Resumo de Textos Para Mestrado

23
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006 A obra referenciada se dedica a estudar a literatura e busca tornar inteligível aos leitores o conceito da moderna teoria literária. Acrescenta o autor, literalmente, no Prefácio, que a sua pretensão é a de “oferecer àqueles que têm pouco ou nenhum conhecimento do assunto uma descrição razoavelmente abrangente da moderna teoria literária”. A hipótese que o estudioso levanta é a de que não existe uma “teoria literária” no sentido de um corpo teórico que se origine da literatura, ou seja, exclusivamente aplicável a ela. O autor utilizou uma vastíssima e diversificada bibliografia. Entre as fontes, se encontram autores a exemplo de Lee, Ann Jefferson; Derrida; Mathew; Saussure; Foucault; Freud; Lucáks; etc. A obra ainda apresenta um Posfácio e índice remissivo, além de inúmeras notas explicativas. O conceito de literatura esboçado por Eagleton começa por considerar que “Muitas têm sido as tentativas de definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita ‘imaginativa’, no sentido de ficção _ escrita que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. (...). A distinção entre ‘fato’ e ‘ficção’, portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isso é que a própria distinção é muitas vezes questionável. (...). Além disso, se a literatura incluiu muito da escrita ‘factual’, também exclui uma boa margem de ficção. (...). O fato de a literatura ser a escrita ‘criativa’ ou ‘imaginativa’ implicaria serem a história, a filosofia e as ciências naturais não- criativas e destituídas de imaginação?” (p. 2-3). Como se pode constatar, Eagleton argumenta de forma lógica e irrecorrível, mesmo porque o componente imaginação é intrínseco à condição humana e uma chancela para a criatividade, a originalidade. Quer a obra seja prioritariamente característica das belas letras ou da linguagem técnica, em algum patamar a imaginação tem seu lugar garantido. As grandes descobertas da humanidade, a exemplo do cinema, do telefone, do avião e tantas outras têm uma ligação indiscutível com o imaginário. Ou não teria o homem sonhado voar como os pássaros ao pensar o avião? Ousamos dizer que, a técnica prevalece na

description

Resumo para textos do mestrado Letras UFPI

Transcript of Resumo de Textos Para Mestrado

Page 1: Resumo de Textos Para Mestrado

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006

A obra referenciada se dedica a estudar a literatura e busca tornar inteligível aos

leitores o conceito da moderna teoria literária. Acrescenta o autor, literalmente, no

Prefácio, que a sua pretensão é a de “oferecer àqueles que têm pouco ou nenhum

conhecimento do assunto uma descrição razoavelmente abrangente da moderna

teoria literária”.

A hipótese que o estudioso levanta é a de que não existe uma “teoria literária” no

sentido de um corpo teórico que se origine da literatura, ou seja, exclusivamente

aplicável a ela.

O autor utilizou uma vastíssima e diversificada bibliografia. Entre as fontes, se

encontram autores a exemplo de Lee, Ann Jefferson; Derrida; Mathew; Saussure;

Foucault; Freud; Lucáks; etc. A obra ainda apresenta um Posfácio e índice

remissivo, além de inúmeras notas explicativas.

O conceito de literatura esboçado por Eagleton  começa por considerar que “Muitas

têm sido as tentativas de definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a

escrita ‘imaginativa’, no sentido de ficção _ escrita que não é literalmente verídica.

Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se

considera literatura, veremos que tal definição não procede. (...). A distinção entre

‘fato’ e ‘ficção’, portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isso

é que a própria distinção é muitas vezes questionável. (...). Além disso, se a

literatura incluiu muito da escrita ‘factual’, também exclui uma boa margem de

ficção. (...). O fato de a literatura ser a escrita ‘criativa’ ou ‘imaginativa’ implicaria

serem a história, a filosofia e as ciências naturais não-criativas e destituídas de

imaginação?” (p. 2-3).

Como se pode constatar, Eagleton argumenta de forma lógica e irrecorrível, mesmo

porque o componente imaginação é intrínseco à condição humana e uma chancela

para a criatividade, a originalidade.

Quer a obra seja prioritariamente característica das belas letras ou da linguagem

técnica, em algum patamar a imaginação tem seu lugar garantido. As grandes

descobertas da humanidade, a exemplo do cinema, do telefone, do avião e tantas

outras têm uma ligação indiscutível com o imaginário. Ou não teria o homem

sonhado voar como os pássaros ao pensar o avião? Ousamos dizer que, a técnica

prevalece na concretização de uma aeronave, mas a alma desse engenho da mente

humana está relacionada ao sonho de Ícaro, à poesia contida em seu desejo de

voar como as aves.

Page 2: Resumo de Textos Para Mestrado

Eagleton conclui sua Teoria da Literatura asseverando que “Se não é possível ver a

literatura como uma categoria ‘objetiva’, descritiva, também não é possível dizer

que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de

literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízo de valor:

eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças (...). Portanto, o que

descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira

que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente

variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as

ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto

particular mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e

mantêm o poder sobre os outros”.

O autor não exagerou em sua assertiva, pois, evidente é a tentativa social de

condução e manipulação não apenas do gosto literário, mas também de toda e

qualquer arte. Há sempre os que ditam o que é a boa literatura, a boa música, o

bom cinema, a boa arquitetura, e assim por diante.

Sobre a ascensão da literatura na Inglaterra, Eagleton faz uma severa observação

às posições do crítico William Empson, taxando-o de “impenitente adversário das

principais doutrinas dessa corrente” _ (*refere-se à Nova Crítica).

Continua Eagleton, de forma muito lúcida e contundente, tecendo uma crítica que

faz todo o sentido e demonstra sua agudeza de observador ao acrescentar: “O que

faz Empson parecer um crítico novo é seu estilo de análise exaustiva, a

surpreendente engenhosidade despreocupada que mostra até mesmo as nuanças

mais sutis do significado literário. Mas tudo isso é posto a serviço de um

racionalismo liberal antiquado, profundamente conflitante com o esoterismo

simbolista de um Eliot ou de um Brooks (...)”.

Em sua argumentação, Eagleton se refere ao coloquialismo da prosa de Empson e à

sua “poética liberal, social e democrática, atraente, com todas as suas estonteantes

idiossincrasias, para as simpatias e expectativas semelhantes de um leitor comum,

e não para as técnicas tecnocráticas do crítico profissional” (p. 79-80).

Quanto á Fenomenologia, Hermenêutica e Teoria da Recepção, Eagleton  leva em

conta que “alguns estudiosos e críticos de literatura podem se preocupar com a

possibilidade de um texto literário não ter um único significado ‘correto’, mas

provavelmente não serão muitos a ter essa preocupação. É mais certo que se

deixem seduzir pela ideia de que os significados de um texto não estão encerrados

nele, (...) mas sim que o leitor tem um papel ativo nesse processo. Nem se

Page 3: Resumo de Textos Para Mestrado

preocupariam com a ideia de que o leitor não chega ao texto virgem, por assim

dizer, imaculadamente livre de envolvimentos sociais e literários anteriores, como

um espírito totalmente desinteressado ou como uma folha em branco, para a qual o

texto transferirá todas as suas próprias inscrições. De um modo geral, admite-se

que nenhuma leitura hoje é inocente, ou feita sem pressupostos. Poucas pessoas,

porém, levarão às últimas consequências as implicações dessa culpa do  leitor” (p.

134-135).

Por certo a culpa não caberia ao leitor e sequer ao autor/criador. Cada um faz parte

de um contexto específico e os microcontextos se aglomeram até que se forme o

macrocontexto. Saliente-se que a formação dos contextos têm uma imensa

mobilidade e esta mobilidade é infinita. A literatura não existe de per si e é produto

da imaginação do homem em sua busca eterna pela comunicação com o seu

semelhante. Alongar este pensamento por certo nos levaria por longos caminhos da

filosofia e pelo mundo das ideias de Platão.  Então se diria que a literatura e a

ciência têm origem nesse mundo.

