Retenção urinária aguda como complicação tardia de injeção...

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einstein. 2009; 7(4 Pt 1):509-11 RELATO DE CASO Retenção urinária aguda como complicação tardia de injeção subcutânea de silicone líquido: relato de caso Acute urinary retention as a late complication of subcutaneous liquid silicone injection: a case report Leandro Luongo de Matos 1 , Leonardo Seigra Lopes 2 , Júlia Virgínia de Andrade Saggiomo 3 , Eric Roger Wroclawski 4† , Mario Paulo Faro Junior 5 RESUMO A retenção urinária aguda é uma condição caracterizada pela interrupção abrupta de eliminação de urina, com a presença desta represada na bexiga, sem possibilidade de eliminação, seja em virtude de fatores anatômicos obstrutivos, ou por motivos funcionais. Entre suas causas mais comuns, destaca-se a hiperplasia prostática benigna, seguida de constipação, adenocarcinoma de próstata, estenose uretral, retenção de coágulos, desordens neurológicas, pós-operatórios, cálculos, drogas e infecções do trato urinário. Paciente do sexo masculino, 55 anos, travesti, com história pregressa de injeção subcutânea de silicone líquido em diversas regiões do corpo, a última há quatro anos, queixa-se de não conseguir urinar há 14 horas. Ao exame físico, apresenta extrema deformação cutânea devido à migração do implante, palpando-se nódulo endurecido em prepúcio, característico de corpo estranho. Dado o diagnóstico de retenção urinária aguda, tentou-se, sem sucesso, exteriorizar a glande e proceder à sondagem vesical de demora, sendo então realizada cistostomia terapêutica. A retenção urinária aguda não é encontrada e sequer mencionada na literatura médica mundial como complicação de injeção subcutânea de silicone líquido. Descritores: Retenção urinária/etiologia; Silicones/efeitos adversos; Relatos de casos ABSTRACT Acute urinary retention is characterized by a sudden interruption of urinary output; urine is retained in the bladder due to either functional or obstructive anatomic factors, and cannot be voided. The main causes of acute urinary obstruction are benign prostatic hyperplasia, constipation, prostate adenocarcinoma, urethral stenosis, clot retention, neurological disorders, following surgery, calculi, drugs, or urinary tract infections. A transvestite patient, aged 55 years, described having had liquid silicone subcutaneously injected in various parts of the body, the last one four years ago. He complained of absent urinary output during the last 14 hours. The physical examination revealed skin deformation due to migration of implants; a hard nodule (characterized as a foreign body) was present in the preputium and a diagnosis of acute urinary retention was made; an unsuccessful attempt to exteriorize the glans for urinary catheterization, was followed by therapeutic cystostomy. Acute urinary retention has not been mentioned in the medical literature as a complication of liquid silicone subcutaneous injection. Keywords: Urinary retention/etiology; Silicones/adverse effects; Case reports INTRODUÇÃO A retenção urinária aguda (RUA) é uma condição ca- racterizada pela interrupção abrupta de eliminação de urina, que fica represada na bexiga, sem possibilidade de eliminação, seja em virtude de fatores anatômicos obstrutivos, ou por motivos funcionais (1) . Entre suas causas mais comuns, destacam-se a hi- perplasia prostática benigna, seguida de constipação, adenocarcinoma de próstata, estenose uretral, retenção de coágulos, distúrbios neurológicos pós-operatórios, cálculos, drogas e infecções do trato urinário (1) . Esses pacientes podem relatar história de poliúria, noctúria, urgência urinária, interrupção do jato uriná- 1 Mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 2 Residente da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 3 Residente da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 4† In memoriam; Livre-docente; Professor do Departamento de Urologia da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 5 Professor regente da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. Autor correspondente: Leandro Luongo de Matos – Rua Nova Pátria, 104 – Jardim da Saúde – CEP 04151-050 – São Paulo (SP), Brasil – Tel.: 11 5058-8988 – e-mail: [email protected] Data de submissão: 29/12/2008 – Data de aceite: 14/10/2009

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einstein. 2009; 7(4 Pt 1):509-11

relato de caso

Retenção urinária aguda como complicação tardia de injeção subcutânea de silicone líquido: relato de caso

Acute urinary retention as a late complication of subcutaneous liquid silicone injection: a case report

