, como fatores educativos e atendendo à disposição

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do Regulamento de 1876, destinou o dia de sábado para a instruçãomoral, religiosa e cívica e recomendou aos professores que adotassem ométodo intuitivo para o seu ensino (Paraná, 1884, p. 37).

Ao final do período provincial, a rede escolar pública e subven-cionada passou por um processo de retração acentuado. Atendendo adecisão da Assembléia Provincial, pela lei n. 917 de 31 de agosto de1889, o então presidente da província Balbino Cândido da Cunha alte-rou a classificação das escolas; extinguiu muitas cadeiras de ensino ele-mentar na capital e nos seus arredores; suspendeu as subvenções aosprofessores de escolas particulares, que haviam sido criadas no períodode 1853 a 1889; as metas prioritárias estabelecidas por ocasião da cria-ção da província foram praticamente abandonadas. Novos eventos esta-vam soprando em todo o país e a partir do final do ano de 1889, a edu-cação no estado do Paraná tomaria novos rumos.

Considerações

Durante todo o período provincial, os planos de estudos e as orien-tações metodológicas que nortearam o ensino público elementar na Pro-víncia do Paraná giraram em torno das duas finalidades básicas estabe-lecidas pelo primeiro presidente, Zacarias de Góes e Vasconcellos, e seunomeado inspetor geral da Instrução Pública, José Ignácio Silveira daMotta. De uma forma ou de outra, todos os presidentes da província e osinspetores gerais da Instrução Pública, no período de 1853 a 1889, per-seguiam os mesmos princípios e idéias políticas e educacionais, preva-lecentes por ocasião da emancipação política da província e que, decerta maneira, impulsionaram o ensino elementar no Paraná.

O Brasil, logo após a sua independência, necessitava criar a idéia denação, e a Província do Paraná, recém-emancipada, precisava ratificarsua autonomia política e administrativa. Uma educação nacional, quevisasse a formação do cidadão pelo cultivo dos valores do Estado e osprincípios da moral cristã, era vista pelos políticos e intelectuais brasi-leiros e paranaenses como o principal mecanismo para o atendimentodessas necessidades prementes. Para as autoridades educacionais

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paranaenses, esse objetivo só seria concretizado pela uniformização doensino, que deveria ser alcançada pela adoção de um plano de estudosúnico em todo o território paranaense. Ainda mais, para imprimir aoensino público o caráter de uniformidade, foram indicados os livros quedeveriam ser adotados em cada matéria, bem como as orientaçõesmetodológicas que deveriam nortear seu ensino.

Muito embora houvesse um embaciamento entre Igreja e Estado,posto que a doutrina da religião católica era a oficialmente adotada, emdeterminados momentos o fator religioso se sobrepunha ao político, noplano de estudos e vice-versa. Esta questão esteve presente em todo operíodo provincial. Preocupado com o indiferentismo religioso em muitaslocalidades, o Ministério do Império, em 1865, solicitava a tomada demedidas para estimular o “espírito” religioso nas escolas. Temia-se quecom a entrada de imigrantes no país, muitos deles alemães protestantes,houvesse a disseminação de crenças religiosas diversas da religião doEstado e fossem abalados os alicerces do país, até então latino e católi-co. A lei provincial n. 290 de 15 de abril de 1871, ao adotar uma posiçãoradical em seu artigo 2º, quando declarou o ensino religioso a base dainstrução primária, de certa forma colocava empecilhos para que os filhosdos imigrantes não-católicos freqüentassem a escola pública. Essa ques-tão, tema de amplo debate nacional, foi, aos poucos, se arrefecendo. Emmeados da década de 1870, parlamentares argumentavam que em umpaís cuja Constituição tolerava a liberdade de cultos e que incentivava aentrada de imigrantes, sem distinção de religião, era inconcebível im-por, às crianças filhas de não-católicos, a religião oficial do Estado.

As reformas verificadas na escola pública elementar da Provínciado Paraná inseriam-se no contexto educacional do país. O Ato Adicio-nal de 1834 delegou às províncias a responsabilidade de ofertar e man-ter o ensino primário e o secundário, ficando o Governo Imperial encar-regado apenas de oferecer o ensino superior em todo o Império e osecundário no Município da Corte. O país atravessava uma grande fasede transformação social e a Província do Paraná, recém–emancipada,carecia de recursos de toda a ordem para ofertar educação gratuita àtodos. Vários fatores impediam que as diversas reformulações dos pla-nos de estudos da escola pública elementar fossem implementados com

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sucesso. A falta de professores com as habilitações necessárias era,freqüentemente, apontada como causa do problema. Porém, outros fa-tores contribuíram para que o estabelecido nos Regulamentos de Ensinofosse “letramorta”. Faltava uma política de formação de professores,que realimentava o problema; falta de uma atuação efetiva por parte daInspetoria da Instrução Pública que garantisse o cumprimento da deter-minação legal mas, principalmente, falta de recursos financeiros paraadotar medidas que visassem a melhoria da qualidade do ensino.

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. (1882). Relatório do presidente da Província, Carlos Augustode Carvalho, à Assembléia Legislativa do Paraná, em 1º de outubro de 1882.Curitiba: Tip. Perseverança, p. 87.

. (1883). Relatório do presidente da Província, Luiz Alves Leitede Oliveira Bello, à Assembléia Legislativa do Paraná, em 1º de outubro de1883. Curitiba: Tip. Perseverança, p. 33.

. (1884). Relatório do presidente da Província, Luiz Alves deOliveira Bello, ao passar a administração, em 22 de agosto de 1884. Curitiba:Tip. Perseverança, p. 37.

RIO DE JANEIRO (1854). “Decreto n. 1.331-A de 17 fevereiro”. In: Coleção dasleis do Império do Brasil de 1854. t.XV, parte 1. Nac.

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Este trabalho apresentará a discussão sobre os destinos das Faculdades de Filosofia, Ciên-cias e Letras na década de 1960 como ponto crucial da Reforma Universitária brasileira.Além dos debates no Conselho Federal de Educação, utilizou-se como fonte privilegiadaos relatos registrados pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – instituiçãoque tratou dos interesses de algumas áreas científicas durante o processo de reformulaçãouniversitária. A criação das Faculdades de Educação será tema final deste texto, tratadacomo decorrência dos embates anteriormente mencionados.REFORMA UNIVERSITÁRIA; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; UNIVERSIDADE DE SÃOPAULO; FACULDADE DE EDUCAÇÃO.

This study presents the discussion about the future of the Faculties of Philosophy, Sciencesand Literature at the 60’s as decisive point to the Brazilian Universitarian Reform. Besidesthe discussions at Federal Board of Education, the reports recorded by the Brazilian Societyto Progress of Science – institution responsible for the concerns of some scientific sectorsalong the universitarian reformation process – have been privileged. The creation of theFaculties of Education is the theme of this study, as a result of those discussions.UNIVERSITARIAN REFORM; HISTORY OF EDUCATION; UNIVERSITY OF SÃOPAULO; FACULTY OF EDUCATION.

A Reforma Universitária e a criaçãodas Faculdades de Educação

Macioniro Celeste Filho*

* Mestre em educação pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: His-tória, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; douto-rando em educação pelo mesmo Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP.

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162 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

Ao tratar da universidade e de sua constituição, Anísio Teixeira com-parou a situação brasileira com a norte-americana. Citando Hutchins,este intelectual comentou ironicamente que a universidade nos EstadosUnidos talvez fosse uma série de escolas e departamentos separados,apenas unidos por um comum sistema de aquecimento central. Na déca-da de 1960, com a importância adquirida pelo automóvel, a universida-de norte-americana poderia ser vista sarcasticamente como um grupode empresários-professores unidos por uma reivindicação comum emtorno de espaço para estacionar. Ao descrever a universidade brasileirae sua integração, Anísio Teixeira não foi menos contundente. No Brasil,segundo o autor, a universidade era composta por uma série de congre-gações isoladas e independentes, unidas por uma reivindicação comumem torno do orçamento, feito e votado fora da universidade1. Este exem-plo é elucidativo dos questionamentos pelos quais passava a universi-dade brasileira em meados da década de 1960. O que lhe conferiaunidade? Como integrá-la com eficácia? Quais os equívocos que o mo-delo aqui adotado apresentava? Enfim, como reformá-la?

Desde a década de 1930, as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras(FFCL) tiveram a incumbência de se tornarem pólo aglutinador dasuniversidades brasileiras. Esta faculdade deveria conferir unidade àuniversidade. Esta concepção de universidade integrada pela FFCL foidescartada na década de 1960 pelos principais intelectuais que formu-laram a Reforma Universitária. O que fazer com as FFCL era, portanto,a questão básica de como se reformar a universidade. Embora o desfe-cho deste debate ocorra no final da década de 1960, a questão foi susci-tada desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

1 Anísio Teixeira, “A universidade de ontem e de hoje”. Ciência e cultura, vol. 17,n. 2, p. 348, jun. 1965. Trata-se do texto da conferência proferida pelo autor naXVI Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),ocorrida em julho de 1964 em Ribeirão Preto-SP. Este texto também foi publicadona Revista brasileira de estudos pedagógicos, Rio de Janeiro: INEP, n. 95, pp. 27-47, jul.-set. 1964. Neste caso, a citação encontra-se na página 44.

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163a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Na LDB de 1961 – como ficou conhecida a lei n. 4.024 de 20 dedezembro de 1961 – em seu artigo 79, a definição de universidadepropunha originalmente que ela fosse constituída, no mínimo, de cincoestabelecimentos de ensino superior, sendo que um deles deveria ser aFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esta obrigatoriedade da for-mação universitária em torno da FFCL foi vetada. A universidade foidefinida como a reunião, sob administração comum, de cinco ou maisestabelecimentos de ensino superior. Foram apresentadas duas razõespara esta mudança de concepção universitária:

A rede nacional do ensino superior conta, já, com mais de 70 faculdades de

filosofia, que vêm exercendo, salvo raras exceções, exclusivamente, a fun-

ção de formar professores de grau médio. Nessas circunstâncias, a exigência

de que toda universidade mantenha uma dessas faculdades torna-se desne-

cessária.

Acresce que as funções de órgão integrador que se deseja atribuir a tais fa-

culdades também podem ser exercidas por outros órgãos tais como Institutos

Centrais que já vêm sendo estruturados em algumas universidades federais2.

No início da década de 1960, a recente criação da Universidade deBrasília era exemplo de alternativa de organização universitária que pres-cindiu da FFCL3. Com a redação final do artigo 79, a LDB abre a dis-cussão sobre o destino a ser dado às Faculdades de Filosofia, Ciências eLetras; isto é, inicia o debate sobre a Reforma Universitária.

É correto atribuir a Valnir Chagas e a Newton Sucupira – dois dosmais atuantes membros do Conselho Federal de Educação (CFE) – des-taque no encaminhamento das propostas sobre a Reforma Universitária.

2 “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC,n. 12, p. 86, mar. 1963.

3 Beatrice Laura Carnielli do Nascimento. A Reforma Universitária de 1968: ori-gem, processo e resultados de uma política para o ensino superior. Tese (Doutora-do) – Rio de Janeiro: UFRJ, 1991, p. 47.

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Ana Maria Fernandes chama a atenção para um terceiro protagonista degrande importância neste debate: Maurício Rocha e Silva – presidenteda Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de 1963 a1969 e membro do CFE desde sua criação até 1965. Segundo a autora,desde 1962, Maurício Rocha e Silva articulou propostas em parceriacom Valnir Chagas e Newton Sucupira4. A primeira, assinada pelos três,foi o parecer n. 43/62: “A investigação científica dos currículos normaisdos institutos de ensino”. Neste parecer, Maurício Rocha e Silva analisaa redação do artigo 66 da LDB, onde se destaca que o ensino superiortem por objetivo a pesquisa e o desenvolvimento da ciência, entre ou-tros. Segundo o autor:

Trata-se de um artigo revolucionário, que deve entrar como uma cunha em

nosso anacrônico sistema universitário, e que, por si só, justificaria uma ime-

diata e radical reforma da universidade brasileira, tornando, por assim dizer,

ilegal o sistema até agora posto em prática.

Pareceu evidente a intenção do legislador de inverter a ordem de valores

existente em nossas universidades. Se tomarmos a seqüência de valores

estabelecida pelo artigo 66, em que primeiro se menciona a pesquisa, o de-

senvolvimento das ciências, das letras e das artes como a base do ensino, o

que pretendeu o legislador foi sugerir uma reforma profunda em nosso siste-

ma universitário e estabelecer a pesquisa como a base em que se deve assen-

tar o ensino.

É a reforma por que todos nós ansiamos, a única que poderá vir a tornar a

universidade o verdadeiro esteio do desenvolvimento do país. [...]

Mas, agora, demos uma olhada ao panorama universitário brasileiro. Onde e

como teriam os alunos oportunidade de aprender a pesquisa, o método cien-

tífico5?

4 Ana Maria Fernandes. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília: UnB,1990, pp. 130-131. Agradeço a Maria das Graças Marcelo Ribeiro por ter reco-mendado a leitura deste livro.

5 Valnir Chagas, Maurício Rocha e Silva e Newton Sucupira. “A investigação cien-tífica dos currículos normais dos institutos de ensino”. Documenta. Rio de Janeiro:MEC, n. 3, pp. 168-169, maio 1962. Os três autores escreveram partes diferentes eseparadas do parecer n. 43/62, denominadas 43A, 43B e 43C. A citação é de Mau-rício Rocha e Silva, da parte 43B.

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165a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

Como visto anteriormente, o veto à obrigatoriedade das FFCL comoórgão integrador das universidades baseava-se na suposta constataçãode que elas exerciam, quase exclusivamente, a função de formadoras deprofessores de grau médio. Se a prioridade deveria ser a pesquisa e odesenvolvimento das ciências, onde e como isto poderia ser feito? Estaquestão de Maurício Rocha e Silva – presidente da SBPC durante operíodo da Reforma Universitária – balizará as propostas de destino dasFFCL.

O simpósio sobre a estrutura das Faculdades deFilosofia

Em março de 1963, o terceiro número da revista Alfa, órgão do De-partamento de Letras da FFCL de Marília (SP), traz o texto intitulado“Simpósio sobre a estrutura das Faculdades de Filosofia”:

Organizado pela Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e

Cultura, em boa hora realizou-se em Brasília, entre 13 e 15 de fevereiro do

corrente ano, este Simpósio sobre a Estrutura das Faculdades de Filosofia.

O conclave, que reuniu os diretores de diversas Faculdades do Brasil, além

dos convidados especiais, destinava-se a um amplo debate em torno do papel

das Faculdades de Filosofia no contexto universitário brasileiro atual, daqui

o haver sido adotada a seguinte seqüência nos tópicos a serem discutidos: I –

Origem e evolução da faculdade de filosofia no Brasil. Sua estrutura atual.

Legislação vigente. Relator: Prof. Valnir Chagas. II – A faculdade de filoso-

fia no contexto da reforma universitária. Crítica da estrutura e dos métodos

de funcionamento das faculdades de filosofia. Restabelecimento ou

redefinição de seu plano original. Relator: Prof. Valnir Chagas. III – O ensi-

no das ciências na universidade e nas escolas superiores isoladas; grupo A

(ciências matemáticas, físicas e naturais) – relator: Prof. Paulo Sawaya; gru-

po B (ciências humanas) – relator: Prof. Darcy Ribeiro. IV – O ensino das

letras na universidade e escolas superiores isoladas. Relator: Prof. Heron de

Alencar. V – Formação de professores do ensino médio e de especialistas em

educação. Relator: Prof. Newton Sucupira. Aliás, sob o mesmo aspecto, cou-

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166 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

be ao Prof. Florestan Fernandes apresentar um sugestivo trabalho intitulado

“A formação de profissionais e especialistas nas faculdades de filosofia”.

Até a revista da Organização dos Estados Americanos (OEA) – LaEducación – informou sobre este simpósio6. Surpreendentemente, aDocumenta – órgão oficial do Conselho Federal de Educação – nãomenciona o simpósio em parte alguma; não publicou uma única linhasobre ele. Trata-se de um daqueles “silêncios ensurdecedores” que afe-taram periodicamente a revista mensal do CFE. Se não fosse temaconsensual, não deveria merecer espaço na publicação oficial. Isto é, aDocumenta não publicava polêmicas; como órgão oficial do CFE, apre-sentava as resoluções consensuais deste conselho. O silêncio absoluto daDocumenta acerca do “Simpósio sobre a estrutura das Faculdades deFilosofia” demonstra quanto este encontro deve ter sido conflituoso. Porhaver sido organizado pela Diretoria do Ensino Superior do MEC, algosobre este simpósio poderia ter sido publicado por este ministério. Arevista MEC, publicação bimestral do Setor de Divulgação do MEC, nãoregistrou nada a respeito do simpósio sobre as FFCL. O periódico Arqui-vos MEC, publicação trimestral do Serviço de Documentação do MEC,inicia sua edição apenas no final de 1965. Entretanto, pode-se inferir o quefoi tratado no simpósio sobre as FFCL por outras publicações.

Pouco depois do encontro em Brasília, Newton Sucupira escreveu oeditorial da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Neste editorial,trata da possibilidade da criação de institutos de pesquisa nasuniversidades. O autor constata que isto seria incompatível com o sistemade cátedras de então e com a configuração das FFCL:

Ora, para que tais institutos pudessem ser introduzidos nas universidades já

existentes tornar-se-iam necessárias certas modificações de sua estrutura e,

sobretudo, da mentalidade de nossos catedráticos. Doutra forma teríamos a

existência de sistemas concorrentes, sobretudo no que diz respeito às facul-

6 “Estructura de las Facultades de Filosofia”. La educación. Órgão do Departamentode Asuntos Educativos da Unión Panamericana. Washington D.C., Organizaciónde los Estados Americanos, n. 33, ene.-mar. 1964, p. 145.