No caso do Estruturalismo e da Semiótica, Eagleton chegou à conclusão de que

“com o pós-estruturalismo, trouxemos a história da moderna teoria literária até a

atualidade. Dentro do pós-estruturalismo como um método, existem conflitos e

diferenças reais cuja história futura não pode ser prevista. Há formas de pós-

estruturalismo que representam um alheamento hedonista em relação à história,

um culto da ambiguidade ou do anarquismo irresponsável; outras formas existem,

como ocorrem com as pesquisas extraordinariamente ricas do historiador francês

Michel Foucault, que embora possuindo sérios problemas, indicam uma direção

mais positiva” (p. 226).

Quanto à questão da Psicanálise, Eagleton afirma  que “uma das razões pelas quais

precisamos investigar a dinâmica do prazer e do desprazer é a necessidade de

sabermos qual volume de repressão e de adiamento da satisfação uma sociedade

pode tolerar; como o desejo pode ser desviado de finalidades que consideramos

dignas para outras que o menosprezam e degradam; como homem e mulheres

concordam por vezes em tolerar a opressão e a indignidade, e em que pontos essa

submissão pode falhar” (p. 290-291).

Na conclusão mais abrangente, no capítulo Crítica política, Eagleton admite que,

“se hoje a literatura tem importância, isto se deve basicamente ao fato de nela se

ver, como ocorre a muitos críticos convencionais, um dos poucos espaços

remanescentes nos quais, em um mundo dividido e fragmentado, ainda é possível

incorporar um senso de valor universal; e nos quais, em um mundo sordidamente

material, ainda se pode vislumbrar um raro lampejo de transcendência. Daí

procedem, sem dúvida, as paixões intensas, até mesmo virulentas e de outro modo

Page 4: Resumo de Textos Para Mestrado

inexplicáveis, que tendem a ser desencadeadas por uma atividade tão minoritária e

tão acadêmica quanto a teoria literária” (p. 365).

Se os críticos da teoria literária são intensos, apaixonados e virulentos, as ideias de

Eagleton não deixam por menos, pois, as suas afirmações são fortes e

determinadas, além de muito razoáveis.

Em busca de conceituar a literatura, o autor consegue passar ao leitor o quão

desconfortável se sente diante de tantos quereres, de tantas opiniões e de tantos

argumentos que, em sua visão, mais atrapalham do que constroem um conceito

mais delineado e preciso do que é a literatura.

A crítica literária é acusada de academicista e apegada ao passado. O pensamento

do autor procura se desvencilhar de padrões e com isto parece enfrentar um

sofrimento e uma angústia maiores por não alcançar o devido distanciamento e

isenção, tendo em vista que ele, o estudioso, tem a consciência de que a sua

argumentação não é pura, não é virgem e nem isenta, colocada que se encontra

também em um contexto intelectual que o subjuga. Mesmo assim, a sua luta pelo

sentido de abertura de uma visão mais abrangente da literatura consegue

convencer o leitor a se desapegar de padrões e estereótipos ensinados e veiculados

secularmente. Afinal, a ideia que fica mais nítida é a de uma luta por um processo

de libertação do olhar sobre a literatura e da sua vocação democrática.

____________________________________________________________

"Que 'negro' é esse na cultura negra?" Stuart Hall, Da Diáspora - Parte 3, pg. 317.

Resumo comentado.

Hall introduz seu artigo com as questões: que negro é esse? Qual cultura popular negra?

Ao formular estas questões o que Hall pretende neste artigo é ultrapassar o senso comum para uma interpretação do significante negro e das formas que adquire ao se referir a um sujeito determinado e as suas tradições e expressões culturais.

O momento (atual) para se colocar a questão da cultura popular negra deve ser visto sempre conjunturalmente, porque o momento é sempre histórico carregado de especificidades embora existam semelhanças e continuidades com outros momentos.

Observa Hall que é a combinação desses elementos (semelhanças e continuidades) que definem a especificidade do momento e da questão como também das estratégias políticas culturais. Ele acentua o caráter de intervenção da análise, quer dizer, da política que contém as escolhas e estilos da crítica a serem feitas.

Ele exemplifica seu método relacionando-a à proposta de Cornel West de uma genealogia do presente, no sentido em que foi relacionada às tradições filosóficas cognitivas e intelectuais no contexto Ocidental ao qual se refere.

Page 5: Resumo de Textos Para Mestrado

Certamente Hall poderia também ter se referido a outros autore, cito como ilustrativa disso, uma passagem de Sigmund Freud (1856-1939) que dizia que a auto-imagem do Ocidente estava marcada por três grandes golpes na história recente. O primeiro, a descoberta, por Newton, de que a terra não era o centro do universo; o segundo, a revelação darwiniana de que a humanidade, longe de ser criada por Deus, descendia de uma espécie tão banal quanto os macacos. E o terceiro, a percepção de que o indivíduo não era dono de si, mas escravo de um inconsciente que não conhecia e do qual não poderia escapar jamais.

Hall aponta três grande eixos de sua análise sobre a conjuntura que transforma as percepções no Ocidente:1. Os modelos europeus de alta cultura foram deslocados de suas antigas posições, a Europa enquanto sujeito universal da cultura e a cultura considerada como identidade nacional no contexto em que a Europa e as cultura europeias se apresentavam como superior a outras;

2. O surgimento do EUA como centro de produção global de cultura, o que vai corresponder ao advento da cultura de massa simultâneamente à mudança da definição da ideia e do conceito de cultura;

3. A descolonização e a emergência das sensibilidades descolonizadas, isto é, o surgimento de novos agentes sociais.

À estes três eixos Hall propõe ainda três qualificações que considera apontar a peculiaridade do momento atual sobre a questão da cultura popular negra:

1. A ambiguidade do deslocamento do eixo cultural da Europa para os EUA enquanto este mantinha suas hierarquias culturais étnicas e o silenciamento sobre as tradições culturais populares negras.

2. A natureza do período da globalização considerando que os negros estão numa relação tão ambígua agora no pós-modernismo quanto estavam no alto-modernismo.

3. Há uma profunda e ambivalente (ironia na) fascinação do pós-modernismo pelas diferenças, algo que se assemelha ao fascínio do modernismo pelo primitivo no passado. A atual onda pela diferença caracteriza mais uma diferença que não faz diferença.Cita Hal Foster (arqueólogo e crítico de arte): “O primitivo é um problema moderno, uma crise na identidade cultural” do Ocidente europeu que resulta na construção do primitivismo, do reconhecimento fetichista e da rejeição da sua diferença. A representação do primitivo é uma expressão de uma repressão produzida por um inconsciente político que vai transformá-lo no “estranho familiar”.

Este conceito do “estranho familiar” é de Freud, cito esta citação bastante ilustrativa da questão:

“É sempre frágil a posição do sujeito diante da força estrangeira. Ou ele faz dela objeto de criação, ou a estranheza o aprisiona numa rede de signos proto-simbólicos, onde se sobressai as imagens, os sons, enfim, o mundo não-verbal.” (Ivo de Andrade Lima Filho)

O primitivo que retorna sempre como o recalcado é administrado pela cultura Ocidental como um repertório disponível e sempre pronto para ser re-apropriado e nesse movimento se torna um dos diferenciais do pós-modernismo e da diferença que não faz diferença. Hall observa no entanto, que a vida cultural tem sido transformada na contemporaneidade, sobretudo, pela vozes das margens da sociedade.

Page 6: Resumo de Textos Para Mestrado

Aponta que mesmo na cultura mainstream (dominante) a presença da cultura negra é importante sobretudo como espaço de luta das políticas culturais da diferença, da produção de novas identidades e dos novos sujeitos no cenário político e cultural.