Leandro Luongo de Matos1, Leonardo Seigra Lopes2, Júlia Virgínia de Andrade Saggiomo3, Eric Roger Wroclawski4†, Mario Paulo Faro Junior5

resUMoA retenção urinária aguda é uma condição caracterizada pela interrupção abrupta de eliminação de urina, com a presença desta represada na bexiga, sem possibilidade de eliminação, seja em virtude de fatores anatômicos obstrutivos, ou por motivos funcionais. Entre suas causas mais comuns, destaca-se a hiperplasia prostática benigna, seguida de constipação, adenocarcinoma de próstata, estenose uretral, retenção de coágulos, desordens neurológicas, pós-operatórios, cálculos, drogas e infecções do trato urinário. Paciente do sexo masculino, 55 anos, travesti, com história pregressa de injeção subcutânea de silicone líquido em diversas regiões do corpo, a última há quatro anos, queixa-se de não conseguir urinar há 14 horas. Ao exame físico, apresenta extrema deformação cutânea devido à migração do implante, palpando-se nódulo endurecido em prepúcio, característico de corpo estranho. Dado o diagnóstico de retenção urinária aguda, tentou-se, sem sucesso, exteriorizar a glande e proceder à sondagem vesical de demora, sendo então realizada cistostomia terapêutica. A retenção urinária aguda não é encontrada e sequer mencionada na literatura médica mundial como complicação de injeção subcutânea de silicone líquido.

descritores: Retenção urinária/etiologia; Silicones/efeitos adversos; Relatos de casos

aBstractAcute urinary retention is characterized by a sudden interruption of urinary output; urine is retained in the bladder due to either functional or obstructive anatomic factors, and cannot be voided. The main causes of acute urinary obstruction are benign prostatic hyperplasia, constipation, prostate adenocarcinoma, urethral

stenosis, clot retention, neurological disorders, following surgery, calculi, drugs, or urinary tract infections. A transvestite patient, aged 55 years, described having had liquid silicone subcutaneously injected in various parts of the body, the last one four years ago. He complained of absent urinary output during the last 14 hours. The physical examination revealed skin deformation due to migration of implants; a hard nodule (characterized as a foreign body) was present in the preputium and a diagnosis of acute urinary retention was made; an unsuccessful attempt to exteriorize the glans for urinary catheterization, was followed by therapeutic cystostomy. Acute urinary retention has not been mentioned in the medical literature as a complication of liquid silicone subcutaneous injection.

Keywords: Urinary retention/etiology; Silicones/adverse effects; Case reports

INtrodUÇÃoA retenção urinária aguda (RUA) é uma condição ca-racterizada pela interrupção abrupta de eliminação de urina, que fica represada na bexiga, sem possibilidade de eliminação, seja em virtude de fatores anatômicos obstrutivos, ou por motivos funcionais(1).

Entre suas causas mais comuns, destacam-se a hi-perplasia prostática benigna, seguida de constipação, adenocarcinoma de próstata, estenose uretral, retenção de coágulos, distúrbios neurológicos pós-operatórios, cálculos, drogas e infecções do trato urinário(1).

Esses pacientes podem relatar história de poliúria, noctúria, urgência urinária, interrupção do jato uriná-

1 Mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil.2 Residente da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil.3 Residente da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil.4† In memoriam; Livre-docente; Professor do Departamento de Urologia da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil. 5 Professor regente da Faculdade de Medicina do ABC – FMABC, Santo André (SP), Brasil.

Autor correspondente: Leandro Luongo de Matos – Rua Nova Pátria, 104 – Jardim da Saúde – CEP 04151-050 – São Paulo (SP), Brasil – Tel.: 11 5058-8988 – e-mail: [email protected]

Data de submissão: 29/12/2008 – Data de aceite: 14/10/2009

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rio, resíduo pós-miccional e jato urinário fraco. O exa-me físico pode mostrar massa globosa no abdome infe-rior, com macicez à percussão(1).

O diagnóstico de RUA é essencialmente clínico, baseando-se na anamnese e no exame físico; o diag-nóstico diferencial deve ser feito com anúria e ruptu-ra da bexiga. Exames laboratoriais, instrumentação e métodos de imagem podem ser usados se persistirem dúvidas. A cateterização vesical e a punção suprapú-bica são medidas rápidas e eficientes para demons-trar e tratar a RUA(1).