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167a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

dades de filosofia. Com efeito, a missão dessas faculdades não é somente a

de formar professores de ensino médio, mas também a de promover a pes-

quisa científica básica e exercer a função integradora da universidade. Infe-

lizmente a tradição de nosso ensino superior à base de faculdades profissionais

não permitiu que ela pudesse realizar sua missão desde quando foram funda-

das. Por isso mesmo tornou-se ela uma faculdade como as demais,

profissionalizou-se como as outras. Em princípio uma reforma universitária

poderia ser orientada no sentido de restituir às faculdades de filosofia seu

verdadeiro papel dentro da universidade, reorganizando-se em departamen-

tos que centralizariam toda pesquisa científica básica. Contudo, nesta altura

cremos que seria muito difícil quebrar uma tradição já bem cristalizada7.

O autor se refere às FFCL com a nostalgia de quem contempla o seudeclínio. Seriam “necessárias certas modificações de sua estrutura”. AReforma Universitária poderia salvá-las, mas Newton Sucupira nãoacredita mais nisto. Da forma em que se configuraram, as FFCL nãopoderiam ser apenas reformadas: “Contudo, nesta altura cremos queseria muito difícil quebrar uma tradição já bem cristalizada”. É prová-vel, frente às discussões ocorridas no simpósio em Brasília, que NewtonSucupira vislumbrasse o fim das FFCL na reformulação universitáriaiminente.

O texto acima menciona a “mentalidade de nossos catedráticos”; adiscussão sobre o sistema de cátedras e a busca de sua transformação,embora de suma importância para a compreensão da Reforma Univer-sitária, não será objeto deste trabalho.

Paulo Sawaya, um dos fundadores da SBPC, professor do Departa-mento de Fisiologia Geral e Animal da FFCL da Universidade de SãoPaulo e um dos relatores durante o simpósio sobre as FFCL do temareferente ao ensino da ciência na universidade, foi mais claro sobre suasconclusões. Em julho de 1963, proferiu em Campinas (SP) conferênciana XV Reunião Anual da SBPC. O autor cita explicitamente, mais de

7 Newton Sucupira. “Institutos universitários e a pesquisa científica”. Revista brasi-leira de estudos pedagógicos, Rio de Janeiro: INEP, n. 91, p. 4, jul.-set. 1963.

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168 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

uma vez, que apresentava reflexões provocadas pelos debates doSimpósio sobre as Faculdades de Filosofia do qual participara recen-temente. O autor constata algo ressaltado anteriormente neste trabalho:

A Lei de Diretrizes e Bases no seu artigo 79 retirou a obrigatoriedade de as

universidades se constituírem como uma Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras. Com isto, estas Faculdades perderam, nos casos de universidades que

as não possuírem, a faculdade integradora que delas tanto se exige por minis-

trarem o ensino básico8.

Paulo Sawaya apresenta o que gerou maior tensão no simpósio so-bre as FFCL; o que se propôs como solução para a situação destas facul-dades:

Voltando ainda ao Simpósio de Brasília devo lembrar que, a meu ver, e pode

ser que me engane, ali se procurou antes mostrar as deficiências das Faculda-

des de Filosofia que os seus êxitos. Houve acesa discussão sobre o destino

das Faculdades de Filosofia, propondo alguns a sua substituição pelos Insti-

tutos Centrais, outros a bipartição em Faculdades de Ciências e Faculdades

de Filosofia e Letras, outros a tripartição em Faculdades de Filosofia, Facul-

dades de Ciências e Faculdades de Educação9.

As diversas soluções encontradas pelos intelectuais que participaramdeste simpósio sobre os destinos das FFCL provavelmente foram a prin-cipal referência da Reforma Universitária brasileira. De qualquer ma-neira que se interprete os escritos sobre o simpósio, fica evidente que asFFCL não permaneceriam sem reformulação de sua estrutura e de suasincumbências. Neste simpósio, realizado no início de 1963, encontra-sea configuração inicial da Reforma Universitária que possibilitará a cria-ção das Faculdades de Educação. A Ditadura, implantada em 1964, in-

8 Paulo Sawaya. “As Faculdades de Filosofia em face da Lei de Diretrizes e Basesda Educação Nacional”. Ciência e Cultura, vol. 15, n. 4, p. 344, dez. 1963.

9 Idem, pp. 342-343.

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169a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

terrompeu momentaneamente a Reforma Universitária; ela será reto-mada dois anos depois.

No âmbito deste trabalho não será possível tratar do destino de todasas FFCL. Optou-se por acompanhar a discussão sobre a Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP).

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP

Franklin Leopoldo e Silva destacou a necessidade de maiores pes-quisas sobre o esfacelamento da FFCL-USP no processo da ReformaUniversitária:

A USP comprometeu-se prematuramente e atabalhoadamente com a onda

das reformas. A questão é saber se as coisas poderiam ter ocorrido de outra

forma. Em meados dos anos 60 a USP, embora jovem, já possuía uma densi-

dade razoável, e um acúmulo de experiência enriquecida sobremaneira pelas

missões estrangeiras que vieram instalar os cursos. Em teoria, seria o mo-

mento de voltar-se reflexivamente sobre si mesma, reapossar-se de sua histó-

ria, avaliar o passado e entender que o que já tinha consolidado poderia servir

de apoio para enfrentar as escolhas do futuro. Na prática, o golpe de 64 colo-

cou a Universidade diante de uma situação, inesperada ou não, em que ela se

viu apanhada pelo movimento histórico, no torvelinho da barbárie e da vio-

lência, na urgência das escolhas em que, no limite, até mesmo a alienação de

sua autonomia podia aparecer como estratégia necessária à sobrevivência.

Em todo caso, e isto é algo que ainda está por ser analisado com profundida-

de requerida pelo assunto, no decorrer da discussão das reformas, algumas

vezes as reivindicações de professores e estudantes estiveram inexplicavel-

mente próximas das propostas governamentais, ou de grupos comprometi-

dos com o status quo. A extinção da cátedra é um exemplo, mas há outros

bem mais complicados, como a divisão da FFCL. Talvez o caráter conserva-

dor da modernização não aparecesse ainda com suficiente nitidez para todos

os agentes envolvidos. Talvez o lugar da reflexão – a FFCL – já tivesse a esta

altura perdido a radicalidade crítica, ou o poder de exercê-la de modo a al-

cançar a totalidade da instituição. O certo é que a Reforma Universitária da

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170 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

USP provocou muito mais a adaptação da instituição a um processo de mo-

dernização que ela ainda nem tivera tempo de pensar em todo o seu alcance,

do que uma transformação da Universidade nascida de um movimento inter-

no e orgânico de reconstituição de si mesma10.

Para este autor, existe algo de nebuloso e ambíguo na confluênciade tantos interesses pelo esfacelamento da FFCL-USP; no mínimo, umahistória a ser esclarecida. A análise de Franklin Leopoldo e Silva de-monstra quanto a Reforma Universitária da USP ainda carece de pes-quisa. No entanto, existem alguns estudos importantes. Já em 1971, narecém inaugurada Faculdade de Educação da USP, Heladio César Gon-çalves Antunha defende sua livre-docência com a tese intitulada Uni-versidade de São Paulo: fundação e reforma.

Heladio Antunha, ao tratar da Reforma Universitária, analisou odesmembramento da FFCL-USP. O autor chama a atenção para o fatode que tanto se exigia que a FFCL fosse a instituição aglutinadora daUSP, que nem se atentou que esta faculdade não conseguira integrar-senem a si própria, decompondo-se, na prática, em inúmeras seções,subseções e cursos afastados espacial e filosoficamente11. HeladioAntunha exemplifica numericamente a massificação sofrida pela FFCL,onde a expansão no número de alunos levara esta faculdade a se trans-formar em algo desproporcional para os parâmetros da USP. Por exem-plo, em 1969, ano da Reforma, o número de vagas de primeiro ano daFFCL era praticamente a metade do total de vagas neste ano para toda aUSP. Para se ter uma idéia da expansão da FFCL durante a década, oautor cita que em 1969 esta faculdade apresentava um número de vagasde primeiro ano superior ao de toda a USP no recente ano de 196312. Oautor caracteriza a divisão da FFCL como resultado de sua expansão;

10 Franklin Leopoldo e Silva. “A experiência universitária entre dois liberalismos”.Tempo Social – Revista de Sociologia da USP. São Paulo: FFLCH-USP, vol. 10,n. 2, pp. 20-21, out. 1998.

11 Heladio César Gonçalves Antunha. Universidade de São Paulo: fundação e refor-ma. São Paulo: CRPE do Sudeste, 1974, p. 152.

12 Idem, p. 160.

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171a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

fato a dificultar sua administração. A insuficiente produtividade cientí-fica também seria motivo de descontentamento:

Resumindo nossas observações das últimas páginas, parece-nos possível afir-

mar: 1º – a Universidade de São Paulo atingiu, no final da década de 60, um

ponto crítico em seu processo de desenvolvimento quantitativo. Impunha-se,

pois, em conseqüência de sua rápida expansão numérica, a realização de uma

reforma básica em sua estrutura técnica, administrativa e curricular, a fim de

evitar-se a continuação do crescimento desordenado, não planejado e, sobre-

tudo, as ameaças de gigantismo de certos setores, e de burocratização de

seus serviços essenciais de ensino e de pesquisa. 2º – não obstante a sua

grande produtividade técnica e científica, manifestada através dos inúmeros

concursos, nela realizados, para a obtenção de graus acadêmicos, pelas pu-

blicações, investigações e pelos trabalhos técnicos que promoveu e realizou,

a verdade é que o seu rendimento em termos dos tipos de cursos oferecidos e

do número de conclusões de cursos e de diplomados manteve-se aquém da

expectativa.

O autor cita também o enfrentamento político dos estudantes comomotivo para a Reforma Universitária. Heladio Antunha descreve omovimento estudantil numa perspectiva que realça sua manipulação porradicais que colocariam em perigo a própria universidade. O clímaxocorrera quando da luta pela entrega do poder universitário às comis-sões paritárias:

Como nunca, a universidade brasileira esteve, então, ameaçada em um dos seus

princípios fundamentais: na idéia de que a autoridade e a hierarquia universi-

tárias devem basear-se na evidência do mérito objetivamente comprovado e

na maior experiência e maturidade. A instituição das comissões paritárias – e

algumas chegaram a funcionar “de fato”, mesmo na USP, como um poder

paralelo ao dos órgãos tradicionais como o Conselho Universitário, as Con-

gregações e os Conselhos de Departamento – representava na prática a trans-

ferência da autoridade e do governo universitário para os estudantes mais

radicais e aos professores a eles associados, criando-se, assim, os elementos

indispensáveis para se transformar a instituição num instrumento de luta po-

lítica, num bastião ideológico e numa base logística para as incursões revolu-

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172 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

cionárias contra o regime vigente. O período das paritárias foi, na realidade,

em muitos casos, um momento de delírio coletivo, em que estudantes e alguns

professores chegaram a “posar para a história” e pronunciar frases de efeito,

que a crônica da USP merece registrar: “São as minorias que fazem a história”.

“Todo o poder para as paritárias”, e outras de teor semelhante13.

Por ter sido escrito em 1971, o texto de Heladio Antunha serve comofonte privilegiada de observação do horror que o movimento estudantilprovocava em boa parte do corpo docente da USP; inclusive justifican-do neste setor a necessidade de desmembramento da FFCL, onde seconcentrava a maioria do corpo discente. As manifestações estudantisde fins da década de 1960 eram recentes quando Heladio Antunhaescreveu seu texto. O autor demonstra aversão profunda quanto à quebrada hierarquia universitária baseada até então no mérito acadêmicocomprovado pelos mecanismos institucionais da universidade. Para esteautor, conceder o poder às assembléias paritárias, onde alunos opina-riam em posição de igualdade com os professores, seria subverter a pró-pria essência da universidade – instituição calcada no saber objetivamenteauferido por títulos comprovadores do conhecimento e da maturidadedo corpo docente. É possível que outros professores também percebes-sem sua autoridade intelectual e institucional ameaçada pelo movimen-to estudantil. No final da década de 1960, é provável que o horrorprovocado pelo movimento estudantil em Heladio Antunha também fossecompartilhado por outros professores da USP.

Heladio Antunha – como diversos outros autores que posteriormen-te trataram da Reforma Universitária da USP – analisou o RelatórioFerri, como ficou conhecido o Memorial de Reestruturação da USP.Este relatório, elaborado entre 1966 e 1968, propunha que todas as fa-culdades da USP fossem transformadas em institutos, aos moldes daUniversidade de Brasília. Heladio Antunha destaca que o Relatório Ferritem importância somente como curiosidade histórica, pois não elaborouformalmente nenhum projeto de reforma dos Estatutos da USP. O Rela-

13 Idem, pp. 183-184.

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173a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

tório Ferri apenas apresentou sugestões a serem encaminhadas ao Con-selho Universitário, que não as levou em grande consideração; demons-tra isto o fato deste conselho ter demorado cerca de um ano para elaborara proposta de reformulação dos Estatutos da USP14.

Mário Guimarães Ferri, reitor em exercício da USP quando da ela-boração do relatório que ganhou seu nome, era diretor licenciado daFFCL. Se o grupo, que sob sua administração, elaborou proposta quepretendia que todas as faculdades da USP fossem convertidas eminstitutos, é provável que o Conselho Universitário tenha achado apro-priado criar institutos universitários apenas na faculdade onde Ferri eradiretor, isto é, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Ao analisar os resultados da Reforma Universitária, Heladio Antunhaconclui que a função integradora que era atribuída à FFCL agora passaa ser desempenhada por dois órgãos administrativos criados pelos novosestatutos da USP: o Conselho Técnico-Administrativo (CTA) e o Conse-lho de Ensino, Pesquisa e Serviços à Comunidade (CEPE). O “aqueci-mento central” mencionado metaforicamente por Anísio Teixeira noinício deste texto passaria a ser, na USP, o CTA e o CEPE, além doantigo Conselho Universitário. Estes órgãos deliberativos e decisóriosde cunho administrativo – CTA, CEPE e Conselho Universitário –substituíram a incumbência integradora da FFCL, demonstrando umaconcepção que privilegiava a organização burocrática da universidade.

Heladio Antunha, professor da FFCL desde a década de 1940, comseu esfacelamento foi para a recém-criada Faculdade de Educação. Oautor, em 1971, tem esperanças de que esta nova faculdade possa vir aexercer uma “integração terminal” do corpo discente, anteriormenteatribuição das ações de ensino básico da FFCL:

As funções integradoras anteriormente atribuídas à Faculdade de Filosofia

foram repartidas entre os organismos centrais já mencionados (CTA e CEPE)

e as novas instituições criadas, de tal maneira que os Institutos, ao promove-

rem os cursos básicos, passam a desempenhar uma função integradora inicial

14 Idem, p. 216.

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174 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

dos estudantes, isto é, antes de sua vinculação às diversas habilitações profis-

sionais. À Faculdade de Educação, por meio de sua escola de professores, isto

é, por seu curso de licenciatura que, nos últimos anos de graduação, chega a

reunir milhares de alunos das diversas unidades, foi reservada uma especial

tarefa de integração terminal: a de congregar em cursos comuns estudantes em

fase final de estudos, que se destinam ao magistério secundário15.

Nenhuma análise sobre a Reforma Universitária da USP deixa de sereferir ao trabalho de Heladio Antunha, mesmo após três décadas deelaboração desta tese de livre-docência.

Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon, outra especialista na histó-ria da USP, destaca que a idéia de desmembramento da FFCL-USP ébem anterior à crise estudantil de 1968. A proposta de esfacelamento daFFCL não adveio como fruto dos Estatutos da USP de 1969, mas osprecede de vários anos. Esta autora trabalha novamente com os núme-ros apresentados por Heladio Antunha e conclui que o gigantismo daFFCL assustara as demais faculdades da USP. No final da década de1960, a FFCL chega a ter quase 70% das matrículas em relação às de-mais unidades; em 1969, enquanto as outras dezessete unidades da USPtinham um total de 11.170 matrículas, somente a FFCL tinha 7.76416.Este gigantismo lhe foi fatal:

Desintegrada internamente pelas sucessivas acomodações de seu modelo

originário; vítima da indiscriminada abertura de cursos e vagas para a Licen-

ciatura, sem uma adequada reestruturação nem da Universidade, nem dela

mesma (totalmente inadequada, que era, à função profissionalizante que aca-

tara como expediente de sobrevivência); surpreendida, ademais, por um

gigantismo incompatível com os padrões em que se estruturara; e, finalmen-

te, incapaz de competir (no interior da própria Universidade), em prestígio e

15 Idem, p. 220. O autor escreveu também artigo sobre as origens históricas da Faculda-de de Educação da USP: “As origens da Faculdade de Educação da USP”. Revistada Faculdade de Educação. São Paulo: FE-USP, vol. 1, n. 1, pp. 25-41, dez. 1975.

16 Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon. Subsídios para o estudo da Universidadede São Paulo. Tese (Doutorado) – FE-USP, São Paulo, 1986, vol. 2, p. 678.

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175a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

poder por sua auto-preservação e pela auto-condução de seus destinos – a

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras acabará, ao final de trinta anos, por

desmembrar-se e extinguir-se melancolicamente tentando reformar-se17.

A autora traz algo novo para a análise da Reforma Universitária daUSP: seu sentido de facilitadora de ascensão na carreira acadêmica.Utilizando como fonte o depoimento do professor João EduardoRodrigues Villalobos, a autora explicita estes interesses de carreiradocente:

Declarou ainda o Professor Villalobos que o desmembramento da Faculdade

de Filosofia ampliou muito a possibilidade de fazer-se carreira na Universi-

dade – desdobraram-se cargos de alta administração, congregações etc, e

abriu-se a possibilidade de mais rápido trânsito na carreira, pela democrati-

zação da cátedra. Segundo o mesmo professor, essas motivações foram deci-

sivas para a implantação quase pacífica da reforma, auxiliada que foi pelas

circunstâncias políticas de então18.