Destaca que hoje a luta pela hegemonia cultural é travada tanto na cultura popular quanto em quaisquer outras formas culturais. E observa que esta luta nunca é uma questão de vitória ou dominação pura, mas se trata de sempre de mudar as disposições e configurações do poder cultural e não de se retirar dele. Lembra Gramsci observando que não se trata de uma “guerra de manobras” com uma cultura substituindo a outra, mas de um único jogo, de uma “guerra de posições” culturais.

4. (O pós moderno é contraditório). Ao mesmo tempo em que o pós moderno representa uma abertura ambígua para a diferença e para as margens com um descentramento da narrativa da cultura ocidental, ela é acompanhada por uma tentativa de restaurar os cânones desta civilização mediante um ataque pouco dissimulado ao multiculturalismo. Observa isso, quando hoje se reforçam em vários países a defesa do absolutismo étnico, do racismo cultural e da xenofobia que representam também os pilares de sustentação das identidades e da cultura nacional.

É preciso atentar para a dialética cultural e não promover uma visão ingênua da cultura popular, a cultura popular negra não está isenta disso, afirma. Hall define a cultura popular tendo “como base as experiências, prazeres, memórias e tradições do povo” por isso, ela se assemelha ao que Bakhtin chama de “vulgar” se contrapondo à alta cultura ou de elite. Observa que Stallybrass e White mapearam esta divisão de alto e baixo em quatro domínios simbólicos: 1. nas formas psíquicas; 2. no corpo humano; 3. no espaço e 4. na ordem social. Sendo essa divisão uma base fundamental para o mecanismo de ordenamento e produção de sentido na cultura europeia. Observa que isso se trata de uma questão de poder e que Gramsci ressaltou a importância do “nacional-popular” como estratégico, porque é no terreno do senso comum onde a hegemonia cultural é produzida, deslocada e se torna o espaço de lutas.

Destaca que a cultura popular se tornou a forma dominante da cultura global como o espaço de homogeneização em que os estereótipos e as fórmulas de comunicação (codificações) das narrativas e representações passam pelas elaborações dos burocratas culturais. E desse modo também a cultura popular negra está destinada a essas formulações que a tornam contraditória apesar das nossas batalhas culturais. Ainda assim, a cultura negra é um espaço de contestação estratégica e que não pode ser simplificada ou explicada em termos de alto e baixo, resistência ou cooptação, autêntico e inautêncitco, experiencial e formal ou oposição versus homogeneização.

Diante disso, como se pode encarrar as bases de uma crítica cultural negra?

Ainda assim, contraditoriamente, as experiências histórias da resistência cultural negra continuem nessas figuras e repertórios como na expressividade, na musicalidade, na oralidade, nas inflexões vernaculares, nas contra narrativas e no uso metafórico do vocabulário musical, nas misturas (hibridações) de elementos de um discurso que é diferente com outras formas de vida e tradições de representação.

Hall observa que em complementação ao trabalho de muitos que se dedicaram à critica e ao inventários dessas formas faz três comentários:1. o estilo dentro do repertório negro é mais do que uma aparência ele é em si a matéria do acontecimento; 2. em oposição ao logocentrismo, o povo negro encontra na música a

Page 7: Resumo de Textos Para Mestrado

forma e a estrutura profunda de sua vida cultural; 3. o uso do corpo como capital cultural, como tela de representação.

Os repertórios da cultura popular negra além das questões de origens e das dispersões da diáspora foram os espaços que sobraram de resistência e que foram sobredeterminados parcialmente pelas heranças e pelas prórpias condições diaspóricas. As apropriações, cooptações, rearticulações de ideologias, culturas e instituições européias junto ao patrimônio africano conduziram a inovações linguísticas na estilização da retórica do corpo, das formas de ocupação de um espaço social alheio, bem como das expressões potencializadas, estilos de cabelo, posturas e gingados, maneiras de falar e meios de construir e sustentar a solidariedade negra.A questão subjacente da sobredeterminação - repertórios culturais negros constituídos a partir de duas direções - é bastante subversiva, diz. Significa que na cultura popular negra em termos etnográficos não existem formas puras, são todas hibridizadas a partir de uma base vernácula (língua do colonizador), adaptações conformadas a espaços mistos, contraditórios e híbridos de cultura popular, não se trata da recuperação de algo puro. As culturas negras são o que o moderno é, conformando-se numa estética diaspórica.

Aponta que estas marcas da diferença dentro das formas da cultura popular são carregadas pelo significante “negro” na expressão ‘cultura popular negra’. Hall define a “cultura popular negra” como um espaço onde a comunidade negra guarda as suas tradições das lutas que sobrevivem na persistência da experiência negra na diáspora, da estética negra conformando os repertórios a partir dos quais foram produzidas as representações populares e das contra narrativas negras. Nisto consiste a cultura negra autêntica que é a que está em referência à experiência e a expressividade negra e que legitimam o que é e o que não é cultura popular negra. Na cultura popular mainstream nada poderia ter sido feito sem se recorrer ao uso estratégico do significante negro.

Cita Bell Hooks e Spivak para reafirmar a necessidade de um “essencialismo estratégico”, contudo, questiona se ele ainda é uma base para as novas estratégias de intervenção. Aponta o que considera “as fraquezas desse momento esencializante e as estratégias criativas e críticas que dele decorrem”1. “as tradições deles versus as nossas” é uma forma e posição que deixa de compreender as estratégias dialógicas e formas híbridas essenciais à estética diaspórica já que deixa de se constituir numa estratégia crítica ou estética sem marcação da diferença. Sua base essencializante da diferença é excludente e em base binária ou/ou. Aquilo que Gilroy apontou como sendo mais necessário, substituir o “ou” pelo “e”, a lógica do acoplamento. O momento essencializante é fraco porque naturaliza e desistoriciza a diferença confundindo o histórico e cultural com o que é natural, biológico e genético. Desse modo, ‘significante negro’ é fixado como um código de resistência suficiente em si mesmo para garantir um caráter progressista como se não houvessem outras políticas para discutir, a não ser o que é negro ou não é. ‘Negro’ não é uma categoria de essência numa direção à homogeneidade, existem um conjunto de diferenças históricas e experiências que devem ser consideradas e que localizam, situam e posicionam o povo negro. Nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente “somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diversos tipos de diferenças - gênero, sexualidade, classe”. Não negociamos apenas com oposições, mas também por diferenciações tal como elas se dão e proliferam no campo das identidades e transitam entre si. Há também a questão da identidade negra masculina que se torna opressiva para as mulheres negras e homossexuais negros. Também as etnicidades são sustentadas por uma economia sexual específica, uma

Page 8: Resumo de Textos Para Mestrado

figuração específica da masculinidade e uma identidade específica de classe. Hall aponta ainda que não há garantia de que uma identidade racializada será sempre libertadora e progressista em todas as outras dimensões. Mas, diz, existe uma política pela qual se deve lutar e que não basta a invocação de uma experiência negra garantida por trás dela. Assim como existem as ameaças de uma pluralidade de antagonismos e diferenças que procuram destruir a unidade política negra.

Hall clama pelo fim da noção ingênua de um sujeito negro essencial citando Bell Hooks:“A negritude enquanto signo nunca é suficiente. O que aquele sujeito negro faz, como ele age como pensa politicamente...o ser negro realmente não me basta: eu quero conhecer as suas políticas culturais.”