Nas últimas décadas tem havido um fenômeno social grave em que indivíduos, principalmente transexuais, no intuito de melhorar seu aspecto físico, submetem-se a aplicações de diversos materiais, em geral implan-tados por profissionais não-médicos. Possivelmente, o material mais comumente usado seja o silicone líqui-do, também conhecido como silicone industrial, cujos resultados a curto e, na maior parte dos casos, a lon-go prazo, costumam ser desastrosos e levar a diversas complicações(2).

Relatamos o primeiro caso descrito na literatura de RUA causado pela migração de silicone líquido.

relato de casoPaciente do sexo masculino, 55 anos, travesti, com his-tória pregressa de injeção subcutânea de silicone líqui-do em diversas regiões do corpo ao longo dos últimos 30 anos (última vez há quatro anos) no rosto, mamas, dorso, abdome e coxas. O paciente queixa de disúria, esforço urinário e dificuldade de iniciar a micção nos últimos quatro dias, além de dor importante na região hipográstrica, que piora com pressão local e esforços para urinar.

Ao exame físico, apresenta extrema deformação cutânea devido à migração dos implantes. Além disso, observa-se rigidez da parede abdominal, podendo-se palpar massa dolorosa no abdome inferior, ausência de sinais de irritação peritoneal e presença de um nódulo endurecido palpado no prepúcio. Caracterizou-se RUA causada pela compressão extrínseca da uretra por cor-po estranho, que provavelmente havia migrado a partir do abdome inferior (Figura 1).

Tentou-se, sem sucesso, exteriorizar a glande para acessar o meato uretral e proceder à sondagem vesical de demora, sendo então realizada cistostomia terapêu-tica de emergência (Figura 2), com retirada de 1.200 ml de urina de cor amarelo-claro.

O paciente evoluiu bem e recebeu alta com uma cistostomia funcional no dia seguinte, sem complica-ções peroperatórias. No momento, está sob cuidados psiquiátricos, urológicos, nefrológicos e de cirurgia plástica.

Figura 1. (A) Deformidade cutânea causada pela migração de implantes de silicone líquido realizados por profissionais não-médicos; (B) Deformidade genital, observando-se nódulo endurecido no prepúcio

Figura 2. Realização de cistostomia suprapúbica de emergência, devido à impossibilidade de se utilizar uma sonda uretral

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dIscUssÃoA substituição de tecidos vivos por materiais inertes tem sido realizada há muitos anos em diversas especia-lidades médicas. Atualmente, o substituto inerte mais utilizado é o silicone, composto orgânico sintético, com uma cadeia carbono intercalada por átomos de silício, que pode ser encontrado sob a forma de sólido, gel e líquido (dimetilclorosilano)(3).

O uso de silicone líquido em injeções subcutâneas com fins estéticos se tornou popular após a Segunda Guerra Mundial, sendo considerado um método rápi-do e de baixo custo, se comparado à cirurgia plástica convencional. Essa substância foi originalmente desen-volvida para fins industriais e elétricos, jamais tendo re-cebido autorização para uso como implante em tecidos moles. No entanto, as injeções de silicone continuam a ser usadas por profissionais não-médicos, particular-mente em transexuais e travestis, para feminilizar o ros-to, mamas, glúteos e músculos da panturrilha(4).

Os efeitos desse material sobre o corpo humano têm sido estudados há décadas. Um dos primeiros estudos foi conduzido por Hur e Neuman(3) em 1965; tais auto-res demonstraram os efeitos locais adversos do silicone líquido. A partir desse trabalho, foi introduzido o ter-mo ‘siliconoma’ para designar grandes cistos de dime-tilclorosilano envolvidos por células histiocitárias com vacúolos em seu citoplasma e reações inflamatórias do tipo corpo estranho. Em 1967, Hur, Rees, e Ballanthy-ne Jr.(4) implantaram silicone marcado com carbono em animais, o qual foi detectado em vários órgãos 14 meses depois. Esse achado levantou a hipótese de que o si-licone líquido era fagocitado por macrófagos teciduais e transportado para outros órgãos pelas vias linfáticas. Assim, uma vez injetado no subcutâneo, o silicone lí-quido poderia se acumular localmente e causar uma reação inflamatória intensa, resultando na formação de uma cápsula fibrosa, e também poderia migrar e ser de-positado em áreas remotas(4).