A tese de Beatriz Fétizon reúne a principal documentação oficialsobre a Reforma Universitária da USP.

Heladio Antunha e Beatriz Fétizon dedicaram-se a problematizar ahistória de toda a USP; outros autores estudaram especificamente aFFCL-USP. Por tratar diretamente da história da Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras da USP, existem dois estudos recentes que mere-cem destaque. O trabalho de Kalliópi Alexandra Aparecida Katsios19 e arecém-concluída tese de Bruno Bontempi Júnior20.

17 Idem, p. 679.18 Idem, p. 681. A autora escreveu também artigo sobre as origens históricas das

Faculdades de Educação: “Faculdades de Educação: antecedentes e origens”. Es-tudos Avançados, São Paulo: USP, vol. 8, n. 22, pp. 365-373, set-dez. 1994.

19 Kalliópi Alexandra Aparecida Katsios. Um estudo sobre o curso de Pedagogia daFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1940-1949). Dissertação (Mestrado) – PUC-SP, São Paulo, 1999.

20 Bruno Bontempi Júnior. A cadeira de História e Filosofia da USP entre os anos 40e 60: um estudo das relações entre a vida acadêmica e a grande imprensa. Tese(Doutorado) – PUC-SP, São Paulo, 2001.

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Kalliópi Katsios pesquisou o curso de pedagogia da FFCL entre asdécadas de 1940 e 1960. A autora descreve como o Instituto de Educa-ção da USP foi incorporado pela FFCL e como o curso de pedagogia daFFCL se desenvolveu durante a existência desta faculdade, quer sejacomo Quarta Seção da FFCL, quer seja como Departamento de Educaçãona década de 1960. Infelizmente, para os propósitos deste atual traba-lho, a autora não se aprofundou no estudo da criação da Faculdade deEducação da USP. Este episódio é tratado como conseqüência naturalda especialização acadêmica proporcionada pela Reforma Universitária.

A tese de Bruno Bontempi Júnior é o mais importante trabalho pro-duzido até agora sobre a história da FFCL-USP. A história desta facul-dade não é seu objeto específico; porém, de sua pesquisa sobre uma desuas cátedras, constrói-se um rico panorama do que era a FFCL-USP. Ainterpretação que o autor faz das transformações pelas quais passou acadeira de história e filosofia da educação, as disputas internas da FFCLe da própria USP recria o ambiente intelectual e as lutas políticas doperíodo abordado. Novamente, para infelicidade deste atual trabalho, oautor não analisou a segunda metade da década de 1960. Algo análogoao esforço empreendido por Bruno Bontempi Júnior a respeito das pri-meiras décadas de existência da FFCL-USP e que se dedicasse aos seusanos finais ainda está por ser feito.

Bruno Bontempi Júnior destaca que as disputas acadêmicas articu-lam-se com as disputas políticas. Para compreender estas ligações, o autorpesquisou a grande imprensa, privilegiadamente o jornal O Estado de S.Paulo. Outra possibilidade de compreender amplamente os conflitosinerentes às disputas acadêmicas pode ser analisá-las de maneira articu-lada com o cenário que extrapola a FFCL-USP e mesmo a própria USP.Por exemplo, compreender como as disputas envolvendo a dissoluçãoda FFCL-USP estavam inseridas no contexto acadêmico nacional.

A SBPC e a Reforma Universitária

O esfacelamento das FFCL possibilitaria que as ciências exatas ebiológicas ganhassem autonomia em institutos universitários próprios.

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177a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência teve participaçãoativa no desenrolar da Reforma Universitária nesta direção. Como abor-dado no início deste trabalho, Maurício Rocha e Silva – presidente daSBPC – articulou propostas de reformulação universitária em parceriacom Valnir Chagas e Newton Sucupira desde o início da década de 1960.Acompanhar como a SBPC discutiu a Reforma Universitária pode es-clarecer o papel centrífugo que os cientistas desempenharam nadissolução das FFCL.

Em 9 de julho de 1967, Maurício Rocha e Silva fez o discurso inau-gural da XIX Reunião Anual da SBPC, realizada no Rio de Janeiro. Estediscurso foi posteriormente publicado como editorial da revista Ciênciae cultura, órgão oficial da SBPC. O tema da reunião e de seu discursode abertura foi a Reforma Universitária. Nesta ocasião, Maurício Rochae Silva analisou os decretos n. 53, de 18 de novembro de 1966 e n. 252,de 28 de fevereiro daquele ano. Segundo o presidente da SBPC, essesdois decretos lançaram as bases da verdadeira Reforma Universitária nopaís. Segundo Maurício Rocha e Silva, o decreto-lei n. 53 tornara obso-leta no regime federal de ensino superior a Faculdade de Filosofia, Ciên-cias e Letras. O autor demonstra júbilo ao comentar que o presidente daXIX Reunião Anual da SBPC e reitor da UFRJ – Raymundo Moniz deAragão – provavelmente falaria naquele encontro sobre sua contribui-ção pessoal na elaboração destes decretos:

Esperamos com ansiedade o discurso do Presidente desta Reunião que nos

dirá da sua contribuição pessoal para a elaboração dos dois Decretos mencio-

nados21.

A questão é: embora as ciências exatas e biológicas pudessem seseparar das FFCL, organizando-se em institutos universitários autôno-mos, os futuros químicos, matemáticos, físicos, biólogos não poderiammais exercer a profissão de professores? A solução encontrada foi enfa-tizada pelo presidente da SBPC:

21 Maurício Rocha e Silva. “A Reforma Universitária”. Ciência e cultura, São Paulo:SBPC, vol. 19, n. 3, p. 541, set. 1967.

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178 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

A formação do professor secundário será feita através de um sistema análogo

ao da formação de qualquer outro profissional, que terá que completar os

seus créditos nas unidades fundamentais para ter acesso às unidades do Ciclo

profissional. Vê-se aqui a grande superioridade deste sistema sobre o supera-

do sistema de Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Até agora, todo

esse complicado sistema de Faculdade de Filosofia, tinha como função

precípua formar professores secundários, o que, convenhamos, era o método

mais caro e absurdo de formar professor secundário num país que precisa

dele a mancheias. [...]

Um professor de química para o curso secundário terá a sua formação básica

nas unidades fundamentais e fará créditos de acordo com o que for estabele-

cido pela sua unidade profissional, que será a Faculdade de Educação, mas a

sua formação será totalmente distinta da do químico que vise ao doutoramento

em Química ou que se encaminha para uma das profissões cuja base é a

química. O mesmo se poderia dizer para o professor de Física, de Biologia,

de Matemática, de Filosofia, de Letras22.

Maurício Rocha e Silva reforçará esta solução no número seguinteda revista Ciência e Cultura:

A Faculdade de Filosofia, na sua função de formar professores secundários,

sobreviverá numa Escola ou Faculdade de Educação que terá a mesma im-

portância ou status das outras unidades profissionais23.

Em 1963, Paulo Sawaya, ao descrever na XV Reunião Anual daSBPC os resultados do simpósio sobre as FFCL, relatou que alguns par-ticipantes propuseram a repartição das FFCL em duas: Faculdadesde Ciências e Faculdades de Filosofia e Letras, pressupondo que as ciên-cias humanas ficariam nesta última. Porém, se isto ocorresse, os quími-cos e biólogos, por exemplo, que desejassem também ser professores

22 Idem, p. 540.23 Maurício Rocha e Silva. “Reforma Universitária”. Ciência e cultura, São Paulo:

SBPC, vol. 19, n. 4, p. 633, dez. 1967.

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179a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

teriam de cursar disciplinas pedagógicas na Faculdade de Filosofia eLetras. Portanto, provavelmente tenha sido este o motivo pelo qual, em1963, alguém tenha proposto a divisão em três: Faculdades de Filoso-fia, Faculdades de Ciências e Faculdades de Educação. Assim, as Facul-dades de Educação seriam espaço comum dos herdeiros da FFCL. Comoas ciências exatas e biológicas almejavam se ordenar em institutos uni-versitários, esta solução também foi viável – ao menos no caso da Uni-versidade de São Paulo. Os defensores da universidade como formadorade pesquisadores e cientistas não desejavam que estes perdessem a pos-sibilidade de ocupar a carreira de professores secundários. Em julho de1967, o discurso de Maurício Rocha e Silva na abertura da XIX Reu-nião Anual da SBPC confirma esta preocupação.

Em decorrência dos decretos n. 53/66 e n. 252/67, o Conselho Fede-ral de Educação aprovou em 9 de maio de 1968 a indicação n. 11:

Para reduzir os efeitos do descompasso acima referido entre as necessidades

da escola média e a deficiência de professores regularmente formados, suge-

re o aproveitamento, no magistério em nível médio, de portadores do diplo-

ma de curso superior mediante freqüência das matérias pedagógicas em

Faculdades de Educação. As disciplinas em que a carência de professores é

mais aguda são: Matemática, Ciências Físicas e Biológicas, Física, Química

e Biologia, bem como as disciplinas específicas do ensino médio técnico24.

Esta indicação visava aumentar o número de professores secundá-rios. Ela legitimava que graduados em institutos de ciências, após o fimdas FFCL, pudessem se tornar professores. Entretanto, da maneira comofoi redigida, abria a possibilidade de graduados de outras áreas que nãoas da FFCL também cursarem a Faculdade de Educação, obtendo assimacesso à carreira docente no ensino médio. Graduados em direito ou emengenharia, por exemplo, também poderiam cursar a Faculdade de Edu-cação. A quem se destinava a Faculdade de Educação?

24 José de Vasconcellos. “Faculdades de Educação e formação de professores”. Do-cumenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 86, p. 132, maio 1968.

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O III Seminário de assuntos universitários e acriação das Faculdades de Educação

Com esta questão em pauta, entre outras, realiza-se em agosto de1968 o III Seminário sobre assuntos universitários. Este encontro comrepresentantes das principais universidades brasileiras debateu dois te-mas: I – A expansão do ensino superior; II – A Faculdade de Educação:teoria e implantação na universidade. O relator e o coordenador destesegundo tema foram respectivamente Newton Sucupira e Valnir Cha-gas. Para os propósitos deste trabalho não será abordado o tema da ex-pansão do ensino superior.

Todos os reitores das universidades brasileiras foram convidadospara o III Seminário sobre assuntos universitários. Quase a totalidadedeles esteve presente. Mário Guimarães Ferri – reitor da USP – nãocompareceu e nem enviou representante. Estava por demais ocupadocom os distúrbios na FFCL-USP que desembocaram em outubro daqueleano nos conflitos da rua Maria Antônia. O Conselho Federal de Educa-ção e seu órgão – a Documenta – geralmente não se pronunciavam so-bre polêmicas. Não foi este o caso. Em outubro de 1968, a Documentapublica a versão dos embates da rua Maria Antônia com o sugestivotítulo “A invasão da Universidade Mackenzie”. Neste texto, a reitora doMackenzie – Ester de Figueiredo Ferraz – apresenta a versão de comoos estudantes da FFCL-USP, que “estavam armados e foram encontra-dos de metralhadoras nas mãos”, tentaram invadir e depredar a Univer-sidade Mackenzie. Isto só não ocorreu devido “à presença e àsolidariedade dos seis mil estudantes da Universidade Mackenzie”. Aofinal, os estudantes da FFCL-USP não conseguiram invadir aquela uni-versidade; “quando a horda se retirou, os estudantes [da Mackenzie]hastearam a bandeira do Brasil e cantaram o Hino Nacional”25. É opor-tuno ressaltar que o autor deste atual trabalho não partilha desta visãodos acontecimentos. Esta versão é apresentada apenas no intuito de de-

25 José Borges dos Santos. “A invasão da Universidade Mackenzie”. Documenta, Riode Janeiro: MEC, n. 92, pp. 136-137.

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181a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

monstrar como o CFE divulgou os episódios da rua Maria Antônia. Estapostura de parte do CFE em relação à FFCL-USP não surge em outubrode 1968; ela é anterior. Tal predisposição negativa do CFE em relação àFFCL-USP serve de exemplo dos motivos de Mário Guimarães Ferrinão ter comparecido em agosto de 1968 ao III Seminário sobre assuntosuniversitários organizado por este conselho; o reitor da USP tinha as-suntos mais importantes a resolver. Para uma visão confiável dos acon-tecimentos da rua Maria Antônia, recomenda-se consultar O livro negroda USP26.

O III Seminário sobre assuntos universitários, no que se refere àsFaculdades de Educação, apresentou para discussão quatro trabalhos,cujos autores foram Celso Kelly, Valnir Chagas, José Farias Góes So-brinho e Newton Sucupira.

Quanto à questão proposta anteriormente – a quem se destinava aformação nas Faculdades de Educação – aparentemente as faculdadesque não compunham a antiga FFCL não perceberam a chance de tambémformar docentes para o ensino médio. Celso Kelly era favorável a quegraduados em outras faculdades também tivessem acesso à carreira domagistério de grau médio:

Desdobradas as faculdades de filosofia e acentuadas as tendências à inclusão

de disciplinas e atividades vocacionais no ginásio, bem como a crescente

transformação de colégios acadêmicos em colégios técnicos, coloca-se o pro-

blema da preparação de professores para as disciplinas específicas, hoje ain-

da fora do âmbito das faculdades de filosofia, mas reclamando soluções mais

generalizadas, que atendam a imensa procura por parte do mercado de traba-

lho. Demais, não existem razões de diferenciação entre professores, dedica-

dos à mesma tarefa de formação da adolescência27.

Esta posição, segundo os registros da Documenta, não provocoudebates. Provavelmente, o exame desta possibilidade tenha sido adiado

26 ADUSP. O livro negro da USP. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1979.27 Celso Kelly. “Faculdades de Educação”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91,

p. 112, set. 1968.

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182 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

para a esfera das discussões do Conselho Federal de Educação. É neces-sária pesquisa das resoluções do CFE sobre pedidos concretos de facul-dades fora do âmbito das FFCL referentes ao acesso à docência de graumédio. Com acompanhamento das decisões do CFE pode-se responderqual foi o consenso alcançado neste conselho sobre esta questão.

Valnir Chagas apresentou trabalho que fora publicado anteriormen-te, no início de 1967, no n. 105 da Revista brasileira de estudos pedagó-gicos. Trata-se de seu texto de 1946 editado originalmente em WashingtonD. C. pela Organização dos Estados Americanos. Neste trabalho, o au-tor afirma que é preciso que as escolas sejam sempre melhores que asanteriores, não só pelas exigências da sociedade moderna, mas tambémpelo novo aluno que a freqüenta, proveniente das camadas populares,ainda sem tradições familiares de estudo e sequioso de êxito em curtoprazo. A educação leva necessariamente a mais educação. Há cada vezmais o que ensinar e a quem ensinar, exigindo níveis cada vez mais altosde formação para professores e especialistas:

Essa evolução é via de regra lenta e acidentada, talvez por ser a educação um

dos setores onde mais fortemente atuam os mecanismos sociais de resistência

à mudança. Entretanto, as fases de processo tendem a suceder-se com grande

regularidade, permitindo mesmo alguma generalização. Por exemplo:

1 – coexistindo com a ausência de qualquer preparo específico do professor

de todos os seus escolares, inicia-se a formação de mestre primário em cur-

sos normais de grau ginasial ou equivalente;

2 – prossegue a formação ginasial e reduz-se a proporção de mestres primá-

rios inteiramente leigos, iniciando-se o seu preparo também em grau de colé-

gio;

3 – desaparece o professor inteiramente leigo e desenvolve-se o preparo do

mestre primário em grau de colégio, iniciando-se a formação de especialistas

em nível pós-colegial;

4 – reduz-se a proporção de mestres primários com preparo ao nível de ginásio

e firma-se como norma a escola normal colegial, iniciando-se a formação es-

pecífica, em grau superior e ao nível de graduação, (a) de professores de disci-

plinas profissionais no ensino normal de grau colegial e pós-colegial, (b) dos

especialistas de Educação e (c) dos professores de ensino médio em geral;

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183a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

5 – desaparece o professor primário de nível ginasial, ao tempo em que pros-

seguem e se desenvolvem as demais características da fase anterior;

6 – coexistem as características da fase anterior com o início de formação de

professores primários em grau superior, ao nível de graduação, e dos especia-

listas para todos os graus ao nível de pós-graduação;

7 – reduz-se a proporção de mestres primários e especialistas com preparo de

grau colegial ou pós-colegial, iniciando-se a formação dos professores de

ensino médio em geral ao nível de pós-graduação;

8 – desaparecem os professores primários e especialistas com preparo cole-

gial ou pós-colegial e fixa-se, assim, todo o ensino pedagógico em grau su-

perior, aos níveis de graduação e pós-graduação, começando-se inclusive a

exigir alguma formação específica, para o magistério, do professor universi-

tário que atue nos demais setores, e assim por diante.

Em países como o Brasil, a fase típica no momento é a quarta, embora exis-

tam regiões onde se recua até a segunda e outras que já se delineia a sexta. Mas

esta, com algum alcance sobre a sétima, caracteriza sobretudo o estágio de de-

senvolvimento educacional da Nova Europa e da União Soviética, tal como a

sétima, aflorando à oitava, já pode ser encontrada nos Estados Unidos. Seja

como for, a tendência geral é definir e institucionalizar a educação como ati-

vidade profissional de nível superior; e onde isto ainda não ocorre, existe pelo

menos a nítida consciência de que as soluções em prática não representam mais

que etapas de transição para este objetivo final28.