Para concluir Hall aponta dois pensamentos: diz que a cultura popular mercantilizada e estereotipada, não é como se pode as vezes pensar “a arena onde descobrimos quem realmente somos, a verdade da nossa experiência”. A arena, isto é, o campo de luta pela identidade negra é no ‘campo simbólico’, “uma arena profundamente mítica. É um teatro de desejos populares, um teatro de fantasias populares. É onde descobrimos e brincamos com as fantasias de nós mesmos, onde somos imaginados, representados não somente para o público lá fora, que não entende a mensagem, mas também para nós mesmos pela primeira vez”. Prossegue dizendo que o terreno do popular não é construído de simples binarismos ele é sempre atravessado por algo que Bahktin chama de carnavalesco, que é o dialógico.

Concluindo, cita Stallybrass e White que apontam que numa forma dialógica em vez da simples oposição, o “de cima” e o “de baixo”, diz que eles estão em relação de dependência e afirmação como constituintes primários e erotizados um do outro e de suas próprias fantasias. Disso resulta uma “fusão móvel e conflitiva de poder, medo e desejo na construção da subjetividade”. Se trata de uma dependência psicológica daqueles outros que estão sendo impedidos e excluídos socialmente. “Por essa razão é que socialmente periférico é amiúde simbolicamente central...”

____________________________.

Stuart Hall

Começo com uma pergunta: que tipo de momento é este para se colocar a questão da cultura popular negra? ("Popular culture" teve uma tradução literal, aqui: "cultura popular". A cultura popular, para Hall, é constituída por tradições e práticas culturais populares e pela forma como estas se processam em tensão permanente com a cultura hegemônica. Nesse sentido, ela não se resume à tradição e ao folclore, nem ao que mais se consome ou vende; não se define por seu conteúdo, nem por qualquer espécie de "programa político popular" preexistente. Sua importância reside em ser um terreno de luta pelo poder, de consentimento e resistência populares, abarcando, assim, elementos da cultura de massa, da cultura tradicional e das práticas contemporâneas de produção e consumo culturais.) Esses momentos são sempre conjunturais. Eles têm sua especificidade histórica; e embora sempre exibam semelhanças e continuidades com outros momentos, eles são o mesmo momento. E a combinação do que é semelhante com o que é diferente define não somente a especificidade do momento, mas também a especificidade da questão e, portanto, as estratégias das políticas culturais com as quais tentamos intervir na cultura popular, bem como a forma e o estilo da teoria e crítica cultural que precisam acompanhar essa combinação. Em seu importante ensaio "The New Cultural Politics of Diference", Cornel West propõe uma genealogia do que é este momento, uma genealogia do presente que considero brilhantemente

Page 9: Resumo de Textos Para Mestrado

sucinta e esclarecedora. Sua genealogia acompanha, até certo ponto, posições que tentei esboçar em um artigo de relativa notoriedade e, além disso, insere de maneira útil esse momento no contexto americano, relacionando-o também às tradições filosóficas cognitivas e intelectuais com as quais ele dialoga.Segundo West, o momento, este momento, possui três grandes eixos. O primeiro é o deslocamento dos modelos europeus de alta cultura, da Europa enquanto sujeito universal da cultura, e da própria cultura, em sua antiga leitura arnoldiana, como o último refúgio de... quase disse, de velhacos, mas não vou dizer de quem. Pelo menos sabemos a quem essa leitura resistia - a cultura contra os bárbaros, contra a ralé que tentava forçar os portões, enquanto a prosa eterna da anarquia fluía da pena de Arnold. O segundo eixo é o surgmento dos EUA como potência mundial e, consequentemente, como centro de produção e circulação global de cultura. Esse surgimento é simultaneamente um deslocamento e uma mudança hegemônica na definição de cultura - um movimento que vai da alta cultura à cultura popular americana majoritária e suas formas de cultura de massa, mediadas pela imagem e formas tecnológicas. O terceiro eixo é a descolonização do Terceiro Mundo, marcado culturalmente pela emergência das sensibilidades descolonizadas. Eu entendo a descolonização do Terceiro Mundo no sentido de Frantz Fanon: incluo aí o impacto dos direitos civis e as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos da diaáspora negra.Gostaria de acrescentar algumas qualificações a esse quadro geral, detalhes que, a meu ver, tornam o momento presente um momento peculiar para se propor a questão da cultura popular negra. Primeiro, quero lembrar as ambigüidades daquele deslocamento da Europa para a América, uma vez que ele inclui a relação ambivalente dos EUA com a alta cultura européia e a ambigüidade da relação dos EUA com suas próprias hierarquias étnicas internas, Até há pouco, a Europa Ocidental não tinha qualquer tipo de etnicidade. Ou não reconhecia que tivesse. Os EUA sempre tiveram uma série de etnicidades e, conseqüentemente, a construção de hierarquias étnicas sempre definiu suas políticas culturais. E, evidentemente, dentro desse deslocamento, silenciado e sem reconhecimento, estava a própria cultura popular americana, que desde sempre conteve, silenciadas ou não, as tradições vernáculas da cultura popular negra americana. Talvez seja difícil lembrar que, quando vista de fora dos EUA, a cultura de massa americana sempre envolveu certas tradições que só podem ser atribuídas às tradições da cultura popular negra vernácula.A segunda qualificação diz respeito à natureza do período de globalização cultural atualmente em processo. Não gosto do termo "pós-moderno global", um significante tão vazio e deslizante que pode ser entendido como qualquer coisa. Os negros estão colocados numa relação tão ambígua com o pós-modernismo quanto estavam com o alto modernismo: mesmo quando despojado de sua procedência no marxismo desencantado ou na intelectualidade francesa e reduzido a um status mais modesto e decritivo, o pós-modernismo continua a desenvolver-se de forma extremamente desigual, como um fenômeno em que os antigos centro-periferias da alta modernidade reaparecem consistentemente. Os únicos lugares que podem experimentar genuinamente a culinária étnica pós-moderna são Manhattan e Londres, não Calcutá, e mesmo assim é impossível rejeitar inteiramente o "pós-moderno global", na medida em que ele registra certas mudanças estilísticas no que eu chamava de dominante cultural. Mesmo que o pós-modernismo não seja uma nova era cultural, mas somente o modernismo nas ruas, isso, em si, representa uma importante mudança no terreno da cultura rumo ao popular - rumo a práticas populares, práticas cotidianas, narrativas locais, descentramento de antigas hierarquias e de grandes narrativas. Esse descentramento ou deslocamento abre caminho para novos espaços de contestação, e causa uma importantíssima mudança na alta cultura das relações culturais populares, apresentando-se, dessa forma, como uma importante oportunidade estratégica para a intervenção no campo da cultura popular.Em terceiro lugar, devemos ter em mente a profunda e ambivalente fascinação do pós-modernismo pelas diferenças sexuais, raciais, culturais e, sobretudo, étnicas. Em total oposição à cegueira e hostilidade que a alta cultura européia demonstrava, de modo geral, pela diferença étnica - sua incapacidade até de falar em etnicidade