Embora de fácil aplicação, o silicone pode causar complicações como mudanças da cor ou textura da pele, inflamações, fibroses severas, fístulas, deformidades e contraturas, dentre muitas outras descritas(4). Linfoade-nopatia regional, infiltração de tecidos moles adjacen-tes e compressão de órgãos foram caracterizadas como complicações de longo prazo(4). Doenças respiratórias agudas e crônicas, doenças do colágeno e doenças vas-culares foram descritas como complicações sistêmicas, principalmente naqueles pacientes que fizeram uso do silicone em grandes quantidades. Alguns evoluíram, in-clusive, a óbito(4-6).

A ressecção completa do silicone injetado é geral-mente inviável, uma vez que o material invade todas as camadas teciduais ao longo dos trajetos de menor resis-

tência, tornando sua ressecção quase impossível(7). Além disso, não existem medidas para evitar os efeitos preju-diciais do silicone sobre a pele e os tecidos adjacentes(8). Para tratamento das complicações, pode-se fazer uso de antibióticos intravenosos, corticosteroides sistêmi-cos, anti-inflamatórios não-hormonais, aplicação de to-alhas mornas, ressecção local, mastectomia e remoção por lipoaspiração, dependendo, obviamente, do tipo de complicação apresentada(9).

Choong e Emberton(1) realizaram meta-análise de estudos sobre a RUA entre 1966 e 1998 e encontraram diversas causas incomuns para essa situação, tais como: leucemia linfocítica crônica infiltrando a próstata, car-cinoma prostático com metástases penianas, leiomioma vesical, schwannoma retrovesical e RUA após contato do pênis com contraceptivos vaginais. Gemperli et al.(7) descreveram um caso de aumento peniano e escrotal por migração de silicone líquido. Mudanças semelhan-tes foram encontradas no caso acima; porém, retenção urinária aguda não é encontrada ou sequer mencionada na literatura médica mundial como complicação de in-jeção subcutânea de silicone líquido.

Embora complicações por injeções inapropriadas de silicone líquido tenham sido raramente descritas na literatura, os pesquisadores concordam que essa prática deve ser coibida. São necessárias políticas de orientação e informação, além do controle de compra e uso desse material para fins estéticos, dados a facilidade de apli-cação e o uso incorreto.

reFerÊNcIas 1. Choong S, Emberton M. Acute urinary retention. BJU International.

2000;85(2):186-201.

2. Hage JJ, Kanhai RCJ, Oen AL, Diest PJV, Karim RB. The devastating outcome of massive subcutaneous injection of highly viscous fluids in male-to-female transsexuals. Plast Reconstr Surg. 2001;107(3):734-41.

3. Hur NB, Neuman Z. Siliconoma–another cutaneous response to dimethylpolysiloxane. Experimental study in mice. Plast Reconstr Surg. 1965;36(6):629-31.

4. Hur NB, Rees TD, Ballantyne Jr DL. [Behavior of liquid silicones (dimethylpolysiloxane silicone liquid of 350 centistoke viscosity) injected into animals]. Ann Chir Plast .1967;12(3):243-6.

5. Sá PP. Retenção urinária aguda: conduta, diagnóstico e tratamento. In: Sá PP, editor. Emergências em Uronefrologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1992. p. 75-79.

6. Varella B, Tuason L, Proffitt MR, Escaleira N, Alquezar A, Bokowski RM. HIV infection among Brazilian transvestites in a prison population. AIDS Patient Care STDS. 1996;10(5):299-302.

7. Gemperli R, Alonso N, Lodovici O, Pigossi N. Estudo clínico das reações sistêmicas e locais ao uso indevido do silicone líquido e/ou óleo mineral. Rev Hosp Clín Fac Med Univ Sao Paulo 1984;39:158-162.

8. Villa A, Sparacio F. Severe pulmonary complications after silicone fluid injection. Am J Emerg Med. 2000;18(3):336-7.

9. Ko C, Ahn CY, Markowitz BL. Injected liquid silicone, chronic mastitis, and undetected breast cancer. Ann Plast Surg 1995;34(2):176-9.