Para Valnir Chagas, a criação da Faculdade de Educação é apresen-tada como etapa num longo processo de escolarização da sociedade, emque a tendência geral é definir e institucionalizar a educação como ati-vidade profissional de nível superior. A Faculdade de Educação promo-veria a renovação do ensino superior em duas direções:

Uma nasce da pesquisa e se expressa pela realização de estudos que o situem

numa exata perspectiva educacional; outra provém do ensino e consiste na

28 Valnir Chagas. “Faculdade de Educação e a renovação do ensino superior”. Docu-menta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, pp. 92-93, set. 1968.

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184 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

formação de professores e especialistas para muitas das atividades docentes

e didático-administrativas; e ambas convergem para a idéia central de que

ensino superior é também educação – ou mais precisamente, como observa-

mos na primeira parte deste ensaio – apenas um caso do processo geral de

escolarização. A muitos esta afirmativa parecerá ambiciosa, a outros soará

como repetição do óbvio. No fundo, porém, ela corresponde a uma realidade

que só nos últimos tempos se vai tornando patente29.

O autor define quais as tarefas imediatas da Faculdade de Educaçãono seu processo de renovação do ensino superior:

A Faculdade de Educação alcançará ao mesmo tempo os três itens que de

início arrolamos entre os meios de assegurar a excelência: (a) formará do-

centes para os setores básicos de outras escolas, quando ela mesma já não

centralize tais setores; (b) oferecerá cursos pedagógicos para os professores

universitários em geral; e (c) encarregar-se-á do preparo de especialistas que

deverão coordenar as atividades de escolas, professores e alunos, reunindo

novos fatos que levarão a subseqüentes estudos e aperfeiçoamentos30.

Valnir Chagas pretendia que seu texto de quinze páginas fosse osuporte teórico das discussões sobre o papel da Faculdade de Educaçãono contexto da universidade brasileira. Os textos de José Faria GóesSobrinho e de Newton Sucupira expõem questões mais pragmáticas daordenação institucional desta nova faculdade.

José Faria Góes Sobrinho – coordenador de planejamento da Facul-dade de Educação da UFRJ – apresenta como a Faculdade de Educaçãoseria organizada nesta universidade:

Sete Departamentos estamos a propor que se venham a instituir na Faculda-

de de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

Departamento de Fundamentos Sociais e Filosóficos da Educação

Departamento de Biologia Educacional, Higiene Escolar e Educação de Saúde

29 Idem, p. 99.30 Idem, p.100.

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185a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

Departamento de Psicologia e Orientação Educativa

Departamento de Didática

Departamento de Administração Escolar

Departamento de Estatística Educacional, Avaliação e Metodologia da Pesquisa

Departamento de Educação Especial31.

O autor afirma que é urgente a recomposição do desfalcado quadrode professores da Faculdade de Educação, de modo a capacitá-la parabem responder aos imperativos que motivaram a sua criação.

Newton Sucupira preocupou-se em estabelecer a grade curricularda Faculdade de Educação. O autor afirma que no momento havia in-certeza e diversidade de critério quanto às matérias que deveriam com-por o quadro das disciplinas desta faculdade. O que tradicionalmente sedenominava pedagogia geral era a utilização de elementos provenientesda filosofia e das ciências humanas no estudo da educação. Assim, apsicologia da educação e a sociologia da educação continuavam, emsua essência, psicologia, história, sociologia, filosofia.

Do ponto de vista prático, e para atender ao princípio de não duplicação que

rege nossa organização universitária, pergunta-se: estas matérias devem per-

manecer nos departamentos de matérias correspondentes? Se assim proce-

dêssemos, a Faculdade de Educação ficaria praticamente esvaziada. Em nosso

entender por suas vinculações estritas com a educação as matérias citadas

devem constituir patrimônio da Faculdade de Educação32.

Newton Sucupira apresenta sua proposta curricular para a Faculda-de de Educação:

Sem a pretensão de apresentar uma lista completa das disciplinas ou áreas de

estudos que, a nosso ver, deveriam integrar a Faculdade de Educação, enu-

meramos as seguintes:

31 José Faria Góes Sobrinho. “A Faculdade de Educação: sua implantação na univer-sidade”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, p. 106, set. 1968.

32 Newton Sucupira. “Conteúdo da Faculdade de Educação e organização departa-mental”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, pp. 83-84, set. de 1968.

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186 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

1 – Psicologia da Educação

2 – Sociologia da Educação

3 – História da Educação

4 – Filosofia da Educação

5 – Administração Escolar

6 – Estatística Educacional

7 – Métodos e Técnicas da Pesquisa Pedagógica

8 – Educação Comparada

9 – Higiene Escolar

10 – Currículo e Programa

11 – Técnicas Audiovisuais da Educação

12 – Técnicas à Orientação Educacional

13 – Instrução Programada

14 – Teoria e Prática da Escola Primária

15 – Teoria e Prática da Escola Média

16 – Planejamento Educacional

17 – Economia da Educação

18 – Política Educacional

19 – Legislação Escolar

20 – Didática Geral

21 – Didáticas Especiais ou Métodos de Ensino33.

O autor sugere também a composição departamental da Faculdadede Educação:

Cremos que seria razoável a formação de quatro departamentos com as se-

guintes denominações:

1 – Departamento de Fundamentos Sócio-fisiológicos da Educação

2 – Departamento de Psicologia Educacional e Orientação Educativa

3 – Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional

4 – Departamento de Métodos e Técnicas da Educação34.

33 Idem, pp. 84-85.34 Idem, p. 85.

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187a reforma universitária e a criação das faculdades de educação

O III Seminário de assuntos universitários utilizou-se destes quatrotrabalhos como ponto de partida de suas discussões. As divergências esugestões podem ser acompanhadas nas quatro páginas que compõem orelatório da comissão sobre a Faculdade de Educação35. Entretanto, ana-lisando este relatório, constata-se a inexistência de discordâncias polê-micas. É provável que este seminário tenha servido para aparar arestasquando da formulação do currículo mínimo do curso de pedagogia36.Além, é claro, de tentar estabelecer um mínimo de unicidade na organi-zação institucional das Faculdades de Educação nas diversas univer-sidades brasileiras. É necessário analisar a configuração dos diversoscursos de pedagogia e das diversas Faculdades de Educação no final dadécada de 1960 e início da década seguinte levando-se em consideraçãoos debates ocorridos em agosto de 1968 sobre a estruturação destas fa-culdades. Para melhor compreensão da institucionalização acadêmicadurante a Reforma Universitária é apropriado relacionar as especifi-cidades internas de cada instituição com o debate amplo que ocorre emtorno dos seminários organizados pelo Conselho Federal de Educação.

Neste trabalho, pretendeu-se demonstrar como a Reforma Univer-sitária e a criação das Faculdades de Educação são temas de longa dura-ção nos debates educacionais brasileiros da década de 1960. O destinodas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras ocupou papel privilegia-do na discussão sobre a Reforma Universitária – muitas vezes confun-dindo-se mesmo com ela. Além do Conselho Federal de Educação,deve-se atentar a outros fóruns de debate sobre a Reforma Universitá-ria. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência desempenhoupapel de destaque nos embates que definiram a configuração universitá-ria no final da década de 1960, sendo que algumas áreas científicas exer-ceram função centrífuga no desmembramento das FFCL. Embora taiscientistas privilegiassem uma visão da universidade como formadorade pesquisadores e promotora das ciências, não desejavam abrir mão dapossibilidade de carreira docente no ensino médio. As Faculdades de

35 “Faculdade de Educação: relatório final da segunda comissão”. Documenta, Riode Janeiro: MEC, n. 91, pp. 116-119, set. 1968.

36 Vide Nair Fortes Abu-Merhy. “Currículo de pedagogia”. Documenta, Rio de Janei-ro: MEC, n. 100, pp. 101-139, abr. 1969.

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Educação foram desmembradas das Faculdades de Filosofia, Ciências eLetras para fornecer aos graduados do que sobrou desta faculdade aformação necessária ao magistério. Além, é claro, de prosseguir na gra-duação específica em pedagogia – o que já faziam como departamentosdas FFCL. É necessário relacionar os acontecimentos específicos de cadainstituição de ensino superior com o debate mais amplo da ReformaUniversitária nacional para compreender satisfatoriamente a configura-ção universitária brasileira do final da década de 1960. Pesquisar a his-tória única de cada universidade pode ser fértil se acompanhada dosdebates do Conselho Federal de Educação, dos Conselhos Estaduais deEducação, da SBPC, da CAPES, do CNPq, do INEP, do CBPE, dos CRPEs,entre outros, relatos em sua respectivas publicações.

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O presente artigo trata da Escola Normal de Cuiabá, criada e organizada por um professorpaulista, Leowigildo Martins de Mello, que se formou na Escola Normal Caetano deCampos e se deslocou para Mato Grosso atendendo à solicitação do governo, com a fina-lidade de reorganizar a instrução pública do estado. Através da análise da estruturaorganizacional e curricular dessa instituição, buscou-se estabelecer confronto entre omodelo escolar paulista, representado por Mello, e a forma pela qual tal modelo foiincorporado, tendo em vista a realidade educacional, social e econômica do estado doMato Grosso.HISTORIOGRAFIA; EDUCAÇÃO; FORMAÇÃO DE PROFESSORES; MATO GROSSO;ESCOLA NORMAL.

This study analyses the Normal School in Cuiabá, created and organized by a teacher fromSão Paulo, Leowigildo Martins de Mello, who was graduated by the Normal School“Caetano de Campos” and that moved to Mato Grosso at the request of the localGovernment, with the objective of structuring the public instruction in the State. Based onthe analysis of the organizational and curricular structure of that institution, I tried toestablish a comparison between the São Paulo scholar model, represented by Mello, andthe form in which such model was incorporated taking into account the educational, socialand economic reality of the State of Mato Grosso.HISTORIOGRAPHY; EDUCATION; TEACHERS FORMATION; MATO GROSSO;NORMAL SCHOOL.

Leowigildo Martins de Melloe a organização da

Escola Normal de Cuiabá

Elizabeth Figueredo de Sá Poubel e Silva*

* Mestre em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e douto-randa em educação na Universidade de São Paulo (USP).

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A Escola Normal de Cuiabá, mais conhecida como Escola Normal“Pedro Celestino”, tem um significado especial na história da educaçãodo estado de Mato Grosso. Faz parte da memória dos muitos educadoresque, por ela formados, se espalharam por todo estado para lecionar epara ocupar cargos administrativos na educação.

Ansiada e reclamada pelos governantes e pelos diretores gerais deensino do estado durante muitos anos consecutivos, esta instituição, ape-sar de várias tentativas de implantação no século XIX, não teve o êxitoesperado. No início do século XX, o discurso da formação de professo-res foi retomado, porém para atender aos interesses do grupo liberalrepublicano. O governo de Mato Grosso autorizou a reorganização daInstrução Pública do estado através da lei n. 533 de 4 de julho de 1910.Era necessário que Mato Grosso organizasse o ensino público de formaa adequá-lo ao movimento da sociedade.

Segundo Rodrigues (1988), a formação do professor, nesse processo,adquire fundamental importância por se considerar que através da suaação direta se imprimiria uma nova moral, modificadora de hábitos ecostumes, criando as condições indispensáveis ao progresso da região.Desta maneira, investir na formação do professor era fundamental paraa efetivação do “progresso social”, pois sua ação eficaz eliminaria aignorância, traria a civilidade e a ordem social1.

Os Presidentes de Estado demonstravam, em suas mensagens, que aformação dos professores naquele período não era adequada e que taisprofissionais não eram capazes de cumprir o papel a eles destinados2. A

1 Corrêa da Costa, primeiro vice-presidente do estado de Mato Grosso, em suamensagem dirigida à Assembléia Legislativa no dia 13 de maio de 1910 fez a seguinteafirmação: “Convencido da necessidade urgente de cuidarmos do futuro da instru-ção popular, base fundamental de todo o verdadeiro progresso social, que é tantoque o primeiro passo a dar para esse fim é a formação de bons professores...”.

2 A situação do professorado do estado é relatada pelos Presidentes de Estado emsuas mensagens à Assembléia Legislativa nos anos de 1897, 1898, 1899, 1907 e1909. Na mensagem de 1907, o doutor Manoel José Murtinho foi enfático ao afir-mar que “as escolas, regidas por professores mal preparados e sem a indispensávelvocação para o magistério, estão longe de satisfazer as necessidades do ensino, daeducação da infância que as freqüenta”.

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reforma proposta deveria iniciar pela formação dos professores, enten-dendo que todas as inovações dependiam da ação docente e que estadeveria estar qualificada para tal finalidade.

Sendo assim, o governo autorizou a contratação de dois normalistaspaulistas para reformularem o ensino mato-grossense. A importânciaatribuída à Escola Normal de São Paulo deve-se ao fato de esta, desde asua reforma em 1890, ser considerada como referência para as demais,como pólo irradiador de um novo ideário pedagógico de alcance rápidopara combater o analfabetismo e a ignorância (Amâncio, 2000).

Em execução das leis nº 508, 1908 e 1910, dei começo à reorganização do

ensino oficial do Estado. A instrução primária foi moldada pelos métodos

seguidos em São Paulo, que incontestavelmente, no nosso país, ocupa a

vanguarda na formação intelectual e na educação cívica da infância e da

mocidade.

Ali foram postos em prática os processos pedagógicos preferidos nos países

mais adiantados da Europa e nos Estados Unidos da América do Norte [Mato

Grosso, Mensagens..., 1911].

Segundo Carvalho (2000, p. 226) “[...] viagens de estudo a esseestado e empréstimo de técnicos passam a ser rotina administrativa nahierarquia das providências com que os responsáveis pela InstruçãoPública de outros estados tomam iniciativas de remodelação escolar naPrimeira República [...]”.

Leowigildo Martins de Mello e Gustavo Kuhlmann, normalistasformados em 1909 pela Escola Normal Caetano de Campos, em SãoPaulo, foram então contratados pelo governo do estado com a responsa-bilidade de remodelar o ensino de Mato Grosso, que se encontrava, se-gundo eles, disperso e sem parâmetros organizacionais (Mato Grosso,Relatórios..., 1911). Iniciaram o trabalho fazendo visitas aos distritospara diagnosticar o ensino no estado, solicitando, logo após, a criaçãode grupos escolares e da Escola Normal.

Na Escola Normal, foram depositadas as esperanças do sucesso dessareforma de ensino, na medida que a referida escola conferiria a habilita-ção necessária do pessoal para a regência das escolas primárias.

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Desta forma, foi criada a Escola Normal de Cuiabá e instalada nodia 1º de fevereiro de 1911, na rua 1º de Março, n. 16 sob a direção doprofessor Leowigildo Martins de Mello, fato este que foi saudado pelocoronel Pedro Celestino Corrêa da Costa, primeiro vice-presidente deestado, por ser de seu conhecimento que a carreira do magistério eraocupada, em sua maioria, por professores interinos sem preparo nemconhecimentos pedagógicos. Segundo ele, essa instituição “[...] veio jásanar uma das mais sensíveis dessas lacunas no preparo do pessoaldocente, diminuto na capital e quase nulo no interior [...]” (idem).

A pesquisa realizada acerca da organização administrativa e curriculardessa instituição, narrada no presente artigo, se deteve ao período emque Mello esteve na sua direção, de 1910 a 1916, quando então se travouum confronto entre as propostas educacionais do professor paulista e arealidade educacional, social e econômica do estado de Mato Grosso.

I. Organização administrativa

1.Instalação física e recursos materiais

Durante o Império, em Mato Grosso, as escolas públicas funcionavamem casas alugadas adaptadas para esse fim. Muitas vezes, a casa erauma extensão da residência do professor, portanto, não oferecia espaçoadequado para a organização das salas de aula. Padre Ernesto CamiloBarreto, em relatório, discorria sobre o estado de abandono em que seencontravam as escolas:

[...] sem casas adaptadas, sem mobília, sem materiais para aprender e ensinar

a ler, escrever e contar, a escola é, sempre, uma irrisão [...] Mas, se é certo

que o professorado, entre nós, não corresponde à missão que lhe é confiada,

como convém, também não é menos exato que, nas condições em que a pro-

víncia o tem conservado e conserva, seria um milagre se correspondesse [Leite,

1970, p. 47].

No entanto, gradativamente, educadores e autoridades passaram adefender espaços específicos para o serviço escolar. Porém, os problemas

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persistiam, tornando-se constantes as reclamações referentes a telha-dos, reforma dos prédios, construção de sanitários etc.

Esta realidade ainda não havia se alterado no período de instalaçãodas Escolas Normal e Modelo anexa, que foram instaladas numa casaalugada na antiga rua 1º de Março, hoje chamada rua Galdino Pimentel,consideradas por Mello sem condições pedagógicas e higiênicas (MatoGrosso, Relatórios..., 1911).

Foi para liquidar esta situação que o governo investiu na construçãodo Palácio da Instrução, sob a direção do engenheiro doutor MiguelCarmo de Oliveira, sendo este prédio localizado no centro da cidade,com instalações adequadas para abrigar o Liceu, a Escola Normal e aEscola Modelo anexa.

O Palácio da Instrução era um prédio majestoso para a época, dignodo nome que recebera. Souza (1998, p. 124) afirma que “a política deconstruções escolares promovida pelos governos republicanos no estadode São Paulo elevou os edifícios escolares à altura da importânciaatribuída à educação naquele momento histórico”. Não fora diferenteem Mato Grosso.

Desta forma, tiveram a instrução primária e a Escola Normal, pelaprimeira vez, um prédio com salas de aula construídas para este fim,provido de mobiliários completos, mandados vir da América do Norte,contendo carteiras duplas e individuais, armários, cadeiras, mesas erelógios de parede (Mato Grosso, Mensagens..., 1912).

Apesar do investimento na parte arquitetônica, tornando-o um prédioagradável e funcional, era necessário que atendesse também às exigênciaspedagógicas de uma escola concebida nos termos do método intuitivo eenciclopédico. Era preciso então a criação de outros espaços e a aquisiçãode equipamentos que atendessem às necessidades pedagógicas.