Page 10: Resumo de Textos Para Mestrado

quando esta inscrevia seus efeitos de forma tão evidente -, não há nada que o pós-modernismo global mais adore do que um certo tipo de diferença: um toque de etnicidade, um "sabor" do exótico e, como dizemos em inglês, a bit of the other (expressão que no Reino Unido possui não só uma conotação étnica, como também sexual). Em seu ensaio "Modernismo, pós-modernismo e o problema do visual na cultura afro-americana", Michele Wallace acertou ao indagar se esse reaparecimento de uma proliferação da diferença, de um certo tipo de ascensão do pós-moderno global, não seria uma repetição daquele jogo de "esconde-esconde" - que o modernismo jogou com o primitivismo no passado - e ao indagar se esse jogo não estaria sendo novamente realizado às custas do vasto silenciamento acerca da fascinação ocidental pelos corpos de homens e mulheres negros e de outras etnias. Devemos indagar sobre esse silêncio contínuo no terreno movediço do pós-modernismo e questionar se as formas de autorização do olhar a que esta proliferação de diferença convida e permite, ao mesmo tempo em que rejeita, não seriam, realmente, junto com a Benetton e a miscelânia de modelos masculinos da revista The Face, um tipo de diferença que não faz diferença alguma.Hal Foster escreve: "O primitivo é um problema moderno, uma crise na identidade cultural", daí a construção modernista do primitivismo, o reconhecimento fetichista e a rejeição da diferença do primitivo. Mas essa resolução é somente uma repressão; o primitivo, detido no interior de nosso inconsciente político, retorna como um estranho familiar, no momento de seu aparente eclipse político. Essa ruptura do primitivismo, administrada pelo modernismo, torna-se um outro evento pós-moderno. Essa administração é certamente evidente na diferença que pode não produzir diferença alguma e que marca o surgimento ambíguo da etnicidade no âmago do pós-moderno global. Mas não pode ser só isso, pois não podemos esquecer como a vida cultural sobretudo no Ocidente e também em outras partes, tem sido transformada em nossa época pelas vozes das margens.Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, e isso não é simplesmente uma abertura, dentro dos espaços dominantes, à ocupação dos de fora. É também o resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural. Isso vale não somente para a raça, mas também para outras etnicidades marginalizadas, assim como o feminismo e as políticas sexuais no movimento de gays e lésbicas, como resultado de um novo tipo de política cultural. Não quero sugerir, é óbvio, que podemos contrapor à eterna história de nossa própria marginalização uma sensação confortável de vitórias alcançadas - estou cansado dessas duas contranarrativas . Permanecer dentro delas é cair na armadilha da eterna divisão ou/ou, ou vitória total ou total cooptação, o que quase nunca acontece na política cultural, mas com o que os críticos culturais se reconfortam.Estamos falando de uma luta pela hegemonia cultural que hoje é travada tanto na cultura popular quanto em outro lugar. a distinção entre erudito e popular é precisamente o que o pós-moderno global está deslocando. A hegemonia cultural nunca é uma questão de vitória ou dominação pura (não é isso que o termo significa); nunca é um jogo cultural de perde-ganha; sempre tem a ver com a mudança no equilíbrio de poder nas relações da cultura; trata-se sempre de mudar as disposições e configurações do poder cultural e não se retirar dele. Existe uma atitude do tipo "nada muda, o sistema sempre vence", que eu leio como a um invólucro protetor cínico, que, lamento dizer, críticos culturais norte-americanos frequentemente utilizam. Um invólucro que, algumas vezes, os impede de desenvolver estratégias culturais que façam diferença. É como se, para se protegerem de uma derrota eventual, precisassem fingir que tudo lhes é transparente e igual ao que sempre foi.Já as estratégias culturais capazes de fazer diferença são o que me interessa - aquelas capazes de efetuar diferenças e de deslocar as disposições do poder. Reconheço que os espaços "conquistados " para a diferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. Acredito que sejam limitados. Sei que eles são absurdamente subfinanciados , que existe sempre um preço de cooptação a ser pago quando o lado cortante da diferença e da transgressão perde

Page 11: Resumo de Textos Para Mestrado

o fio na espetacularização. Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada. Mas simplesmente menosprezá-la, chamando-a de "o mesmo", não adianta. Depreciá-la desse modo reflete meramente o modelo específico das políticas culturais ao qual continuamos atados, precisamente o jogo da inversão - nosso modelo substituindo o modelo deles, nossas identidades em lugar das suas - a que Antonio Gramsci chamava de cultura como "guerra de manobra" de uma vez por todas, quando, de fato, o único jogo corrente que vale a pena jogar é o das "guerras de posição" culturais.Para que não pensem, parafraseando Gramsci, que meu otimismo da vontade agora já superou completamente o meu pessimismo do intelecto, deixem-me acrescentar um quarto elemento que comente o atual momento. Se o pós-moderno global representa uma abertura ambígua para a diferença e para as margens e faz com que um certo tipo de descentramento da narrativa ocidental se torne provável, ele é acompanhado por uma reação que vem do âmago das políticas culturais: a resistência agressiva à diferença; a tentativa de restaurar o cânone da civilização ocidental; o ataque direto e indireto ao multiculturalismo; o retorno às grandes narrativas da história, da língua e da literatura (os três grandes pilares de sustentação da identidade e da cultura nacionais); a defesa do absolutismo étnico, de um racismo cultural que marcou as eras Thatcher e Reagan; e as novas xenofobias que estão prestes a subjugar a Europa. A última coisa a fazer é ler-me como se eu estivesse dizendo que a dialética cultural acabou. Parte do problema é que temos esquecido que tipo de espaço é o da cultura popular. E a cultura popular negra não está isenta dessa dialética, que é histórica e não uma questão de má-fé. Portanto, é necessário desconstruir o popular de uma vez por todas. Não há como retornar a uma visão ingênua do que ele consiste.A cultura popular carrega essa ressonância afirmativa por causa do peso da palavra "popular". E, em certo sentido, a cultura popular tem sempre sua base em experiências, prazeres, memórias e tradições do povo. Ela tem ligações com as esperanças e aspirações locais, tragédias e cenários locais que são práticas e experiências cotidianas de pessoas comuns. Daí, ela se liga àquilo que Bakhtin chama de "vulgar" - o popular, o informal, o lado inferior, o grotesco - eis porque sempre foi contraposta à alta cultura ou cultura de elite e é, portanto, um local de tradições alternativas, sendo esse o motivo pelo qual a tradição dominante sempre suspeitou profundamente a seu respeito, e com razão. Desconfia-se de que essa tradição pode ser superada pelo que Bakhtin chama de "carnavalesco". Este mapeamento fundamental da cultura entre o alto e o baixo foi dividido em quatro domínios simbólicos por Peter Sallybrass e Allon White em seu importante livro The Politics and Poetics of Transgression [A política e a poética da transgressão]. Eles falam sobre o mapeamento do alto e baixo em formas psíquicas, no corpo humano, no espaço e na ordem social e discutem a distinção alto/baixo enquanto base fundamental para o mecanismo de ordenamento e de produção de sentido na cultura européia e em outras, apesar do fato de o conteúdo alto e baixo sofrer mudanças de um momento histórico a outro.A questão importante é o ordenamento das diferentes morais estéticas, das estéticas sociais, os ordenamentos culturais que abrem a cultura para o jogo do poder, e não um inventário do que é alto versus o que é baixo em um momento específico. É por isso que Gramsci deu à questão que chamou de "nacional-popular" tamanha importância estratégica, pois entendeu que é no terreno do senso comum que a hegemonia cultural é produzida, perdida e se torna objeto de lutas. O papel do "popular" na cultura popular é o de fixar a autenticidade das formas populares, enraizando-as nas experiências das comunidades populares das quais elas retiram o seu vigor e nos permitindo vê-las como expressão de uma vida social subalterna específica, que resiste a ser constantemente reformulada enquanto baixa e periférica. Entretanto, como a cultura popular tem se tornado historicamente a forma dominante da cultura global, ela é, então, simultaneamente, a cena, por excelência, da mercantilização, das indústrias onde a cultura penetra diretamente nos circuitos de uma tecnologia dominante - os circuitos do poder e do capital. Ela é o espaço de homogeneização em que os estereótipos e as fórmulas processam sem compaixão o material e as experiências que ela traz dentro da sua rede, espaço em que o controle sobre narrativas e representações passa para as mãos das

Page 12: Resumo de Textos Para Mestrado

burocracias culturais estabelecidas às vezes até sem resistência. Ela está enraizada na experiência popular e, ao mesmo tempo, disponível para expropriação. Quero defender a idéia de que isso é necessário e inevitável e vale também para a cultura popular negra, que, como todas as culturas populares do mundo moderno, está destinada a ser contraditória, o que ocorre não porque não tenhamos travado a batalha cultural suficientemente bem.Por definição, a cultura popular negra é um espaço contraditório. É um local de contestação estratégica. Mas ela nunca pode ser simplificada ou explicada nos termos das simples oposições binárias habitualmente usadas para mapeá-la: alto ou baixo, resistência versus cooptação, autêntico versus inautêntico, experiencial versus formal, oposição versus homogeneização. Sempre existem posições a serem conquistadas na cultura popular, mas nenhuma luta consegue capturar a própria cultura popular para o nosso lado ou o deles. Por que isso acontece? Que conseqüência isso traz para as estratégias de intervenção nas políticas culturais? Como isso muda as bases de uma crítica cultural negra?Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na cultura popular, nós continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada atenção à fala; em suas inflexões vernaculares e locais; em sua rica produção de contranarrativas; e, sobretudo em seu uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é diferente - outras formas de vida, outras tradições de representação.Não pretendo repetir o trabalho daqueles que consagraram suas vidas de estudo, crítica e criação à identificação das particularidades dessas tradições diaspóricas, à pesquisa de suas modalidades, as experiências históricas e as memórias que codificam. Vou fazer três comentários incompletos que não darão conta dessas tradições, já que elas são pertinentes ao argumento que quero desenvolver. Primeiro, peço que observem como, dentro do repertório negro, o estilo - que os críticos culturais da corrente dominante muitas vezes acreditam ser uma simples casca, uma embalagem, o revestimento de açúcar na pílula - se tornou em si matéria do acontecimento. Segundo, percebam como, deslocado de um mundo logocêntrico - onde o domínio direto das modalidades culturais significou o domínio da escrita e, daí, a crítica da escrita (crítica logocêntrica) e a desconstrução da escrita - , o povo da diáspora negra tem, em oposição a tudo isso, encontrado a forma profunda, a estrutura profunda de sua vida cultural na música. Terceiro, pensem em como essas culturas têm usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o único capital cultural que tínhamos. Temos trabalhado em nós mesmos como em telas de representação.Existem aqui questões profundas de transmissão e herança cultural, de relações complexas entre as origens africanas e as dispersões irreverssíveis da diáspora; questões que não vou aprofundar aqui. Mas acredito que esses repertórios da cultura popular negra - uma vez que fomos excluídos da corrente cultural dominante - eram frequentemente os únicos espaços performáticos que nos restavam e que foram sobredeterminados de duas formas: parcialmente por suas heranças, e também determinados criticamente pelas condições diaspóricas nas quais as conexões foram forjadas. A apropriação, cooptação e rearticulação seletivas de ideologias, culturas e instituições européias, junto a um patrimõnio africano - cito novamente Cornel West -, conduziram a inovações lingüísticas na estilização retórica do corpo, a formas de ocupar um espaço social alheio, a expressões potencializadas, a estilos de cabelo, a posturas, gingados e maneiras de falar, bem como a meios de constituir e sustentar o companheirismo e a comunidade.A questão subjacente de sobredeterminação - repertórios culturais negros constituídos simultaneamente a partir de duas direções - é talvez mais subversivo do que se pensa. Significa insistir na cultura popular negra, estritamente falando, em termos etnográficos, não existem formas puras. Todas essas formas são sempre o produto de sincronizações parciais, de enganjamentos que atravessam fronteiras

Page 13: Resumo de Textos Para Mestrado

culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de materiais preexistentes. Essas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula. Assim, elas devem ser sempre ouvidas não simplesmente como recuperação de um diálogo perdido que carrega indicações para a produção de novas músicas (porque não volta para o antigo de um modo simples), mas como o que elas são - adaptações conformadas aos espaços mistos, contraditórios e híbridos da cultura popular. Elas não são a recuperação de algo puro pelo qual, finalmente, podemos nos orientar. Somos obrigados a reconhecer que elas são o que o moderno é, naquilo que Kobena Mercer chama a necessidade de uma estética diaspórica.Essa marca da diferença dentro das formas da cultura popular - que são, por definição, contraditórias e, portanto, aparecem como impuras e ameaçadas pela cooptação ou exclusão - é carregada pelo significante "negro" na expressão "cultura popular negra". Ela chegou a significar a comunidade negra onde se guardam as tradições e cujas lutas sobrevivem na persistência da experiência negra ( a experiência histórica do povo negro na diáspora), da estética negra (os repertórios culturais próprios a partir dos quais foram produzidos as representações populares) e das contranarrativas negras que lutamos para expressar. Aqui a cultura popular negra retorna ao terreno que defini anteriormente. A "boa" cultura popular passa no teste de autenticidade, que é a referência à experiência negra e à expressividade negra. Estas servem como garantias na determinação de qual cultura popular negra é a certa, qual é nossa e qual não é.Tenho a impressão de que, historicamente, nada poderia ter sido feito para intervir no campo dominado da cultura popular mainstream, para tentar conquistar algum espaço lá, sem o uso de estratégias através das quais aquelas dimensões fossem condensadas no significante "negro". Onde estaríamos, conforme bell hooks comentou certa vez, sem um toque de essencialismo ou sem o que Gayatri Spivak chama de essencialismo estratégico, um momento necessário ? A questão é se ainda estamos nesse momento, se esse constitui ainda uma base suficiente para as estratégias das novas intervenções. Vou tentar esquematizar o que me parecem ser as fraquezas desse momento essencializante e as estratégias criativas e críticas que dele decorrem.Esse momento essencializa as diferenças em vários sentidos. Ele enxerga a diferença como "as tradições deles versus as nossas" - não de uma forma posicional, mas mutuamente excludente, autônoma e auto-suficiente - e é, consequentemente, incapaz de compreender as estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica. Um movimento para além desse essencialismo não se constitui em estratégia crítica ou estética sem uma política cultural, sem uma marcação da diferença. Não é simplesmente a rearticulação e a reapropriação como um fim em si mesmo. O que esse movimento burla é a essencialização da diferença dentro das duas oposições mútuas ou/ou. O que ele faz é deslocar-nos para um novo tipo de posição cultural, uma lógica diferente da diferença, para resumir o que Paul Gilroy tão vividamente pautou na agenda política e cultural da política negra do Reino Unido: os negros da diáspora britânica devem, neste momento histórico, recusar o binário negro ou britânico. Eles devem recusar porque o "ou" permanece o local de contestação constante, quando o propósito da luta deve ser, ao contrário, substituir o "ou" pela potencialidade e pela possibilidade de um "e", o que significa a lógica do acoplamento, em lugar da lógica da oposição binária. Você pode ser negro e britânico, negra e britânica não somente porque esta é uma posição necessária nos anos 90, mas porque mesmo esses dois termos, unidos agora pela conjunção "e", contrariamente à oposição de um ao outro, não esgotam todas as nossas identidades. Somente algumas delas estão, às vezes, envolvidas nessa luta específica.O momento essencializante é fraco porque naturaliza e des-historiciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e genético. No momento em que o significante "negro" é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, valorizamos, pela inversão a própria base do racismo que estamos tentando