De acordo com o posicionamento teórico metodológico, o relatóriode 1912 foi enviado ao Secretário de Estado dos Negócios do Interior,Justiça e Fazenda solicitando os seguintes espaços e equipamentos: oGabinete de antropologia pedagógica e psicologia experimental, paraos estudos da cadeira de pedagogia e psicologia; o Gabinete de física equímica, para os estudos experimentais destas matérias, o Museu dehistória natural e de anatomia psicológico-descritiva animal e vegetal,

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para o estudo das ciências naturais, a coleção completa de sólidos geo-métricos e demais aparelhos para o uso da geometria; e quadros muraisou ideografias históricas, geográficas e astronômicas para os estudos dehistória, geografia e cosmografia.

Dos gabinetes solicitados, foi implantado somente o Gabinete defísica e química, equipado com um microscópio e um esqueleto humano(Mato Grosso, Mensagens..., 1915).

Embora o espaço físico das Escolas Normal e Modelo tivessemelhorado, a direção ainda encontrou, em 1915, alguns requisitos a seremalterados, como a construção de um muro ou gradil para que as criançasda Escola Modelo tivessem recreações durante o intervalo, impossíveisno momento, por atrapalharem as aulas da Escola Normal e do Liceu; ea falta de iluminação, impedindo o funcionamento do prédio no períodonoturno e o possível funcionamento de uma biblioteca.

Acerca de tais solicitações, Amâncio (2000, p. 113) chama atençãopara a função social da escola, considerada “instância cultural a serviçoda difusão da cultura e dos valores cívico-patrióticos. E que nenhumimpedimento de ordem física deveria fechar as portas da escola para airradiação da cultura”.

2. Direção, corpo docente e discente

Outro fator importante a ser analisado é o quadro administrativo daescola, suas funções e relações de poder.

Paulista de Itararé, tinha Mello 21 anos quando assumiu a respon-sabilidade, juntamente com Kuhlmann3, da reforma educacional do es-tado de Mato Grosso. Segundo Mello, com a finalidade de conhecerema realidade educacional da capital do estado, procederam visitas às es-colas primárias, tendo ficado o 1° distrito sob sua responsabilidade e ado 2° distrito à cargo de Kuhlmann.

3 Gustavo Kuhlmann assumiu a direção do Grupo Escolar Senador Azeredo, localiza-do no 2° Distrito. Escrevia e publicava as suas Conferências Pedagógicas na revistaA Nova época.

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Com a inauguração da Escola Normal, Mello4 acumulou a funçãode diretor dessa instituição, da Escola Modelo e de professor da cadeirade pedagogia. Era considerado, pelos que conviviam com ele, como umprofissional distinto entre os mais exímios da atual geração de educa-dores.

[...] jornalista adestrado na arte difícil; de levar o público ao convencimento

da justeza dos ideais que defendesse; orador fluente, possuidor do segredo

de elevar as multidões; inteligente; simpático; maneiroso; quem estaria em

melhores, em o mais favoráveis condições de propugnar, com imediata

vantagem, pelo melhoramento da cultura geral em nosso meio, intensificando

a campanha benfazeja contra o analfabetismo [Corrêa Filho, 1923, p. 33].

As concepções pedagógicas de Mello e Kuhlmann encontraramopositores veementes na sociedade cuiabana, ambos sofreram difamaçõese agressões por parte dos jornais de procedência religiosa.

Em Cuiabá, os normalistas residiram, constituíram família commulheres de famílias cuiabanas tradicionais e criaram raízes. Tudo indica,porém, que foram inúmeras as dificuldades com as quais se depararamesses professores paulistas. Dificuldades que, diga-se de passagem,extrapolavam o âmbito das questões educacionais. Os jornais da épocaregistraram com detalhes riquíssimos as muitas polêmicas provocadas,e muitas vezes alimentadas pelos dois jovens professores, “republicanosconvictos” (conforme eles próprios se intitulavam) que, inserindo-se navida político-cultural de Cuiabá, conquistaram rapidamente tanto amploespaço na imprensa local quanto alguns inimigos ferrenhos, representadospelo grupo do jornal católico A Cruz5.

Ao questionar Maria de Arruda Müller, aluna da segunda turma deformandos da Escola Normal, sobre as características da personalidadedo diretor da Escola, a mesma respondeu: “Leowigildo era muito rígi-do, duro, mas muito competente” (Müller, Entrevista, 1998).

4 Esteve ele à frente da Escola Normal desde sua implantação, sendo demitido em1916. Após sua demissão exerceu a função de advogado provisionado, vindo afalecer aos trinta e três anos de idade.

5 Cf. Amâncio, 2000, p. 89.

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Este perfil era próprio da atribuição conferida ao diretor, de garan-tir a ordem e a disciplina, como se pode observar nas atas das reuniõesda Congregação, as quais presidia.

Na reunião de maio de 1915, Mello levou ao conhecimento dospresentes que a Escola estava sofrendo uma série de “calúnias”. Emvirtude de tal fato, decidiu-se criar uma comissão formada por algunsdocentes da Escola para abrir inquérito e apurar os fatos. A maioria dasacusações feitas se referiam ao próprio diretor que, segundo os “calu-niadores”, “não orienta nem visita as aulas da Escola Modelo”, “que,por intermédio da Inspetora, fez com que as alunas se parcializassem nodepoimento sobre o já tão falado caso do professor de francês”, “que oponto é abonado dos professores faltosos” e, por último, que “o regula-mento da Escola é vontade do seu diretor e a Escola é o seu feudo”(Mato Grosso, Atas..., 1915, pp. 81-82).

A última acusação foi considerada uma afronta pelos docentes, poissegundo eles, “para que o regulamento seja a vontade do Diretor e a Con-gregação o seu feudo é preciso que os professores sejam uns títeres nasmãos do mesmo Diretor e a Congregação uma nulidade” (idem, p. 82).

Na reunião seguinte, em 21 de maio do mesmo ano, tomaramconhecimento do resultado do inquérito instaurado com o objetivo deapurar as denúncias feitas, concluindo que tais denúncias não procediam,sendo tal relatório aprovado por todos os presentes.

As críticas acerca das ações de Mello, feitas através de comentários,comprovam os conflitos existentes no interior da Escola Normal emrelação às ações hierárquicas que privilegiavam uns em detrimento deoutros.

No entanto, pelo fato da Congregação ser formada exclusivamentepor docentes, a decisão tomada sempre favorecia a categoria, sendoextremamente parcial e autoritária, em nome da disciplina e do cum-primento do regulamento em vigor. Negar a participação dos professo-res nos encaminhamentos e nas decisões tomadas seria desfazer daposição deles na hierarquia existente na Escola, e isso eles não poderiampermitir.

O quadro docente, no primeiro ano de funcionamento, era constituídode profissionais masculinos da sociedade mato-grossense que, na sua

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totalidade, lecionavam sem qualquer formação pedagógica, nomeadospelo governo. No ano seguinte, em 1912, a grade curricular sofreualteração, modificando também o quadro de professores. Pela primeiravez uma mulher lecionou na Escola Normal, porém, assumindo a aulade música, e não uma cadeira de cunho científico. Essa mulher era AzéliaMamoré de Mello, esposa do diretor.

Por não terem formação acadêmica específica, os professoresmudavam de cadeira conforme lhes era conveniente. Este fato aconteceuem 1912, quando o doutor Aprigio dos Anjos removeu-se da cadeira deportuguês para a de história natural, e também nos anos posteriores,ocasionando o pedido da direção, em 1915, ao diretor geral da InstruçãoPública, para a realização de um concurso visando ao provimento dascadeiras da Escola Normal, alegando a instabilidade do quadro docentedevido ao grande número de nomeações, exonerações, licenças etransferências. No entanto, prevendo a intervenção política no concurso,ele alertou que seria necessário.

[...] que aos concursos presidam toda justiça, completo critério e perfeita

ponderação sobre a idoneidade e capacidade educativa dos concorrentes, pois

que é bem mais preferível um péssimo interino, remissível por um simples

ato do Governo, do que um mau lente vitalício [Mato Grosso, Relatórios...,

1915].

O Presidente de Estado, em sua mensagem à Assembléia Legislativa,ciente da realidade política existente no estado, afirmou que o que faziamal ao ensino público era:

[...] o contágio da politicagem, fazendo do professor público o servidor de

um partido, o galopim eleitoral, que escreve a ata e é o agente da cabala

eleitoral. O que faz mal ao ensino é essa intromissão malsã do patronato nos

concursos para provimento dos lugares do magistério [Mato Grosso,

Mensagens..., 1915].

O concurso realizado contou com apenas quatro candidatos para ascadeiras de português, física, química, matemática e geografia, porém

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só foi aprovado o doutor Pedro Laurentino de Araújo Chaves, que con-correu para lecionar a língua portuguesa, sendo que os outros nem mes-mo conseguiram completar as provas (Mato Grosso, Mensagens..., 1916).Desta forma, o quadro docente da Escola Normal continuou sendo for-mado, majoritariamente, de interinos indicados pelo governo.

Em seu relatório, Mello, embora tenha reconhecido a dedicação dosprofessores, os descreveu como neófitos, sem prática de ensino (MatoGrosso, Relatórios..., 1911). Ele justifica sua preocupação constante comos professores, pois tinha ciência de que a qualidade do resultado daformação proposta pela Escola Normal, de sua responsabilidade, estavanas mãos, principalmente, dos docentes, não só dos que lecionavam naEscola Normal, como também na Escola Modelo anexa, onde osnormalistas tinham suas aulas práticas.

Para que esta instituição desempenhasse bem o papel a ela confiado,tornou-se necessário, além de investir no quadro docente, selecionarbem os discentes que seriam os futuros professores primários. Assim,para ingressarem na Escola Normal, era necessário que os candidatosfossem submetidos a um exame, no qual deveriam demonstrar conhe-cimentos nas seguintes áreas: gramática elementar da língua portugue-sa, leitura de prosa e verso, escrita sobre ditado, caligrafia, aritmética,morfologia geométrica, desenho a mão livre, moral prática e educaçãocívica, geografia geral e história do Brasil, noções de cosmografia, no-ções de ciências físicas, químicas e naturais, e leitura de música e canto.Por ser o ensino laico, já não era exigido o conhecimento da doutrinacristã, pré-requisito da Escola Normal de 1874. Segundo o art. 32. doregulamento, era necessário que os alunos apresentassem documentosque comprovassem: idade de 14 anos para o sexo feminino e de 15 anospara o masculino, moralidade, ter sido vacinado ou ter sofrido de varío-la, não padecer de nenhuma doença contagiosa, licença do pai, tutor oumarido quando casada.

O magistério primário abriu um espaço para que as mulheresingressassem no mercado de trabalho. Mesmo com baixos vencimentos,esta habilitação possibilitava às mulheres experimentarem um pouco deliberdade, ainda que vigiada, pois a sua formação não poderia colocarem risco a hegemonia masculina. Segundo o Presidente do Estado:

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leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 199

Presentemente já se vai a tendência para se confiar à escola primária, de

preferência as mulheres, consoante as leis da pedagogia [...]

Pensa que a mulher é que compete o magistério primário, visto como esse

magistério é um prolongamento da educação familiar, na qual a família exerce

a sua função educativa como a disciplina, o exemplo e o ensino [Mato Grosso,

Mensagens..., 1916].

O número de alunos matriculados era em sua maioria do sexofeminino.

Quadro IALUNOS MATRICULADOS NA

ESCOLA NORMAL DE CUIABÁ (1911-1916)

Anos Alunos Alunas Total

1911 2 14 16

1912 7 36 43

1913 8 27 35

1914 12 34 46

1915 12 61 73

1916 6 59 65

Total 47 231 278

Fonte: Mensagem do Presidente de Estado doutor Francisco de AquinoCorrea à Assembléia Legislativa em 7 de setembro de 1919.

Quadro IIPROFESSORES FORMADOS NO PERÍODO 1913-1916

Ano Feminino Masculino Total

1913 5 1 6

1915 7 2 9

1916 5 1 6

Total 17 4 21Fonte: Mato Grosso, AEEPM, livro n. 1 de registro de diplomas da EscolaNormal de Cuiabá (1914-1925).

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Embora fosse admitido um número considerável de alunos, muitosficavam pelo caminho, terminando o curso um número bem inferior aoque iniciara. Nos primeiros seis anos de funcionamento, a Escola Nor-mal colocou no mercado de trabalho 21 novos professores, como mos-tra o quadro II, número ainda insuficiente ante as necessidades do estado.

II. Organização curricular

Desde a década de 1870, as críticas em relação à instrução popularsugeriam a necessidade de reformulação da escola primária existentesob as bases dos padrões educacionais considerados modernos. Sendoassim, o método intuitivo foi o símbolo dessa renovação e modernizaçãodo ensino.

[...] os métodos intuitivos e os estudos da natureza deslocavam para observar

a antiga arte de ouvir e repetir [...] A pedagogia “do ouvir” deslocava-se para

a “do olhar” no final do século XIX, ao mesmo tempo que a arte de memorizar

perdia o seu prestígio [Vidal, 1994, p. 11].

A implementação da reforma educacional de Mato Grosso, em 1910,procurou consolidar a presença do método intuitivo no seu ensinopúblico, estando seus organizadores harmonizados com a metodologiapropagada pela Escola Normal de São Paulo e com a bibliografiapedagógica do período.

Para que as inovações propostas surtissem o resultado esperado, tor-nava-se necessário que houvesse mudanças não só na estruturaorganizacional da escola pública primária, como também no seu cotidianoescolar e na prática docente, sendo os professores os verdadeiros agentesde introdução de tais mudanças. Com a finalidade de formar professo-res conhecedores desta “nova” metodologia foi então (re)organizada aEscola Normal de Cuiabá. Em seu relatório, Mello expõe a fundamenta-ção teórico-metodológica da Escola Normal:

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leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 201

Seu programa de ensino, cuja orientação é, como bem disse Pestalozzi [...]

ensinar a fazer, fazendo, e não, ensinar a fazer, dizendo como se faz. [...] É lei

fundamental de pedagogia, que, em aquisição de conhecimentos, os fenôme-

nos devem sempre partir do consciente para o inconsciente, mediando, entre

essas duas frases extremas da evolução físico-psíquica, o termo médio-cons-

ciente – inconsciente, ou, por outras palavras, a ação educadora deve partir

do concreto para atingir ao abstrato, mediante a transição natural pelo con-

creto-abstrato [Mato Grosso, Relatório...,1912].

Os mestres tinham a tarefa de preparar e apresentar os conteúdos aoeducando, sempre partindo do particular, utilizando os órgãos dossentidos, e, após a impressão sensorial, os conhecimentos adquiridosseriam traduzidos em exercícios graduados.

Algumas orientações foram dadas através do Regulamento da EscolaNormal a respeito da metodologia a ser adotada nas aulas, com afinalidade de inserir no cotidiano dos normalistas um ensino através daobservação.

§2- Na organização dos programas os lentes deverão desenvolvê-los o mais

possível, atendendo aos seguintes princípios:

a) O ensino das línguas vivas terá um cunho principalmente prático, para o

que os usos lexicológicos e sintáxicos deverão ser deduzidos da leitura e da

interpretação de escritores notáveis, visando o correto manejo das línguas e

uma fácil e lógica sistematização gramatical.

b) O ensino das disciplinas científicas deverá ser graduado em ordem a

que, conjuntamente com a aquisição de conhecimentos, os alunos adquirem

o método a seguir na transmissão dos mesmos.

c) O ensino das disciplinas artísticas será organizado de maneira a fornecer

aos alunos os meios necessários à concretização das noções ministradas nas

escolas primárias [Mato Grosso, Regulamento..., 1914, p. 7].

Os programas de estudo também foram organizados com estepropósito, porém, na prática, embora o discurso fosse fundamentado noensino sensorial, principalmente através da observação, o método deensino se resumia em memorização de dados visando disciplinar as fa-culdades mentais e formar hábitos. Segundo Mello (Mato Grosso, Relató-

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rio..., 1912), por falta de preparo para a docência, os professores eramobrigados a um estudo rápido e superficial, onde a decoração, por partedos alunos, substituía a natural assimilação por compreensão.

A fundamentação metodológica ficava sob a responsabilidade dasaulas práticas na Escola Modelo anexa, o que justifica a grande preocu-pação de Mello em orientar os professores dessa escola, tendo em vistaque, segundo ele, eles se encontravam adstritos ao pernicioso métododa decoração, ao ensino tratadista.

Além das dificuldades de aplicação do método devido ao pouco ounenhum preparo dos docentes, a direção queixava-se constantementeda falta de materiais.

[...] por mais boa vontade que tenha o educador para cumprir seus deveres, a

sua ação é constantemente cercada por falta de meios. Pela mesma razão por

que o mais hábil operário, falta de seus instrumentos, só consegue obras

toscas e imperfeitas, o educador, sem o aparelho escolar completo e perfeito,

só pode conseguir educação imperfeita, anormal, atrofiadora das faculdades

infantis [idem].

Em seu relatório, Mello solicitou às autoridades os materiais necessá-rios para a aplicação do método intuitivo, porém, não consta na relaçãodo almoxarifado a entrada ou saída de nenhum dos materiais solicitados.

A direção escolar, ciente da importância da Escola Modelo para aprática dos alunos da Escola Normal, esmerou-se em obedecer a umaorganização pedagógica bem definida. Para isso, organizou o programaescolar expondo detalhadamente o desenvolvimento das matérias, res-saltando o ensino através da observação.