Page 14: Resumo de Textos Para Mestrado

desconstruir. Além disso, como sempre acontece quando naturalizamos categorias históricas (pensem em gênero e sexualidade), fixamos esse significante fora da história, da mudança e da intervenção políticas. E uma vez que ele é fixado, somos tentados a usar "negro" como algo suficiente em si mesmo, para garantir o caráter progressista da política pela qual lutamos sob essa bandeira - como se não tivéssemos nenhuma outra política para discutir, exceto a de que algo é negro ou não é. Somos tentados, ainda, a exibir esse significante como um dispositivo que pode purificar o impuro e enquadrar irmãos e irmãs desgarrados, que estão desviando-se do que deveriam estar fazendo, e policiar as fronteiras - que, claro, são fronteiras políticas, simbólicas e posicionais - como se elas fossem genéticas. É como se pudéssemos traduzir a natureza em política, usando uma categoria racial para sancionar as políticas de um texto cultural e como medida de desvioAlém do mais, tendemos a privilegiar a experiência enquanto tal como se a vida negra fosse uma experiência vivida fora da representação. Só precisamos, parece, expressar o que já sabemos que somos. Em vez disso, é somente pelo modo no qual representamos e imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como nos constituímos e quem somos. Não há como escapar de políticas de representação, e não podemos lidar com a idéia de "como a vida é realmente lá fora" como uma espécie de teste para medir o acerto ou erro político de uma dada estratégia ou texto cultural. E não será surpresa para vocês que eu considere que "negro" não é, na realidade, nenhuma dessas coisas. Não é uma categoria de essência. Portanto, essa maneira de compreender o significante flutuante na cultura popular negra é hoje, conseqüentemente, insatisfatória.Existe, é claro, um conjunto de experiências negras historicamente distintas que contribuem para os repertórios alternativos que mencionei anteriormente. Mas é para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra que devemos dirigir integralmente a nossa atenção criativa agora. Não é somente para apreciar as diferenças históricas e experienciais dentro de, e entre, comunidades, regiões, campo e cidade, nas culturas nacionais e entre as diásporas, mas também reconhecer outros tipos de diferença que localizam, situam e posicionam o povo negro. A questão não é simplesmente que, visto que nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças - de gênero, sexualidade, classe. Trata-se também do fato de que esses antagonismos se recusam a ser alinhados; simplesmente não se reduzem um ao outro, se recusam a se aglutinar em torno de um eixo único de diferenciação. Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes. Cada uma delas tem para nós o seu ponto de profunda identificação subjetiva. Essa é a questão mais difícil da proliferação no campo das identidades e antagonismos: elas freqüentemente se deslocam entre si.Assim, colocado de maneira direta, certas formas pelas quais os homens negros continuam a viver suas contra-identidades enquanto masculinidades negras e representam fantasias de masculinidades negras nos teatros da cultura popular são, quando vistas a partir de outros eixos de diferença, as mesmas identidades masculinas que são opressivas para as mulheres e que reivindicam visibilidade para a sua dureza às custas da vulnerabilidade das mulheres negras e da feminização dos homosexuais negros. O modo como políticas transgressoras são, em um domínio, constantemente suturadas e estabilizadas pelas políticas reacionárias ou não examinadas em outro domínio só pode ser explicado por este contínuo deslocamento-cruzado de uma identidade por outra, de uma estrutura por outra. Etinicidades dominantes são sempre sustentadas por uma economia sexual específica, uma figuração específica de masculinidade, uma identidade específica de classe. Não existe garantia, quando procuramos uma identidade racial essencializada da qual pensamos estar seguros, de que esta sempre será mutuamente libertadora e progressista em todas as outras dimensões. Entretanto, existe sim uma política pela qual vale lutar. Mas a invocação de uma experiência negra garantida por trás dela não produzirá essa política. De fato não é nada surpreendente a pluralidade de antagonismos e diferenças que hoje procuram destruir a unidade política negra, dadas as complexidades das estruturas de

Page 15: Resumo de Textos Para Mestrado

subordinação que moldaram a forma como nós fomos inseridos na diáspora negra.Estes são os pensamentos que me impulsionaram a falar, em um momento de espontaneidade, do fim da inocência do sujeito negro ou do fim da noção ingênua de um sujeito negro essencial. Quero simplesmente concluir lembrando a vocês que esse fim é também um começo. Como Isaac Julien disse, em uma entrevista com bell hooks, sobre o seu novo filme Young Soul Rebels, a respeito da tentativa, em seu próprio trabalho, de retratar uma série de corpos raciais diferentes, para constituir uma gama de diferentes subjetividades negras e de se engajar com as posições de uma série de diferentes tipos de masculinidades negras:A negritude enquanto signo nunca é suficiente. O que aquele negro faz, como ele age, como pensa politicamente... o ser negro realmente não me basta: eu quero conhecer as suas políticas culturais.Quero finalizar com dois pensamentos que nos levam de volta ao sujeito da cultura popular. O primeiro é lembrá-los de que essa cultura popular, mercantilizada e estereotipada como é frequentemente, não constitui, como às vezes pensamos, a arena onde descobrimos quem realmente somos, a mente mítica. É um teatro de desejos populares, um teatro de fantasias populares. É onde descobrimos e brincamos com as identificações de nós mesmos, onde somos imaginados, representados, não somente para o público lá fora, que não entende a mensagem, mas também para nós mesmos pela primeira vez. Como disse Freud, o sexo (e a representação) acontecem pricipalmente na cabeça. Em segundo lugar, embora o terreno do popular pareça ser construído com binarismos simples, ele não é. Eu lembrei a vocês sobre a importância da estruturação do espaço cultural em termos de alto e baixo, e a ameaça do carnavalesco bakhtiniano. Acho que Bakhtin tem sido profundamente mal interpretado. O carnavalesco não é simplesmente a inversão de duas coisas que continuam presas aos seus arcabouços contrários; é também atravessado pelo que Bakhtin chama dialógico.Encerro com uma descrição do que está envolvido no entendimento da cultura popular, numa forma dialógica em vez de estritamente de oposição, extraído de A política e a poética da transgressão, de Stallybrass e White:Um padrão recorrente emerge: o "de cima" tenta rejeitar e eliminar o "de baixo" por razões de prestígio e status e acaba descobrindo que não só está, de algum modo, freqüentemente dependente desse baixo-Outro (...) mas também que o de cima inclui simbolicamente o de baixo como constituinte primário erotizado de sua própria vida de fantasia. O resultado é uma fusão móvel e conflitiva de poder, medo e desejo na construção da subjetividade: uma dependência psicológica de precisamente aqueles outros que estão sendo rigorosamente impedidos e excluídos no nível da vida social. É por essa razão que o que é socialmente periférico é amiúde simbolicamente central...

[HALL, S. What is this "Black" in Black Popular Culture? In: WALLACE, Michele (Org.). Black Popular Culture. 2. ed. New York: The New Press, 1998. (1. ed.: Seattle: Bay Press, 1992). Tradução de Sayonara Amaral.]

Page 16: Resumo de Textos Para Mestrado

Stuart Hall: a favor da diferença

Sociólogo e um dos principais teóricos do multiculturalismo, morto este mês, refletiu sobre a diáspora negra sem se prender a correntes teóricas

Por Liv Sovik

Talvez Stuart Hall gostasse de saber que falar dele logo depois de sua morte é participar de uma polifonia bakhtiniana, um conjunto de vozes diferentes que falam sobre ele, o que ele fez e disse, o impacto que teve. Minha homenagem favorita, no momento, é um trecho da nota de óbito de David Morley e Bill Schwarz, seus amigos e ex-alunos. Publicada no site do “The Guardian”, a nota foi a matéria mais lida do jornal no dia da morte do professor, teórico e ativista, do mestre e maître-à-penser. O texto termina assim:

“Quando apareceu no programa de rádio Desert Island Discs, Hall falou de sua paixão duradoura por Miles Davis. Explicou que a música representou para ele o som do que não pode ser, ‘the sound of what cannot be’. O que era sua vida intelectual, senão o esforço, contra todos os obstáculos, para fazer ‘o que não pode ser’, viver na imaginação?”

Em “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, Hall escreveu que “o povo da diáspora negra tem, em oposição a tudo isso [a cultura logocêntrica, da escrita], encontrado a forma profunda, a estrutura profunda de sua vida cultural na música”. Hall era duplamente diaspórico, descendente de povos deslocados pela história da colonização e da escravidão e migrante da Jamaica à Inglaterra. Ele se pronunciou em textos, como se fosse um Miles Davis: tocava e colaborava com seus parceiros, livremente solando em sintonia e contradição com seu contexto, em um som complexo, difícil de ouvir na primeira vez, mas de uma liberdade admirável a cada nova audição.

No Brasil, em 2000, um discurso de impacto

Hall elaborava suas ideias através da construção de tensões — já descrevi esse processo na apresentação da coletânea de seu trabalho, “Da diáspora: identidades e mediações culturais” (Ed. UFMG, 2003). Em “Que ‘negro’...?”, disse: “a pergunta sobre identidade negra a que se refere o título do artigo reverte para a consideração crítica da etnicidade dominante; a identidade negra é atravessada por outras identidades, inclusive de gênero e orientação sexual. A política identitária essencialista aponta para algo pelo qual vale lutar, mas não resulta simplesmente

Page 17: Resumo de Textos Para Mestrado

em libertação da dominação. Nesse contexto complexo, as políticas culturais e a luta que incorporam se trava em muitas frentes e em todos os níveis da cultura, inclusive a vida cotidiana, a cultura popular e a cultura de massa. Hall ainda acrescenta um complicador, no final do texto: o meio mercantilizado e estereotipado da cultura de massa se constitui de representações e figuras de um grande drama mítico com o qual as audiências se identificam, é mais uma experiência de fantasia do que de autorreconhecimento”.

Difícil seria reduzir o caminho desse pensamento à dialética. Ao invés, podemos pensar que a maneira de Hall elaborar ideias tem uma estrutura musical, em que tema e variação podem ser interrompidos por improvisações, onde o solo se destaca de um coro de vozes trazidas de uma bibliografia entendida como fonte de forças a serem chamadas para entender os objetos — ao contrário do hábito acadêmico de criticar negativamente os antecessores sob pena de parecer submisso a eles. Talvez seja por sua maneira de sentir e elaborar ideias a partir de uma estrutura profunda musical, que também diz respeito à vida cultural brasileira, que Stuart Hall teve tanta ressonância aqui. 

A vinda a Salvador em julho de 2000, a convite da diretoria da Associação Brasileira de Literatura Comparada, teve por trás uma preocupação em destacá-lo como intelectual negro de impacto internacional na cidade negra, de cultura negra, marcada pela opressão racista, em um momento em que havia certa romantização da Bahia como berço da cultura negra brasileira. Hall não deixou por menos: fez uma conferência em que concebeu a colonização não como um efeito da hegemonia europeia, mas como acontecimento histórico mundial, envolvendo “expansão, exploração, conquista, colonização, escravidão, exploração econômica e hegemonia imperial”, através do qual a Europa “se refez” a partir de 1492. Essa concepção tem os efeitos de deslocar o foco histórico da Europa moderna para as periferias globais; deixar de celebrar a diversidade cultural da periferia como fruto profícuo da globalização e entendê-la como produto da recusa e persistência de povos distantes da metrópole; e identificar a modernidade ocidental não com o “Reino Universal da Razão”, mas com a dimensão vinculante de seu poder e capacidade, em consequência, de gerar diferenças. Em segundo lugar, identificou no racismo (e nos discursos sobre gênero e sexualidade) a exceção à regra pela qual a diversidade é entendida como uma criação cultural: esses discursos conseguem naturalizar mais as diferenças. Assim, nessa nova dança de tese e contratese, variação e invenção, a conferência de Hall trazia o tema de volta às responsabilidades políticas que, para ele, eram primordiais.

A coletânea de textos de autoria de Hall, “Da diáspora”, foi um desdobramento do congresso e desde que saiu, em 2003, se tornou um best-seller acadêmico. Retomo a afirmação anterior como refrão: talvez seja porque as temáticas que trabalhava a partir de meados dos anos 80 dizem respeito à vida cultural brasileira que Stuart Hall teve tanta ressonância aqui, pois a partir dessa época ele se preocupou explicitamente com questões identitárias negras. Para ele, afirmar o valor de uma “África” diaspórica, a identidade negra diaspórica, resumida na palavra “África”, foi importante como fator de “descolonização” das “mentes de Brixton e Kingston”, tanto para jovens negros ingleses como jamaicanos. Essa “África” tornou pronunciável o “segredo culposo da raça [...] o trauma indizível do Caribe”, e marcou todos os movimentos sociais e ações criativas do século XX no Caribe. Ao mesmo tempo, Hall era um crítico implacável do fundo supostamente biológico das diferenças de — citou W.E.B. DuBois — “cor, cabelo e osso”. Para ele, o corpo é lido como se fosse um texto, e sua “racialidade” pode significar coisas diferentes dependendo das circunstâncias igualmente diferentes.

Um igualitarismo utópico marcava a a relação com seus próprios outros: pessoas de outras identidades raciais, mulheres, homossexuais, estudantes, jovens colaboradores nas instituições que dirigia, organizadoras de livros. Nunca deixou de lembrar as analogias entre a ideia que a identidade racial se baseia em diferenças genéticas e a de que os papéis sociais subalternos das mulheres são determinados

Page 18: Resumo de Textos Para Mestrado

biologicamente. Estava sempre aberto a questões que não lhe afetavam diretamente. Uma vez me perguntaram se Hall era gay: no Brasil, onde a crítica à discriminação tantas vezes se faz somente por suas vítimas, era impossível imaginar um apreciador sem rodeios da perspectiva queer, como ele demonstrou ser em diversos textos, a começar por “The Spectacle of the ‘Other’”, que não fosse gay.

Para Hall, que não queria discípulos, a vida intelectual se vivia pelo combate “mano a mano” com os textos e figuras, não pelo pertencimento aos cortes de um teórico ou outro. Conversar com ele era entrar em um mundo em que fazer reflexões que tivessem alguma repercussão política era o objeto, o problema, o jogo a ser jogado. Acolhia todos dispostos a entrar nesse jogo, a pensar, a tentar entender, projetar algo. O bom humor e o afeto — e também o tom combativo de um discurso da tradição oral, em que o interlocutor está sempre presente, mesmo que implicitamente —, transparecem nos seus textos e talvez isso diga respeito à vida cultural brasileira e seja mais um motivo pelo qual Stuart Hall teve tanta ressonância no Brasil. 

Valorização do outro

Em meio a tantas homenagens a Hall, é possível que a melhor seja não entrar em consensos apressados a respeito de seu pensamento — por exemplo, entendendo de forma banal, como convivência pacífica, o multiculturalismo do qual, se diz, ele é pai. Quando alguém lhe perguntou, em um simpósio sobre cultura, globalização e o sistema-mundo, realizado no estado de Nova York em 1989, se existia algo que pudesse ser chamado de “humanidade”, ele respondeu que não. Quando se fala em humanidade ou no ser humano que “todo mundo é, no fundo”, o que está acontecendo na prática, disse, é um apagamento das diferenças em nome de uma inclusão hierárquica, que interessa a alguns. A esperança, disse, é que nesse momento, de naturalização da hierarquia social feita em nome da humanidade universal, algo escape. 

A esperança de Hall que o Outro escape de sua redução ao Mesmo e ao nome que o sistema de poder lhe dá, assim como a tradução dessa esperança em um respeito pelas pessoas, diferentes entre si: tudo isso fez parte de seu carisma, de sua capacidade de gerar sentimentos de amizade e, certamente, de sua contribuição com imagens do que (não) pode ser. Arauto da possibilidade em aberto — sempre insistia que os resultados de processos históricos não eram determinados de antemão —, seu pensamento era tão complexo quanto o som de Miles Davis. Esse pensamento, motivado pela vontade de um futuro menos cruel, justo, diz respeito à vida social e cultural brasileira: talvez por isso também Stuart Hall teve tanta ressonância aqui. 

*Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de “Aqui ninguém é branco”