A grade curricular da Escola Normal foi estruturada com base noRegulamento Interno do curso Normal de 1874, ainda em vigor na época.Desta forma, o curso continuou organizado em três anos, sendo suas ca-deiras distribuídas da seguinte forma (Mato Grosso, Relatório..., 1911):

1ª cadeira – português e literatura;2ª cadeira – francês, caligrafia e desenho;3ª cadeira – aritmética, álgebra e geometria plana;

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leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 203

4ª cadeira – física, química e história natural;5ª cadeira – geografia do Brasil, geografia geral e cosmografia;6ª cadeira – pedagogia, educação moral e cívica, direção de escolas,

trabalhos manuais, e educação física;7ª cadeira – história universal e do Brasil;8ª cadeira – música e educação doméstica.

No entanto, os conteúdos de ensino moral e religioso foram aboli-dos, sendo substituídos pelos conteúdos de educação moral e cívica,ministrados por Mello. A troca das disciplinas foi justificada da seguin-te forma:

Nos tempos idos da monarquia, em que a religião era unida ao Estado, a

educação moral se realizava por meio do ensino do catecismo católico romano

aos alunos. Proclamada a República e com esta liberdade de cultos, foi banido

da escola o ensino religioso. Desde então se fez mister nova orientação para

a educação moral. [...]

Esta última educação é o tipo da escola leiga moderna. É uma escola humana,

sem religião, mas não é contra Deus; e tanto assim é, que reconhece e observa

o dever de deixar a cargo da família do educando, o direito de ensinar a este

a religião que melhor lhe pareça. [...] Levado por tais e tão ponderosas

considerações, não poupei esforços para que a educação moral e cívica fosse

realmente desenvolvida na escola a meu cargo. [...] teoricamente pelo ensino

dos direitos e dos deveres do homem, [...] tornando-se as crenças outros tantos

elos dessa simpática, amorável cadeia cívica, que liga o passado ao presente

e prepara, pelo amor e respeito à Sociedade, os homens de amanhã, a Pátria

futura [Mato Grosso, Relatório..., 1912].

A educação moral e cívica era uma disciplina tida como essencialpara os liberais republicanos, pois era através dela que eram repassadosos deveres que cada um tinha para consigo, para com os seus, para coma sociedade e para com a Pátria. Segundo Mello, “[...] isso se faz peloestímulo do patriotismo, ministrando ao aluno o conhecimento dos he-róis verdadeiros, daqueles que, por seus méritos e virtudes cívicas, dig-nos se fizeram do nosso amor e do nosso respeito” (Mato Grosso, Rela-tório..., 1911).

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204 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

O movimento de exclusão do ensino religioso e a defesa de ensinolaico e do conhecimento científico de base experimental não foram pa-cíficos. A Igreja católica, através dos jornais A Cruz e Domingo, teceucríticas severas. Porém, os reformadores, com uma concepção contra oadestramento religioso, entendiam que a educação tinha por fim a for-mação do indivíduo participante do processo produtivo e da organiza-ção política do país, educando-o a fim de prepará-lo para a vida atravésde um ensino prático que partisse do universo conhecido por ele para odesconhecido.

Nessa perspectiva, a preparação para a vida centrava-se numa pro-posta metodológica que concebe o desenvolvimento a partir da experiên-cia sensorial. Por isso, a principal preocupação na formação do futuroprofessor estava relacionada ao método de ensino.

O desenvolvimento intelectual, moral e físico dos normalistas sedava através dos conhecimentos inseridos nos programas. No estudodas línguas, português e francês, as aulas tinham caráter eminentementeprático. As aulas de português constituíam-se de leituras expressivas delivros de prosadores e poetas contemporâneos de Portugal e do Brasil eanálise do trecho lido na seguinte ordem: fonologia; interpretação;exercícios ortográficos; recitação e composição. No programa da disci-plina consta a seguinte observação: “As lições, apesar de sua posiçãoprática, serão acompanhadas de explicação, pelo processo intuitivo, dasregras essenciais” (Mato Grosso, Atas..., 1911-1919).

O estudo da língua francesa era prático e ministrado por meio deconversação, dividido em três etapas:

1ª) educação do ouvido e dos órgãos vocais, aquisição de vocabulá-rio elementar, ensino principalmente oral e através da imagem;

2ª) ampliação do vocabulário elementar e precisão dele no espíritodos alunos, conhecimento intuitivo das leis da língua, leitura expli-cada onde o aluno lê e explica em francês o que leu;

3ª) conversação e leitura explicada sobre a França, povo que habita,seus costumes, teoria lexicológica francesa.

A evolução fisiológica e psicológica, e a importância do fortaleci-mento do corpo eram trabalhadas através do ensino da educação física,

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que era lecionado pelo professor de pedagogia (o próprio diretor), comexercícios diferenciados para os sexos, sendo mais brandos para as mu-lheres, e para os homens através de exercícios calistênicos, buscandoformar indivíduos cultos e saudáveis para a vida. Mello fez algumasconsiderações sobre a educação física:

Estudando a evolução fisiológica do homem, bem como a psicológica, pode-

mos asseverar que todos os seus atos físicos têm profundas relações com a

sua vida orgânica. Em nenhum momento da vida os fenômenos físicos se

apresentam como essencialmente diferentes e independentes dos psicológi-

cos. Estudando a educação, na sua mais ampla acepção, podemos afirmar

que ela é um todo indivisível que, na frase de Montaigne, não tende desen-

volver uma inteligência ou um corpo, mas sim um todo, como parelha de

cavalos, atrelado ao mesmo carro. Não seria portanto natural que a escola

cuidasse dos educandos moral e intelectualmente, desprezando a educação

física [Mato Grosso, Relatório..., 1911].

Além da alteração das disciplinas, Mello propôs a ampliação daduração do curso de três para quatro anos, tomando como referência oprojeto pedagógico de sua escola de origem. Em seu relatório endereçadoao Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Justiça e Fazenda, odiretor acusou a incapacidade dos alunos de compreenderem osconteúdos, porque os professores não tinham tempo necessário paratrabalharem de maneira satisfatória, sendo obrigados a fazer um estudosuperficial, às pressas. Desta forma, segundo ele, o programa deveriaser dividido em cadeiras, que seriam constituídas de matérias científicas;e em aulas, formadas de matérias relacionadas às artes, sendo as aulasde educação doméstica somente para o sexo feminino, as de trabalhosmanuais para o sexo masculino, e as demais para ambos os sexos.

Posteriormente, o regulamento da escola foi reformulado através dodecreto n. 353 de 13 de janeiro de 1914, aprovado pela lei n. 679 de 22de julho do mesmo ano. As alterações propostas pelo novo regulamentoatendiam às solicitações feitas pela direção da Escola Normal quanto àdistribuição das matérias e a sua subdivisão em cadeiras e aulas.

Os conteúdos específicos de cada matéria eram de responsabilidadedos professores das disciplinas, sendo estes apresentados à Congrega-

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206 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

ção e submetidos à aprovação do governo, conforme consta no artigo 8o

do Regulamento. No primeiro ano de funcionamento, os professoresapresentaram os conteúdos das disciplinas lecionadas no curso, porém,nos anos subseqüentes, conforme relatório da direção da Escola de 1915,os professores não organizaram tais conteúdos, tornando-se necessárioque houvesse a intervenção por parte da diretoria6.

É notória a preocupação em oferecer aos professores primários umensino enciclopédico de informação científica, a fim de garantir umaeducação naturalista do universo, considerada o objeto de toda boaeducação. Para isso, o plano de ensino deteve-se a uma base científica,deixando à cargo da Escola Modelo o preparo prático do futuro professorprimário, através de observação e prática pedagógica no terceiro e noquarto ano da Escola Normal.

Os programas da Escola Modelo foram organizados nos moldes dasescolas de São Paulo. Segundo Mello, seu diretor:

Os programas desenvolvidos nos diversos anos do curso preliminar da Escola

Modelo são, verbum ad verbum, os mesmos institutos congêneres de São

Paulo, que foram mandados adaptar por decreto do executivo, proviso-

riamente, mas que estão em vigor ainda, sendo que o decreto que os adaptou,

é de agosto de 1910 [Mato Grosso, Relatório..., 1912].

Ele percebeu que os alunos que ingressavam da Escola Modelo paraa Escola Normal, amparados pelo artigo 15 do 2º capítulo do Regula-mento Interno do Curso Normal (1874)7, não apresentavam as condiçõesnecessárias para ingressarem em um curso secundário, por isso, propôso acréscimo de mais um ano na Escola Modelo, visando preparar osalunos para o ingresso na Escola Normal, que passou a vigorar imedia-tamente. Além da mudança do tempo de duração do curso, sugeriu a

6 Tal problema é relatado no Relatório da Escola Normal e Modelo anexa, 1915, napágina 6, pelo diretor interino professor Philogônio de Paula Corrêa.

7 No Regulamento de 1910 tal direcionamento se repete no capítulo 5, art. 29o, pará-grafo único, dispensando do exame de suficiência os pretendentes à matricula quetiveram o curso completo da Escola Modelo anexa.

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Quadro IIIPROGRAMA DA ESCOLA NORMAL DE CUIABÁ

Matérias Número de Aulas1º Ano

Português 3

Francês 3

Aritmética 4

Caligrafia e desenho 2

Trabalhos manuais 2

Ginástica escolar 1

2º Ano

Português 3

Francês 3

Caligrafia e desenho 2

Trabalhos manuais 1

Álgebra 3

Geografia geral 3

Ciências naturais 2

Música 2

3º Ano

Português 3

Ciências naturais 2

Geometria plana 3

Física e química 2

Pedagogia 2

Geografia do Brasil 2

História do Brasil 2

Trabalhos manuais 1

4º Ano

Português 3

Música 2

Geometria plana 3

Física e química 3

História da civilização 2

Pedagogia 3

Educação moral e cívica 2

Fonte: Regulamento da Escola Normal de Cuiabá, 1914 (3ª seção – art. 7o)

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organização definitiva do programa da Escola Modelo, tendo em vistaque, segundo Mello, “os que possuímos, feitos para estabelecimentosde outro Estado, se bem que de categoria e orientação pedagógica idên-ticas aos nossos, não são, in totum, aplicáveis ao nosso meio” (idem).

O professor buscava adequar o modelo escolar paulista à realidademato-grossense, embora as orientações pedagógicas continuassem asmesmas. Mello, ciente da importância e da dupla missão da EscolaModelo, servir de prática aos alunos da Escola Normal e de padrão paraos demais grupos do estado, se preocupava com isso, tendo em vistaque os professores que lecionavam nessa instituição não tinham domí-nio do método intuitivo e nem materiais para trabalhar dentro desta pro-posta metodológica. Foi, então, necessário orientar os professoresprimários sobre a nova metodologia adotada, num período de três me-ses após a sua inauguração.

Segundo Amâncio (2000), a capacitação dos docentes também sedava através da leitura de conferências pedagógicas escritas na revista ANova Época por Kuhlmann e, às vezes, por Mello. Esse periódico, doqual se tem notícia pelos comentários de jornais do período, parece tersido o canal para que os normalistas paulistas pudessem divulgar, aindaque por pouco tempo, seus ideais republicanos e pedagógicos, mediantea transcrição de suas palestras e conferências.

A atuação dos normalistas era obrigatória no terceiro ano, quandodeterminado pelo diretor, e no quarto ano em horário estipulado pelaCongregação. Em 1915, o horário destinado à prática era terça, quinta esábado, das 11h00 às 13h00 (Mato Grosso, Atas..., p.70). Este era omomento em que o futuro professor primário tinha contato com a práti-ca do método intuitivo.

Para mensurar os conhecimentos apreendidos, tornou-se necessárioinvestir na avaliação da aprendizagem. As provas eram aplicadas aofinal de cada mês, sendo os alunos avaliados e os resultados das sabati-nas e exercícios práticos apresentados à Congregação e à Secretaria daEscola. Somava-se a esses resultados os dos exames anuais que aconte-ciam três vezes ao ano, nos meses de maio, agosto e novembro (MatoGrosso, Regulamentos..., cap. 5).

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leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 209

Os exames das matérias classificadas como cadeiras, realizados emmaio e agosto, eram escritos, e os realizados em novembro, orais e es-critos, sendo destinadas até duas horas para os exames escritos e quinzeminutos para os orais. Já os exames das matérias classificadas comoaulas eram práticos, adequados a tais disciplinas e realizados em junhoe novembro.

Sendo a avaliação um instrumento de controle e poder, reafirma oprofessor como aquele que controla o conhecimento e o comportamen-to dos alunos, enquadrando-os nas condutas sociais do contexto escolare, conseqüentemente, da sociedade.

A organização do tempo escolar também demonstrou ser de extre-ma importância, educando o aluno à obediência e aos hábitos de ordeme de trabalho através da racionalização das atividades escolares.

O ano letivo, na Escola Normal, iniciava no dia 15 de fevereiro eencerrava no dia 15 de novembro. Essas datas estavam previstas no seuRegulamento, capítulo 3 artigo 14. É importante ressaltar que em mo-mento algum o número de dias letivos estava previsto na legislação,apenas alertava para que a escola funcionasse em todos os dias úteis.Com relação aos horários escolares, seu regulamento estipulava:

§1 – Esse horário, que será organizado pelo Diretor e submetido a aprovação

da congregação, será feito de modo que as aulas não excedam de uma hora,

mediando entre umas e outras um intervalo de 10 minutos, no mínimo, e de

15 minutos, no máximo.

Os horários elaborados pela direção eram apresentados na reuniãoda Congregação no início do ano letivo para apreciação. Eram, junta-mente com os programas, encaminhados para a publicação na folha ofi-cial. A sua organização correspondia ao número de aulas semanaisdeterminado a cada disciplina estipulada pelo regulamento interno.

O horário aprovado para o primeiro ano de funcionamento da Esco-la Normal foi organizado no período de quatro horas, das 7h00 às 11h00,sendo que cada aula tinha a duração de uma hora, todos os dias da sema-na, incluindo os sábados.

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210 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

Quadro IVHORÁRIO DA ESCOLA NORMAL DE CUIABÁ – 1911

2ª Feira 3ª Feira 4ª Feira 5ª Feira 6ª Feira Sábado

7:00 Aritmética Álgebra Aritmética Álgebra Aritmética Álgebra

às

8:00

8:00 Caligrafia Francês Trabalhos Francês Caligrafia Francês

às desenho manuais desenho

9:00

9:00 Pedagogia Geografia Pedagogia Geografia Pedagogia Geografia

às

10:00

10:00 Português Ed. física Português Ed. física Português Trabalhos

às manuais

11:00

Fonte: Ata da Congregação 10/1/1911, p. 1.

Em 1915, já funcionando os quatro anos do curso, o horário ficouorganizado da forma mostrada no quadro V.

As aulas deste ano foram organizadas de acordo com a disponibi-lidade dos professores, pois a Escola Normal tinha apenas um docentede cada disciplina, deixando, desta forma, um quadro de horário repletode aulas vagas e os alunos sem uniformidade de horário no ingresso naEscola.

É interessante observar que os normalistas não tinham um horáriodestinado ao recreio, ou mesmo intervalo entre as aulas, mas, com exce-ção do terceiro ano, eles não permaneciam na Escola durante as cincohoras de seu funcionamento.

Além do calendário escolar, outras interrupções de ordem social,como as festividades, também intervinham no processo de ir e vir àEscola. As férias escolares no meado do ano não foram previstas noRegulamento, porém, para justificar a necessidade de um recesso escolarde quinze dias nesse período, Mello usou os seguintes argumentos emseu relatório:

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leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 211

Quadro VHORÁRIO DA ESCOLA NORMAL – 1915

Dia da semana Horário 1º Ano 2º Ano 3º Ano 4º AnoSegunda-feira 11:00/12:00 Português

12:00/13:00 Matemática Pedagogia Português

13:00/14:00 Matemática Francês Geografia Hist.do Brasil

14:00/15:00 Francês Trabalhos Desenho Trabalhos

15:00/16:00 Trabalhos Física Ciên. naturais

Terça-feira 11:00/12:00 Ciên.naturais Prática

12:00/13:00 Português Matemática Prática

13:00/14:00 Português Desenho Francês Pedagogia

14:00/15:00 Desenho História da

civilização

15:00/16:00 Trabalhos Trabalhos Física e química

Quarta-feira 11:00/12:00 Português

12:00/13:00 Matemática Pedagogia Português

13:00/14:00 Matemática Francês Geografia Hist. do Brasil

14:00/15:00 Francês Desenho Cosmografia

15:00/16:00 Física Ciên. naturais

Quinta-feira 11:00/12:00 Ciên.

naturais Prática

12:00/13:00 Português Matemática Prática

13:00/14:00 Português Desenho Francês Pedagogia

14:00/15:00 Desenho Música História da

civilização

15:00/16:00 Trabalhos Física e química

Sexta-feira 11:00/12:00 Português

12:00/13:00 Pedagogia Português

13:00/14:00 Matemática Matemática Geografia Hist. do Brasil

14:00/15:00 Francês Francês Desenho Cosmografia

15:00/16:00 Trabalho Física Ciên. naturais

Sábado 11:00/12:00 Ciên. naturais Prática

12:00/13:00 Matemática Prática

13:00/14:00 Português Português Francês Ed. Cívica

14:00/15:00 Desenho Desenho História da

civilização

15:00/16:00 Música Música Física e químicaFonte: Livro de Atas da Congregação, 1915.

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212 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

O mês de junho, sobremodo festivo em nosso meio, é um perturbador da fre-

qüência escolar nos meados do ano letivo. E nisto, como em tudo, há sua ra-

zão de ser. Junho é o mês das festas essencialmente populares, festas a que o

povo empresta a lei da tradição. Não há família, por mais pobre que seja, para

quem julho festivo não seja portador de alviçareiras alegrias. Ora, as crian-

ças são, em geral, por natureza e por hábito, festivas por excelência. É natu-

ral, pois, que por ocasião das festas de junho, e consentimento paterno e a sua

índole mesmo, façam-nas afastar da Escola. E, assim, os últimos quinze dias

de junho despovoam a escola. Esta razão bastaria para justificar uma quinze-

na de férias por essa ocasião, medida que viria regularizar a freqüência e a

marcha do ensino [...]. Os professores, pelos meados do ano letivo, sentem-

se extenuados, e o seu organismo reclama repouso. A falta deste prejudica

seriamente o ensino, pois o educador, cansado já não é tão solicito, como antes,

no cumprimento dos seus deveres. A necessidade física sempre vence a obri-

gação moral [Mato Grosso, Relatório...,1912].

A festividade de São João, comemorada no final de junho por diversasfamílias, ocasionando uma variedade de festas espalhadas pelos distritos,envolvia um grande número de pessoas, por vários dias, diminuindo afreqüência dos alunos nesse período, fato este que levou a direção daEscola a suspender as aulas durante as festividades.

No entanto, não eram somente os compromissos sociais que intervi-nham no calendário escolar. Em 1913, próximo ao término das ativida-des letivas, os alunos, através de um documento, solicitaram à direção apermissão de gozarem férias de 10 a 15 dias a fim de estudarem para asprovas finais, pedido este que foi consentido pela Congregação, sus-pendendo as aulas no período de 20 a 31 de outubro.

Mesmo utilizando o modelo paulista como referência, a organizaçãocurricular da Escola Normal de Cuiabá, especificamente a sua metodo-logia, programas, avaliação e organização do horário escolar, sofreu al-terações em face da realidade na qual estava inserida a instituição, bemdiferenciada da realidade do estado de São Paulo.

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leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 213

Conclusão

A Escola Normal de Cuiabá foi (re)organizada e dirigida por um nor-malista paulista, fato este que não era incomum na época. Mello, entretan-to, mesmo demonstrando através de vários documentos de sua autoria aintenção de utilizar a escola na qual foi formado como modelo para orientara legislação e a organização administrativa e curricular, “esbarrou” coma realidade socioeconômica e cultural do estado de Mato Grosso.

Ao propor o uso do método intuitivo, Mello encontrou professoressem a devida formação e a falta de materiais pedagógicos para a orga-nização dos Gabinetes, devido aos parcos recursos financeiros do Estado.Na implantação do ensino laico, encontrou forte resistência por partedos católicos. A organização dos horários escolares foi adaptada ao núme-ro de professores existentes e a sua disponibilidade de tempo, e o calen-dário letivo adaptou-se às festas culturais e a fatores de outras ordens.

Podemos afirmar que o confronto entre o modelo proposto e arealidade do estado resultou numa cultura escolar própria, fruto deconflitos e negociações, fazendo nascer um curso de formação deprofessores com uma organização jamais vista até então em Mato Grosso.A estrutura curricular e organizacional da Escola Normal de Cuiabá foiconcebida para que o aluno-mestre se instrumentalizasse através daeducação moral, cívica, de cunho científico e metodológico, visando àformação de cidadãos republicanos mato-grossenses com vistas aparticiparem do processo produtivo e da organização política do país.

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Documentação

MATO GROSSO. Atas da Congregação da Escola Normal e Modelo Anexa, 1911-1919, Arquivo da Escola Estadual Presidente Médice.

. Mensagens do Presidente do Estado à Assembléia Legislativa,1911-1912-1915-1916-1919, Arquivo Público de Mato Grosso.

. Registro de diplomas da Escola Normal de Cuiabá, Livro n. 01,1914-1925, Arquivo da Escola Estadual Presidente Médice.

. Regulamento Interno do Curso Normal da Província de MatoGrosso, 1874, Arquivo Público de Mato Grosso.

. Regulamento Interno da Escola Normal de Cuiabá, 1914, Ar-quivo Público de Mato Grosso.

. Relatórios da Escola Normal e Modelo Anexa, 1911-1912-1915,Arquivo da Escola Estadual Presidente Médice.

Depoimento oral

MÜLLER, Maria de Arruda: depoimento (dez. 1998). Entrevistadora: ElizabethFigueiredo de Sá Poubel e Silva. Cuiabá – MT, 1998.

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Resenhas

Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária

autor Edward P. Thompsoncidade Rio de Janeiroeditora Civilização Brasileiraano 2002

Edward Palmer Thompson é uma referência absoluta no campoda história. Realizar a leitura de A formação da classe operária inglesa,de Senhores e caçadores, de A miséria da teoria ou de Costumes emcomum é conhecer um dos capítulos mais criativos da historiografiacontemporânea. Não faltam erudição, revisão teórica ou rigor meto-dológico nas páginas que ele escreveu. É igualmente evidente nassuas obras a habilidade para investigar ações, crenças e os mais di-versos aspectos da vida social e intelectual de amplos espectros po-pulacionais. Elas geraram, por tudo isso, uma outra direção para osestudos históricos, criaram um domínio satisfatório de análise dascondições de produtividade e de liberdade das pessoas. E, assim, en-tre as noções de estrutura social e os vestígios das ações de uma vida,Thompson fez da sua obra uma espécie de antologia de experiências.Talvez dizer desse modo seja reduzir as circunstâncias pelas quais areflexão histórica de Thompson adquiriu significado. Ainda assim,parece ser uma boa chave de decifração dos estudos realizados peloautor sobre a literatura romântica da década de 1790, reunidos emlivro por Dorothy Thompson e que a editora Civilização Brasileiralançou traduzido recentemente.

Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária é uma com-posição de tramas acontecidas entre 1790 e 1818. Seus personagensdominantes são, por um lado, dois poetas românticos, Samuel TaylorColeridge e William Wordsworth, e, por outro, dois pensadores re-formistas, William Godwin e John Thelwall. No entanto, é inteiramen-te perpassado pelas figuras eminentes do pensamento radical inglês:Tom Paine, Joseph Priestley, Hazlitt. Isto porque trata do drama po-lítico que foi o jacobinismo na Inglaterra por ocasião da RevoluçãoFrancesa. Em parte, busca a inserção das idéias filosóficas e das teo-

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rias desses homens no tecido social britânico. Mas também informasobre o tipo de sociabilidade a que tais idéias e teorias arrastavamseus representantes. E, por fim, encontra as dificuldades de compreen-der historicamente o que representa para alguém a negação daquiloque em algum momento orientou a construção da sua auto-estima,da sua reputação, senão, da sua própria identidade. Para os quatrohomens com os quais Thompson lida mais de perto, a histeria contrao jacobinismo produziu efeitos diversos. Para os poetas, a preocupa-ção em exorcizar o fantasma jacobino de seus passados. Para os re-formistas, a necessidade de um novo refúgio para a ação.

O que tornou o jacobinismo incômodo para a política inglesaforam tanto as ações do Comitê de Salvação Pública no período doTerror, 1791-1793, na França, quanto as ofensivas de Napoleão sobrea Europa e a Inglaterra. A matança revolucionária desencadeada pelogoverno de Robespierre e pelas guerras napoleônicas tem sua reper-cussão na Inglaterra, capturada por E. P. Thompson a partir das trans-formações da sensibilidade poética de Coleridge e Wordsworth edas dificuldades políticas enfrentadas por Godwin e Thelwall. O anode 1794 foi de notórios julgamentos por traição, sendo o ano seguin-te, 1795, a data de publicação dos Two Acts, lei contra as organiza-ções populares e assembléias consideradas perturbadoras. Dois anosmais tarde, a maré intelectual que havia tornado William Godwin umareferência política importante tinha virado com força.

A história que Thompson conta sobre Godwin inicia-se em 1793,quando saiu publicada a primeira edição de Political justice, marcode uma revisão drástica de posições. As exigências por perfectibili-dade cederam espaço para a busca da boa vontade universal, o desa-grado por quaisquer reformistas revolucionários cresceu e o seu tra-balho filosófico coexistiu com uma postura social já aprovada,predeterminada. Esse recuo chegou ao limiar do utilitarismo com asegunda e terceira edições, ambas de 1796. No interstício estão Bre-ves críticas à acusação feita pelo Lorde Presidente do Supremo Tri-bunal Eyre ao Grande Júri, de 1794, e Considerações, de 1795,que, apesar de criticar os Two Acts, parecia justificar a proibiçãogovernamental de palestras inflamadas. Peças de filosofia política emoral reformistas que se afastam do novo caráter que Godwin deuàs novas edições de Political justice, nas quais Thompson identificao modo como a moralidade e o sistema de conduta deixaram de ser

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pensados como resultantes de uma experiência de auto-aprovaçãodos próprios atos por parte do indivíduo para tornar-se subservienteà utilidade pública. Assim, o recuo foi também um escorregão queaproximava os principais filósofos radicais dos principais conserva-dores e causava repúdio à sensibilidade romântica: esses raciocíniosrasos e não elaborados são ineficazes contra nossos hábitos, eles nãoconseguem formá-los, diria Wordsworth sobre a segunda edição dePolitical justice.

De outro tipo foi o recuo de John Thelwall. O herói reformistados dias de caça aos jacobinos foi tomado por E. P. Thompson comocaso exemplar da experiência da derrota política e do retiro intelectualentre os reformistas ativos. Alvo direto dos Two Acts de 1795,Thelwall resistiu-lhe até março de 1797, burlando a proibição depalestras políticas com conferências sob o disfarce de dissertaçõessobre a história romana. No período, os incidentes se sucederam emtentativas de seqüestro, algazarras e perseguições infindáveis. Comoefeito, as divisões, os partidarismos e a animosidade pessoal cres-ciam onde minguava o apoio. Submetido à repressão, John Thelwallassistiu ao aumento dos distúrbios na Irlanda e à crescente ameaçade invasão francesa em retirada. Em Stowey encontrou-se comColeridge e depois, em Alfoxden House, visitou William e DorothyWordsworth junto aos quais procurou instalar-se. Se alojou numapequena fazenda em uma aldeia isolada. Foi onde Thompson en-controu o cadáver político de Thelwall: de fazendeiro a estudioso daelocução, passando pela poesia, estava, em 1803, ferido até o âmagoem sua auto-estima, na sua reputação literária e em seu próprio meiode vida (p. 256). A crítica espirituosa ao seu Poems chiefly written inretirement, o rompimento de Coleridge e a indiferença egoísta deWordsworth deram-no a medida do desdém que se podia abater so-bre as esperanças e estratégias políticas por demais envolvidas como resultado de acontecimentos em outros países.

As juventudes de Coleridge e Wordsworth também estiveramenvolvidas com o jacobinismo. Sob o impacto da RevoluçãoFrancesa, dos Rights of man e das reivindicações políticas por égalité,Coleridge e Wordsworth abraçaram as idéias republicanas; produ-ziram poemas contra a guerra; tiveram aspirações de liberdade,fraternidade e igualdade. Quando, em 1794, os julgamentos por trai-ção se iniciaram, compartilharam do cuidado com a expressão de

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opiniões políticas. E, também, tomaram parte de grupos democrataspequenos e pessoais. Até 1797, a ofensiva editorial e o entusiasmopolítico dos jacobinos estariam amainados pelo movimento contra aimprensa e pela prisão de Gilbert Wakefield, uma das últimas vozespúblicas da Inglaterra jacobina. Em 1798, tudo parecia mudado paraos dois poetas: foi o vórtice de contradições insuperáveis; o mo-mento em que lado a lado conheceram os custos da defesa da Revo-lução Francesa e o nojo com o curso que ela tomou, o desejo deabraçar a causa do povo e o medo que a multidão pudesse se voltarcontra homens de seu tipo (p. 56). Pudera, pois foi o ano da rebeliãoirlandesa o ano da primeira execução por traição, o ano da crescenteameaça da invasão francesa, enfim, o período militarmente críticoque Godwin e Thelwall também viveram. O Diretório cedera lugara Napoleão, na França, fazendo a guerra contra a Inglaterra perder ocaráter de defesa da República. Foi um momento de desapontamen-to para Wordsworth e Coleridge. A partida à Alemanha para fugir aorecrutamento, a ambigüidade das experiências políticas e o tensoimpulso criativo do período marcam, para Thompson, uma viragemde opinião nos poetas, lançando-os à beira da apostasia e ao rompi-mento da amizade.

Samuel Taylor Coleridge conheceria primeiro o fracasso morale imaginativo produzido por um estado desse tipo. Thompson foicapaz de observar Coleridge degradando-se. Já em 1808, Coleridgehavia deixado para trás a luta da juventude para conciliar sua simpatiapelo jacobinismo com sua alienação intelectual em relação à gentedo povo. Ao contrário, estava mais estático, tinha uma espécie deciúmes de Wordsworth, era dependente de drogas, não tinha dinheiroe possuía uma saúde precária. O relacionamento com a casa dosWordsworth foi-lhe pessoalmente ruinoso. Foi um momento depaixões inoportunas, entorpecimento artístico e agonia criativa.Thompson produz um entendimento do desastre emocional deColeridge que faz o rompimento com Wordsworth e a perda de forçacriativa coincidirem a favor das grandes instituições religiosas e docristianismo tradicional. Entremeios, os efeitos foram mais perversosquando redundaram no desengano político com o jacobinismo.Thompson examina dois deles: a perversidade e o nacionalismo.Primeiro a perversão: Coleridge abandona a liça política e os com-panheiros de luta tornando-se autor de denúncias e ataques exacer-

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bados àqueles que mantinham posições que antes tinham sido suas.Igualmente, pediu nova guerra contra a França após a Paz de Amiens.Mas, quando ela chegou, deixou a luta para os outros: “voltou a seusvelhos manuscritos e ao cenário pacífico do distrito dos lagos. Tinhadefendido seus princípios” (p. 206). O nacionalismo de Coleridgeteve alcance mais duradouro que a guerra contra a França. A denúnciasistemática da selvageria das conquistas de Napoleão como exor-cismo da sua juventude revolucionária reverteu sobre um sentimen-to nacional e um patriotismo inteiramente morais e santificados sempreque se tratasse dos ingleses. Thompson destaca a conseqüênciaque isso teve para a alienação entre as culturas inglesa e irlandesa:uma contribuição ativa. A sensibilidade de Thompson ainda foi ca-paz de notar a ausência, nos ensaios políticos produzidos porColeridge entre 1798 e 1818, de registros generosos para com osamigos de sua juventude jacobina.

A crise de Wordsworth teve outra intensidade. Para Thompson,o “odioso democrata” que foi Wordsworth existiu até depois da Pazde Amiens. Isto é, nos anos iniciais do século XIX fica para trás acrença numa fraternidade universal. Seguem-se os anos de desenga-no. Foi o tempo em que o poeta enfrentou a si mesmo, uma profun-da reflexão sobre suas antigas alianças ou aliados. Ao contrário doque ocorreu com Coleridge, não houve deslealdade, apenas umacontração do coração. Thompson foi capaz de buscar uma interpre-tação histórica para esse momento na literatura que Wordsworth pro-duziu entre 1797 e 1814. E, então, percebe que entre o Prelude,finalizado em 1805, e Excursion, publicado em 1814 existe umadiferença de método que é fundamental para o entendimento do fra-casso moral e imaginativo de Wordsworth. Os dez anos de trabalhosobre o Prelude parecem a Thompson um momento de recuperaçãoe superação em arte da experiência jacobina de Wordsworth. OPrelude aparece-lhe, assim, como uma transmutação das reivindica-ções políticas de igualdade em vida interior, como uma confronta-ção com o quadro triste do fracasso das expectativas utópicas dopoeta. Tratava-se de uma auto-revelação que não expulsava da sen-sibilidade o jacobinismo e a perda do ideal do passado. Excursion,ao contrário, lhe parece uma autonegação do poeta. Nove anos de-pois de finalizado o Prelude, identifica um declínio das energias eda autenticidade poética de Wordsworth, que resulta não apenas na

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negação de si mesmo, mas também da possibilidade de ação políticaracional. O fracasso do alter ego jacobino de Wordsworth arrastaria,nos seus versos, as virtudes públicas para fora do processo histórico.O que sensibiliza na análise que Thompson elabora acerca desserecuo é que ela identifica uma vítima. O Solitário que aparece emExcursion tem duas interpretações importantes no texto deThompson. Ambas atribuem a John Thelwall o principal e mais sig-nificativo modelo para esta personagem. A interioridade do tema,contudo, não conduz a um problema de identificação, mas, sobretu-do, de conduta: trata-se de alguém que sofreu todas as vicissitudesda vida e não conseguiu reagir. Entretanto, diferentemente daquiloque Wordsworth procura mostrar com seu Solitário, Thompson ar-gumenta que Thelwall foi arrastado a uma desconsolada solidão nãoapenas em virtude de suas próprias fraquezas e ilusões desfeitas,mas pelo peso de toda a cultura e todo o poder tradicionais sobre ele.Em meio à manipulação e ao falseamento da sua própria experiên-cia, Wordsworth teria perpetrado, segundo o entendimento deThompson, a autotraição quando desiste de colocar seu leitor direta-mente na presença da crença para dizer-lhe em que acreditar.

Em meio a tudo isso, a experiência que Thompson buscou com-preender foi constitutiva de horizontes sociais importantes. Ele in-siste, com propriedade, sobre o modo como a experiência modificatodo o processo educacional e influencia as atitudes de aquisiçãocultural. E, assim, reconheceu no período de maturidade românticao momento de uma separação fundamental entre a educação e aexperiência. Suas observações acusam, mais que uma origem, amaneira como essa separação pôde ser aceita como peça do processoeducacional a ponto de aparecer como uma peça inteiramente natural,evidente, indispensável. Thompson denuncia a farsa da trama emque isso se deu, mostra sua precariedade, faz aparecer não o seuarbitrário, mas a complexa ligação com processos históricosmúltiplos. Deste ponto de vista, atrevo-me a dizer que as atitudesque tornaram possível essa confrontação repercutiram sobre apercepção e apreciação dos rumos do jacobinismo na política inglesa,sendo, por isso, decisivas para a compreensão do modo comoThompson analisou o recuo intelectual de Godwin, a solidão impos-ta a Thelwall, a apostasia de Coleridge e o desencantamento deWordsworth.

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A trama produzida por Thompson dá conta de uma história inte-lectual cheia de vivacidade política. No centro da tentativa para fa-zer valer, em seus direitos e em seu devir, a experiência românticada política na decifração do trabalho de criação de Godwin, deThelwall, de Coleridge e de Wordsworth, há o reflexo de uma expe-riência mais contemporânea. Thompson abraçou as idéias socialis-tas, filiou-se ao comunismo e teve aspirações de igualdade nummomento muito incômodo para essas posições políticas na Inglater-ra: o clima da Guerra Fria, a denúncia da matança stalinista, a repres-são soviética da Primavera de Praga, o recrudescimentoconservador da política britânica. A desintegração do socialismorealmente existente e o avanço neoliberal completa o período em queos estudos foram escritos, 1968-1992. E muito daquilo que questionaaos seus homens percebe-se nele. Afinal, não esteve ele às voltascom esperanças e estratégias políticas por demais envolvidas com oresultado de acontecimentos em outros países do mesmo modo queThelwall? Como interpretar suas críticas a Althusser em A miséria dateoria? E sua desfiliação do Partido Comunista? Tanto quantoColeridge e Wordsworth, Thompson teve de superar o fracasso dassuas expectativas utópicas, rever suas posições políticas e reajeitara própria vida. De algum modo, também experimentou o desencan-tamento e a apostasia que Coleridge e Wordsworth experimentaram.Até certo ponto, experimentou o apedrejamento que Thelwall experi-mentou. E se não conheceu a solidão e a autotraição foi porqueencontrou outras soluções para os problemas que estudou nos tra-balhos que vêm reunidos nesse volume.

Percorrer os oito trabalhos que compõem Os românticos é, dealgum modo, enfrentar o espelho. Pelo menos este é um conviteinsistente no livro. Um exemplo está no modo como Thompsonaproximou a reestruturação interna experimentada por Coleridgeentre 1798 e 1818 das coerções políticas experimentadas pelosintelectuais ingleses entre 1956 e 1989. Ele olhou com ironia osescritores que, de uma época comparável, decidiram tratar o apóstatacom apetite voraz por ódios e vitimado pela ruína intelectual, que eraSamuel Coleridge, como um grande pensador político: “esse semprefoi um caso de má identificação, às vezes efetuada defronte de umespelho” (p. 212). Outro exemplo foi mais pessoal e envolveu a pró-pria prática docente de Thompson. Seu registro sobre as relações entre

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educação e experiência traz indicações do que está em jogo na rela-ção professor–aluno: o contato de diferentes mundos de experiência,no qual idéias são trazidas para a prova da vida. A delicadeza da ta-refa de ensinar parece-lhe estar justamente no modo como essas coi-sas se relacionam quando está em jogo, por um lado, as qualidadeseducacionais e, por outro, o valor moral das pessoas. O modo comoThompson entendeu sua tarefa de professor implicava evitar a cum-plicidade com a desistência intelectual de seus alunos. Não ver, tar-de da noite, no espelho, o professor que “fica contente em aceitar ovalor moral de seus alunos no lugar de seus ensaios” (p. 39).

O diálogo com a própria experiência parece dar os limites dareflexão de Thompson sobre o romantismo. Nesse sentido, a excelentehistória da intelectualidade inglesa na virada do século XVIII para oXIX contada em Os românticos espelha uma temática que atravessaa consciência e a vida de seu autor. Aquilo que ele escreveu sobreGodwin, Thelwall, Coleridge e Wordsworth atravessa muito dasexperiências que viveu durante o período da Guerra Fria (1945-1989).Em parte, é o resultado da história que o viu escrever. Mas tambémé a história que pôde e quis escrever, a história das experiênciaspolíticas similares à sua própria época.

André Luiz PauliloDoutorando em educação na Faculdade de Educação

da Universidade de São Paulo e pesquisador do NúcleoInterdisciplinar de Estudos e Pesquisas em

História da Educação (NIEPHE-FEUSP)

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Relações de força: história, retórica, prova

autor Carlo Ginzburgcidade São Pauloeditora Companhia das Letrasano 2002

O historiador Carlo Ginzburg configura-se com destaque nocenário internacional, e no Brasil há alguns anos seus escritos têmsido recebidos com muita atenção pelo público, pela particularidadecom a qual se dedica aos ensaios historiográficos produzidos e pos-tos a circular para os seus leitores interessados. Entre as suas princi-pais obras1, a que se tornou mais conhecida entre os brasileiros é Oqueijo e os vermes.

Relações de força: história, retórica, prova é o seu mais recentelançamento no Brasil, inclusive contando com a sua presença empalestras nas universidades do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiroe de São Paulo.

Em Relações de força, Carlo Ginzburg traz à baila um debatebastante contundente e polêmico, sem perder a elegância e a seriedadeque marcaram a sua trajetória de escritor. Entra no debate atual dahistoriografia com o propósito de problematizar a visão pós-moder-na da abordagem da história como prática retórica, desobrigada doseu caráter de objetividade. O esforço do autor, e aqui a sua inten-cionalidade se fez com muita clareza e acuidade, foi o de, a partir dabusca genealógica do pós-modernismo, desmontar a visão pós-mo-dernista presente nos vários âmbitos da cultura e da vida pública queincluem a história e a reflexão historiográfica. Sua perspicácia esta-rá no movimento de busca das pistas do argumento pós-moderno.

1 Traduzidas para o português são as seguintes: O queijo e os vermes (1987);Os andarilhos do bem (1988); Mitos, emblemas e sinais (1989); Histórianoturna (1991); Olhos de madeira (2001) (traduzidas pela Companhia dasLetras) e Indagações sobre Piero (1989) (traduzida pela Paz e Terra).

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Nesse sentido, Ginzburg chegará aos tempos da juventude deNietzsche, quando numa releitura do pensador alemão sobre a retóricairá contrastar a sua compreensão de retórica como sistema de tropos,isto é, “de figuras de linguagem, no qual uma noção rigorosa deverdade não tem lugar” (p. 25), o que reduz a verdade ao argumentodo falso ou do verdadeiro. Contra esse argumento, Ginzburg aponta-rá uma vinculação entre retórica e prova, uma retórica baseada naprova, não apenas uma detecção de falsidade que de verdade, masde mostrar que o que está fora do texto está também dentro dele,“abrigado entre as suas dobras” (p. 42). Nesse caso, a retórica base-ada na prova tem a função de descobrir no texto o histórico e fazê-lofalar. Aí consiste a relação de força. Ao citar a exortação de WalterBenjamin2, que afirmava a necessidade de “escovar a história aocontrário”, o autor confirma que “é preciso aprender a ler os teste-munhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Sódessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de forçacomo aquilo que é redutível a elas” (p. 43).

O trabalho do historiador consiste em problematizar (ou analisar,como trata Ginzburg) as fontes. É nesse exercício que o esforço decompreensão das relações de força se fará presente, pois o“conhecimento possível” (p. 45) será apreendido no trabalho deconstrução de uma retórica baseada na prova. Uma retórica que se“move no âmbito do provável, não no da verdade científica (como aconcebida pelo positivismo) e numa perspectiva delimitada, longedo etnocentrismo inocente”. Para Ginzburg, a análise construtivadas fontes requer um tratamento que as concebam não como “janelasescancaradas, como acreditam os positivistas”, nem como “murosque obstruem a visão, como pensam os céticos” (p. 44), mas como“espelhos deformantes” que exigem interdições e possibilidades comvistas à construção histórica.

A sua tese que vincula retórica e prova, marco do seu distancia-mento da visão pós-moderna da historiografia, será baseada em trêsexemplos que irão possibilitar alcançar o objetivo da defesa de “que,no passado, a prova era considerada parte integrante da retórica” eque hoje deixada de lado por alguns, “implica uma concepção domodo de proceder dos historiadores” (p. 13). Uma questão que pas-

2 Walter Benjamin, Concetto di storia, Torino, 1997.

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sa por uma preocupação metodológica, mas com implicações quedizem respeito à convivência e ao choque de culturas, dadas as ten-sões existentes entre narração e documentação.

Os três exemplos tomados, “a leitura de um trecho famoso daEducação sentimental, de Flaubert”, o “relato setecentista sobre umarevolta nas ilhas Marianas” e a “análise do quadro Demoisellesd’Avignon de Picasso”, encaminham-se na demarcação da crítica aorelativismo céptico, que distancia narração e documentação e queconcebe “uma idéia de retórica não apenas estranha, mas tambémcontraposta à prova” (p.15). A partir desses exemplos, Ginzburgpropõe a redescoberta da retórica de Aristóteles, que ao se basear nacombinação entre retórica e prova, evidencia esta última, atribuin-do-lhe um papel essencial na produção historiográfica.

No primeiro e segundo capítulos do seu livro, dedica-se àdiscussão sobre a herança aristotélica da retórica, perseguida naretomada que Lorenzo Valla faz, em 1357, da passagem na qualAristóteles observa: “Dorieu venceu os jogos olímpicos”. Nessapassagem, dentro da realidade grega, não estava a preocupação comaquilo que se encontrava em jogo na competição, a coroa de louros,pois todo mundo já sabia, era óbvio. A observação pressupõe umsaber compartilhado e não declarado que na sua forma oculta revelaum saber tácito evocado, o que levará Lorenzo Valla a compreenderque a retórica de Aristóteles se move no âmbito do provável. Umhistoriador distanciado dessa realidade precisará fazer a leitura doque não foi dito, que para ele não é óbvio, não está no texto, está foradele, num espaço em branco que precisa ser decifrado. É como umdito que está na voz do outro e não é compreendido por aquele queestá ouvindo, uma voz estranha, “que provém de um lugar situadofora do texto”.

Na leitura de um trecho famoso da Educação sentimental, deFlaubert, Ginzburg constrói o seu capítulo “Decifrando um espaçoem branco”. Nesse capítulo, irá tratar da retórica visual, tipográfica,pois será no espaço em branco deixado pelo autor na divisão doscapítulos da Educação sentimental que Ginzburg criticará o traba-lho historiográfico que valoriza os modelos narrativos que intervêm“apenas no final, para organizar o material coletado”(p. 44). Para ele,ao contrário, deve-se considerar, ou melhor, deslocar a atenção doproduto final do documento acabado para as questões presentes no

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documento, as frases preparatórias, o interdito que não está dito, osespaços em branco. Lembrando Lucien Febvre, Ginzburg chama aatenção para o trabalho com as fontes: “as fontes históricas não fa-lam sozinhas, mas só se interrogadas de maneira apropriada” (p. 114).Nesse caso, a mediação entre questões e fontes atribui às narrativasuma posição provisória, possibilitando modificações no transcursodo processo de pesquisa.

No capítulo que trata do relato setecentista sobre uma revoltanas Ilhas Marianas, o autor irá problematizar “que uma maiorconsciência da dimensão literária de um texto pode reforçar asambições referenciais que, no passado, eram compartilhadas tantopelos historiadores quanto pelos antropólogos”. Ao recorrer a umapassagem tirada do livro escrito por Charles Le Gobien3, em 1700,que descreve a primeira fase de uma revolta desenvolvida pelosindígenas das Ilhas Marianas, Ginzburg ressalta que por baixo dasuperfície da retórica narrativa é possível perceber “uma voz diversa,uma voz dissonante, não domesticada [...] que provém de um lugarsituado fora do texto” (p. 98). E isso para enfatizar que os textoscontêm fendas e das suas “fissuras, sai algo inesperado” (p. 99).Essa afirmativa pode ser percebida na narrativa de Le Gobien sobreo discurso do indígena Hurao, líder de uma conjura, que incita o seupovo a rebelar-se contra os espanhóis e a expulsá-los da ilha. Odiscurso do indígena estará identificado com o discurso do próprionarrador, pois segundo Mably, citado por Ginzburg, “o historiadoresconde-se por trás de uma máscara tomada de empréstimo” (p. 95).Ao narrar o ímpeto contra a população colonizadora, tomará de em-préstimo o discurso narrado para, por meio dele, expressar “a pro-funda ambigüidade que ele compartilhava com a ordem religiosa deque fazia parte”. Essa leitura somente poderá ser feita caso o histori-ador, no contato com a documentação que estará trabalhando, con-siga analisar as estratégias do autor que se encontra por detrás dasmuralhas de proteção na qual se esconde.

Na “análise do quadro Demoiselles d’Avignon de Picasso”,Ginzburg coloca em relevo o diálogo necessário entre as culturas

3 Histoire des Iles Marianes, nouvellement converties à les religionchrestienne; et de la mort glorieuse des premiers missionnaires qui y ontprêché la foy.

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que, segundo ele, hoje está relegado a um plano secundário. A apro-priação que Picasso faz das “culturas figurativas não européias” le-vou-o a inaugurar um novo tempo na história da arte, quando conse-gue decifrar “os códigos das imagens africanas”, o que vai permiti-locriar Demoiselles d’Avignon. A criação é, sem sombra de dúvida, aquebra da relação de força entre as culturas, portanto ação de umamultiplicidade cultural capaz de gerar a produção de um novo mo-delo (paradeigma), de inaugurar um novo tempo.

Relações de força: história, retórica, prova é um livro bastanteinstigante, como o é o próprio Ginzburg, autor e precursor do para-digma indiciário. Na mesma medida, é também um livro complexo,cheio de armadilhas, até mesmo pela sua organização editorial, quenão se produziu com a intenção de ser propriamente um livro. Seuscapítulos foram produzidos em tempos diferentes, com especifi-cidades diferentes. Mas isso não o faz ser menos interessante, aocontrário, desafia o leitor a uma relação, também de força, com aprodução de uma nova maneira de fazer história, sem perder, porum lado, o rigor científico e, por outro, as virtudes de uma escritaclara e cativante.

Irlen Antônio GonçalvesDoutorando do Programa de

Pós-Graduação da Faculdade de Educaçãoda Universidade Federal de Minas Gerais

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Orientação aos Colaboradores

A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionadosà história e à historiografia da educação, de autores brasileiros ouestrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o di-reito de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devemapresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexãoteórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdoda obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textosrecentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura de-vem trazer uma notícia de publicação recente.

Seleção dos trabalhosOs artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo ne-

cessária a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dospareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A pri-meira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e in-serção institucional do autor. Deve conter também o resumo emportuguês ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com exten-são máxima de sete linhas, e cinco palavras-chave em português ouespanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o títulocompleto do artigo em português e em inglês, seu nome, titulação einstituição a que está vinculado, projetos de pesquisa dos quais parti-cipa, endereço, telefone e e-mail.

As resenhas e notas de leitura são avaliadas pela Comissão Edi-torial.

Normas gerais para aceitação de trabalhosOs originais devem ser encaminhados em três vias impressas e

uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3 cm de margemsuperior, inferior e esquerda e 2 cm de margem direita; espaço entrelinhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12.

Os trabalhos remetidos devem respeitar a seguinte padronização:Extensão mínima e máxima, respectivamente:

• Artigos – de 30 mil caracteres a 60 mil caracteres (aproxima-damente de 15 a 30 páginas). Cada resumo que acompanhar

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230 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004

o artigo deverá ter, no máximo, 700 caracteres (contandoespaços). Para contar os caracteres no Word, no item “Ferra-mentas”, a opção “Contar palavras”. Para as palavras-chave,consultar as Bases de Dados: Lilacs, Medline, Sport Discus.

• Resumos e abstracts – os resumos e abstracts dentro decada artigo não devem ter mais de 4 linhas cada.

• Resenhas – de 8 mil caracteres a 15 mil caracteres (aproxi-madamente de 4 a 8 páginas).

• Notas de leitura – de 2 mil caracteres a 4 mil caracteres(aproximadamente de 1 a 2 páginas).

As indicações bibliográficas, no corpo do texto, devem vir noformato sobrenome do autor, data de publicação e número da pági-na entre parênteses, como, por exemplo, (Azevedo, 1946, p. 11). Asreferências no final do texto devem seguir as normas da ABNT NBR6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem tercaráter explicativo.

Vale notar que todas as citações devem vir entre aspas e nãodevem estar em itálico, salvo trechos que se deseja destacar.

A Comissão Editorial não aceitará originais apresentados comoutras configurações.

A revista não devolve os originais submetidos à apreciação. Osdireitos autorais referentes aos trabalhos publicados ficam cedidospor um ano à Revista Brasileira de História da Educação.

Serão fornecidos gratuitamente aos autores de cada artigo cincoexemplares do número da revista em que seu texto foi publicado.Para as resenhas e notas de leitura publicadas, cada autor receberádois exemplares.

Os originais devem ser encaminhados à Comissão Editorial, comsede no Centro de Memória da Educação – Faculdade de Educação,Universidade de São Paulo. Av. da Universidade, 308 - Bloco B -Terceira Fase - Sala 40, CEP 05508-900, São Paulo-SP.

Informações adicionais podem ser obtidas no e-mail:[email protected] ou no telefone (11) 3091-3194, das 13h

às 18h.

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CONTENTS

EDITORIAL 7

ARTICLES

Monteiro Lobato and his readers: books to teach, read to learn 9Marco Antonio Branco Edreira

Education and civilianship: the scouting in Minas Gerais (1926-1930) 43Adalson de Oliveira Nascimento

Diderot and the political sense of mathematical education 75Maria Laura Magalhães Gomes

Cartilha maternal and its acculturation marks 109Iole Maria Faviero Trindade

The programs of study of the public elementary school in Paraná:read and write, for God and the State 135Ariclê Vechia

The Universitarian Reform and the creation of the Faculties of Education 161Macioniro Celeste Filho

Leowigildo Martins de Mello and the organization of teacher’seducation in Cuiabá 189Elizabeth Figueredo de Sá Poubel e Silva

BOOK REVIEWS

Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária 215By André Luiz Paulilo

Relações de força: história, retórica, prova 223By Irlen Antônio Gonçalves

GUIDES FOR AUTHORS 229